XIV ENCONTRO NACIONAL DA ABET 2015 - 2015 - Campinas
GT 10 – Condições de Trabalho e Saúde
TRABALHO E SOFRIMENTO NAS ORGANIZAÇÕES EDUCACIONAIS
Sonia Silva Barreto
TRABALHO E SOFRIMENTO NAS ORGANIZAÇÕES EDUCACIONAIS
Resumo: Este artigo tem como objetivo contribuir no debate sobre as práticas do assédiomoral nas organizações públicas estaduais de ensino e seus desdobramentos na saúde dotrabalhador docente. Tendo como ponto de partida as transformações no mundo trabalho e areforma do aparelho de Estado brasileiro, a pesquisa defende a tese de que o assédio moralcumpre um papel em função do capital ao se constituir como instrumento disciplinar quebusca assegurar a subordinação dos professores aos métodos da nova organização do trabalhoem vigor nas escolas da rede estadual de ensino, em Sergipe. A investigação tem por base apesquisa de campo, cujos dados iniciais já sinalizam a relação entre assédio moral eorganização do trabalho. Neste artigo, as discussões destacam dois momentos. No primeirodiscute-se o impacto dos novos métodos de organização do trabalho na subjetividade dotrabalhador, evidenciando o papel que o assédio moral assume nesse processo de mudanças.Em seguida a análise focaliza o assédio moral e seus efeitos sobre a saúde do trabalhadordocente.
Palavras-chave: Transformações no mundo do trabalho. Nova organização do trabalho.Assédio moral. Organizações educacionais. Sofrimento do trabalhador docente.
1 INTRODUÇÃO
A centralidade que a educação vem ocupando na agenda política da sociedade
contemporânea revela sua importância no processo de mudanças que se manifesta em
diferentes dimensões da vida societária, seja no mundo do trabalho, seja nos espaços social,
político e cultural. É possível que essas mudanças tenham sua origem nos anos de 1960,
quando o capitalismo trilha novos caminhos diante da crise de lucratividade do capital e da
explosão dos movimentos estudantis e operários.
O movimento estudantil, denominado por Eric Hobsbawm (1998, p.312) de Revolução
Cultural, sacudiu a juventude nos anos 60 e 70 do século XX, modificando, quase que
radicalmente, hábitos, costume e valores sociais vigentes na época.
Em 1968, estimulados pela extraordinária erupção dos estudantes parisienses, os atores do
movimento cultural se rebelaram desde os EUA e México, no Ocidente, até a Polônia,
Tchecoslováquia e Iugoslávia. O marco da revolução foi em maio do mesmo ano quando os
jovens franceses saíram às ruas para protestar contra os valores consagrados pela sociedade
(HOBSBAWM, 1998, p.293).
Os movimentos estudantis se inscrevem no contexto da crise de legitimidade do sistema
capitalista na medida em que suas críticas atacavam o imperialismo, a exploração do capital
sobre o trabalho, a ditadura militar que se espalhava pela América Latina sob a égide dos
países hegemônicos. Seus protestos também traduziam o repúdio da classe trabalhadora diante
das novas técnicas de produção introduzidas no chão da fábrica em função da intensificação
do trabalho. No tocante ao sistema de ensino, os estudantes franceses puseram em xeque a
fragmentação do conhecimento, as formas de organização do currículo e a separação entre
teoria e prática (FOLLARI, 1997, p.129) por considerar que tais procedimentos dificultavam
a compreensão crítica do capitalismo, a análise da complexa realidade social.
Tanto na Europa como na América Latina, os motins operários e as rebeliões estudantis
refletiam sua face revolucionária. Enquanto parte da juventude europeia investia contra o
capitalismo, inclinando-se para o socialismo, na América Latina a instabilidade social e
política e os desdobramentos da guerra fria imprimiram cores mais fortes ao movimento em
questão. Os estudantes latino-americanos, ampliando seu leque de reivindicações,
conclamavam também a queda da ditadura militar e a ruptura das condições de dependência
de seus países em relação aos EUA.
A explosão da juventude não pode ser vista como algo separado do contexto econômico e
político dos anos de 1960. Ela sinalizava as contradições no momento em que o fordismo
atingia o auge de sua maturidade ao mesmo tempo em que emitia sinais de enfraquecimento,
visíveis, sobretudo, a partir de 1973 com a crise do petróleo. Nos anos de 1980, a
reestruturação do capitalismo promoveu profundas transformações em diversos aspectos da
vida societária. No mundo do trabalho, surgem novas técnicas de organização e gestão do
trabalho, possibilitando ganhos de produtividade inimagináveis em toda a história do
capitalismo. Esses ganhos decorrem da brutal intensificação da exploração do capital que se
realiza por meio de várias formas de violência contra o trabalhador. Assim, integrar o
trabalhador a essa nova realidade exige um esforço considerável, uma vez que essa caminhada
vem sendo realizada com dores, sacrifícios e muito sofrimento.
É nesse ambiente de perplexidade e sofrimento que a nossa pesquisa se desenvolve com os
professores da rede estadual de ensino, em Sergipe. O objetivo da pesquisa é investigar as
práticas do assédio moral em sua relação com os novos métodos de organizar e gerir o
trabalho em vigor nas organizações escolares da rede pública, bem como suas implicações
sobre a saúde do trabalhador docente, tendo como fonte de informação a pesquisa de campo.
2 O NOVO MUNDO DO TRABALHO E A CAPTURA DA SUBJETIVIDADE DO
TRABALHADOR
A queda da Bolsa de Valores de Nova York, ocorrida em 24 de outubro de 1929, descortinou
a depressão econômica que já se manifestava durante os anos de 1920, período de grande
prosperidade nos Estados Unidos.
A Grande Depressão impactou todos os segmentos da sociedade norte-americana e fora dela.
