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  • Revista Graphos, vol. 14, n 2, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 115

    ENTRE A CIDADE E O REMANSO, MULHERES EDUCADAS E

    TRABALHADORAS: A REPRESENTAO DA MULHER EM

    CORREIO DA ROA DE JULIA LOPES DE ALMEIDA

    Joyce Luciane Correia MUZI 1

    Lcia Osana ZOLIN 2

    RESUMO:

    A produo literria de Jlia Lopes de Almeida pouco conhecida devido, em grande

    parte, ao papel da crtica, tanto em relao questo esttica, quanto sua postura, por

    vezes considerada incua, diante dos direitos das mulheres. Apesar disso, alguns

    trabalhos tm o intuito de recuperar suas obras, buscando comprovar sua

    representatividade nas letras no final do sculo XIX/incio do XX. Podemos perceber que

    sua vida como mulher escritora revelava, alm de condies especficas da poca, ideais

    e prerrogativas polticas e familiares que justificam seu posicionamento considerado

    muitas vezes afastado de demandas feministas. Entretanto, seu feminismo possvel

    (LUCA, 1999) se evidencia em sua produo literria por preocupar-se com a situao

    das mulheres. o caso do romance Correio da Roa (1913), objeto deste artigo. Neste

    romance, ao colocar em sinergia contexto histrico, situao econmica e social, em

    especial a vida de mulheres e suas relaes com o mundo do trabalho e da educao, a

    autora representa mulheres que contam sua prpria histria, j que o romance epistolar.

    Assim, ela lhes assegura mais do que o direito de falar, mas o de decidir os rumos de suas

    vidas diante de possibilidades que o trabalho e a educao podem trazer.

    Palavras-chave: Jlia Lopes de Almeida; Correio da Roa; Representao da mulher

    RESUMEN:

    La produccin literaria de Jlia Lopes de Almeida es poco conocida debido, en gran

    medida, al papel de la crtica, tanto en relacin a la cuestin esttica, cuanto a su postura,

    por veces considerada inocua, delante de los derechos de las mujeres. A pesar de eso,

    algunos trabajos han sido hechos con la intencin de recuperar sus obras, buscando

    comprobar su representatividad en las letras del final del siglo XIX/comienzo del XX.

    Percibimos que su vida como escritora revel, adems de las condiciones especficas de

    la poca, ideales y prerrogativas polticas y familiares que justifican su posicin a veces

    considerada lejana de reivindicaciones feministas. Sin embargo, su "feminismo posible"

    (LUCA, 1999) es evidente a travs de sus escritos que se preocupan por la situacin de

    las mujeres. Este es el caso de la novela Correio da Roa (1913), el tema de este artculo.

    En esta novela, al poner en sinergia el contexto histrico, la situacin econmica y social,

    especialmente la vida de las mujeres y sus relaciones con el mundo del trabajo y la

    educacin, la autora representa a las mujeres que cuentan su propia historia, ya que la

    novela es epistolar. As, ella les asegura ms que el derecho a hablar, sino para decidir el

    rumbo de sus vidas frente a las posibilidades que pueden aportar el trabajo y la

    educacin.

    Palabras clave: Jlia Lopes de Almeida; Correio da Roa; Representacin de la mujer

    1 Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual de Maring. Professora efetiva no Instituto Federal do Paran. 2 Doutora em Letras pela UNESP. Ps-doutora pela UFRJ. Docente do Departamento de Letras e do

    Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Estadual de Maring.

  • Revista Graphos, vol. 14, n 2, 2012 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 116

    1. Introduo

    Nadilza Moreira (2003) recuperou a opinio da prpria Jlia Lopes de Almeida a

    respeito de suas obras:

    Das minhas obras a que mais aprecio pelos benefcios que tem espalhado, o

    Correio da roa. Esse livro [...] contendo ensinamentos e conselhos dirigidos s

    minhas patrcias, que no conhecem a vida dos campos representa o que de

    melhor eu tenho escrito. (UMA VISO de Paris..., Jornal A Noite, 11 maio 1931, p. 1-2).

