Post on 12-Jan-2019
Maicon Gilvan Lima Campos
SEEDUC-RJ/maiconglcampos@gmail.com
João Carlos de Mattos Freitas
SEEDUC-RJ/joaocarlosdem@yahoo.com.br
A “base geográfica da história” entre Hegel e Euclides da Cunha.
Introdução
Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart no ano de 1770 e faleceu em
Berlim no ano de 1831. Também viveu em Tübingen, Berna, Frankfurt, Jena, Nuremberg
e Heidelberg. Ao longo de sua vida Hegel produziu uma série de escritos, cujos mais
destacados são: Fenomenologia do Espírito, Ciência da Lógica, Enciclopédia das
Ciências Filosóficas, e Princípios da Filosofia do Direito. Diversos outros escritos foram
produzidos por Hegel nos anos em que iniciou seus estudos em Teologia e Filosofia em
Tübingen, assim como o período em que trabalhou como preceptor em Berna1. Por outro
lado, foram publicadas obras póstumas, cujos materiais consistem em anotações de
cadernos de Hegel e alunos de cursos proferidos em Jena, Nuremberg, Heidelberg e
Berlim, como são os casos de Propedêutica Filosófica (Nuremberg), e Lições sobre a
filosofia da história universal (Berlim) (KONDER, 1992).
Mesmo enquanto teólogo e filósofo de formação, Hegel foi capaz de elaborar um
sistema filosófico que contém especulações afins a diversos campos científicos de seu e
do nosso tempo2. No que se refere à Geografia, isto pode ser evidenciado em suas
1 Estes escritos foram publicados pela primeira vez em 1907 pelo editor Herman Nohl (1879-1960) na
forma de fragmentos, com o título de Hegels theologische Jugendschriften (“Escritos teológicos de
juventude de Hegel”), título este, mais tarde substituído por Frühschriften (“Primeiros escritos”) Cf.
(HYPPOLITE, 1971).
2 Na obra Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel (2002) não é difícil observar especulações
comuns à Antropologia, ao Direito, à Biologia, à Geologia, entre outras ciências. De acordo com Agemir
Bavaresco (2010) é possível indicar algumas teorias das ciências contemporâneas que por um lado
confirmam o conceito especulativo de natureza de Hegel, e por outro lado, exigem que o conceito de
natureza hegeliano seja atualizado, tais como: A Teoria do Big Bang, a Teoria de Gaia, a Teoria dos
Ecossistemas, a Teoria do Código Genético e a Teoria Quântica dos Campos Nucleares (BAVARESCO,
2010, p. 34-35).
“Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte” (“Lições sobre a filosofia da
história”) 3, principalmente, no capítulo denominado de “Geographische Grundlage der
Weltgeschichte” (“Base geográfica da história mundial”)4. Esta obra é a principal
referência nos estudos sobre a relação entre Hegel e a Geografia, tanto pelos geógrafos
clássicos5, quanto por geógrafos e cientistas sociais contemporâneos6.
Neste artigo procuraremos apresentar uma abordagem diferenciada sobre as
especulações geográficas de Hegel, utilizando como referencial de análise a leitura crítica
efetuada por Euclides da Cunha (1866-1909) em Os Sertões. Mesmo não procurando
analisar propriamente a relação entre Hegel e a Geografia, Euclides aplicou de forma
crítica as especulações geográficas de Hegel à realidade brasileira encontrada em seu
contexto histórico. Mais especificamente a ideia de “base geográfica da história” aos
aspectos morfoclimáticos das caatingas.
Para tanto, dividimos o artigo em duas partes. A primeira parte apresenta a ideia
de “base geográfica da história”, através de sua variação conceitual em três elementos
geográficos essenciais: 1) o planalto árido; 2) as regiões de vales; 3) a região litorânea.
Enquanto que a segunda parte apresenta a abordagem crítica efetuada por Euclides a ideia
de Hegel, na qual expõe os aspectos morfoclimáticos que tornam o sertão das caatingas
3 Estas Lições foram organizadas através de compilação de notas de Hegel e alunos sobre cursos proferidos
na Universidade de Berlim nos anos de 1822-1823 e 1830-1831, publicada pela primeira vez em 1837, seis
anos após o falecimento de Hegel. Desde sua terceira edição, em 1917, até a última edição de 1996,
sofreram diversas correções e transformações baseadas nos manuscritos deixados por Hegel e seus alunos.
