V DE VITÓRIA: A FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA E A LUTA
PELOS DIREITOS CIVIS DOS NEGROS AMERICANOS (1944-1945)
Anielly Tedesco Oliveira
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Resumo: A pesquisa tem como foco a análise da representação da Força Expedicionária
Brasileira (FEB) constituída e veiculada pelo jornal afro-americano The Pittsburgh
Courier, entre os anos 1944 e 1945, período que abrange a entrada do Brasil na Segunda
Guerra Mundial ao ano que marca o fim do conflito e a desmobilização da FEB. Se deterá
na forma em que se deu a construção da Força Expedicionária Brasileira e,
consequentemente, do Exército Brasileiro, como um modelo a ser seguido para
concretizar as reivindicações de direitos civis para os negros americanos, por meio do
periódico The Pittsburgh Courier, entre 1944-1945, considerando o contexto da
Campanha de Double Victory – capitaneada pelo jornal analisado –.
Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial, Força Expedicionária Brasileira, Estados
Unidos, Movimento dos Direitos Civis.
1 A SEGREGAÇÃO RACIAL NOS ESTADOS UNIDOS E A IMPRENSA AFRO-
AMERICANA COMO INSTRUMENTO DE PROTESTO
A história da segregação racial nos Estados Unidos é tão antiga quanto a própria
escravidão, pois tão logo o primeiro navio negreiro aportou nas Treze Colônias,
legislações foram criadas para os escravos, elas eram conhecidas como Black Codes e
tinham como foco medidas de anti-miscigenação, de modo a garantir a pureza da “raça
branca” (MAGNOLI, 2009, p. 121).
A Guerra de Secessão, causada pelas tensões regionais entre o Norte industrial e
o Sul agrícola, trouxe para o cenário político a discussão sobre a abolição da escravidão,
causando o arrefecimento das relações entre as duas partes do conflito (BREEN; DIVINE
et al, 1992). A Guerra Civil Americana se estendeu de 1861 a 1865 e em janeiro de 1865,
o congresso, que fazia parte da União – representado pelo Norte – aprovou a 13ª Emenda,
abolindo a escravidão em todos os estados dos Estados Unidos. Entre abril e maio do
mesmo ano, Robert E. Lee, general do exército dos Estados Confederados, e o resto das
forças sulinas rendem-se, dando fim ao conflito que dividira o país. Após a rendição dos
Confederados, iniciou o período denominado Reconstrução, que se estendeu entre os anos
de 1865 a 1877.
Logo após o fim da Guerra da Secessão, o Norte – vencedor do conflito – iniciou
planos para uma Reconstrução radical do Sul, que previa, a partir de 1867, a ocupação
militar e administrativa da região por soldados da União e a garantia de plena igualdade
entre brancos e negros ex-escravizados ao remover os Black Codes e instituir direitos
civis aos negros americanos (GALLO, 2016, p. 25). Esse período forçou a “aceitação”
dos negros na sociedade sulista, anteriormente exclusivista e supremacista; as medidas
causaram o ressentimento que culminou numa reação contrária as ações, como, por
exemplo, a formação de grupos supremacistas que perseguiam negros, sendo o mais
famoso deles a Ku Klux Klan (GALLO, 2016; MAGNOLI, 2009).
Entretanto, após 1877, um grupo chamado redeemers, os redentores, retomou o
controle dos governos estaduais que haviam formado a antiga Confederação (MAGNOLI,
2009, p. 114). Os redeemers eram formados por membros da velha elite latifundiária
sulista, de homens originários da classe média que advogavam em prol da industrialização
e do comércio, em detrimento da agricultura e de políticos de carreira (BREEN; DIVINE
et al, 1992, p. 375). Ao chegarem ao poder, estabeleceram, na década de 1890, um corpo
de leis apelidadas de Jim Crow, que promoviam a segregação de negros e brancos nos
estados do Sul dos Estados Unidos. Tais corpos de leis segregacionistas abrangiam os
mais diversos âmbitos sociais, dentre eles os transportes públicos, bibliotecas, hotéis,
restaurantes, escolas, teatros e, também, as relações sexuais e o casamento.
