A Tradicao Da Narrativa No Jongo

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

A TRADIO DA NARRATIVA NO JONGO

Renato de Alcantara

2008

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A TRADIO DA NARRATIVA NO JONGO

Renato de Alcantara

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obteno do Ttulo de Mestre em Cincia da Literatura (Literatura Comparada)

Orientador:

Prof.

Doutor

Frederico

Augusto Liberalli de Ges.

Rio de Janeiro Agosto de 2008.

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A TRADIO DA NARRATIVA NO JONGORenato de Alcantara Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de GesDissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Literatura (Literatura Comparada). Aprovada por:

_______________________________Presidente, Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de Ges (Departamento de Cincia da Literatura UFRJ)

_______________________________Prof. Dra. Martha Alkimin de Arajo Vieira (Departamento de Cincia da Literatura UFRJ)

_______________________________Prof. Dr. Emerson da Cruz Incio (Departamento de Letras Clssicas e Vernculas Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Universidade de So Paulo)

_______________________________Prof. Dr. Andre Luiz de Lima Bueno (Departamento de Cincia da Literatura da UFRJ)

_______________________________Prof. Dr. Eucana de Nazareno Ferraz (Departamento de Letras Vernculas UFRJ)

Rio de Janeiro Agosto de 2008.

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Alcantara, Renato de. A tradio da narrativa no Jongo / Renato de Alcantara. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2008. xii, 105f.: il.; 31 cm. Orientador: Frederico Augusto Liberalli de Ges. Dissertao (mestrado) - UFRJ / Faculdade de Letras, Programa de Ps-graduao em Cincia da Literatura, 2008. Referncias Bibliogrficas: f. 98-105. 1. Literatura. 2. Narrativa. 3. Jongo. I. Ges, Frederico Augusto Liberalli de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Ps-graduao em Cincia da Literatura. III. A tradio da narrativa no Jongo.

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AGRADECIMENTOSMuitas so as pessoas a quem tenho enorme dvida de gratido. Essa pgina insuficiente para externar todo o carinho e apreo que sinto por todos: V Andreza, com doura e rigidez de negra que veio da roa, sinto saudades... Dona Helena, me que me ajudou a ser o que sou hoje. Jorge, Edson, Nice, Lourdes meus irmos que tanto me apoiaram. Bruno, Thaise, Taiane e Matheus, sobrinhos amados. Rita Cludia, Terezinha e Z, meus cunhados prediletos. Minhas tias Irene e Edna Anna... Como agradecer se o Amor generoso? Aos amigos Ailton Benedito, Wladmyr Edson, Srgio Barbosa, Delcio Teobaldo, Paulo Dias, Alberto Ikeda, Mestre Gil do Jongo, Dona Su, Perigo Campelo, Marcus Vinicius Bezerra, Heraldo HB, Arnaldo Coelho, Helene Gomes, Henyse Valente, Ricardo Delfim, Cssia Borges, Eva Lcia, Cosme, Eliana e os jongueiros de Barra, Piquete, Serrinha, Tamandar, Jongados na vida, ao povo do Cachura, ao pessoal do Audiovisual do Museu do Folclore, Rose Granja, Iman Aguiar, Antnio C. Frana, Christian, Valdir, Viena, Fred Ges, Luis Alberto Nogueira, Eduardo Gomes, Carla Koutsouklis, Maria Anglica, J, Cristina Varandas Rubim, Jarley Frieb, Rita Floresta, Andrea Batalha, B, Max, Dani, Silene, Andr, Tatiane Azeredo, meus amigos e alunos da E.T.E. Visconde de Mau e C.E. Evangelina Porto da Motta, Maria dos Santos Baptista, Gilceia Boret Florncio, Genilce Vidal e todos as meus professores da EE Euclides da Cunha... Muito obrigado por fazerem parte de minha vida e que Deus os ilumine sempre e sempre!

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MensagemOuvi tua cano distante Tua voz roucade saudade dos caminhos de nascena Ouvi e guardei no corao.. E a tua voz minha voz nossa voz No quer grades nem fronteiras E distncia tambm grade Tambm fronteira dentro de ns. Ouvi tua voz rouca de saudade E no encontrei ave solta dos dias E das noites da Munhuana E venho aqui chamar teu sangue meu sangue nosso sangue Venho aqui chamar Carolina Carolina...! Carolina...! Com a mesma voz minha voz, tua voz, nossa voz mesmo sangueteu sangue meu sangue nosso sangue que saudade pode enrouquecer no cantar distante mas desespero tem que fazer flor em toda parte. (Jos Craveirinha)

vii RESUMO

A TRADIO DA NARRATIVA NO JONGORenato de Alcantara Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Ges

Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Literatura (Literatura Comparada).

Esta pesquisa procura aliar o jongo, manifestao artstica oriunda dos povos bantu, narrativa, categoria esttica da literatura. Para tanto analisamos a trajetria dos negros africanos em frica e na dispora a que foram submetidos em terras brasileiras. Verificamos que os elementos que o constitui, o terreiro, a fogueira , o tambor, a dana e o ponto narram no s essa trajetria como todo os processos de (re) construo identitria. Com maior nfase nos pontos, nossa pesquisa mostra o modo criativo, irnico e metafrico com que o negro consegue construir as histrias de sua comunidades e criticar a realidade social que o cerca sem perder a alegria, pois o jongo apresenta-se, antes de tudo, como uma celebrao vida.

Palavras chave: Literatura, Literatura Africana de Expresso portuguesa, Bantu, Jongo, Caxambu, Escravido negra. Rio de Janeiro Agosto de 2008.

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ABSTRACT

JONGO AS A PIECE OF NARRATIVERenato de Alcantara Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de GesAbstract da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Cincia da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Literatura (Literatura Comparada). This research discusses the connections between the Jongo - a complex cultural manifestation created by the African slaves in Brazil and cultivated up to now by theirs descendents, and aspects of the Narrative as an aesthetic category of Literature. Moments and aspects of life in Africa as well as in the trajectory of the Diaspora - the long process of reconstruction of the slaves scattered social institution and identity are illuminated to justify the propositions. The court yard (o terreiro), the bonfire, the drums, the dance and the ponto (the poetics phrases) tell us not only about this trajectory, but also about the identity (re)construction process. Focusing on the pontos, the research shows the creative, ironical and metaphorical way the Black people have invented to rebuild their communal stories at the same time their criticizing their social reality with joy. Above all, Jongo presents itself as a celebration of life. Keywords: Literature, African Literature, Narrative, Slavery in Brazil, Bantu, Jongo, Caxambu. Rio de Janeiro Agosto de 2008.

ix SUMRIO

NDICE DE FIGURAS ............................................................................................... xi INTRODUO...........................................................................................................13 CAPTULO 1: OUVIR, CANTAR, CELEBRAR. .....................................................221.1. - O narrar ................................................................................................................... 22 1.2. - Atlntico: O lado de l............................................................................................ 241.2.1. - Os bantu .......................................................................................................................... 25 1.2.2. - Dos Imprios Dispora ................................................................................................. 28 1.2.3. - A Teia Africana............................................................................................................... 33 1.2.4. - Religiosidade Bantu ........................................................................................................ 35

1.3. - O lado de c do Atlntico ....................................................................................... 381.3.1. - Os negros no Brasil ......................................................................................................... 39 1.3.2. - O Rio de Janeiro.............................................................................................................. 42 1.3.3. - A Territorialidade e o Jongo ........................................................................................... 43

CAPTULO 2: SOB O SOM DO TAMBU.................................................................492.1. - O Jongo .................................................................................................................... 492.1.1. - O Jongo e o Caxambu. .................................................................................................... 50 2.1.2. - Os participantes............................................................................................................... 51

2.2. - Da frica para a dispora ...................................................................................... 532.2.1. - Tambu no Jongo.............................................................................................................. 54 2.2.2. - A dana ........................................................................................................................... 59 2.2.3. - O ponto............................................................................................................................ 60

CAPTULO 3: A TRADIO....................................................................................633.1. - Definio de tradio .............................................................................................. 63

x3.2. - A literatura sobre o Jongo...................................................................................... 643.2.1. - Exticos........................................................................................................................... 64 3.2.2. - Exgenos......................................................................................................................... 66 3.2.3. - Brasil, Mestio ................................................................................................................ 67 3.2.4. - Emancipatrio ................................................................................................................. 68 3.2.5. - Parntese ......................................................................................................................... 69

CAPTULO 4: A GUA VAI EM RIBA E A PEDRA ESPIA..................................734.1. - A narrativa no Jongo .............................................................................................. 734.1.1. - Tipos de pontos ............................................................................................................... 73

4.2. - Memria e ancestralidade ...................................................................................... 754.2.1. - Saudade ........................................................................................................................... 77 4.2.2 - O Cativeiro ....................................................................................................................... 78 4.2.3. - Liberdade ........................................................................................................................ 81 4.2.4. - Demanda ......................................................................................................................... 86 4.2.4. - O tatu............................................................................................................................... 88

4.3. - Morre congo, fica congo ......................................................................................... 91

CONCLUSO ............................................................................................................97 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................98 STIOS NA INTERNET E REVISTAS ELETRNICAS........................................104 FONTES SONORAS ................................................................................................104 FONTES AUDIOVISUAIS ......................................................................................105

xi NDICE DE FIGURAS

Figura 1: Cartaz do 4 Encontro de Jongueiros, 1999, Rio de Janeiro, RJ........................18 Figura 2: Cartaz do 5 Encontro de Jongueiros, 2000, Angra dos Reis, RJ. .....................18 Figura 3: Cartaz do 6 Encontro de Jongueiros, 2001, Valena, RJ. .................................19 Figura 4: Cartaz do 7 Encontro de Jongueiros, 2002, Pinheiral, RJ.................................19 Figura 5: Cartaz do 8 Encontro de Jongueiros, 2003, em Guaratinguet - SP. ................20 Figura 6: Cartaz do 9 Encontro de Jongueiros, 2004, no Rio de Janeiro. ........................20 Figura 7: Painis do 9 Encontro de Jongueiros, 2004, no Rio de Janeiro. .......................20 Figura 8: Cartaz do 10 Encontro de Jongueiros, 2005, em Sto. Antnio de Pdua - RJ..21 Figura 9: Cartaz do 12 Encontro de Jongueiros, 2008, em Piquete - SP..........................21 Figura 10: Expanso dos bantu na frica 3000 a.C. - 500 d.C. .........................................25 Figura 11: Principais troncos lingsticos africanos..........................................................26 Figura 12: Imprio de Gana. ..............................................................................................29 Figura 13: Imprio de Mali................................................................................................30 Figura 14: Imprio Songai. ................................................................................................31 Figura 15: Dispora africana. ............................................................................................32 Figura 16: Origens das naes Africanas no Rio de Janeiro. ............................................38 Figura 17: Mapa da frica Central ocidental: ...................................................................41 Figura 18: Mestre Gil, de Piquete e Dona Zez Machado, jongueira de 84 anos..............45 Figura 19: Mapa do Esprito Santo e regies de ocorrncia de Jongo (adaptado).............46 Figura 20: Mapa do Rio de Janeiro e regies de ocorrncia de Jongo (adaptado). ...........47 Figura 21: Mapa de So Paulo e regies de ocorrncia de Jongo (adaptado)....................48 Figura 22: Jongo de Porcincula. ......................................................................................56 Figura 23: Tambu e tablas de bananeira de Dlcio Teobaldo............................................57

xii Figura 24: Tambores do Jongo do Tamandar. .................................................................57 Figura 25: Oficina de tambu no 12 Encontro de Jongueiros em Piquete - SP. ................58 Figura 26: Esticando a pele. - Oficina de tambu. ..............................................................58 Figura 27: Tambores so afinados na fogueira..................................................................58 Figura 28: Jongo. Artesanato de Maria Luiza Santos Vieira, de Taubat - SP. ................59 Figura 29: Oficina de Jongo da Dona Su, Cabo Frio - RJ, em 13 de Julho de 2008. ........60 Figura 30: Apresentao de caxambu em Santo Antnio de Pdua, RJ............................74 Figura 31: Mestre Joviano, jongueiro de So Lus do Paraitinga......................................77 Figura 32: Mestre Darcy....................................................................................................94 Figura 33: Aniceto do Imprio Serrano. ............................................................................95 Figura 34: Tia Maria do Jongo da Serrinha no Quilombo So Jos da Serra....................95 Figura 35: Ftima (Fatinha do Jongo de Pinheiral) ...........................................................95 Figura 36: Dona Eva Lcia, jongueira de Barra do Pira toca e canta um jongo...............96 Figura 37: Jovem jongueiro de Porcincula montado no tambu. ......................................96 Figura 38: Crianas do Quilombo So Jos.......................................................................96