4 Na tradução brasileira esta lição é denominada de Fundamento geográfico da história universal (HEGEL,
2008, p.73-91).
5 A obra sobre as Lições sobre a filosofia da história universal possui importantes interlocuções com os
pensadores clássicos da Geografia moderna: Alexandre von Humboldt (1769-1859) e Karl Ritter (1779-
1859). Em relação ao primeiro pensador, as Lições são citadas em sua principal obra Kosmos, Entwurf einer
physischenWeltbeschreibung (“Cosmos: esboço de uma descrição física do mundo”). Em relação ao
segundo, Hegel extrai diversos princípios interpretativos de sua principal obra Die Erdkunde im Verhältnis
zur Natur und Geschichte des Menschen oder allgemeine, vergleichende Geographie (“A ciência da terra
em relação com a natureza e a história do homem” ou “Geografia universal e comparada”) (CAMPOS,
2015).
6 A obra sobre as Lições sobre a filosofia da história universal é referência direta ou indireta de diversas
produções geográficas, tais como: Marxismo e Geografia de Massimo Quaini, Por uma Geografia Nova de
Milton Santos e Geografia, ciência e filosofia: introdução ao pensamento geográfico de Horácio Capel
Assim como é referência direta ou indireta em trabalhos de diferentes cientistas sociais que investigaram
sobre o tema, como, por exemplo: Hegel e a Geografia de François Châtelet, A ideia de Europa em Hegel
de Daniel Innerarity e Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do
conhecimento e pluriversalidade epistêmica de Walter Mignolo (CAMPOS, 2015).
um ambiente fora dos padrões classificáveis entre os elementos geográficos essenciais.
Por fim, são realizadas considerações finais acerca desta problemática para a Geografia,
de modo a indagar em que medida é válida a ideia de “base geográfica da história” de
Hegel, indicando possíveis alcances e limites à ótica de Os Sertões.
A ideia de “Base Geográfica da História” de Hegel
A ideia de “Base Geográfica da História” de Hegel se refere a configurações
naturais específicas que possibilitaram ou não o desenvolvimento do “espírito de um
povo” (Volksgeist) 7. De acordo com a região climática e com as relações naturais entre
as superfícies terrestre e aquáticas dos continentes, se estabelece uma determinada
configuração natural que incide na maneira como a história8 é desenvolvida. Neste
sentido, Hegel elabora em sua lição Fundamento geográfico da história universal uma
análise sobre cinco continentes (Oceania, América, África, Ásia e Europa), de maneira a
justificar a inclusão ou não de suas bases geográficas na produção da história universal9
(HEGEL, 2008, p.73-91).
De acordo com Hegel, ao se refletir sobre o contexto natural que contribui para a
produção da história, pode-se ter uma impressão inicial de que este contexto é um
7 A ideia de espírito (Geist) em Hegel é entendida enquanto pensamento, que se torna absoluto na medida
em que há uma construção da consciência coletiva através da superação das faltas, a ideia de
autossuficiência (GONÇALVES, 2001). O conceito de “espírito de um povo” corresponde à forma como
os homens em suas relações entre si e com a natureza criam suas identidades supra individuais como povo,
através dos costumes, da linguagem, da religião etc (HYPPOLITE,1971).
8 Para Hegel, conceito de história e o conceito de espírito formam em sua filosofia uma unidade
indissolúvel. A espiritualidade é o pressuposto fundamental de todos fenômenos aos quais se atribui
história. Assim, a história é o modo de ser essencial do espírito, o modo no qual o espírito chega à sua
autoconsciência (JAESCHKE, 2004). Hegel elabora em seu sistema um exame da história da elevação da
razão humana de um estado de imediatez natural para um estado de liberdade. A história sendo apresentada
enquanto marcha gradual da evolução da consciência da liberdade pelo espírito. Assim, a história é realizada
a partir da contradição entre o racional e o natural, produzida pelo espírito através da passagem de um
“estado de natureza” (Naturzustand) para um estado de espiritualidade ao longo do tempo (HEGEL, 2008).