O fim da Reconstrução marcou também o fim das aspirações republicanas à
inserção dos negros na sociedade americana, aos poucos esse deixou de ser o projeto do
Norte, que passou a consentir as leis discriminatórias e segregacionistas implantadas pelo
Sul (BREEN; DIVINE et al, 1992; MELANDRI, 2002). As décadas seguintes marcaram
um período obscuro de racismo nos Estados Unidos e os negros americanos pagaram o
maior preço pela reunificação do país.
A luta dos negros por direitos civis e igualdade, como previsto na Constituição
Americana, se estende desde os escravos até os dias atuais, passando por períodos
emblemáticos como a emancipação e a década de 1960, quando se tornaria ilegal qualquer
forma de segregação racial institucionalizada graças a Lei de Direitos Civis, assinada em
junho de 1964 e a Lei dos Direitos de Voto, promulgada em agosto de 1965.
Dentro desse contexto de luta, se insere a imprensa negra americana, que tinha
como objetivo ser um instrumento para dar voz aos afro-americanos, publicando
discursos, ideias, reivindicações e notícias visando como público alvo os negros dos
Estados Unidos, se dedicando a discutir questões sociais, políticas, econômicas e culturais,
tanto a imprensa laica quanto a religiosa tiveram esse objetivo (THOMPSON, 2001, p.
216). A imprensa negra surge como tal em 16 de março de 1827 com a publicação do
Freedom’s Journal em Nova York (XAVIER, 2012, p. 19) e, a partir desse período,
estima-se que tenha existido cerca de mil e trezentos jornais no século XIX e pelo menos
mil e quinhentos no século XX (THOMPSON, 2001, p. 217).
Em 1907 era criado, por Edwin Harles, o periódico The Pittsburgh Courier, que
estave entre os maiores jornais afro-americanos do século XX (THOMPSON, 2001, p.
221). Em maio de 1910, o Courier foi incorporado no hall de periódicos afro-americanos
que circulavam pelos Estados Unidos, ele consistia, inicialmente, em quatro páginas com
reportagens de interesse da região de Pittsburgh (BUNI, 1974, p. 43). Porém, a partir da
década de 1930, o Courier alavancou sua tiragem e relevância tanto regional quanto
nacional, sendo o primeiro jornal da imprensa negra a publicar edições nacionais e
regionais (NEWSPAPERS, p. 1). Em 1947, a circulação do The Pittsburgh Courier
alcançou 350 mil exemplares semanais (THOMPSON, 2001, p. 221).
Dentre as campanhas que o periódico encabeçou, as mais conhecidas foram à luta
contra a segregação de negros nos esportes profissionais e a Double Victory, que
reivindicava, entre outras questões, o fim da segregação racial nas Forças Armadas. Essa
campanha recebeu apoio de vários outros jornais, a tornando um esforço nacional da
imprensa afro-americana (NEWSPAPERS, p. 1).
2 A PARTICIPAÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS NA SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL E A SEGREGAÇÃO RACIAL NO EXÉRCITO AMERICANO
A política externa vigente nos Estados Unidos, durante os anos que precederam a
Segunda Guerra Mundial até 1941, se caracterizava pelo isolacionismo das questões que
assolavam o mundo para além das fronteiras americanas. Mesmo a anexação da Áustria
e a invasão da Polônia, em 1939, pela Alemanha Nazista não resultaram na participação
dos Estados Unidos na guerra que ameaçava assolar a Europa, entretanto o governo
americano, encabeçado pelo presidente Roosevelt, pôs em prática a partir de março de
1941, o programa de Lend-Lease, que afirmava a garantia de suporte logístico e de
material bélico aos aliados, principalmente a Grã-Bretanha e, por extensão, a União
Soviética (DAVIES, 2008, p. 78, p. 189).