Os preços dos produtos agrícolas, tanto dos alimentos como de matérias-primas despencaram,
levando centenas de fazendeiros à falência. Entre 1929 a 1931 a produção industrial caiu em
torno de um terço. Nos EUA produziu a ruína dos fazendeiros, a falência de cerca de cem mil
empresas, o desemprego de mais de 13 milhões de trabalhadores, além de milhões de
subempregados que marcaram os anos de depressão. É no contexto dessa crise que Presidente
Roosevelt adotou o New Deal. Desde então, o Estado se ocuparia do planejamento da
economia e adotaria políticas sociais, suplantando a economia de livre mercado.
A intervenção do Estado na economia terá um papel favorável para o desenvolvimento do
fordismo. Para Gounet (2002, p.18), a data básica que simboliza a criação do fordismo é
1913, ano de implantação da produção em linha de montagem na indústria de automóvel, em
Michigan, e para Harvey (2002, p.121) a data é 1914, ano em que Henry Ford institui cinco
dólares pela jornada de trabalho de 8 horas.
Segundo Ford, a produção em massa dependia do consumo em massa dos produtos
industrializados. Aumentando os salários e reduzindo a jornada de trabalho de seus operários,
Ford apostou na transformação de seus operários em consumidores das mercadorias que
produziam. Mas a constituição de uma sociedade baseada no consumo em massa exigia que
os protagonistas do processo de desenvolvimento capitalista assumissem novos papéis. Assim
coube ao poder corporativo realizar altos investimentos em capital fixo; o poder sindical1
deveria colaborar com o capital no sentido de reduzir a resistência dos trabalhadores em torno
das técnicas de produção fordista; e o Estado se comprometia em promover condições
indispensáveis ao crescimento da produção e do consumo em massa (HARVEY, 2002, p.29).
Com a ampliação de suas funções, o Estado terminou favorecendo o projeto fordista, pois
1 “Para Heloani, [...] os sindicatos não tinham papel revolucionário, mas eram fortes basicamente em suasreivindicações econômicas. O fordismo realizava o repasse da produtividade aos salários, geralmente porconvecção coletiva, fazendo com que as reivindicações dos sindicatos fossem coerentes com a lógica dosistema” (2003, p.51).
ambos seguiam o propósito de manter o crescimento do consumo e as taxas de lucro do
capitalista, esta última sempre vulnerável à concorrência intercapitalistas e aos conflitos entre
capital e trabalho.
Do ponto de vista microeconômico, o fordismo inclui um conjunto de mudanças introduzidas
por Ford no processo de trabalho. Na perspectiva de Antunes, o fordismo é entendido:
[...] como a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se aolongo deste século, cujos elementos constitutivos básicos eram dados pela produçãoem massa, através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos; atravésdo controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro taylorista e da produção emsérie fordista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das funções;pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho; pela existênciade unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituição/consolidação dooperário-massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões (ANTUNES,2005, p. 25). (grifo do autor).
A expansão e a consolidação da organização fordista do trabalho, tanto nos Estados Unidos
como fora dele ocorreu através da concorrência intercapitalista, da implantação de filiais em
outros pais e das políticas implementadas após a Segunda Grande Guerra (1939-1945). No
tocante a esta questão Harvey afirma:
De desenvolvimento lento fora dos Estados Unidos antes de 1939, o fordismo seimplantou com mais firmeza na Europa e no Japão depois de 1940 como parte doesforço de guerra. Foi consolidado e expandido no período de pós-guerra, sejadiretamente, através de políticas impostas na ocupação [...], ou indiretamente, pormeio do Plano Marshall e do investimento direto americano subsequente (2002, p.131).
Nos anos posteriores à Segunda Grande Guerra, o capital imprime maior intensificação do
trabalho por meio da automação, provocando o absenteísmo e ao mesmo tempo as greves dos
operários contra a automação. Nos anos de 1960, enquanto o fordismo dava sinais de
esgotamento, de que algo corroía suas estruturas, a Toyota experimentava novas formas de
organizar o trabalho na indústria automobilística.
Nessa época observa-se a queda nas taxas de lucro e a redução nos investimentos. Cai o poder
de compra e o mercado se retrai. Em consequência, o desemprego aumenta e os trabalhadores
recorrem aos benefícios assegurados pela previdência social, aumentando o déficit público.
Estes e outros fatores levaram o Ocidente a dirigir o seu olhar para as mudanças
organizacionais que se processavam no Japão. Tais mudanças significavam a saída para a
crise do fordismo.
Na citação abaixo, Coriat faz as seguintes considerações em torno do rápido movimento
internacional de difusão do modelo japonês:
[...] se as ‘”lições” japonesas são em toda parte copiadas e recopiadas, é por queelas correspondem à fase atual de um capitalismo caracterizado pelo crescimento daconcorrência, pela diferenciação e pela qualidade, condição original, lembremo-nos,da constituição do método do ohnismo, e no qual, por esta mesma razão, os teóricosjaponeses da gestão de produção dispõem de algum avanço. Se em todo lugar sebusca impor este método, é que em seu princípio ele é portador de um modo deextração de ganhos de produtividade que corresponde às normas atuais deconcorrência e competição entre firmas (CORIAT, 1994, p.164). (grifo do autor).
Na citação acima, Coriat trata o toyotismo como o novo modelo de desenvolvimento do
capitalismo. Seu entusiasmo pelo método japonês é visível em seu livro Pensar pelo Avesso.
Uma de suas afirmações diz:
[...] se as novas práticas organizacionais conseguem afirmar-se no respeito e noreforço da regulação pelo contrato, é toda a democracia nas relações de trabalho quepode se ver fundada sobre bases renovadas. Bases estas tão sólidas e dinâmicas quedariam lugar tanto à equidade quanto à eficácia econômica (1994, p.165).