9 Hegel afirma que: “Na história universal só se pode falar dos povos que formam um Estado”. Nesta
perspectiva, o Estado é constituído enquanto unidade da história, pois segundo Hegel o Estado é a totalidade
da liberdade. A realidade positiva e a satisfação da liberdade só são possíveis de serem alcançadas a partir
da constituição do Estado, que atua enquanto liberdade universal se sobrepondo ao caráter particular das
necessidades individuais. Hegel pressupõe que a liberdade é o fim absoluto do espírito, e que o Estado se
apresenta enquanto totalidade moral e realidade da liberdade (HEGEL, 2008, p.39-40).
elemento extrínseco, casual e aleatório, comparado à universalidade do todo ético que é
atribuído ao espírito10. Entretanto, quando o contexto natural é considerado como Boden
(“terreno”) no qual o espírito atua, ele é um fenômeno necessário e essencial, pois se
apresenta enquanto Grundlage (“base”) da história (HEGEL, 1970, p.105; HEGEL, 2008,
p.73).
Na perspectiva de Hegel, a ideia de espírito se apresenta na história universal a
partir de uma série de manifestações exteriores, cada uma se efetivando como um povo
realmente existente. A existência do espírito se encaixa, tanto no Zeit (“tempo”) como no
Raum (“espaço”), na forma do ser natural. Este é o princípio especial que todo o espírito
de um povo histórico carrega consigo e que tem simultaneamente como determinação
natural em si (HEGEL, 1970, p.105; HEGEL, 2008, p.73).
A ideia de “Base Geográfica da História” não se refere a uma perspectiva
determinista. Na concepção de Hegel a natureza não deve ser superestimada e nem
subestimada11. As diferenças naturais devem ser consideradas como “opções especiais”
que são colocadas perante o espírito. Isto não significa pensar o Boden (“terreno”) como
um local exterior para o espírito, mas sim pensá-los enquanto Naturtypus der Lokalität
(“tipo natural da localidade”), ou seja, o que se relaciona de forma estrita ao caráter dos
povos que são Sohn solchen Bodens (“filhos destas terras”). Este caráter é a maneira como
os povos ocorrem e tomam Stellung (“posição”) e Platz (“lugar”) na história universal
(HEGEL, 1970, p.106; HEGEL, 2008, p.73).
10 O sistema filosófico de Hegel é caracterizado por uma perspectiva antropomórfica em que há uma
valorização do espírito humano em relação à natureza. Nesta relação, Hegel parte de um pressuposto
evolucionista em que a natureza é definida enquanto estágio inicial de desenvolvimento do espírito. Nesta
perspectiva, Hegel estabelece em seu sistema diferentes tipos de hierarquização das formas de saber e de
aparecer da ideia no mundo em que a natureza corresponde à primeira etapa do processo. Os tipos de
hierarquização estabelecidos por Hegel têm como parâmetro o grau de autoconsciência, em que as formas
de saber e de conhecer no mundo partem de um estado de naturalidade e são elevadas a estágios cada vez
mais espiritualizados. O estágio final deste processo é o que Hegel denomina de espírito absoluto (absoluten
geist) e que representa o saber universal da consciência de si. O espírito absoluto se manifesta a partir de
três formas principais: (a) filosofia, (b) religião e (c) arte, representando a superação completa do estado de
alienação da natureza (GONÇALVES, 1998).
11 Como exemplo, Hegel afirma que o céu jônico provavelmente em muito contribuiu para a beleza da
produção poética de Homero (928 a.C-898 a. C). No entanto, este mesmo céu sozinho não criou Homero e
nem foi capaz de criar novos poetas a partir da dominação turca (HEGEL, 1970, p.106; HEGEL, 2008,
p.73).
De maneira geral, Hegel inicia o desenvolvimento de sua ideia de “Base
Geográfica da História” através da exclusão de áreas cujas condições naturais não foram
propícias para o desenvolvimento da história universal. Para Hegel, as zonas frígidas e
tórridas12 da Terra não são regiões adequadas para o desenvolvimento de povos históricos,
pois nestas áreas a consciência dos homens surge cercada por influências naturais
imediatas e toda sua evolução é determinada por elas13. O espírito se encontra
permanentemente voltado para a natureza, para “os raios ardentes do sol” ou para “o
gelo estarrecedor” (HEGEL, 2008, p. 74).
