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TEMPOS INDIVISOSNrishinro Vallabha Das Mahe

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A primeira nota é a do címbalo, que surge de repente, grave e forte. O instrumento segue

marcando o tempo e a sensação é de que a música não começou naquele instante, mas vem sendo tocada

muito antes. Como em uma marcha, ela imprime um ritmo de quem está sempre caminhando, com

contratempos que lembram os buracos e pedras da estrada e o bater das panelas penduradas. Logo entra

o acordeon, alternando notas longas e escalas rápidas, atravessando a marcação, como o vento que sopra

em lufadas, entrecortando o compasso, projetando-se de um lado para outro e fazendo o corpo balançar

na tentativa de acompanhar seus caminhos. A voz chega suave e melancólica, carregada de um lamento

antigo, de histórias que são minhas ou de qualquer um que saiba fechar os olhos para escutar, mesmo que

não se possa entender as palavras.

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Era uma manhã bem fria. O sol mal acabara de nascer e descia em raios

perpendiculares que tocavam o rosto sonolento das pessoas. O som dos trilhos fazia um compasso

perfeito e eu pensei que poderia ser uma música. Da janela do trem, eu via a paisagem mudar.

As pessoas entravam e saiam carregando suas vidas, resignadas. Dentro, ouvia-se o burburinho

das pequenas conversas, do vendedor ambulante, do pregador e da moça de voz metálica que

anunciava as estações.

O trem seguia serpenteando pelos bairros mais distantes.

Sem um destino em mente, peguei o trem que pudesse me levar mais longe, atrás da

sensação de andar a esmo, de observar as pessoas e imaginar suas paisagens, de me colocar no lugar

daqueles rostos e imaginar a grandeza do mundo particular de cada um. Gosto de olhar a cidade

pela janela e me perder nos emaranhados possíveis das ruas, dos apartamentos, dos carros e das

paisagens, às vezes bucólicas; estranhar algo, descer abruptamente na próxima estação e depois

retomar a viagem; ficar por muitas horas em silêncio, observando o que está em volta, levando o

pensamento por lembranças e vontades.

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É um momento de ruptura com o andar comum da vida. Um instante perdido entre

passado, presente e futuro. Um tempo que não sufoca, sem o cabresto do cotidiano, sem a

cronologia que dá fim às coisas. Um espaço de insinuações, memórias e desejos, com narrativas

feitas de instantes incompletos, preenchidos contingencialmente de forma frágil. Um espaço de

pensar, de refletir e imaginar. As histórias não correm em uma direção, mas vão e voltam no tempo,

como folhas que se acumulam no chão, sobrepondo-se, revirando-se ou sumindo com o vento.

Eu seguia no trem, serpenteando pelas memórias mais distantes.

Uma imagem de infância que me persegue, talvez a primeira de que me lembro, me

veio à mente e, com ela, a sensação de um tempo remoto, com formas mais ou menos voláteis,

feitas nos moldes do que sou agora.

Acho que isso é a memória. Gerida pelo acaso dos perfumes, das cores, do gosto

das coisas, dos sons e ruídos, feita e refeita inúmeras vezes no presente. O cheiro de terra quente

molhada depois da chuva, do incenso de sândalo e do curry refogado no ghee que se misturam e

enchem o ar; o toque dos pés no chão de terra, na grama, nas pedrinhas, nos gravetos, a sensação

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de que o mundo é grande e verde e que respira por mim.

Há algo de fantasmagórico nas memórias. São como vultos que me pegam de

surpresa quando estou distraído.

O que me levou à imagem não está nela, mas a circunda. Pode estar escondido em

suas sombras ou a iluminando de pontos diferentes, reanimando-a. Nela, o ângulo de visão é

baixo e o fundo é todo tomado por um céu azul escuro e sem nuvens. No canto esquerdo, na

metade inferior, há a fachada incompleta de uma casa branca com telhado vermelho. Talvez se

possa ver o ângulo em noventa graus de um pedaço de janela com o batente azul. Cruzando

por trás do telhado, há um grande coqueiro envergado, com folhagem volumosa e verde. Não

é possível ver, mas pode-se sentir o cheiro de terra, como quando uma chuva se aproxima. Do

lado esquerdo, um ao lado do outro, dois garotos ensopados, com as mãos cruzadas nas costas,

cabeças baixas e mal escondendo um sorriso, levam uma bronca de um homem alto e bravo.

A busca pelas histórias dessa imagem é o que me trouxe até aqui e me colocou

diante de tantas outras imagens e histórias.

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As memórias seguiam em mim, reconstruindo a paisagem.

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Enquanto passava os olhos pelas lembranças, me deparei com um reflexo no espelho

da estante. Demorei um pouco para reconhecer, mas era o tempo que estava ali, com toda sua força

e imparcialidade. O tempo cru, incontornável, sem enfeites; o tempo do presente, que se desfaz a

cada segundo, que destrói e cria infinitamente; o tempo que não perdoa nem agracia, que perpassa

tudo e todos indiferente; o tempo que nos leva a existir de forma efêmera, mas que transforma cada

vida em uma aventura.