    Aps ter assumido o carter pedaggico de Correio da Roa, alguma crticas

    negativas foram publicadas censurando o excesso de temas femininos; que o livro era

    uma fico domstica, cuja linguagem fcil e exacerbado regionalismo impediam que

    fosse considerado como uma boa obra. Quase cem anos aps sua publicao

    evidenciamos o valor dessa obra que, podemos dizer, por estar praticamente solitria

    dentro da nossa histria literria, moderna por sua estrutura, suas propostas e seu tema.

    Jlia Lopes de Almeida foi uma exceo, j que ela representou o romance

    brasileiro dentro e fora do pas, alcanando reconhecimento em vida. No entanto, aps

    sua morte seu nome foi esquecido. Com o advento da Crtica Feminista, especialmente

    no final da segunda metade do sculo XX, vrias pesquisadoras se empenharam no

    resgate de seu nome e especialmente de sua obra. Podemos citar as teses de Nadilza

    Moreira A condio feminina revisitada: Jlia Lopes de Almeida e Kate Chopin

    (2003), de Rosane Saint-Denis Salomoni A escritora/ os crticos/ a escritura: O lugar

    de Jlia Lopes de Almeida na fico brasileira (2005), alm do nome de Leonora de

    Luca, que desde 1999 vem problematizando a condio de Jlia e de sua obra no cenrio

    nacional. De seu artigo O feminismo possvel de Jlia Lopes de Almeida (1862-

    1934) extramos o ponto de partida para anlise e compreenso de sua vida e obra: essa

    extraordinria escritora colocou em prtica, em sua produo literria e em suas aes

    concretas, o feminismo possvel dentro do quadro de sua poca e dos limites dados pelo

    meio social em que se desenvolveu (LUCA, 1999, p. 275).

    Nesse sentido nos interessa entender de que maneira a escritora representa suas

    personagens femininas, buscando perceber como a obra coloca em sinergia contexto

    histrico, situao econmica, a vida de mulheres e suas relaes com o mundo do

    trabalho e da educao. Neste artigo, portanto, alm de tratarmos das evidncias

    histricas e o contexto em que se inseria D. Jlia para entender o romance Correio da

    Roa, apresentaremos brevemente o que o romance epistolar, bem como a apresentao

    de como esta estratgia contribuiu para dar visibilidade s mulheres como protagonistas

    de uma histria que ser por elas contada.

    2. O romance epistolar

    O romance epistolar uma tcnica narrativa que surge no final do sculo XVII

    mas que se solidifica durante o sculo XVIII, devido ao maior interesse pelas

    experincias individuais, sendo possvel encontrarmos no perodo a explorao de

    elementos como o dirio e a carta dentro de romances romnticos e realistas.

    A alternativa utilizada vista como uma tendncia a aproximar o leitor da

    narrativa, sem a interferncia de um narrador. Por meio das cartas alm de devassar a

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    intimidade do signatrio, pode-se acompanhar seu cotidiano medida que ele acontece

    (VALENTIM, 2006, p. 13).

    Como exemplos da literatura universal podemos citar Mariana Alcoforado (sc.

    XVII) que inaugura uma tradio em Portugal at o sculo presente3, e o romance que

    inaugurou o Romantismo alemo Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe (1774).

    J no Brasil, como se sabe, no h uma tradio de romances epistolares4.

    A natureza da carta dar coeso narrativa, o que Cludia Valentim (2006)

    chamar funo diegtica. Entendida como prova material da subjetividade do autor

    (seus pensamentos, sentimentos, sensaes e aes), a carta passa o efeito de que

    construda a cada momento, ficando a memria em segundo plano (WATT, 1996 apud

    VALENTIM, 2006).