Ao contrário de Coriat, Antunes (2005) contesta a afirmação de que o modelo Toyota de
organização do trabalho esteja sintonizado com as concepções da social-democracia. Ao
contrário, o modelo japonês apresenta perfeita sintonia com a lógica neoliberal. Convergimos
nessa mesma direção defendida por Antunes. Na Toyota não há relações democráticas entre
capital e trabalho por diversas razões: considerando que o sindicato de envolvimento, ou
“sindicato-casa”, expressa o ideário patronal, o “espírito Toyota”, a “família Toyota”, ele se
revela como um sindicato manipulatório que se utiliza da repressão e cooptação para submeter
os trabalhadores ao universo da empresa; considerando que a incessante busca para alcançar
níveis cada vez mais altos de produtividade resulta às vezes na morte subida no trabalho
(karoshi); considerando que o modelo japonês se fundamenta no princípio do não-custo, isto
é, do emprego mínimo de trabalhadores, o desemprego estrutural torna-se sua consequência
imediata. E tem mais: o número reduzido de operários e o desenho organizacional forçam a
polivalência, a multifuncionalidade e a flexibilidade da força de trabalho, concorrendo para a
evaporação dos postos de trabalho e para o aumento da exploração do trabalhador. Portanto,
o que o modelo Toyota de organização do trabalho revela não são relações democráticas, mas
total subsunção do trabalho ao capital que proporciona ganhos consideráveis com reduzidos
investimentos.
O modelo Toyota de produção surge no decorrer de sucessivas inovações na organização do
trabalho experimentadas por Taiichi Ohno2, entre as décadas de1950 a 1970. O referido
modelo, segundo Gounet, se caracteriza como “um sistema de organização da produção
baseado em uma resposta imediata às variações da demanda e que exige, portanto, uma
organização flexível do trabalho (inclusive dos trabalhadores) e integrada” (2002, p.29). Já
Coriat afirma que as novas formas de organização do trabalho “constitui um conjunto de
inovações organizacionais cuja importância é compatível ao que foram em suas épocas as
inovações organizacionais trazidas pelo taylorismo e pelo fordismo” (1994, p.24). Para Ohno,
o modelo teve sua origem na:
[...] necessidade particular em que se encontrava o Japão de produzir pequenasquantidades de numerosos modelos de produtos; em seguida evoluiu para tornar-seum verdadeiro sistema de produção. Dada sua origem, este sistema éparticularmente bom na diversificação. Enquanto o sistema clássico de produção demassa planificado é relativamente refratário à mudança, o sistema Toyota, aocontrário, revela-se muito plástico; ele adapta-se bem às condições de diversificaçãomais difíceis. É por que ele foi concebido para isso (OHNO apud CORIAT, 1994, p.30) (grifo do autor).
Coriat aponta três determinantes estruturais responsáveis pela formação do novo modelo de
organização do trabalho: i) a demanda é fator determinante na organização da produção; ii)
em decorrência da crise da Toyota, em 1949, esta se alia aos banqueiros que em troca de
investimentos impõem condições, dentre elas: separação entre fabricante e distribuição;
redução do número de trabalhadores empregados na empresa e adequação da produção de
automóveis às quantidades vendidas pela sociedade de distribuição; iii) repressão ao
movimento sindical (1994, p.43 a 46).
Correspondendo às determinações dos banqueiros, a Toyota tinha que produzir em pequenos
lotes, reduzir o número de trabalhadores e procurar um jeito de aumentar seus lucros sem
ampliar a produção de automóveis.
A produção em pequenos lotes aumenta o controle sobre o processo de produção como
também sobre o trabalho do operário, cujo controle, segundo Ohno, se realiza por meio do
2 Taiichi Ohno (1912-1990) é considerado o pai do modelo japonês de organização do trabalho. Engenheiro daToyota, ocupou diversos cargos na empresa, um deles o de vice-presidente executivo. Publicou o livro Osistema Toyota de produção além da produção em larga escala. Nos anos de 1950 teve a colaboração deShigeo Shingo (1909-1990), considerado o outro mestre do modelo Toyota de produção. Foi consultor daToyota e escreveu vários livros, dentre eles O sistema Toyota de produção do ponto de vista da engenharia deprodução.
método Just-in-time e da autonomação3. O just-in-time, na perspectiva de Shingo, significa
aquisição do produto no tempo certo sem geração de estoque (1996, p.103). Já a autonomação
refere-se às máquinas automatizadas com um toque humano, pois além de funcionarem
sozinhas elas apresentam o dispositivo de parada automática, cujo objetivo é interromper os
movimentos da máquina quando identifica algum problema em seu funcionamento. As
máquinas automatizadas exercem as funções de eliminar a superprodução, evitar a produção
de produtos defeituosos e, além disso, de reduzir o número de operadores, uma vez que um só
operador é capaz de atender várias máquinas, e de aumentar a eficiência da produção (Ohno,
2004, p.28-29).
No tocante à ampliação da taxa de lucro da empresa sem aumentar a produção, Ohno se
perguntava: como fazê-lo? Por fim encontrou a resposta:
Há duas maneiras de aumentar a produtividade. Uma é a de aumentar as quantidadesproduzidas, a outra é a de reduzir o pessoal de produção. A primeira maneira é,evidentemente, a mais popular. Ela é também a mais fácil. A outra, com efeito,implica em repensar, em todos os seus detalhes, a organização do trabalho (OHNOapud CORIAT, 1994, p. 33).
Seus estudos sobre a organização do trabalho o levaram para suas descobertas: a fábrica
mínima e a administração pelos olhos.
A fábrica mínima se constitui através da eliminação do estoque e da redução de suas funções,
mantendo apenas àquelas estritamente necessárias. É uma fábrica que corta suas “gorduras”
para tornar-se enxuta e que adota a flexibilidade do trabalho em função das flutuações
quantitativas ou qualitativas da demanda, mesmo empregando reduzido número de
trabalhadores. Diferente do fordismo, sua produtividade não advém da produção em massa,
mas da flexibilidade do trabalho que possibilita que cada trabalhador possa realizar várias
operações, isto é, que opere em média cinco máquinas.
