Canguilhem, georges. o normal e o patológico (6. ed.) (dig.)

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GEORGES CANGUILHEM

O Normal e o Patolgicoedio revista

TraduoMARIA THEREZA REDIG DE CARVALHO BARROCAS

Reviso TcnicaMANOEL BARROS DA MOTTA

Traduo do Posfcio de PIERRE MACHEREYe da Apresentao de LOUIS ALTHUSSER

LUIZ OTVIO F. BARRETO LEITE

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6 edio / 2 reimpresso 2009

Copyright1966, Presses Universitaires de France

Traduzido de:Le Normal et le Pathologique

Capa: Ampersand Comunicao GrficaEditorao eletrnica: Rio Texto

CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

C226n Canguilhem, Georges, 1904-1995

6.ed.O normal e o patolgico / Georges Canguilhem; traduo de Mana Thereza Redig de Carvalho Barrocas; reviso tcnica Manoel Barros da Motta; traduo doposfcio de Piare Macherey e da apresentao de Louis Althusser, Luiz Otvio Ferreira Barreto Leite. - 6.ed. rev. - Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2009.

Traduo de: Le normal et le pathologique ISBN 978-85-218-0393-5

1. Teoria do conhecimento. 2. Medicina - Filosofia. 3. Patologia, I. Macherey, Pierre. A filosofia da cincia de Georges Canguilhem. II. Titulo. III. Srie.

06-0678. CDD 121

CDU 165

Proibida a reproduo total ou parcial, de qualquer formaou por qualquer meio eletrnico ou mecnico, sem permisso

expressa do Editor (Lei n 9.610, de 19.2.1998).

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Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Coleo Campo Terico

Dirigida por Manoel Barros da Motta e Severino Bezerra Cabral Filho

Da mesma coleo:

Do Mundo Fechado ao Universo Infinito Alexandre Koyr

Estudos de Histria do Pensamento Cientfico Alexandre Koyr

Estudos de Histria do Pensamento Filosfico Alexandre Koyr

O Nascimento da Clnica Michel Foucault

A Arqueologia do Saber Michel Foucault

Da Psicose Paranica em suas Relaes com a Personalidade Jacques Lacan

Teoria e Clnica da Psicose Antonio Quinet

Michel Foucault Uma Trajetria Filosfica Paul Rabinow e Hubert Dreyfus

Raymond Roussel Michel Foucault

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SumrioPRLOGO ..........................................................................................................................................6

I ENSAIO SOBRE ALGUNS PROBLEMAS RELATIVOS AO NORMAL E AO PATOLGICO(1943) ..................................................................................................................................................7

PREFCIO DA SEGUNDA EDIO ...............................................................................................8

INTRODUO.................................................................................................................................10

Primeira Parte ....................................................................................................................................12

I. SERIA O ESTADO PATOLGICO APENAS UMA MODIFICAOQUANTITATIVA DO ESTADO NORMAL? ............................................................................12

II AUGUSTO COMTE E O "PRINCPIO DE BROUSSAIS" .....................................................16

III CLAUDE BERNARD E A PATOLOGIA EXPERIMENTAL ...............................................24

IV AS CONCEPES DE R. LERICHE .....................................................................................35

V AS IMPLICAES DE UMA TEORIA ..................................................................................40

Segunda Parte ....................................................................................................................................44

I EXISTEM CINCIAS DO NORMAL E DO PATOLGICO?.................................................44

II EXAME CRTICO DE ALGUNS CONCEITOS: DO NORMAL,DA ANOMALIA E DA DOENA, DO NORMAL E DO EXPERIMENTAL ...........................48

III NORMA E MDIA..................................................................................................................59

IV DOENA, CURA, SADE.....................................................................................................71

V FISIOLOGIA E PATOLOGIA..................................................................................................81

CONCLUSO...................................................................................................................................92

NDICE BIBLIOGRFICO..............................................................................................................94

NDICE DOS NOMES CITADOS .................................................................................................101

II NOVAS REFLEXES REFERENTES AO NORMAL E AO PATOLGICO (1963-1966)....105

VINTE ANOS DEPOIS... ...............................................................................................................106

I DO SOCIAL AO VITAL..........................................................................................................108

II SOBRE AS NORMAS ORGNICAS NO HOMEM .............................................................118

III UM NOVO CONCEITO EM PATOLOGIA: O ERRO.........................................................126

EPLOGO ........................................................................................................................................132

BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................................133

POSFCIO......................................................................................................................................137

A FILOSOFIA DA CINCIA DE GEORGES CANGUILHEM ...............................................137

Epistemologia e Histria das Cincias Pierre Macherey ........................................................137

A histria tal como se faz: sua critica ......................................................................................142

Nascimentos e aventuras dos conceitos ...................................................................................145

Uma epistemologia da histria: cincia e filosofia ..................................................................150

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PRLOGO

A presente obra a reunio de dois estudos, um dos quais indito, relativos ao mesmo assunto.Trata-se, primeiro, da reedio de minha Tese de Doutorado em Medicina, reedio esta que foifacilitada pelo amvel consentimento do Comit de Publicaes da Faculdade de Letras deEstrasburgo, tornando possvel a realizao do projeto das Presses Universitaires de France.queles que conceberam esse projeto, assim como queles que favoreceram esta reedio, expressoaqui todo o meu reconhecimento.

No cabe a mim dizer se esta reedio se impunha ou no. verdade que minha tese teve a venturade suscitar algum interesse no mundo mdico, assim como entre os filsofos. Resta-me esperar queela no seja agora considerada muito ultrapassada.

Acrescentando algumas consideraes inditas a meu primeiro Ensaio, procuro apenas fornecer umtestemunho seno de meu sucesso, ao menos de meus esforos, para conservar um problema queconsidero fundamental no mesmo estado de atualidade que seus dados concretos, sempre emtransformao.

G. C.

1966

Esta edio contm algumas retificaes de detalhes e algumas notas complementares dep de pgina, assinaladas por um asterisco.

G. C.1972

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IENSAIO SOBRE ALGUNSPROBLEMAS RELATIVOS

AO NORMAL E AO PATOLGICO(1943)

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PREFCIO DA SEGUNDA EDIO*

Esta segunda edio de minha Tese de Doutorado em Medicina reproduz exatamente o texto daprimeira, publicada em 1943. No porque a considere definitivamente satisfatria; mas, por umlado, o Comit de Publicaes da Faculdade de Letras de Estrasburgo a que agradeo muitocordialmente por ter decidido reimprimir minha obra no podia arcar com as despesas que umamodificao do texto acarretaria. Por outro lado, as correes ou complementos a este primeiroensaio aparecero em um futuro trabalho, de carter mais geral. Gostaria apenas de indicar algumasnovas leituras, certas crticas que me foram feitas, algumas reflexes pessoais com que eu poderia edeveria ter beneficiado a primeira verso de meu ensaio.

E, antes de tudo, mesmo em 1943, deveria ter indicado a ajuda que poderia encontrar, para o temacentral de minha obra, em trabalhos como Trait de psychologie gnrale, de Pradines, e Structuredu comportement, de Merleau-Ponty. S pude indicar o segundo, descoberto quando meumanuscrito j estava no prelo. Ainda no havia lido o primeiro. Basta lembrar as condies em queera feita a distribuio de livros em 1943 para compreender as dificuldades de documentao dapoca. Alm disso, devo confessar que no o lamento muito, preferindo muitssimo umaconvergncia, cujo carter fortuito faz ressaltar melhor o valor de necessidade intelectual, a umaaquiescncia, mesmo totalmente sincera, s opinies de outrem.