    A respeito da evoluo do gnero, Valentim (2006) nos conta que, aps uma

    tradio de escrita prxima a um desabafo (a nenhum destinatrio), ou a troca entre duas

    pessoas, a partir do sculo XVIII, o romance epistolar ampliaria o nmero de

    interlocutores. A troca de cartas entre vrias pessoas encenaria, nesse momento, uma

    experincia coletiva e, ao mesmo tempo, restrita, garantindo mltiplas vises, pois cada

    um s sabe a sua parte, o que d ao leitor a chance de viver mais de dentro a histria

    (RIBEIRO, 2005 apud VALENTIM, 2006, p. 43).

    Jlia utilizou este artifcio apresentando mltiplas vises que permitem a

    compreenso dos fatos por vrios ngulos, sob a tica de diferentes orientaes sociais,

    polticas e econmicas. Acreditamos que esta foi a maneira que ela encontrou de

    aproximar a obra de seus leitores e de aes no tempo presente, de um presente to

    imediato que deixa a sensao de que nem sempre houve tempo para maturao dos fatos

    (VALENTIM, 2006). Para Renato J. Ribeiro (2005 apud VALENTIM, 2006), esse

    artifcio pode garantir a riqueza da obra, justamente pela multiplicidade de agentes ou de

    vises, algo que inclusive atende busca pela obra aberta na literatura do sculo XXI.

    Devido ao carter hbrido do gnero, ele foi dividido em categorias temticas;

    Correio da Roa insere-se na primeira categoria, a carta-romance, a exemplo de As

    ligaes perigosas, de Choderlos de Laclos, por dizer respeito justamente troca de

    cartas que proporciona um panorama dos costumes da poca, como numa conversa, e

    apresenta as relaes entre as personagens (VALVERDE, 20015 apud VALENTIM,

    2006). No livro, portanto, as cartas formam o romance sem a interferncia de um/a

    narrador/a. Alm disso, diferente de alguns romances epistolares, neste no h um

    prlogo em que se justifica a seleo das cartas, representando assim uma sequncia de

    fatos que no se pode prever.

    Por fim, antes de falarmos especialmente do romance, gostaramos de acrescentar,

    ainda que no diga respeito ao romance epistolar, o que Silviano Santiago na Introduo

    de Carlos & Mrio apresenta como os objetivos da carta e de quem a escreve:

    Na carta, a caligrafia do escritor que monta a ele prprio na folha de papel,

    no preciso momento em que se encaminha em direo ao outro. Ao querer

    instigar e provocar o outro, espera de reao, de preferncia uma resposta, o

    3 Este levantamento tema da tese de Claudia Atanazio Valentim: O romance epistolar na literatura

    portuguesa da segunda metade do sculo XX. A autora aponta modelos cannicos do gnero: Cartas

    portuguesas, atribudo Mariana Alcoforado (1669), Pamela e Clarissa, de Samuel Richardson (1740 e

    1748, respectivamente), Cartas persas, de Montesquieu (1721), A nova Helosa, de Rousseau (1761), As

    ligaes perigosas (1782), de Laclos alm de o j citado Werther, de Goethe (1774). 4 O professor Marcos Antonio de Moraes da USP tem um projeto de pesquisa intitulado A fico epistolar

    brasileira: formas e estratgias em que pretende, em uma perspectiva historiogrfica e crtica, fazer um

    estudo sobre diferentes formas e estratgias de narrativas epistolares na literatura brasileira. 5 Valentim (2006) apresenta as categorias elencadas por Maria de Ftima Valverde no texto A carta, um

    gnero ficcional ou funcional?.

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    missivista retroage primeiro sobre si mesmo, porque o chute inicial da

    correspondncia pressupe o exerccio de certo egosmo abnegado, se me for

    permitido o paradoxo. Antes de tudo, o missivista procura um correspondente

    que possa causar efeito benfico. A carta resposta tem a aparncia de tnico,

    calmante ou vermfugo. (SANTIAGO, 2002, p. 12).

    Trataremos agora do romance e como ele provoca e instiga a reflexo em nome

    de uma verdade: a de que por meio da educao e do trabalho as mulheres poderiam

    transformar o mundo ao seu redor.