Após a exclusão das zonas frígidas e tórridas da Terra, Hegel exclui as áreas do
“Novo Mundo”. Este termo não se refere apenas ao descobrimento tardio da Oceania e
da América pelos europeus. Estes continentes, segundo ele, são intrinsicamente jovens
em sua constituição física e espiritual. Hegel considera que a Oceania e todo o arquipélago
entre a América do Sul e a Ásia “possui uma imaturidade física” devido à pouca conexão
entre suas superfícies terrestre e aquáticas. Em relação à América, Hegel ressalta que
pouca informação sobre a cultura dos povos originários estava disponível no seu tempo.
Pelos materiais que pôde consultar, chegou à conclusão de que eram “povos bem
primitivos” e que “fatalmente sucumbiram assim que o espírito se aproximasse deles”
(HEGEL, 2008, p.74).
Para Hegel, a América era “a terra do futuro, na qual se revelará, em tempos
vindouros, o elemento importante da história universal”, talvez por uma disputa entre a
América do Norte e a América do Sul14. No entanto, Hegel define que o que ocorreu até
12 Para Hegel “as regiões frígidas e tórridas” são excluídas “do grande drama da história”, pois “nas regiões
de condições extremadas o homem não é capaz de alcançar a livre atuação. O frio e o calor são forças por
demais poderosas para permitir que o espírito construa para si um universo” (HEGEL, 2008, p.73-74).
13 De acordo com François Châtelet, o clima é apresentado como um aspecto “bem pouco dialético” no
pensamento de Hegel. Para ele, Hegel atribui ao clima uma força natural generalizada e incontestável, que
age enquanto padrão global de impossibilidade para o desenvolvimento do espírito (CHÂTELET, 1989,
p.50).
14 A América do Norte de Hegel se refere à América Anglo-Saxônica e a América do Sul à América Latina.
Apesar não utilizar os termos “América Anglo-Saxônica” e “América Latina” em sua regionalização do
continente americano, Hegel identifica na região da América do Norte o desenvolvimento da religião
protestante e a colonização inglesa, enquanto que na região da América do Sul o desenvolvimento da
religião católica e as colonizações espanhola e portuguesa. Segundo Hegel, a ligação da América do Norte
com a América do Sul por um istmo não colaborou para um intercâmbio entre estas duas partes, estando o
continente americano essencialmente separado. Em sua perspectiva, a América do Norte possui uma base
então na América é expressão do “Velho Mundo”. Assim, ressalta que sua preocupação
não é com o porvir, pois lhe interessa a história, o passado e o presente, principalmente
no tocante à filosofia que, para ele, se preocupa com o que é em existência eterna: a razão
(HEGEL, 2008, p.79).
Nesta perspectiva, Hegel salienta que não pretende se ocupar com suposições
sobre o “Novo Mundo”, e que o foco principal de sua análise é referente ao “Velho
Mundo”. Assim, afirma que a base geográfica do continente americano está dividida em
duas partes conectadas de forma exterior, enquanto que o “Velho Mundo”, por sua vez,
estaria dividido em três partes (Europa, Ásia e África) conectadas de forma essencial. Isto
porque o “Velho Mundo” é interrompido por um golfo, o Mediterrâneo, que funciona
como elo essencial de suas três partes e conforma uma totalidade. A característica
principal das três partes que constituem o “Velho Mundo” é estarem situadas em volta
deste mar de tal modo que dispõem de um meio fácil de comunicação, porque os rios e
mares não são pensados como fatores de dispersão, mas de conexão. Exemplifica esta
ideia afirmando que o Mediterrâneo foi o centro da história universal ligando diferentes
e importantes civilizações. O Mediterrâneo é referenciado como o “coração da Europa”
que condiciona e dá vida ao conjunto, reunindo-o e formando o que Hegel denomina
história universal e da qual a Ásia oriental, o extremo norte da Europa e a África
subsaariana se afastaram (HEGEL, 2008, p.79-80).
As três partes que constituem o “Velho Mundo” são analisadas por Hegel a partir
de uma classificação em “três elementos geográficos essenciais”, são eles: “1) o planalto
árido, com suas grandes estepes e planícies; 2) as regiões de vales (terras de transição),
cortadas e irrigadas por grandes rios; 3) a região litorânea, em estreita ligação com o
mar”. Estas são as três formas principais que fundamentam a ideia de “Base Geográfica
da História”, pois representam diferenciações geográficas especificas, essenciais e
racionais, em contraposição a multiplicidade de circunstâncias acidentais (HEGEL, 2008,
p.80). .