A fábrica mínima está diretamente relacionada à administração pelos olhos. Esta, enquanto
modelo de gestão, permite visualizar todo o processo de trabalho e controlar diretamente os
operários da empresa. A administração pelos olhos compreende várias técnicas de gestão
como: o kanban, o andon, o trabalho em equipe etc. Estas inovações organizacionais vão
contribuir no aumento considerável da produtividade do trabalho, significando profunda
exploração do operariado.
3 Neologismo derivado das palavras autonomia e automação.
Em contrapartida à intensificação da exploração sobre os operários surgem, em 1950, os
conflitos entre capital e trabalho na Toyota Motor Company. As lutas dos trabalhadores são
conduzidas pelas reivindicações salariais e pelo movimento de resistência à extrema
racionalização. No entanto, o movimento sindical é esmagado com a demissão de 1.600
operários. Com a destruição do sindicato dos trabalhadores em 1953, intensifica-se o
movimento de racionalização, agora defendido pelo sindicato de empresa que age segundo
regras e procedimentos ditados pela própria empresa. Sua palavra de ordem é: “Proteger
nossa empresa para defender a vida!” (CORIAT, 1994, p.46) (grifo do autor).
A partir do esfacelamento do sindicato, a Toyota adota como princípio fundamental o não-
custo. Se o objetivo desse modelo de organização do trabalho “consiste na identificação e
eliminação das perdas e na redução dos custos” (SHINGO, 1996, p.129), o princípio de não-
custo segue em direção inversa ao princípio de custo. Há empresas que adotam o princípio de
custo para determinarem o preço de venda de seus produtos, ou seja: lucro + custo = preço de
venda. Mas tal procedimento pode comprometer a taxa de lucro da empresa diante de uma
possível oscilação dos preços das matérias-primas, por exemplo, ou do aumento de preço do
petróleo como ocorreu nos anos de 1970. Assim, concentrando toda sua atenção para o lucro,
o modelo Toyota de organização do trabalho adota o principio do não-custo que se manifesta
da seguinte forma: preço de venda – custos = lucro.
Considerando que a fonte de lucro de uma empresa reside no princípio do não-custo, Ohno
dirige sua atenção para o desperdício, isto é, para “todos os elementos de produção que só
aumentam os custos sem agregar valor – por exemplo, excesso de pessoas, de estoques e de
equipamentos” (2004, p.71). Se o aumento da eficiência decorre da eliminação total do
desperdício, esta só é possível com a redução da força de trabalho.
O impacto do modelo japonês não somente no mundo do trabalho como na sociedade como
um todo é mais intenso porque a sua difusão ocorre num contexto de profundas
transformações no campo político. Nos anos de 1980 surge o movimento em defesa do Estado
mínimo, cuja reforma teve início na Inglaterra com Margaret Thatcher, exemplo seguido
posteriormente por outros países centrais e em desenvolvimento, e em 1989 houve a queda do
murro de Berlim. Estes e outros fatos foram, direta ou indiretamente, impulsionados e/ou
justificados pela ideologia neoliberal. Referindo-se à queda do muro de Berlim, Freitas,
Heloani e Barreto afirmam:
Esse episódio valorizaria ainda mais o papel das empresas e exerceria forteinfluência na sua legitimação social como representantes genuínas do melhorsistema econômico já criado, aquele baseado no livre mercado. Supomos que a partirdesse momento que o aspecto econômico passou a ser considerado decisivamentecomo fator determinante e predominante na vida das sociedades, organizações eindivíduos, e as empresas privadas passaram a ser vistas como o modeloorganizacional por excelência a ser seguido por outros tipos e formatosorganizacionais, independentemente de sua finalidade última (2011, p. 3-4).
Dessa assertiva é possível destacar três questões fundamentais, as quais estão interligadas
entre si. A primeira diz respeito à supremacia do capitalismo sobre qualquer outro sistema
econômico, fato que inviabilizava, na época, a discussão em torno de um projeto alternativo
de sociedade. A segunda questão refere-se às representantes do capitalismo laissez faire. A
legitimidade alcançada pelas empresas privadas faz com que seu modelo organizacional seja
transplantado para organizações não ligadas diretamente à esfera econômica. Nesse processo
são disseminados por toda a sociedade princípios que orientam as relações de troca. A última
questão evidencia a primazia dos valores de mercado sobre os valores sociais e políticos,
concorrendo para o esgarçamento do tecido social. Quanto a esta questão Soros afirma:
Uma sociedade baseada em transações solapa os valores sociais e favorece osconstrangimentos morais. Os valores sociais expressam um interesse pelos outros.Pressupõe que o indivíduo pertence a uma comunidade, seja uma família, uma tribo,uma nação ou a humanidade, cujos interesses têm precedência em relação aosinteresses individuais. Mas uma economia de mercado transacional é tudo, menosuma comunidade. Todos devem cuidar dos seus próprios interesses e os escrúpulosmorais talvez se tornem obstáculos num mundo impiedosamente competitivo(SOROS, 1998, p. 120).