Mas esta estratégia de isolamento e apoio restritamente logístico não se manteve
por muito tempo, pois, no mesmo ano, mais precisamente no dia 7 de dezembro, o Japão
bombardeou a frota marítima americana estacionada no Pacífico, em Pearl Harbor, numa
resposta a uma série de “ofensas” americanas, entre elas o congelamento de bens
japoneses no país. Esse dia ficou marcado na história americana como o “Dia da Infâmia”.
O ataque a Pearl Harbor arrastou, em definitivo, os Estados Unidos para a Segunda
Guerra Mundial, sobretudo devido a declaração de guerra de Hitler e Mussolini à nação
americana três dias depois do ataque japonês. Desta forma, a maior potência econômica
entrou de fato na guerra e, ao lado da Grã-Bretanha, passou a comandar os Aliados
Ocidentais na luta contra as Potências do Eixo.
Quando os Estados Unidos entraram de fato na guerra, a questão sobre a
segregação racial no Exército Americano se tornou um tópico de discussão, sobretudo
pelos líderes negros dos movimentos civis. Dois lados foram estabelecidos, a comunidade
negra defendia a integração do exército e as mesmas oportunidades para os soldados
negros e brancos; por outro lado, o Departamento de Guerra americano e alguns políticos
afirmavam que o Exército Americano não poderia ser um laboratório de experimentos
sociais objetivando mudar as estruturas sociais (MCGUIRE, 1983, p. 147).
Entretanto, para entender o desenrolar deste debate, é preciso voltar para as
origens da Negro Policy, estabelecida em dois pilares: o estereótipo do soldado negro,
construído pelo Exército, de que ele não é um bom soldado, que é covarde, não-confiável
e que não possui as principais virtudes de um guerreiro. O segundo pilar é baseado no
entendimento de que permitir que o soldado negro tenha experiência de combate e com
armas de fogo, equiparia os negros para conquistar a igualdade racial por força nos
Estados Unidos (REDDICK, 1949, p. 12). As especificidades dessa política foram
estabelecidas desde a Guerra de Independência Americana e vigoraram após o fim da
Segunda Guerra Mundial; não era uma política explicitamente escrita, porém permeava
todos os âmbitos do Exército Americano.
Na Segunda Guerra Mundial, algumas alterações foram feitas, sobretudo quando
o Selective Service and Training Act se tornou uma lei em 1940 (MCGUIRE, 1983, p.
147), e permitiu-se algumas liberdades para os afro-americanos, sobretudo em sua
segunda cláusula, que proibia a descriminação na seleção e treinamento dos soldados;
entretanto a terceira cláusula determinava que o Departamento de Guerra estaria
responsável por decidir quem seria ou não aceito nas Forças Armadas, o que diminuiu o
otimismo da comunidade afro-americana.
As condições dos soldados negros não se tornaram tão melhores como era
esperado, a segregação nos campos de treinamento e nas bases militares continuou e,
apesar do número de afro-americanos inscritos no exército ter aumentado, o número de
oficiais negros correspondia a 1% de todos os oficiais do Exército (REDDICK, 1947, p.
26).
“Os negros tinham suas próprias unidades, refeitórios, alojamentos, tribunais –
nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Bélgica, não importava onde” (AMBROSE, 2008,
p. 403).
A 92ª Divisão de Infantaria estava inserida neste contexto de segregação. Ela era
a “única grande unidade de infantaria composta de negros que teve serviço ativo na
Segunda Guerra Mundial” (MAXIMIANO, 2010, p. 338), ainda que sob o comando de
oficiais brancos – como era determinado pela negro policy –. O emprego dessa divisão
no combate se deu somente depois de Roosevelt ceder a pressões de duas organizações
afro-americanas, o CORE (Congress on Racial Equality) e a NAACP (Nacional
Advancement Association of Colored People), que eram favoráveis ao envio de tropas
segregadas para o front (MAXIMIANO, 2010, p. 341).