De maneira geral, Hegel estabelece conexões entre os três elementos geográficos
e as atividades desenvolvidas pelos seus respectivos povos: na cadeia de montanhas do
geográfica mais vantajosa comparada à América do Sul. Sobretudo a costa leste dos Estados Unidos da
América, por possuir uma larga planície irrigada por rios em direção ao litoral (HEGEL, 2008).
planalto, a pecuária é a ocupação principal; nas planícies fluviais, as principais ocupações
são a agricultura e o desenvolvimento de atividades industriais; e na região litorânea, o
comércio e as viagens marítimas se sobressaem. Por outro lado, a independência
patriarcal está intimamente ligada ao primeiro elemento geográfico, enquanto que a
propriedade e a relação entre senhor e servo com o segundo, e a liberdade civil com o
terceiro.
Hegel buscou exemplificar em que locais do mundo os três elementos geográficos
se apresentam. Em relação as áreas de planalto, Hegel descreve os tipos naturais das
localidades da Ásia Central, dos desertos da Arábia e da Barbária, ao redor do rio Orinoco
(Venezuela e Colômbia) e no Paraguai. Da mesma forma, procura analisar as regiões de
vales, destacando o que as define conceitualmente e utilizando exemplos para localizar a
sua ocorrência no mundo. Para tanto, Hegel define as regiões de vales como planícies
permeada por rios, tais como a Índia pelos rios Indo e Ganges, e o Egito pelo rio Nilo.
Por fim, Hegel define as regiões litorâneas enquanto áreas de planícies fluviais e costeiras.
Neste caso, enfatiza que tantos os rios quanto os oceanos não são elementos naturais de
separação, mas de união, pois ambos permitem o intercâmbio entre os povos. Para ele “as
terras nada mais são do que regiões cortadas por rios”, e utiliza como exemplos a
Silésia, que é o vale do rio Óder, a Boêmia e a Saxônia, que são o vale do Elba, entre
outros (HEGEL, 2008, p.81). .
Neste sentido, Hegel procura considerar que os “três elementos geográficos
essenciais” apresentados são marcantes nos três continentes que configuram o “Velho
Mundo”. Entretanto, em cada continente a relação entre os elementos geográficos se
diferencia: na África se sobressai o planalto15, na Ásia se apresenta a oposição entre o
15 A África é dividida por Hegel em três partes. A primeira é classificada como “África propriamente dita”,
referente a região subsaariana, onde predomina o planalto e com poucos trechos de costa. A segunda é a
região “fluvial do rio Nilo”, referente ao Egito, singular área de vale da África e que se liga à Ásia. A
terceira é denominada de “África europeia”, referente a área setentrional do continente que se liga à
Europa, é a “região litorânea” (HEGEL, 2008, p.82). Para Hegel, tudo que foi produzido como história no
continente africano se refere à porção norte, por isso deve ser considerada como pertencentes à Ásia e à
Europa. A África é fechada e sem história, pois os espíritos de seus povos ainda se encontram envolta da
natureza. Desta forma, Hegel descarta a África e propõe indicar os fundamentos geográficos da Ásia e da
Europa, consideradas como o real palco da história universal (HEGEL, 2008, p.88).
planalto e as regiões fluviais16, e na Europa é estabelecida a síntese entre os três
elementos17 (HEGEL, 2008, p.81-82).
Assim, a Europa é apresentada como a principal “Base Geográfica da História”,
onde o espírito realiza o seu processo de universalidade. Para Hegel: “Na visão geral da
geografia, mencionou-se também a marcha principal da história universal”. Esta marcha
é realizada através de quatro “impérios históricos”: (a) o oriental, (b) o grego, (c) o
romano e (d) o germânico. Deste modo, a Europa é o “fim”18 da história universal que
tem início na Ásia. Apesar da relatividade dos pontos cardeais, Hegel afirma que a história
universal possui um leste absoluto que corresponde à Ásia e um oeste absoluto que
corresponde à Europa (HEGEL, 2008, p.93).
