Post on 07-Jul-2015
1
Eugénio de Andrade
(19 de Janeiro de 1923 – 13 de Junho de 2005)
Duplo Retrato, 1980 por Alfredo Cruz (Tinta da China)
2
PALAVRAS INTERDITAS
Os navios existem, e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios. Sem nenhum destino flutuam nas cidades, partem no vento, regressam nos rios. Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de costas para o mar. Anoitece. Não há dúvida, anoitece. É preciso partir. É preciso ficar. Os hospitais cobrem-se de cinza. Ondas de sombra quebram nas esquinas. Amo-te… E entram pela janela as primeiras luzes das colinas. As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas suas curvas claras. Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, estas mãos nocturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura. E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens nuas, desoladas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas.
3
PROCURO-TE
Procuro a ternura súbita, os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo, o sangue que nenhuma espada viu, o ar onde a respiração é doce, um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria. Oh, a carícia da terra, a juventude suspensa, a fugidia voz da água entre o azul do prado e de um corpo estendido. Procuro-te: fruto ou nuvem ou música. Chamo por ti, e o teu nome ilumina as coisas mais simples: o pão e a água, a cama e a mesa, os pequenos e dóceis animais, onde também quero que chegue o meu canto e a manhã de maio.
4
Um pássaro e um navio são a mesma coisa quando te procuro de rosto cravado na luz. Eu sei que há diferenças, mas não quando se ama, não quando apertamos contra o peito uma flor ávida de orvalho. Ter só dedos e dentes é muito triste: dedos para amortalhar crianças, dentes para roer a solidão, enquanto o verão pinta de azul o céu e o mar é devassado pelas estrelas. Porém eu procuro-te. Antes que a morte se aproxime, procuro-te. Nas ruas, nos barcos, na cama, com amor, com ódio, ao sol, à chuva, de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.
5
OS OLHOS RASOS DE ÁGUA
Cansado de ser homem o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.
É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.
Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser a nostalgia das areias.
É a hora de adormecer na tua boca,
como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas.
6
CANÇÃO
Hoje venho dizer-te que nevou no rosto familiar que te esperava. Não é nada, meu amor, foi um pássaro, a casca do tempo que caiu, uma lágrima, um barco, uma palavra. Foi apenas mais um dia que passou entre arcos e arcos de solidão; a curva dos teus olhos que se fechou, uma gota de orvalho, uma só gota, secretamente morta na tua mão.
7
VEGETAL E SÓ
É outono, desprende-te de mim. Solta-me os cabelos, potros indomáveis sem nenhuma melancolia, sem encontros marcados, sem cartas a responder. Deixa-me o braço direito, o mais ardente dos meus braços, o mais azul, o mais feito para voar. Devolve-me o rosto de um verão sem a febre de tantos lábios, sem nenhum rumor de lágrimas nas pálpebras acesas. Deixa-me só, vegetal e só, correndo como rio de folhas para a noite onde a mais bela aventura se escreve exactamente sem nenhuma letra.
8
METAMORFOSES DA PALAVRA
A palavra nasceu:
nos lábios cintila.
Carícia ou aroma,
mal pousa nos dedos.
De ramo em ramo voa,
na luz se derrama.
A morte não existe:
tudo é canto ou chama.
9
Quartos ao pé do Mar , 1951
Rooms by the Sea – Edward Hopper (1882-1967)
EPITÁFIO PARA UM MARINHEIRO
MORTO QUANDO JOVEM
Perguntam por ti e oiço
a secreta voz da água.
Perguntam por ti e vejo
o perfil azul do mar.
Perguntam por ti e digo:
Acorda e veste-te de branco.
10
QUASE MADRIGAL
Os anjos que prometes são apenas o rosto triste dos dias desolados. Eu não prometo nada, sou alegria. Aceito os anjos nos beijos que me dás, pondo rosas nos teus dedos descuidados.
11
LISBOA
Alguém diz com lentidão: «Lisboa, sabes…» Eu sei. É uma rapariga descalça e leve, um vento súbito e claro nos cabelos, algumas rugas finas a espreitar-me os olhos, a solidão aberta nos lábios e nos dedos, descendo degraus e degraus e degraus até ao rio. Eu sei. E tu, sabias?
12
PALAVRAS
São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio. Outras, orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória. Inseguras navegam; barcos ou beijos, as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes, leves. Tecidas são de luz e são a noite. E mesmo pálidas verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem as recolhe, assim, cruéis, desfeitas, nas suas conchas puras?
13
À TUA SOMBRA
A terra me sabes,
à luz das manhãs
lisas de verão,
ao calor das pedras
achadas nas dunas.
Apetece cantar
nos gomos, nas luas,
nas colinas breves
do teu corpo nu;
cantar ou correr
na água, na seiva
dos ombros, dos braços,
no azul secreto
da concha das pernas.