A Buffalo Division, como era conhecida a 92ª Divisão, estava incorporada no V
Exército Americano, o mesmo no qual seria posteriormente inserida a Força
Expedicionária Brasileira e, por estarem incorporadas no mesmo Exército, tanto a FEB
quando a 92ª Divisão atuaram no mesmo setor de operações e, embora não tenham sido
utilizadas juntas em combate, a proximidade das duas forças permitiu uma certa interação
entre elas e direcionou a atenção dos correspondentes de guerra da imprensa negra, que
acompanhavam a 92ª Divisão, para o Exército Brasileiro, fazendo-os perceber e noticiar
a não-existência de segregação racial entre os soldados brasileiros, particularidade que
foi noticiada por alguns periódicos afro-americanos, entre eles o The Pittsburgh Courier.
3 A FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA E A ENTRADA DO BRASIL NA
SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
O posicionamento do Brasil perante a guerra que começara em 1939 era duvidoso
até janeiro de 1942, momento no qual houve o rompimento definitivo das relações
diplomáticas entre o Brasil e os países que compunham o Eixo. Este rompimento se deu,
em parte, devido as constantes pressões americanas, intensificadas depois do ataque
japonês aos Estados Unidos, em 1941, para que, o então presidente, Getúlio Vargas
abdicasse da neutralidade e definisse um lado ao qual se aliaria. Embora parte do mundo
tivesse me mobilizado para o combate contra o nazifascismo, a motivação para a entrada
na guerra era muito mais econômica e política do que ideológica, considerando o
posicionamento inicial de Vargas e, consequentemente, do seu governo (MAXIMIANO,
2010, p. 37).
Em janeiro de 1942, o Brasil rompe as relações diplomáticas com os países do
Eixo, fazendo com que a Alemanha passasse a considerar o Brasil como um país hostil
(FERRAZ, 2012, p. 47). O fator determinante que levou a esse posicionamento alemão
foram as bases aéreas cedidas aos americanos no Nordeste brasileiro e a aproximação do
governo com os Aliados, principalmente com os Estados Unidos. O rompimento das
relações ocasionou uma sequência de ataques alemães a embarcações nacionais, entre
fevereiro e agosto de 1942, com os piores ocorrendo em agosto desse ano, quando cinco
navios mercantes foram torpedeados e, consequentemente, afundados (SILVA, 1975, p.
35), tais ataques não poderiam ser ignorados, uma vez que ocorreram em águas brasileiras,
então, devido a isso, em 22 de agosto de 1942, Getúlio Vargas declara guerra ao Eixo e
institui o estado de beligerância (FERRAZ, 2012, p. 47).
Houve inúmeras discussões sobre a possibilidade de mandar um Corpo
Expedicionário para a linha de frente como suporte aos Aliados. O plano inicial era
recrutar, selecionar e treinar cerca de cem mil combatentes para criar uma força
expedicionária, composta por várias divisões de infantaria e blindadas, que lutaria lado a
lado com os Aliados nos Teatros de Operações (MAXIMIANO, 2010, p. 37).
Tais negociações para a formação de uma força expedicionária foram encabeçadas
pelos Estados Unidos e, após alguns revezes, foi criada, em 1943, a Força Expedicionária
Brasileira, que contaria com cerca de 25.334 soldados (MAXIMIANO, 2010, p. 38).
Embora a FEB tenha sido criada em 1943, ela só foi mandada para o front de
batalha em 1944, tendo esse deslocamento dos soldados ocorrido em cinco escalões
distintos. O primeiro deles atravessou o Atlântico e aportou em terras italianas – mais
precisamente em Nápoles – no dia 16 de julho, tal contingente era composto por
aproximadamente cinco mil homens (FERRAZ, 2012, p. 79).
Os dois escalões seguintes embarcaram no dia 22 de setembro e chegaram à Itália
em 6 de outubro (MAXIMIANO, 2010, p. 51). Nos meses seguintes foram embarcados
os dois últimos escalões, completando, assim o contingente de cerca de 25 mil brasileiros
enviados à Itália. Logo que os escalões chegaram em terras italianas, foram incorporados
ao 4º Corpo do V Exército Americano, uma força multinacional com o intuito de
combater na Frente Mediterrânea. O V Exército Americano era composto de tropas das
mais diversas nacionalidades, reunindo americanos, ingleses, poloneses, canadenses,
indianos, neozelandeses, brasileiros e outros (FERRAZ, 2012, p. 79).
