Post on 04-Aug-2015
Hannah Arendt
Queira o céu que o leitor, tornado audaz e momentaneamente feroz à semelhança do que lê, encontre, sem se desorientar, o seu caminho abrupto e selvagem através dos lodaçais desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois que, a não ser que utilize na sua
leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo menos igual à sua desconfiança, as emanações mortais deste livro irão embeber-lhe a
alma, como a água ao açúcar. Não convém que toda a gente leia as páginas que se seguem; só alguns hão de saborear sem perigo este fruto
amargo. Por conseqüência, ó alma tímida, antes de penetrares mais longe em tais domínios inexplorados, dirige os teus passos para trás e não para a frente. Ouve bem o que te digo: dirige os teus passos para
trás e não para a frente, como os olhos de um filho que se afasta respeitosamente da contemplação augusta do rosto materno; ou, antes, como a visão ao longe de friorentos grous em grande meditação, que, em tempo de Inverno, voam poderosamente através do silêncio, com
todas as velas tensas, para um ponto determinado do horizonte, donde parte repentinamente um vento estranho e forte, precursor da
tempestade.
O grou mais velho, que por si só forma a vanguarda, ao ver isto, abana a cabeça como uma pessoa sensata, e com ela o bico com que dá
estalidos, e não fica contente (como eu não ficaria, se estivesse no seu lugar), enquanto o seu velho pescoço, já sem penas e contemporâneo de três gerações de grous, se move em ondulações irritadas que pressagiam a tormenta que cada vez mais se aproxima. Depois de, com serenidade,
ter olhado várias vezes para todos os lados com olhos plenos de experiência, prudentemente, é ele o primeiro (pois é ele que tem o
privilégio de mostrar as penas da cauda aos outros grous inferiores em inteligência) que, com seu vigilante grito de melancólica sentinela para
repelir o inimigo comum, vira com flexibilidade a ponta da figura geométrica (talvez seja um triângulo, mas não se lhe vê o terceiro lado
formado no espaço por estas curiosas aves de arribação), ou para bombordo ou para estibordo, como um hábil comandante; e,
manobrando com asas que não parecem maiores que as de um pardal, como não é estúpido, toma assim outro caminho filosófico e mais
seguro.
(Os Cantos de Maldoror, Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont )
POLÍTICA É LIBERDADE:A CONSTRUÇÃO DO
PENSAMENTO ARENDTIANOE A DESNATURAÇÃO DA
POLÍTICA COMO PROCESSO FILOSÓFICO
liberdade é liberdade, liberdade é liberdade, quer garantida por leis de quer garantida por leis de
um governo ou por um um governo ou por um estado comunistaestado comunista
A Política Enquanto Ação Pré-Filosófica
• Crítica ao Pensamento Platônico
• O Acento Socrático: A Relação Liberdade e Igualdade
• A Raison d’Étre da Política é a Liberdade
• Hannah Arendt e a tradição
• O “porquê” do divórcio entre política e liberdade
Crítica ao Pensamento Platônico
As questões que permeiam o confronto entre as relações de política e
liberdade, bem como de força e de poder surgem em decorrência de uma ruptura radical entre dois fenômenos distintos, a saber: política e filosofia
Arendt aponta para uma cisão entre filosofia e política, bem como para
uma apropriação conceitual indevida desta mesma filosofia com relação ao sentido do que seja, de fato, a política
na sua gênese. Tal ‘equívoco’, decerto, gerou conseqüências que perduram até hoje no pensamento
filosófico-político
A condenação de Sócrates aparece a Platão como o ponto axial para a decadência da peithein. O fato de
Sócrates não ter conseguido convencer os juízes daquilo que era uma obviedade teria feito com que
Platão se desencantasse com a persuasão, duvidando de sua
validade. (ARENDT, Hannah. Filosofia e
Política)
O espetáculo de Sócrates submetendo sua própria doxa às
opiniões irresponsáveis dos atenienses e sendo
suplantado por uma maioria de votos, fez
com que Platão desprezasse as opiniões e ansiasse por padrões
absolutos
Diferentemente daquilo que a própria filosofia apregoa, a construção platônica formulou por objeto
não uma verdade última e ideal, mas, isto sim, a efemeridade e a contingência a qual a doxa está
sujeita. No lugar de uma atitude persuasória a qual permite aos homens imporem sua opinião em meio a uma
multidão de outras opiniões, isto é, no lugar da dialegesthai (a discussão de algo até o fim com alguém) maiêutica socrática, o que aparece na
formulação platônica nada mais é que uma arbitrariedade, a qual prega uma doxa unívoca e
recheada de pressupostos absolutos.