INTRODUO Esta dissertao representa o empenho em demonstrar como as manifestaes da cultura popular, especificamente o Jongo, inserem-se no cnone literrio, por serem possuidoras de caractersticas e elementos que lhe do feio esttica. No caso do Jongo, h grandes desafios: Pesquisas recentes de maior flego e amplitude do novos, interessantes e mltiplos nortes a serem seguidos, no campo histricosocial, esttico e simblico. Existem, ainda, diversos ns a desatar e esperamos contribuir para afrouxar alguns destes, dando visibilidade e voz s comunidades remanescentes de escravos. Com relao origem e o significado da palavra jongo, temos trs hipteses: LOPES (1996, p 142) indica uma dana dos ovimbundu, de nome onjongo, conforme consta no Dicionrio Portugus-umbundu, de Grgoire Le Gennec e Jos Francisco Valente. No mesmo verbete, discorda de Antenor Nascentes que v o vocbulo derivar de Jihungu, instrumento musical. No documentrio Feiticeiro da palavra (2001), o jongueiro Z Carlos afirma que Jongo significa saudade da frica. J em Jongos, calangos e folias (2007), Robert Slenes, aposta na palavra do kikongo nzongo, presente no umbundu e kimbundu na forma songo, que significa flecha ou bala. Diz que h uma expresso em kikongo nzongo myannua, a bala da boca, isto , a palavra usada agressivamente e o provrbio umbundu a palavra como uma bala. Finalmente, Antnio Jos do Esprito Santo1, traz o vocbulo kimbundu nongo, enigma, adivinhao. Ji-nongonongo o jogo de adivinhas, de charadas que, segundo o

RIBEIRO (1960, p. 26) Tambm aponta esse parentesco, mas no se aprofunda nem assume, pelo que entendemos, essa posio.

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14 etnolingista suo Hli Chatelain possui carter talvez scio-educativo, praticado pelos mais velhos de uma comunidade. Conclui afirmando quesendo Jongo uma manifestao muito antiga, de carter transnacional, bem mais complexa do que imaginvamos, podemos concluir tambm que a dana devia ter importncia apenas acessria nos eventos (talvez at, meramente eventual) no mbito de um atividade social, francamente, africana, muito ocorrente no Vale do Rio Paraba do Sul, de meados do sculo 19 at hoje. (ESPRITO SANTO, 2008)

No que tange a origem do Jongo, duas correntes tericas tentam explicar se brasileiro ou oriundo de frica. A primeira corrente argumenta que ele toma forma no contato entre a cultura dos cativos, srie de saberes e fazeres destes, e a dos proprietrios de terras e senhores de escravos (GANDRA, 1995 - SIMMONARD, 2005). A segunda, representada por LOPES (1988, 2003), MUKUNA (2000), SILVA (2006) e outros, defende a origem no entorno da regio Congo-Angola, trazida para o Brasil com os negros bantu escravizados. No exclumos dogmaticamente a primeira abordagem, mas apoiamo-nos nas atuais evidncias de que o Jongo, alm de traduzir as representaes simblicas dos escravos nas relaes s quais foram forosamente sujeitados, semelhana de uma lngua franca, era elo de unio e resistncia das diferentes culturas postas em contato na senzala frente cultura do opressor. (SLANES, 2008 - STEIN, 1990). Neste sentido, entendemos, como se ver, que a primeira viso minimiza a importncia das comunidades negras na reconstruo de seus elementos culturais e mascara o histrico abismo social entre as populaes afrodescendentes e os de identificao europia. Como, ao nos apoiar na segunda corrente terica, estamos refazendo o caminho dos negros do Brasil at a frica, muitas bifurcaes nos surgem. As hipteses do sentido da palavra Jongo, por si ss exigiriam um trabalho parte, tarefa que, cremos, ainda ser feita. Resta a ns - que nas palavras dos velhos jongueiros, somos "pinto pequeno" - perceber se as

15 proposies apresentadas so ou no contempladas pelo Jongo: a dana, o adivinhar, a palavra-bala que fere com o peso do enigma. Quem mais se aproxima do correto? No sabemos. Afinal de contas segredo de parede, barata sabe tudo, diziam os negros velhos. Manifestao cultural complexa, que transita no campo do sagrado e do profano, o Jongo uma instituio social na medida em que o conceito abrange, simultaneamente, a prtica divinatria, dana, canto, canes, melodia, instrumentos, o momento da confraternizao e o grupo social dos jongueiros. Deste modo, grafamos a palavra com maiscula quando nessa abrangente significao. No plural enfatizam-se tanto os aspectos particulares quanto gerais. Sabemos, atravs dos Jongos, que os negros tiveram que pr em prtica suas habilidades de dizer de modo indireto. Atravs de metforas percebidas por seus iguais, os antepassados e as foras metafsicas eram reverenciados:Papai era negro da Costa, Mami era nega banguela, Papai come gost de mami, Foi e cas cum ela. (ARAJO, 1964, p. 203).

A dura vida no eito que obrigava os negros a acordar antes do nascer do sol, aps cinco ou oito horas de sono, era mencionada:Aquele diabo de bembo zombou de mim No tenho tempo de abotoar minha camisa, Aquele diabo de bembo zombou de mim (STEIN, 1990, p. 198)

O ponto era um deboche ao feitor que tocava o sino para acord-los. A palavra bembo2 parece referir-se a mbembo, do kikongo3: voz, nome prprio (homem ou mulher);

Na gravao feita pelo pesquisador norte-americano no fica claro se dembo que, neste caso, viria do kimbunbu ndembu autoridade superior ou ndenbo, umbundu, rainha. (LARA E PACHECO, 2008, p.178) Seguiremos a notao dos estudos internacionais sobre povos e lnguas africanos. Grafaremos termos nas lnguas de origem em itlico somente na primeira apario.3

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16 briga; ou do kimbundu mbembo, repetio de um som reenviado por um corpo duro, eco conforme registram PACHECO e SLANES (2008, p. 178). Em nossa opo metodolgica, no nos fixamos em uma comunidade especfica, como grande parte das pesquisas sobre este tema. Comunidades to distintas quanto Porcincula, no noroeste fluminense, e Guaratinguet, no Vale do Paraba paulista, reconhecem-se como portadores das mesmas prticas culturais e, por isso, irmanam-se. Alm disto, muitos jongos so comuns a todas as comunidades, sofrendo modificaes de acordo com a situao ou contexto em que se apresentam, como no par pisei na pedra, a pedra balanceou; pisei na ponte, a ponte tremeu. Ainda sobre o mtodo, houve pesquisa de campo em Barra do Pira e Piquete, onde estivemos entrevistando alguns jongueiros e assistindo suas apresentaes. Participamos do 9 Encontro de Jongueiros no municpio do Rio de Janeiro, comparecemos s reunies iniciais da comisso organizadora do 10 Encontro realizado em Pdua. Por questes pessoais, no pudemos participar deste evento, nem do 11, no Quilombo de So Jos em Valena; mas estivemos no 12 em Piquete, So Paulo, nos dias 25 e 26 de abril de 2008. Durante os dias 6, 13 e 20 de novembro de 2007, participamos da confernciaespetculo JONG - Cantos de f, de trabalho e de orgia, criao de Dlcio Teobaldo, nas dependncias da Caixa Cultural no centro do Rio de Janeiro. Findando nossas investigaes, participamos da oficina de Jongo com Dona Su4, esposa do saudoso Mestre Darcy da Serrinha, no dia 13 de julho de 2008. Produzimos alguns registros fotogrficos e em vdeo digital no intuito de recuperaremos gestos, entonaes e compar-los a materiais produzidos por outros

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Norma Sueli Pereira Arcanjo

17 pesquisadores, alm de termos feito diversas consultas informais atravs de correio eletrnico. Nosso olhar se fixa nos pontos e suas representaes narrativas, suas construes simblicas e o modo pelo qual ele constitudo. A bibliografia consultada multidisciplinar com contribuies da Lingstica, Antropologia, Sociologia, Histria, Geografia e Msica. A pesquisa apresenta a seguinte distribuio: O primeiro captulo - Ouvir, cantar, celebrar - procura armar nossa percepo para alguns aspectos funcionais da narrativa e seu papel frente capacidade simblica humana. Alm disso, focamos o olhar para a poro central ocidental da frica onde encontramos as diversas etnias bantu e chegamos s terras braslicas quando o Jongo ser observado. Sob o som do tambu o segundo captulo. Descreve o jongo e seus elementos constituintes: a roda, o ponto, os participantes e o tambu. O terceiro captulo - A tradio - aborda, alm deste conceito, os paradigmas que nortearam a viso dos estudiosos do assunto. O quarto captulo - A gua vai em riba e a pedra espia - analisa alguns pontos de jongo, selecionados a partir de seus temas: ancestralidade, memria do cativeiro, liberdade, relaes sociais, demanda, permanncia e esperana. Seu ttulo foi retirado de uma das elucidativas conversas que tive com Dlcio Teobaldo, utilizando a Internet. A frase, porm, quanto a seu significado, segue sendo um grande enigma.

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Figura 1: Cartaz do 4 Encontro de Jongueiros, 1999, Rio de Janeiro, RJ. - In: JONGO NO SUDESTE, 2005.

Figura 2: Cartaz do 5 Encontro de Jongueiros, 2000, Angra dos Reis, RJ. - In: JONGO NO SUDESTE, 2005.

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Figura 3: Cartaz do 6 Encontro de Jongueiros, 2001, Valena, RJ. - In: http://www.eefd.ufrj.br/redejongo/home.html

Figura 4: Cartaz do 7 Encontro de Jongueiros, 2002, Pinheiral, RJ. - In: JONGO NO SUDESTE, 2005.