As primeiras baixas sofridas pela FEB aconteceram em setembro de 1944, quando
as missões eram mais frequentes e os riscos, maiores. Cerca de 15 mil soldados brasileiros
participaram das batalhas na linha de frente, estando diretamente envolvidos no combate
(FERRAZ, 2012, p. 81). Grande parte das missões destinadas à FEB eram patrulhas e
ações pontuais para tomar posições, se constituindo em uma guerra de objetivos limitados
(FERRAZ, 2012, p. 81-2).
Os dois momentos mais marcantes na campanha da Força Expedicionária
Brasileira foram os combates em Monte Castelo, entre 24 de novembro de 1944 e 21 de
fevereiro de 1945, no qual o ataque combinado com a 10ª Divisão americana foi bem-
sucedido e Monte Castelo foi tomado. E, o segundo momento, foi a tomada da cidade de
Montese, em 14 de abril de 1945. Duas semanas após a tomada de Montese, a FEB rendeu
a 148ª Divisão de Infantaria alemã, tomando como prisioneiros cerca de 15 mil homens
(FERRAZ, 2012, p. 83-4).
O período ativo da Força Expedicionária Brasileira se estendeu até 8 de maio de
1945, com o fim das operações no Teatro de Guerra do Mediterrâneo, porém a guerra na
Itália havia se concluído no dia 2 de maio, com a rendição de todos os soldados alemães
presentes naquela área. A Força Expedicionária se manteve na Itália até o dia 3 de junho
como tropa ocupante e retornou ao Brasil. A campanha da FEB, na Itália, resultou na
morte de 443 soldados brasileiros (FERRAZ, 2012, p. 84).
A participação da Força Expedicionária Brasileira num Teatro de Operações
periférico pode ter causado diversas interpretações diferentes sobre a sua importância e o
papel que desempenhou na vitória dos Aliados contra as Potências do Eixo
(MAXIMIANO, 2010; FERRAZ, 2012), entretanto a sua atuação não passou
despercebida, os periódicos afro-americanos reconheceram o valor da FEB como uma
força racialmente integrada e noticiaram esse fato ao longo do período que estiveram em
contato com os soldados brasileiros. Um desses foi o correspondente de guerra Ollie
Harrington, ligado ao NAACP e que mencionou a FEB no jornal The Pittsburgh Courier,
narrando a existência do Exército que lutava sem barreiras raciais, com “[...] brasileiros
de peles ‘negra, branca e vermelha’ convivendo harmonicamente” (MAXIMIANO, 2010,
p. 343).
4 THE PITTSBURGH COURIER E A FORÇA EXPEDICIONÁRIA
BRASILEIRA
Entre 17 de junho de 1944 a 16 de junho de 1945, dezessete edições do The
Pittsburgh Courier veicularam reportagens sobre a Força Expedicionária Brasileira, a
entrada do Brasil na guerra e a existência de uma espécie de “democracia racial” existente
no Brasil.
O jornal The Pittsburgh Courier apresentou uma média de cinquenta edições por
ano, cinquenta e três em 1944 e cinquenta e duas em 1945, dentre esse número de edições
ocorreu a incidência de dez edições com reportagens relacionadas ao Brasil, em 1944, e
em oito edições, em 1945. Percebe-se, dessa forma que, apesar da preocupação em
noticiar a existência de um exército racialmente integrado e de uma sociedade
“racialmente democrática”, a participação brasileira na guerra não era o foco do periódico,
que se mantinha noticiando com destaque a participação da 92ª Divisão de Infantaria e
assuntos internos dentro da perspectiva de um jornalismo de protesto e do jornalismo
negro.
Para a análise, dentro da perspectiva da análise de conteúdo proposta por Laurence
Bardin, foi definida três grandes categorias para efetuar a metodologia de análise, todas
as reportagens analisadas estão inseridas em uma dessas categorias – entretanto, somente
em uma, sem se entrecruzarem –. Desta forma, foram estabelecidas as categorias de
Reconhecimento, Exemplificação e Comparação, unindo elementos comuns identificados
dentro dessas categorias.