Ó sabor eterno,
ó mortal sabor
das fontes da terra,
materno, solar
rumor de alegria:
apetece morrer,
morrer ou cantar.
14
MÚSICA MIRABILIS
Talvez a ternura crepite no pulso, talvez o vento súbito se levante, talvez a palavra atinja o seu cume, talvez um segredo chegue ainda a tempo – e desperte o lume.
15
CRISTALIZAÇÕES
1 Com palavras amo. 2 Inclina-te como a rosa só quando o vento passe. 3 Despe-te como o orvalho na concha da manhã. 4 Ama como o rio sobe os últimos degraus ao encontro do seu leito. 5 Como podemos florir ao peso de tanta luz? 6 Estou de passagem: amo o efémero. 7 Onde espero morrer será manhã ainda? Cabeça de Bronze, 1964, por Lagoa Henriques
16
NATUREZA MORTA COM FRUTOS Natureza Morta com Maçãs e Laranjas (Óleo sobre tela Paul Cézanne (1839-1906)
1 O sangue matinal das framboesas escolhe a brancura do linho para amar.
2 A manhã cheia de brilhos e doçura debruça o rosto puro da maçã.
3 Na laranja o sol e a lua dormem de mãos dadas. 4 Cada bago de uva sabe de cor o nome dos dias todos de verão.
5 Nas romãs eu amo o repouso no coração do lume.
17
ESCRITO NO MURO
Procura a maravilha.
Onde a luz coalha e cessa o exílio.
Nos ombros, no dorso, nos flancos suados.
Onde um beijo sabe a barcos e bruma.
Ou a sombra espessa.
Na laranja aberta à língua do vento.
No brilho redondo e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
18
Banhista Sentada, 1892 Pierre-Auguste Renoir (1841-1919)
OS JOELHOS
Considerai os joelhos com doçura: vereis a noite arder mas não queimar a boca onde beijo a beijo foi acesa.
19
CALCEDÓNIA
Afinal os romanos eram como eu: amavam os lugares onde a grandeza e a solidão andam de mãos dadas.
20
PENICHE
Vento vento há tanto há só vento no meu país vento branco verde vento negro ardente seca as lágrimas corta a voz na raiz.
21
ESSA MULHER, DOCE MELANCOLIA
Essa mulher, a doce melancolia
dos seus ombros, canta.
O rumor
da sua voz entra-me pelo sono,
é muito antigo.
Traz o cheiro acidulado
da minha infância chapinhada ao sol.
O corpo leve quase de vidro.
22
COM O TEMPO, APROXIMAR-SE-ÃO OS RIOS
Com o tempo aproximar-se-ão os rios e os montes, com o tempo acabará por te vir comer à mão e fazer ninho na tua cama o silêncio
23
Eugénio de Andrade
por Alfredo Cruz, 1989 (Acrílico)
A CLARIDADE COROA-SE DE CINZA, EU SEI
A claridade coroa-se de cinza, eu sei: é sempre a tremer que levo o sol à boca.
24
QUANDO O SER DA LUZ FOR
Quando o ser da luz for
o ser da palavra,
no seu centro arder
e subir com a chama
(ou baixar à água),
Então estarei em casa.
25
ESTÃO SENTADOS QUASE LADO A LADO
Estão sentados quase lado a lado no chão à espera que passe um barco, a luz muito quieta no regaço como se fora um gato, o sorriso antigo, a casa à beira do crepúsculo atenta aos passos nas areias; era outra vez Abril, chovia no jardim, já não chovia, um aroma, apenas um aroma, tornava espesso o ar. Uma criança me leva rio acima.
26
Eugénio de Andrade por Emerenciano - 1988 (Técnica mista)
CARDOS
Este é o lugar onde só o lume não demora a florir, onde o verão abdica de ser metáfora para arder até ao fim.
27
O PEQUENO PERSA
É um pequeno persa azul o gato deste poema. Como qualquer outro, o meu amor por esta alminha é materno: uma carícia minha lambe-lhe o pêlo, outra põe-lhe o sol entre as patas ou uma flor à janela. Com garras e dentes e obstinação transforma em festa a minha vida. Quer-se dizer, o que me resta dela.
28
Ilustração de Cristina Valadares para o livro ―Os Dóceis Animais‖
29
Andorinha/Amor - 1933/34 Pintura-poema de Joan Miró (1893-1983)
SOU FIEL AO ARDOR
Sou fiel ao ardor, amo esta espécie de verão que de longe me vem morrer às mãos, e juro que ao fazer da palavra morada do silêncio não há outra razão.
30
ESTOU CONTENTE, NÃO DEVO NADA À VIDA
Estou contente, não devo nada à vida,
e a vida deve-me apenas
dez réis de mel coado.
Estamos quites, assim
o corpo já pode descansar: dia
após dia lavrou, semeou,
também colheu, e até
alguma coisa dissipou, o pobre,
pobríssimo animal,
agora de testículos aposentados.