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Figura 5: Cartaz do 8 Encontro de Jongueiros, 2003, em Guaratinguet - SP. - In: (SILVA, 2006, p. 102)

Figura 6: Cartaz do 9 Encontro de Jongueiros, 2004, no Rio de Janeiro. - In: JONGO NO SUDESTE, 2005.

Figura 7: Painis do 9 Encontro de Jongueiros, 2004, no Rio de Janeiro. - In: http://farm1.static.flickr.com/216/509754965_e3c4eba343_m.jpg

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Figura 8: Cartaz do 10 Encontro de Jongueiros, 2005, em Sto. Antnio de Pdua - RJ. - In: http://encontrodejongueiros.zip.net/

Figura 9: Cartaz do 12 Encontro de Jongueiros, 2008, em Piquete - SP. - In: http://www.daescola.com.br/2005/portal/uploads/geral/clipping/183174/thumb/cartaz_ encontro_2008.jpg

22 CAPTULO 1: OUVIR, CANTAR, CELEBRAR. 1.1. - O narrar Em seu clssico artigo sobre a narrativa de Nicolai Leskov, Walter Benjamin (1994, p 198) nos diz que a experincia que passa de pessoa a pessoa a fonte a que recorreram todos os narradores. Tal passagem traz, para o conceito primevo de narrativa, a associao com a arte de contar o mundo, apreendido atravs de saberes vindos de terras longnquas e tambm acumulados na tradio. A transmisso destes conhecimentos se dava principalmente pela oralidade. guisa de estabelecer a possvel gnese do fenmeno narrativo, SCHOLES e KELLOGG (1977) estudam um perodo nebuloso, anterior tradio grega da epopia e, no mito, fixam a primeira forma de narrativa de que se tem conhecimento. Para eles, mito e narrativa tradicional so sinnimos pois mytos em grego tinha exatamente esse significado (Ibidem, p. 153). Indo alm, indicam trs espcies distintas de narrativa tradicional primitiva que observam na maioria das culturas: O conto popular imaginativo, com funo de divertir uma platia; a lenda, conto quase histrico e o mito sacro que uma expresso e justificativa para a teologia, maneiras e moralidades primitivas (Ibidem, p. 153). O contador de histrias, desta forma, narrava o mundo e sua ao de narrar se revestia de autoridade, pois era possuidor do respaldo da experincia compartilhada por toda uma comunidade. A narrativa tinha como fim a transmisso de algum ensinamento, de uma proposio moral, um conselho ou o divertimento. Mantendo-se, durante muito tempo, pela tradio oral, essa narrativa necessitava de um corpus coletivo, narrador e ouvintes, para existir.

23 Das formas apontadas anteriormente, o mito sacro a mais antiga e mais arraigada tradio:Antes que o relato de histrias houvesse alcanado um grau de sofisticao suficiente para fazer da diverso ou do registro histrico sua alada, deve ter estado a servio da teologia primitiva. Os mitos sacros acham-se arraigados nos mais vitais interesses da raa humana . (SCHOLES e KELLOGG, 1977, p. 154)

Esta narrativa caracteriza-se por ser fortemente cerrada, havendo em cada evento uma significao que se encaixa nos demais. Ao final, o entrelaamento de todos eles nos remete a uma significao de ordem csmica, universal, explicadora da origem de um fenmeno natural. a funo etiolgica do mito que sempre mantm uma relao significativa com a vida humana e sua existncia na Terra. Essas facetas do mito sacro, e de sua narrativa, configuram-se enquanto tentativa de apalpar o desconhecido, de o homem intervir no caos do universo, dando continuidade ao descontnuo da doena, das catstrofes, do mistrio da morte, atravs das palavras que, ao serem transmitidas, adquirem valor de verdade e de sagrado. Narrar uma forma de ordenar a desordem, subjugar o desconhecido, anular o esquecimento, perpetuando a existncia.5 A contaminao das narrativas originais por outras oriundas de culturas com que se mantivessem contatos comerciais ou blicos, por exemplo, acaba por diversificar a srie de eventos narrados. O significado de ordenao csmica no desaparece porque, a transmisso de conhecimentos realizada, delineava narrador e narrativa enquanto mediadores das relaes efetuadas entre o mundo e os homens, operacionalizando uma ao de abrangncia totalizadora do real.

H de se lembrar que, nos portos de embarque de escravos, havia a rvore ou portal do esquecimento. Homens e mulheres eram obrigados a dar, respectivamente, 9 ou 7 voltas ao redor deste e em sentido horrio. As memrias, o passado, a cultura e a identidade eram ritualisticamente esquecidas, rompendo todos os vnculos, todos os laos de pertencimento. Deste modo, os cativos perdiam a condio de viventes, convertendo-se em mortos em vida.

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24 Nada escapava ao narrar, toda experincia narrada segue ao encontro do reconhecimento. Os homens se reconheciam no ato de contar suas histrias. Recont-las infinitamente significava o domnio humano sobre o cosmo e a confirmao de que ele revelador de saberes, multiplicando-os. A linguagem o meio pelo qual as coisas se manifestam e adquirem significados. A realidade existe como tal porque o homem impe s coisas relaes instauradoras de uma certa configurao. Na medida em que as sociedades vo se tornando mais complexas, tornam-se necessrias outras formas de mediao entre o homem e aquilo que o cerca. O canto, a dana, a msica, o gestual iro preencher lacunas deixadas pela narrativa. na unio do corpo humano-natureza, que ser reconfigurada a conjuno ancestral geradora do universo.6 1.2. - Atlntico: O lado de l Assim como todos os outros continentes, a frica possui longa histria7, geografias peculiares que orientaram, muitas vezes, seus processos de ocupao e estruturas sciopolticas que nasceram, cresceram e desapareceram atravs de movimentos variados . O deserto do Saara um dos mais importantes marcos geogrficos do continente. Com rea atual de 9 065 000 km2, pouco menor que a Europa, sua expanso, a partir do perodo neoltico superior (2.000 a 500 anos a.C.) responsvel, medida que se expande, pela migrao lenta e inconstante das populaes circunvizinhas.

Nesse sentido, as experincias narrativas na dispora revivificavam os cativos, anulando o ritual da rvore do esquecimento7

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Como o homem deu incio a sua jornada no planeta neste local, podemos dizer que se trata da mais longa.

25 1.2.1. - Os bantu

Figura 10: Expanso dos bantu na frica 3000 a.C. - 500 d.C. - In: http:// www.africahjesempre.com/bantu.jpg

Antes de iniciarmos a caracterizao dos bantu, cabe ressaltar que , partir a partir das ltimas dcadas do sculo XX, pesquisas baseadas na anlise do DNA podem contradizer as solenes afirmaes lingsticas do sculo XIX, as quais nos apoiamos neste captulo. S para se ter uma idia da dimenso desta nova cincia, a Gentica Antropolgica8, pesquisadores traaram a existncia do DNA mais antigo a mais de 60 mil anos atrs na frica provando que a evoluo humana comeou muito mais recentemente do que se acreditava. Ao passo que os estudos lingsticos tomam por base a anlise de fenmenos culturais, bilogos, geneticistas e antroplogos passam a deitar a anlise do genoma. Estas pesquisas ainda principiam e causam polmicas diversas que no nos cabe descrever. Assim,

Lanado pela National Geographic e pela IBM em abril de 2006, o Projeto Genogrfico prev a coleta de 100 mil amostras de DNA de indgenas de todo o mundo, para estudo da migrao humana. Dez centros de pesquisa integram o projeto, sendo que oito j deram incio s pesquisas na Amrica do Norte, Europa, sia e frica. No Brasil, o projeto ser coordenado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). (COM CINCIA, 2006).

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26 os estudos tradicionais ainda so pertinentes e nos do uma via mais segura para nossas consideraes. Em 1862, o fillogo alemo Wilhelm Bleeck utiliza-se do termo bantu para designar variados falares aparentados, nos quais a palavra que designa homens (ou povo) geralmente construda com o prefixo indicador de plural ba- e o radical ntu (o singular muntu).

Figura 11: Principais troncos lingsticos africanos. - Percebe-se a extenso do tronco bantu. - In: http:// www.africahjesempre.com/lingua.jpg

Lingistas como Joseph Greenberg, Malcom Guthrie e Bernd Heine iro, atravs de estudos etimolgico-comparativos, supor a existncia de uma lngua ancestral hipottica o protobantu, da qual derivou o conjunto de cerca de 600 lnguas faladas na regio subsaariana, em uma rea que vai desde a fronteira entre Nigria e Camares at a frica do Sul. No demais atentarmos para a observao de SILVA (1992, p. 210):(...) o conceito de protobanto uma criao dos lingistas e que no se pode falar em origem ltima, em sentido absoluto, de qualquer lngua ou grupo humano - atrs de cada ancestral esto seus ancestrais (...)

Atentos a esta conveno, podemos distinguir a existncia de um protobantu primevo ou do noroeste e de outro secundrio, ao sul.

27 Pela recriao lexical, possvel perceber que esse povo era agrcola e dominava a pesca, uma vez que h palavras que designam dendezeiro, legume, fava, azeite, bode, galinha dangola, cachorro, moita, matagal, anzol, fisgar, canoa e remo. Por conta disto, deduz-se que seu habitat inicial seria semelhante plancie Amaznica, com fartura de gua, rios tranqilos e bastante arborizados, provavelmente ao norte e ao sul da selva congolesa. medida que avanam para o interior e para o sul do continente, travam contato com tribos nmades e coletoras que so anexadas pela guerra ou por acordos escambo. A populao se miscigena, bem como o lxico e a sintaxe. Divergncias internas provocam rotas distintas de povoamento e o passar do tempo trata de diferenciar ainda mais as lnguas. Nos primeiros sculos depois de Cristo, chegam at a costa do Oceano ndico, travando contato com povos indonsios, conhecendo, assim, a banana, o coqueiro e vrias espcies de inhame. Este tubrculo impulsiona sua agricultura pelos vales fluviais do Rufiji, Lrio, e Zambeze e, posteriormente para o interior da frica. O coqueiro rapidamente adotado em todo o litoral juntamente com a banana, fruta que tambm se interioriza em regies de chuvas regulares. Sem sombra de dvidas, o contato e a disseminao destas plantas pelos bantu foram decisivos na agricultura africana de terras midas, e, dada a importncia delas para a sobrevivncia, esto presentes em todas as manifestaes culturais sagradas ou profanas. Nas comunidades jongueiras, relata-se que meia-noite, ao mgico som dos tambores, bananeiras germinavam e davam frutos como por encantamento, como relatou Dona Lusa:

28Tinha vez que l perto da fogueira,o finado Simo, o finado Z Rosa, e o finado Cuca... eles eram velhinhos. A eles botaram um ponto que naquele toquinho de banana plantado perto da fogueira, de repente crescia aquela borracha[broto] e daqui a pouco aquela borrachaabria, dava banana e madurava por causa dos pontos que eles botava! Mas aquilo era s com s com eles... isso a dos cativeiros [negros que viveram a escravido]. (TEOBALDO, 2003, colchete do autor)

Os jongueiros rememoram com as histrias de magia, a trajetria dos antepassados no continente Africano. 1.2.2. - Dos Imprios Dispora Com o intuito de dominar o comrcio em toda regio do Mediterrneo, ocorrem, durante o sculo VII, as invases rabes na poro norte africana. As populaes nativas so subjugadas ou fogem para o Sul. Atuando como fortaleza natural, o Saara permite o surgimento de Imprios negros que iro contrapor-se ao domnio rabe: Gana (sc. X a XII), Mali (sc. XIII a XIV) e Songai (sc. XIV a XV), todos localizados entre o Saara e o Sahel, zona de transio onde ocorre o ecossistema natural chamado savana. Politicamente, esses trs Reinos ou Imprios alternaram seu domnio na medida em que um entrava em crise e o outro chegava a seu pice e, do ponto de vista econmico, controlaro as rotas comerciais de escravos, ouro e sal da regio. O Imprio gans poltica e culturalmente complexo. Congrega uma grande diversidade tnica em torno de um objetivo poltico comum: barrar o avano dos almorvidas para o sul da frica. Apesar de a elite do Imprio converter-se ao islamismo, todo o Imprio mantm suas prticas religiosas tradicionais: a islamizao na regio de Gana foi superficial e atingiu sobretudo as elites dirigentes pois, estava em jogo a soberania econmica na regio do Mar Mediterrneo.