A primeira categoria analisada, Reconhecimento, diz respeito a todas as
reportagens veiculadas no The Pittsburgh Courier que consideram a Força
Expedicionária Brasileira e o Exército Brasileiro, em específico, e a sociedade brasileira,
no geral, como parte da luta contra o nazi-fascismo no front externo, dentro de parte da
perspectiva da Campanha de Double Victory, ou seja, o reconhecimento do Brasil como
um aliado na guerra. O panorama geral que pode ser traçado é o noticiamento da
participação efetiva do Brasil na Segunda Guerra Mundial e suas relações com as tropas
do V Exército com quem os expedicionários tinham contatos. Dentro dessa categoria se
insere cinco reportagens1, todas comentando sobre a participação do Brasil na Segunda
Guerra Mundial.
A primeira reportagem veiculada no The Pittsburgh Courier sobre o Brasil, em
1944, fala sobre as declarações de Getúlio Vargas sobre a entrada do Brasil na guerra e a
1 São elas dos seguintes dias: 29 abril 1944; 17 de junho de 1944; 25 de novembro de 1944; 6 de janeiro de
1945; 28 de abril de 1945 e 16 de junho de 1945. Todas podem ser consultadas no site
http://newspapers.com.
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ironia presente em um país ditatorial que entra em um conflito, do lado de países
democráticos, para lutar em prol da democracia na Europa. A reportagem começa com a
frase “joke of the week” (SCHUYLER, 1944, p. 1), demonstrando um tom sarcástico,
beirando ao negativo, para com o Brasil, mas nota-se que as críticas são dirigidas
exclusivamente ao governo brasileiro, em momento algum as expandindo para a
sociedade brasileira no geral, portanto, não há menção a sociedade, desta forma não se
inserindo nas análises seguintes. Entretanto, é perceptivo que o tom negativo apresentado
nessa reportagem não será continuado nas seguintes, quando passará a haver contato entre
os correspondentes de guerra e a Força Expedicionária Brasileira, adequando-se o tom de
mensagem com as intenções e percepções que se almeja comunicar.
A mudança de tom, voltando a ser levemente negativo, só ocorrerá em algumas
reportagens nos anos do pós-guerra, entretanto, o tom positivo ao se referir a sociedade
brasileira, em específico e ao Brasil, como um todo, ainda será predominante nas páginas
do jornal.
Destaca-se também a reportagem do dia 17 de junho de 1944, com o título
“Brazilians set for action”, esta foi a primeira notícia a citar nominalmente a Força
Expedicionária Brasileira, sendo o início do acompanhamento da FEB pelos
correspondentes de guerra afro-americanos e da veiculação de notícias sobre a Força
Expedicionária nas páginas do Courier.
A segunda categoria, Exemplificação, se refere a reportagens que usaram a Força
Expedicionária Brasileira, direta ou indiretamente, como forma de exemplo para as
reivindicações do jornal por maiores direitos civis para os negros americanos. Os
exemplos apresentados pelo periódico se referem a medidas que o Exército Americano
deveria tomar que já são existentes dentro do Exército Brasileiro, com foco na não-
segregação das forças brasileiras.
Nela constam três reportagens2, sendo a destacada veiculada no dia 7 de outubro
de 1944 e escrita por Ollie Harrington, um dos correspondentes de guerra que escrevia
para o Courier. Ela é breve e sutil, pois está centrada nas ações da 92ª Divisão de
Infantaria, porém por menor que seja a menção à Força Expedicionária Brasileira, sua
2 São elas dos seguintes dias: 17 de junho de 1944; 7 de outubro de 1944 e 17 de março de 1945. Todas podem ser consultadas no site http://newspapers.com.