Se escrevesse hoje este ensaio, eu deveria dar um grande destaque aos trabalhos de Selye e suateoria do estado de alarme orgnico. Esta exposio poderia servir de mediao entre as teses bem diferentes, primeira vista de Leriche e de Goldstein, que considero da maior importncia.Selye estabeleceu que falhas ou distrbios do comportamento, assim como as emoes e a fadigapor eles gerados, provocam, por sua freqente reiterao, uma modificao estrutural do crtexsupra-renal anloga que determinada pela introduo no meio interno de substncias hormonaisimpuras ou puras mas em altas doses, ou de substncias txicas. Todo estado orgnico de tensodesordenada, todo comportamento de alarme e stress provoca a reao supra-renal. Essa reao "normal", tendo em vista a ao e os efeitos da corticosterona no organismo. Alis, essas reaesestruturais, que Selye chama de reaes de adaptao e reaes de alarme, tm relao tanto com atireide ou com a hipfise, quanto com a supra-renal. Porm essas reaes normais (isto ,biologicamente favorveis) acabam por desgastar o organismo, no caso de repeties anormais(isto , estatisticamente freqentes) das situaes geradoras da reao de alarme. Em certosindivduos instalam-se, portanto, doenas de adaptao. As repetidas descargas de corticosteronaprovocam ou perturbaes funcionais, como o espasmo vascular ou a hipertenso, ou ento lesesmorfolgicas, como a lcera de estmago. Por isso que se observou, na populao das cidadesinglesas sujeitas ao raids areos da ltima guerra, uma multiplicao considervel dos casos delcera gstrica.

Se interpretarmos esses fatos do ponto de vista de Goldstein, veremos a doena como ocomportamento catastrfico; se os interpretarmos do ponto de vista de Leriche, a veremos como aanomalia histolgica determinada pela desordem fisiolgica. Esses dois pontos de vista no seexcluem; muito pelo contrrio.

Da mesma forma, tiraria grande partido, hoje em dia, das obras de Etienne Wolff, Les changementsde sexe e La science des monstres, para minhas referncias sobre os problemas da teratognese.Insistiria mais na possibilidade e mesmo na obrigao de esclarecer as formaes normais peloconhecimento das formaes monstruosas. Afirmaria com maior convico ainda que no h, em

* 1950 A primeira edio data de 1943.

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tese e a priori, diferena ontolgica entre uma forma viva perfeita e uma forma viva malograda.Alis, ser lcito falar de formas vivas malogradas? Que falha pode-se detectar em um ser vivo,enquanto no se tiver fixado a natureza de suas obrigaes como ser vivo?

Deveria tambm ter levado em conta mais ainda que as aprovaes e confirmaes que recebide mdicos, psiclogos, como meu amigo Lagache, professor da Sorbonne, ou bilogos, comoSabiani e Kehl, da Faculdade de Medicina de Argel as crticas ao mesmo tempo compreensivase severas de Louis Bounoure, da Faculdade de Cincias de Estrasburgo. Em sua obra L'autonomiede l'tre vivant, Bounoure me acusa com tanto esprito quanto cordialidade de me deixarlevar pela "obsesso evolucionista", e considera com grande perspiccia, se assim posso dizer, aidia de uma normatividade do ser vivo como uma projeo, sobre toda a natureza viva, datendncia humana ao aperfeioamento. Com efeito, um grave problema, ao mesmo tempobiolgico e filosfico, saber se ou no legtimo introduzir a Histria na Vida (penso, a esserespeito, em Hegel e nos problemas levantados pela interpretao do hegelianismo). compreensvel que eu no possa abordar essa questo em um prefcio. Quero ao menos dizer queela no me escapa, que espero abord-la futuramente, e que agradeo a Bounoure por ter meajudado a coloc-la.

Finalmente, certo que, atualmente, ao expor as idias de Claude Bernard, eu no poderia deixarde levar em conta a publicao, em 1947, pelo Dr. Delhoume, dos Principes de mdecineexprimentale, em que Claude Bernard examina, com mais preciso que em outras obras, oproblema da relatividade individual do fato patolgico. No penso, no entanto, que minha opiniosobre as idias de Claude Bernard se modificasse quanto ao essencial.

Para terminar, acrescento que certos leitores se surpreenderam com a brevidade de minhasconcluses e com o fato de elas deixarem aberta a porta filosfica. Devo dizer que isso foiintencional. Tinha tido a inteno de fazer um trabalho de abordagem para uma futura tesefilosfica. Tinha plena conscincia de que, na minha Tese de Medicina, tinha me deixado levar,talvez at demais, pelo demnio filosfico. Foi deliberadamente que dei a minhas concluses ocarter de proposies simples e sobriamente metodolgicas.

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INTRODUO

O problema das estruturas e dos comportamentos patolgicos no homem imenso. O portador deum defeito fsico congnito, um invertido sexual, um diabtico, um esquizofrnico levantaminumerveis problemas que remetem, em ltima anlise, ao conjunto das pesquisas anatmicas,embriolgicas, fisiolgicas, psicolgicas. Nossa opinio, no entanto, que esse problema no deveser dividido, e que as chances de esclarec-lo so maiores se o considerarmos em blocos, do que seo dividirmos em questes de detalhe. No momento, porm, no temos meios de sustentar essaopinio pela apresentao de uma sntese suficientemente documentada, que esperamos realizar umdia. No entanto, no apenas essa impossibilidade que a publicao de algumas de nossaspesquisas traduz, mas tambm a inteno de marcar tempos sucessivos no exame da questo.

A filosofia uma reflexo para a qual qualquer matria estranha serve, ou diramos mesmo para aqual s serve a matria que lhe for estranha. Tendo comeado o curso de medicina alguns anosdepois de haver terminado o curso de filosofia, e ao mesmo tempo que ensinava filosofia, tornam-se necessrias algumas palavras de explicao a respeito de nossas intenes. No necessariamente para conhecer melhor as doenas mentais que um professor de filosofia pode seinteressar pela medicina. No , tambm, necessariamente para praticar uma disciplina cientfica.Espervamos da medicina justamente uma introduo a problemas humanos concretos. A medicinanos pareceria, e nos parece ainda, uma tcnica ou arte situada na confluncia de vrias cincias,mais do que uma cincia propriamente dita. Parecia-nos que uma cultura mdica direta viriafavorecer uma colocao mais precisa e o esclarecimento de dois problemas que nos interessavam:o das relaes entre cincias e tcnicas e o das normas e do normal. Aplicando medicina umesprito que gostaramos de chamar "sem preconceitos", pareceu-nos que, apesar de tantos esforoslouvveis para introduzir mtodos de racionalizao cientfica, o essencial dessa cincia ainda era aclnica e a teraputica, isto , uma tcnica de instaurao e de restaurao do normal, que no podeser inteiramente reduzida ao simples conhecimento.

O presente trabalho , portanto, um esforo para integrar especulao filosfica alguns dosmtodos e das conquistas da medicina. preciso dizer que no se trata de dar nenhuma lio, nemde fazer nenhum julgamento normativo sobre a atividade mdica. No temos a pretenso de quererrenovar a medicina incorporando-lhe uma metafsica. Se a medicina deve ser renovada, cabe aosmdicos a honra e o risco de faz-lo. Tivemos, porm, a ambio de contribuir para a renovao decertos conceitos metodolgicos, retificando sua compreenso pela influncia de uma informaomdica. Que no se espere, portanto, desta obra, mais do que quisermos dar. A medicina freqentemente a presa e a vtima de uma certa literatura pseudofilosfica cujos autores, cumpredizer, muitas vezes so os prprios mdicos, e da qual a medicina e a filosofia raramente tiramalgum proveito. No pretendemos incentivar essa tendncia. Tampouco pretendemos passar porhistoriador da medicina. E se na primeira parte colocamos o problema em perspectiva histrica, foiunicamente para que ficasse mais facilmente inteligvel. No temos nenhuma pretenso de erudiono campo da biografia.

Apenas uma palavra sobre a delimitao do assunto. O problema geral do normal e do patolgicopode, do ponto de vista mdico, dividir-se em problema teratolgico e em problema nosolgico, eeste ltimo, por sua vez, em problema de nosologia somtica ou de fisiopatologia, e em problemade nosologia psquica ou de psicopatologia. E muito precisamente ao problema de nosologiasomtica, ou de fisiologia patolgica, que desejamos limitar o presente trabalho, sem, no entanto,deixar de buscar na teratologia ou na psicopatologia um ou outro dado, noo ou soluo que nos

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parecessem particularmente capazes de esclarecer o exame da questo ou de confirmar algumresultado.

