UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÓGICA E METAFÍSICA
LUISA LUZE BRUM GENUNCIO
SENTIDO, REFERÊNCIA E NOMES FICCIONAIS
Rio de Janeiro
2019
II
LUISA LUZE BRUM GENUNCIO
SENTIDO, REFERÊNCIA E NOMES FICCIONAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Lógica e Metafísica, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Filosofia.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia C. P. Teixeira
Rio de Janeiro
2019
III
IV
LUISA LUZE BRUM GENUNCIO
SENTIDO, REFERÊNCIA E NOMES FICCIONAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Lógica e Metafísica, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Filosofia.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia C. P. Teixeira
Rio de Janeiro, 28 de junho de 2019.
Banca examinadora
Célia C. P. Teixeira, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Roberto Horácio de Sá Pereira, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Ludovic Soutif, Doutor, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
V
Agradecimentos
Aos meus pais, em primeiro lugar, por todas as oportunidades e apoio.
Aos meus tios e tias, primos e primas pelo incentivo e chás da tarde.
Aos meus professores que muito me ensinaram, e especialmente a gostar dos desafios
filosóficos. Ao professor Marco Rufino por me direcionar no caminho da filosofia da linguagem.
Ao professor Guido Imaguire por me incentivar a me envolver seriamente com a filosofia. Ao
professor Roberto Horácio por seu contínuo apoio e incentivo. E principalmente à professora Célia
Teixeira, sem a qual este trabalho teria sido condenado a ser mera ficção. Minha orientadora tem
toda a minha gratidão pelo apoio incessante, e pelas muitas chances.
Aos meus amigos William, Diego e Gabriel pelo apoio e presença nos desafios e conquistas.
Às minhas amigas Luciana e Rosi, presentes que ganhei ao frequentar esse Programa, fontes de
inspiração e incentivo. Às minhas amigas-irmãs Bruna e Paula pelas conversas sem fim.
Aos professores Roberto Horácio e Ludovic por aceitarem o convite para participar da
Banca.
A CAPES, FAPERJ e ao PPGLM, por oferecerem as condições para o desenvolvimento
desse trabalho.
VI
Resumo
GENUNCIO, Luisa Luze Brum. Sentido, referência e nomes ficcionais. Luisa Luze Brum
Genuncio. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-
Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
O principal foco dessa dissertação é investigar qual o sentido dos nomes ficcionais, como é feita a
referência desses nomes e se é possível considerar que frases com esses nomes podem ser
verdadeiras. Nomes ficcionais são geralmente considerados uma subcategoria de nomes próprios.
No entanto, eles são considerados nomes vazios, ou seja, nomes sem referentes que expliquem o
sentido a eles atribuído. Os dois primeiros capítulos são compostos da exposição das teorias
principais acerca do funcionamento semântico dos nomes em geral de modo a avaliar como essas
teorias explicam as condições especiais dos nomes ficcionais. Nos últimos três capítulos avalio as
principais ideias propostas por três importantes teorias sobre ficção de modo a identificar aquilo
que me parece ser a melhor solução para dar conta do funcionamento semântico dos nomes
ficcionais e, por conseguinte, das intuições acerca da possibilidade de asserir verdades acerca da
ficção. A criação da ficção é considerada como uma atividade intencional, e as teorias mais recentes
consideram que a determinação de valores de verdade em ficção e referência de nomes ficcionais
depende do uso de operadores intencionais.
Palavras-chave: sentido, referência, nomes ficcionais, ficção, valor de verdade.
VII
Abstract
GENUNCIO, Luisa Luze Brum. Sense, reference and fictional names. Luisa Luze Brum
Genuncio. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-
Graduação em Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Departamento de
Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
The main focus of this dissertation is to investigate how reference is made for fictional names and
if it is possible to consider phrases with such names could be true. Fictional names are usually
considered to be a subcategory of proper names, however, unlike those fictional names are
considered empty names, that is, names without referents that explain the sense linked to them.
The first two chapters are composed of the exposition of the main theories regarding the semantic
working of names in general in order to evaluate how these theories explain fictional names’ special
conditions. In the last three chapters, I evaluate the main ideas proposed by three important theories
regarding fiction in order to identify that which seems to me to be the best solution on the semantic
function of fictional names, and thus, also of the intuitions regarding the possibility of asserting
truth about fiction. Fiction making is considered an intentional activity, and recent theories consider
that fiction truth value fixing, and fictional names reference depend on the use of intentional
operators.
Keywords: sense, reference, fictional names, fiction, truth value.
VIII
“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.”
Fernando Pessoa, Autopsicografia
IX
Sumário
Introdução ..................................................................................................................................... 10
Capítulo 1 – Conteúdo semântico de nomes ................................................................................ 15
1.1 Denotação ............................................................................................................................ 16
1.2 Sentido e Referência ........................................................................................................... 22
1.3 Dificuldades das Descrições Definidas .............................................................................. 26
1.4 Diferentes Tipos de Descritivismo ...................................................................................... 28
Capítulo 2 – Referência Direta..................................................................................................... 31
2.1 Argumentos contra o descritivismo .................................................................................... 32
2.2 Referência e Existência ...................................................................................................... 37
2.3 Implicações metafísicas ...................................................................................................... 41
Capítulo 3 – Teoria do Fingimento .............................................................................................. 47
3.1 Fingimento de Asserções .................................................................................................... 48
3.2 Fingimento da Referência Direta ....................................................................................... 50
3.3 Designação Rígida na Ficção ............................................................................................. 53
3.4 Pressuposição de Existência ............................................................................................... 55
Capítulo 4 – Teoria do Faz de Conta ........................................................................................... 58
4.1 Entidades Ficcionais ........................................................................................................... 60
4.2 Fazer Ficção ........................................................................................................................ 62
4.3 Representação e Referência................................................................................................ 65
4.4 Verdade na Ficção .............................................................................................................. 67
Capítulo 5 – Ficcionalismo .......................................................................................................... 69
5.1 Ficcionalizar........................................................................................................................ 70
5.2 Verdades Ficcionais ............................................................................................................ 73
5.3 Uma Teoria de Nomes Ficcionais ...................................................................................... 75
Considerações Finais.................................................................................................................... 78
Referências bibliográficas ............................................................................................................ 80
10
Introdução
Nomes próprios são um tópico filosófico interessante pois são comumente usados de forma
competente por quaisquer falantes de uma linguagem natural, entretanto a explicação do que são é
uma tarefa mais difícil do que seu uso correto1. De modo similar, nomes ficcionais são usados sem
grandes dificuldades por falantes que não estão necessariamente preocupados em como exatamente
o sentido e referência do conteúdo semântico que eles querem transmitir está sendo transmitido. O
uso competente dos nomes próprios e dos ficcionais aparentemente não depende da compreensão
de como sentido e referência são determinados, contudo seria impossível determinar o valor de
verdade de frases com estes nomes sem saber essas coisas.
Ao longo do desenvolvimento das diversas teorias da filosofia da linguagem sobre nomes
próprios, nomes vazios têm sido foco de muitas discussões. Nomes vazios são nomes sem referente,
isto é, nomes que não se referem a objetos no mundo. Alguns nomes são acidentalmente vazios,
quando parece existir um processo normal de nomeação, todavia existe algum erro em algum
momento e não há o referente que se acreditava ter sido nomeando. Outros nomes vazios, como os
nomes ficcionais são intencionalmente vazios. Enquanto produtos da criação da obra ficcional os
nomes propositalmente não se referem a nenhum objeto real. Existem outros casos de nomes
vazios, mas para o presente trabalho a pesquisa manterá o foco em nomes ficcionais.
O uso de nomes ficcionais na linguagem natural apresenta um desafio para as teorias do
significado em geral, e da referência em particular. O sentido de um nome ficcional não é o mesmo
de um nome próprio, não é determinado do mesmo modo. A contribuição semântica para o sentido
geral e valor de verdade das frases da qual este tipo de nome participa é distinta daquela que o
nome próprio faz. Com relação à referência, os nomes ficcionais podem ser usados de modos
aparentemente contraditórios: afirmando a existência de não-existentes e negando a sua existência.
Existe a inclinação de negar que “Sherlock Holmes” seja um nome com referente e ao mesmo
1 Linguagem natural são línguas que ocorrem naturalmente em sociedade (Latim, Italiano, Português etc.), em oposição
a linguagens lógicas ou computacionais, que são linguagens criadas dentro de parâmetros exatos para usos
específicos (LPO, CPPO, Java, Python etc.).
11
tempo afirmar que Sherlock Holmes é uma personagem ficcional. Uma teoria da referência de
nomes próprios precisa ser capaz de responder a essas duas intuições2.
O tema dos nomes ficcionais provocou alguns filósofos a desenvolverem teorias a respeito
de como a ficção funciona de forma a responderem perguntas como: O que determina o que é
ficção? É possível existir verdade em ficção? Nomes ficcionais são nomes próprios? Entidades
ficcionais existem? Se existem, então como são criadas essas entidades? Contudo, esta pesquisa
focará sobretudo na semântica dos nomes ficcionais. Com isso em vista, começarei primeiro por
apresentar as teorias mais tradicionais da referência dos nomes próprios de forma a ver em que
medida estas nos permitem responder os problemas peculiares levantados pelos nomes ficcionais.
Se assumirmos que nomes ficcionais são uma subclasse dos nomes próprios, então qualquer teoria
satisfatória acerca do funcionamento semântico dos nomes próprios em geral terá de acomodar os
nomes ficcionais. Se tal não for possível, isso poderá ser em si uma razão para abandonar a ideia
intuitiva de que nomes ficcionais são uma subclasse dos nomes próprios.
Segundo Kendall Walton (1990), uma teoria que explique a referência dos nomes ficcionais
precisa ser capaz de explicar como as entidades ficcionais vêm a existir (se de fato existirem), mas
uma teoria sobre o tópico não deveria pressupor esse tipo de objeto abstrato gratuitamente. Afinal,
a intuição inicial que move o problema dos nomes ficcionais é que Sherlock Holmes não existe,
mas isso implicaria no nome próprio “Sherlock Holmes” não ter sentido nem referência. Esta
intuição precisa ser explicada, pois nomes ficcionais participam da linguagem natural, e são usados
com sentido, e alguns argumentam, com referência. A outra intuição, nomeadamente a de que é
verdade que Sherlock Homes é uma personagem ficcional, também precisa ser devidamente
explicada, pois a negação da existência de Sherlock Holmes é geralmente muito fácil e natural.
No primeiro capítulo, exporei as duas principais teorias do século XIX sobre nomes.
Começo por John Stuart Mill, um filósofo inglês que propôs uma influente teoria da referência
direta no seu livro A System of Logic. Segundo ele, nomes próprios apenas denotam objetos. Mill
2 Kit Fine (1984, p.95) explica alguns dos problemas que Terence Parsons (1980) tentou e falhou em resolver com
relação a objetos não-existentes, um problema metafísico. Entretanto, ele também indica que o ônus explicativo dos
nomes ficcionais e da existência de entidades ficcionais está do lado dos filósofos da linguagem preocupados com
teorias de nomes. Pois, dependendo de como a referência é feita, pode não existir a necessidade de introduzir
entidades ficcionais na nossa metafísica.
12
considerou que nomes têm apenas a função de se referir, sem nenhuma conotação. Isso é, durante
o uso de um nome próprio não é transmitido nenhum conteúdo adicional, nenhuma das eventuais
descrições do objeto mediante suas propriedades. O nome próprio tem a sua função semântica
completamente cumprida ao fazer a referência. A referência do nome é o objeto e não as ideias que
a falante tem sobre o objeto. A falante da linguagem natural não transmite suas ideias sobre o nome
“Lua” quando diz que “A Lua é um satélite”. O uso do nome não transmite para a ouvinte ideias
como “composta primariamente por rochas”, mas o próprio objeto, ao qual a falante se refere de
forma direta.
A aplicação da teoria milliana nos levaria à conclusão absurda segundo a qual todos os tipos
de nomes vazios não teriam conteúdo semântico. Se os nomes ficcionais não têm referência, então
sua função semântica seria considerada incompleta. Seria como se não houvesse transmissão de
nenhum conteúdo semântico com o uso de “Sherlock Holmes”. Em outras palavras, quando
enunciássemos, por exemplo, “Holmes é um detetive”, nada diríamos – o que nos parece um
contrassenso. Outra consequência aparentemente inaceitável do millianismo é a de que nomes
distintos com a mesma referência, como “Phosphorus” e “Hesperus”, teriam o mesmo conteúdo.
Porém isso é algo claramente enigmático, dado que dizer que “Phosphorus é Phosphorus” parece
diferente de dizer que “Phosphorus é Hesperus”. Este tipo de crítica induziu à rejeição, mesmo que
temporária, do millianismo.
A segunda teoria que apresentarei no primeiro capítulo é o descritivismo. Especificamente,
a distinção entre sentido e referência introduzida por Gottlob Frege. As chamadas Teorias
Descritivistas, segundo as quais os nomes não só se referem como têm sentindo, permitiu dar conta
do problema levantado por Frege de frases de identidade verdadeiras e informativas. Apesar do
entusiasmo com que o descritivismo foi recebido na filosofia da linguagem, os principais filósofos
da área tinham interpretações divergentes sobre o que eram nomes e como determinar valores de
verdade de sentenças existenciais. Ademais, nenhuma das versões da teoria teve os recursos
necessários para dar conta dos nomes ficcionais completamente, não sendo capaz de responder as
intuições ingênuas sobre referência e valor de verdade associadas a estes nomes3. Todavia, veremos
no segundo capítulo que o descritivismo sofre de problemas mais profundos do que a falta de
3 Por intuições ingênuas me refiro a intuições sem análises filosóficas profundas, aquelas intuições iniciais que são
geralmente compartilhadas pela maioria da população que não se preocupa com o estudo da filosofia.
13
referência para nomes ficcionais e que até nomes próprios genuínos não se enquadram no
descritivismo.
No segundo capítulo apresentarei principalmente as críticas de Saul Kripke ao
descritivismo e a aparente retomada do millianismo como teoria mais correta de nomes. Para
Kripke, a função semântica do nome próprio é nomear, ou seja, denotar ou identificar um objeto
diretamente, enquanto a de uma descrição é descrever, ou seja, referir um objeto mediante as
propriedades expressas pela descrição. Mas isso não impede, no entanto, que a referência de um
nome não possa ser fixada através de uma descrição no momento de batismo. Entretanto, as
considerações kripkeanas acerca dos nomes parecem inadequadas quando aplicadas aos nomes
ficcionais. Particularmente, se a função dos nomes é referir, e se nomes ficcionais são
genuinamente nomes, parece que somos forçados a postular um domínio de entidades abstratas ou
de outro tipo de não-existente. Não é de todo claro que se possa defender uma ontologia de
entidades ficcionais com o mesmo tipo de considerações que levaram Kripke a estabelecer a relação
de designação rígida de nomes próprios. Isto, por sua vez, deve-nos forçar a negar a ideia de que
nomes ficcionais são uma subclasse dos nomes. No fim deste capítulo, examinaremos brevemente
alguns dos problemas de admitir tantas entidades abstratas na nossa metafisica.
No terceiro capítulo, apresentarei as teorias do fingimento de John R. Searle e Kripke.
Claramente os nomes ficcionais têm algum tipo de conteúdo semântico, e precisamos de uma teoria
que explique como frases como “Sherlock Holmes não existe” e “Sherlock Holmes é um detetive”
podem ambas ser verdadeiras. Parece que a referência de nomes ficcionais pode ser feita uma hora
e fracassar na outra, de forma inconsistente. As teorias do fingimento tentam explicar que as frases
da ficção produzidas por autores não são asserções, mas apenas fingimentos, e que os nomes
ficcionais inicialmente não referem apesar de terem sentido. As teorias explicam o processo de
criação das entidades ficcionais que permite que leitores e audiência usem os nomes ficcionais com
referência (e sentido) produzindo frases verdadeiras e falsas. Apesar de responder muitas das
questões do tema de nomes ficcionais, estas teorias exigem um problemático compromisso
ontológico.
No quarto capítulo, apresentarei a Teoria do Faz de Conta de Kendall Walton. A teoria de
Walton argumenta a favor da distinção entre conteúdo semântico e força na determinação de
14
valores de verdade de frases na ficção. Ele considera que a produção e o consumo da ficção
envolvem a participação em um tipo de jogo de faz de conta. O meu objetivo é argumentar por
alternativas à designação rígida com relação aos nomes ficcionais, e assim evitar o compromisso
ontológico com entidades abstratas que considero desnecessárias e inadequadas como referentes
desses nomes. Walton sustenta que jogos de faz de conta dependem de representações e que são
estas, e nunca entidades ficcionais, que são acessíveis aos participantes dos jogos de faz de conta,
sejam eles autores e atores, ou leitores e audiência.
No quinto e último capítulo, apresentarei a teoria que julgo melhor explicar as intuições
comuns sobre ficção. A Teoria Ficcionalista de Gregory Currie responde satisfatoriamente as
questões problemáticas inerentes tanto à teoria descritivista quanto à referencialista, e com um
menor compromisso ontológico do que outras teorias sobre nomes ficcionais. Exporei neste
capítulo uma teoria que explica como frases com nomes ficcionais podem ser verdadeiras ou falsas,
preservando intuições comuns a respeito da ficção. O ficcionalismo propõe que as frases da ficção
não são fingimentos de asserções e nem tampouco dependem da força do ato comunicativo, mas
são um tipo de ato de fala peculiar, ao invés do mal-uso de outro tipo de ato. A autora de ficção
está envolvida num ato de comunicação no qual ela produz ficção, ela produz uma narrativa
reconhecível como não atual, e que propositalmente não faz referência ao mundo. Os nomes
ficcionais não fazem referência ao mundo real, nomes não fazem referência a nada, falantes usam
os nomes ficcionalmente para comunicar propriedades e narrativa ficcionais, de acordo com a obra
ficcional que introduz o nome4.
4 As três teorias (Fingimento, Faz de Conta e Ficcionalismo) que escolhi expor nesta dissertação são as que considerei
mais relevantes para responder as questões sobre sentido e referência dos nomes ficcionais, e valor de verdade de
frases com nomes ficcionais. As duas teorias apresentadas nos dois últimos capítulos, de Walton e Currie, foram
publicadas em 1990, com grande impacto na área da filosofia da linguagem. Entretanto, em 2005 Mark Sainsbury
publicou o livro Reference Without Referents, no qual apresenta uma teoria que explica a referência de nomes vazios
assimilando conceitos centrais do referencialismo direto e do descritivismo. A teoria de Sainsbury combina lógica
livre e condições de verdade num sistema onde o sentido dos termos é determinado por axiomas de referência que
não implicam que termos referenciais têm referentes, semelhante a como sentenças podem ter sentido sem terem
valor de verdade. A teoria de Sainsbury, comumente chamada RWR, é uma posição intermediária entre as teorias da
Referência Direta e do Descritivismo. Contudo, RWR não foi incluída nesta dissertação porque considerei que o
Ficcionalismo de Currie já oferece soluções satisfatórias para as questões tratadas nesta pesquisa, assim como
preserva muitas das intuições comuns sobre ficção e nomes ficcionais que uma teoria mais complexa como RWR não
faz.
15
Capítulo 1 – Conteúdo semântico de nomes
Neste capítulo apresentarei duas teorias tradicionais que buscam explicar o conteúdo
semântico dos nomes próprios com a intenção de averiguar em que medida estas podem ser
aplicadas aos nomes ficcionais. As principais referências para esta seção são alguns trabalhos
clássicos de John Stuart Mill, que apresentou uma teoria de referência direta, e de Gottlob Frege e
de Bertrand Russell, que formularam teorias divergentes da de Mill e ficaram conhecidas como
teorias descritivistas dos nomes. Assim veremos como a teoria da referência direta de Mill e as
teorias descritivistas de Frege e de Russell divergem acerca do conteúdo semântico e dos modos
de referência dos nomes.5
Um termo geral é um termo que refere um conjunto de objetos ou a propriedades abstratas.
Termos como “baleia”, “planeta”, “filósofo” são termos gerais. Nomes próprios, como “Platão” e
“Aristóteles”, são chamados de “termos singulares”, pois referem um único indivíduo. Contudo,
nem todos os termos singulares são nomes próprios. O que faz de uma categoria gramatical um
termo singular é a sua função de designar uma única coisa ou objeto. Termos demonstrativos, como
“este” ou “aquele” também podem ser usados como termos singulares. O mesmo acontece com
descrições definidas – algo que, como iremos ver, é importante para a teoria descritivista. Por
exemplo, a descrição definida “O aluno de Platão e professor de Alexandre o Grande” se refere
(caso seja bem-sucedida) a um único objeto, nomeadamente, o filósofo Aristóteles. Termos gerais
também podem ter descrições associadas a eles, por exemplo “baleia” tem inúmeras descrições
associadas ao termo, como: mamífero marinho, endotérmico, cetáceo etc. Estas descrições não são
definidas como o tipo mencionado anteriormente, pois não selecionam um objeto singular, mas
uma classe de objetos. Neste capítulo, contudo, iremos sobretudo tratar de nomes e da sua possível
relação com descrições definidas.
Dentro da classe de nomes, os ficcionais são uma classe peculiar. Nomes ficcionais são
interessantes porque apresentam dificuldades bastante especificas às teorias que explicam a
semântica de nomes próprios em geral. Antes de podermos discutir essas dificuldades, contudo,
5 Note-se, contudo, que Russel achava que nomes em sentido lógico eram millianos, e que nomes próprios não eram
nomes em sentido lógico. Contudo, Russell, por outros motivos, é considerado um dos pais da teoria descritivista.