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Figura 12: Imprio de Gana. - In: KI-ZERBO, Joseph. Histria da frica Negra I. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, s/d, p. 137.

O Imprio Mli, ou Sosso, como tambm conhecido, projetava a ascendncia da etnia sosso com o consentimento, porm, das demais etnias da regio, formando uma grande federao tnica. Comea a entrar em decadncia a partir do sculo XV, por causa do acirramento da disputa mundial entre islamismo e cristianismo, de que resulta macia presena islmica na frica. Mas o cristianismo manifestar interesse em adentrar nestas terras. Esta conjuntura regional provocar, por sua vez, brigas inter e intratnicas que instabilizam definitivamente o imprio.

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Figura 13: Imprio de Mali - In: KI-ZERBO, Joseph. Histria da frica Negra I. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, s/d, p. 165.

Mais bem organizado e estruturado que o imprio de Mli, Songai estava fundado em torno da pessoa do imperador com definida estratificao social e vasta organizao burocrtica: os altos funcionrios (os koy, os fari), ministros e governadores das montanhas (tondi-fari), feiticeiras (que tinham a permisso de se dirigirem ao imperador pelo nome), entre outros, so nomeados e demitidos pelo imperador. A formao do exrcito, dividido em vrios corpos, reestruturou a sociedade. Sem ter que ir, compulsoriamente, guerra, o povo trabalhava na terra, na produo artesanal e no comrcio.

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Figura 14: Imprio Songai. - In: KI-ZERBO, op. cit., p. 181.

Mais uma vez as guerras regionais e a conjuntura internacional vo intensificar a prtica da escravizao no Songai. Agora, porm, a lgica prpria da escravido africana, que permitia ao cativo a manuteno de sua identidade clnica e, em certos casos, exercer funes de desataque na hierarquia da tribo onde era cativo, transforma-se, contaminada pela viso euro-asitica de escravido, que considera o cativo como coisa, um bem material entre outros objetos. (SILVA, 1992)

Figura 15: Dispora africana. - In: O Globo, Prosa e Verso, 1 de outubro de 2005. Editoria de arte a partir de mapa de J. E. Harris

Figura 15: Dispora africana.

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33 1.2.3. - A Teia Africana As manifestaes culturais dos escravos negros no Brasil no seguem o paradigma ocidental, marcado pela diviso social do trabalho que modifica as relaes entre os homens e destes para com o conhecimento e a produo de mercadorias. Para tal divide-se em nichos ultra-especializados procura de maior eficincia. O trabalho especializado torna-se a sntese de uma percepo da realidade no mais baseada no todo e na integrao. O consumo diviniza-se e comprar torna-se um fim em si prprio. Como sabiamente aponta Jos Saramago em Ensaio sobre a cegueira, o futuro reserva a cegueira da alienao. Na cultura ancestral africana, o universo articulava-se de modo cosmognico, isto , em autocriao integrada: suas partes respondendo pelas relaes entre os homens, a natureza e os Deuses. De maneira oposta, a tradio judaico-crist, da qual somos herdeiros, dualmente faz a separao matria-esprito. Na tradio estudada, essa dicotomia inexiste: cus, terras, natureza, trabalho, homens, ancestrais e Deuses, todos interagem e se complementam ou, nas palavras de DIAS, (2001, p. 866):Num universo sacralizado, qualquer ao do homem ganha carter ritual, direcionando-se para equilibrar a sua fora vital com as demais energias do cosmo. E convivem em continuum o mundo dos homens, da materialidade, e o mundo invisvel, dos ancestrais e divindades. Sendo, pois, a vivncia do sagrado total e cotidiana, ela no exclui as emoes humanas, o prazer e a alegria: a f com festa que tanto intrigava os cronistas.

Nas sociedades da frica subsaariana, caracterizadas pela predominncia da oralidade, o detentor da palavra possui a funo de ser o guardio das histrias e transmissor do conhecimento de seu povo. A estrutura organizacional destas sociedades garante-lhe poderes especiais, pois atravs das suas palavras que os caminhos sero iluminados e que as tradies so perpetuadas. Cabe aos mais velhos esse papel, devido s experincias acumuladas durante sua trajetria existencial, cabendo-lhes a obrigao de veicular o conhecimento aos mais novos a

34 fim de perpetuar no s a cultura, como tambm a Histria, conforme nos relata PADILHA (1995, p. 16):O feito vivido - lutas internas, dissenses, genealogias, casamentos intertribais, criaes de novos grupos clnicos, etc. - nas sociedades africanas no letradas passava a ter estatuto de fato contado e, com isso, preenchia-se o vazio lacunar da no escrita e a Histria se disseminava pela voz.

nessa comunho que o mundo passa a ter sentido e a sabedoria pode ser transmitida para toda a comunidade. Ao coletiva, fruto dos diversos relatos aos quais se tem acesso, identificatria, pois, conforme diz BENJAMIN (1994, p 200), o narrador um homem que sabe dar conselhos. Para a existncia de um aconselhamento, faz-se necessria a aproximao entre a vida e aquilo que se conta, tornando aquele que narra em sbio, em funo de seus conselhos serem tecidos na substncia viva da existncia (ibidem, p. 200). Ronilda Ribeiro refere-se ao universo africano como uma imensa teia de aranha: no se pode tocar o menor de seus elementos sem fazer vibrar o conjunto. Tudo est ligado a tudo, solidria cada parte com o todo. Tudo contribui para formar uma unidade (1996, p. 41) Essa unidade fundamental do universo reala o cuidado com a ecologia e com o bemestar das pessoas. Tanto o mundo natural, ecologia, quanto o mundo social, isto , o bemestar das pessoas, est em harmonia no que tange a uma viso unificada do universo. Sem o respeito e a preservao aos elementos naturais no possvel ter uma vida social saudvel e, inversamente, a vida social s impossvel sem uma natureza tambm s. Tudo est em tudo. Tudo participa de tudo. Tudo influencia tudo. O todo cada uma das partes, cada parte participa do todo; o todo. O todo a unidade de todas as partes. As diferenas, no esquema da autora, so respeitadas. O africano tem sempre em vista o conjunto, o Universo do qual faz parte e do qual dependente/interdependente. Ele o

35 Universo na medida em que faz parte de seu todo, e o Universo no existiria sem que o Homem dele participasse. A terra lugar da celebrao entre homens, ancestrais e natureza. Conforme nos diz SILVA (2006, p. 41), era guardi dos mortos, a servidora dos vivos e a promessa dos vindouros. Pertencia a todos eles, no tempo e na eternidade. Dessa forma, os territrios que passam de uma tribo a outra no perdem os laos com o ocupante anterior. Pode existir, no seio da tribo ocupante, um descendente da etnia que outrora habitava aquele solo e este ser conselheiro com poder de veto. Caso no haja um descendente vivo ou a terra conquistada agora j tenha pertencido a outro povo, so feitas oferendas para os antepassados destes. As cerimnias dos candombls da Bahia e do Rio de Janeiro iniciam-se pela saudao aos orixs africanos e aos caboclos, considerados como donos da terra. Na Umbanda ocorrem ritos iniciais semelhantes e no Jongo, temos os chamados pontos de abertura, no qual os antigos jongueiros so reverenciados. 1.2.4. - Religiosidade Bantu Ao contrrio do que se imagina, a religiosidade bantu diversa da iorubana, ou nag, de maior visibilidade no Brasil por conta do Candombl. Para aqueles, o cerne da teogonia encontra-se no movimento da fora vital. Todas as coisas existentes so constitudas por energias que podem diminuir, ocasionando malefcios para a coletividade, e devem ser mantidas em equilbrio. A forca vital , ao mesmo tempo, a realidade ltima das coisas, o que as anima e a prpria vida. Dessa forma, trata-se de uma metafsica do dinamismo.

36 Por se calcar na dinmica e na coletividade, o pensamento bantu no se preocupa com o problema da origem, da finalidade, da essncia, do ser. Conforme nos mostra OLIVEIRA (2003, p. 38):Utilizando-se dos termos da prpria filosofia europia, pode-se dizer que a filosofia banta mais uma ontologia dinmica que uma metafsica do ser. Na verdade a noo de Ser no tem correlato na cultura banto. L se fala em fora.

A cultura dos bantu visa, dessa feita, encontrar meios para aumentar essa fora e lutar contra possveis decrscimos, constituindo-se como filosofia da abundncia e da generosidade, na qual no h espao para a culpa ou punies. Morrer significa a diminuio da fora mas, os ritos funerrios funcionaro no como ato de despedida, e sim de ritual de permanncia: a energia do morto transposta para a comunidade isto , da esfera pessoal para o mbito coletivo. Por isso canta Me Zeferina, jongueira do Quilombo de So Jos da Serra (2005):Quando eu morrer No precisa me enterrar Me joga na Paraba Deixe as guas me levar A carne o peixe come O osso deixa afundar.

Os rios representam uma das moradas dos gnios da terra e da gua, como veremos adiante. A fuso corpo-rio (Paraba do Sul), presente no terceiro verso, significa alcanar o panteo dos ancestrais fundadores. A morte torna-se uma etapa do crculo da vida continuamente em movimento. Vida e morte so fases de evaso e restituio da energia que anima o universo:O pensamento banto busca compreender e experimentar essa movimentao da vida. Por isso, os ritos funerrios no enterram defuntos, mas geram ancestrais. O nascimento de um ancestral um aumento qualitativo de Fora Vital no mundo. Os rituais manipulam a Fora Vital numa relao de troca contnua. O sacrifcio de animais, a utilizao de folhas, o uso dos minerais so elementos simblicos constantemente ofertados porque plenos de energia vital.