Um dia destes vou-me estender
debaixo da figueira, aquela
que vi exasperada e só, há muitos anos:
pertenço à mesma raça. Eugénio de Andrade Por Emerenciano, 1990 (Tinta da China)
31
A CHUVA CAI NA POEIRA COMO NO POEMA
A chuva cai na poeira como no poema de Li Bai. No sul os dias têm olhos grandes e redondos; no sul o trigo ondula, as suas crinas dançam no vento, são a bandeira desfraldada da minha embarcação; no sul a terra cheira a linho branco, a pão na mesa, o fulvo ardor da luz invade a água, caindo na poeira, leve, acesa, Como no poema.
32
SOBRE A MESA A FRUTA ARDE: PERAS
Sobre a mesa a fruta arde: peras, laranjas, maçãs, pressentem a íntima brancura dos dentes, o desejo represado, o espesso vinho de vozes antigas; arde a melancolia ao inventar outra cidade, outro país, outros céus onde lançar os olhos e o riso: deita-te comigo, trago-te do mar a crespa luz da espuma, nos flancos este amor retido.
33
ANTES DE SABER
Até onde os dedos tocam o quente do barro a mão sabe antes de saber. É um saber mais vivo, um saber de ave: águia cegonha falcão, animais quase no fim como o lume destes dias. Testemunhar a favor do lince é nossa obrigação. Por ser azul.
34
A SÍLABA
Toda a manhã procurei uma sílaba.
É pouca coisa, é certo: uma vogal,
uma consoante, quase nada.
Mas faz-me falta. Só eu sei
a falta que me faz.
Por isso a procurei com obstinação.
Só ela me podia defender
do frio de Janeiro, da estiagem
do verão. Uma sílaba.
Uma única sílaba.
A salvação.
35
A JORGE PEIXINHO
Faltava-te essa música ainda, a do silêncio, fria de tão nua, agora para sempre e sempre tua.
36
DESENHO ANTIGO
Às vezes ia pela tarde até ao rio. Os álamos mesmo em Agosto quase de bruma. Por caminhos de cabras, nem pastor nem gado. Só o riso dos rapazes despindo-se perto da água - o sexo exasperado.
O Banho - 1892/93 Paul Cézanne (1839 - 1906)
37
CANÇÃO DA MÃE DO UM SOLDADO DE PARTIDA PARA A BÓSNIA
É muito jovem, sem tempo ainda de ser triste. Demora-se nos meus olhos enquanto leva a maçã à boca. Nenhuma fala obscura escurece a tarde, a cabeleira solta é a sua bandeira; os pés brancos, irmãos da chuva de verão, anunciam a paz. Suplico à estrela da manhã que lhe guie os passos, agora que partiu; que tenha em conta a sua ignorância, não só da morte, também da vida.
38
A PEQUENA PÁTRIA
A pequena pátria; a do pão;
a da água;
a da ternura, tanta vez
envergonhada;
a de nenhum orgulho nem humildade;
a que não cercava de muros
o jardim nem roubava
aos olhos o desajeitado voo
das cegonhas; a do cheiro quente
e acidulado da urina
dos cavalos; a dos amieiros
à sombra onde aprendi
que o sexo se compartilhava;
a pequena pátria da alma e do estrume
suculento morno mole;
a da flor múltipla e tão amada
do girassol.
39
OIÇO FALAR
Oiço falar da minha vocação
mendicante, e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara, e doiravam o chão. A música,
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.
40
SÃO COISAS ASSIM
São coisas assim que tornam o coração vulnerável: o
regresso
das cegonhas brancas,
o comboiinho do ramal da Ceira
que parece de corda, as oito linhas
da Canção Nocturna do Viandante
de Goethe que Schubert musicou.
Quem dividiu comigo a alegria
merecia ao menos
que o trouxesse à orvalhada
e limpa terra do poema. Mas também
o poeta escreve direito por linhas
tortas: a poesia é a ficção
da verdade. Não será
a curva apetecida do teu peito
mas os lémures de Madagáscar,
que só vi num filme francês,
o que verdadeiramente me interessa
hoje trazer ao poema.
41
RILKIANA
De ti e desta nuvem; desta nuvem branca como voo de pássaro em manhã de Abril; de ti e da íntima chama de um fogo que não consente extinção; de ti e de mim fazer um só acorde, um acorde só; para não te perder.
42
HOMENAGEM A MARK ROTHKO
Mark Rothko (1903-1970)
Amarelo, laranja, limão, depois o carmim: tudo arde nas areias entre as palmeiras e o mar – era verão. Mas no lugar do teu nome a terra tem a cor do verde pensativo, que só a noite pastoreia leve.
43
~ ~ ~ ~ ~ ~
“Todas as coisas tombam
e são construídas de novo
E os que as constroem outra vez são
felizes.”
~ ~ ~ ~ ~ ~
44