16
apresentarei as principais teorias que explicam o modo de referência e associação de conteúdo
semântico dos nomes próprios e em que medida essas teorias propostas para explicar esse
funcionamento podem ser aplicadas aos nomes ficcionais. Com esse objetivo em vista, começarei
por apresentar a discussão entre as duas teorias tradicionais sobre o funcionamento semântico dos
nomes próprios. Defenderei a tese segundo a qual elas apresentam explicações insatisfatórias para
o problema específico dos nomes ficcionais.
Na seção 1.1 deste capítulo apresentarei a teoria de Mill sobre nomes próprios. Mill foi um
filósofo britânico do século XIX com estudos e publicações de grande impacto em diversas áreas
da Filosofia incluindo Política, Ética e Lógica. Escreveu um livro em 1843 chamado A System of
Logic, em que apresentou a sua teoria de nomes. O livro apresenta um sistema de lógica e
raciocínio, e Mill fez modificações no texto ao longo de trinta anos em resposta aos comentários
de seus pares, resultando em múltiplas edições. Mill considerou que definir os termos da linguagem
usada seria o primeiro passo necessário para desenvolver um sistema de lógica.
Na seção 1.2 apresentarei de modo breve a teoria descritivista de Frege. Muito pode ser dito
sobre as distinções entre sentido e referência de nomes, e suas associações com as descrições
definidas. No entanto, o motivo para fazer apenas uma breve apresentação da teoria se deve a ela
não oferecer respostas conclusivas para o problema específico dos nomes ficcionais, e às questões
que incitaram esta pesquisa. Na seção seguinte, 1.3, apresentarei uma versão diferente do
descritivismo devido às adições das ideias de Russell sobre como descrições definidas podem
interferir na determinação de valor de verdade de frases e com os problemas de identificação do
referente. Na última seção deste capítulo, 1.4, compararei algumas críticas e divergências do
descritivismo, considerando as posições diferentes dos principais filósofos da área, Frege e Russell.
1.1 Denotação
O livro A System of Logic tem a lógica como tema principal, mas começa com uma análise
da linguagem e concentra grande parte dos argumentos nas funções de nomes. Segundo o autor,
“Não se deve esperar que exista um acordo acerca da definição de qualquer coisa, até que exista
um acordo sobre o que é a coisa em si.” (1882, p.8). No seu System of Logic, Mill apresenta uma
17
teoria de nomes próprios na qual argumenta que estes não têm conteúdo descritivo ou conotação.
Para Mill, o significado de um nome próprio se reduz à referência ao indivíduo nomeado. Nomes
comuns, isto é, termos gerais como anteriormente caracterizados, podem possuir algum conteúdo
descritivo, mas o conteúdo dos nomes próprios se esgotaria no indivíduo referido pelos mesmos.
Algum tipo de conteúdo descritivo pode estar envolvido na circunstância de nomeação, isto é, ao
fixar a referência do nome próprio, como no caso da Mont Blanc, onde a descrição de montanha
branca foi usada para fixar a referência do nome próprio da montanha mais alta da Europa6.
Uma teoria dos nomes deve explicar o mecanismo através do qual os nomes referem, e qual
seria a contribuição semântica dos nomes para as frases contendo tais nomes. Pense-se numa frase
como “Aristóteles foi um filósofo grego”. Segundo Mill, a única contribuição semântica do nome
“Aristóteles” para o significado desta frase é o próprio indivíduo, Aristóteles. Por outras palavras,
o papel semântico do nome “Aristóteles” se esgota no seu papel de se referir a Aristóteles. A
proposição expressa pela frase é verdadeira se Aristóteles tiver sido um filósofo grego, e falsa caso
contrário. Neste sentido, a teoria de Mill tem o apelo intuitivo de que o uso referencial de nomes
não precisaria indicar qualquer conteúdo extra além da própria referência. Nomes servem para
referir. É a sua única função. O mecanismo de referência através do qual os nomes referem é direto.
Contudo, não é claro que a única função semântica dos nomes, como Mill defende, seja apenas a
de referir. Como iremos ver, Frege apresenta um forte e importante argumento contra esta tese.
Mas vejamos um pouco melhor em que consiste a teoria milliana.
Segundo os referencialistas, que aqui entendo como aqueles que defendem a teoria milliana,
a referência ao objeto nomeado já nos forneceria o significado completo de um nome. Segundo
Mill, “Nomes próprios não são conotativos, eles denotam os indivíduos nomeados por eles, mas
eles não indicam ou implicam quaisquer atributos como pertencendo a esses indivíduos.” (1882, p.
40). Isto é, nomes apenas se referem a objetos, sem caracterizá-los, ou descrevê-los. Não existiria
nenhuma descrição essencial para asserir o conteúdo semântico de um nome além do próprio objeto
nomeado. Aqui podemos apontar no texto original de Mill um dos modos usados para justificar a
noção de que nomes não possuem um conteúdo descritivo:
6 Mesmo que as neves eternas no topo da montanha derretam e a montanha deixe de ser branca, o nome próprio
continuará fazendo referência àquele objeto específico, por isso Mill descarta que nomes tenham conteúdo
conotativo.
18
Nomes não são usados apenas para fazer o interlocutor imaginar o que nós
imaginamos, mas para informar ao interlocutor o que nós acreditamos. Agora,
quando uso um nome com o propósito de informar uma crença, é uma crença a
respeito da coisa em si, não a minha ideia da coisa. (MILL, 1882, pp. 30)
Vemos no texto original a distinção entre usar nomes para falar do objeto em si e não para
veicular as ideias que os falantes associam ao objeto. A ideia de Mill é que nomes são usados para
identificar ou referir objetos, mas que ao mesmo tempo essa função referencial não conota ideias
a respeito do objeto. Não podemos transmitir nossa ideia do que o Sol é, ou as associações que
fazemos com o objeto Sol, apenas ao usar o nome “Sol”. Logo depois do trecho citado acima, Mill
(1882, p. 31) acrescenta: “Nomes, deste modo, serão sempre tratados neste trabalho como os nomes
das coisas em si, e não meramente a nossa ideia das coisas.”
O referencialismo de Mill suscita inúmeros problemas. Aquele que nos interessa
particularmente é a explicação dos nomes vazios (que inclui nomes ficcionais), porque eles não se
referem a objetos no mundo. Os nomes ficcionais não fazem referência a nada de concreto, pois é
da natureza da ficção não fazer referência a coisas atuais e não existe a coisa em si sendo referida
pelo nome nestes casos. As implicações disto são que nomes vazios não têm conteúdo semântico,
dado que nomes ficcionais não “apontariam” para nada. No entanto, parece evidente que nomes
ficcionais têm algum conteúdo semântico, uma vez que quando dizemos “Sherlock Holmes é um
detetive” comunicamos alguma coisa, damos algo a entender, e em primeira análise parece que
essa frase deveria ter um valor de verdade positivo. Isto parece levantar um problema claro para a
teoria de Mill.
Se a contribuição semântica dos nomes se esgotasse na sua referência, como defende Mill,
então sempre que usássemos nomes ficcionais ou mitológicos, estaríamos falhando em dizer
qualquer coisa. “Pégaso” e “Sherlock Holmes” são bons exemplos de nomes vazios, pois não
existem objetos no mundo aos quais tais nomes se refiram. O conteúdo semântico não estaria lá
para dar significado aos nomes, e uma frase como “Pégaso é o meu cavalo preferido” ou “Holmes
é um detetive famoso” que parecem querer dizer algo, segundo o millianismo, nada diriam dado
que teriam um buraco vazio no lugar do nome.
19
A implicação de ausência de conteúdo semântico nos nomes vazios é claramente
contraintutitiva. Essa implicação vai diretamente contra as nossas intuições ingênuas a respeito dos
nomes ficcionais, e a respeito de como eles desempenham sua função dentro das narrativas
ficcionais. Admitir essa ausência de conteúdo seria como dizer que Cervantes, por exemplo, teria
escrito uma narrativa cheia de frases sem sentido, pois todas as frases com o nome “Don Quixote”
forçosamente nada diriam.
No entanto, existe conteúdo semântico nessas frases. Essa é talvez a principal razão pela
qual a tese sobre existência (e subsistência) proposta por Alexius Meinong (1904) ganhou tanto
destaque, ao menos temporariamente, na filosofia da linguagem, pois parecia resolver os problemas
associados ao millianismo. Como veremos, Meinong sustentou a tese ontológica segundo a qual
objetos inexistentes, como Pégaso, possuiriam algum tipo de existência, nomeadamente, uma
“subsistência”. Eles existiriam não no sentido forte da palavra, mas teriam ainda assim algum tipo
de existência; existiriam não de forma robusta, mas numa categoria menor de existência. Isto
permitiria responder de forma simples ao problema milliano dos nomes ficcionais. Contudo, como
buscarei defender no capítulo seguinte, esta teoria também tem problemas graves7.
As dificuldades do millianismo com nomes vazios e afirmações de existência são problemas
clássicos levantados por Frege e Russell. Afirmar ou negar a existência de coisas que não existem
é um problema interessante na filosofia da linguagem, já que o uso do nome poderia indicar a
existência de alguma coisa que logo em seguida é negada. O problema que acabamos de ver foi
explicita e claramente levantado por Kripke nas palestras que deram origem ao Naming and
Necessity publicado em 1980, e depois nas palestras que foram transcritas no Reference and
Existence de 2013. Esse problema ficou conhecido como o problema das frases existenciais
negativas.
7 A teoria de Meinong trata da existência de objetos não existentes de diversos tipos, como: objetos da mitologia,
objetos impossíveis e objetos ficcionais. Apesar da teoria de Meinong ser de grande importância para a consideração
da existência de referentes para nomes ficcionais, ela é mais abrangente do que apenas este problema particular. A
existência ou não de círculos quadrados, ou outros objetos impossíveis, não é um problema relevante para a presente
pesquisa sobre filosofia da linguagem e nomes. O problema da existência de referentes para nomes ficcionais é
importante para esta dissertação; no entanto, a discussão teórica sobre se existência e inexistência podem ser
consideradas propriedades a serem atribuídas a um objeto (como no caso de unicórnios) deixaremos com os
metafísicos.
20
Pense-se numa frase de existência como:
(1) Sherlock Holmes não existe.
Se a contribuição semântica do nome para o significado de uma frase se esgotasse na sua
referência, como diz Mill, então (1) não teria significado, pois o nome “Sherlock Holmes” se refere
a nada, e logo em nada contribuiria para o significado de (1). A frase (1) não seria assim nem
verdadeira nem falsa, dado que seria destituída de significado. No entanto, isto é claramente contra-
intuitivo. A frase (1) não só diz algo, como diz algo que é intuitivamente verdadeiro. Considerar
nomes vazios sem sentido impediria afirmar a verdade de frases que negam a existência de coisas
que todos concordam não existir. Além disto, o millianismo enfrenta problemas mais gerais do que
nomes ficcionais, um pequeno nicho que invoca intuições tão divergentes das comuns aos nomes
próprios que é possível duvidar se são realmente a mesma coisa afinal.
Um dos problemas não específicos a nomes ficcionais que o millianismo enfrenta ficou
conhecido como problema das frases existenciais positivas. Considere-se agora a seguinte frase de
existência:
(2) Aristóteles existe.
Neste caso, se o millianismo estivesse correto, todas as frases como a frase (2) têm
significado, pois se o sentido do nome se esgota na sua referência, temos a garantia de que se a
frase tem significado então é verdadeira. Contudo, não podemos conhecer a priori que Aristóteles
existe, partindo simplesmente do reconhecimento de que a frase (2) tem significado. Contudo, se
o millianismo estivesse correto, bastaria que (2) tivesse significado para termos a garantia de
verdade. As frases (1) e (2) expressam proposições verdadeiras, aparentemente, mas o valor de
verdade dessas frases não depende exclusivamente do sentido do nome, mesmo porque seguindo o
millianismo a frase (1) sequer exprime algum sentido8. O valor de verdade dessas duas frases
8 O valor de verdade da frase (1) depende da aceitação ou rejeição da teoria de Meinong sobre inexistentes e da teoria
de Mill sobre nomes próprios. A aceitação da teoria de Mill, e rejeição da teoria de Meinong implica na frase
simplesmente não fazer sentido e não ter valor de verdade positivo ou negativo. A aceitação das duas teorias
implicaria por sua vez em dizer que Sherlock Holmes é um objeto inexistente que subsiste, então o nome “Sherlock
Holmes” na frase (1) teria um referente, assim sentido, e, no entanto, sendo um objeto inexistente, a frase é verdadeira
ao afirmar sua inexistência. O problema de existenciais negativos não é verdadeiramente eliminado ao admitir os
objetos estranhos da ontologia de Meinong, e esta é apenas uma das críticas que o millianismo teve que enfrentar
mesmo antes de Frege apresentar o descritivismo que parecia responder esta questão e outras, como veremos adiante.
21
depende de ter existido no mundo um objeto nomeado “Aristóteles” e não ter existido no mundo
um objeto nomeado “Sherlock Holmes”.
Por fim, gostaria de apontar um problema importante e imensamente influente que induziu
à ampla rejeição, se bem que temporária, da tese referencialista de Mill. Este é o famoso problema
colocado por Frege, e que ficou conhecido como Enigma de Frege. Trata-se de um problema
relativo a frases de identidade informativas. Tome-se uma frase de identidade verdadeira como a
seguinte:
(3) Hesperus é Phosphorus.
Uma vez que os nomes “Hesperus” e “Phosphorus” se referem ao mesmo objeto,
nomeadamente Vênus, se o papel semântico dos nomes se esgotasse na sua referência, esta frase
teria o mesmo significado que a frase:
(4) Hesperus é Hesperus.
Contudo, enquanto a frase (3) é informativa, e é algo que uma pessoa não conhece a priori,
a frase (4) exprime uma tautologia e não veicula nenhuma informação. Se (3) é informativa e (4)
não é, então (3) diz algo que (4) não diz. Ou seja, (3) parece ter um significado distinto do de (4).
A única diferença entre as duas frases são os nomes “Hesperus” e “Phosphorus”. Mas se estes
nomes têm sentidos distintos, (3) veicula uma informação fundamental: esses nomes se referem ao
mesmo objeto. Na próxima seção iremos examinar este enigma com mais detalhe, especificamente,
a importante conclusão que Frege extrai dele. Desde já, tudo o que pretendo ilustrar é a dificuldade
que o millianismo tem em dar conta de frases de identidade informativas.
Face a estas dificuldades, parece que temos boas razões para suspeitar que o referencialismo
milliano fracassa como teoria dos nomes. E se a teoria fracassa na explicação do papel semântico
dos nomes em geral, tampouco será satisfatória como uma teoria para os nomes ficcionais em
particular. Nomes ficcionais não têm referentes para exaurir o conteúdo semântico. Aceitar o
millianismo nestes casos parece nos obrigar a admitir entidades abstratas para explicar o conteúdo
semântico dos nomes ficcionais. Parece que as consequências iniciais do millianismo na questão
dos nomes vazios é uma escolha entre admitir a existência de inexistentes, como Meinong sugere,
22
ou a falta de significado dos nomes ficcionais como fez inicialmente Mill. Na próxima seção
consideraremos uma teoria que pretende responder às dificuldades criadas ao excluir a conotação
do significado dos nomes próprios.
1.2 Sentido e Referência
O descritivismo e sua interpretação de nomes próprios deve seu corpus principal aos
trabalhos de Gottlob Frege e de Bertrand Russell. Frege introduziu uma importante distinção entre
Sentido e Referência, no seu texto homônimo. A teoria explica que existe algum tipo de qualidade
descritiva nos nomes, oferecendo deste modo uma teoria do sentido dos nomes juntamente com
uma teoria da referência. Esta função descritiva dos nomes é a de que nomes próprios referem
indiretamente através de uma descrição definida (ou conjunto de descrições) associada pelos
falantes aos nomes. Assim, os nomes referem em função das descrições a eles associadas serem
satisfeitas. É neste sentido que o mecanismo de referência é indireto, ao contrário do que Mill
defendia. De acordo com o descritivismo, todo nome é sinônimo de uma descrição definida ou um
conjunto de descrições definidas (CAPLAN & CULLISON, 2010, p. 284).
Um dos motivos para defender o conteúdo descritivo de nomes é o caso de identidades
informativas que, como vimos, geram um problema grave para o millianismo. Se o conteúdo
semântico de um nome se reduzisse ao seu referente, então não haveria casos nos quais se referir a
um objeto por dois nomes constituísse uma identidade informativa. É através deste problema das
identidades informativas, que como vimos ficou conhecido como Enigma de Frege, que Frege
introduz a famosa distinção entre sentido e referência. Nas palavras de Frege (2009, p. 130), “se
quiséssemos considerar a igualdade como uma relação entre os objetos a que os nomes "a" e "b"
se referem, então a = b não pareceria diferir de a=a, caso a=b fosse verdadeira.”.
Frege usa o exemplo acima da identidade entre Hesperus e Phosphorus, ou entre a Estrela
da Manhã e a Estrela da Tarde para demonstrar o conteúdo descritivo dos nomes. O enigma de
Frege é apresentado como um caso de identidade informativa na frase “Hesperus é Phosphorus”
como vimos acima, quando ao mesmo tempo a relação de identidade na frase “Hesperus é
23
Hesperus” não é informativa já que o sentido dos nomes não é apenas denotar o referente, senão
os dois nomes seriam sinônimos exatos.
Durante o entardecer aparece no céu um objeto de grande brilho batizado na antiguidade
por “Hesperus” ou “Estrela da Tarde”, que só é aparente por algumas poucas horas após o pôr-do-
sol. Durante o amanhecer aparece no céu um objeto de grande brilho batizado na antiguidade por
“Phosphorus” ou “Estrela da Manhã” que se torna visível antes do Sol nascer e após é ofuscado
pelo surgimento do mesmo. Tanto Hesperus quanto Phosphorus são o mesmo corpo celeste que só
fica visível nas horas do crepúsculo e da aurora, nomeadamente o planeta Vênus. Considerem-se
agora as seguintes frases:
(5) Hesperus é o objeto mais brilhante do céu noturno, excluindo a Lua.
(6) Phosphorus não é o objeto mais brilhante do céu noturno, excluindo a Lua.
À luz do millianismo, as frases (5) e (6) exprimem duas proposições contraditórias, à luz
da lei de Leibniz: objetos idênticos (Vênus, no caso) compartilham das mesmas propriedades.
Como Vênus é, com efeito, o objeto mais brilhante do céu noturno, excluindo a Lua, então a
proposição expressa por (5) é verdadeira, enquanto a proposição expressa por (6) é falsa. Ora, se
os dois nomes co-referem, então como alguém poderia racionalmente afirmar (5) e negar (6) ou
vice-versa racionalmente?
Considere-se as seguintes frases:
(7) Hesperus é Hesperus.
(8) Hesperus é Phosphorus.
À luz do millianismo, as frases (7) e (8) dizem o mesmo, a saber, que um objeto é idêntico
a si mesmo. No entanto, a relação de identidade que é expressa por (8) é informativa. Foi uma
descoberta empírica importante a de que a Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde. Em contrapartida,
a relação de identidade expressa pela frase (7) não é informativa para ninguém.
Um outro exemplo comum na literatura é o da frase “Cícero é Túlio”. Neste exemplo, não
existe uma descoberta empírica para justificar a identidade informativa, apenas um caso de uma
24
mesma pessoa ser conhecida por dois nomes distintos, contudo não deixa de ser um caso de
identidade informativa. Casos como esses foram suficientes para minar a suposição que o
significado dos nomes se esgota na sua referência.
Mas voltemos às frases (7) e (8). Apesar de serem acerca do mesmo estado de coisas no
mundo, apesar de os nomes “Hesperus” e “Phosphorus” referirem o mesmo objeto, eles parecem
ter significados diferentes. Se aplicarmos o chamado Critério de Diferença de Frege, podemos
concluir que (7) e (8) têm significados diferentes. Segundo este critério, duas frases diferem em
valor cognitivo se, e só se, for possível um falante compreender ambas, e aceitar uma, mas recusar
a outra. Pois parece claro que um mesmo sujeito pode racionalmente afirmar uma e negar a outra.
Afinal, ao passo que (7) não é informativa, (8) é. Se o valor semântico dos nomes se esgotasse na
sua referência, ambas as frases teriam o mesmo valor cognitivo, o mesmo significado, ou seja,
exprimiriam a mesma proposição já que têm o mesmo referente. Uma vez que isso não parece ser
o caso, o valor semântico do nome parece não se esgotar na sua referência. Ou seja, o nome
contribui mais do que a mera referência para proposição expressa pelas frases, algo que explica a
diferença de significado cognitivo entre (7) e (8). Frege chama de “sentido” a esse algo mais.
Mas o que são sentidos? Dado que os significados participam da linguagem natural, e são
essenciais para a comunicação, o sentido dos nomes tem de ser algo que todos os falantes
competentes apreendem ao usarem um nome. Como diz Frege:
O sentido de um nome próprio é apreendido por todos que estejam suficientemente
familiarizados com a linguagem ou com a totalidade de designações a que o nome
próprio pertence; isto, porém, só de maneira parcial elucida a referência do nome,
caso ele tenha uma. (2009, p. 132)
Os sentidos são entendidos como modos de apresentação de um objeto para o pensamento.