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intenção é clara. A FEB é mencionada somente uma vez e em três palavras: “[...] os
elementos da 92ª divisão, com o Exército Brasileiro não-segregado assegurando o flanco
direito...” (HARRINGTON, 1944, p. 1)3. É interessante notar a escolha de palavras para
adjetivar as forças brasileiras lutando próximo a 92ª Divisão, o correspondente não
necessariamente precisaria assinalar o fato do Exército Brasileiro não ser segregado, uma
vez que duas reportagens anteriores já haviam se debruçado sobre o fato – nas edições de
5 de agosto e 12 de agosto do mesmo ano –.
Entretanto, reafirmar a não existência de segregação reforça o discurso do
periódico de colocar a Força Expedicionária Brasileira, como avatar do Exército, em uma
posição de exemplo a ser seguido, reforçando também as reivindicações do jornal por
Forças Armadas não-segregadas nos Estados Unidos. Pode-se inferir, então, a intenção
do Courier de manter a impressão, nos leitores, da possibilidade real de ter suas
reivindicações atendidas, já que um dos aliados dos Estados Unidos praticava a
democracia racial dentro de suas Forças Armadas e de sua própria sociedade.
A terceira categoria, a de Comparação, foi a que mais teve incidência, contando
com quinze4 das trinta e uma reportagens analisadas. Se coloca então a questão de por
que? Poderia ela ser o meio mais efetivo de exprimir as intenções do Courier?
Ao comparar as ações e configurações do Exército Brasileiro e da sociedade
brasileira, no geral, o Courier estabelece em seu discurso quais decisões o Estado
americano deveria tomar para garantir plenos direitos aos seus cidadãos negros e de que
forma os Estados Unidos poderiam aprender com o seu vizinho Brasil, mantendo sempre
o tom positivo ao se referir à Força Expedicionária Brasileira e ao país.
Duas reportagens são dignas de nota nessa categoria, as do dia 5 e 12 de agosto
de 1944, nelas fica explícito o posicionamento do periódico frente aos problemas raciais
dos Estados Unidos e sua visão do Brasil.
3 Tradução livre da autora. Grifo da autora. Trecho original: “[...] the elements of the 92nd division, with
the unsegragated Brazilian army holding the right flank...” 4 São elas dos seguintes dias: 5 de agosto de 1944; 12 de agosto de 1944; 4 de novembro de 1944; 11 novembro de 1944; 2 de dezembro de 1944; 29 de setembro de 1945; 29 de setembro de 1945; 8 de
dezembro; 15 de dezembro de 1945; 19 de outubro de 1946; 22 de novembro de 1947; 15 de maio de 1948;
5 de junho de 1948; 21 de agosto de 1948; 27 de novembro de 1948. Todas podem ser consultadas no site
http://newspapers.com.
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Em 5 de agosto de 1944 verifica-se uma das maiores veiculadas sobre a Força
Expedicionária Brasileira, escrita pelo correspondente de guerra do Courier, Ollie
Harrington, a notícia tem o título “Black, White, Red Brazilian Troops March, Socialize
Freely In Naples”.
Harrington descreve os pequenos grupos de soldados andando lado a lado ao longo
da Via Roma e preenchendo as mesas nas calçadas dos cafés italianos, impressionando
os napolitanos que os observavam, curiosamente, devido ao “[...] espetáculo sem
precedentes de tropas brancas, negras e 'vermelhas', obviamente inconsciente de
quaisquer diferenças raciais e aproveitando os deleites dessa bela cidade” 5
(HARRINGTON, 1944, p. 9).
Nota-se que Harrington descreve os soldados brasileiros como inconscientes de
quaisquer diferenças raciais existentes entre eles, dando a noção de que uma verdadeira
democracia étnica reinava entre as tropas brasileiras, além de serem capazes de desfrutar
dos mesmos espaços, juntos, sem a segregação que ocorreria caso eles estivessem
inseridos no Exército Americano.
Em 12 de agosto de 1944 foi veiculada a reportagem “Brazil Shows The Way”,
relatando a chegada da primeira tropa do Exército Brasileiro nas linhas de frente onde as
batalhas estão acontecendo e que “(...) sua chegada causou aos soldados aliados muitas
reflexões, especialmente os soldados de cor” (BRAZIL, 1944, p. 6).