37Um pacto de restituio e promoo da vida foi selado entre os ancestrais e seus descendentes. Vida movimento. Para que haja movimento preciso haver troca. Os sacrifcios e oferendas so as trocas essenciais para a restituio da energia vital. As trocas simblicas so ritualmente controladas para que seus efeitos sejam pragmaticamente sentidos pela comunidade. (OLIVEIRA, 2003, p. 40)

Para os bantu da regio do antigo Reino do Congo, a Fora Vital um elemento to incorporado no cotidiano que os nomes das pessoas ganham as insgnias desta energia: o primeiro nome o recebimento da ddiva da Fora Vital. Do segundo nome em diante ser o acrscimo de todo feito realizado para aumentar a energia da comunidade e do Preexistente. O indivduo s ter outros nomes ao realizar faanhas que ampliem a energia vital do grupo e, conseqentemente, a prpria. Podemos dizer que a filosofia religiosa bantu estrutura-se conforme a seguinte disposio rgida, no admitindo misturas: Ser Supremo e fonte da vida.: Nzambi, Zambiapungo, Mulunga, Unkululu; Fundadores do primeiro cl humano; Fundadores dos grupos primitivos; Heris civilizadores; Espritos tutelares e gnios da natureza: habitantes de lugares especiais como os rios, lagos, pedras, fundo da terra, os ventos, as tormentas e exercem controle sobre a caa, pesca agricultura e alguns aspectos abstratos da vida humana como a alegria ou tristeza. Tais seres so essncias, no possuindo forma humana, da mesma forma que Nzambi; Antepassados qualificados: conseguiram ascender, por causa de seus feitos notveis, a uma condio de divindade, tornando-se ancestrais; Antepassados simples: preservaram-se humanos, mas se destacam pelo empenho em aumentar a fora vital de suas famlias e comunidade; Humanos vivos.

38 O Ngombo, sistema divinatrio, a forma mais precisa de comunicao entre humanos e antepassados. Basta sonhar para que a consulta ao Kambuna, adivinhador, se torne necessria e, dependendo da resposta do Ngombo, ritos propiciatrios sero realizados. importante observar os rituais de matiz africana no separam o profano do sagrado e a comunho com o divino se d atravs do canto e da dana. Se as religies crists necessitam de um templo para suas libaes, bantu e outros povos de frica tero na prpria natureza seu local de encontro com as foras metafsicas. Com a escravido, as relaes entre o homem e a natureza so alteradas. Num ambiente novo, sem a proteo da coletividade, com novas regras de condutas e a sujeio ao eito, suas prticas identitrias sero refeitas. 1.3. - O lado de c do Atlntico

Figura 16: Origens das naes Africanas no Rio de Janeiro. - In: KARASH, Mary A vida dos escravos do Rio de Janeiro, So Paulo, Companhia das letras, 2000, p. 53.

39 1.3.1. - Os negros no Brasil Em 1584, segundo estimativas do Padre Anchieta, a Bahia contava com trs mil negros e o comrcio escravista s se intensificaria com o passar dos anos, a fim de alimentar a demanda da indstria aucareira e, posteriormente, o do ciclo minerador. Negros originrios da Guin pertencentes, entre outras, s etnias mandinga, berbecim, felupe, ashantis e berbere, genericamente conhecidos como bantu, constituam a predominncia inicial devido ao domnio luso na costa da regio congo-angolana. Esse mercado se altera em 1725 com a mudana do ponto de irradiao de cativos para a Costa da Mina e o envio de iurubs, jejs, nags, e tambm de etnias islmicas como haussas, e mals, inimigas das primeiras. O negro escravizado no perde seus hbitos coletivistas, mas seus vnculos de linhagem e famlia so quebrados: mortos na viagem, no cativeiro, separados entre diversos compradores, com uma quantidade maior de homens adultos, por serem comercialmente mais rentveis do que crianas e mulheres, so raros os ncleos de africanos mantidos na nova terra. Assim, conforme nos diz MOURA (1995, p. 20)Aqui se torna necessrio, uma vez que a cultura trazida desprendida das formas sociais africanas, que sejam recriados os meios de convvio e organizao da religio e fora da rbita de controle dos escravagistas, onde proibida. A prpria sobrevivncia do indivduo escravizado dependia de sua repersonalizao, da aceitao relativa das novas regras do jogo, mesmo para que pudesse agir no sentido de modific-la, ou pelo menos de criar alternativas para si e para os seus, dentro das possibilidades existentes na vida dos escravos.

Pesquisas mais recentes do conta que, a regio compreendida entre o Gabo e o norte da Nambia, forma uma nica zona cultural, no s por fazerem parte do grupo bantu, mas por seus povos compartilharem das mesmas ideologias polticas e vises de mundo. Tais descobertas movem o olhar de etnlogos, antroplogos e historiadores para o fato de os diversos grupamentos tribais que chegavam cativos ao Brasil possuam mais afinidades do que outrora se imaginava. Como as lnguas se aparentavam, provvel que a

40 uniformizao lingstica tenha-se dado a partir de uma lngua oriunda da frica, provavelmente o kimbundu, e aprendida durante a viagem da dispora e no o Portugus. Tal fato significa que o processo de escolha temtica e estruturao coletiva do Jongo remete-se rememorao ou reatualizao das tradies ancestrais comuns a esses escravos. Devido s trocas simblicas na dispora, tais elementos e situaes vo se modificando para se adequar s novas demandas. A narrativa, como dissemos, se fazia necessria na etiologia isto , na busca da origem e causas da vida humana e, para os bantu essa narrativa viria carregada da musicalidade. O missionrio Karl Laman, ao pesquisar os costumes dos integrantes do grupo kongo ao norte do Rio Zaire, diz que homens e mulheres irrompem ao canto pelo mais mnimo pretexto em qualquer ocasio (The Kongo, vol. IV, pp. 83-4; apud SLANES 2008, p. 126). Ele tambm percebe que os corifeus compositores de novos versos so respeitados, acenando para a cumplicidade necessria entre assistncia e solista. A habilidade no canto no se restringia s atividades ldicas ou religiosas, uma vez que estava presente nas demandas jurdicas, envolvendo desafio e rplica, conforme Willian Holman Bentley:Nos tribunais as canes transmitiam advertncias, instrues e admoestaes, assim como tambm aluses ao andamento e desfecho do caso. Freqentemente um homem [enfrenta] outros homens que cantam e agitam seus chocalhos (apud SLANES, 2008, pp. 126-7)

Como os cativos em frica passavam cerca de trs anos juntos antes da seleo e embarque rumo ao Novo Mundo (MUKUNA 2000), havia tempo hbil para permitir a construo de um estoque cultural entre os escravos que j chegavam, por exemplo, falando uma ou vrias lnguas comuns, seja kikongo, kimbundu ou umbundu, usadas no comrcio de escravos, sendo que estudos mais recentes indicam a proeminncia da primeira como o idioma falado nas senzalas do sudeste. (SLANES, 2008)

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Figura 17: Mapa da frica Central ocidental: A fronteira da escravizao 1830-50 e grupos lingstico-culturais. - In: (SLANES, 2008, p. 119)

42 1.3.2. - O Rio de Janeiro Diferentemente do que ocorre na Bahia, a partir da conquista da Costa da Mina o Rio de Janeiro recebe seu maior contingente de escravos do centro-oeste africano, regio habitada por naes do tronco bantu. Segundo KARASH (2006, p. 58) pelo menos dois teros dos africanos que viviam no Rio tinham suas terras natais no centro-oeste africano. Aps 1830, o eixo desloca-se ligeiramente para a direo da frica Oriental e a regio de Moambique passa a responder com cerca de 25 a 30% de escravos. Os negros da frica Ocidental, de origem iorubana ou islamizados, no passam, at 1850, de sete por cento do total. A partir de 1808, com a chegada da Famlia Real, a cidade torna-se centro do poder poltico. Com a decadncia da indstria aucareira e os ciclos da minerao e caf no Sudeste, acompanhada pelo fim do trfico negreiro em 1857, a Bahia passa a vender a maior parte do contingente negro para as Minas Gerais e, posteriormente, para a regio cafeeira do Vale do Rio Paraba do Sul fluminense e paulista. O ciclo do caf tambm move grande parcela de escravos urbanos do Rio para a regio do Vale do Paraba e, aps 1850, epidemias de febre amarela e clera dizimam um nmero to grande de escravos que os sobreviventes so enviados para o interior para que o prejuzo de seus donos no fosse total. A feio negra da cidade, com seus escravos e libertos, muda radicalmente: o trabalho urbano, outrora realizado quase exclusivamente por negros, passa a ser realizado, em sua maioria, por imigrantes brancos ou nativos pobres. H, com a Abolio, uma nova reviravolta na vida do negro. Seu posicionamento como escravo, longe de ser cobiado, consegue piorar: entregue concepo liberal de trabalho livre, sem salvaguardas governamentais e acesso aos requisitos mnimos da

43 cidadania (educao, moradia, sade e participao eleitoral). Disputam, no ambiente urbano, as poucas oportunidades de trabalho com brancos na mesma situao. O preconceito racial e a dificuldade de competio no mercado de trabalho fazem com que grande parte deles se incorporem massa de desocupados e vivam do subemprego ou na marginalidade. 1.3.3. - A Territorialidade e o Jongo Originrio dos batuques e danas de rodas da tradio Bantu, o Jongo apresenta-se como dana comunitria de origem rural que remonta poca da escravido. Pesquisadores do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - IPHAN, registram, em 2004, cerca de 15 comunidades jongueiras nos estados de So Paulo, Esprito Santo e Rio de Janeiro. Mas percebem indcios de que haveria aproximadamente 20 comunidades e cerca de 25 grupos. Dentre as comunidades catalogadas, destacamos o Jongo de ncleos do Morro do Carmo e Bracu (Angra dos Reis) - RJ, Barra do Pira - RJ, Campelo (Bom Jesus de Itabapoana ) - RJ, Miracema - RJ, Pinheiral - RJ, Santo Antnio de Pdua - RJ, Serrinha (Rio de Janeiro) - RJ, So Jos da Serra (Valena) - RJ, Guaratinguet - SP, Cunha - SP, Piquete - SP, So Lus do Piraitinga - SP, Lagoinha - SP e Taubat - SP. Sempre situado num panorama adverso, o negro brasileiro guardou um trao fundamental das culturas africanas e que lhe garantiu a possibilidade de reconstruir novos laos identitros e de solidariedade: a relao coletiva com a terra. Conforme j dissemos, para os povos de frica, a relao entre a o homem e a terra se d de modo coletivo. Na dispora a posse da terra vedada, mas os cativos constroem, tomam posse e defendem o terreiro, espao de cho batido enfrente s senzalas, onde se canta e dana.