A “base geográfica da história” em Euclides da Cunha
As reflexões de Hegel, assim como de muitos outros pensadores alemães,
influenciaram diretamente a intelectualidade brasileira na virada do século XIX para o
XX. Um autor que demostra essa influência é Euclides da Cunha em Os Sertões. Nesta
obra ele busca articular grande variedade de saberes científicos para criar uma base
16 Assim como a África, a primeira “base geográfica” da Ásia é um planalto recortado por cadeias de
montanhas, na qual se situam as montanhas mais altas do mundo. As cordilheiras que recortam esta região
são interrompidas por rios represados, que formam vales férteis e exuberantes. Diferentemente do que
acontece no continente europeu, estes rios não formam vales ramificados, mas planícies fluviais. Estas
planícies configuram a segunda “base geográfica” do continente asiático. A terceira “base geográfica”
descrita por Hegel é a síntese das duas anteriores e se encontra na Ásia ocidental. Hegel conclui que na
Ásia são estabelecidos dois termos contraditórios em relação essencialmente histórica: a fixação dos povos
das planícies é o constante objeto de esforços para os povos errantes e inquietos das montanhas e do
planalto. A região da Ásia ocidental possui estes dois momentos em um só e se relaciona com a Europa, na
qual migraram todos os princípios superiores. Na Ásia foram criados todos os princípios religiosos e
políticos, mas é na Europa que estes princípios são desenvolvidos (HEGEL, 2008, p.89).
17 Os elementos geográficos essenciais da Europa não são classificados nas categoriais de “planalto”,
“regiões de vales” e “região litorânea”. Hegel utiliza outro tipo de classificação, que divide a Europa em
três partes conectadas: “sul”, “coração da Europa” e “Estados Nórdicos da Europa”. A primeira parte é
a região sul, situada no Mar Mediterrâneo. A segunda parte é denominada como o “coração da Europa”,
e os países que destaca são: França, Inglaterra e Alemanha. A terceira e última parte é constituída pelos
“Estados Nórdicos da Europa”, dentre os quais destaca: Polônia, Rússia e “impérios eslavos”. Estes foram
os últimos Estados que se tornaram históricos, formando e conservando a conexão com a Ásia (HEGEL,
2008, p.90-91).
18 Hegel adverte que este fim não é definitivo, pois o espírito pertence à eternidade e nele não existe
propriamente uma extensão definida (HEGEL, 2008, p.97).
teórico-metodológica que explicasse as causas responsáveis pelo surgimento do povo que
vive nos domínios dos sertões.
As referências a Hegel aparecem frequentemente ao longo da primeira e segunda
parte de Os Sertões. Contudo, o conceito de “base geográfica da história” aparece com
destaque na obra de Euclides, uma vez que este conceito acabou se mostrando uma
importante referência epistemológica para desenvolver suas especulações sobre a
formação etnológica dos sertanejos.
Essa referência se apresenta de forma direta principalmente no subcapítulo
intitulado “Uma categoria geográfica que Hegel não citou”, onde Euclides apresenta as
três categorias presentes no conceito de “base geográfica da história”. A abordagem feita
por Euclides nessa parte do texto teve como objetivo apresentar os caracteres físicos e
culturais que tornam o sertanejo das caatingas uma sub-raça19 exclusiva – no que diz
respeito a capacidade de sobrevivência em um ambiente hostil como o sertão nordestino:
“No 5° capítulo de "A Terra", Euclides refere-se às três categorias geográficas
esboçadas por Hegel, na Introdução de sua Filosofia da História, como fatores
fundamentais de diferenciações étnicas” (MAZZARI, 1996, s.p).
Euclides não menciona o termo “base geográfica da história” ao longo do seu
texto, contudo esse conceito é aplicado por ele em suas especulações acerca dos
elementos que influenciaram nas características que identificam os sertanejos. Essa
referência aparece principalmente no quinto capítulo de “A Terra”, onde Euclides busca
apresentar as três categorias geográficas presentes na ideia de Hegel.
Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais
colaborando com outros no reagir sobre o homem, criando diferenciações
étnicas: As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales
férteis, profusamente irrigados; os litorais e as ilhas (CUNHA, 2002, p. 84).