A partir dessas questões podemos inferir que o formato que o capitalismo assume na
sociedade contemporânea se caracteriza, inicialmente, pela supremacia do capital, cujo poder
ultrapassa as fronteiras da dimensão econômica, passando a interferir nas maneiras de pensar,
sentir e agir da coletividade. Enquanto isto, as organizações do trabalho procuram assegurar
total submissão do trabalho ao capital. Em função da maximização dos lucros, reduz-se o
número de operários nas empresas, intensifica-se o trabalho em defesa de cotas estabelecidas
e precarizam-se as condições de trabalho. Além do mais, os valores que são disseminados e
inculcados pelas empresas e instituições sociais atingem diretamente a subjetividade do
trabalhador, tornando-o cada vez mais submisso ao capital. Nesse formato de organização do
trabalho, o capital precisa acionar o corpo e a alma do operário de tal maneira que este último
esvazia sua identidade, porque torna seus os objetivos da empresa. Seu envolvimento é a
expressão viva do espírito do toyotismo. Quanto a isto afirma Alves: “Mais do que o
fordismo-taylorismo, o toyotismo tem necessidade de envolvimento dos operários e
empregados nos procedimentos técnico-organizacionais da produção de mercadorias” (2011,
p.44). Continuando suas considerações sobre o espírito do toyotismo na era do capitalismo
manipulatório, expõe a essência do espirito do toyotismo contida no livro de Ohno, cuja
essência se materializa na:
[...] imprescindibilidade do “engajamento” moral-intelectual dos operários eempregados na produção do capital (o que implica a necessidade da “captura” dasubjetividade do trabalho vivo pelos ditames da produção de mercadorias). Otoyotismo mobiliza a subjetividade, isto é, corpo e mente. Convém notar que essaimplicação subjetiva do toyotismo entre corpo e mente é peculiaríssima. Como dizOhno, o importante é “lembrar com o corpo” ou “conhecer e fazer instintivamente”.Desse modo, o espírito do toyotismo implica não apenas a mobilização total damente [...], mas a mobilização total do corpo e da mente. Não apenas conhecer efazer, mas conhecer e fazer “instintivamente” (ALVES, 2011, p.46).
Esse engajamento do trabalhador exigido pelo capital transforma o ambiente de trabalho em
um campo de guerra. Se antes a solidariedade era fundamental para articulação entre os
trabalhadores contra o capaital, agora a luta se manifesta É nesse contexto que surgem os
vários tipos de violência no trabalho, dentre eles o assédio moral.
ASSÉDIO MORAL E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
Os estudos realizados por pesquisadores e organizações nacionais e internacionais apontam
dados surpreendentes sobre os transtornos mentais decorrentes do mundo do trabalho, o qual
foi atingido por mudanças significativas a partir das últimas décadas do século XX.
Nos anos de 1970, os países capitalistas centrais vivenciavam a crise estrutural do capital
caracterizada “pela crise de sobreacumulação, mundialização financeira e novo imperialismo”
(ALVES, 2011, p.13). Tal crise impulsionou nos anos de 1980 profundas transformações não
só no mundo do trabalho como também em outras esferas da vida social contemporânea.
Nesse período surgem inovações capitalistas, destacando-se a especialização flexível, na
região da Terceira Itália, a experiência sueca de Kalmar e o toyotismo no Japão. Este,
segundo Alves é “o que possui maior capacidade de expressar as necessidades imperativas do
capitalismo mundial” (2011, p.16).
Considerando as três modalidades de organização do trabalho, fica evidente que no toyotismo
a submissão do trabalho ao capital é total. A busca incessante pela ampliação cada vez maior
da produtividade com reduzido empego de operários, tudo isso irá implicar na intensificação
da exploração para além do taylorismo e do fordismo. Os grupos de trabalho favorecem
acirrada competição entre os operários, cujas relações têm como base o individualismo, a
deslealdade, o conflito entre os pares em favor da empresa. A empresa é a grande mãe que
suga até a morte os seus filhos em troca da promessa de segurança no emprego. Esse,
provavelmente, é o ambiente favorável para o surgimento de vários tipos de violência no
trabalho.
Se a violência surge e se alimenta de condições específicas desenvolvidas no interior das
organizações, é possível afirmar que a violência no trabalho é um problema oriundo das novas
formas de organizar o trabalho. Essa é a posição defendida por Freitas, Heloani e Barreto
quando afirmam:
[...] a nova organização do trabalho, na medida em que se fundamentaexclusivamente no aspecto econômico, quebra as relações e os contratos de trabalho,legitima a competição acirrada em todos os níveis, individualiza as culpas e osprejuízos pelo não atendimento de metas descabidas, torna facilmente a empresa emuma pessoa jurídica nômade sem responsabilidades locais, eleva o ritmo e aflexibilidade do trabalho, coloca a guerra econômica como álibi para justificar asobrevivência da empresa a qualquer custo e gera um ambiente de trabalho em que aviolência começa a fazer morada permanente. Mais do que isso, essa novaorganização do trabalho faz parecer que os que têm um emprego devem se submeterà degradação do clima de trabalho sem pestanejar, visto que eles são privilegiados;ter um emprego passa a ser motivo para se chantageado com a ameaça dodesemprego (2011, p. 35).
Compartilhamos com as mesmas concepções dos autores acima citados. É possível que essas
práticas características da nova organização do trabalho apontadas por Freitas, Heloani e
Barreto são favoráveis ao surgimento e desenvolvimento de vários tipos de violência no
trabalho. Tais práticas, no entanto, representam formas de violência que causam profundo
sofrimento aos trabalhadores.
Uma pesquisa realizada na Europa, pela Organização de Consumidores e Usuários defende a
tese de que:
[...] as causas do estresse ocupacional estão relacionadas ao trabalho repetitivo(91%), ao ritmo intenso (83%), à exigências de esforços exagerados (68%), àspromoções injustas (68%), ao salário inadequado (67%), à falta de reconhecimento(56%), à má gestão do trabalho (52%), ao fato de não se aprender coisas novas(35%), à falta de tempo (25%) e à carência de apoio dos pares (17%). Todos ospesquisados reconheceram que o trabalho, nessas condições, afeta de forma negativaa saúde, interferindo, inclusive, em seus relacionamentos familiares (BARRETO &HELOANI, 2013, p.662).
Em sua obra A loucura do Trabalho, Dejours estabelece conexões entre sofrimento e
organização do trabalho4. Ele parte do pressuposto de que:
[...] a organização do trabalho exerce, sobre o homem, uma ação específica, cujoimpacto é o aparelho psíquico. Em certas condições, emerge um sofrimento quepode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, deesperanças e de desejos, e uma organização do trabalho que os ignora. Essesofrimento, de natureza mental, começa quando o homem, no trabalho, já não podefazer nenhuma modificação na sua tarefa no sentido de torná-la mais conforme àssuas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos – isto é, quando arelação homem-trabalho é bloqueada (DEJOURS, 1992, p.133). (grifo do autor).