44 O terreiro difunde e recria, atravs de suas atividades, no uma cultura monoltica, mas conhecimentos, concepes filosficas e estticas, formas alimentares, msica, dana: um patrimnio de mitos, lendas, refres, em constante recriao, pois so respostas s demandas da realidade vivenciada por negros reunidos no cativeiro. plo irradiador de complexo sistema cultural no qual as manifestaes orais, histrias sagradas, contos, adivinhas, lendas, expresses do canto, constituem um de seus elementos, que deve ser compreendido em funo do todo, isto , do momento em que ocorrem, dos partcipes, os instrumentos utilizados e demais nuances. medida que as represses aumentam, o negro abriga-se na roda para cantar, dialogar, e discutir a reconquista do terreiro e da liberdade, como mostra esse ponto de Guaratinguet:Foi na beira do mar Eu vi ogum guerrear Ele jurou bandeira Ele tocou clarim Com seu exrcito todo Ele lutou por mim (DIAS, 2001, p. 874)

Disto sabiam as tias baianas do incio do sculo, sendo Ciata a mais famosa delas. Tambm eram sabedoras do segundo pilar das tradies africanas: a famlia. No se trata da noo ocidental e/ou burguesa de famlia. Para as comunidades de terreiro, os membros da famlia no s possuem laos consangneos, mas espirituais. A casa est sempre aberta e acolhe a todos que a procuram, tornando-se ncleo de resistncia e abrigo. Todos, em vida comunitria, comungam e partilham o po, as dores, tristezas e alegrias e reavaliam seus cdigos comunicativos. TEOBALDO (2003, p. 11) ao perceber que, a partir de 1970, ocorre a fragmentao na vida social das comunidades do trecho entre Campos e Paraty, desalojadas por conta da especulao imobiliria, mostra que tal fato exigiu das culturas orais-rtmicas como Jongos

45 - que tm seus fundamentos assentados nos laos familiares - uma reavaliao urgente de seus cdigos de comunicao. A migrao para a cidade provoca, nestas culturas, a incorporao de novos temas no seu universo, a fim de serem mantidas as suas funes:No h outra forma de compreender as culturas de terreiro, se no pela sua utilidade. Cantos de trabalho, teros cantados, rodas de Jongo, tudo isso utilitrio. Simplesmente porque necessrio. Socializa aes. Comunga identidades. (...) a cultura oral sobreviveu e ainda sobrevive, como no caso do Jongo rural de Angra dos Reis, porque aprendeu a superar os limites geogrficos ou polticos que poderiam enfraquecer a sua resistncia. (TEOBALDO, 2003, p. 12)

As culturas de terreiro narram, segundo princpios de uma esttica singular, as transformaes sofridas nas suas realidades particulares. Na comparao entre elas pode-se perceber as semelhanas e diferenas de seus processos de identificao e resistncia. As ferramentas tradicionais de anlise literria, porm, no nos permitiriam observar tais fenmenos, uma vez que constroem sentidos a partir de relaes singulares calcadas na territorialidade, nas relaes familiares, na cosmogonia, ancestralidade e no encantamento.

Figura 18: Mestre Gil, de Piquete e Dona Zez Machado, jongueira de 84 anos. - In: www.mauxhomepage.com/imagens2/jongo002.jpg

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Figura 19: Mapa do Esprito Santo e regies de ocorrncia de Jongo (adaptado). - In: SILVA, 2006, p. 13. Base Cartogrfica IBGE 2000. Projeto Geogrfico e Cartogrfico by Geog. Rafael Sanzio A. dos Anjos - CREA 15604/D - Projeto Geografia Afro-Brasileira - Centro de Cartografia Aplicada e Informao Geogrfica. Apoio Tcnico: Marcelo Silva e Adailton da Silva - Dept de Geografia - Universidade de Braslia. Braslia - DF. 2006. E-mail: ciga@unb.br.

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Figura 20: Mapa do Rio de Janeiro e regies de ocorrncia de Jongo (adaptado). - In: SILVA, 2006, p. 20. Base Cartogrfica IBGE 2000. Projeto Geogrfico e Cartogrfico by Geog. Rafael Sanzio A. dos Anjos - CREA 15604/D - Projeto Geografia Afro-Brasileira - Centro de Cartografia Aplicada e Informao Geogrfica. Apoio Tcnico: Marcelo Silva e Adailton da Silva - Dept de Geografia - Universidade de Braslia. Braslia - DF. 2006. E-mail: ciga@unb.br.

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Figura 21: Mapa de So Paulo e regies de ocorrncia de Jongo (adaptado). - In: SILVA, 2006, p. 15. Base Cartogrfica IBGE 2000. Projeto Geogrfico e Cartogrfico by Geog. Rafael Sanzio A. dos Anjos - CREA 15604/D - Projeto Geografia Afro-Brasileira - Centro de Cartografia Aplicada e Informao Geogrfica. Apoio Tcnico: Marcelo Silva e Adailton da Silva - Dept de Geografia - Universidade de Braslia. Braslia - DF. 2006. E-mail: ciga@unb.br

49 CAPTULO 2: SOB O SOM DO TAMBU No se pode considerar as manifestaes de origem africana, bem como suas ressignificaes em territrio brasileiro, sem perceb-las em sua totalidade. O pensamento analtico ocidental, como j dissemos, poucas vezes capaz de perceb-las integralmente, ao dividi-las em partes no momento da anlise. Afirmamos aqui que o movimento descritivo que ora realizaremos sobre o Jongo, ao ilumina-lo o destri. A escrita no capaz de apresentar a multiplicidade de temas, referncias, aluses, gestos e entonaes que so invocados durante uma roda de Jongo. Sabedores de nossos limites, nosso dever descrever o Jongo e suas mltiplas significaes. 2.1. - O JongoO Jongo mata, Jongo no brincadeira, o Jongo das almas, e importante que a senhorinha saiba que est conversando com uma pessoa do santo, eu sou do santo, aquilo ali a casa das Almas e casa de Exu. difcil eu me encanar, sabe, se eu lhe disser que sois linda porque , talvez no lhe diga que s linda porque falta de princpio, mas tambm no lhe digo que s linda, fico na minha. Ento o seu interesse de pesquisar mais para ter patenteado, ter gravado como arquivo a declarao de a, b, ou c, mas no maior no sentido da palavra. Mas como diz o baiano, no buruburu de ofidam diz ele , burro, burra, burra. Estou lhe falando de cadeira, estou lhe autorizando, estou lhe dando autorga, me desminta, me chame de mentiroso se puder. O Jongo das almas, o Jongo deve ser iniciado meia noite, o Jongo exige uma fogueira, nesta fogueira uma vasilha com algo dentro, deve ser acesa uma vela, ao lado desta vela um copo dgua virgem, liso. O Jongo deve ser danado com a indumentria branca, na falta de branca, alva. Mas eu tenho medo, sem fora de expresso, o Jongo deve ser danado descoberto, se homem descoberto. So trs atabaques em ordem crescente segundo o tamanho, candongueiro pequeno e tem o som bem agudo, depois o angoma puta, e depois desse o caxambu. Porque caxambu no dana, no ritual: o caxambu um instrumento, e o ritual o Jongo. O Jongo pai de muitas outras msicas que existem por a, o Jongo pai de tudo isso ou me. O Jongo muito respeitado, o Jongo mata, o Jongo carece at de cabeas maduras, pelo seguinte motivo: o Jongo deitado no met-met, o linguajar do caboclo e eu falar consigo dirigindo-me a ele. E tem que saber desamarrar, desatar aquilo, entender que consigo o que eu estou falando. (apud MOURA, 1995, p. 139)

50 O depoimento de Aniceto do Imprio9 nos d a dimenso que o Jongo possuiu, e ainda possui, para as comunidades negras onde se manifesta: elemento de reunio, divertimento, mas tambm carrega fora mstica, unindo homens com a religiosidade. 2.1.1. - O Jongo e o Caxambu. O Jongo no era danado em data especfica: poderia ser ao final da colheita do caf, em homenagem a pessoa importante, ou nas grandes festas, geralmente religiosas, tais como So Sebastio, Nossa Senhora do Rosrio, So Jos, So Jorge, 13 de maio e festas juninas, em pagamento de promessa do santo de devoo, como demonstra o ponto de Darcy Monteiro10:Bendito louvado seja, o rosrio de Maria. Bendito louvado seja, o rosrio de Maria. Bendito pra Santo Antnio, bendito pra So Joo, senhora Santana, sarav meu zirimo. Sarav angoma-puta, sarav meu candongueiro, abre caxambu, sarav jongueiro. Bendito louvado seja meu zirimo, agora mesmo que eu cheguei foi pra sarav. Bendito louvado seja Senhora Santana, agora mesmo que eu cheguei foi pra sarav. (JONGO DA SERRINHA, 2001)

RIBEIRO (1960, p. 8), observa que:o.Jongo se dana em terreiro e note-se essa denominao, que tambm serve para os locais onde se praticam ritos feitichistas, macumbas, Candombls, etc. Essa uma das indicaes do sentido religioso da dana..

Como prtica afrodescendente, comunga o aspecto cosmognico da relao entre os seres, na qual impossvel estabelecer fronteiras firmes entre o sagrado e profano.

Aniceto de Menezes e Silva Junior um dos fundadores da Escola de Samba Imprio Serrano e morador da Comunidade da Serrinha. Posteriormente conhecido como Mestre Darcy, ser o principal introdutor de mudanas no Jongo,como a presena de crianas, primeiro da Serrinha e que depois iro espalhar s demais comunidades.10

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51 Mais um ponto desta conexo sagrado-profano est na informao que Dona Laurides, jongueira de Barra do Pira, d equipe de pesquisadores do IPHAN: no final de novembro at a quaresma, os tambores esto fechados, no se podendo toc-los. Na Umbanda e no Candombl ocorre o mesmo preceito. Ao contrrio da fala de Aniceto, atualmente h consenso entre as comunidades jongueiras em considerar sinnimos os termos Jongo e Caxambu, sendo esse ltimo largamente utilizado nas regies do Vale do Paraba Fluminense e Paulista. 2.1.2. - Os participantes Em uma roda, os participantes so a assistncia, composta por convidados da comunidade ou, atualmente, espectadores comuns, os instrumentistas e os jongueiros danarinos. No eram admitidas crianas e os mais jovens ficavam de fora observando. A roupa, branca ou alva, poderia ser especialmente reservada para a atividade ou ser roupa comum. Os ps, descalos em contato com o cho de terra batida. As mulheres sempre usavam saia rodada. 2.2. - O som do tambu Perceber o tambor como um dos principais elementos da cultura afro-brasileira nos leva a uma viagem no tempo e no espao. No se pode pens-lo como produto genuno de um povo sob pena de isol-lo, apagar sua histria, catalogando-o como simples bem material. Sua existncia e funo primeva relacionam-se com a necessidade de o ser humano integrar e superar a phisis, isto , a matria, a natureza explcita. Por esse motivo, tambor, para o negro africano torna-se elo relacional entre os planos terreno e metafsico, pois agrega a fora vital do animal que fornece o couro, do vegetal que cede a madeira e a da terra, que fornece o alimento para os ltimos e a fixao de tudo com o

52 uso de minerais metlicos. Por ltimo, o fogo, alm de ser utilizado para escavar o tronco, fundamental para garantir a afinao do couro. Como bem afirmou Dlcio Teobaldo11, o tambor vazio, oco por dentro. Abre-se a (e para) uma nova dimenso absorvendo e transmitindo as energias armazenadas nele e da comunidade que o invoca. Dessa recombinao emerge um ser de energia plena, capaz de encapsular a alma dos antepassados e a essncia das divindades: a partir do toque dos atabaques que ser possvel o transe, (re) ligao entre os planos da existncia. A presena dos tambores, porm, no se restringe ao universo estritamente sagrado: O som dos atabaques tambm ecoa nas festividades profanas visando diverso, fortalecimento dos laos scio-econmicos, de amizade e unio. A Arqueologia registra o aparecimento de tambores durante o perodo neoltico. Um tambor encontrado na escavao na Morvia12, foi datado de 6.000 anos antes de Cristo e na antiga Sumria13 com a idade de 3.000 a.C. Tambores com peles esticadas foram descobertos dentre os artefatos egpcios, a 4.000 a.C. No sudoeste africano, evidncias pr-histricas do conta do uso de peles de peixes e rpteis, colocadas na boca de troncos ocos que eram percutidos com as mos. Com o passar do tempo, peles de mamferos como burros, ovelhas, cabras, passam a ser empregados. Tais materiais, alm de mais abundantes, produziam efeito sonoro de maior potncia e eram mais resistentes que os feitos com animais aquticos, permitindo o uso de varetas.