Fizemos tambm questo de apresentar nossas concepes em ligao com o exame crtico de umatese, geralmente adotada no sculo XIX, relativa s relaes entre o normal e o patolgico. Trata-sede uma tese segundo a qual os fenmenos patolgicos so idnticos aos fenmenos normaiscorrespondentes, salvo pelas variaes quantitativas. Assim procedendo, acreditamos obedecer auma exigncia do pensamento filosfico, que a de reabrir debates mais do que fech-los. LenBrunschvicg disse, a respeito da filosofia, que ela a cincia dos problemas resolvidos. Fazemosnossa esta definio simples e profunda.

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Primeira Parte

I. SERIA O ESTADO PATOLGICO APENAS UMA MODIFICAOQUANTITATIVA DO ESTADO NORMAL?

INTRODUO AO PROBLEMA

Para agir, preciso ao menos localizar. Como agir sobre um terremoto ou um furaco? , semdvida, necessidade teraputica que se deve atribuir a iniciativa de qualquer teoria ontolgica dadoena. Ver em qualquer doente um homem aumentado ou diminudo em algo j , em parte,tranqilizar-se. O que o homem perdeu pode lhe ser restitudo; o que nele entrou, pode sair. Mesmose a doena sortilgio, encantamento, possesso demonaca, pode-se ter a esperana de venc-la.Basta pensar que a doena atinge o homem para que nem toda esperana esteja perdida. A magiaoferece inmeros recursos para comunicar s drogas e aos ritos de encantamento toda a intensidadedo desejo da cura. Sigerist assinalou que a medicina egpcia provavelmente generalizou aexperincia oriental das afeces parasitrias, combinando-a com a idia da doena-possesso.Expulsar vermes recuperar a sade [107, 120].1 A doena entra e sai do homem como por umaporta. Atualmente ainda existe uma hierarquia vulgar das doenas, baseada na maior facilidade delocalizar seus sintomas. Assim, a paralisia agitante mais doena do que a zona torcica, e a zonatorcica mais do que o furnculo. Sem querer atentar contra a majestade dos dogmas de Pasteur,pode-se at dizer que a teoria microbiana das doenas contagiosas deve, certamente, uma parteconsidervel de seu sucesso ao fato de conter uma representao ontolgica do mal. O micrbio,mesmo sendo necessria a mediao complicada do microscpio, dos corantes e das culturas, podeser visto, ao passo que no se poderia ver um miasma ou uma influncia. Ver um ser j prever umato. Ningum pode contestar o carter otimista das teorias da infeco quanto a seu prolongamentoteraputico. A descoberta das toxinas e o reconhecimento do papel patognico dos terrenosespecficos e individual destruram a admirvel simplicidade de uma doutrina, cuja roupagemcientfica dissimulava a persistncia de uma reao diante do mal, que to antiga quanto o prpriohomem.

Se sentimos, porm, a necessidade de nos tranqilizarmos que uma angstia pesa constantementesobre nosso pensamento; se delegamos tcnica, mgica ou positiva, a tarefa de restaurar na normadesejada o organismo afetado pela doena, porque nada esperamos de bom da natureza por siprpria.

A medicina grega, ao contrrio, oferece nossa considerao, nos escritos e prticas hipocrticos,uma concepo no mais ontolgica, e sim dinmica da doena, no mais localizante, e simtotalizante. A natureza (physis), tanto no homem como fora dele, harmonia e equilbrio. Aperturbao desse equilbrio, dessa harmonia, a doena. Nesse caso, a doena no est em algumaparte do homem. Est em todo o homem e toda dele. As circunstncias externas so ocasies, eno causas. O que est em equilbrio no homem, e cuja perturbao causa a doena, so quatrohumores, cuja fluidez precisamente capaz de suportar variaes e oscilaes, e cujas qualidadesso agrupadas duas a duas, segundo seu contraste (quente, frio, mido, seco). A doena no somente desequilbrio ou desarmonia; ela tambm, e talvez sobretudo, o esforo que a naturezaexerce no homem para obter um novo equilbrio. A doena uma reao generalizada com

1 As referncias entre colchetes remetem aos nmeros do ndice Bibliogrfico, p. 107-114 (primeiro grupo de nmeros) e aos tomos,pginas ou artigos da obra mencionada (nmeros em itlico).

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inteno de cura. O organismo desenvolve uma doena para se curar. A teraputica deve, emprimeiro lugar, tolerar e, se necessrio, at reforar essas reaes hednicas e teraputicasespontneas. A tcnica mdica imita a ao mdica natural (vis medicatrix naturae). Imitar nosomente copiar uma aparncia, reproduzir uma tendncia, prolongar um movimento ntimo. claro que tal concepo otimista, mas esse otimismo diz respeito ao sentido da natureza, e no aoefeito da tcnica humana.

O pensamento dos mdicos oscila, at hoje, entre essas duas representaes da doena, entre essasduas formas de otimismo, encontrando, de cada vez, para uma ou outra atitude, alguma boa razoem uma patogenia recentemente elucidada. As doenas de carncia e todas as doenas infecciosasou parasitrias fazem a teoria ontolgica marcar um ponto; as perturbaes endcrinas e todas asdoenas marcadas pelo prefixo dis reafirmam a teoria dinamista ou funcional. Essas duasconcepes tm, no entanto, um ponto em comum: encaram a doena, ou melhor, a experincia deestar doente, como uma situao polmica, seja uma luta do organismo contra um ser estranho, sejauma luta interna de foras que se afrontam. A doena difere da sade, o patolgico, do normal,como uma qualidade difere de outra, quer pela presena ou ausncia de um princpio definido, querpela re-estruturao da totalidade orgnica. Essa heterogeneidade dos estados normal e patolgicoainda compreensvel na concepo naturista que pouco espera da interveno humana para arestaurao do normal. A natureza encontraria os meios para a cura.

Contudo, em uma concepo que admite e espera que o homem possa forar a natureza e dobr-la aseus desejos normativos, a alterao qualitativa que separa o normal do patolgico era dificilmentesustentvel. Desde Bacon, no se insiste na idia de que s se pode dominar a naturezaobedecendo-lhe? Dominar a doena conhecer suas relaes com o estado normal que o homemvivo deseja restaurar, j que ama a vida. Da a necessidade terica, mas com prazo tcnico diferido,de fundar uma patologia cientfica ligando-a fisiologia. Thomas Sydenham (1624-1689) achavaque para ajudar o doente era preciso delimitar e determinar seu mal. H espcies mrbidas assimcomo h espcies vegetais ou animais. H uma ordem nas doenas, segundo Sydenham, assim comh uma regularidade nas anomalias, segundo I. Geoffroy Saint-Hilaire. Pinel justificava todas essatentativas de classificao nosolgica, levando o gnero sua perfeio mxima em sua Nosografiafilosfica (1797), a respeito da qual Daremberg disse que era obra de um naturalista mais do que deum clnico [29, 1201].

Nesse meio tempo, Morgagni (1682-1771), criando a anatomia patolgica, havia permitido que seassociasse a leses de rgo definidas grupos de sintomas estveis. De modo que a classificaonosogrfica encontrou um substrato na decomposio anatmica. Porm, como desde Harvey eHaller a anatomia se tinha "animado" para tornar-se fisiologia, a patologia vinha naturalmenteprolongar a fisiologia. Encontra-se em Sigerist uma explanao sumria e magistral de toda essaevoluo das idias mdicas [107, 117-142]. Essa evoluo resultou na formao de uma teoria dasrelaes entre o normal e o patolgico, segundo a qual os fenmenos patolgicos nos organismosvivos nada mais so do que variaes quantitativas, para mais ou para menos, dos fenmenosfisiolgicos correspondentes. Semanticamente, o patolgico designado a partir do normal, notanto como a ou dis, mas como hiper ou hipo.

Essa teoria no defende absolutamente a tese de que sade e doena sejam opostos quantitativos,foras em luta, apesar de conservar a confiana tranqilizadora que a teoria ontolgica deposita napossibilidade de vencer tecnicamente o mal. A necessidade de restabelecer a continuidade, paramelhor conhecer, a fim de melhor agir tal que, levando-a s ltimas conseqncias, o conceito dedoena se desvaneceria. A convico de poder restaurar cientificamente o normal tal que acabapor anular o patolgico. A doena deixa de ser objeto de angstia para o homem so, e torna-seobjeto de estudo para o terico da sade. no Patolgico, com letra maiscula, que se decifra oensinamento da sade, de certo modo assim como Plato procurava nas instituies do Estado oequivalente, ampliado e mais facilmente legvel, das virtudes e vcios da alma individual.