    3. Cartas de Maria e Fernanda: instala-se o Correio da Roa

    Quando do lanamento de Correio da Roa em livro em 1913, aps o sucesso em

    folhetim, a carreira de Jlia Lopes de Almeida (1862-1934) estava no auge. Jlia viu seu

    nome sair do Rio de Janeiro, onde nasceu, para o mundo (chegou a Portugal, Frana e

    Buenos Aires) graas aos seus romances, crnicas e contos.

    Correio da Roa est composto por 58 cartas, entre bilhetes postais e cartas

    propriamente ditas, elaboradas pelo que chamamos trs instncias de remetentes. Temos

    no primeiro plano as cartas de Maria e Fernanda, no segundo as cartas das filhas de

    Maria, Joanninha, Ceclia, Cordlia e Clara, e num ltimo plano os escritos de Eduardo

    Jorge (afilhado de Maria) e Cesrio. Daremos nfase aqui nas correspondncias de Maria

    e Fernanda, j que nelas encontramos o fio condutor do enredo.

    De Maria sabemos que vivia no Rio de Janeiro, tinha quatro filhas: Ceclia de 20

    anos, Cordlia de 18, Joanninha de 16 e Clara de 14. Aos 40 anos se v viva e falida, o

    que a faz tomar a deciso de mudar-se com as filhas para a fazenda da famlia do marido

    Remanso, que ficava ao lado da fazenda de sua famlia Tapera. Para ela a fazenda

    representava melancolia e monotonia: onde nos enterramos at ao nariz na mais

    estpida, na mais fastidiosa insipidez (ALMEIDA, 1913, p. 8).

    O fato de Jlia L. de Almeida mais uma vez explorar a situao da mulher que

    enviva6 nos revela que seu ponto de partida o fato de as mulheres serem

    abandonadas prpria sorte, num perodo em que se defendia que a mulher deveria

    estar sob as rdeas de um provedor (ora o pai, ora o marido), o que mais tarde resultaria

    em lei no Cdigo Civil brasileiro, que a partir de 1916 institui como lei o ptrio-poder.

    Ou seja, Maria viva no teve outra escolha seno assumir o controle de sua vida

    inclusive porque dela dependem as filhas.

    Fernanda, a destinatria de Maria, uma mulher de posses, que aps passar seis

    meses na Europa retornara ao Rio de Janeiro quando j havia se dado o ocorrido com a

    amiga. Ela ser justamente a resposta benfica, um calmante ou vermfugo, como

    indica Santiago (2002). Como resposta ao primeiro desabafo de Maria ela escreve:

    com certeza por modstia que te lamentas da escassez de meios, tendo a rodear-te quatro

    cabeas inteligentes, oito braos fortes e tua disposio no sei quantos quilmetros de

    terras... (ALMEIDA, op. cit., p. 10). Para Fernanda o Remanso era uma linda

    propriedade: esse frondoso em que as guas cantam entre as lajes brancas, as aves voam

    em revoadas e os altos pinheiros nodosos estrelam de verde negro a limpidez azul do

    espao imenso (Ibid., p. 12). Ela achava realmente que a amiga e as filhas estavam

    muito bem e para provar isso que ela se empenha nas primeiras cartas que envia

    amiga. Neste momento os conselhos de Fernanda so duros, porque objetivam curar algo

    que ela v como malfico na famlia da amiga.

    6 Anteriormente ela criara a viva Ernestina, personagem principal do romance A viva Simes (1897).

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    Os lamentos de Maria beiravam o desespero era uma mulher da cidade e uma

    me zelosa que falava: "o horror desta solido e destes povos dos arredores...; Minhas

    filhas, coitadas, passam o dia bocejando e desaprendendo o que estudaram no colgio;

    De que lhes valero agora as prendas com que se ornaram para brilhar na sociedade?

    (Ibid., p. 8). A personagem representa uma me de famlia burguesa, que criava e

    educava as filhas especialmente para ornar, brilhar na sociedade.