Cabe destacar que apesar de Euclides não fazer menção as categorias de Hegel,
ele utiliza termos similares para defini-las. Com isso o que Hegel chamou de “o planalto
19 A expressão não tem nenhum sentido valorativo ou pejorativo e está empregada no sentido de
classificação antropológica sinônimo de variedade. Na verdade, não existe na espécie e no gênero humanos
sub-raças, ou variedades, como entre os animais e as plantas. Mas na época de Euclides, admitia-se
existências de raças e sub-raças, ou ramos (CUNHA, 2002, p. 120).
árido, com suas grandes estepes e planícies” são para Euclides “as estepes de vegetação
tolhiça, ou vastas planícies áridas”; “as regiões de vales (terras de transição), cortadas
e irrigadas por grandes rios” de Hegel são para Euclides “os vales férteis”; e o que Hegel
chamou de “a região litorânea, em estreita ligação com o mar” é para Euclides “os
litorais e as ilhas”.
Após esse ponto Euclides começa sua apresentação de duas das categorias
descritas por Hegel – os planaltos e as regiões de vales – indicando exemplos que se
enquadram nelas. Para os planaltos, o autor cita os llanos da Venezuela, as savanas, os
pampas e o Atacama como exemplos, destacando que essas regiões possuíam pré-
disposição para baixas densidades demográficas e para o pastoreio. Essas características
também são mencionadas por Hegel ao definir os planaltos.
(...) O solo onde se encontram não é fértil, ou apenas temporariamente fértil;
os bens dos habitantes não são constituídos pela terra, de onde extraem apenas
um pequeno rendimento, mas pelos animais que perambulam com eles
(HEGEL, 2008, p. 80).
Nesse sentido, Euclides compara tais exemplos ao sertão catingueiro no período
de estio, indagando que este se enquadra na categoria de planaltos de Hegel. Contudo,
durante os invernos chuvosos as características morfoclimáticas mudam drasticamente e
o sertão passa a mostrar hidrografia e flora mais próximas das regiões de vales descrita
por Hegel. Isso ocorre por que a irrigação provocada pelas chuvas oriundas das massas
de ar que se formam na região amazônica chegam no sertão sem encontrar as barreiras
orográficas existentes a leste, permitindo assim um intenso afloramento e frutificação da
vegetação catingueira.
As regiões de vales proposta por Hegel se caracterizam por favorecer a vida nas
suas diversas formas, proporcionando o surgimento de grandes civilizações de caráter
agrícola, como podemos perceber na citação a seguir:
(...) Nessas terras, surgem grandes impérios, e tem início a fundação de grandes
Estados, pois a agricultura, que aqui atua como o primeiro princípio de
subsistência dos indivíduos, depende da regularidade das estações do ano e,
em função disso, de atividades regulares. Surgem a propriedade fundiária e as
consequentes relações jurídicas, ou seja, as bases e os fundamentos do Estado,
que só se torna possível em conexão com tais relações (HEGEL, 2008, p.81).
Euclides não se preocupa em fazer a mesma abordagem feita por Hegel para
descrever as regiões de vales, mas descreve que as transformações sofridas no sertão em
períodos de chuva e estio são fatores que impedem a formação do tipo de povoamento
descrito por Hegel nessa categoria. Para Euclides: “A natureza não cria normalmente os
desertos. Combate-os, repulsa-os” (CUNHA, 2002, p. 86). Essa afirmação apresenta a
ideia de que é nos períodos de chuva que o domínio do sertão – assim como outras regiões
áridas ou semiáridas – consegue estar em vantagem sobre a disputa pela vida. Para
Euclides são esses aspectos únicos do sertão catingueiro que torna os sertanejos um povo
extremamente forte.
A influência do conceito de “base geográfica da história” na obra de Euclides é
exposta de forma clara, contudo Euclides aponta sua dificuldade em enquadrar o domínio
do sertão nordestino entre as três categorias propostas por Hegel, uma vez que este pode
ser enquadrado tanto em planalto árido quanto em regiões de vales, dependendo do
período em que se analisa:
Aos sertões do norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um
lugar no quadro do pensador germânico.
Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira
subdivisão; ao atravessá-los no inverno, acredita-se que são parte essencial da
segunda. [...]
Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações
fantásticas, contrastando com a desolação anterior [...]
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono (CUNHA, 2002,
p. 85-86).