Tomemos novamente o caso de “Hesperus” e de “Phosphorus” como exemplo. Apesar de ambos
os nomes terem a mesma referência, eles apresentam-na de modos distintos. Podemos dizer que
“Phosphorus” nos apresenta o seu referente como aquele corpo celeste que surge de manhã, e que
“Hesperus” nos apresenta o seu referente como aquele corpo celeste que surge de tarde. Estas
formas de apresentação dos objetos são os seus sentidos, e o que permite explicar a diferença
cognitiva entre o conteúdo das frases (3) e (4) supra – e (7) e (8). As descrições definidas, “a estrela
25
que surge de manhã” e “a estrela que surge de tarde”, respectivamente, que associamos com os
nomes, exprimiriam o sentido do nome, mas a referência (Bedeutung em Frege) continuaria sendo
o objeto nomeado, qual seja, aquele único objeto que satisfizesse as condições de identificação
impostas pelas respectivas descrições definidas associadas aos nomes, por exemplo, ser a estrela
da tarde ou ser a estrela da manhã.
O modo como o planeta Vênus é observado seria o que explica como diferentes nomes
adquirem diferentes sentidos, ao serem associados pelos falantes a diferentes descrições definidas
ao referente do nome próprio “Vênus”. Uma outra descrição definida que podemos associar a este
nome é “o corpo celeste observado ao fim da tarde”, cada descrição definida pode estar associada
a um modo diferente de primeiro contato com o mesmo objeto. Frege chamou o fenômeno de
associar sentidos distintos a nomes distintos do mesmo referente de “modos de apresentação”, isto
é, o modo e contexto de como o falante entra em contato com nome próprio e o referente explica
as variações de significação cognitiva e o porquê de a identidade ser informativa.
Os casos de identidades informativas podem ser solucionados com a relação entre nomes e
descrições. Porém, em contextos comunicacionais, não se pode esperar que o falante transmita ao
seu interlocutor exatamente a descrição que ele tem em mente. A razão é muito simples: a um nome
próprio estão associadas inúmeras descrições definidas, muitas das quais desconhecidas pelo
interlocutor/ouvinte. Assim, o uso competente de nomes próprios na linguagem natural não exige
um conhecimento total das descrições a estes associados. Haveria muito menos comunicação entre
as pessoas caso fosse necessário domínio total da linguagem para usar nomes de modo correto. Isto
por sua vez cria um problema na apreensão do sentido e da referência em uso, pois falante e
interlocutor nem sempre associam as mesmas descrições a um nome.
A noção de satisfação de predicado, que ficou popular no trabalho de Frege, não é uma
solução para o valor de verdade de frases com nomes vazios. “Sherlock Holmes” é um nome que
tem um sentido expresso pelas descrições definidas a ele associadas, mesmo que não exista um
indivíduo que possa satisfazer os predicados de sentenças com este nome. O problema é que nos
casos onde não existe o objeto que deveria ser referido pelo nome, as proposições não têm valor de
verdade positivo ou negativo (FREGE, 1948, p. 137). Como não existe um objeto no mundo para
instanciar a propriedade de ser o detetive inglês que mora em 221B Baker Street em Londres, a
26
proposição não pode ser verdadeira. Contudo, como não existe o objeto referido para não instanciar
a propriedade de ser o detetive inglês que mora em 221B Baker Street em Londres, a proposição
também não pode ser falsa. Mas para Frege, isso em nada impede que elas sejam os pensamentos
expressos (Gedanke) com o uso do nome.
1.3 Dificuldades das Descrições Definidas
Bertrand Russell apresentou uma teoria sobre como funcionam as descrições definidas que
lida com casos de expressões que parecem referir e não referem, como o caso de frases existenciais
negativas. Seu artigo On Denoting, de 1905, teve grande impacto na área da filosofia da linguagem.
Em oposição a Frege, Russell sustenta que as orações com nomes vazios teriam um valor de
verdade negativo ao invés de nulo. A partir desse artigo Russell se distanciou da teoria meinongiana
sobre inexistentes, uma teoria com a qual concordava inicialmente. Vejamos dois exemplos de
frases que não podem ter valor de verdade positivos segundo Russell:
(9) Pegasus é um cavalo alado.
(10) Pegasus não é um cavalo alado.
Não existe referente para o nome “Pegasus”, isto é, não existe um indivíduo ou objeto no
mundo sendo referido por este nome que possa satisfazer o predicado de ser ou não ser um cavalo
alado. Frege comparou a linguagem, nomes e predicados, a funções matemáticas. Nomes seriam
itens saturados, e predicados seriam funções insaturadas que poderiam ser preenchidas pelos itens
saturados. Na interpretação russelliana, um nome vazio não vai poder saturar a função do
predicado, e a frase deverá ter valor de verdade negativo pois a função não pode ser corretamente
aplicada. Russell argumentou que a negação da frase inteira pode ter valor de verdade positivo,
assim sendo:
(11) Não é o caso que o Pegasus é um cavalo alado.
A negação da frase inteira ao invés da negação de uma propriedade de um nome vazio é
muito mais fácil, pois não pressupõe existência de referente para a tal atribuição de propriedade.
27
Na sua versão mais comum, a teoria descritivista dos nomes supõe que um nome próprio
funciona como uma descrição definida abreviada, ou um conjunto de descrições definidas
abreviadas. Esse conjunto de descrições constituiria o sentido do nome. O referente de um nome,
por sua vez, é determinado pelo objeto que satisfaz a descrição definida, a qual confere o sentido
do nome. O uso competente dos nomes próprios exigiria um grande domínio de linguagem natural
por parte do falante, e, no entanto, o uso dos nomes parece ocorrer com sucesso para falantes que
não têm domínio perfeito da língua.
Considerem-se as seguintes frases:
(12) Sir Walter Scott é o autor de “Waverley”.
(13) Sir Walter Scott é o escocês que encontrou as joias perdidas da Coroa.
Um problema que podemos explorar com este exemplo é o de referência no descritivismo.
Se nomes são descrições abreviadas, como alega o descritivismo, o nome “Sir Walter Scott”
abreviaria as descrições definidas “o escocês que encontrou as joias perdidas da Coroa” e “o autor
de ‘Waverley’”. As duas descrições definidas deveriam ter equivalência na hora de referir o objeto
no mundo. Mas ter mais de uma descrição definida associada a um nome exige que o falante da
língua seja competente, ou seja, um falante que tenha compreensão do nome e das descrições
definidas. O uso dos nomes no descritivismo dependeria de um domínio competente da língua por
parte do falante, então nos casos em que um dos falantes de uma conversa ignora que Scott foi o
autor de “Waverley”, a descrição “o autor de ‘Waverley’” poderia ser usada para referir e não
falharia. Porém alguém que seja competente no uso do nome, não tem necessariamente que saber
que Scott é o autor de “Waverley” ou que ele foi o escocês que encontrou as joias perdidas da
Coroa. Mas então, qual a descrição definida que o falante tem de associar ao nome para ser
competente no seu uso? Não é claro qual seja, nem sequer que haja alguma descrição definida que
possa fazer esse trabalho. Esta indeterminação parece ser um problema para o descritivismo.
A questão de quais e quantas descrições definidas seriam suficientes para dar o sentido do
nome próprio não tem uma resposta que explique como a referência dos nomes é mantida através
dos seus usos por diferentes falantes da língua. Se diferentes falantes associam diferentes
descrições ao uso de um nome então o significado do nome poderá variar de uso para uso. Mas os
28
significados são públicos, não são privados. Se, por outro lado, defendermos uma teoria de feixes
de descrições como faz Searle (1958), entendida como uma disjunção de todas as descrições que
os falantes associam, bastando um falante associar uma dessas descrições para que a comunicação
fosse bem-sucedida, mantém-se ainda o problema de saber que descrições incluir nesse feixe de
descrições. Por exemplo, os contemporâneos de Aristóteles associariam diferentes descrições ao
nome dele daquelas que nós associamos presentemente, significa isto que o nome mudou de
significado, ou que todas as descrições pertencem ao feixe, passadas e atuais? Não é claro que
exista uma resposta satisfatória para isto. No próximo capítulo iremos ver que o descritivismo
enfrenta mais problemas ainda. A teoria é criticada pelo modo como nome tem suas referências
fixadas e pela atribuição de sentido (descritivo) à nomes próprios.
1.4 Diferentes Tipos de Descritivismo
P. F. Strawson apresentou críticas à Teoria das Descrições Definidas de Russell em seu
artigo On Referring, de 1950. Um dos problemas que Strawson levanta para a teoria de Russell é
o modo como o valor de verdade das sentenças é determinado. Ele sustenta que, em um exemplo
famoso de Russell, “O Rei da França é calvo”, a mesma frase poderia exprimir diferentes
proposições com diferentes valores de verdade que variam de acordo com o contexto da falante.
No exemplo abaixo:
(14) A primeira ministra é do partido conservador.
A referência é variável, dependendo do contexto de fala para ser determinada. Por
conseguinte, nem a proposição nem seu valor de verdade podem ser sempre os mesmos, pois
podem variar de acordo com a falante, o local e o tempo. Alguns países têm o cargo de primeiro
ministro, e então a descrição definida “a primeira ministra” poderia ter uma referência, e o valor
de verdade dependeria de o referido ter a propriedade atribuída no predicado, no caso “ser do
partido conservador”. Se a frase for proferida em um momento em que o partido não estiver
ocupando o cargo, o valor de verdade é negativo. Se a frase for proferida em um contexto de um
país que não tem o cargo de primeiro ministro, a descrição definida a nada se refere e o valor de
verdade também será negativo. Neste caso, a referência não é bem-sucedida, pois não existirá um
29
objeto que satisfaça a descrição definida, similar ao caso exemplo do “Rei da França” (1950, p.
326). Nos usos de nomes ficcionais, nunca existem as condições contextuais para que o nome refira,
isto é, sendo um nome ficcional “Sherlock Holmes” não se refere uma pessoa real, e nunca referiria,
senão não seria um nome ficcional. Em ficção, as frases respeitam as regras semânticas e sintáticas
da linguagem natural, no entanto as referências nunca se realizam.
Para Strawson, sentido é uma função da frase em um contexto, ou seja, da sua expressão
ou proferimento. Mencionar, referir e verdade ou falsidade são funções do uso da frase em um
contexto ou da sua expressão. Dar sentido a uma expressão, para Strawson, é fornecer uma guia
geral para o seu uso para referir ou mencionar, uma guia para produzir asserções verdadeiras ou
falsas (1950, p. 327). O sentido dos nomes, descrições e predicados depende da semântica e sintaxe
da linguagem usada. A referência, no entanto, é determinada pelo uso.
Strawson critica o uso de descrições definidas por Russell como expressões referenciais
como no caso abaixo:
(15) O Rei da França é calvo.
A descrição definida ocupa a posição de sujeito tendo sentido do mesmo modo que o
predicado, mesmo que sem referente. O conteúdo semântico está expresso pela frase no seu uso.
Pode ter existido algum momento no qual uma pessoa poderia proferir esta frase e estar no contexto
apropriado para que a proposição por ela expressa tivesse valor de verdade positivo. No momento
presente, esta frase exprime uma proposição com um valor de verdade negativo, pois a proposição
expressa por (15) é falsa. Ainda existem Reis, a França e a calvície, no entanto não existe no mundo
um indivíduo que corresponda a esta descrição definida que tenha a propriedade de ser calvo, já
que a França não é mais uma monarquia.
O descritivismo teve grande aceitação na primeira metade do século XX, mas teve muitos
críticos dos métodos de Frege e Russell. Strawson introduziu o conceito de variação de acordo com
contexto. Outros filósofos tiveram críticas em outras áreas, e por exemplo Oswaldo Chateaubriand
no seu artigo de 2002 “Descriptions: Frege and Russell Combined” examinou a relevância da
sintaxe para a análise descritivista. Ele atribuiu as diferenças nos modos como Frege e Russell
julgavam os valores de verdade de frases com nomes sem referência e sentenças existenciais
30
negativas aos focos distintos que eles tinham em partes diferentes das orações: o sujeito para Frege
e o predicado para Russell. Ele argumentou que os descritivismos de Frege e Russell divergiam em
suas intuições sobre qual parte das orações eram descritivas, por isso a atribuição de valores de
verdade diferentes. Chateaubriand considerou que grande parte da confusão entre os dois estilos de
descritivismo é que essa distinção de foco entre sujeito e predicado não é explicita, e as explicações
dos estilos distintos foram aplicadas às duas partes das orações indistintamente, primeiro por Frege
e depois por Russell (p.213).
31
Capítulo 2 – Referência Direta
Como mencionei no capítulo anterior, o descritivismo é uma teoria que oferece soluções
para os problemas do sentido de nomes vazios apesar de não explicar os modos de referência. A
teoria descritivista afirma que o sentido de um nome próprio é uma descrição definida (ou conjunto
de descrições) associada ao nome. É importante notar que a teoria descritivista pode ser vista tanto
como uma teoria em que as descrições dão o sentido dos nomes próprios, quanto como uma teoria
em que as descrições apenas determinam a referência dos nomes. Descrições podem ser usadas
para fixar a referência de nomes, entretanto referencialistas e descritivistas discordam sobre se as
descrições podem dar o sentido dos nomes9. Mas que as descrições deem o significado dos nomes
é o alvo do famoso ataque de Kripke que apresentarei neste capítulo.
O tema de como nomes referem e se estes têm conteúdo semântico foi estudado
principalmente sob a influência da teoria descritivista até às palestras de Kripke em 1970. Foi com
suas palestras publicadas no livro Naming and Necessity em 1980 que o tema dos nomes próprios
voltou à atenção da comunidade filosófica. Kripke não apresenta explicitamente uma teoria do
significado dos nomes nesse livro. Ele apresenta vários argumentos que demonstram que o
descritivismo não explica a relação dos nomes próprios com os seus referentes, e que existe uma
relação de designação rígida entre nome e nomeado.
Neste livro, Kripke argumenta contra a teoria descritivista, colocando em xeque o modo
como a referência dos nomes próprios é por ela explicada. Para ele não é caso que a referência de
um nome seja determinada por alguma propriedade que o referente precisa satisfazer, e à qual a
falante saiba ou acredite saber a respeito do referente. Em primeiro lugar, porque as propriedades
que a falante atribui ao referente podem não ser suficientes para identificá-lo. Em segundo lugar,
mesmo que elas sejam suficientes para isso, elas podem não ser verdadeiras do referente indicado,
mas de algum outro referente. Este pode ser o caso quando a falante tem crenças falsas sobre o
referente. Nestes casos, a referência parece ser determinada pelo fato de que a falante faz parte de
9 Como no caso da “Estrela da Tarde”, onde a descrição de ser uma estrela visível pela tarde é o que foi usado para
fixar a referência. No entanto, umas das descrições definidas associadas a “Estrela da Tarde” como “o objeto mais
luminoso do céu noturno fora a lua” não seria considerado como o sentido do nome por filósofos que defendem
teorias de nomes referencialistas, apenas o objeto referido em si geralmente.
32
uma comunidade de falantes que usam o nome (1981, p. 106). Um dos pontos que ele rejeita com
mais veemência é que mesmo que o referente seja fixado, ou seja introduzido na linguagem, por
uma descrição definida, o nome e descrição não são sinônimos.
Kripke insiste que não apresenta uma teoria da referência, mas apenas argumentos que
mostram como os nomes se conectam à sua referência. Seus argumentos apelam a intuições fortes
e comuns sobre como nomes funcionam na linguagem natural e assim Kripke consegue sustentar
com grande plausibilidade que nomes próprios referem um único indivíduo de forma rígida (isto é,
eles referem o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis em que esse indivíduo existe).
Na seção 2.1 deste capítulo apresentarei as críticas de Kripke ao descritivismo, e seus
argumentos semântico, epistemológico e modal que demonstram sua “teoria” de referência direta
e designação rígida para nomes próprios apresentada no Naming and Necessity. Na seção 2.2
exibirei os desdobramentos da referência direta para nomes vazios e ficcionais argumentados por
Kripke em Reference and Existence, livro publicado em 2013, com a transcrição de palestras que
ele apresentou em 1973. Na última seção deste capítulo, 2.3, mostrarei alguns dos problemas com
as implicações metafísicas que a teoria de referência direta e designação rígida cria com relação
aos nomes ficcionais.
2.1 Argumentos contra o descritivismo
Muitos filósofos buscaram um retorno ao millianismo em razão da sua elegante
simplicidade na definição de como nomes apontam seus referentes e apenas isso, sem nenhum tipo
de conteúdo descritivo atrelado. O desafio que muitos encontraram foi em apresentar argumentos
fortes que pudessem sustentar as intuições de Mill e ao mesmo tempo justificar o abandono de uma
teoria do sentido e da referência por uma de apenas referência que não tem uma solução óbvia para
o problema de identidades informativas verdadeiras, nem para nomes vazios.
Kripke, com o Naming and Necessity, apresentou fortes argumentos que apontam falhas
na teoria descritivista e impulsionou uma retomada ao tipo de referência direta defendida pelo
millianismo. A ideia de que a referência esgota o valor semântico de um nome próprio e afirmar
33
que o nome aponta o referente de forma direta parece mais de acordo com intuições simples. A
referência direta também evita o problema de determinar quais propriedades seriam suficientes
para determinar o referente e fariam parte da descrição definida associada a um nome próprio. Os
nomes começam a referir o objeto nomeado em um momento de batismo, e a partir daí gera-se uma
cadeia causal que liga o nome ao indivíduo desde aquele momento através de todos os seus usos.
Declarações existenciais negativas são um dos pontos de grande debate ao considerar as
duas teorias, descritivismo e referência direta. Explicar o sentido e referência de uma frase como
“Jesus não existe” depende do que você está negando. Se alguém diz a frase “Jesus não existe”, é
indistinto se a frase é uma negação do conjunto de descrições definidas associadas ao nome “Jesus”,
tais quais “um homem que tenha caminhado sobre as águas” ou “um homem que tenha multiplicado
pão”; ou se é a negação da existência do indivíduo originalmente nomeado, mesmo que ele nunca
tenha executado milagres. A inexatidão da negação se deve também ao fato que nem todos os
falantes associam o mesmo conjunto de descrições definidas ao nome “Jesus”. O nome próprio
poderia ser substituído por uma descrição definida, mas quando a comunidade de falantes não
compartilha o mesmo conjunto de descrições definidas não haveria como determinar o que está
exatamente a ser negado (1981, p. 33).
O problema da sinonímia entre nomes próprios e descrições definidas também se
apresenta quando um indivíduo tem mais de um nome. Por exemplo, “Túlio” e “Cícero” são dois
nomes da mesma pessoa (que na verdade se chamava “Marcus Tullius Cicero”), comumente
associada à descrição definida “o maior orador de Roma”. Para Kripke (1981, p. 107) o erro no
modo como o descritivismo analisa esse tipo de caso é que a relação de identidade seria definida
ao nível linguístico, entre os nomes, como em “Túlio é Cícero”, e não do indivíduo com si mesmo.
Mesmo que uma descrição seja usada para fixar a referência de um nome, esta não é
sinônima ao nome. Kripke usa um exemplo de Mill para defender este ponto. A cidade de
Dartmouth na Inglaterra tem esse nome porque está localizada na foz do rio Dart10. Ou seja,
poderíamos dizer que o nome “Dartmouth” foi introduzido através da descrição “A cidade
localizada na foz do rio Dart.” No entanto, mesmo que a foz do rio mudasse, o nome “Dartmouth”
ainda assim referiria a cidade que foi batizada com este nome. Se a foz do rio mudasse poderíamos
10 “Dartmouth” pode ser literalmente traduzido para “Boca do Dart”
34
dizer ainda que “Dartmouth não fica na foz do rio Dart”, sem entrar em contradição. Se
“Dartmouth” fosse sinônimo da descrição “A cidade que fica na foz do rio Dart” não poderíamos
negar que Dartmouth fique na foz do rio Dart sem contradição (1981, p. 26).
O nome pode estar associado a uma ou mais descrições, mas a relevância da descrição se
dá no momento de batismo da cidade, e não em usos posteriores do nome. Kripke considera que
este tipo de caso explica as intuições sobre o conteúdo descritivo dos nomes próprios, porque estes
tipos de nomes parecem conter um conteúdo descritivo que dá a referência do objeto nomeado,
como nos casos de “Estrela da Manhã” e “Estrela da Tarde” (1981, p. 4). Mesmo que seja difícil
imaginar uma situação na qual a cidade tivesse sido batizada de “Dartmouth” se não fosse
localizada na foz do rio Dart, o nome não é sinônimo com a descrição.
Um argumento semântico contra a equivalência entre nomes próprios e descrições
definidas apela ao problema das identidades informativas usado por Frege contra o millianismo.
Se existe uma relação de sinonímia entre “Aristóteles” e “o professor de Alexandre”, então dizer
“Aristóteles foi o professor de Alexandre” seria mera tautologia, sem nenhum tipo de informação
veiculada (1981, p. 30). No entanto, o mundo poderia ter sido de um modo tal que Aristóteles não
fosse nenhuma dessas coisas. Considerando o aparato teórico de mundos possíveis, podemos
imaginar um mundo onde Aristóteles não satisfaz absolutamente nenhuma das condições de
identificação impostas por descrição associadas ao nome “Aristóteles”, e ainda assim “Aristóteles”
nomearia Aristóteles, caso Aristóteles existisse. Isto mostra que podemos fazer referência àquele
Aristóteles apenas com o uso do nome próprio “Aristóteles”. Não é uma verdade necessária, no
sentido intuitivo de necessário, que Aristóteles tenha tido as propriedades comumente associadas
a ele (1981, p. 74).