    No incio do sculo XX os papis destinados s moas de boa famlia eram

    bastante determinados. Aps longos anos em que lhes foi negada a educao formal,

    permitiu-se que elas fossem educadas em escolas desde que o suficiente para exercerem o

    papel de me e de esposa: ...a educao feminina tinha objetivos diferentes da educao

    masculina. No geral tudo que se ensinasse para elas deveria ser para atender a um

    objetivo maior: preparar a mulher para ser esposa e me (ALMEIDA, 1998 apud MUZI,

    2011, p. 86).

    O que Maria manifesta o desejo de ver suas filhas desempenhando os papis a

    que eram destinadas por serem mulheres. Junto a isso Maria tambm demonstra um

    descaso pelo campo, representando uma parcela do povo brasileiro que naquele momento

    histrico exaltava a vida urbana e cada vez menos acreditava que a vida no campo

    poderia trazer felicidade a algum.

    A viso de mundo de Maria ser quebrada diante do posicionamento de Fernanda,

    que representa uma viso de mundo que entende que a mulher pode utilizar seus saberes

    escolares em benefcio prprio e de outros que no so necessariamente sua famlia.

    Maria lamenta a saudade da vida no Rio de Janeiro e da moda. Nas respostas a

    estes lamentos Fernanda irnica: Antes cultivassem batatas... (ALMEIDA, 1913, p.

    11); e aconselha: ao invs de assinar jornais de moda, assina de preferncia revistas

    agrcolas, instrutivas, alegres, que lhes dem noes aproveitveis de indstrias

    campestres e as induzam a um trabalho propcio e benfico... (Ibid., p. 12). Para

    Fernanda tudo muito claro: elas tinham nas mos tudo de que necessitavam:

    Acredita que o campo brasileiro ser eternamente triste, se a mulher educada

    que o habita no se interessar pela sua fartura, a sua poesia, dando ao pessoal

    inculto que a rodeia exemplos de carinho, de atividade, de amor natureza, levando-o assim na esteira da sua inteligncia para um futuro melhor. (Ibid., p.

    12).

    Nas primeiras dcadas do sculo XX, reconhecia-se a necessidade de participao

    das mulheres no novo projeto de modernizao da sociedade brasileira. Cada vez mais

    elas eram convocadas para participar desse projeto, j que eram as responsveis por

    formar os futuros lderes desse novo pas. Fernanda ser a voz dos que enxergam a

    atividade laboral feminina como uma mo de obra necessria. Ela representa uma voz

    feminista medida que se coloca em defesa de outros papis que no os determinados

    biologicamente:

    As tuas quatro filhas, educadas no colgio de Sion s com destino s salas ou s sacristias, vem-se dentro das grossas paredes desse velho casaro do

    Remanso, como freiras em um convento (expresso tua), em que apenas

    permitida a entrada do folhetim-romance e nada mais. [...] E tu consentes que

    tal programa de vida se realize [...] mas para higiene dessas queridas alminhas

    que te rodeiam tudo te indica a obrigao de mudar de ttica. (Ibid., p. 13).

    Fernanda tenta faz-la enxergar que no era possvel o conformismo ou a

    autocomiserao havia esperana e fartura ao alcance de suas mos. Ela enfatiza a

    necessidade de que trabalhem em benefcio prprio e assim possam ver toda a

    comunidade se beneficiar.

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    As primeiras impresses de Maria e das filhas foram de repulsa, desapontamento

    e despeito:

    Talvez te risses se pudesses imaginar a expresso de desapontamento que se

    lhes pintava no rosto ao ouvirem as tuas frases incitando-as ao papel, perdoa-

    me que te diga, quase ridculo, de plantarem batatas e criarem galinhas, como

    se fossem velhas aldes analfabetas e grosseiras [...]. Para se plantar batatas e

    criarem-se aves domsticas no absolutamente necessrio aprender-se

    francs, ingls, piano e desenho... Se com essa norma de educao plantei

    ideais na imaginao das minhas pobres criaturas, no te parece muito justo

    que eu agora as defenda de trabalhos rudes e as acompanhe no desejo de

    realizarem o que tm no seu sonho? (Ibid., p. 18).