* * *

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A identidade real dos fenmenos vitais normais e patolgicos, aparentemente to diferentes e aosquais a experincia humana atribuiu valores opostos, tornou-se, durante o sculo XIX, uma espciede dogma, cientificamente garantido, cuja extenso no campo da filosofia e da psicologia pareciadeterminada pela autoridade que os bilogos e os mdicos lhe reconheciam.

Na Frana, esse dogma foi exposto, em condies e de acordo com intenes bem diferentes, porAugusto Comte e Claude Bernard. Na doutrina de Comte, uma idia que explcita erespeitosamente ele reconhece dever a Broussais. Em Claude Bernard, a concluso tirada deuma vida inteira de experimentao biolgica e cuja prtica codificada metodicamente pelaclebre Introduction l'tude de la mdecine exprimentale. No pensamento de Comte, o interessese dirige do patolgico para o normal, com a finalidade de determinar especulativamente as leis donormal, pois como substituto de uma experimentao biolgica muitas vezes impraticvel sobretudo no homem que a doena aparece como digna de estudos sistemticos. A identidade donormal e do patolgico afirmada em proveito do conhecimento do normal. No pensamento deClaude Bernard, o interesse dirige-se do normal para o patolgico, com a finalidade de uma aoracional sobre o patolgico, pois como fundamento de uma teraputica em franca ruptura com oempirismo que o conhecimento da doena procurado por meio da fisiologia e a partir dela.Finalmente, em Comte, a afirmao de identidade permanece puramente conceptual, ao passo queClaude Bernard tenta precisar essa identidade em uma interpretao de carter quantitativo enumrico.

No absolutamente para depreci-la que se qualifica como dogma tal teoria, mas sim para fazercom que sua repercusso e seu alcance sejam bem apreendidos. No absolutamente por acaso quese decidiu procurar na obra de Augusto Comte e de Claude Bernard os textos que definiram osentido dessa teoria. A influncia desses dois autores sobre a filosofia, a cincia, e talvez maisainda, sobre a literatura do sculo XIX foi considervel. Ora, habitual aos mdicos procurar afilosofia de sua arte muito mais na literatura do que na medicina ou na prpria filosofia. A leiturade Littr, de Renan, de Taine certamente suscitou mais vocaes para a medicina de que a deRicherand ou de Trousseau, pois um fato a ser considerado que geralmente se chega medicinana total ignorncia das teorias mdicas, mas no sem idias preconcebidas sobre muitos conceitosmdicos. A difuso das idias de Comte nos meios mdicos, cientficos e literrios foi obra deLittr e de Charles Robin, primeiro titular da cadeira de histologia na Faculdade de Medicina deParis.2 Foi sobretudo no campo da psicologia que sua influncia se prolongou. Encontramos seureflexo na obra de Renan: "O sono, a loucura, o delrio, o sonambulismo, a alucinao oferecem psicologia individual um campo de experincia bem mais fecundo que o estado ordinrio. Pois osfenmenos que, neste estado, so como que apagados por sua tenuidade, aparecem de maneira maissensvel nas crises extraordinrias, por sua exagerao. O fsico no estuda o galvanismo nasquantidades reduzidas em que se apresenta na natureza, mas multiplica-o pela experimentao, afim de estud-lo com maior facilidade, certo, alis, de que as leis estudadas nesse estado exageradoso idnticas s do estado natural. Da mesma forma, a psicologia da humanidade dever seredificada sobretudo a partir do estudo das loucuras da humanidade, de seus sonhos, de suasalucinaes que so encontradas a cada pgina da histria do esprito humano" [99, 184]. L. Dugas,no seu estudo sobre Ribot, mostrou bem o parentesco que h entre as concepes metodolgicas deRibot e as idias de Comte e de Renan, seu amigo e protetor [37, 21 e 68]. "A fisiologia e apatologia tanto as do esprito quanto as do corpo no se opem uma outra como doiscontrrios, mas sim como duas partes de um mesmo todo... O mtodo patolgico origina-se aomesmo tempo da observao pura e da experimentao. um meio de investigao poderoso efecundo em resultados. A doena , com efeito, uma experimentao de tipo mais sutil, institudapela prpria natureza, em circunstncias bem determinadas e por processos de que a arte humanano dispe: ela atinge o inacessvel" [100].

No menos ampla e profunda foi a influncia de Claude Bernard sobre os mdicos da poca que vaide 1870 a 1914, quer diretamente pela fisiologia, quer indiretamente pela literatura, comodemonstraram os trabalhos de Lamy e Donald-King sobre as relaes entre o naturalismo literrio e

2 Sobre as relaes entre Comte e Robin, ver Genty [42] e Klein [64].

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as doutrinas biolgicas e mdicas do sculo XIX [68 e 34]. O prprio Nietzsche se inspira emClaude Bernard, e precisamente na idia de que o patolgico e o normal so homogneos. Antes decitar um longo trecho sobre a sade e a doena, extrado das Leons sur la chaleur animale,3Nietzsche fez a seguinte reflexo: "O valor de todos os estados mrbidos consiste no fato demostrarem, com uma lente de aumento, certas condies que, apesar de normais, so dificilmentevisveis no estado normal" (La volont de puissance, 533, trad. Bianquis, N.R.F., I, 364).

Essas indicaes sumrias parecem ser suficientes para mostrar que a tese cujo sentido e alcancegostaramos de definir no foi inventada gratuitamente. A histria das idias no pode sernecessariamente superposta histria das cincias. Porm, j que os cientistas, como homens,vivem sua vida em um ambiente e em um meio que no so exclusivamente cientficos, a histriadas cincias no pode negligenciar a histria das idias. Aplicando a uma tese sua prpriaconcluso, seria possvel dizer que as deformaes por ela sofridas no meio de cultura podemrevelar sua significao essencial.

Decidimos centrar nossa exposio em torno dos nomes de Comte e de Claude Bernard porqueesses autores desempenharam, semi-voluntariamente, o papel de porta-bandeira; esta a razo dapreferncia que lhes foi dada, em detrimento de tantos outros, igualmente citados, e que poderiamser mais bem explicados sob outras perspectivas.4 por uma razo precisamente inversa quedecidimos acrescentar, exposio das idias de Comte e de Claude Bernard, a exposio dasidias de Leriche. Leriche um autor discutido tanto em medicina quanto em fisiologia, e este no o menor dos seus mritos. Mas possvel que, expondo suas concepes em uma perspectivahistrica, nelas se descubram profundidades e um alcance insuspeitados. Sem cair no culto daautoridade, no se pode contestar a um clnico eminente uma competncia muito superior deComte ou de Claude Bernard em matria de patologia. Alis, no deixa de ter interesse, para osproblemas examinados aqui, o fato de Leriche ocupar atualmente, no College de France, a ctedrade medicina ilustrada pelo prprio Claude Bernard. As dissonncias entre eles s lhes conferemmais sentido e valor.

3 o texto citado na p. 38, in fine.4 Um achado bibliogrfico de ltima hora corrobora nossa escolha. O dogma patolgico que queremos discutir est exposto, semreservas nem reticncias, em 1864, no Journal des dbats por Charles Daremberg, sob a gide de Broussais, Comte, Lime, CharlesRobin e Claude Bernard [29].

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II AUGUSTO COMTE E O "PRINCPIO DE BROUSSAIS"

Augusto Comte afirma a identidade real dos fenmenos patolgicos e dos fenmenos fisiolgicoscorrespondentes durante os trs estgios principais de sua evoluo intelectual, no perodopreparatrio ao Cours de philosophie positive, perodo esse que foi marcado, no incio, pelaamizade com Saint-Simon, de quem Comte se separou em 1824;1 no perodo propriamente dito dafilosofia positiva; no perodo to diferente, por certas caractersticas, do precedente dosistema de poltica positiva. Comte atribui ao que ele chama de princpio de Broussais um alcanceuniversal, na ordem dos fenmenos biolgicos, psicolgicos e sociolgicos.