Uma das grandes contribuições de Kripke é a tese de que nomes são designadores rígidos,
isto é, nomes próprios designam o mesmo objeto em todos os mundos possíveis em que o objeto
existe. Já as descrições definidas, pelo menos as mais usuais, não designam rigidamente. Para
ilustrar esta ideia, considere-se a descrição definida “O aluno de Platão e Professor de Alexandre
o Grande”. Esta descrição se refere a Aristóteles. Contudo, Aristóteles poderia nunca ter estudado
com Platão, nem ter sido professor de Alexandre. Aristóteles poderia muito bem ter feito outra
coisa, ou ter morrido quando era criança. A descrição “O aluno de Platão e Professor de Alexandre
35
o Grande” nesta situação contrafactual, não designaria Aristóteles. Contudo, “Aristóteles” mesmo
nesta situação, designa Aristóteles. Isto porque “Aristóteles” designa rigidamente, designa
Aristóteles em todas as situações contrafactuais, ao contrário da descrição definida. Mesmo que
tudo o que sabemos acerca de Aristóteles seja falso, mesmo que Aristóteles não satisfaça qualquer
das descrições que associamos a Aristóteles, o nome “Aristóteles”, mesmo nessa situação, não
deixa de se referir aquele individuo originalmente nomeado Aristóteles sobre o qual fomos
informados através de uma cadeia causal de uso do nome. A cadeia causal é mantida toda vez que
uma nova falante informada do nome passa a usar o nome com a intenção de fazer a mesma
referência que o nome tinha quando ela entrou em contato com ele pela primeira vez. Nomes
próprios são designadores rígidos, no entanto descrições definidas, pelo menos as mais usuais, não
o são.
Vejamos agora sucintamente os três grandes argumentos apresentados por Kripke contra
o descritivismo clássico, os quais são geralmente divididos do seguinte modo: o argumento modal,
o argumento semântico e o argumento epistêmico. Vejamos então em que consistem.
Podemos caracterizar a tese central que caracteriza o descritivismo do seguinte modo:
(TD): Se o sentido de um nome ‘N’ é dado pela descrição definida ‘OF’, então ‘N’ e ‘OF’
são sinônimos.11
Agora considere-se as seguintes frases:
(16) Aristóteles (se existe) é Aristóteles
(17) Aristóteles (se existe) é o professor de Alexandre o Grande e autor da Metafísica.
Para o Argumento Modal temos dois modos de julgar as duas frases anteriores:
No primeiro modo, temos que a frase (16) expressa uma relação de identidade necessária
enquanto a frase (17) expressa uma relação contingente. Mas se (TD) estivesse correta, então a
frase (16) e a frase (17) deveriam ter o mesmo significado. Mas dada a diferença em valor modal,
11 Note-se que estes argumentos podem-se aplicar tanto à versão clássica de descritivismo em que apenas uma descrição
é sinônima com o nome, quanto à versão de Searle do feixe de descrições. Por razões de simplificação, irei apenas
me deter na versão clássica, mas considerações idênticas podem ser aplicadas à versão do feixe de descrições.
36
temos boas razões para concluir que elas também diferem em valor semântico. Logo, temos boas
razões para concluir que (TD) é falsa.
No segundo modo, consideremos duas premissas:
Premissa 1: Nomes são designadores rígidos (i.e., eles designam o mesmo objeto em todos
os mundos possíveis em que o objeto existe).
Premissa 2: Descrições definidas não designam rigidamente.
Logo, nomes e descrições têm diferentes valores semânticos. Logo, (TD) é falsa.
Ainda considerando as duas frases do exemplo acima, observemos o argumento
epistémico:
A frase (16) expressa uma verdade que pode ser conhecida a priori, enquanto a frase (17)
expressa uma verdade que só pode ser conhecida a posteriori. Mas se (TD) estivesse correta, as
frases (16) e (17) teriam o mesmo significado. Se as duas frases tivessem exatamente o mesmo
significado, então deveríamos poder conhecer a verdade expressa na frase (17) da mesma forma
que conhecemos a verdade expressa na frase (16). Uma vez que isso é falso, elas não têm o mesmo
significado. Logo, (TD) é falsa.
O terceiro tipo de argumento utilizado por Kripke foi o argumento semântico, simplificado
abaixo:
Se (TD) estivesse correta, o significado da frase (16) deveria ser o mesmo que o
significado da frase (17), mas a frase (16) não é informativa e a frase (17) o é. Pelo critério da
diferença para frases, podemos concluir que as frases diferem em significado cognitivo, dado que
é possível aceitar uma e rejeitar outra. Se diferem em valor cognitivo, então diferem em significado.
Logo, (TD) é falsa.
37
Dada a força destes argumentos, parece que temos boas razões para questionar a teoria
descritivista e considerar que nomes são designadores rígidos.12
2.2 Referência e Existência
As implicações metafísicas de tomarmos nomes como designadores rígidos foram
examinadas pelo próprio Kripke no Naming and Necessity. As consequências das ideias do
primeiro livro foram publicadas no Reference and Existence. A tese de que nomes são designadores
rígidos é hoje em dia quase universalmente aceita, mas a implicação ontológica de que o termo
singular deve ter uma referência leva a pressuposição de existência de referentes para todos os
nomes. De forma a lidar com nomes ficcionais, poder-se-ia defender que existe uma entidade
abstrata rigidamente designada pelo nome ficcional. Os nomes vazios não seriam vazios, mas sim
designadores rígidos de entidades abstratas. A existência de uma entidade abstrata individual
específica referida pelo nome próprio na ficção dependeria da existência ou não existência dos
textos (ou outros meios) ficcionais ou mitológicos (KRIPKE, 2013, p. x).
Os argumentos kripkeanos defendendo que nomes próprios são designadores rígidos são
muito convincentes, como vimos na seção anterior deste capítulo. No entanto, as implicações
metafísicas de aplicar esta teoria a todos o tipo de nomes, incluindo nomes vazios, é controversa,
mesmo com a teoria da designação rígida e da referência direta sendo amplamente aceitas. Nomes
próprios designam rigidamente um indivíduo único no mundo, mas aceitar essa tese para nomes
ficcionais significaria introduzir uma enorme quantidade de entidades abstratas na nossa
metafísica, e não é claro que tenhamos boas razões para o fazer. Uma vez que entidades abstratas
são causalmente inertes, como explicar que estas possam passar a existir depois de um momento
de criação literária? Se, no entanto, estas já existiam antes do momento de criação literária, como
explicar isso dado que certas obras poderiam nunca ter sido escritas, ou dada a quantidade enorme
de possíveis obras de ficção, de obras que poderiam ter sido criadas, mas não foram?
12 Muitas propostas foram feitas na tentativa de bloquear estes argumentos, mas o consenso parece ser o de que eles
prevalecem, mesmo em versões mais sofisticadas de descritivismo, como a teoria do feixe de descrições.
38
O enigma filosófico do uso de nomes sem referência, ou nomes que aparentemente não
têm referência é curioso e difícil de solucionar. Primeiro porque nem todos os nomes considerados
nomes vazios são do mesmo tipo. Parece estranho se dizer que existem diferentes tipos de nomes
vazios, uma vez que sendo sem referência, todos seriam vazios, indistintamente. Nomes vazios
podem ser considerados de tipos diferentes pois fracassam em fazer a referência de modos distintos.
Um nome como “Vulcano”, por exemplo, não possui referência. Vulcano teria sido um
planeta que Le Verrier, um astrônomo francês, postulou existir entre Mercúrio e o Sol para justificar
as discrepâncias observadas na precessão do periélio de Mercúrio com base na física Newtoniana.
O termo não tem referência pois não existe o tal planeta entre Mercúrio e o Sol. O batismo do
planeta hipotético ocorreu, mas a previsão matemática estava errada. Houve um erro no momento
no qual Le Verrier tinha intenção de fazer o batismo, não havia referente para ser batizado, e é
devido ao erro humano que esse nome é vazio.
Nomes ficcionais, no entanto, são nomes propositalmente ou intencionalmente vazios.
Não são nomes vazios por acidente, como no caso de “Vulcano”. Para Kripke (2013), um dos usos
de nomes ficcionais é se referir a entidades abstratas singulares criadas pela imaginação de uma
autora de trabalhos de ficção. Retomando Mill neste segundo livro, Kripke reitera que nomes
próprios têm apenas denotação e não têm conotação. A função semântica do nome consiste apenas
em fazer referência a um objeto e nada mais. A referência não é feita com o uso de descrições de
propriedades do objeto, mas diretamente.
O problema da implicação de existência ou falta de conteúdo semântico de nomes ficcionais
é parte do motivo para as teorias de Frege e Russell terem sido defendidas contra o millianismo.
Afinal, quando a pessoa nega a existência de Sherlock Holmes ela não parece estar usando o nome
com a intenção de referir um objeto. Não faria sentido usar nomes para referir a algum objeto e na
mesma sentença negar ao objeto a propriedade de existência (KRIPKE, 2013, p. 5). Neste caso, faz
mais sentido se dizer que não existe alguém que seja o famoso detetive britânico que fuma
cachimbo e que viva em Londres na 221B Baker Street.
Kripke não deseja negar a existência de Sherlock Holmes; na verdade, ele crê que a
personagem é existente, uma entidade abstrata criada por Sir Conan Doyle. Para ele o nome
“Sherlock Holmes” é um designador rígido daquela entidade ficcional criada por Doyle e apenas
39
dela. Kripke nega que pudesse existir alguém que fosse Sherlock Holmes, mesmo que um detetive
na época descrita vivesse os fatos descritos e por acaso se chamasse Sherlock Holmes. A não ser
que houvesse uma relação causal entre ele e o Holmes de Doyle, esta pessoa não seria Sherlock
Holmes. Para Kripke a frase “Sherlock Holmes existe” é verdadeira, pois para ele não existe
problema em admitir novos tipos de entidade na metafísica dele, não para reafirmar o modo de
referência da classe dos nomes em geral (2013, p. 53). Não existiria modo de provar que Doyle
estaria escrevendo sobre o (hipotético) detetive real, e não haveria como provar que a semelhança
não seria coincidência, à qual toda ficção é suscetível (1981, p. 157).
Consideremos as duas frases abaixo:
(18) Sherlock Holmes não existe.
(19) Sherlock Holmes é uma personagem ficcional.
Prima facie, as duas frases parecem ser verdadeiras. A intuição sobre o valor de verdade da
primeira frase pode ser atribuída à distinção confusa entre real e ficcional, quando se está disposto
a considerar a ficção como realmente existente mesmo que abstrata. Kripke argumenta que
entidades ficcionais são reais, então a distinção entre real e ficcional não é clara. A segunda frase
deste exemplo é particularmente interessante porque ela parece ser independente de (18). Aceitar
(18), não parece ser a negação da existência da personagem ficcional, mas de uma pessoa atual que
pudesse ser a referência do nome (1981, p. 147). Temos nessas duas frases predicados de objetos
existentes sendo afirmados. No entanto, as frases (18) e (19) misturam dois tipos de discurso. Pois
afinal não é a personagem ficcional que está sendo negada em (18), mas sim a existência da pessoa
Sherlock Holmes, isto é, no nível linguístico não existe referente para este nome.
Kripke apresenta a noção de que a afirmação da ausência de referente do nome próprio que
aparece em uma obra mostraria que a obra em si é ficcional. Existe a personagem ficcional justo
porque não existe a pessoa real, apesar do nome próprio fazendo a referência ocorrer em uma obra
de ficção. Porém o próprio Kripke defende que esta tentativa de desambiguação não tem muito
sucesso. Segundo ele, as frases (18) e (19) apenas usam o mesmo ‘nome’, mas não fazem a mesma
referência. A frase (18) usa “Sherlock Holmes” como um nome vazio que não tem referente no
mundo atual, enquanto a frase (19) usa “Sherlock Holmes” como um nome ficcional que se refere
40
a uma entidade abstrata rigidamente designada. Os usos do nome são ambíguos, e tentar determinar
a referência de um pela referência falha do outro não é um bom método.
A confusão entre frases que são verdadeiras ‘de acordo com o mundo atual’ ou verdadeiras
‘de acordo com a ficção’ parece exigir algum tipo de reformulação. Kripke compara as frases:
(20) “Sherlock Holmes não é uma pessoa real, ele é uma pessoa ficcional”.
(21) “Este não é um pato real, é um pato de brinquedo”.
Estas duas frases parecem ser paralelas no tipo de coisa que afirmam e negam, mas como
o exemplo da frase (21) não depende de entidades abstratas é mais fácil de entender a distinção que
Kripke quer introduzir. O pato de brinquedo não é um objeto de ficção, no entanto ele não serviria
o seu propósito se não houvesse algum tipo de fingimento ou representação envolvido no seu uso.
O pato de brinquedo não é um pato real, inegavelmente, e Holmes não é uma pessoa real tampouco.
No entanto, quando confrontada com um pato de brinquedo dificilmente uma pessoa vai tentar
negar a existência do pato com o mesmo conforto que se nega a existência de Holmes.
Não se segue que de todos os nomes que não têm referentes exista algum trabalho de
ficção, ou que essa correlação fraca como nos casos de Sherlock ou do pato de brinquedo possa ser
usada como regra para negar realidade e afirmar ficção ou algum tipo fraco de existência. Para
Kripke não pode haver uma equivalência entre “não existir” e “ser ficcional”. Ele usa um exemplo
de Napoleão para demonstrar o absurdo dessa equivalência. Quando uma falante diz “Suponhamos
que Napoleão nunca tivesse existido” ela não quer dizer com isso “Suponhamos que Napoleão
tivesse sido mera personagem ficcional”. Não existe equivalência alguma entre essas proposições.
Ele conclui sua crítica afirmando que Napoleão poderia tampouco ter sido uma personagem
ficcional quanto ter sido um número primo, isto é, a entidade concreta não poderia ter sido uma
entidade abstrata (1981, p. 149).
41
2.3 Implicações metafísicas
Não existiria possibilidade de economia metafísica com as implicações da teoria de
referência direta. No entanto, não é só a quantidade de entidades, mas o tipo de entidade que estaria
sendo admitida motivo para criticar a teoria kripkeana especificamente com relação a nomes
ficcionais. A ontologia dessa categoria de entidades abstratas é problemática, e não é de todo claro
que existe necessidade de introduzir a categoria. Tanto a quantidade quanto o tipo das entidades
são motivo para procurar uma teoria semântica melhor para a ficção e para nomes ficcionais. A
solução kripkeana propõe entidades abstratas muito mais robustas do que a teoria meinongiana,
com sua tese de subsistência de objetos concebíveis não concretos. Quero salientar que quando se
fala de nomes vazios, mitológicos, científicos e, no caso que mais me interessa nesta dissertação,
ficcionais, a noção de referência direta através de um designador rígido implica num tipo estranho
de entidade abstrata. Ser uma entidade de um tipo estranho pode não ser um motivo forte para
rejeitar uma categoria; no entanto, pode ser suficiente se essa categoria for desnecessária e
introduzir mais problemas do que solucionar.
Entidades abstratas seriam causalmente inertes, não participam do mundo concreto e o
mundo concreto não participa delas, mas como Sherlock Holmes poderia ser uma entidade abstrata
se ele foi criado? Entidades abstratas causalmente inertes não deveriam morar em 221B Baker
Street ou em lugar nenhum, pois entidades abstratas não moram, não fumam cachimbos, não
resolvem crimes, e seria muito estranho se entidades abstratas fossem criadas pelo produto do
pensamento humano. Seria muito estranho também considerar que a totalidade das entidades
abstratas da ficção humana já existem, sempre existiram, e sempre existirão, mesmo quando não
existiam humanos e quando humanos deixarem de existir, como o número 1 existe independe da
existência da humanidade. Se existe vida inteligente fora da Terra que produza obras de ficção, as
entidades abstratas das histórias deles também deveram ser admitidas na nossa metafísica?
As entidades abstratas causalmente inertes são um tipo mais difícil de aceitar para explicar
a referência direta de nome ficcionais, pois mesmo que admitir a existência desse tipo de entidade
resolvesse as intuições que a audiência tem sobre o uso de nomes ficcionais, como seria possível
explicar a referência direta do autor (criador) da obra de ficção e nome ficcional? Até quando
admitimos a existência das entidades abstratas ficcionais, teremos casos em que a referência direta
42
no texto ficcional fracassa. Peter Van Inwagen em seu artigo Creatures of Fiction de 1977 defendeu
que nomes ficcionais referem e que os objetos referidos não são entidades abstratas ou objetos
inexistentes que subsistem, mas entidades ficcionais. Van Inwagen defende que autores criam
entidades ficcionais durante o processo de criação da obra de ficção, o processo de criar frases com
o nome cria o objeto de referência. Esse tipo de entidade ficcional proposta não existe antes da
criação da obra ficcional, não é uma entidade abstrata causalmente inerte fora do espaço-tempo,
pois ela tem um momento em que começa a existir, e este é o momento de criação pela autora.
Contudo, Van Inwagen considera que as entidades ficcionais não instanciam propriedades,
nenhuma além da existência pelo menos, por exemplo: Sherlock Holmes não instancia a
propriedade de ser um detetive, mas à entidade ficcional (existente) Sherlock Holmes é atribuída a
propriedade de ser um detetive13.
David Braun (2005, p. 610) argumenta que se uma autora não tem pensamentos singulares
a respeito de uma entidade ficcional especifica quando usa o nome ficcional no processo de criação
da obra de ficção, então estará falhando em fazer referência. Independentemente de a personagem
ficcional ser uma entidade abstrata, a autora de uma narrativa raramente começa seu ato de criação
com ideias e intenções singulares a respeito de uma entidade plenamente determinada.
Propriedades são atribuídas à personagem ao longo do processo criativo da narrativa. A autora de
ficção não associa imediatamente o nome ficcional a um pensamento singular sobre uma entidade
completa e plenamente determinada ao qual o nome esteja fazendo referência. Numa série de livros,
a autora faz referência àquela personagem do primeiro romance, adiciona propriedades a uma
entidade abstrata realizada e independente? Ou a autora criará novas personagens a cada livro que
compartilham o mesmo nome apenas?
Por exemplo: o processo de criação de Sir Conan Doyle da sua mais famosa personagem
se deu antes de Doyle começar a escrever? Para que o nome “Sherlock Holmes” não tenha sido um
nome vazio, um nome com uma falha no referente, seria necessário que desde as primeiras linhas
13 O artigo de Van Inwagen apresentou uma defesa para a existência de entidades ficcionais que responde muitos
problemas da teoria de Meinong quando aplicada a nomes ficcionais. Entretanto a entidade ficcional introduzida
pela sua teoria também é estranha, a entidade não instancia nenhuma propriedade (fora a existência), mas possui
propriedades. Uma das críticas mais duras à teoria meinongiana é que o preciosismo em diferenciar entre os verbos
existir e ser não é uma real contribuição para esclarecer que tipo de entidade se está defendendo, porém podemos
ver que uma crítica similar pode ser aplicada à teoria de Van Inwagen que rejeita a capacidade de instanciar
propriedades mas não de possuir propriedades.
43
Doyle tivesse em mente a entidade abstrata rigidamente designada pelo nome e descrevesse
propriedades que a entidade já possuísse ao invés de atribuir propriedades ao longo da narrativa.
Uma personagem como Holmes, que é apresentada em inúmeras narrativas distintas do mesmo
autor, teve propriedades adicionadas a cada narrativa ou cada narrativa indicaria a criação de uma
entidade nova? (BRAUN, 2005, p. 611)
O argumento de Braun afirma que a autora de ficção finge fazer a referência. Os usos
metalinguísticos de nomes ficcionais, como o uso fora da narrativa em comentários dos leitores,
apresentam um conflito neste princípio de fingimento de referência dos nomes do qual a autora se
utilizaria (2005, p. 624). A autora pode estar fingindo fazer uma referência ao escrever, mas a
leitora não está fingindo fazer uma referência ao fazer comentários sobre a obra. A leitora usa o
nome ficcional para fazer referência, e não apenas fingir fazer a referência, independentemente de
a referência ser uma entidade abstrata ou um conjunto com a soma das descrições definidas
presentes na narrativa ficcional.
Se o indivíduo Sherlock Holmes é uma entidade abstrata imaginada, criada numa obra de
ficção, muitos autores já imaginaram Holmes, muitos autores já fizeram referência a Sherlock(s)
Holmes. Se estivermos dispostos a admitir a existência da entidade abstrata Sherlock Holmes,
deveríamos então aceitar todo o elenco de personagens em todas as novelas e contos de Doyle, e
claro, Doyle não teria monopólio sobre a criação de entidades abstratas. Todos os nomes ficcionais
de todas as narrativas já criadas fariam referência a entidades abstratas rigidamente. Ou seja,
existiria uma categoria de entidades abstratas geradas nos batismos que ocorrem na criação de
trabalhos de ficção contendo no mínimo o elenco total de todas as personagens de todas as histórias
já criadas; e possivelmente outras personagens referidas pelo mesmo nome ficcional inspiradas na
original. Todas estas entidades abstratas existiram igualmente, a personagem principal de um livro
que vendeu apenas uma cópia e Sherlock Holmes.