O sofrimento a que se refere Dejours é aquele que tem origem na divisão do trabalho entre
concepção e execução, cuja divisão é recorrente nas modalidades de organização do trabalho
aqui mencionadas. No taylorismo e no fordismo, a divisão do trabalho no campo operacional
simplifica e desqualifica o trabalho do operário, enquanto no toyotismo a multifuncionalidade
não significa enriquecimento das tarefas na medida em que a dimensão intelectual do trabalho
é incorporada às máquinas. Portanto, o modelo japonês também não favorece o equilíbrio
psicossomático nem a satisfação do trabalhador. Pelo contrário, além do sofrimento
decorrente do trabalho alienado, outro tipo de sofrimento parte de expedientes utilizados pelo
poder corporativo para submeter os operários às novas formas de organização do trabalho.
Dentre esses expedientes destaca-se o assédio moral.
O assédio moral se constitui objeto de estudo e pesquisa nas últimas décadas do século XX.
Nessa nova área de investigação destacam-se os trabalhos de Heinz Leymann, Cristophe
Dejours, Andréa Adms, Marie-France Hirigoyen. No Brasil são conhecidas as obras de Maria
Ester de Freitas, Roberto Heloani e Margarida Barreto.
Em seu livro, Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral, Hirigoyen chama atenção
para os equívocos em torno do conceito de assédio moral que, na linguagem corrente, é
confundido com outras formas de sofrimento no trabalho. Assim, enquanto o estresse
profissional envolve sobrecarga e degradação das condições de trabalho, as quais são sentidas
por todos, indistintamente, no assédio moral, tais condições são impostas para desqualificar,
rejeitar, isolar, humilhar o trabalhador que pensa, sente e age de maneira diferente, e que,
portanto, deve ser eliminado do grupo. Visto como um perigo para os seus pares, ou para os
seus superiores hierárquicos, as agressões tornam-se frequentes e continuadas, cujo processo
4 Por organização do trabalho designamos a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa (na medida em que eledela deriva), o sistema hierárquico, as modalidades de comando, as relações de poder, as questões deresponsabilidade etc (Dejours, 1992, p.25) (grifo do autor).
representa graves consequências para o assediado. Aqui já podemos identificar duas
características do assédio moral analisadas por Hirigoyen: a intencionalidade do assediador e
a repetição sistemática das agressões. Para ela
[...] o assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto,palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização,contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seuemprego ou degradando o clima de trabalho (HIRIGOYEN, 2011, p.17)(grifo daautora).
A partir desse conceito, a autora destaca pontos relevantes. O primeiro refere-se à repetição
como uma das características fundamentais do assédio moral, isto porque os comportamentos,
palavras e atitudes quando repetidos exercem forte poder de destruição. O outro ponto diz
respeito à origem da violência psicológica. Para a autora, a prática do assédio moral surge das
relações entre dominante e dominado. Isto significa dizer que o assédio moral é “sempre
precedido da dominação psicológica do agressor e da submissão forçada da vítima”
(HIRIGOYEN, 2011, p.27). No entanto, a dominação referida pela autora não é aquela
advinda da relação entre capital e trabalho, mas do abuso de poder hierárquico. Portanto, a
origem do assédio moral localiza-se no conjunto de sentimentos inconfessáveis como a
inveja, o ciúme, a rivalidade, o medo.
Estudiosos como Freitas, Heloani e Barreto consideram o assédio moral como um problema
organizacional. Quanto a isto afirmam:
[...] o modo como o trabalho está organizado e é gerido favorecem relaçõesviolentas, pois neles imperam regras incertas, mutáveis, promessas não cumpridas,reconhecimentos negados, punições arbitrárias, exigências de submissão de uns e dearrogância de outros. A rentabilização do ser humano, ou seja, a sua transformaçãoem coisa, em projeto ou em capital permite uma justificativa da violência noambiente de trabalho e neutraliza o mote da sobrevivência e do vale-tudo para sesalvar, deixando um rastro de estigmatizados como perdedores e descartáveis (2011,p. 12).
Se o assédio moral é uma questão tão antiga quanto o surgimento do homem, ele parece
adquirir uma conotação singular dentro dessa nova organização do trabalho. A terceirização, a
multifuncionalidade, a flexibilidade e a competitividade, oriundos do toyotismo, colocam o
trabalhador em estado permanente de vulnerabilidade. Ao mesmo tempo, a introdução de
novos métodos de trabalho provoca rejeição e resistência por parte dos trabalhadores, seja
pela intensificação da produtividade, seja pelo processo de manipulação a que são
submetidos. É nesse momento que o assédio moral pode adquirir papel importante no
processo de subordinação dos trabalhadores às novas formas de exploração do capital. Nessa
direção, Heloani afirma:
[...] encaramos o assédio moral não tanto como uma característica individual,pessoal, mas principalmente como um fenômeno decorrente do processo disciplinar,por sua vez proveniente das “modernas” formas de gestão e organização dotrabalho no mundo atual (HELOANI, 2007, p. 127)
Barreto e Heloani estabelecem critérios para caracterizar o assédio moral que são: critérios
qualitativos e critérios quantitativos. Quanto à primeira, os autores afirmam que “deveremos
levar em consideração se os atos de violência são contínuos, repetitivos, sistemáticos,
descontínuos, intermitentes, esporádicos e/ou pontuais” (BARRETO & HELOANI, 2013,
p.671). Por outro lado, a análise dos critérios quantitativos conduz o pesquisador aos
indicadores que são fundamentais para realizar o diagnóstico das práticas do assédio moral no
trabalho. Dentre os mais importantes, os autores destacam:
[...] o número de exposição a situações constrangedoras, se estes ataques ocorreremdurante a jornada de trabalho e qual sua duração: semana (s), mês/meses ou ano (s).É importante considerar o número de pessoas envolvidas, quem são os assediados eos assediadores, assim como a composição do coletivo de trabalho ou as pessoas quetestemunharam tais atos (BARRETO & HELOANI, 2013, p .671-72).