Foi em 1828, comentando o trabalho de Broussais De l 'irritation et de la folie, que Comte aderiu aesse princpio e o adotou para seu prprio uso [26]. Comte atribui a Broussais o mrito que narealidade cabe a Bichat, e antes dele a Pinel, de ter proclamado que todas as doenas aceitas comotal so apenas sintomas, e que no poderiam existir perturbaes das funes vitais sem leses dergos, ou melhor, de tecidos. Mas, sobretudo, acrescenta Comte, "jamais se concebeu de maneirato direta e to satisfatria a relao fundamental entre a patologia e a fisiologia". Com efeito,Broussais explica que todas as doenas consistem, basicamente, "no excesso ou falta de excitaodos diversos tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal". Portanto, as doenasnada mais so que os efeitos de simples mudanas de intensidade na ao dos estimulantesindispensveis conservao da sade.

A partir de ento, Comte elevou a concepo nosolgica de Broussais categoria de axioma geral,e no seria exagerado dizer que ele lhe atribui o mesmo valor dogmtico que tem a lei de Newtonou o princpio de d'Alembert. Alis, certo que, ao procurar ligar seu princpio sociolgicofundamental "o progresso nada mais que o desenvolvimento da ordem" a algum outroprincpio mais geral, capaz de valid-lo, Comte hesita entre a autoridade de Broussais e a ded'Alembert. Ora ele se refere reduo feita por d'Alembert das leis da comunicao dosmovimentos s leis do equilbrio [28, 1, 490-94], ora ao aforismo de Broussais. A teoria positiva damodificabilidade dos fenmenos "se condensa inteiramente nesse princpio universal, que resultada extenso sistemtica do grande aforismo de Broussais: qualquer modificao, artificial ounatural, da ordem real diz respeito somente intensidade dos fenmenos correspondentes..., apesardas variaes de grau, os fenmenos conservam sempre a mesma disposio, j que qualquermudana de natureza propriamente dita, isto , de classe , alis, considerada contraditria" [28,III, 71]. Pouco a pouco, Comte chega quase a reivindicar para si mesmo a paternidade intelectualdesse princpio, em virtude da extenso sistemtica que lhe conferiu, exatamente do mesmo modocomo, no incio, achava que Broussais, tendo tomado esse princpio de Brown, podia reivindic-lopara si prprio, em virtude do uso pessoal que dele havia feito [28, IV App. 223]. preciso citar,aqui, um trecho bastante longo, que perderia grande parte de sua fora se fosse resumido: "Ajudiciosa observao das doenas institui, para com os seres vivos, uma srie de experinciasindiretas, muito mais prprias que a maioria das experincias diretas para esclarecer as noesdinmicas e mesmo estticas. Meu Trait philosophique fez com que fossem bastante apreciados oalcance e a natureza de tal processo, de que emanam realmente as principais aquisies da biologia.Esse tratado baseia-se no grande princpio cuja descoberta tive de atribuir a Broussais, porquesobressai do conjunto de seus trabalhos, embora somente eu tivesse elaborado sua formulao gerale direta. O estado patolgico era, at ento, relacionado com leis completamente diferentes das queregem o estado normal: de modo que a explorao de um deles no podia decidir nada para o outro.Broussais mostra que os fenmenos da doena coincidem essencialmente com os fenmenos dasade, da qual s diferem pela intensidade. Esse luminoso princpio tornou-se a base sistemtica dapatologia, subordinada, assim, ao conjunto da biologia. Aplicado em sentido inverso, explica eaperfeioa a grande capacidade da anlise patolgica para esclarecer as especulaes biolgicas...As luzes que agora lhe devemos s podem dar uma fraca idia de sua eficcia ulterior. O regime

1 Sobre as leituras de Comte a respeito de biologia e medicina, no perodo de 1817 a 1824, em que "ele se preparava no para tornar-seum bilogo, mas sim um filsofo da biologia", ver H. Gouhier [47, 237].

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enciclopdico o estender sobretudo s funes intelectuais e morais, s quais o princpio deBroussais ainda no foi condignamente aplicado, de modo que suas doenas nos surpreendem ounos emocionam sem nos esclarecer..., alm de sua eficcia direta para as questes biolgicas, eleconstituir, no sistema geral da educao positiva, uma vantajosa preparao lgica aos processosanlogos para a cincia final. Pois o organismo coletivo, em virtude de sua complexidade superior,comporta perturbaes ainda mais graves, mais variadas e mais freqentes que as do organismoindividual. No tenho medo de assegurar que o princpio de Broussais deve ser estendido at esseponto, e j o apliquei nesse campo para confirmar ou aperfeioar as leis sociolgicas. "Contudo, aanlise das revolues no poderia esclarecer o estudo positivo da sociedade, sem que haja, a esserespeito, a iniciao lgica resultante dos casos mais simples apresentados pela biologia" [28, I,651-53].

Eis, portanto, um princpio de nosologia investido de uma autoridade universal, inclusive no campoda poltica. , alis, indubitvel que esta ltima utilizao projetada lhe confere retroativamentetodo o valor que, segundo Comte, j tinha no campo da biologia.

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a 40 Lio do Cours de philosophie positive: consideraes filosficas sobre o conjunto dacincia biolgica, que contm o texto mais completo de Comte sobre o problema que nos interessa.Trata-se de mostrar quais as dificuldades encontradas nos caracteres originais do ser vivo pelasimples extenso dos mtodos de experimentao cuja fecundidade foi comprovada no campo dosfenmenos fsico-qumicos: "Uma experimentao qualquer sempre destinada a descobrir as leissegundo as quais cada uma das influncias determinantes ou modificadoras de um fenmenoparticipa de sua realizao, e ela consiste, em geral, em introduzir em cada condio proposta umamodificao bem definida, a fim de apreciar diretamente a variao correspondente do prpriofenmeno" [27, 169]. Ora, em biologia, a variao imprimida a uma ou vrias condies deexistncia do fenmeno no pode ser qualquer uma, mas deve estar compreendida entre certoslimites compatveis com a existncia do fenmeno; alm disso, o fato do consensus funcionalprprio do organismo impede de acompanhar, com suficiente preciso analtica, a relao que ligauma perturbao determinada a seus efeitos exclusivos supostos. No entanto, Comte acha que, seadmitirmos que o essencial, na experimentao, no a interveno artificial do pesquisador nocurso de um fenmeno que intencionalmente ele visa a perturbar, mas sim, e sobretudo, acomparao entre um fenmeno padro e um fenmeno alterado quanto a qualquer uma de suascondies de existncia, da decorre que as doenas devem poder representar, aos olhos docientista, o papel de experimentaes espontneas, permitindo uma comparao entre os diversosestados anormais do organismo e seu estado normal. "Segundo o princpio eminentementefilosfico que serve doravante de base geral e direta patologia positiva, princpio este que foidefinitivamente estabelecido pelo gnio ousado e perseverante de nosso ilustre concidadoBroussais, o estado patolgico em absoluto no difere radicalmente do estado fisiolgico, emrelao ao qual ele s poderia constituir, sob um aspecto qualquer, um simples prolongamento maisou menos extenso dos limites de variaes, quer superiores, quer inferiores, peculiares a cadafenmeno do organismo normal, sem jamais poder produzir fenmenos realmente novos que notivessem de modo nenhum, at certo ponto, seus anlogos puramente fisiolgicos" [27, 1 75]. Porconseguinte, qualquer concepo de patologia deve basear-se em um conhecimento prvio doestado normal correspondente, mas, inversamente, o estudo cientfico dos casos patolgicos torna-se uma etapa indispensvel de qualquer pesquisa das leis do estado normal. A observao dos casospatolgicos apresenta vantagens reais e numerosas em relao explorao experimentalpropriamente dita. A passagem do normal ao anormal mais lenta e mais natural quando se trata deuma doena, e a volta do estado normal, quando esta ocorre, fornece espontaneamente uma contra-prova verificadora. Alm disso, quando se trata do homem, a explorao patolgica mais rica doque a explorao experimental, necessariamente limitada. Vlida, no fundo, para todos osorganismos, mesmo vegetais, o estudo cientfico dos casos mrbidos convm perfeitamente aos