Walton (1990, p. 386) argumenta por uma teoria que dispense a necessidade de entidades
abstratas para explicar como os nomes ficcionais fariam referência. Ele também apontou que os
tipos de entidades abstratas introduzidas levantam mais perguntas do que respondem. Por exemplo,
uma das críticas mais comuns é que podemos considerar que entidades ficcionais, sejam estas
44
personagens, objetos ou locais, têm a característica interessante de serem incompletas14. Objetos
concretos são completos e completamente determinados15. Por exemplo, a leitora que estiver lendo
“O problema final” de Doyle, pode não saber quantos fios de cabelo ela possui naquele dado
momento, no entanto, o número será par ou ímpar (assumindo que ela tenha cabelo); em
comparação, será impossível para a leitora saber se enquanto Holmes estava nas Cataratas de
Reichenbach a personagem tinha um número par ou ímpar de fios de cabelo. A informação não
está descrita na narrativa e é indeterminada e indeterminável. Isto é, Sherlock Holmes nas Cataratas
de Reichenbach não tinha um número par nem ímpar de fios de cabelo. Holmes não tem um número
par de fios de cabelo e Holmes não tem um número ímpar de fios de cabelo. Por isso a personagem
seria indeterminada, no momento de criação por Doyle e em todos os momentos em que é lida, e a
personagem seria indeterminável, nunca poderia possuir uma dessas propriedades sem entrar em
contradição com propriedades que já possuísse. Essa é a interpretação mais radical da existência
da entidade abstrata ficcional, onde depois de criada ela tem existência completamente
independente do autor, e existe como um Tipo imutável16.
A personagem ficcional é tão indeterminada que poderia ser feito o argumento radical de
que Sherlock Holmes sequer é uma pessoa ficcional, poderia ser uma alienígena, pois em nenhum
momento a espécie da personagem é determinada17. Considerando que poucas propriedades são
determinadas da totalidade possível, alguns estudiosos defendem que a não ser que em cada obra
de uma série as mesmas propriedades sejam atribuídas novamente, cada nova obra seria sobre uma
nova personagem. De modo semelhante, se numa mesma obra as mesmas exatas propriedades são
atribuídas a duas personagens, elas seriam apenas uma ou nenhuma, indistintas. (WALTON, 1990,
p. 387).
14 A dificuldade inescapável de poder criar predicados sobre nomes vazios faz parte da própria discussão sobre a
possível existência dos referentes dos nomes ficcionais. Para propósitos práticos, vou me valer da teoria do
fingimento por enquanto, um tipo de pressuposição de existência apenas para os propósitos do argumento.
15 Excluindo casos de sobreposição quântica. 16 Sendo o Tipo um conjunto de propriedades, e Tokens, instâncias particulares, no caso em questão qualquer menção
de Sherlock Holmes seria apenas um Token, e a entidade abstrata completamente separada referida seria o Tipo.
17 Existe a pressuposição de um certo compartilhamento de expectativas e conhecimentos sociais gerais envolvido na
criação pela autora e consumo por audiência. A importação de referências do mundo real muitas vezes tem a ver
com isso, uma novela se passa em Londres ao invés de Nárnia porque permite uma economia de descrições para
criar a narrativa. A peça “Júlio Cesar” de Shakespeare depende de uma compreensão mínima a respeito da história
do Império Romano.
45
Walton considera que esses cenários hipotéticos não estão de acordo com o modo como
usamos os nomes ficcionais na linguagem natural. Leitores tendem a descrever ficções do mesmo
modo que descrevem concretos particulares comuns. Na linguagem natural é difícil identificar um
modo de referência distinto sendo usado para fazer a referência de nomes como “Hamlet” e “Louis
XIV”. Para Walton (1990, p. 387), esse tipo de erro não pode ser evitado se houver a insistência de
tratar a linguagem natural como completamente literal, especialmente quando se usa nomes
ficcionais. Entretanto, qualquer teoria que tentar explicar ficção, discurso ficcional, nomes
ficcionais e entidades ficcionais não deveria ser um sistema que funcione ad hoc apenas para cada
uma dessas funções, mas uma teoria que englobe todos esses itens problemáticos (WALTON,
1990, p. 388).
O ficcionalismo modal, uma das teorias mais ousadas sobre ficção, tenta explicar a
referência de nomes ficcionais e verdade em ficção ao considerar que a narrativa ficcional do nosso
mundo possa ser fato em um mundo possível e que as personagens poderiam ser pessoas que
vivessem esses fatos nos outros mundos possíveis18. Este tipo de teoria oferece uma resposta para
o problema da ficção ser indeterminada e incompleta: Sherlock Holmes19 nas Cataratas de
Reichenbach tinha um número par de fios de cabelo no mundo possível w’ e tinha um número
ímpar de fios de cabelo no mundo possível w’’, e os mundos w’ e w’’ são completamente iguais
com apenas uma diferença, a quantidade de cabelo de Holmes naquele momento; assim a referência
de Holmes do nosso mundo atual seriam os dois Sherlocks Holmes de w’ e w’’
Kit Fine (1984, p. 127) escreveu uma crítica sobre o livro de Terence Parsons, Nonexistent
Objects, onde ele censura esse tipo de racionalização com mundos possíveis e ficção. Como
estamos no mundo atual, temos uma posição metafisica privilegiada que pode induzir o filósofo a
tentar justificar a realidade e verdade da narrativa ficcional e personagens ficcionais do nosso
mundo como fatos que ocorrem em um mundo possível.20 Justamente com esse argumento Fine
18 O ficcionalismo modal permitiria falar de verdade na ficção e não só de frases verdadeiras na ficção ou a respeito da
ficção e personagens ficcionais, porque de acordo com essa teoria, a narrativa ficcional é a descrição de fatos de
algum mundo possível w’.
19 Estamos considerando que identidades transmundo são mantidas, pois estamos fazendo a referência, mas ao mesmo
tempo apenas consideramos como referência do Sherlock Holmes de Doyle aqueles Sherlocks de mundos aonde as
narrativas ocorreram como fato.
20 Posição metafísica privilegia simplesmente porque o nosso é o mundo atual e não um mundo possível.
46
critica o ficcionalismo modal, pois se for aceitável outorgar realidade aos frutos da nossa
imaginação em mundos possíveis, será preciso aceitar que a Torre Eiffel pode ser produto da obra
ficcional de outro mundo. Pessoas, locais e objetos poderiam ser introduzidos ao mundo atual
através da ficção de outros mundos, e isto é indubitavelmente absurdo.
Contudo, ser um objeto ficcional parece ser uma propriedade categórica de um objeto. De
modo que faz parte de ser Sherlock Holmes não ser uma pessoa real, como no exemplo acima no
texto, é constituinte do pato de brinquedo não ser um animal orgânico. Na teoria de Parsons objetos
ficcionais são considerados entidades abstratas necessárias. Não seria uma questão empírica se
existe um objeto Sherlock, mas Fine (1984, p. 131) não concorda com essa tese. Para ele, objetos
ficcionais são criados, introduzidos no contexto de uma história e deste modo empiricamente
atualizados. A teoria de Parsons vai contra intuições simples e fortes de que autores criam suas
obras e suas personagens. Fine (1984, p. 140) sustenta uma visão antirrealista quase tão severa
quanto oposta à de Parsons. Ele considera que o objeto ficcional é um objeto de referência, que a
existência do objeto ficcional depende completamente da marca ou símbolo pelo qual foi
introduzido. Ou seja, a existência de Sherlock seria intrinsicamente ligada às obras ficcionais onde
o nome foi usado e introduzido; lembrando o pato do exemplo, seria como se o pato de brinquedo
deixasse de existir ao destruir o plástico do qual ele é feito, e não fosse mais possível fazer
referência a ele após o momento de destruição.
Neste capítulo vimos que a teoria descritivista tinha falhas no modo como atribuía sentido
e como determinava a referência dos nomes próprios. Os argumentos de Kripke apontaram essas
falhas, como vimos nesta seção. Ele também apresentou uma tese de referência direta e designação
rígida que é amplamente aceita hoje em dia. A referência direta aplicada à nomes ficcionais implica
na existência de entidades abstratas. No entanto, a existência de entidades abstratas ficcionais e
qual tipo de entidades estas seriam (se existirem) são questões de debate constante. Apresentei
algumas das posições mais radicais derivadas da implicação de existência de entidades abstratas
nesta última seção. Nos próximos capítulos veremos teorias que tentam explicar como o sentido e
referência dos nomes ficcionais é determinado, e como podemos ter simultaneamente intuições tão
contrárias com respeito à existência do que estes nomes referem e do valor de verdade de frase com
estes nomes, mesmo quando se concorda que esse tipo de nome tem sentido.
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Capítulo 3 – Teoria do Fingimento
Como vimos no capítulo anterior, existem fortes razões para aceitar a tese da referência
direta no caso dos nomes próprios. No entanto, o conteúdo semântico dos nomes próprios na ficção
implicaria a existência de uma entidade abstrata (de algum tipo). Considero que as implicações da
teoria fazem com que ela não seja adequada para responder todas as questões sobre nomes
ficcionais satisfatoriamente. A pressuposição de que exista uma entidade abstrata para cada nome
ficcional não precisa ser o ponto de partida para uma resposta ao problema de como estes nomes
têm conteúdo semântico. Muitos filósofos propuseram teorias sobre sentido na ficção, inclusive,
como vimos, o próprio Kripke, que reintroduziu a teoria da referência direta no campo dos nomes
próprios.
Nos dois primeiros capítulos vimos os desafios de afirmar que existem frases verdadeiras
com nomes ficcionais (além dos problemas com sentenças existenciais negativas). Kripke defende
que não é preciso ajustar a teoria da referência de nomes próprios para explicar o conteúdo
semântico de nomes ficcionais. Faria parte do fingimento envolvido na ficção supor que os critérios
de referência dos nomes estão sendo cumpridos. Pode ser que o fato de os critérios não serem
satisfeitos seja justamente o que determine que o trabalho em questão seja ficcional, mas o
fingimento faria parte da ficção também. Kripke chama isso de “Princípio do Fingimento”, e
poderia ser aplicado a obras de ficção e nomes ficcionais independente de qual teoria da referência
de nomes esteja sendo levada em consideração.
Na seção 3.1 exporei a Teoria do Fingimento apresentada por John R. Searle no artigo The
Logical Status of Fictional Discourse (1975), e em seguida, na seção 3.2, a interpretação de Kripke
da teoria que ele apresentou no Reference and Existence. Na seção 3.3 apresentarei as implicações
da designação rígida de Kripke para os nomes ficcionais, que são tema central dessa dissertação,
enquanto na última seção, 3.4, apresentarei alguns dos problemas com a designação rígida de
entidades ficcionais, principalmente o problema da pressuposição de existência.
48
3.1 Fingimento de Asserções
John R. Searle defendeu que a produção de linguagem falada ou escrita era a performance
de Atos de Fala do tipo ilocucionário.21 Para ele existe uma relação entre o sentido das palavras e
frases e os atos ilocucionários performados com a produção dessas palavras e frases. No entanto,
as palavras e frases na ficção não mantêm a mesma relação com atos ilocucionários que a
linguagem natural. Os sentidos atrelados às palavras não mudam, por exemplo “cachimbo marrom”
descreve o mesmo tipo de objeto da mesma cor no discurso de ficção ou não-ficção. Mas apesar
do sentido literal das palavras não mudar, os atos ilocucionários e perlocucionários performados
por frases da ficção funcionam de modo distinto da não-ficção.
Para tentar explicar essa diferença Searle chama atenção para o que são asserções: frases
que uma falante profere com compromisso de afirmar algo verdadeiro22. Uma autora de ficção não
produz suas frases com o compromisso de afirmar algo verdadeiro, justamente o oposto é o que
determina que sua produção textual seja ficcional, que não existe intenção de afirmar algo
verdadeiro. Por exemplo, podemos imaginar que Doyle escrevendo “Sherlock Holmes fumava um
cachimbo marrom” não tinha intenção ou compromisso de afirmar algo verdadeiro. Por isso, para
Searle, o que diferencia o discurso ficcional do não-ficcional é a força, pois a diferença não depende
do sentido das frases, mas da intenção interlocutória da autora.
Searle (1975 p. 325) propõe que a autora de ficção apenas finge fazer uma asserção, pois
não tem intenção de afirmar algo verdadeiro, não tem intenção de fazer uma asserção. Ele leva em
consideração o fato de que fingir é um verbo intencional, não se pode fingir sem que exista a
intenção de fingir. Não existe distinção semântica e sintática entre o texto de ficção e não-ficção;
o que diferencia um do outro é a intenção ilocucionária da autora. Searle conclui essa análise da
distinção do que faz um texto ser ficcional afirmando que são as intenções ilocucionárias da autora
no momento de produção da obra que determinam a categoria a qual ela pertence, ficção ou não-
21 J. L. Austin apresentou sua Teoria dos Atos de Fala no seu livro How to do things with words (1962), onde através
da análise de frases não declarativas ele interpreta que existem três níveis no discurso performático (através do qual
executa-se ações): locucionário (produção e sentido do proferimento), ilocucionário (a ação executada pelo
proferimento) e ilocucionário (a compreensão e consequência do proferimento). Searle foi um dos mais
proeminentes e prolíficos filósofos a trabalhar no campo de Atos de Fala. 22 Existem muitos tipos de Atos de Fala, como promessas, ordens, pedidos, perguntas etc. Nem todos os autores
concordam com que tipo de categorias de Atos de Fala existem e como classificar os proferimentos. Para a presente
discussão asserções já serão suficientes para explicar as diferenças entre ficção e não-ficção.
49
ficção. O argumento principal a favor da teoria do fingimento é que a autora finge fazer a referência,
então não existiria a necessidade do compromisso ontológico com entidades ficcionais (eliminando
a aparente contradição em frases como “Sherlock Holmes é um detetive” e “Sherlock Holmes não
existe”).
Para Searle, quando os leitores ou audiência usam um nome ficcional, eles estão de fato
fazendo uma referência. Um dos argumentos que ele usa para justificar essa noção é que as frases
são verificáveis. Se eu declaro “Sherlock Holmes vivia em 221B Baker Street”, essa frase poderia
ser considerada uma asserção, e este uso de “Sherlock Holmes” fará referência à personagem
ficcional criada por Doyle, e pode-se considerar que a frase é verdadeira, pois a personagem tem a
propriedade de viver em 221B Baker Street. As frases de Doyle com o nome “Sherlock Holmes”
nos romances e contos não teriam valor de verdade porque Doyle apenas fingia fazer referência a
uma pessoa real enquanto estava criando a narrativa. O fingimento da autora cria as personagens
ficcionais. Nós, o público, usamos o nome ficcional para fazer referência à pessoa ficcional que a
autora fingiu ser uma pessoa real enquanto escrevia. Nós, o público, podemos fazer declarações
verdadeiras sobre personagens ficcionais (SEARLE, p. 329).
O sucesso do ato de fala de referência é que precisa existir um objeto que esteja sendo
referido pela falante. Ao fingir fazer a referência a autora finge que existe um objeto sendo referido.
Na medida em que o público compreende e participa do fingimento, ele também finge que existe
o objeto referido. Para Searle (1975, p. 330) é o fingimento da referência que cria a personagem
ficcional, e é o fingimento com participação do público que permite a este mesmo público falar
sobre a personagem com frases falsas e verdadeiras. A autora cria a personagem ficcional que não
existia antes ao fingir a referência. Após este momento de criação, a leitora pode fazer referência à
personagem com sucesso. A leitora não precisa fingir fazer referência como a autora, mas fazer de
facto referência à personagem. Segundo esta teoria, na frase acima eu não fingi fazer referência a
uma pessoa real chamada “Sherlock Holmes”, mas referi-me a personagem ficcional Sherlock
Holmes.
Ainda no mesmo artigo, Searle (1975, p. 328) faz uma comparação entre a ficção na
literatura e no teatro que julgo ter implicações interessantes para a discussão de fingimento na
ficção e entidades ficcionais. Ele argumenta que uma história (literária ou oral) ficcional é o
50
fingimento de uma representação de um estado de coisas, enquanto uma peça sendo interpretada
não é o fingimento de uma representação de um estado de coisas, mas o fingimento do próprio
estado de coisas, onde os atores fingem serem as personagens23. Segundo Searle “a força
ilocucionária do texto de uma peça é como a força ilocucionária de uma receita de bolo. É um
conjunto de instruções sobre como fazer alguma coisa, nomeadamente, como performar uma
peça”24 (1975, p. 329). Em uma peça ou um filme o fingimento fica a cargo dos atores, enquanto
diretores, profissionais de som e luz, figurinistas etc. não fingem estar representando um estado de
coisas. Esses profissionais dos bastidores trabalham para produzir o estado de coisas onde os atores
vão atuar a narrativa. Para Searle, a autora de uma peça não participa do mesmo tipo de processo
de fingimento de referência que a autora de um romance.
3.2 Fingimento da Referência Direta
Kripke concorda com muito do que Searle falou sobre fingimento de referência em ficção.
Vimos no capítulo anterior que ele defende que nomes próprios fazem referência direta e são
designadores rígidos. Através da teoria do fingimento, ele tenta explicar como funcionam ambos
os conceitos para nomes ficcionais. Kripke não estava preocupado com Atos de Fala, mas sim com
esclarecer sua tese sobre referência direta e designação rígida que tinha começado a expor em
Naming and Necessity. Segundo ele, o processo de criação de um trabalho de ficção é um trabalho
de fingimento. O criador da obra de ficção finge contar fatos, finge batizar um indivíduo, finge que
cada uso do nome ficcional se refere a algo ou alguém (2013, p. 23). Um dos pontos interessantes
do argumento de Kripke é que não importa o critério que se use para o batismo, seja de referência
direta ou descritivista, pois também se finge que qualquer que seja o método, ele está sendo usado
do modo correto. Faz parte do processo de criação de um trabalho de ficção fingir que houve um
23 Existem muitas escolas de pensamento dentro de escolas de atuação sobre se atores fingem serem personagens ou
se atores representam personagens (ou representam ações e sentimentos de personagens). Para Searle em 1975 essas
nuances não eram importantes, mas acho relevante mencionar que independente da opinião dos filósofos alguns
atores apenas representarão seus papeis (falas e ações) sem grandes preocupações com fingirem serem pessoas
fictícias.
24 Tradução própria.
51
processo correto de batismo e fingir que a referência dos nomes ficcionais é feita do modo correto,
qualquer que seja o modo dessa referência.
Ele sustenta que não é preciso ajustar a teoria de referência de nomes próprios para explicar
o conteúdo semântico de nomes ficcionais. Faria parte do fingimento envolvido na ficção supor
que os critérios de referência dos nomes estão sendo cumpridos. Pode ser que o fato de os critérios
não serem satisfeitos seja justamente o que determine que o trabalho em questão seja ficcional, mas
o fingimento faria parte da ficção também. Kripke chama isso de “Princípio do Fingimento”, e
como dito acima, poderia ser aplicado a obras de ficção e nomes ficcionais independente de qual
teoria de referência de nomes esteja sendo levada em consideração.
A pessoa que concordar com Mill tem que afirmar que a função semântica do nome é
nomear e não descrever um referente. Num trabalho de ficção seria necessário fingir que essa
função essencial estaria sendo satisfeita. Seguindo esse princípio, para quem concorda com Mill,
as proposições que ocorrem num trabalho de ficção seriam apenas pseudo-proposições. (KRIPKE,
2013, p. 24). No entanto, nem todas as proposições e nomes presentes em trabalhos de ficção são
ficcionais. Existem histórias ficcionais sobre Sherlock Holmes e Londres, nessas histórias as
proposições teriam partes ficcionais sobre Sherlock Holmes, e partes não-ficcionais sobre Londres.
Ao comentar sobre as histórias podemos afirmar “Londres existe” e “Sherlock Holmes não existe”,
porque este último nome apenas faz parte de um fingimento de batismo e fingimento de referência
do nome, sem de fato apontar um indivíduo, algo diferente do caso de “Londres”, que tem uma
referência real e concreta (2013, p. 20).
A pessoa que, por sua vez, concordar com Frege e Russell sobre a função descritiva dos
nomes, também poderia aplicar o princípio do fingimento ao modo como nomes são usados na obra
de ficção. Para o defensor do descritivismo, o nome próprio significaria “a coisa que satisfaz as
propriedades apresentadas na história”. No entanto, as descrições dadas nas histórias não parecem
ser suficientes para que um único objeto satisfaça as descrições. Não haveria como determinar que
apenas um objeto fosse capaz de satisfazer as descrições definidas contidas na história o suficiente
para fixar a referência ali ao invés de inúmeros outros objetos. As descrições nunca seriam
definidas fracassando em determinar a referência (2013, p. 26).
52
Devemos também ter em mente que se não existir um objeto ou indivíduo que satisfaça as
descrições dadas na história, então não existiria o referente do nome. Se esta implicação for
suficiente para explicar o caso de “Sherlock Holmes”, não o é para o caso de “Londres”. Se um dia
no futuro distante não existir mais nenhum registro de Londres além daqueles nas histórias de
Holmes, o nome próprio “Londres” não passaria a ser o fingimento de um nome. Isto é, o batismo
e a determinação da referência através da cadeia causal ainda seriam suficientes para determinar a
referência e considerar que este não é um nome vazio, e não poderíamos afirmar verdadeiramente
que “Londres não existe” ou que “Londres” não se refere a nada (2013, p. 27). A história e nome
ainda seriam sobre um lugar real, mesmo que o único registro que sobrevivesse fosse em uma obra
ficcional.