Informaes colhidas durante ciclo de palestras: Jong, cantos de trabalho e orgia, no auditrio da Caixa Cultural, Rio de Janeiro, entre 06 e 20 de novembro de 2007.12 13

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rea da atual Repblica Tcheca. Onde atualmente localiza-se o Iraque.

53 Para a fixao das peles, pregos e/ou cordas eram utilizados, bem como cola de resina vegetal ou animal. A afinao torna-se possvel pelo uso de cunhas nas cordas ou, como dissemos, atravs do aquecimento do couro em fogueira. 2.2. - Da frica para a dispora O desenvolvimento da metalurgia e das tcnicas de esculpir, na frica e na Arbia, permitem o surgimento de uma gama variada de formatos, tamanhos, materiais e dimenses, possibilitando uma multiplicidade tonal de cada tambor, que passa a receber vrias denominaes. Com a dispora africana, mais uma vez esse panorama transforma-se: No cativeiro, o negro, para reconfigurar sua identidade, reconstri os elementos bsicos desta representao. Os tambores passam a ser construdos a partir de barricas e troncos de rvores (re)descobertas. Tornam-se necessrias novas formas de mediao entre o homem e as coisas que o cercam e isto reflete-se na religiosidade: o panteo de divindades no Brasil extremamente reduzido se comparado s naes africanas de origem iorubana ou bantu. Temos Orixs essencialmente guerreiros. Desse modo, a valorizao do carter festeiro dos negros, comum na antiga historiografia do Brasil escravista, oculta a fortssima e engenhosa matiz de resistncia manifestada atravs da msica dos tambores (a capoeira e maculel no eram simplesmente danas inocentes), do canto (invocavam-se os orixs relacionados luta, alm de se combinarem rebelies em festas profanas como o Jongo) e da gestualidade da dana. A unio ancestral geradora do universo reestruturada em funo da situao objetiva do cativeiro, superando-o.

54 Se o corpo cativo, o imaginrio, ente intangvel, coletivamente constri saberes, ofcios, modos de fazer, lugares e formas de expresso. 2.2.1. - Tambu no JongoOi Tambu, oi tambu Quando eu for me embora pra bem longe Quando eu for me embora pra bem longe, eu levo comigo Ah esse som bate forte em meu corao Tim tim tim tim tim , oi tambu Tim tim tim tim tim oi tambu

Tanto esse ponto cantado pela comunidade de Guaratinguet, quanto o relato de Totonho14, um de seus jongueiros, mostram a importncia vital do tambor para as comunidades negras:O tambor realmente um instrumento muito respeitado no Jongo. Porque ele recebe um nome, tambm significa como se fosse um orix pra gente ali. Ento ele tem que ser saravado, ele tem que ser respeitado, ele tem que ser cumprimentado na roda de Jongo, porque ele um respeito. Sem o tambu o Jongo no sai. (...) o tambu que fala. E a gente transmite tudo que pode atravs do som pra eles l. uma mensagem. (DIAS, 2001, p. 870)

A quantidade de tambores no Jongo assunto controverso. Grande parte dos pesquisadores indica que so dois ou trs os tambores do timbre grave para o agudo. Dlcio Teobaldo, no entanto, afirma que originalmente havia apenas um nico tambor. Os demais timbres seriam executados com uma tabla de folha de bananeira seca percutida diretamente no cho, ou com uma vara de madeira batida diretamente no corpo do tambu, prtica ainda realizada por vrias comunidades. Ressalta ainda que, dadas as condies de sujeio dos escravos no eito, era impossvel, na prtica, conseguir escavar, em madeira, dois ou trs tambores diferentes e prepar-los sem a perda de desempenho produtivo dos envolvidos com esta tarefa. Ele percebe que a constante reiterao dos entes que compe a comunidade de terreiro, o mais

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Jos Antnio Marcondes Filho.

55 novo, o mais velho e o ancestral, fez com que essas trs vozes, primeiramente existentes no plano simblico, fossem relacionadas, posteriormente, aos tambores. No existem provas documentais ou relatos que corroborem sua argumentao; ela calcada no aspecto pragmtico da vida sob o cativeiro. Alm disso, muitos jongueiros informam existir uma srie de preceitos de cunho religioso na confeco de um tambor que vo desde a lua certa para se derrubar a rvore15, o tempo de secagem, o momento de se matar o animal que fornece o couro. A atual literatura sobre o Jongo, sobretudo os relatos nas pesquisas de Stanley Stein mostram que, quando era dada permisso para o Caxambu, escravos e negros-forros de vrias regies compareciam s rodas. Podemos especular que seria perfeitamente provvel que levassem seus instrumentos.16 Divergncias parte, a denominao genrica do tambor da rea dos bantu angoma17. Essa palavra deriva do termo ngoma, oriunda do kimbundu ou kikongo. Por ampliao, a prpria roda de Jongo, s vezes, recebe esse nome. O tambu, maior de todos, apresenta outros nomes dependendo da regio, como caxambu, papai, ou guanazamba. As madeiras preferidas para sua execuo eram suin, canjerana, bico de pato, orelha de negro, ou algumas espcies de cedro. Escavado, tem comprimento de 80 centmetros (mais utilizado por razes acsticas) at mais de 1,5 metros e cerca de 40 centmetros de dimetro.

A confeco de um tambor um grande segredo. Os jongueiros velhos sempre desconversam e os mais novos dizem no saber como faz-los. Ouvi de vrios jongueiros que no se cortava a rvore, deveria esperar que ela casse. Uma das coisas mais espetaculares da pesquisa nas tradies orais negras o fato de que uma srie de elementos permanecem ocultos, aguando a imaginao e a curiosidade.17 16

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Tambm chamado de ingoma, engoma, angona, angomba

56 Normalmente, o tambu colocado no cho, e o tocador monta nele, percutindo-o com as mos. O couro molhado com pinga, de maneira carinhosa, e aquecido na fogueira para manter a afinao. Candongueiro o nome dado ao tambor mdio medindo entre 40 a 60 centmetros e o menor chamado de guzunga ou cadete. A confeco destes semelhante do tambu.

Figura 22: Jongo de Porcincula. - In: http://www.flickr.com/photos/lulassant3 - Foto: Luis Santana

Algumas comunidades18 utilizam-se da puta ou angoma-puta: Uma barrica, sem fundo, encourada na boca. No seu interior, preso ao centro do couro, h um pequeno cilindro de madeira ou bambu, friccionado com um pedao de pano mido ou com a prpria mo molhada, com isso se consegue um som surdo, por isso conhecida como boi ou ona. Seu tocador tambm chamado de maquinista. a precursora da cuca.

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A comunidade de Santo Antnio de Pdua uma das poucas que vi utilizando-a.

57Alm disso, tambm j foi observado a presena da guai, inguai, ingol ou angrai, um chocalho em formato cnico com seixos no seu interior e confeccionado de vrias maneiras em funo da disponibilidade material19. Atualmente, vrias comunidades utilizam-se de instrumentos industrializados, como o Jongo de Piquete; no interior paulista, porm, a maioria das comunidades possui e utiliza instrumentos artesanais.

Figura 23: Tambu e tablas de bananeira de Dlcio Teobaldo. - Foto: Renato de Alcantara

Figura 24: Tambores do Jongo do Tamandar. - Foto: Renato de Alcantara

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O Jongo de Pinheiral, por exemplo, faz uso desse instrumento.

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Figura 25: Oficina de tambu no 12 Encontro de Jongueiros em Piquete - SP. Em abril de 2008. - Foto: Renato de Alcantara

Figura 26: Esticando a pele. - Oficina de tambu. 12 Encontro de Jongueiros em Piquete - SP, abril de 2008.- Foto: Renato de Alcantara

Figura 27: Tambores so afinados na fogueira. - In: JONGO NO SUDESTE, Braslia: IPHAN, 2007 (Dossi IPHAN 05, p. 43). Foto: Thiago Aquino.

59 2.2.2. - A danaDispostos em crculo, os jongueiros movimentam-se no sentido anti-horrio20. O primeiro passo sempre dado com o p direito acompanhando a batida do tambu. Segundo a descrio de RIBEIRO (1960) e GANDRA (1995), podem executar os seguintes passos A) Jongo de roda: Os pares danam em conjunto na prpria roda, obedecendo a mesma coreografia; B) Jongo carioca ou de corte: Enquanto a roda se desloca, um par dana no meio dela. o mais executado nas apresentaes atuais, j que facilita a observao de espectadores; C) Jongo paulista: Os danadores movimentam-se num ajuntamento compacto, realizando, simultaneamente, a coreografia do Jongo de roda. Os danarinos, conforme observa RIBEIRO (1960, p.47), fazendo um balance de dois ou trs passos e viram direita e esquerda numa espcie de simulao de abrao. Um casal realiza, no centro da roda, um solo at que seja substitudo por outro. importante ressaltar que tais descries funcionam apenas como um esquema dos possveis movimentos ou configuraes que os participantes poderiam executar, uma vez que a espontaneidade era e ainda , a marca fundamental no bailado.

Figura 28: Jongo. Artesanato de Maria Luiza Santos Vieira, de Taubat - SP. - In: JONGO NO SUDESTE, Braslia: IPHAN, 2007 (Dossi IPHAN 05, p. 2) Acervo do Museu de Folclore Edison Carneiro. Foto: Francisco da Costa.

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O sentido o oposto ao do realizado no ritual da rvore do esquecimento, conforme falamos (Cf nota 5).

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Figura 29: Oficina de Jongo da Dona Su, Cabo Frio - RJ, em 13 de Julho de 2008. - Foto: Renato de Alcantara

2.2.3. - O ponto21 Do mesmo modo que na Umbanda e no Candombl, o cntico entoado pelo jongueiro chama-se ponto. Ao contrrio das primeiras, no Jongo h somente os smbolos orais e, portanto, pode ser falado ou cantado primeiramente pelo solista, com versos livres improvisados e tem o refro respondido por todos. Deve-se atentar para o fato de os jongueiros utilizarem as expresses tirar ou jogar um ponto quando se referem a iniciar o canto. Entendemos tal procedimento situado no cdigo de coletividade que a roda exige: Ningum o faz. Fazer significaria ato solitrio e individual e a dinmica do processo no fixa autores e sim o prprio grupo. Dessa forma, a autoria dos pontos no mais importante do que nenhum dos partcipes que precisam reconhecer nele a fora de fazer a roda girar.