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fenmenos mais complexos, e, portanto, mais delicados e mais frgeis, que poderiam ser alteradospor uma experimentao direta, que provocasse uma perturbao excessivamente brusca. Comtereferia-se, nesse trecho, aos fenmenos da vida de relao nos animais superiores e no homem, sfunes nervosas e s funes psquicas. Enfim, o estudo das anomalias e monstruosidades,encaradas como doenas ao mesmo tempo mais antigas e menos curveis que as perturbaesfuncionais dos diversos aparelhos vegetais ou neuromotores, completa o estudo das doenas: o"processo teratolgico" vem se juntar ao "processo patolgico" para a investigao biolgica [27,179].Convm, antes de tudo, notar o carter particularmente abstrato dessa tese, a ausncia, durante suaexposio literal, de qualquer exemplo preciso, de natureza mdica, prprio para ilustr-la. Por nopodermos relacionar essas proposies gerais com exemplos, ignoramos em que ponto de vistaComte se coloca para afirmar que o fenmeno patolgico tem sempre seu anlogo em umfenmeno fisiolgico, no constituindo nada de radicalmente novo. Em que uma artria esclerosada anloga a uma artria normal, em que um corao assistlico idntico a um corao de atleta, deposse de todas as suas capacidades? Sem dvida, deve-se compreender que na doena como nasade, as leis dos fenmenos vitais so as mesmas. Mas, ento, por que no diz-lo expressamentee por que no apresentar exemplos disso? E mesmo assim, ser que isso levaria a admitir queefeitos anlogos sejam determinados, na sade e na doena, por mecanismos anlogos?Consideremos este exemplo dado por Sigerist: "Durante a digesto, o nmero de glbulos brancosaumenta. O mesmo acontece no incio de uma infeco. Conseqentemente, esse fenmeno orafisiolgico, ora patolgico, segundo a causa que o provocou" [107, 109].

Nota-se, em seguida, que, apesar da reciprocidade de esclarecimento que o normal recebe de suacomparao com o patolgico, e o patolgico de sua assimilao ao normal, Comte insiste vriasvezes na obrigao de determinar previamente o normal e seus verdadeiros limites de variaoantes de explorar metodicamente os casos patolgicos. o mesmo que dizer que, a rigor, umconhecimento dos fenmenos normais possvel e necessrio, mesmo privado das lies da doena espcie do gnero da experimentao , baseado unicamente na observao. Mas o fato deComte no apresentar nenhum critrio que permita reconhecer a normalidade de um fenmenoconstitui uma grave lacuna. Temos, portanto, boas razes para pensar que, sobre esse ponto, ele serefere ao conceito usual correspondente, j que utiliza indiferentemente as noes de estadonormal, estado fisiolgico e estado natural [27, 175, 176]. Melhor ainda, tendo de definir os limitesdas perturbaes patolgicas ou experimentais, compatveis com a existncia dos organismos,Comte identifica esses limites com os de uma "harmonia de influncias distintas, tanto externasquanto internas" [27, 169]. De modo que, finalmente esclarecido por esse conceito de harmonia, oconceito de normal ou de fisiolgico reduzido a um conceito qualitativo e polivalente, esttico emoral, mas ainda que cientfico.

Da mesma forma, no que se refere afirmao de identidade do fenmeno normal e do fenmenopatolgico correspondente, claro que a inteno de Comte negar a diferena qualitativa que osvitalistas admitiam entre um e outro. Segundo a lgica, negar uma diferena qualitativa deve levara afirmar uma homogeneidade quantitativamente exprimvel. Provavelmente essa a tendncia deComte, ao definir o patolgico como "simples prolongamento mais ou menos extenso dos limitesde variao, quer superiores, quer inferiores, prprios de cada fenmeno do organismo normal". Noentanto, preciso reconhecer que os termos aqui utilizados, por serem apenas vaga eimprecisamente quantitativos, conservam ainda uma ressonncia qualitativa. Comte herdou deBroussais esse vocabulrio inadequado para a inteno que queria exprimir, e em Broussais quetemos de buscar a compreenso das incertezas e lacunas da exposio de Comte.

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Resumimos a teoria de Broussais de preferncia segundo o tratado De L'irritation et de la folie, jque, dentre suas obras, era a que Comte conhecia melhor. Pudemos constatar que nem o Trait dephysiologie applique la pathologie nem o Catchisme de mdecine physiologique formulam essa

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teoria mais claramente, nem de outra maneira.2 Broussais considera a excitao como o fato vitalprimordial. O homem s existe pela excitao exercida sobre seus rgos pelos meios nos quais obrigado a viver. As superfcies de relao, tanto internas quanto externas, transmitem, por suainervao, essa excitao ao crebro que a reflete em todos os tecidos, inclusive nas superfcies derelao. Essas superfcies esto sujeitas a dois tipos de excitao: os corpos estranhos e a influnciado crebro. sob a ao contnua dessas mltiplas fontes de excitao que a vida se mantm.Aplicar a doutrina fisiolgica patologia pesquisar o modo como "essa excitao pode se desviardo estado normal e constituir um estado anormal ou doentio" [18, 263]. Esses desvios podem ser deduas naturezas: por falta ou por excesso. A irritao difere da excitao apenas sob o aspecto daquantidade. Pode-se defini-la como o conjunto dos distrbios "produzidos na economia pelosagentes que tornam os fenmenos da vida mais ou menos pronunciados do que o so no estadonormal" [18, 267]. A irritao , portanto, "excitao normal, transformada por seu excesso" [18,300]. Por exemplo, a asfixia por falta de ar oxigenado priva o pulmo de seu excitante normal.Inversamente, um ar excessivamente oxigenado "super excita o pulmo com tanto maiorintensidade quanto mais excitvel por essas vsceras, e a conseqncia a inflamao" [18, 282].Os dois desvios, por falta ou excesso, no tm a mesma importncia patolgica, a segundaprevalecendo notadamente sobre a primeira: "Essa segunda fonte de doenas, o excesso deexcitao convertido em irritao , portanto, muito mais fecunda que a primeira, ou a falta deexcitao, e pode-se afirmar que dela que decorre a maior parte de nossos males" [18, 286].Broussais identifica os termos anormal, patolgico ou mrbido [18, 263, 287, 315], empregando-osindiferentemente. A distino entre o normal e o fisiolgico e o anormal ou patolgico seria,portanto, uma simples distino quantitativa, se nos prendermos aos termos excesso e falta. Essadistino vlida para os fenmenos mentais, assim como para os fenmenos orgnicos, uma vezque a teoria fisiolgica das faculdades intelectuais foi admitida por Broussais [18, 440]. Assim ,sumariamente apresentada, a tese cuja fortuna se deve mais provavelmente personalidade de seuautor que coerncia de sua composio.

claro, em primeiro lugar, que, na definio do estado patolgico, Broussais confunde a causa e oefeito. Uma causa pode variar quantitativamente e de modo contnuo e provocar, no entanto, efeitosqualitativamente diferentes. Tomemos um exemplo simples: uma excitao aumentadaquantitativamente pode determinar um estado agradvel logo seguido de dor, duas sensaes queningum poderia confundir. Em uma tal teoria, misturam-se constantemente dois pontos de vista: odo doente que sente a doena e a quem a doena faz sofrer, e o do cientista que no encontra nadoena nada que a fisiologia no possa explicar. Mas ocorre com os estados do organismo omesmo que com a msica: as leis da acstica no so violadas em uma cacofonia, mas no se podeconcluir da que qualquer combinao de sons seja agradvel.

Em suma, tal concepo pode ser desenvolvida em dois sentidos ligeiramente diferentes, conformese estabelea, entre o normal e o patolgico, uma relao de homogeneidade ou uma relao decontinuidade. sobretudo a relao de continuidade que Bgin, discpulo estritamente obediente,leva em considerao: "A patologia apenas um ramo, uma conseqncia, um complemento dafisiologia, ou melhor, esta engloba o estudo das aes vitais em todas as fases da existncia doscorpos vivos. Passa-se insensivelmente de uma para outra dessas cincias, examinando as funesdesde o instante em que os rgos funcionam com toda a regularidade e toda a uniformidade de queso capazes at o momento em que as leses tornam-se to graves que todas as funes tornam-seimpossveis e todos os movimentos param. A fisiologia e a patologia explicam-se reciprocamente"[3, XVIII]. No entanto, preciso dizer que a continuidade de uma transio entre um estado e outropode muito bem ser compatvel com a heterogeneidade desses estados. A continuidade dos estgiosintermedirios no anula a diversidade dos extremos. Na obra do prprio Broussais, o vocabulriotrai, s vezes, a dificuldade de limitar-se afirmao de uma real homogeneidade entre osfenmenos normais e patolgicos, por exemplo: "as doenas aumentam, diminuem, interrompem,deterioram3 a inervao do encfalo, sob os aspectos instintivo, intelectual, sensitivo e muscular"

2 Podem-se encontrar boas exposies de conjunto das idias de Broussais em [14; 29; 13 bis, III; 83].3 Grifo nosso (G. C.).