Para Kripke (2013, p. 28), as descrições associadas com as propriedades descritas na obra
ficcional não servem para apontar a referência, pois a atribuição das propriedades também faz parte
do fingimento da ficção. Pelo uso das frases da ficção finge-se expressar proposições ao invés de
expressá-las de fato. Não é a intenção de Kripke argumentar por um novo tipo de função de
referência para nomes ficcionais, mas argumentar que existe uma categoria semântica de nomes de
fingimento (2013, p. 29).
O princípio do fingimento não poderia ser aplicado à categoria de nomes com erros nos
processos de batismo, como no nome “Vulcano” que mencionei anteriormente. Esses nomes e
frases com esses nomes não eram frases fingindo expressar proposições. Quando Le Verrier previu
nos seus modelos matemáticos a existência de Vulcano, ele não fingiu fazer asserções. Le Verrier
não proferiu frases com um nome com o qual ele fingia ter referência, ou que ele estava fingindo
ter sido fixada quando ele estava fingindo o batismo de um referente. Le Verrier afirmou aquelas
frases com um nome que ele acreditava possuir uma referência, e estava errado no momento do
batismo porque não tinha um referente e em todos os momentos subsequentes nos quais usou o
nome com intenção de fazer a referência erroneamente atribuída. No entanto, para Kripke (2013,
p. 30-31), existe uma equivalência entre o fingimento de asserções na ficção e o erro nas asserções
com nomes com falha no batismo inicial. Mas isto é bastante implausível dado as faltas de
equivalência evidentes no processo de introdução dos nomes.
53
3.3 Designação Rígida na Ficção
Kripke afirma repetidas vezes que nomes próprios servem para referir. No caso de nomes
em uma obra de ficção não importa que exista um indivíduo no mundo que satisfaça as descrições
dadas na narrativa. Se tivesse existido alguém que satisfizesse todas as descrições definidas
atribuídas a Sherlock Holmes, ainda assim, esse indivíduo não seria Sherlock Holmes. O nome
“Sherlock Holmes” é usado com a intenção de fingir referir um objeto específico, e não qualquer
indivíduo que satisfaça a lista de propriedades atribuídas nos predicados das sentenças na obra de
ficção.
Kripke (2013, p. 41) argumenta que a teoria do fingimento pode ser aplicada aos nomes
ficcionais independentemente de como se pretenda fixar a referência (através de um batismo ou
descrição definida), como já tinha mencionado anteriormente. No entanto, ele defende que nomes
ficcionais são nomes próprios genuínos, e que são designadores rígidos com apenas um único
referente. Por outras palavras, na tese kripkeana nomes ficcionais são uma subclasse de nomes
próprios. Se os nomes próprios são designadores rígidos, os nomes ficcionais também o são.
Sherlock Holmes não precisa ter feito tais e tais coisas, Doyle poderia ter parado de escrever sobre
a personagem depois do primeiro livro. Então a designação não seria derivada do conjunto de
descrições definidas associadas ao nome, mas ao uso do nome que faz sempre a mesma referência.
“Sherlock Holmes” não seria o nome de um indivíduo qualquer indeterminado concreto ou abstrato
que apresente as propriedades atribuídas à personagem, mas um indivíduo abstrato unicamente
designado pelo nome.
Apesar de propor uma teoria do fingimento que ele afirma funcionar independentemente de
qual modo de referência se tenha em mente, Kripke volta a invocar nossas intuições a respeito de
contrafactuais para argumentar a favor de nomes designarem rigidamente. A aplicação dessa teoria
no caso dos nomes ficcionais leva a uma metafísica com muitas entidades abstratas. Pois é isso que
significa dizer que o nome “Sherlock Holmes” designa rigidamente um único indivíduo, e não um
indivíduo qualquer que se encaixe no conjunto de descrições definidas a ele atribuídas.
Vejamos os esforços de Kripke para definir o que compõe as categorias de nomes e
entidades abstratas ficcionais. O exemplo que o autor usa no seu argumento é o dos unicórnios, já
que existe o consenso que não existam unicórnios, entretanto, o nome “unicórnio” tem sentido. Até
54
o momento não foi descoberto nem inventado um espécime do tipo unicórnio, mas é possível
imaginar que este não é o caso. É possível imaginar que poderiam existir unicórnios. Para Kripke
(1981, p. 24) não é uma verdade necessária que unicórnios não existiriam se o mundo tivesse sido
diferente25. Mas como o mundo não foi diferente do que é, então não existem, nunca existiram e
não existirão unicórnios. Kripke defende que seria impossível determinar que um unicórnio exista,
se for inventado ou achado em pesquisas arqueológicas um indivíduo que se assemelhe à definição
do que é um unicórnio, não haveria como confirmar que o nome referiria àquele indivíduo. Ele
apresentou duas teses para explicar o caso dos unicórnios. A primeira é a tese metafisica que
nenhuma situação contrafactual pode ser descrita como uma na qual unicórnios existiriam; dado
que são uma espécie mitológica, do mesmo modo que tigres são uma espécie natural. A segunda é
uma tese epistemológica segundo a qual ainda que houvesse a descoberta arqueológica de um
animal com todas as propriedades atribuídas aos unicórnios na mitologia, esta descoberta não
poderia ser tomada sozinha como prova da existência de unicórnios (1981, p. 156).
Se os unicórnios da mitologia fossem uma espécie particular, o mito fornece informação
insuficiente sobre a estrutura interna do animal para determinar uma espécie única, então não
haveria modo de determinar se quais espécies possíveis ou atuais teriam sido unicórnios. Do
mesmo modo, a mera descoberta de animais com as propriedades atribuídas a unicórnios nos mitos
não provaria que estes seriam os animais dos mitos. Poderia ser mera coincidência que as
propriedades do animal atual se assemelham às propriedades descritas do animal do mito26. De tal
modo que não podemos afirmar realmente que existiu o unicórnio do mito, porque seria preciso
alguma conexão histórica que mostrasse que o mito é sobre esses animais (1981, p. 157).
Kripke (2013, p. 48) considerou que seria possível traçar um paralelo entre os casos do
nome da espécie mitológica “unicórnio” e o do nome ficcional “Sherlock Holmes”. Para ele,
mesmo que tivesse existido alguém que instanciasse todas as propriedades atribuídas a Sherlock
Holmes, não haveria modo de provar que essa pessoa fosse de fato Sherlock Holmes. A frase
comum no prefácio de romances “As personagens desta história são ficcionais e qualquer
25 Existe o argumento que participa da descrição definida de unicórnios que eles são mitológicos e não existem no
mundo atual, e por definição não poderiam existir porque deixariam de ser mitológicos, e então deixariam de ter
uma das propriedades essenciais do conjunto de descrições definidas. 26 É comum encontrar no início de um romance uma nota dizendo que qualquer semelhança a pessoas e locais reais é
mera coincidência. A obra de ficção é produzida com a intenção de não fazer referência ao mundo atual.
55
semelhança com pessoas e lugares reais é mera coincidência” reafirma essa intuição comum. Do
mesmo modo se pode afirmar que o termo “unicórnio” ocupa uma categoria semelhante à do termo
“tigre”, exceto que o primeiro ocorre na mitologia. Para o caso dos unicórnios poderia ser aplicada
a seguinte paráfrase “A espécie deste mito é ficcional e qualquer semelhança com espécies atuais
existentes ou extintas é mera coincidência”. Caso houvesse a descoberta de algo que poderia ter
sido um unicórnio, seria preciso provar alguma conexão histórica causal com o mito de onde
provém o nome para explicar a referência. Senão continuaria sendo mera coincidência qualquer
semelhança entre animal real e mito (2013, p. 50). Por praticidade poderíamos chamar a nova
espécie descoberta pelo nome do animal mitológico, mas seria o caso de usar um único nome para
dois conteúdos semânticos distintos. Ainda não teríamos o animal do mito como parte do mundo
atual, mas apenas um novo animal com um nome que já tem outro uso.
3.4 Pressuposição de Existência
Analisando uma das implicações de frases existenciais positivas com nomes ficcionais,
Kripke cita Hintikka (apud KRIPKE, 2013, p. 55) que comenta as complicações do cogito
cartesiano na ficção, com o exemplo de Hamlet, que pensa, mas não existe. É conhecimento comum
que Hamlet não existe, que a peça de Shakespeare é apenas ficção. Na peça, Hamlet tem muitos
pensamentos e muitos monólogos nos quais expõe seus pensamentos, mas como Hamlet poderia
pensar e não existir? Podemos tentar contextualizar a frase “Hamlet pensa” com algum tipo de
operador de ficção: “Na história ficcional, Hamlet pensa”. Seria preciso adicionar o operador a
todas as frases, ou supor que ele estaria implícito em todas as frases com o nome ficcional. Hamlet
pensa, e logo existe dentro da história ficcional relevante. Não existiria falácia em afirmar que
Hamlet pensa e faz monólogos e não é uma pessoa real (KRIPKE, 2013, p. 57).
Na peça Hamlet, a personagem homônima contrata atores para interpretarem uma peça
chamada “O assassinato de Gonzago”. Nesta peça dentro da peça é apresentada uma narrativa de
crimes que Hamlet suspeita serem iguais aos de seu tio. No contexto da peça de Shakespeare,
Hamlet é uma pessoa real, o príncipe da Dinamarca, enquanto os atores que ele contrata interpretam
personagens fictícias, uma das quais o próprio Gonzago que dá nome à peça dentro da peça. Para
Hamlet fora da peça dentro da peça não existe Gonzago, enquanto para nós fora da peça não existe
56
Hamlet. A peça “O assassinato de Gonzago” só existe dentro da ficção de Hamlet, não existe na
realidade essa peça, ao contrário de Hamlet, que é uma obra de ficção que existe no mundo atual
(2013, p. 59). Durante a peça de Shakespeare nunca se declara que Hamlet seja uma personagem
ficcional. A narrativa da peça Hamlet afirma que Gonzago é ficcional, mas não Hamlet (2013, p.
61).
Independente de Gonzago ser uma ficção dentro da ficção de Hamlet, ainda podemos falar
sobre a personagem, e segundo Kripke (1981, p. 148), existe uma pressuposição de existência no
uso do nome ficcional. Se falamos sobre personagens ficcionais devemos estar prontos a admitir a
existência delas. Ele crê que existem níveis diferentes de linguagem envolvidos nos nomes vazios.
Por um lado, o nome ficcional envolve o fingimento da referência, e por outro envolve o processo
de criação de uma entidade ficcional através do fingimento da referência, similar ao que Searle
defendeu. De tal modo que Gonzago e Hamlet têm igual estatuto metafísico, ambos são entidades
ficcionais.
Nomes ficcionais podem ser usados de modos metalinguísticos, e isso já foi sugerido como
um método para explicar sentenças existenciais negativas. Poderíamos dizer que uma frase como
“Papai Noel não existe” é um modo mais simples de dizer que “Papai Noel” é um nome vazio sem
referente (1981, p. 151). No entanto, essa explicação incorre em novos problemas. Segundo Kripke,
existe uma diferença entre aprender um novo nome vazio, como uma estrangeira que ouve pela
primeira vez o nome “Papai Noel”, e ao indagar sobre o nome, é informada que é um nome sem
referente e entre conhecer o nome primeiro, como uma falante da linguagem natural, para aprender
tardiamente que o nome não refere, como geralmente acontece com crianças. A criança aprende
que “Papai Noel não existe”, e não apenas que o nome “Papai Noel” não tem referente (1981, p.
153). Alguém pode acreditar que Papai Noel não existe baseado apenas no conhecimento que
“Papai Noel” não tem referente. Mas Kripke (1981, p. 155) defende que a pessoa pode dizer mais
com a frase “Papai Noel não existe” do que apenas que o nome “Papai Noel” não tem referente.
Porque entender que “Papai Noel” não tem referente não depende de entender o que o nome denota,
apenas a ausência de um objeto sendo referido.
Kripke tinha dois objetivos com os argumentos que expus nesta seção: explicar a referência
direta a entidades ficcionais e reforçar sua tese sobre designação rígida dentro do contexto de nomes
57
ficcionais. Quando argumentou sobre a ficcionalidade de Unicórnios e Sherlock Holmes, Kripke
defendeu que não haveria como provar uma ligação causal que provasse que os nomes fizessem
referência a objetos concretos hipotéticos. Um possível detetive que coincidentemente tivesse
vivido aquelas aventuras ou um fóssil que tivesse as propriedades descritas não seriam o Sherlock
Holmes de Doyle ou o unicórnio da mitologia. Do mesmo modo, se houvesse uma obra ficcional
que descrevesse uma pessoa que tivesse vivido todos os mesmos acontecimentos que Napoleão
viveu, isso não significaria que Napoleão teria sido então uma personagem ficcional (1981, p. 150).
Expondo o argumento deste modo, fica mais clara a intuição sobre designação rígida que Kripke
busca explorar para nomes ficcionais.
Não surpreendentemente, o autor de Reference and Existence sustenta a existência de
entidades ficcionais. Kripke usa sua teoria apenas para explicar como as entidades ficcionais são
criadas através do fingimento dos autores, e como após a criação que fixa a referência, qualquer
um pode fazer a referência à entidade ficcional. A teoria do fingimento busca resolver o problema
das entidades abstratas causalmente inertes já que explica a criação de entidades ficcionais. Além
disso, almeja resolver o problema de a criação de uma obra ficcional não ser uma série de atos de
asserção falsas, ao mesmo tempo que preserva a possibilidade de referência às entidades criadas
através da obra e frases com valor de verdade positivo com os nomes ficcionais. No entanto,
existem outras teorias que tentam explicar como é feita a referência de nomes ficcionais que são
mais intuitivas e exigem menor compromisso ontológico, e apresentarei duas delas que julguei
mais relevantes para esta pesquisa particular em seguida neste texto.
58
Capítulo 4 – Teoria do Faz de Conta
Neste capítulo mostrarei os pontos mais relevantes da Teoria do Faz de Conta de Kendall
Walton, que ele apresentou no livro Mimesis As Make Believe. Apesar do livro de Walton ter sido
lançado anos antes do livro de Kripke, as palestras deste foram apresentadas mais de uma década
antes do Mimesis As Make Believe ter sido lançado. Walton criticou a teoria do fingimento por um
problema intrínseco ao estudo da ficção que, no entanto, tinha menor impacto em outras áreas da
filosofia: que os teóricos do fingimento não entenderam o que é a ficção. A teoria do fingimento
ignora que exista um ato ou intenção específica ao fazer ficção, ao dizer que o autor apenas finge
um ato de fala. O discurso de ficção é sistematicamente estudado como um espelho do discurso
sério ao invés de um objeto em si27. Walton defende que fazer ficção é participar de um jogo de
faz de conta, semelhante aos jogos em que crianças brincam que são heróis onde nenhuma delas
acredita que passou a ser outra pessoa, mas cada criança faz de conta que é outra pessoa.
O impulso de tratar nomes ficcionais como nomes próprios geralmente impede que as frases
com nomes ficcionais possam ser verdadeiras a não ser que a falante esteja disposta a admitir
muitas entidades abstratas na sua metafísica. Porém, creio que existe algo fundamentalmente
diferente no modo como uma frase com um nome próprio com referente é falsa e no modo como
uma frase com um nome ficcional é falsa. Deve existir uma diferença nos modos como as frases
“Aristóteles é um detetive” e “Sherlock Holmes é um detetive” seriam falsas se é verdade que
Aristóteles existe e Sherlock Homes não28. Afirmar frases falsas outorgando propriedades à
Aristóteles que ele nunca teve é um esforço diferente de afirmar uma frase falsa que implica a
existência de uma entidade inexistente.
A narrativa ficcional não é a respeito do mundo concreto, não é um relato de fatos, caso
contrário não seria ficção. A ficção pode ser considerada como uma narrativa que não existe no
27 Discurso sério sendo aquele que refere e comenta sobre o mundo real, com seus objetos e conceitos. O discurso sério
geralmente também tem o privilégio de poder ser verdadeiro ou falso, ou de afetar a realidade como os performativos.
28 A frase “Sherlock Holmes é um detetive” não precisaria ser considerada falsa se a falante aceitar a existência de
entidades abstratas da ficção. Para Mill (sem considerar a subsistência de Meinong) e para Frege as frases com
nomes ficcionais são falsas, apesar de Frege preservar a noção de sentido mesmo na ausência do referente.
59
mundo real. Se a narrativa for um relato de fatos atuais29 então não é um produto de ficção. A
produção artística, seja poética ou visual, não pretende asserir fatos a respeito do mundo, mas criar
uma narrativa sobre algo que diverge da realidade do mundo como ele é. Daí narrativas ficcionais,
poemas ou interpretação de atores não deverem ser classificadas como falsidades. Contar uma
história é diferente de mentir.
A teoria sobre ficção de Walton diz que existe um processo de faz de conta envolvendo a
autora que faz de conta que faz asserções em narrativas em obras ficcionais e a audiência que faz
de conta que aceita aquelas asserções, que aceita participar do jogo de faz de conta. Fazer ficção e
usar nomes ficcionais em frases não seria um ato de fala em si, mas apenas o fazer de conta que se
executa um ato de fala, seja uma asserção, uma ordem etc. como parte de uma representação de um
jogo de faz de conta. Segundo essa explicação, o que caracteriza o texto de ficção é o nível de
força, e não o sentido ou a referência dos nomes e frases30. O uso dos nomes ficcionais também é
analisado dentro dessa teoria de faz de conta, com o sentido sendo associado a estados mentais
representacionais e a referência a contextos dos jogos de faz de conta.
Este capítulo tem quatro seções, na seção 4.1 apresentarei alguns dos argumentos de Walton
sobre o motivo para separar o problema de sentido e referência dos nomes ficcionais das questões
metafísicas sobre existência de inexistentes e pressuposição de existência de entidades abstratas e
ficcionais. Na seção 4.2 apresentarei os argumentos de Walton sobre ficção e discurso ficcional. A
intenção da autora de uma obra de ficção pode determinar que frases literalmente idênticas sejam
em um momento ficção e em outro não-ficção. Na seção seguinte 4.3 apresentarei o conceito de
representação na teoria do faz de conta, que é dos conceitos mais importantes para esta teoria.
Walton propõe que usamos representações nos jogos de faz de conta, que é desse modo que
participamos desse tipo de jogo. Na última seção, 4.4, apresentarei as conclusões de Walton sobre
a possibilidade de termos frases verdadeiras sobre ficção e com nomes ficcionais.
29 Atual no sentido de real, aquilo que é de fato, aquilo que existe no mundo atual. 30 Força, ou geralmente força ilocucionária, se refere à intenção com a qual a falante faz proferimentos. Quando uma
falante faz uma asserção, profere uma frase que acredita ser verdadeira feita com a intenção de comunicar essa
convicção, podemos dizer que foi usada força assertórica, isto é, a força de uma asserção.
60
4.1 Entidades Ficcionais
Segundo Walton, nós, leitores e audiência de obras de ficção, aprendemos desde cedo que
“Pedro e o Lobo” é apenas uma história e que Pedro e o Lobo nunca existiram. No entanto, ao
sermos questionados sobre a existência dessas personagens, a primeira resposta tende a ser que elas
existem. Com um único folego afirmamos o truísmo de que não existem dragões, unicórnios ou
cavalos alados, e que nunca existiram. Contudo, no folego seguinte aceitamos que existem sim,
eles existem na ficção, existem dragões, unicórnios e cavalos alados. É devido a esse conflito de
intuições sobre o estatuto ontológico de entidades ficcionais que existe um problema de saber qual
o conteúdo semântico dos nomes ficcionais, e afinal em como determinar qual o sentido e
referência desses nomes, e se sequer é possível ter frases com valor de verdade com esses nomes.
A existência ou não existência de entidades ficcionais é um problema exigente, porque não
é de todo claro como defender as duas intuições contrárias. Alguns filósofos tentaram enquadrar o
problema numa distinção entre ser e existir, ou entre o que existe e o que é atual31. Uma frase como
“Sherlock Holmes existe, mas ele não é real” é produto da tentativa de explicar as intuições
contrárias com uma metafísica com categorias e distinções especiais para entidades abstratas. Para
Walton (1990, p. 385), esse tipo de esforço não consegue explicar as contradições do problema
inicial, e não são boas tentativas de mesclar os dois lados do argumento. Esse tipo de esforço remete
à proposta de Meinong de criar uma distinção entre coisas que existem e subsistem, quando o cerne
do problema com entidades ficcionais é outorgar qualquer tipo de existência a objetos inexistentes.
Ademais, nem todos os inexistentes são do mesmo tipo, por exemplo o círculo quadrado é um
objeto inexistente impossível bem diferente de Sherlock Holmes, um objeto inexistente ficcional.
Mesmo que estejamos dispostos a admitir a existência de um indivíduo chamado Sherlock Holmes,
se ele existisse não seria apenas uma entidade abstrata, mas uma entidade ficcional,
fundamentalmente diferente de números e cores, por exemplo.
31 O argumento de Meinong sobre subsistência é uma referência recorrente para filósofos que querem defender que
nomes ficcionais fazem referência direta.
61
Para alguns filósofos realistas32, teorias de fingimento ou faz de conta não são relevantes,
pois eles simplesmente aceitam o compromisso ontológico atrelado a entidades ficcionais33. Mas
como vimos na seção anterior, existem bons motivos para aceitar algum tipo de teoria de
fingimento a respeito das referências de nomes ficcionais, já que o processo de batismo e referência
é distinto daquele usado em nomes próprios normais. A teoria do fingimento pode ser adaptada
para as principais formas divergentes de referência de nomes, então não faz sentido não considerar
suas aplicações à ficção, aceita Walton (1990, p. 388). As afirmações de existência de entidades
ficcionais dos filósofos realistas ignoram ou desconsideram a importância do caráter de faz de
conta que é constituinte da ficção. Eles confundem o fingimento de referir com nomes da ficção
com compromisso ontológico genuíno fora da ficção. Ao lidar com ficção, a imersão no faz de
conta é fácil e natural, e tão profunda que afeta nossa percepção da distinção do discurso sobre
ficção e realidade.