Era o tempo no frio que subiu pela espinha, na gota de suor da testa, na respiração

ofegante, no silêncio repentino, na paralisia do corpo, no sentido de todas as histórias.

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Do lado esquerdo do lago há quatro chalés, todos feitos de grandes toras de eucalipto

envernizadas, com paredes de tijolos e telhados de palha que descem quase até o chão. Ficam em

uma área mais baixa de uma grande fazenda ao pé da Serra da Mantiqueira, separada do resto

por uma pequena porteira, como se fosse um pequeno vale dentro de um vale maior.

Entrar nessa região é passar por um portal que me leva de um mundo austero e

regrado, uma espécie de mosteiro onde moro e estudo, para uma zona de total conforto, onde

encontro as pessoas mais íntimas. Um ambiente cheio de uma permissividade aconchegante, das

brincadeiras em torno do fogão à lenha, da luz de lamparinas e de velas ao anoitecer, que fazem

de cada ambiente uma penumbra amarelada de sombras trêmulas.

Ali eu fico escutando os adultos tocando o violão, conversando, e olho curioso

quando começam a consultar algum tipo de oráculo. Ajudo a assar o chapati e sempre me pedem

para buscar na horta alguma erva para o chá ou para temperar algo. A noite lá fora é escura e

cheia de pequenos barulhinhos: os sapos, as cigarras, os pássaros noturnos e, de vez em quando,

o ronco distante dos bugios. Ninguém me manda dormir, o sono vem com o lento avançar das

horas, naquele ritmo cadenciado da vida no campo, que embala a gente entre bocejos.

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Na outra margem do lago, entre uma fileira de bambus, é possível ver a ponta da

cúpula do templo. Não se pode ver daqui, mas ali perto, descendo uma escadaria larga, bem ao

lado do rio, fica o colégio interno onde passo boa parte do tempo.

Durante o dia, quando não estou andando no mato, buscando um bom galho para

fazer um arco ou algo que me sirva de flecha, costumo navegar com meus irmãos em um barquinho.

O lago deve ter uns cem metros de diâmetro e sua cor é sempre marrom clara, quase amarela.

Se eu levantar os olhos, vejo, imponente, a serra da Mantiqueira, alta, grave e

protetora. Depois da chuva, a montanha parece mais próxima e me vem o impulso de esticar

os braços e tocá-la, sentir sua umidade. Às vezes me sento no gramado na beira do lago e fico

olhando a serra. Mergulho nos infinitos tons de verde que a compõem, tento sentir sua respiração,

imagino quantos caminhos ela pode ter, quantas grotas úmidas, quantas cachoeiras e poços para

nadar. Ali não quero mais nada, só tenho vontade de me fundir às raízes, aos cipós, às folhas, às

águas, aos bichos todos. Perder a consciência de mim e ser tudo o que é a montanha.

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Ele não possui um rosto. É um corpo que se movimenta entre duas piscadas de olhos e

logo some. Caminha feito um vulto entre sombras, reflexos e miragens. Eu o vejo de canto de olho e

quando me volto não está mais lá, não há rastro de suas pegadas, só um sentimento do que poderia

ser se eu pudesse vê-lo face a face.

Lembro de como chegava, barulhento, quase sempre na madrugada. Como uma ventania,

movimentava tudo, fazia subir toda a poeira assentada pela espera, trazia coisas novas e levava consigo

as velhas. Chegava num rompante e nos empurrava na direção intempestiva de sua vontade. Depois

nos deixava em algum canto seguro e sumia tão repentinamente quanto havia aparecido.

Não deu tempo de memorizar seu rosto. Não adianta fechar os olhos e tentar buscar lá

no fundo suas linhas. Só posso sentir sua presença marcante, seus movimentos ágeis, o fogo de sua

chegada e a frieza silenciosa de sua partida. Era assim que eu o conhecia, como um ponto que quebra

uma linha reta, como algo que existe para mudar o rumo das coisas.

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Uma vez ele decidiu que ia fazer a viagem dos sonhos. Sempre quis ir à India, mas suas

obrigações e problemas financeiros o impediam. Lembro de tê-lo visto uns dias antes, com a cabeça

completamente raspada. Estava inquieto, um pouco rude, o que não era de seu feitio. No dia de

partir, levava só a roupa do corpo, não precisava de bagagem. Não se despediu de ninguém. Lá, de

frente para o mar, fechou os olhos e mirou seu destino, tirou a passagem do bolso e foi embora, sem

mais nada que o prendia.

Outro dia o encontrei em uma fotografia, com um sorriso lindo na cara. Não daqueles

feitos só de dentes, comum às pessoas fotografadas. Seus olhos e todo seu corpo sorriam. Estava de

pé, no meio da imagem, ao lado de dois outros homens. Tinha o corpo levemente em diagonal, com

o queixo erguido e olhando diretamente para a câmera. Fiquei por muito tempo diante daquela foto,

tentando reconhecer aquele rosto, tentando senti-lo familiar. Daquele sorriso eu acho que lembro,

mas é um sorriso sem rosto. Lembro também de sentir o áspero de sua barba crescendo quando me

envolvia em um abraço, mas isso só porque parei de olhar a foto e fechei os olhos.

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