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[18, 114], e "a irritao que se desenvolve nos tecidos vivos nem sempre os altera4 da maneira queconstitui a inflamao" [18, 301]. Mais ainda do que na obra de Comte, pode-se notar a imprecisodas noes de excesso e falta, seu carter implicitamente qualitativo e normativo, apenasdissimulado sob sua pretenso mtrica. em relao a uma medida considerada vlida e desejvel e, portanto, em relao a uma norma que h excesso ou falta. Definir o anormal por meio doque de mais ou de menos reconhecer o carter normativo do estado dito normal. Esse estadonormal ou fisiolgico deixa de ser apenas uma disposio detectvel e explicvel como um fato,para ser a manifestao do apego a algum valor. Quando Bgin define o estado normal comoaquele em que "os rgos funcionam com toda regularidade e uniformidade de que so capazes",no podemos deixar de reconhecer que apesar do horror que qualquer ontologia inspirava aBroussais, um ideal de perfeio paira sobre essa tentativa de definio positiva.

A partir deste ponto podemos esboar a objeo maior tese segundo a qual a patologia umafisiologia mais extensa ou mais ampla. A ambio de tornar a patologia e, conseqentemente, ateraputica integralmente cientficas, considerando-as simplesmente procedentes de uma fisiologiapreviamente instituda, s teria sentido se, em primeiro lugar, fosse possvel dar-se uma definiopuramente objetiva do normal como de um fato; e se, alm disso, fosse possvel traduzir qualquerdiferena entre o estado normal e o estado patolgico em termos de quantidade, pois apenas aquantidade pode dar conta, ao mesmo tempo, da homogeneidade e da variao. No julgamos estardepreciando nem a fisiologia nem a patologia ao contestarmos essa dupla possibilidade. Mas, dequalquer forma, deve-se constatar que nem Broussais nem Comte preencheram essas duasexigncias que parecem inseparveis da tentativa qual ligaram seus nomes.

O fato no deve surpreender da parte de Broussais. A reflexo metdica no era seu forte. Para ele,as teses da medicina fisiolgica no tinham tanto o valor de uma previso especulativa que deveriaser justificada por pesquisas pacientes mas, sobretudo, o valor de uma indicao teraputica a serimposta, sob forma de sangrias, a tudo e a todos. No fenmeno geral da excitao, transformada emirritao por seu excesso, inflamao que ele visava particularmente, armado de sua lanceta.Quanto incoerncia de sua doutrina, esta deve ser atribuda, em primeiro lugar, ao fato decombinar sem se preocupar muito com suas implicaes respectivas os ensinamentos deXavier Bichat e de John Brown, sobre os quais convm dizer algumas palavras.

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O mdico escocs Brown (1735-1877), primeiramente aluno e depois rival de Cullen (1712-1780),foi por ele familiarizado com a noo de irritabilidade proposta por Glisson (1596-1677) edesenvolvida por Haller. Este ltimo, esprito universal e genial, autor do primeiro grande tratadode fisiologia (Elementa physiologiae, 1755-1766), entendia por irritabilidade a propriedade quealguns rgos, e especialmente os msculos, tm de responder por uma contrao a um estmuloqualquer. A contrao no um fenmeno mecnico anlogo elasticidade; a resposta especficado tecido muscular s diversas solicitaes externas. Do mesmo modo, a sensibilidade apropriedade especfica do tecido nervoso [29, II; 13 bis, II; 107,51; 110].

Segundo Brown, a vida s se mantm por uma propriedade peculiar, a incitabilidade, que permiteaos seres vivos serem afetados e reagirem. As doenas so apenas, sob a forma de estenia ouastenia, uma modificao quantitativa dessa propriedade, conforme a incitao seja excessivamenteforte ou excessivamente fraca. "Fiz ver que a sade e a doena no passam de um mesmo estado edependem da mesma causa, isto , da incitao que varia, nos diferentes casos, apenas por graus.Demonstrei que as foras que causam a sade e a doena so tambm as mesmas agindo, s vezes,com um grau de energia adequado, e outras vezes, com fora excessiva ou insuficiente. O mdicos deve levar em considerao a aberrao que a incitao sofreu, para traz-la de volta, por meiosadequados, ao ponto onde se situa a sade" [21, 96, nota].

4 Grifo nosso (G. C.).

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Sem dar razo nem aos solidistas nem aos humoristas, Brown afirma que a doena no depende deum defeito primitivo dos slidos nem dos fluidos, mas unicamente das variaes de intensidade daincitao. Tratar as doenas corrigir a incitao no sentido do aumento ou da diminuio. CharlesDaremberg assim resume essas idias: "Brown encampa e adapta a seu sistema uma proposio quepor vrias vezes tive oportunidade de lembrar-lhes nessas lies, isto , que a patologia umdepartamento da fisiologia ou, como disse Broussais, da fisiologia patolgica. Brown afirma, comefeito ( 65), que est plenamente demonstrado que o estado de sade e o estado de doena no sodiferentes, pelo prprio fato de que as foras que produzem ou destroem um e outro tm umamesma ao; ele procura prov-lo comparando, por exemplo, a contrao muscular e o espasmo, ouo ttano ( 57 seg.; cf 136)" [29, 1132]. Ora, o que nos parece particularmente interessante nateoria de Brown , sem dvida, como notou vrias vezes Daremberg, o fato de ser ela o ponto departida das concepes de Broussais; mas sobretudo o fato de ela ter uma vaga tendncia a serealizar plenamente em uma mensurao do fenmeno patolgico. Brown pretendeu avaliarnumericamente a disposio varivel dos rgos a serem incitados: "Seja igual a 6 a afecoprincipal (por exemplo, a inflamao dos pulmes na peripneumonia, a inflamao do p na gota, oderrame de serosidade em uma cavidade geral ou particular na hidropisia), e seja a afeco menorde cada parte igual a 3; seja 1.000 o nmero das partes ligeiramente afetadas. A afeco parcialestar, para com o resto do corpo, na razo de 6 para 3.000. As causas excitantes que agem sobretodo o corpo e os remdios que destroem seus efeitos em todo o organismo confirmam a exatidode um tal clculo, em qualquer doena geral" [21, 29]. A teraputica baseada em um clculo:"Supondo que a ditese estnica tenha subido a 60 graus na escala da incitao, deve-se procurarsubtrair os 20 graus de incitao excessiva e empregar, para esse fim, meios cujo estmulo sejabastante fraco" [21, 50, nota]. claro que se tem o direito e o dever de sorrir diante dessacaricatura de "matematizao" do fenmeno patolgico, mas com a condio de reconhecer que adoutrina desenvolve at o fim a exigncia de seus postulados e que a coerncia de seus conceitos bastante completa, ao passo que no o na doutrina de Broussais.

Ainda h mais, pois um discpulo de Brown, Lynch, elaborou, no esprito desse sistema, uma escalados graus de incitao, "verdadeiro termmetro da sade e da doena", como disse Daremberg, soba forma de uma tabela proporcional, anexada s diversas edies ou tradues dos lments demdecine. Essa tabela comporta duas escalas de 0 a 80 colocadas lado a lado e invertidas, de talmaneira que, ao mximo de incitabilidade (80) corresponde o grau 0 de incitao, e vice-versa. Aosdiversos graus dessa escala correspondem, por afastamento nos dois sentidos, a partir da sadeperfeita (incitao = 40, incitabilidade = 40), as doenas, suas causas e suas influncias, seustratamentos. Por exemplo, na zona da escala compreendida entre 60 e 70 graus de incitaoencontram-se afeces da ditese estnica: peripneumonia, frenesi, varola grave, sarampo grave,erisipela grave, reumatismo. Assim sendo, a seguinte indicao teraputica: "Para curar, precisodiminuir a incitao. Isso possvel afastando-se os estmulos excessivamente violentos, ao mesmotempo que s se permite o acesso dos mais fracos, ou dos estmulos negativos. Os processoscurativos so a sangria, o purgante, a dieta, a paz interior, o frio etc."