Para aqueles filósofos que não são realistas, há possíveis refutações à existência de
entidades ficcionais. Walton (1990, p. 390) argumenta que as intuições sobre ficção e outros tipos
de abstratos são muito divergentes. Intuitivamente, em contextos não acadêmicos e não-teóricos
ordinários, a inclinação natural da maioria das pessoas é fazer declarações afirmando que ficções
não existem. Nestas mesmas situações essas mesmas pessoas dificilmente negariam a existência
de propriedades e números. Raramente alguém afirmará “Vermelho não existe” ou “O número 1
não existe” do mesmo modo não-teórico que se tende a afirmar frases como “Sherlock Holmes não
existe”. O consenso que objetos da ficção não existem é muito maior do que a negação de outros
tipos de abstratos. A negação de propriedades, universais e números costuma ser um esforço
acadêmico mais avançado do que o da audiência casual ao afirmar que “Hamlet não existe”.
Os debates a respeito do status ontológico de entidades ficcionais parecem ser alimentados
pelo hábito que as pessoas têm de fazer asserções que parecem ser sobre entidades ficcionais, e que
essas asserções são em muitos casos asserções de verdades. Talvez ao invés de estudar as
implicações metafisicas desse tipo de discurso devêssemos começar a análise da ficção com o
32 Que defendem a realidade externa de objetos, inclusive objetos abstratos.
33 Filósofos como Kripke se preocupam com o modo como a entidade ficcional é criada, introduzida, especialmente
considerando os problemas de entidades abstratas serem causalmente inertes, mas estes filósofos não rejeitam a
existência das entidades em si da sua metafísica.
62
estudo da linguagem usada. Será que seria correto considerar as frases com nomes ficcionais como
asserções? Walton (1990, p. 391) defende que este não é o caso, que são asserções problemáticas.
As frases seriam nestes casos participação no faz de conta, fingimentos de asserções.
4.2 Fazer Ficção
Walton propõe um modo de distinguir ficção de não ficção, e seu argumento usa o conceito
de representação. Representação é um conceito central para a teoria do faz de conta que Walton
propôs: representações são ferramentas (obras ficcionais ou artefatos) usados nos jogos de faz de
conta. A teoria dele é ampla, e explica jogos de faz de conta em muitos contextos, pois considera
todas as formas artísticas e brincadeiras de faz de conta de crianças como participando da categoria
de ficção. Teatro, cinema e música são mais fáceis de entender como jogos de representação talvez,
pois os intérpretes representam histórias e melodias, mas existe uma parte na produção da ficção
que depende da audiência que recebe e entende a representação, e é por causa da participação da
audiência que ele julga que existe uma semelhança com jogos de faz de conta. A apreciação da arte
depende da troca entre criador e intérprete da obra com a audiência que consome a arte, seja uma
pintura, uma peça ou uma obra literária (1990, p. 72). Para Walton, livros, pinturas e brinquedos
servem como utensílios para as representações que os participantes criam ao embarcarem no jogo
de faz de conta.
Se um trabalho literário é ficção ou não-ficção isso não é demonstrado pelas palavras que
o compõem. Não é possível fazer esta distinção através da composição sintática e semântica (com
exceção dos nomes) do conteúdo das frases. A mesma sequência de palavras, as mesmas frases
podem estar presentes em uma biografia ou em um romance. Tampouco a diferença entre ficção e
não-ficção depende da relação das palavras com o mundo. O que constitui o caráter fictício da obra
não depende da existência de entidades ficcionais ou reais, ou correspondência com fatos. Segundo
Walton (1990, p. 77), o crucial não é o valor de verdade da obra ficcional, mas o valor de verdade
que a autora indica para a obra se ela faz asserções quando escreve sua narrativa. Não importa o
quão corretamente Tolstói descreveu os estados mentais de Napoleão, Tolstói escreveu uma obra
de ficção ao criar “Guerra e Paz”.
63
Walton quer principalmente desenvolver uma teoria que explique a ficção em múltiplos
meios de arte, seu foco é mais em estética do que propriamente filosofia da linguagem. No entanto,
a sua teoria do faz de conta teve grande penetração no campo de estudo dos nomes ficcionais. O
caso de romances históricos é particularmente interessante para o debate do que faz um texto ser
ficção ou não, pois não existe a interrupção da narrativa ficcional quando a autora descreve eventos
históricos. Tampouco existe a interrupção da narrativa quando se usa nomes próprios importados
da realidade, como quando Doyle descreve aventuras de Sherlock Holmes em Londres, ou Tolstói
descreve Napoleão invadindo a Rússia34.
Seria incorreto interpretar frases asseridas num romance histórico como interrupções da
ficção. Segundo Walton (1990, p. 79), Tolstói não interrompe seu trabalho na sua ficção quando
ele escreve que Napoleão invadiu a Rússia, mesmo que ao escrever isso ele estivesse afirmando
que Napoleão de fato invadiu a Rússia. A descrição de um fato histórico ao invés de um fato
ficcional dentro da narrativa não interrompe a ficção, do mesmo modo que fazer uma referência
geograficamente correta a Londres não detrai da ficção da obra. Para Walton (1990, p.396), o uso
primário de uma frase assertiva que aparenta estar fazendo referência a entidades ficcionais é o
fingimento. O que é asserido por meio delas deve ser entendido primeiro pelo papel que tem no faz
de conta.
A crítica de Walton (1990, p. 84) à teoria de fingimento é que a ficção é considerada como
uma forma de discurso parasítica ao discurso “sério”. A divisão parece respeitar intuições a respeito
de realidade e verdade, já que usamos o discurso sério para falar sobre o mundo real. Falamos sobre
o mundo real quando produzimos a frase “a neve é branca”, e determinamos que é uma frase
verdadeira porque a neve é branca. Mas não existe diferença no sentido literal das palavras da frase
“a neve é branca” quando ela for parte da ficção. No entanto, a frase da ficção já não se refere ao
mundo real, e dependendo da narrativa pode nem ser verdade. As diferenças nos modos de
referência nos levam a crer que as sentenças da ficção não são exatamente como as sentenças do
34 O uso do nome próprio “Napoleão”, claramente importado do mundo real, e ligado aos eventos que serviram de
inspiração para a narrativa ficcional é um ponto de discussão entre filósofos da ficção, nomes ficcionais e entidades
ficcionais. Existem argumentos que defendem que a referência, mesmo no romance, será sempre Napoleão, enquanto
outros defendem que o Napoleão de Tolstói é uma personagem ficcional, uma entidade abstrata separada e distinta
da pessoa real Napoleão. Ainda outros defendem que no romance de Tolstói o nome “Napoleão” apenas refere o
conjunto das descrições definidas contidas na narrativa.
64
discurso normal, algum tipo de fingimento de linguagem ao invés de linguagem em si. Walton
(1990, p. 85) quer defender em seu livro que fazer ficção não é o fingimento ou uma representação
de um outro tipo de ato ilocucionário, mas que é um tipo de ato ilocucionário próprio. Obras de
ficção seriam veículos do ato ilocucionário de fazer ficção.
As teorias de atos de fala tentam entender a linguagem como ações que falantes performam
ao invés de propriedades de palavras e frases. Do mesmo modo como frases são os veículos usados
para asserir, prometer, questionar etc., as obras de ficção são os veículos através do qual se faz
ficção. Em um nível básico e intuitivamente compreensível pela audiência normalmente a autora
não performa os atos ilocucionários de uma pessoa que usa as mesmas palavras em um contexto
de não-ficção ao escrever ficção. O ato comunicativo que a autora executa com uma frase como
“Chove em Londres” é diferente do ato de fala que um meteorologista no telejornal matinal executa
com a mesma frase.
Walton argumenta que não deveríamos chamar frases como “asserções”, pois asserir é uma
função ligada a ações humanas. Ele defende que ações são nesse sentido mais fundamentais que
frases. Frases assertivas são relevantes na medida que as pessoas asserem. Frases são asserções,
diz Walton, apenas no sentido derivativo. Uma frase é uma asserção se é uma frase que falantes
tipicamente usam para fazer asserções; de modo semelhante, representar ficcionalmente é uma ação
das pessoas (1990, p. 86).
No capítulo anterior vimos um tipo de aplicação da teoria dos atos de fala à ficção; ali a
Teoria do Fingimento foi usada para explicar a existência de entidades ficcionais e como a
referência de nomes ficcionais é feita. Neste capítulo vemos uma teoria que não considera o ato de
fazer ficção como o fingimento de algum tipo de ato de fala. As diferenças, defende Walton (1990,
p. 88), entre os atos ilocucionárias e atos de fazer ficção estão nos diferentes papéis das intenções
dos agentes. O receptor de um ato ilocucionário, o interlocutor, tem ocasião de se perguntar sobre
as intenções do falante: ele está afirmando isso, está prometendo aquilo, está ordenando ou
pedindo? Em contrapartida, o leitor de um romance, espectador de uma peça ou observador de um
quadro raramente vem a se indagar sobre quais verdades ficcionais e efeitos35, se algum, o autor
ou artista pretendeu gerar. O ato de fazer ficção produz uma obra (como o ato ilocucionário com
35 Além dos óbvios de gerar entretenimento e lucrar social e economicamente com a produção artística.
65
frases) que pode ser uma representação de algum ato de fala, um romance sobre uma promessa por
exemplo, no entanto a obra em si não é um ato de fala ou comparável a um veículo do ato de fazer
ficção. A linguagem depende da ação dos falantes. No entanto, a ficção depende de jogos de faz de
conta, e a obra de ficção é um utensílio no jogo de faz de conta. Fazer ficção é construir tais
utensílios.
4.3 Representação e Referência
Walton defende que o conceito de representação é fundamental para a ficção. Jogos de faz
de conta entre crianças estão repletos de exemplos de representações no seu sentido mais simples.
Os utensílios usados durante os jogos também são usados como representações: a espada de
plástico representa a espada de verdade, como a menina representa a Mulher Maravilha. Nicholas
Wolterstorff (1976, p. 124) argumenta que em uma peça teatral a audiência entra em contato com
representações das personagens executadas pelos atores e atrizes, nunca com as personagens
ficcionais.
Qual o objetivo de afirmar que temos representações de coisas atuais em obras ficcionais?
Existe a tendência de considerar conexões entre ficção e o mundo atual gratuitas, do ponto de vista
estético. Não obstante, é preciso saber se existem pessoas, lugares e eventos atuais no mundo
ficcional36. Os objetos de representação podem ajudar a responder esse tipo de dúvida (WALTON,
1990, p. 114). Representação de objetos atuais é um problema para romances históricos: Napoleão
está sendo representado ou referido em Guerra e Paz?
Segundo Walton (1990, p. 106), quando se cria representações de que uma pessoa seja alta
ou seja um detetive, se cria a ficção que a pessoa é alta ou é um detetive. Normalmente obras
também representam seus objetos como existentes. Por praticidade estética, o autor pode narrar a
sua história com eventos que ocorrem em Londres que é um local associado a inúmeras descrições,
plenamente caracterizado. Através dessa escolha estilística o autor criará a ficção que a ação se
passa na Londres atual. Para Walton (1990, p. 115), o uso de locais atuais fornece a autores e
36 Walton argumenta que a obra e os utensílios de ficção permitem que os participantes do jogo de faz de conta criem
um mundo ficcional, onde a narrativa ocorre, onde as pessoas são as personagens, e os utensílios assumem papéis
dentro do faz de conta.
66
leitores a praticidade da economia na caracterização. Quaisquer discrepâncias entre lugares atuais
e os apresentados na obra são simplesmente supostas pela audiência como fazendo parte da ficção.
Enquanto pressupõe-se que o resto da Londres atual permanece inalterado na Londres ficcional.
Mesmo quando não se trata de referência à objetos atuais, durante a leitura de uma narrativa
ficcional supõe-se, por exemplo, que as regras da física e lógica continuam operando. Salvo a
presença de instrução na obra para pensar diferente o leitor pressupõe muitas coisas a respeito do
mundo ficcional como sendo semelhantes ao mundo real.
A aplicação do conceito de representação permite explicar os modos como nos engajamos
com a ficção, com suas obras e objetos, e permite o conceito de verdades ficcionais e que nos
engajemos com elas. Representações sobre ficção são estados mentais dos participantes do jogo de
faz de conta das ficções. Existem elementos além do simples contato com a obra de arte envolvidos
na sua apreciação, por exemplo: o ato de ler um romance permite a aquisição conhecimento, mas
também gera crenças na leitora. Algumas crenças podem ser como no caso de referir e representar
Londres num romance, aonde uma gama de caracterizações podem ser pressupostas e outras
crenças dependem de inferências lógicas sobre ações das personagens e eventos da narrativa.
Ambos tipos de crença participam das representações associadas com a obra de ficção, e são
estados mentais que ocorrem quando a leitora ou audiência se engaja com a narrativa ficcional.
Contudo, a representação não elimina a dúvida sobre que tipo de objeto é representado pela
obra, se objetos ficcionais ou objetos reais. Walton (1990, p. 133) nos propõe um exercício de
visualização: eu posso imaginar um gato no tapete, ou posso imaginar que existe um gato no tapete,
que no tapete tem um gato, um gato qualquer. No primeiro caso, não preciso ter um gato específico
em mente quando imagino que o gato está em cima do tapete, no entanto parece mais apropriado
descrever esse tipo de cenário como se eu tivesse um gato específico em mente. No segundo caso,
quando apenas imagino um tapete com gatos em cima, eu não imagino um gato específico no
mesmo sentido. A relevância da distinção ressaltada aqui é que todos os gatos são específico
singulares, indubitavelmente, mas se o gato da minha imaginação no primeiro caso é um objeto
que eu possa identificar e referir, então deve existir o tal gato para ser identificado, mesmo que não
seja um gato atual.
67
4.4 Verdade na Ficção
A percepção de que a ficção (ou mundo da ficção) é um produto e objeto do nosso mundo,
da nossa realidade é o que gera questões a respeito de quantos fios de cabelo Sherlock Holmes tem.
O nosso mundo é completo, mas o mundo da ficção não o é, como falamos na seção 2.3. É incomum
ver uma pessoa se preocupando com quantos fios de cabelo ela tem, mas a mesma pessoa pode
achar estranho que é impossível saber quantos fios de cabelo Sherlock Holmes teria. Os fios de
cabelo seriam ficcionais, então não deveria fazer diferença quantos Holmes tinha nas Cataratas de
Reichenbach. Entretanto, quando pensamos em ficcionalidade como um tipo de verdade é preciso
que algum número de fios de cabelo seja verdadeiro e outros infinitos falsos.
Frases verdadeiras a respeito do mundo da ficção não podem ser afirmadas como
verdadeiras a respeito do mundo real, como se fossem o caso atual. Existe o hábito de dizer frases
como “Sherlock Holmes vivia em 221B Baker Street em Londres” ao invés de dizer “No mundo
das histórias de Doyle, Sherlock Holmes vivia em 221B Baker Street em Londres”. De acordo com
Walton (1990, p. 206), o operador ficcional é constantemente omitido no discurso ordinário, e essa
omissão é responsável por intuições contraditórias e desentendimentos em geral. Este tipo de
omissão, por praticidade ou descuido reiterado, raramente ocorre com outros operadores
intencionais.
Algumas frases a respeito de ficção são mais apropriadas do que outras, sustenta Walton
(1990, p. 398), especialmente porque a ficção é um jogo de faz de conta. A frase “Sherlock Holmes
é um detetive” é mais apropriada do que a frase “Sherlock Holmes é um padeiro” dentro do tipo de
jogo autorizado pela obra de Doyle. A participação esperada dos leitores da obra é fazer de conta
que eles também falam frases verdadeiras ao invés de falsas quando falam sobre o mundo ficcional.
Esse tipo de ato de fingimento não pressupõe que o falante esteja asserindo coisas verdadeiras ou
falsas para explicar que algumas frases são mais apropriadas do outras aos jogos específicos de faz
de conta previstos na obra de ficção.
Walton (1990, p. 430) conclui a apresentação de sua teoria afirmando que é possível dizer
frases verdadeiras ficcionalmente, como quando alguém finge fazer asserções. A participação nos
jogos permite que crianças, leitores, atores etc. usem representações para fazer de conta que estão
em contato com o mundo ficcional. Durante a participação no jogo de faz de conta asserções com
68
valor de verdade podem ser feitas, mas serão, como todas as ações e objetos dentro do jogo, apenas
ficcionais. Quanto ao discurso “sério”, não é possível referir as entidades ficcionais sem participar
do jogo de faz de conta. Como afirmou Wolterstorff (1976), não entramos em contato com as
personagens, apenas com representações delas. Fora do jogo de faz de conta a introdução do
operado ficcional elimina as ambiguidades tradicionais, indicando a qual domínio a referência
realmente pertence e evitando confundir o mundo ficcional com o mundo real. Nem todos os
filósofos ficam satisfeitos com uma solução que envolve paráfrases, no entanto a frase “No mundo
das histórias de Doyle, Sherlock Holmes vivia em 221B Baker Street em Londres” parece ser
verdadeira de um modo muito simples e intuitivo.
69
Capítulo 5 – Ficcionalismo
Uma das minhas críticas da aplicação da teoria de referência direta aos nomes ficcionais é
que as entidades abstratas da ficção não são uma solução tão elegante quanto a teoria da referência
direta que implica sua existência, como vimos na seção 2.3. Se fossem entidades abstratas robustas,
apresentariam propriedades incongruentes entre si, e com a natureza abstrata das próprias
entidades. Entidades abstratas teriam as propriedades atribuídas na obra de ficção, que podem ser
propriedades físicas ou contraditórias, como estar vivo e morto. No entanto, entidades abstratas são
causalmente inertes. Sendo assim, não podem ser criadas, pois sempre existiram. Mas então
existiria um número gigantesco de entidades abstratas para dar conta de todas as histórias possíveis,
que nunca foram escritas, mas que poderiam ter sido.
Não considero que entidades abstratas ficcionais são necessárias para explicar o conteúdo
semântico de nomes ficcionais. Existem teorias com menor compromisso ontológico que também
explicam o conteúdo semântico. O grande número de entidades que teríamos que admitir na nossa
metafisica é desconcertante considerando que a referência direta não é a única explicação
disponível. Um outro motivo para rejeitar a referência direta para nomes ficcionais é que a teoria
introduz novas dificuldades à questão dos nomes ficcionais, com entidades ficcionais com suas
propriedades contraditórias ou entidades abstratas casualmente inertes. Entidades abstratas para
nomes ficcionais não deveriam ser admitidas sem se examinar as outras possibilidades explicativas
do conteúdo semântico. Uma teoria ontologicamente mais econômica e que preserve as intuições
acerca do funcionamento dos nomes ficcionais será, assim, preferível. Neste capítulo chamarei
atenção para o Ficcionalismo, uma teoria que busca explicar o conteúdo semântico aparente dos
nomes sem implicar a existência de entidades abstratas para cada nome ficcional.
As teorias de fingimento e faz de conta têm um erro nas suas argumentações. Ambas as
teorias supõem que falante e autor fingem ou fazem de conta que o nome ficcional faz referência a
um indivíduo do mundo atual. Mas o uso competente do nome ficcional é justamente aquele em
que não se faz referência a um objeto concreto.37 Neste capítulo quero apresentar o que eu considero
37 Considero, neste caso, falante competente aquele que saiba que o nome é ficcional, diferente do exemplo de Kripke
com as crianças que usam o nome “Papai Noel” sem saber que não existe referência.
70
a melhor teoria para explicar o conteúdo semântico de nomes ficcionais. As teorias de referência
direta e fingimento não respondem satisfatoriamente a todos os desafios sem enormes
compromissos ontológicos.
Na seção 5.1 apresentarei a teoria sobre ficção de Currie. Nomes ficcionais ocorrem dentro
de ficções, e seus usos são mais atrelados ao que é a ficção do que o que são nomes próprios. Por
este motivo Currie considera que é preciso qualificar o que é a ficção e como ela difere de outras
formas de discurso, propondo que ocorre um ato de fala específico na produção de obras de ficção.
Na seção 5.2 explorarei a noção de verdade na ficção, proposta por Currie de um modo distinto do
que Walton havia feito com a noção de coerência com o “mundo da ficção”. Na seção 5.3 exporei
e analisarei os argumentos de Currie sobre como nomes ficcionais têm sentido e referência, assim
como se a sua proposta se sustenta contra as teorias já vistas nesta dissertação.
5.1 Ficcionalizar
Gregory Currie (1990) apresenta uma alternativa à teoria do fingimento chamada de
Ficcionalismo que consegue preservar as intuições de como dar conta do conteúdo semântico dos
nomes ficcionais. O Ficcionalismo me parece muito mais natural e intuitivo do que as teorias do
fingimento e do faz de conta. Currie argumenta que não é só uma distinção de força que diferencia
o discurso ficcional do discurso assertórico ou declaratório. A diferença se deveria ao tipo de ato
de fala ser distinto dos demais. O criador de uma obra de ficção, seja ela textual, visual, auditiva
etc. tem a intenção de criar uma narrativa não-verídica, uma narrativa fantasiosa. O criador de uma
narrativa de ficção estaria ficcionalizando ao gerar a sua história, e suas descrições e nomes
ficcionais referem somente ao cenário da sua narrativa. Vejamos com mais detalhe em que esta
teoria consiste.