    Para Maria, campo e educao no poderiam ser combinados um termo exclua

    o outro. Alm disso, em suas palavras, no campo s havia trabalhos rudes, que prescindia

    de toda e qualquer educao, o que as impedia de modo absoluto de agirem.

    Nesse momento a estratgia retrica de Fernanda justamente dar nfase no

    aproveitamento da educao por elas recebida, alm de evocar o trabalho de outras

    mulheres que fizeram a diferena nos contextos em que viviam.

    Para convenc-la, Fernanda utiliza vrios argumentos, e um deles a ambio: E

    agora ainda te direi que para estimular o nimo das tuas filhas no ser mal teceres com

    elas planos de futuro [...]. A ambio do dinheiro a manivela que, inconscientemente ou

    conscientemente, nos faz danar a todos... (Ibid., p. 15).

    No captulo 9, Maria j est convencida de que fizeram a melhor escolha: A

    verdade, que eu sinto e muito lealmente confesso, que a nossa vida se transforma para

    melhor (Ibid., p. 56). Ela aos poucos se anima com os avanos nas perspectivas

    familiares. As ideias de Fernanda incentivam as meninas a aprenderem mais para ensinar

    aquilo que sabem:

    Cordelia foi revolver os seus cadernos e livros de estudo e resolveu ensinar ela

    tambm, no desenho e msica, como a irm, mas o a b c, crianada da

    colnia. [...] Palpita-me que se em todas as fazendas houvesse algum com a

    mesma coragem e o mesmo entusiasmo que minhas filhas esto revelando agora, o Brasil dentro de poucos anos deixaria de ser um pas de analfabetos e

    tornaria bem seus os filhos dos colonos estrangeiros e estrangeiros eles

    tambm. (Ibid., p. 54).

    possvel perceber o tom moralizante e doutrinante nas palavras de Maria sobre

    o fato de as filhas atuarem como educadoras em um lugar em que a educao formal

    quase nunca chegava.

    Em vrios momentos, percebemos comparaes entre Fernanda e Maria, por

    exemplo, quando ambas se lamentam por saudades do passado, pelos anos que passam e

    lhes deixam marcas. S que Fernanda acredita que Maria tem mais sorte por estar num

    lugar onde ela no precisa fingir e adverte: Na cidade preciso fingir, fingir a todos os

    momentos, dentro de casa como na rua, de dia como de noite. a exigncia que faz de

    ns a sociedade, que incorre em todas as faltas, mas no perdoa nenhuma... (Ibid., p.

    67). Ela exprime a opresso sobre o ser mulher numa sociedade urbana, mas tambm

    acredita que a velhice feminina pode ser doce: A mulher s de corpo e de alma, chegada

    essa hora que intimida os fracos, encontra na experincia adquirida nos seus anos de

    mocidade e de idade madura poder para executar grandes obras de piedade e de

    regenerao (Ibid., p. 67-68). E compartilha desiluses e esperanas para mostrar que

    ser sempre leal amiga, sem a menor sombra de traio, e isto entre mulheres tanto

    mais raro, quanto mais lindo (Ibid., p. 68). Por meio das cartas da personagem

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    Fernanda, ficamos sabendo como se entendia a situao da mulher na sociedade urbana

    nas primeiras dcadas do sculo XX, bem como se entendia a relao entre mulheres.

    Maria est feliz com a transformao em suas vidas, porm lamenta sua solido:

    Sinto-me ento como uma ave que se visse nos ares, em alto mar, sem um

    mastro ou um rochedo para o pouso. [...] maldigo a natureza impiedosa, que

    me envelhece o corpo sem me envelhecer simultaneamente a alma! Se

    souberes tambm de um remdio para esta agonia, manda-mo depressa. (Ibid., p. 57)

    Estamos diante de uma mulher que se sente perdida, sem uma referncia que

    poderia ser um homem, no caso, seu marido ausente. Entretanto a resposta de Fernanda,

    que vem num bilhete postal, incisiva: Para todas as agonias e desfalecimentos morais

    h um nico remdio: o trabalho (Ibid., p. 58). Esta a tnica do discurso de

    Fernanda: o trabalho determinante para alterar a condio de uma famlia que, ao se ver

    rf de pai, no compreende como estar e sobreviver no mundo, especialmente no que

    diz respeito ao futuro de suas filhas que antes era determinado (casar, constituir famlia e

    seguir sendo sustentadas por um homem).