Durante trabalho de campo em Barra do Pira, alguns jongueiros rechaaram este nome, preferindo o termo Jongo. Algumas justificativas procuravam afast-lo das prticas religiosas. Era o meu primeiro contato com os Jongueiros de Barra, e fui advertido incisivamente. Argumentei que a literatura e vrios jongueiros utilizavam o termo, mas no os dissuadi. Porm o incidente no atrapalhou o ambiente cordial e receptivo de nosso contato, caracterstica comum s comunidades jongueiras.

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61 Alm disso, quando se tira algo porque ele j existia, era imanente comunidade que comunga, toma parte do que dito. Jogar est no campo semntico da diverso e, ao mesmo tempo da destreza. S joga aquele que bebeu bastante da tradio jongueira, aprendendo e apreendendo seus mistrios, preceitos, metforas e malcias.Cheguei na angoma Tinha muita diferena Quero cantar meu pontinho E meus pais velhos do licena.

Tia Luiza e os demais jongueiros de Angra dos Reis costumam abrir assim suas rodas. Avisam que chegaram para o Jongo e pedem licena aos mais velhos. um ato de respeito s regras de comportamento. Quando algum jongueiro deseja cantar outro ponto, interrompendo o anterior, grita: Machado! ou Cachura!. Ambos so elementos de corte, interrupo. Os tambores imediatamente se calam e a dana cessa at que se tire um novo ponto. No perodo escravista, o espao criado com a dana no terreiro representava um raro momento de comunicao da comunidade cativa. Todas as mensagens de apelo, crticas articulaes e pedidos eram executados atravs do ponto que, metaforicamente, se torna mpar ao tirar partido da percepo de a cultura hegemnica considerar o negro incapaz de maiores refinamentos expressivos:Junta, junta mosquito-polva Marimbondo chegou agora.

Era desse modo que os escravos sabiam que algum outro cativo estava sendo castigado e corriam para acudi-lo, conforme relatou uma jongueira de Santo Antnio de Pdua, infelizmente no identificada (INVENTRIO DO JONGO DO SUDESTE, 2005). Mas o ponto nunca converge para uma nica direo, uma vez que nele passam infinitas retas. Deste modo, podemos ler a metfora do ponto de outro modo: apesar de ser diminuto e frgil, por isso comparado aos escravos, o mosquito-plvora ou maruim,

62 endmico nas regies de manguezal, possui uma picada dolorosa que provoca inchao e, em alguns casos, febre. Em oposio a ele, est o marimbondo, representao do feitor ou do Senhor. Muito maior que o mosquito e dono de um ferro que inocula veneno poderoso, tem hbito solitrio. O ponto exorta a unio guerreira dos pequenos contra o grande opressor. A linguagem dos jongueiros dbia, com imagens aparentemente simples, tomadas da realidade prxima (natureza, plantas, o trabalho da roa, os animais). O sentido atribudo a entes movedio, pois as decifraes dos cdigos cantados eram exclusivas s comunidades, vigiadas continuamente por feitores, intendentes ou por brancos que se aproximavam da roda para buscar diverso, como nos informa D. Z, jongueira de Guaratinguet (apud DIAS, 2001, p. 875):os escravo, num podia comunic com ningum, eles no tinha liberdade, n? Ento, quando eles entrava na senzala que eles iam particip um co outro. Ento, no meio eles faziam a roda de Jongo e, ali, cada um cantava o Jongo falando o que queria fal, mas sobre... pela cano. Da, um entendia o que tinha que s feito. As vezes o que se pass no dia, o que ia acontec. Ento, um j avisava o outro. E, era por meio de ponto de Jongo que era comunicado as coisa.

Algumas danas de escravos, como o lundu, chegavam aos sales da casa grande. Do lado de fora, ganha corpo e se desenvolve uma potica de compreenso interna que ainda hoje se atualiza nos obscuros pontos de jongo.

63 CAPTULO 3: A TRADIO. 3.1. - Definio de tradio Como definir tradio? A questo, espinhosa, resvala em vrios outros conceitos contguos a este. Gerd Bornheim, levantando sua etimologia diz quevem do latim: traditio. O verbo tradire, e significa precipuamente entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou passar de uma gerao a outra gerao. Em segundo lugar, os dicionaristas referem a relao do verbo tradire com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que, atravs da tradio, algo dito e o dito entregue de gerao a gerao. (BORNHEIM, 1987, p. 18)

A construo de uma tradio um ato coletivo, comunitrio. Se a tradio ocorre em um passado, sua feitura e aperfeioamento so processuais e permanentes, estando em choque constante com a novidade. Dessa forma, o movimento uma necessidade inerente tradio, mesmo que isso no seja percebido externamente. Como exemplo, podemos verificar a existncia cada vez menor de pontos de desafio ou gurumenta no Jongo ou sua linguagem ser menos cifrada que poca da escravido. Mudam-se as diversas variveis sociais com que as comunidades esto em contato e, as tradies iro, paulatinamente responder a estas mudanas. Eduardo Granja Coutinho, ao estudar o sentido de tradio na obra de Paulinho da Viola, faz distino entre as definies de tradio e tradicionalismo. Segundo ele, tradio, para estar viva, deve articular organicamente o sujeito e o objeto, o povo e seu patrimnio histrico-cultural (2002, p. 15). J o tradicionalismo procura neutralizar o aspecto cultural da tradio, ao aprisionar o legado ancestral no campo do sagrado, no campo de algo que maior do que a capacidade humana de transformar a natureza. (LIMA, 2003, p. 135). Deste modo, o pensamento tradicionalista considera a tradio como uma relquia do passado, objeto imutvel. Quanto a isto, Coutinho nos adverte que

64a ideologia conservadora opera no sentido de naturalizar a cultura, de esvazila de sua histria, o pensamento revolucionrio no pode deixar de se orientar pela considerao de que a tradio, longe de ser um objeto natural ou uma revelao divina, a objetivao da ao humana, e de que a transmisso no tempo das formas culturais no se realiza como mera reproduo mecnica, objetiva, e sim como um processo de reconstruo no qual a cultura afetada e redefinida pelo esforo do sujeito (2002, p. 21).

Aplicando-se este conhecimento ao Jongo, pode-se afirmar que ele s se mantm ativo porque seus praticantes sentem-se agentes criadores no ritual e no apenas reprodutores de um costume ancestral. Isto , a prtica jongueira se d sempre como um revelar de novos sentidos, independente de se estar repetindo os mesmos pontos. 3.2. - A literatura sobre o Jongo Faremos a seguir um quadro resumido a respeito da bibliografia sobre o Jongo estudada. Seu objetivo perceber os discursos sobre o Jongo dentro dos contextos histricopoltico em que foram produzidos. Deste modo, evidenciamos os paradigmas sobre a nacionalidade e a viso que estes pesquisadores tm do afrodescendente 3.2.1. - Exticos Os relatos dos viajantes estrangeiros do sculo XIX a respeito das manifestaes dos escravos do Rio de Janeiro no se preocupavam em estabelecer diferenas ente elas. Com uma viso eurocntrica de civilizaes em progresso, causavam-lhes estranhamento as danas a que assistiam e, assim, seus relatos impregnavam-se de preconceitos. Sob o termo batuque, era chamado qualquer reunio de pretos. Tal termo tambm foi muito utilizado pelas posturas municipais de vrias cidades do Brasil e nos jornais da corte no decorrer daquele sculo. Porm, alguns memorialistas e viajantes registraram alm do batuque, uma variedade de danas executadas tanto por escravos como pelos libertos.

65 Hebe Mattos e Martha Abreu relatam que Rugendas, ao assistir em 1820, o batuque em uma rea rural prxima cidade do Rio de Janeiro, menciona a batida cadenciada das mos, movimento expressivo dos corpos, a direo de um danarino para o centro do circulo onde os outros repetiam um refro (MATTOS e ABREU, 2008, p. 75). O que positivamente assemelha-se a uma descrio do Jongo. Tambm os norte-americanos Elizabeth e Luiz Agassiz viram, entre 1865-6, numa ilha prxima capital, uma dana em circulo com caractersticas do Jongo: Segundo seus relatos, havia um cantador, coro responsorial e dana que se assemelhava dos negros das plantaes dos Estados Unidos e movimento dos braos do fandango espanhol. Por volta de 1868-70, a francesa Tousaint-Samson conta que assistira a uma estranha e selvagem festa no batizado do dono da fazenda So Jos em Piedade. Ela reparou o grande fogo que a tudo iluminava, os dois msicos, com tambores diferentes emitindo sons surdos, a dana em crculos, os cantos e as palavras que, para ela, tinham o objetivo de aumentar a excitao da dana e do amor (apud MATTOS e ABREU, 2008, p. 76). Os batuques relatados ocorriam em dias de festas dos senhores, dos santos, ou nos sbados e domingos. A permisso para o divertimento dos escravos funcionava como uma espcie de administrao do poder a fim de diminuir as tenses inerentes s relaes de sujeio. Alm disso, pode-se pensar que essas apresentaes funcionavam como uma espcie de espetculo para os visitantes, seja demonstrao de generosidade do bom senhor ou dos prprios escravos que exibiam sua presena, guardando para si os significados mais profundos dos cantos e danas. Assim, atravs do Jongo, as informaes circulavam tendo por veculo uma dana, geralmente percebida como sensual ou lasciva. Crticas irnicas aos senhores e feitores eram realizadas, disputas, referncias ao passado e at tentativas de fuga eram cantadas de modo

66 metafrico, cifrado para no serem percebidos. Lograram xito pois, nem no sculo XX, alguns folcloristas notaram os sentidos contidos na imanncia dos versos. 3.2.2. - Exgenos As descries sobre o Jongo do inicio do sculo XX, aproximadamente 1960, informam basicamente que ele era executado por ex-escravos e seus descendentes vinculados a um modo africano de vida. Nesse sentido, os relatos tratam tais populaes no inclusas no conceito de nacionalidade brasileira, como bem observa Adailton da Silva:Aqueles descritos como membros do Jongo eram, em relao aos autores, nobrancos e parcialmente brasileiros. Os jongueiros descritos pertenciam a um grupo racial identificado como diferente (talvez at mesmo inferior) do grupo racial a que pertenciam os autores e eram reconhecidos como portadores de uma identidade nacional prxima, mas no idntica a aquela que os escritores traziam consigo. (SILVA, 2006, p. 47)

Deste modo, quando o msico e folclorista Luciano Gallet diz, no primeiro trabalho onde o Jongo detidamente analisado, que as velhas tradies pretas encontram-se, ainda, muito restritamente, entre gente velha, em lugares afastados dos centros populosos, fazendas e roas longnquas, em cerimnias negro-fetichistas, (1955, p. 54) demonstra muito mais seu distanciamento em relao a tais prticas do que uma preocupao em compreend-las: o material negro entre ns,