Apesar de Euclides não categorizar o sertão nordestino entre as categorias da
“base geográfica da história”, ele faz uso do mesmo raciocínio de Hegel para explicar as
condições que proporcionaram o surgimento do povo sertanejo. A necessidade de
valorizar os personagens que seguiram Antônio Conselheiro (1830-1897) na Revolta de
Canudos (1893-1897) estimulou o autor a fazer uma obra rica em relação aos saberes
científicos, mostrando uma extrema capacidade em articular um acervo variado de
conhecimentos hegemônicos na sua época.
Considerações finais
As ideias atribuídas a Hegel sobre a relação entre o espírito e a natureza na
formação dos diferentes povos serviu como referência para diversos campos científicos.
As semelhanças entre as abordagens feitas por Hegel e por geógrafos clássicos – como
Ritter e Humboldt – e os trabalhos contemporâneos de geógrafos e demais pensadores
das ciências humanas comprovam tal referência. Esses fatos demonstram a importância
das especulações de Hegel para a história do pensamento geográfico, assim como para a
ciência feita no decorrer dos séculos XIX e XX.
As análises de geógrafos e demais cientistas sociais contemporâneos sobre o
conceito de “base geográfica da história” de Hegel são marcadas por críticas ao discurso
ideológico, utilizando-a como referência para descontruírem as concepções de mundo
pautadas no pensamento eurocêntrico e determinista20. Entretanto, Euclides da Cunha
propõe uma abordagem diferenciada sobre a ideia de Hegel, ao elaborar uma crítica
fundamentalmente epistemológica.
Em Os Sertões Euclides se apropria do conceito de “base geográfica da história”
para aplica-lo de forma crítica à realidade do sertão catingueiro, demostrando que o tal
domínio não se adequa perfeitamente em nenhuma das três categorias: o planalto árido,
as regiões de vales e a região litorânea. O sertão é apresentado como uma síntese na
dialética entre as configurações naturais do planalto árido no período de estiagem e das
regiões de vales no período pluvial. Para Euclides a natureza do sertão “compraz-se em
um jogo de antíteses” e é “posta, como mediadora, entre os vales nimiamente férteis e
as estepes mais áridas” (CUNHA, 2002, p. 86).
Nesta perspectiva, tanto Euclides quanto Hegel destacam em suas abordagens a
importância dos elementos naturais na configuração dos povos existentes no mundo, mas
os propósitos das suas análises se mostram antagônicos. Hegel faz uma abordagem que
enaltece os povos das regiões de vales e da região litorânea em detrimento dos povos
do planalto árido, indicando que um ambiente irrigado favorece o surgimento de
20 Nas palavras de Massimo Quaini, por exemplo: “Parece portanto evidente o resultado “geográfico” da
filosofia da história de Hegel: a dialética do espírito do mundo toma as roupagens de uma história
nitidamente etnocêntrica justificada sobre uma base geográfica e caracterizada por um processo histórico
unidirecional em que as diversas fases históricas ou formações histórico-naturais são os momentos
necessários da progressiva realização do espírito, que Hegel considera concluída como sociedade germano-
cristã ou burguesa” (QUAINI, 1979, p.33).
civilizações mais capazes. Já Euclides utiliza a ideia de “base geográfica da história” para
valorizar o sertanejo, destacando que os aspectos físicos do sertão induziram a formação
de um povo extremamente forte e adaptado as dificuldades de sobrevivência.
Quando Hegel se refere aos povos que se formam no planalto árido afirma
que “(...) São pessoas despreocupadas, que não poupam para o inverno; é assim que,
geralmente, metade do rebanho perece” (HEGEL, 2008, p. 80). Já Euclides descreve que
os vaqueiros do sertão “Fez-se forte, esperto, resignado e prático” (CUNHA, 2002, p.
151), mostrando que apesar do ambiente hostil do sertão, o povo formado nessas
localidades está longe de se enquadrar nas características que Hegel descreve sobre os
povos que vivem no planalto árido.
Em virtude dos argumentos expostos, consideramos o conceito de “base
geográfica da história” de Hegel importante para o pensamento geográfico, uma vez que
procura apresentar a conexão entre a natureza e a sociedade na produção da história. O
mesmo ocorre em Os Sertões, onde Euclides promove o que pode ser considerado um dos
primeiros trabalhos geográficos feitos no Brasil, na medida em que analisa os fatores
físicos e sociais que influenciam na dinâmica espacial do sertão catingueiro.
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