Diante de vários tipos de violência que acontecem no trabalho, torna-se imprescindível que o
pesquisador saiba caracterizar o assédio moral. Para isto deve considerar:
[...] a repetição e a persistência dos atos, a habitualidade, a intencionalidade, atemporalidade e os limites geográficos (local em que os atos acontecem,determinando o departamento ou setor), fatores estes que contribuem decisivamentepara a degradação deliberada das condições de trabalho (BARRETO & HELOANI,2013, p.672).
No tocante às consequências do assédio moral, estas podem se manifestar por meio de
sentimento de culpa, medo, vergonha, baixo estima, mágoas, ressentimentos, desalento,
desesperança, irritabilidade, falta exagerada de confiança em si e nos outros, redução da
capacidade de enfrentar o estresse, tristeza profunda e depressão (BARRETO & HELOANI,
2013, p.672).
3 ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO
Em 1995, o Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro mandato
(1995-1998), apresentou ao país o Plano Diretor da Reforma do Estado, elaborado pelo
Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE). O documento propõe a
substituição do modelo de Administração Burocrática pela Administração Pública Gerencial.
Este, inspirado na administração da empresa privada, admite como valor maior a eficiência,
enfatiza a produtividade do serviço público, defende a flexibilidade da estabilidade do
funcionalismo e a desregulamentação. O documento em questão afirma:
A eficiência da administração pública – a necessidade de reduzir custos e aumentar aqualidade dos serviços, tendo o cidadão como beneficiário – torna-se entãoessencial. A reforma do aparelho do Estado passa a ser orientadapredominantemente pelos valores da eficiência e da qualidade na prestação deserviços públicos e pelo desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações(BRASIL/MARE, 1995).
O Plano Diretor torna-se, então, um documento de referência na condução das reformas das
organizações públicas e, em especial, das organizações educacionais. Nos anos de 1990,
vários estados iniciaram reformas em seus sistemas de ensino.
Em Sergipe, nos últimos anos do século XX, a Secretaria de Estado da Educação ensaia seus
primeiros passos em direção à reforma das escolas, tendo como instrumento básico o manual
Como elaborar o Plano de Desenvolvimento da Escola5, elaborado por Xavier e Amaral
Sobrinho.
O documento é dirigido aos trabalhadores da educação, em especial para aqueles que exercem
funções de liderança (diretor, vice-diretor, coordenador pedagógico, orientador e secretário),
porque estes, na concepção dos autores, serão capazes de promover “mudanças positivas nos
indivíduos e nas organizações” (XAVIER e AMARAL, 1999, p.15). O manual e é recheado
de instruções que visam auxiliar as organizações escolares na elaboração do seu PDE, cujo
plano deveria ser executado alheio ao contexto social e político da comunidade em seu
entorno. Visto como um processo gerencial de planejamento,
O PDE define o que é escola, o que ela pretende fazer, aonde ela pretende chegar, deque maneira e com quais recursos. É um processo coordenado pela liderança daescola para o alcance de uma situação desejada, de uma maneira mais eficiente eeficaz, com a melhor concentração de esforços e recursos (XAVIER e AMARAL,1999, p. 19).
5 Os nomes dos autores só aparecem nas duas primeiras edições de 1998 e 1999.
Concebido na perspectiva do modelo gerencial, o PDE traz em seu bojo concepções
ideológicas da gestão gerencialista, a qual, segundo Gaulejac, é
[...] uma ideologia que traduz as atividades humanas em indicadores dedesempenho, e esses desempenhos em custos ou em benefícios. Indo buscar do ladodas ciências exatas uma cientificidade que elas não puderam conquistar por simesmas, as ciências da gestão servem, definitivamente, de suporte para o podergerencialista. Elas legitimam um pensamento objetivista, utilitarista, funcionalista epositivista. Constroem uma representação do humano como um recurso a serviço daempresa, contribuindo, assim, para sua instrumentalização [...] (GAULEJAC, 2007,p. 36-37).
Xavier e Amaral propõem a reconstrução da escola através de um novo modelo de gestão que
assegure autonomia administrativa, financeira e pedagógica, tendo como fio condutor a lógica
empresarial. Nessa perspectiva, uma escola de qualidade precisa orientar-se pelos princípios
da eficiência e da eficácia, avaliar o desempenho dos professores e dos alunos e que seja
capaz de identificar problemas e traçar estratégias para superá-los.
A introdução do PDE ocorreu lentamente até 2002, uma vez que a sua aplicação dependia da
aceitação das escolas. Mas a partir de 2003, todas as organizações escolares da rede pública
estadual foram convocadas a gerir suas atividades de acordo com o modelo gerencial de
administração, sem que os professores e pedagogos lotados no Departamento de Educação
tivessem conhecimento. Se as metas declaradas do PDE no curso das mudanças não foram
alcançadas, parece que a ideologia gerencial foi pouco a pouco foi sendo incorporada à
cultura da escola.
Em janeiro de 2003, a Secretaria de Estado da Educação iniciou a reforma administrativa
inspirada no modelo gerencial, provocando forte impacto na rotina do trabalho. No
Departamento de Educação foi possível observar dois movimentos decorrentes da nova forma
de organização do trabalho: a centralização do processo decisório e a descentralização das
atividades desenvolvidas por cada Divisão de Ensino. Na dimensão ideológica, as
organizações escolares deveriam ser tratadas como uma empresa, o aluno como cliente, como
consumidor de bens culturais, e o conhecimento como mercadoria.