A posição de Currie não é exatamente uma expansão da teoria de Walton, mas ele utiliza
parte do aparato teórico de Walton para também negar a ideia de fingimento pela parte do autor e
do público da narrativa ficcional. Existem tipos de fingimentos de atos de fala (paródia, imitação e
mentiras) que não são ficção. Por meio desses atos de fala ficcional a autora da obra não tem
intenção de criar uma narrativa de faz de conta ou uma narrativa que seja compreendida como
71
ficcional. A teoria de Walton sobre os jogos de faz de conta ainda se assemelha à teoria do
fingimento, pois tanto autor quanto leitores e plateias estariam fazendo de conta, fingindo acreditar
numa narrativa ficcional como factual. No entanto, Currie entende que produzir e consumir ficção
são atos nos quais se aceita as narrativas como propositalmente ficcionais, sem em nenhum
momento haver a pretensão de fingir que a narrativa fosse factual.
A intenção de uma falante ao fazer o pronunciamento ficcional é que uma audiência entenda
o sentido do seu pronunciamento e que ele é ficcional. Mas, naturalmente, pode haver mal-
entendidos, ou seja, erros de interpretação por parte da audiência quanto à natureza ficcional na
obra. Um dos melhores exemplos nesse sentido, é o caso de “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe,
que supostamente não foi escrito como ficção, mas que é lido como se fosse. Trata-se do que Currie
chama de pseudo-ficção.
A autora de uma obra ficcional não finge fazer asserções, pois isso não produziria o valor
de engajamento da audiência almejado na produção de ficção. A audiência não finge que acredita
em asserções da autora quando lê ou assiste a um trabalho ficcional, essa ação tampouco produziria
o valor de entretenimento que geralmente se busca na ficção. A audiência participa do faz de conta
ao aceitar a narrativa ficcional como sendo a reprodução de um fato conhecido pela autora. A
disposição da audiência de participar do faz de conta da autora se deve a reconhecer que não existe
a tentativa de contar uma mentira, mas uma narrativa fictícia. Currie define mentira como uma
asserção feita com o conhecimento de que o conteúdo asserido é falso. Doyle não estava mentindo
sobre Sherlock Holmes ao criar sua narrativa. É uma defesa antiga ao argumento da mentira da
ficção que o poeta não mente. No caso onde não existe asserção, como com a autora de ficção,
nada é dito que possa ser verdadeiro ou falso (1990, p. 5).
Para melhor compreendermos o ficcionalismo, é importante termos clara a distinção entre
sentido e força. Podemos identificar o que uma frase diz meramente pelo sentido (como na ficção)
ou pela força e sentido (como em asserções). O sentido é o conteúdo ou proposição expressa pelo
proferimento de uma frase qualquer na obra. Em contrapartida, a força constitui os diferentes
modos pelos quais entretemos o conteúdo expresso por uma frase. Esses são os chamados atos de
fala: asserir, ordenar, solicitar, indagar, esperar, desejar etc. É necessário distinguirmos aqui o que
Searle (1969) denomina diferentes “condições de ajuste” entre a proposição expressa pelo
72
proferimento de uma frase e o mundo. No caso de asserções, o conteúdo asserido será verdadeiro
quando a proposição expressa pelo proferimento se “ajustar” ao mundo, ou seja, reproduzir o modo
como o mundo se comporta. Em contrapartida, o conteúdo de um imperativo será “satisfeito”,
quando o mundo se “ajustar” à proposição expressa pelo imperativo. Entretanto, em ambos os
casos, o valor do conteúdo proposicional de uma oração é determinado pelas suas relações
referenciais dos componentes da frase com o mundo. Por exemplo, na asserção da frase “Vênus é
um planeta”, o conteúdo proposicional expresso será verdadeiro se a referência do nome próprio
“Vênus”, um particular, instanciar a propriedade expressa pelo predicado “ser um planeta”.
Segundo Currie (1990), as relações de referência também vão depender do significado das
expressões veiculadas pelos proferimentos; por exemplo, o conteúdo “ser um planeta” depende do
significado de “ser um planeta”. As considerações sobre força não têm relevância para determinar
a referência dos componentes oracionais da frase proferida. A afirmação segundo a qual frases da
ficção não têm valor de verdade provém da confusão entre sentido e força (1990, p. 6). Podemos
criticar as teorias que afirmam a falsidade das frases ficcionais examinando o modo como lidamos
com frases falsas na linguagem natural. Se as frases ficcionais fossem falsas, nós, os leitores, não
acreditaríamos nelas, e não conseguiríamos apreciar a narrativa ficcional.
Dentro da narrativa ficcional temos frases com sentido, e podemos tentar pensar sobre o
valor de verdade delas. Uma frase como “Londres é a capital da Inglaterra” poderia ter o mesmo
sentido no The Guardian quanto numa das histórias de Doyle. Aqui podemos considerar a frase
literalmente, e ela é verdadeira puramente porque a relação do referente com o predicado se dá no
mundo. No entanto, Doyle não estaria fazendo uma asserção, enquanto o jornalista do The
Guardian por sua vez estaria fazendo uma asserção. Haveria então duas ocasiões de produção da
mesma frase literal, na qual uma resulta numa asserção e a outra não (1990, p. 15).
Autores de ficção não fazem asserções quando criam frases ficcionais, e são dúvidas sobre
força ao invés de sentido que precisam ser respondidas para entendermos o que é ficção. A teoria
do fingimento está errada ao afirmar que a autora de ficção está fingindo asserir algo. Currie (1990,
p. 13) defende que a autora performa um ato comunicativo que não é o fingimento de algum outro
73
ato, assertivo ou de outro tipo, em oposição tanto a Kripke quanto a Walton38. A ficção emerge,
Currie (1990, p. 24) defende, com a prática de narrar histórias. A autora que produz uma obra de
ficção está engajada num ato comunicativo. Este ato envolve possuir um certo tipo de intenção: a
intenção que a audiência ou leitora vai acreditar no conteúdo da história que é narrada. Para Currie,
o sucesso do ato comunicativo depende de a audiência aceitar que a narrativa é ficcional, isto é, foi
construída sem fazer referência a coisas e pessoas reais. As teorias de fingimento ou faz de conta
tratariam essa etapa do jogo da ficção de fingir acreditar que a narrativa é factual. Contudo para
Currie não existe a pretensão de fingir fazer referência a coisas atuais, apenas referência à
elementos do mundo da ficção, como descrito na obra de ficção. A percepção de que uma obra é
ficção dependeria de identificar a intenção do autor de não fazer referência a coisas atuais, de contar
uma narrativa não factual como se fosse factual, como uma ficção.
5.2 Verdades Ficcionais
A teoria do faz de conta introduziu muitos conceitos interessantes no modo como podemos
estudar ficção. Currie (1990, p. 73) defende um conceito modificado de faz de conta no qual a
participação da leitora é menos ativa. Para Walton a obra ficcional é um utensílio para o jogo de
faz de conta que a leitora aceita jogar para se envolver com o mundo da narrativa de ficção. Currie
propõe que a leitora da narrativa ficcional está fazendo de conta que ela está sendo informada dos
eventos narrados por alguém com conhecimento deles. A leitora faz de conta que entra em contato,
através de canais confiáveis, com as personagens e suas ações. Fazer de conta que se acredita em
uma história ficcional não é apenas fazer de conta que a história é verdadeira, mas que ela está
sendo contada como fato.
Esta proposta de jogos de faz de conta depende do conceito de verdade ficcional. Currie
(1990, p. 56) argumenta que uma proposição P que seja verdadeira na ficção ou ficcionalmente
verdadeira não tem um tipo peculiar de valor de verdade a ser outorgado, mas apenas que P é
38 Walton também critica a teoria do fingimento de Kripke, mas para Currie a definição de que a autora faz de conta
que faz asserções não é suficiente para o ato intencional de criar ficção, que é um ato comunicativo em si, não uma
representação de um outro tipo de ato fala.
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ficcional, ou que é ficcional que P é verdadeira. As coisas que são verdade na ficção ou são
ficcionalmente verdadeiras são as coisas que fazem parte da narrativa.
Observemos o conceito de verdade ficcional aplicado a alguns exemplos:
(22) Sherlock Holmes é um fumante de cachimbo.
(23) É verdade na ficção que Sherlock Holmes é um fumante de cachimbo.
Tomemos a frase (22) como P, e consideremos o prefixo “É verdade na ficção” como um
operador F, um operador de ficção. A frase (23) tem o prefixo sobre ficção, mas podemos agora
representar a proposição e operador como F(P). Segundo o conceito de verdade ficcional de Currie,
P é falsa e F(P) é verdadeira. A frase (22) não expressa uma proposição verdadeira, no entanto a
frase (23) expressa (1990, p. 57). Ser ficcional não é a mesma coisa que ser verdadeiro, mas pode
ser considerado como uma propriedade de proposições.
A verdade ficcional dependeria do que pode ser determinado que uma fonte confiável da
história (como fato possível) poderia acreditar ser verdade, como a figura do narrador. Contudo,
tanto a fonte confiável que informa a história quanto suas crenças ocorrem dentro do escopo do
nosso jogo de faz de conta. Para participar do jogo de faz de conta não é necessário conhecer cada
detalhe que é verdade na ficção. Sabemos enquanto audiência que o autor não tem conhecimento
dos eventos da história como fato (senão não seria uma escrita de ficção), e sabemos que o autor
não acredita nas suas frases (pelo menos não todas, frases como “Londres é a capital da Inglaterra”
dependem de representação e referência ao mundo real, e que não teriam seu valor de verdade
alterado por fazerem parte da ficção). Uma das dúvidas anteriormente apontada neste texto, é a
respeito da completude dos objetos ficcionais. Contudo o autor é uma fonte confiável da narrativa,
e aquilo que ele informa na obra de ficção é plenamente determinado. Para Currie, o operador
ficcional vai permitir rejeitar as acusações de incompletude e atribuição de propriedades
contraditórias, como no caso abaixo:
(24) Não é parte da ficção que Sherlock Holmes tenha um número par de fios de cabelo no
seu confronto com Moriarty nem é parte de ficção que ele não tinha.
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Não faz parte da descrição que Sherlock Holmes seja completamente determinado, com um
número exato de fios de cabelo em dada situação porque não está incluso na obra de arte nenhuma
informação sobre isso. Sobre as descrições inclusas na narrativa, estas sim são determinadas.
Entretanto muitas descrições estão fora do escopo da narrativa e são indetermináveis.
5.3 Uma Teoria de Nomes Ficcionais
A pressuposição que nome ficcionais são nomes próprios genuínos faz com que o filósofo
tente explicar nomes ficcionais sem considerar primeiro como estes funcionam, tratando a classe
como derivativa. Atrelar a categoria de nomes ficcionais com a de nomes próprios induz à confusão
do que é verdade na história com o que é verdade simpliciter. Com certeza é verdade nas histórias
de Doyle que “Sherlock Holmes” é um nome próprio – o nome de um grande detetive, de fato. Mas
o que é verdade na ficção não é necessariamente verdade. Currie (1990, p. 128) propõe que é
verdade que um nome ficcional é uma expressão que na história é um nome próprio. Contudo, o
nome ficcional é mais do que apenas isso. Napoleão é uma personagem em “Guerra e Paz”, mas
não uma personagem ficcional, já que os usos de Tolstói do nome “Napoleão” no livro não seriam
então como um nome ficcional. Isto é devido a existir uma pessoa real de quem é verdade que na
história o nome dele é “Napoleão”. Em oposição, é verdade nas histórias de Doyle que “Sherlock
Holmes” é um nome próprio, mas não existe uma pessoa real de quem seja verdade que na história
o dele seja “Sherlock Holmes”.
Acima Currie chamou nomes ficcionais de nomes próprios nas histórias, mas se fossem de
fato nomes próprios seriam nomes vazios, sem referente. Nomes ficcionais parecem ter sentido,
eles contribuem para o sentido das frases nas quais eles aparecem. Se não fosse assim, não seria
possível compreender histórias ficcionais. Mas se nomes ficcionais forem nomes próprios seria
necessária uma teoria que explicasse como nomes vazios podem contribuir para o sentido de frases
nos quais eles aparecem. Alguns usos de nomes ficcionais fora das histórias parecem ser em frases
verdadeiras, como “Sherlock Holmes é uma personagem ficcional” (1990, p. 131). Se o nome não
referisse absolutamente então como a frase faria sentido? Ao fim, Currie (1990, p. 129) rejeita que
nomes ficcionais sejam nomes próprios.
76
Currie (1990, p. 146) argumenta que uma teoria de nomes ficcionais plausível deve dar
conta dos diversos tipos de usos dos nomes ficcionais. Os usos variam desde o ato inicial do autor
de criação, ao engajamento do leitor com a história e até os comentários e especulações que
parecem separar a personagem do texto de origem e tratá-la como um objeto autônomo de estudo39.
Estes tipos de uso são muito diferentes uns dos outros, e uma teoria de nomes ficcionais precisa
levar essa distinção em conta. Currie considera que não é necessário usar nomes ficcionais para
escrever ficção, isto porque ele defende que a autora faz um uso ficcional de nomes enquanto
escreve ficção. Quando a autora usa um nome ficcional ao escrever ficção, ela faz um uso ficcional
do nome ficcional.
Quando um comentador faz uso do nome ficcional, por exemplo na frase (22) o valor de
verdade depende do uso implícito do operador F, explícito na frase (23). Doyle, quando escreveu
frases semelhantes nas suas histórias estava fazendo um uso ficcional do nome ficcional, pois
estava fazendo ficção. O comentador, por sua vez, não deseja fazer ficção, deseja fazer asserir sua
frase que acredita ser verdadeira. Como tínhamos visto em Walton, este tipo de declaração deixa
de ser ambígua e passa a ter um valor de verdade positivo quando usada com um operador
intencional como prefixo, tal qual “é parte da história que” (CURRIE, 1990, p. 158). O problema
é que sem o operador F, o nome próprio na frase (22) não tem referente, é um nome vazio; enquanto
com o operador F o nome próprio é ficcional (ficcionalmente tem referente) e a propriedade
atribuída a ele na frase participa da mesma ficção
Currie sugere que quando “Sherlock Holmes” é usado no escopo do operador intencional o
nome ficcional passa a funcionar como uma descrição definida abreviada. A descrição abreviada
de todas as descrições e proposições que fazem parte da narrativa da obra de arte. O leitor
provavelmente não tem a descrição total em mente quando usa o nome fora do contexto da ficção.
As descrições associadas podem variar de leitor para leitor, mas Currie (1990, p. 159) propõe que
a teoria trate a descrição como um ideal semântico que um leitor perfeitamente atento, informado
e de boa memória associaria ao nome “Sherlock Holmes”.
39 Muitos dos usos do nome “Sherlock Holmes” nesta dissertação poderiam ser considerados deste terceiro tipo, como
quando estamos considerando a existência e inexistência da personagem ou afirmando e negando outras profissões
que não as descritas nas histórias de Doyle.
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Considerar nomes ficcionais descrições complexas ao invés de mecanismos de referência
direta permite evitar compromissos ontológicos indesejados, mas parece não responder a todas as
intuições que temos sobre histórias ficcionais e o que é verdade sobre elas. Por exemplo, é verdade
que na história de Doyle “Sherlock Holmes” é um mecanismo de referência direta: na história é de
fato o nome próprio de um indivíduo particular, no caso Sherlock Holmes. Também é verdade na
história que a identidade de Sherlock Holmes não está associada as suas aventuras enquanto
detetive, isto é, na história se Holmes não tivesse vivido aquelas aventuras descritas ele ainda seria
Sherlock Holmes, ele seria idêntico a si mesmo, afirma Currie (1990, p. 165). Enquanto pode ser
verdade que nas histórias de Doyle “Sherlock Holmes” é o nome próprio de alguém, não existe
nenhuma pessoa real de quem seja verdade que o nome dele seja “Sherlock Holmes”. Ocorre um
erro de pressuposição de existência de uma entidade abstrata na ausência de uma entidade concreta
que seja a referência do nome próprio (apesar de que o nome é ficcional, e só é próprio dentro da
história).
Apesar desta teoria precisar introduzir o operador intencional para ficção F, como a teoria
do faz de conta fez, considero que ela oferece melhores respostas sobre como nomes ficcionais tem
sentido e referência, e até mesmo como é possível ter frases com nomes ficcionais com valores de
verdade positivo ou negativos. Comparando as duas teorias, o modo como Currie propõe a
participação do leitor no processo da ficção é bem mais simples do que o modo como Walton
propõe que o jogo de faz de conta aconteça. As considerações sobre o conceito de representação e
estados mentais introduz passos extras no processo de ficcionalização. O Ficcionalismo tem
soluções mais intuitivas a respeito dos usos informais e formais de nomes ficcionais do que as
Teorias do Fingimento e do Faz de Conta. Ademais Walton sacrifica a possibilidade de verdade na
ficção e sobre ficção, a participação no jogo de faz de conta permitiria usos dos nomes ficcionais
em frases mais ou menos apropriadas ao jogo (como autorizado pelo utensílio). A teoria de Currie,
contudo, autoriza o uso dos nomes ficcionais em frases com valor de verdade, oferecendo mais
soluções com menor compromisso ontológico e envolvimento de estados mentais.
78
Considerações Finais
Começamos esta pesquisa com dúvidas a respeito do sentido e referência de nomes
ficcionais, e se nomes ficcionais sequer podem ser considerados uma subcategoria de nomes
próprios já que não parecem funcionar do mesmo modo. Apresentamos os modos como nomes
próprios têm sentido e se referem nos dois primeiros capítulos. Nomes ficcionais são geralmente
considerados uma subcategoria de nomes próprios, no entanto, quando considerados com as
mesmas explicações de funcionamento geralmente levam a questionamentos sobre a existência de
entidades abstratas e a possibilidade de que as frases com nomes ficcionais sequer tenham valor de
verdade.
Nos três capítulos seguintes apresentamos três teorias para tentar explicar como nomes
ficcionais podem ter sentido, e como a referência é feita, se ela é feita. A teoria do fingimento
explica como entidades abstratas são criadas através da ação do autor de ficção de fingir fazer
referência. Das teorias que apresentamos esta é a que preserva mais da tese de referência direta e
designação rígida e preserva a implicação de existência de entidades abstratas. Outrossim, esta
teoria não considera que exista uma diferença no tipo de nome usado na ficção e no discurso
normal, apenas no modo como os nomes são usados.
A teoria do faz de conta explica sentido e referência de nomes ficcionais e valor de verdade
para frases da ficção sem precisar admitir entidades abstratas. Esta teoria preserva muitas intuições
comuns a respeito do que é a ficção. Vimos que a teoria do fingimento afirma que fazer ficção é o
fingimento de fazer outro ato de fala, todavia a teoria do faz de conta afirma que fazer ficção é uma
ação em si e não apenas a deturpação de outra ação. Esta teoria tem uma preocupação com a estética
da ficção de um modo geral, não só com o sentido e referência dos nomes ficcionais. Contudo, as
soluções desta teoria dependem de paráfrases, operadores intencionais de ficcionalidade, e a
introdução de estados mentais representacionais.
A terceira e última teoria apresentada foi o ficcionalismo, que é mais conservadora do que
as outras duas em algumas áreas, pois dispensa entidades abstratas e estados intencionais; no
entanto, é expansiva em outras, como no conceito de ficcionalização (que inclui o fazer ficção, a
atribuição de crenças à narradores, e ficcionalizar referências, nomes, verdades etc.) e o uso de
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paráfrases. Esta teoria considera nomes ficcionais (e de fato toda a ficção) como uma categoria que
deve ser explicada de um modo exclusivo a eles. Os nomes ficcionais são ligados às descrições
contidas nas narrativas ficcionais que, por sua vez, dependem de atos comunicativos dos autores
que produzem ficção. Os nomes ficcionais são diferentes dos nomes próprios, com funções
diferentes. A conclusão é que nomes próprios são mecanismos de referência direta e nomes
ficcionais são descrições definidas abreviadas.
A solução proposta por Currie para o problema é ad hoc, mas a ficção é um tipo específico
de fenômeno comunicativo, seja através da palavra escrita, falada ou representações visuais. As
intuições e fácil compreensão competente do que é o discurso ficcional são motivo para aceitar
estudar a ficção em si, e por isso soluções para os problemas dentro dessa área, como sentido e
referência de nomes ficcionais, serão específicas à ficção e distantes das teorias de nomes próprios.
Considerando nossas questões iniciais da pesquisa esta parece ser a melhor teoria, pois responde
às dúvidas sobre sentido e referência de nomes ficcionais preservando o maior número de intuições
com menor introdução de entidades abstratas na nossa metafísica. Ademais, a distinção introduzida
entre nomes ficcionais e nomes próprios permite admitir frases com valor de verdade com nomes
ficcionais além das existenciais negativas. A possibilidade de discurso verdadeiro a respeito de
ficção é um bônus para uma teoria que tente explicar sentido e referência de nomes ficcionais.
Como vimos, algumas das teorias negavam completamente a possibilidade de sentenças que não
fossem existenciais negativas terem valor de verdade positivo. Enquanto outras autorizavam esse
tipo de discurso verdadeiro apenas com a implicação de grandes compromissos ontológicos.
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