    A educao formal possibilitou s filhas de Maria o desenvolvimento de

    atividades importantes na Fazenda: tanto educar os filhos dos colonos, como estudar os

    materiais enviados por Fernanda a respeito de criao de animais e plantao de plantas,

    por exemplo. Jane Almeida (1998, p. 71) defende que O magistrio possibilitava uma

    insero social mais ativa e as mulheres poderiam exercer maior influncia sendo

    professoras, havendo tambm a possibilidade de promover mudanas sociais, polticas e

    espirituais....

    No entanto, embora possamos ver uma alterao no papel das mulheres dessa

    famlia elas passam a se sustentar com o prprio trabalho nas fazendas h uma

    manuteno da lgica patriarcal quando elas assumem a funo de professora, funo

    naturalmente atribuda s mulheres, por ser uma atividade de amor, entrega e doao

    (LOURO, 1997). Alm disso, percebe-se o discurso essencialista de Fernanda ao emitir

    um desejo: E o que desejo e espero, que [...] o teu violetal espalhe pelas velhas salas

    do Remanso fulgores de ametistas e a alma da poesia, que existe sempre nas casas em

    que h mulheres boas e educadas (Ibid., p. 48-49). Caractersticas como beleza e

    sensibilidade aparecem na fala da personagem como naturalmente atribudas s mulheres.

    Por outro lado, Fernanda exalta a educao recebida pelas meninas e a utilidade

    dessa educao no contexto em que se encontram: num meio inculto, e onde a influncia

    da sua instruo se pode fazer sentir de um modo radical e perfeito (Ibid., p. 24),

    alertando Maria que suas filhas teriam menos necessidade de instruo se vivessem de

    valsa em valsa nos sales da nossa capital (Ibid., p. 24).

    Fernanda aparece quase sempre aconselhando: Aprende a ser paciente, que a

    virtude mais necessria mulher (Ibid., p. 75), ou incitando qualidades esperadas de

    uma mulher: a bondade o melhor apangio da mulher (Ibid., p. 106). Ela a voz que

    equilibra a narrativa possvel ser mulher de um modo diferente, porm h algumas

    prticas que devem permanecer. Pela voz de Fernanda percebemos a voz social que prev

    e aceita mudanas, mas recusa os embates, algo que se v no incio do sculo XX em

    virtude dos prprios movimentos operrio e sufragista, por exemplo.

    So dois anos aproximadamente de troca de correspondncias entre Fernanda e a

    famlia de Maria. Na opinio daquela, possvel enxergar uma soluo para o futuro do

    pas:

    desses empenhos que os nossos sertes precisam: mulheres que vos imitem, espalhando ao redor de si ideias de beleza e ideias de bondade. [...] Ah, se a

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    mulher quisesse trabalhar para a redeno dos sertes brasileiros, que

    maravilhoso pas seria em pouco tempo o nosso! (Ibid., p. 166).

    E ainda faz questo de reforar que o que ocorreu com a famlia foi o melhor:

    Se tuas filhas tivessem permanecido neste meio inquieto, em companhia de amigas que aos 15 anos se pintam como cocotes; danando em sales com

    rapazes que nas meninas s acham interessante o dote; ouvindo de todos os

    lados lisonjas ou intrigas, teriam elas chegado perfeio moral a que

    chegaram? No. (Ibid., p. 190-191).