Suas consequências no Departamento de Educação foram sentidas de imediato: a perda de
autonomia dos professores e pedagogos que exerciam função técnico-pedagógica, cujas
atividades ficaram restritas à esfera da execução; destituída da dimensão intelectual, o
trabalho perde seu sentido e significado; a fragilização das Divisões do Ensino Fundamental,
do Ensino Médio e da Educação de Jovens e Adultos; as relações de trabalho baseadas no
respeito e na solidariedade foram substituídas pela competição, rivalidade e desconfiança; o
assédio moral assume o papel de controlar, de disciplinar, de submeter os trabalhadores à
nova forma de organização do trabalho. Além do mais, o foco dos gestores se desloca para os
princípios da produtividade, da eficiência e dos resultados, inspirados pela lógica da
racionalidade instrumental.
Os trabalhadores da educação iniciaram um movimento velado de resistência contra as
reformas. Em resposta, sofreram constrangimentos por parte dos gestores.
Nas escolas, a situação parecia mais problemática. No período de 2003 a 2004, tivemos a
oportunidade de realizar uma pesquisa com o objetivo de identificar o perfil do pedagogo. Se
o objetivo inicial do Departamento de Educação era tentar amortecer as reivindicações dos
pedagogos lotados nas escolas, a investigação, por meio de encontros periódicos e da
aplicação e análise de 1576 questionários, descortinou um quadro de profunda precarização
das condições de trabalho.
Os pedagogos destacaram algumas situações que dificultavam o desenvolvimento de suas
atividades nas organizações escolares: gestão autoritária, número insuficiente de especialistas
no Comitê Pedagógico, escassez de material básico, falta de informação sobre questões
referentes à educação, ausência de uma política de formação continuada, desconhecimento
das atribuições do especialista por parte da escola, desvio de funções, desvalorização do
profissional, além de outras (BARRETO, 2005).
Uma das questões que causam sofrimento aos especialistas é o desvio de funções. Diante da
insuficiência de funcionários no setor administrativo, os pedagogos são obrigados a
desempenhar atribuições pertinentes às funções de porteiro, faxineiro, vigilante, auxiliar de
escritório, inspetor de alunos, servente, telefonista, bombeiro, merendeira, enfermeira,
psicólogo, etc. (BARRETO, 2005, p. 7). A recusa do pedagogo na prestação de tais serviços
poderia torná-lo alvo de assédio moral. Porém, para quem aceitava experimentou o sofrimento
aqui relatado:
6 Dos 157 pedagogos que participaram da pesquisa, 131 estavam lotados nas escolas jurisdicionadas pelaDiretoria de Educação de Aracaju (DEA) e 26 na Diretoria Regional 08 (DRE 08). Esta última cobre os municípiosde São Cristóvão, Barra dos Coqueiros, Nossa Senhora do Socorro, Itaporanga D’Ajuda e Riachuelo (BARRETO,2005, p.2).
“Há angústia de ser obrigado a fazer o que não é o seu papel. Épreciso resgatar o espaço pedagógico na escola” (Depoimento deuma pedagoga, 2005. p. 7).
Não há dúvida de que determinadas condições podem estimular práticas de violência
psicológica nas organizações escolares: a deterioração das condições de trabalho em defesa do
princípio da eficácia e da eficiência; o controle sobre informações pertinentes à educação; a
gestão autoritária; a transferência da gestão da educação para as empresas privadas, seja por
meio da contratação de agências prestadoras de serviços educacionais, seja pela
mercantilização de produtos educacionais; e a centralização das decisões e a descentralização
das ações são algumas das situações que favorecem as práticas do assédio moral e que são
vivenciadas cotidianamente nas escolas.
Nas entrevistas com professores que exercem funções no Sindicato dos Trabalhadores em
Educação do Estado de Sergipe (SINTESE), tivemos notícias de que o adoecimento dos
professores é um fenômeno que vem preocupando o referido sindicato, o qual por sua vez tem
cobrado do Governo do Estado uma posição diante desse problema tão grave que compromete
não só a saúde dos docentes, como também o funcionamento das organizações educacionais.
Tivemos notícias de que há muitos casos de professores com depressão e com outros docentes
que apresentam distúrbios psicológicos.
Também, de acordo com as informações desses mesmos professores, há vários casos de
assédio moral. Para exemplificar, citaram o caso da Escola Francisco Portugal, localizada no
bairro Augusto Franco, em Aracaju. Um dos elementos da direção convocou a presença de
policiais para acabar com o tumulto promovido por cinco professores que reuniram os pais
dos alunos para fazer a pré-matrícula. Grande foi o constrangimento desses professores diante
da chegada de duas viaturas com policiais armados para retirá-los da referida escola. A vice-
presidente do SINTESE esclareceu a situação com os policiais, informando-os de que se
tratava de uma ação autoritária da direção da escola. Certificados de que não havia
irregularidade no ambiente, os policiais se retiraram. A ação da direção da organização
escolar pode significar uma prática de assédio moral com os cinco professores. O caso foi
denunciado pelo SINTESE.
Com relação aos dados referentes ao número de escolas, alunos e professores, o SINTESE
informou que na atualidade há 358 escolas da Rede Estadual de Ensino em todo o estado,
sendo que há 86 estabelecimentos vinculados à Diretoria de Educação de Aracaju.
Com relação ao número de professores, o SINTESE informou que não tem número total, mas
apenas daqueles que são sindicalizados. Portanto, há 13.061 professores ativos e aposentados.
Considerando que há professores não sindicalizados, o número total deve ser bem maior.
Como a mobilidade é grande por parte dos professores, acrescentou que só depois da
realização das matrículas, em março, é possível saber o número preciso de decentes que
atualmente estão em sala de aula. Informou também que em todas as escolas há professores
que saíram
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa, ainda em sua fase inicial, vem confirmando a tese de que existe possível
articulação entre o assédio moral e as novas formas de organização e gestão do trabalho
docente, tendo como desdobramento o adoecimento dos professores após um período amplo
de sofrimento. Incapazes de continuar no exercício da docência, alguns são encaminhados
para o Departamento de Educação, enquanto outros são conduzidos para as salas de leitura ou
para a biblioteca da escola. Até o presente momento, a doença mais frequente é a depressão.
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