A reportagem prossegue comentando o fato de que todos os brasileiros servem
juntos no Exército independente da pigmentação de pele, ao contrário do que acontece
nos exércitos americano, britânico e francês. Ressalta que “todos os brasileiros são irmãos
de armas, servindo lado a lado em uma causa comum, uma imagem de democracia real”
(BRAZIL, 1944, p. 6). “Os brasileiros não falam tanto sobre democracia, fraternidade e
unidade nacional de todos os elementos quanto falam os seus Aliados, mas eles praticam
o que os outros pregam” (BRAZIL, 1944, p. 6).
A reportagem cita a oportunidade que os Estados Unidos têm de estabelecer seu
exército dentro de linhas democráticas e a promulgação do Selective Service Act – que
deveria cessar as discriminações raciais dentro do Exército Americano –, mas, continua
5 Tradução livre da autora. Trecho original: “[...] unprecedented spectacle of white, black and red troops
obviously unconscious of any racial differences and enjoying the delights of this beautiful city”.
a reportagem, o jim crowismo prevalece dentro das Forças Armadas Americanas, como
se a lei promulgada não existisse.
O tom de crítica a discriminação racial, especialmente dentro dos Estados Unidos,
é bastante incisivo, recriminando a não aplicação real do act promulgado pelo presidente
Roosevelt e a insistência de manter a lógica jim crowista dentro das Forças Armadas
Americanas.
Sobre o Brasil, é notável o tom positivo, até mesmo o colocando num patamar a
cima dos outros países citados, o próprio título estabelece essa percepção inicial, pois
coloca o Brasil numa posição de líder; ele lidera e mostra o caminho a ser seguido nas
questões de democracia étnica. Mais do que isso, pode-se inferir a intenção do jornal de
reafirmar os pontos onde os Estados Unidos falham nessa tarefa, sobretudo ao citar a
insistência de manter as Forças Armadas segregadas, voltando à motivação da Campanha
de Double Victory, que via no fim da discriminação racial dentro das Forças Armadas
como o primeiro passo para a igualdade racial plena dentro da sociedade americana.
Nota-se também a reafirmação do Brasil como um país que pratica a democracia
ao invés de teorizar sobre ela, ao mesmo tempo que pinta a imagem de soldados
brasileiros lutando lado a lado por uma causa comum sem que a cor da pele tenha qualquer
influência nisso, numa fraternidade plena, sem nunca adereçar possíveis atos de racismo
dentro da Força Expedicionária Brasileira, demonstrando que o discurso é construído em
cima de uma noção da FEB e do Exército Americano, não de sua faceta real – que
provavelmente carregava tensões raciais muito parecidas com as do Exército Americano,
embora certamente mais veladas –. Será essa a idealização máxima do Exército Brasileiro
nas páginas do Courier, um lugar de comunhão entre todas as raças, onde todos lutam
juntos por uma mesma causa.
Uma relação possível de ser feita é a forma como o Brasil passa a ser visto como
uma democracia, ao menos étnica, enquanto a primeira reportagem sobre o país no ano
de 1944 falava exatamente da contradição existente em um governo que se dispunha a
lutar pela democracia na Europa enquanto ele mesmo não era democrático. O discurso do
jornal produz um afastamento entre o governo brasileiro e a sociedade brasileira, sem
nunca mais o adereçar quando noticia assuntos relativos ao Brasil.
5 CONSIDERÇÕES FINAIS
A Força Expedicionária Brasileira e o Brasil, como um todo, serviram durante
anos às reivindicações do The Pittsburgh Courier para maiores direitos civis e melhores
oportunidades de vida para os negros americanos. Mesmo com uma leve mudança de tom
no ano de 1948, o jornal continuou, majoritariamente, se referindo a sociedade brasileira
como um bastião de igualdade e democracia étnica.
Concluindo, percebe-se que o Courier de fato idealizou e construiu a noção de
uma sociedade brasileira racialmente igualitária, de modo que essa idealização foi usada
para reforçar o discurso do periódico que intendia a advogar em prol de amplos direitos
civis para os negros americanos.
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