A diferença com Platão é decisiva: Sócrates não queria educar os cidadãos; estava mais interessado em aperfeiçoar-
lhes as doxai, que constituíam a vida política em que ele tomava parte. Para
Sócrates, a maiêutica era uma atividade política, um dar e receber baseado
fundamentalmente na estrita igualdade, algo cujos frutos não podiam ser medidos pelo resultado obtido ao se chegar a esta ou àquela verdade geral. Portanto, o fato
de que os diálogos iniciais de Platão sejam freqüentemente concluídos de forma
inconcludente, sem um resultado, ainda os insere bem na tradição socrática. Ter
discutido alguma coisa até o fim, ter falado sobre alguma coisa, sobre a doxa
de algum cidadão, isso já parecia um resultado suficiente
(Dignidade da Política)
A exemplo das doxai, o mito da caverna, outrossim, se torna assaz problemático na ótica arendtiana. Segundo a pensadora, este não é, como se credita nomeadamente na
tradição, uma descrição ou parábola da metafísica platônica. Este mito, ao contrário, reflete o momento de
ruptura entre a filosofia e a política; mais precisamente, o instante em que se evidencia a cisão entre pensamento e ação. Em outras palavras, uma protrusão capaz de fazer revelar um conflito existente entre a polis e o filósofo.
Cabe ressalvar, com efeito, que tal protrusão é passível de ser melhor verificada na distinção medieval entre a vita
activa — ou seja, aquela dedicada aos assuntos mundanos — e a vita contemplativa — enquanto aquela que conduz
e eleva o indivíduo das preocupações terrenas
verdade e política “não se dão muito bem uma com a
outra”
O Acento Socrático: A Relação Liberdade e Igualdade
Para Sócrates, assim como para seus concidadãos, a doxa era a formulação em fala daquilo que a dokei moi, daquilo que me parece. [...] Compreendia o mundo como ele se abre a mim. Não era, portanto, fantasia subjetiva e arbitrariedade, e tampouco alguma coisa absoluta e válida para todos. O pressuposto era de que o mundo se abre de modo diferente para cada homem, de acordo com a posição que ocupa nele; e que a propriedade do mundo de ser o ‘mesmo’, seu caráter comum (Koinon, como diziam os gregos, qualidade de ser comum a todos), ou ‘objetividade’ (como diríamos do ponto de vista subjetivo da filosofia moderna), reside no fato de que o mesmo mundo se abre a todos e que a despeito de todas as diferenças entre os homens e suas posições no mundo — e conseqüentemente de suas doxai — ‘tanto você quanto eu somos humanos’. (Filosofia e Política)
O ato do pensamento aparece, portanto, com um duplo sentido para Arendt. Ora, por um lado, não possui estruturas concretas
capazes de lhe dar sustentabilidade e, enquanto tal, o pensamento está exposto a perigos, sendo o próprio pensar uma atitude de
risco. Isso, decorre pelo fato de este ser “causado pelo moscardo”, o que pode favorecer o nascimento do cinismo, bem como o do niilismo, voltando-se, desse modo, a si mesmo: “eis o
perigo do não-pensar, mais exatamente: do fato de que não pensar dá muito menos trabalho para os homens que o pensar”. Por outro lado, é fato que os preceitos socráticos aparecem — e
cabe salientar que neste ponto com um grau elevado de importância — como fundamentais para a formulação teórico-política de Hannah Arendt, a qual fica resumida na assertiva
encontrada nos manuscritos da pensadora: “a pluralidade penetra no estar-só”
1— seria melhor para mim, se minha lira estivesse desafinada ou se um coro por mim regido ressoasse em puras dissonâncias, do que se eu, sendo um, não concordasse comigo mesmo ou me contradissesse;2— seja de maneira como gostaria de parecer
O que distingue o convívio dos homens na polis de todas as outras formas de convívio humano que eram bem conhecidos dos gregos, era a liberdade. [...]. Ser-livre e viver-numa-polis eram, num certo sentido, a mesma única coisa [...]. Ele não devia estar subordinado como escravo à coação de um outro [...]. A coisa política entendida nesse sentido grego está, portanto, centrada em torno da liberdade, sendo liberdade entendida negativamente como o não-ser-dominado e não dominar, e positivamente como o espaço que só pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que são meus iguais não existe liberdade.
Aliada à questão da ‘pluralidade’, Arendt fundamenta, do mesmo modo, a questão da ‘igualdade’, a qual deve estar, como a outra,
inserida no âmbito do espaço público, bem como na esfera política. Hannah Arendt demonstra que a História vinculou igualdade ao conceito de justiça,
donde se passou a compreender erroneamente a gênese e o sentido da expressão grega Isonomie, fazendo desta a igualdade perante a lei. Todavia, numa análise filológica do termo, isonomia diz respeito não a uma lei que seja igual para todos,
mas antes, ao fato de que “todos possuem o direito à atividade política”