    Maria ratifica a opinio de Fernanda e fecha sua ltima carta, a de nmero 58,

    com o diagnstico:

    Queres saber uma coisa engraada? Agora ningum quer acompanhar-me capital! Cordlia lamenta deixar a sua escola; Clara os seus pssaros, as suas

    galinhas e marrecos de Pekim, as danas do terreiro e os seus ensaios de

    msica com as crianas da Colnia. S Joanninha quer ir comigo,

    manifestando todavia pena de deixar o seu pomar [...]. Compara esta carta

    primeira que te escrevi e v de que milagres capaz o trabalho! (Ibid., p. 209).

    Depois de renegar seu destino e o local que tiveram de habitar, Maria acredita ter

    vivido um milagre que se deu justamente por conta da instruo que ela e as filhas um dia

    receberam; evidentemente uma apologia a um envolvimento quase que espiritual das

    mulheres com a proposta de socializao do meio rural. Falando em salvao, Maria d

    testemunho de que aquilo que poderia ter sido o fim, tornou-se um belo recomeo:

    E acredito que estaria nisso a salvao da vida, ainda estpida e melanclica,

    do nosso interior. Toda a mulher forma um ambiente em redor de si, mais

    facilmente do que o homem. Se ela tem gosto, se tem educao e se tem

    energia, esse ambiente ser sugestivo dessas qualidades e produzir grandes

    benefcios em todos que dela se aproximarem. Irradia-me na conscincia a

    certeza de que transmiti a minhas filhas essa compreenso dos seus destinos.

    (Ibid., p. 131-132).

    Diante dessa ltima citao fcil concordar com Leonora de Luca (1999)

    quando ela diz que o livro, tanto em seus aspectos intrnsecos como em relao s outras

    obras de Jlia, tem sim um carter de cartilha, isso porque sua proposta realmente

    tratar de um de seus temas favoritos o progresso feminino atrelado questo do setor

    rural. Este, necessitado de ateno e de um tratamento que instaurasse uma

    transformao social, teria no no trabalho do homem, mas no da mulher instruda, a

    fora motriz daquela transformao (LUCA, 1999).

    4. Consideraes finais

    indiscutvel, portanto, a forma doutrinria como a autora apresenta o tema

    transformao do meio rural, que surge enleado a outro tema: a situao social das

    mulheres. Sua participao nas questes relacionadas s mulheres no Brasil no incio do

    sculo XX se deve a sua situao de mulher de letras que possibilitou colocar em foco

    e assegurar em seus romances o direito das mulheres, dando-lhes, com isso, o direito

    delas decidirem os rumos de suas vidas diante de possibilidades que o trabalho e a

    educao lhes poderiam trazer.

    O projeto da autora, segundo Luca (1999), era atuar em favor de que se

    estendesse a toda populao o aprendizado da escrita, instrumento que possibilitaria a

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    libertao e superao das condies de submisso de pobres, escravos e especialmente

    de mulheres.

    Por outro lado, indispensvel levar em conta a posio que ocupava Jlia Lopes

    de Almeida: mulher respeitada, de famlia tradicional e interessada em fazer seu papel

    sem muito alarde. Nesse sentido, a posio que ela assume tem certa especificidade

    dentro do quadro histrico-social de sua poca: de maneira amena, com sua estratgia

    de aconselhar persuadindo (LUCA, 1999, p. 298), Jlia demonstra uma preocupao

    com a redefinio do lugar da mulher na sociedade.

    Acreditamos, como Luca (1999), que isso foi uma estratgia inteligente, mesmo

    porque qualquer manifestao mais revolucionria poderia releg-la a espaos no to

    significativos na imprensa, como aconteceu com sua antecessora Josefina lvares de

    Azevedo, quando seu interesse era justamente manter seu espao na grande imprensa,

    alcanando com isso um pblico muito maior.

    Diante de seu posicionamento em sua produo literria, inegvel que ela

    representa uma postura diversa dos padres da poca, o que imputa sua conduta e obra

    uma feio de modernidade dada a persistncia, em nossos dias, das mesmas questes

    levantadas h mais de um sculo pela autora (LUCA, 1999, p. 299).

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    RECEBIDO EM: 19-08-2012.

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