Nem preciso dizer que essa exumao de uma nosologia obsoleta no obedece a nenhumainteno recreativa, a nenhum desejo de satisfazer uma v curiosidade de erudito. Ela pretendeunicamente precisar o sentido profundo da tese de que tratamos. logicamente irrepreensvel queuma identificao de fenmenos cuja diversidade qualitativa considerada ilusria tome a formade uma quantificao. No caso citado, a forma de identificao mtrica apenas caricatural.Freqentemente, porm, uma caricatura fornece a essncia de uma forma melhor do que uma cpiafiel. verdade que Brown e Lynch s chegam, na realidade, a uma hierarquia conceptual dosfenmenos patolgicos, a uma localizao qualitativa de estados entre dois pontos extremos: asade e a doena. Localizar no medir, um grau no uma unidade cardinal. Mas o prprio erro instrutivo; revela certamente a significao terica de uma tentativa, e, sem dvida, tambm oslimites que a tentativa encontra no prprio objeto ao qual se aplica.5

5 Cf. nosso recente estudo "John Brown. La thorie de l'incitabilit de l'organisme et son importance historique", a ser publicado nasActes du XIIIe Congrs International d 'Histoire des Sciences, Moscou, 1971.

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Admitindo que Broussais tivesse podido aprender com Brown que afirmar a identidade dosfenmenos normais e patolgicos, apenas com variaes quantitativas, logicamente impor a simesmo a pesquisa de um mtodo de medida, o ensinamento recebido de Bichat no deixaria decontrabalanar essa influncia. Em Recherches sur la vie et sur la mort (1800), Bichat ope oobjeto e os mtodos da fisiologia ao objeto e aos mtodos da fsica. A instabilidade e airregularidade so, segundo ele, caracteres essenciais dos fenmenos vitais, de modo que faz-losencaixar, fora, no quadro rgido das relaes mtricas desnatur-los [12, art. 72, I]. Foi deBichat que Comte e at mesmo Claude Bernard herdaram sua desconfiana sistemtica em relaoa qualquer tratamento matemtico dado aos fatos biolgicos e, especialmente, em relao aqualquer pesquisa de mdias, a qualquer clculo estatstico.

Ora, a hostilidade de Bichat em relao a qualquer inteno mtrica em biologia alia-se,paradoxalmente, afirmao de que, no nvel dos tecidos que constituem o organismo, as doenasdevem ser explicadas por variaes de suas propriedades variaes essas que temos de admitirserem quantitativas. "Analisar com preciso as propriedades dos corpos vivos; mostrar que todofenmeno fisiolgico corresponde, em ltima anlise, a essas propriedades consideradas em seuestado natural, que todo fenmeno patolgico deriva de seu aumento, de sua diminuio e de suaalterao; que todo fenmeno teraputico tem como princpio sua volta ao tipo natural do qual setinham afastado; determinar com preciso os casos em que cada um desses fatores est em jogo...eis a doutrina geral desta obra" [13, I, XIX]. Encontramos aqui a origem dessa ambigidade denoes que j criticamos em Broussais e Comte. Aumento e diminuio so conceitos de valorquantitativo, porm alterao um conceito qualitativo. claro que no se podem criticarfisiologistas e mdicos por carem na armadilha do Mesmo e do Outro em que tantos filsofosforam apanhados, desde Plato. Mas bom saber reconhecer a armadilha, em vez de ignor-la toinconscientemente no prprio instante em que se apanhado. Toda a doutrina de Broussais j estem germe nesta proposio de Bichat: "A finalidade de qualquer processo curativo apenas fazeras propriedades vitais alteradas voltarem ao tipo que lhes natural. Qualquer processo que, nainflamao local, no diminua a sensibilidade orgnica aumentada, que, nos edemas, nasinfiltraes etc., no aumente essa propriedade, nesses casos, totalmente diminuda, que, nasconvulses, no restabelea um nvel mais baixo da contractilidade animal, que no eleve essamesma contractilidade a um grau mais alto na paralisia etc., no atinge em absoluto seu objetivo; contra-indicado" [13, I, 12]. A nica diferena que Broussais reduzia toda a patogenia a umfenmeno de aumento e de excesso e, por conseguinte, toda a teraputica sangria. realmente ocaso de se dizer que em tudo o excesso um defeito!

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Pode ser surpreendente constatar que a exposio de uma teoria de A. Comte tenha servido depretexto para uma exposio retrospectiva. Por que no ter adotado, logo de incio, a ordemhistrica? Primeiro porque o relato histrico sempre transtorna a verdadeira ordem de interesse e deinterrogao. no presente que os problemas solicitam uma reflexo. Se a reflexo leva a umaregresso, a regresso necessariamente relativa reflexo. Assim, a origem histrica importamenos, na verdade, que a origem reflexiva. claro que Bichat, fundador da histologia, nada deve aAugusto Comte. No entanto, nem mesmo isso certo, se verdade que as resistncias encontradasna Frana pela teoria celular provinham em grande parte da fidelidade de Charles Robin aopositivismo. Ora, sabe-se que, segundo Bichat, Comte no admitia que a anlise pudesse ir almdos tecidos [64]. O que certo, de qualquer modo, que, mesmo no meio mdico culto, as teoriasde patologia geral prprias de Bichat, de Brown e de Broussais s exerceram influncia na medidaem que Comte as reconheceu como suas. Os mdicos da segunda metade do sculo XIXignoravam, na sua maioria, Broussais e Brown, mas poucos ignoravam Comte ou Littr; como hoje

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em dia a maioria dos fisiologistas no pode ignorar Claude Bernard, mas desconhece Bichat, aquem Claude Bernard est ligado por intermdio de Magendie.

Remontando s fontes longnquas das idias de Comte, atravs da patologia de Broussais, deBrown e de Bichat, podemos compreender melhor o alcance e os limites dessas idias. Sabemosque Comte herdara de Bichat, por intermdio de Blainville, seu professor de fisiologia, uma francahostilidade contra qualquer matematizao da biologia. Ele se justifica detidamente na 40 Lio doCours de philosophie positive. Apesar de discreta, essa influncia do vitalismo de Bichat sobre aconcepo positivista dos fenmenos da vida contra-balana as exigncias lgicas profundas daafirmao de identidade entre os mecanismos fisiolgicos e os mecanismos patolgicos, exignciasessas, alis, desconhecidas por Broussais, outro intermedirio entre Comte e Bichat, sobre umaspecto preciso de doutrina patolgica.

Deve-se, ainda, lembrar que as intenes e os objetivos de Comte so bastante diferentes dos deBroussais, ou dos ascendentes espirituais deste ltimo, quando expe as mesmas concepes emmatria de patologia. Por um lado, Comte pretende codificar os mtodos cientficos, mas, poroutro, pretende instituir cientificamente uma doutrina poltica. Afirmando de maneira geral que asdoenas no alteram os processos vitais, Comte se justifica por ter afirmado que a teraputica dascrises polticas consiste em trazer as sociedades de volta sua estrutura essencial e permanente, ems tolerar o progresso nos limites de variao da ordem natural definitiva pela esttica social.Portanto, na doutrina positivista, o princpio de Broussais limita-se apenas a uma idia subordinadaa um sistema, e foram os mdicos, os psiclogos e os literatos de inspirao e de tradiopositivista que a difundiram como concepo independente.

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III CLAUDE BERNARD E A PATOLOGIA EXPERIMENTAL

verdade que Claude Bernard jamais se refere a Comte, quando trata do problema das relaesentre o normal e o patolgico, dando-lhe uma soluo aparentemente semelhante; mas tambm indubitvel que ele no podia ignorar a opinio de Comte.

Sabe-se que Claude Bernard leu Comte, com ateno e fazendo anotaes, como o provam as notasdatadas provavelmente de 1865-1866 e que foram publicadas por Jacques Chevalier em 1938 [11].Para os mdicos e os bilogos do Segundo Imprio, Magendie, Comte e Claude Bernard so trsdeuses ou trs demnios do mesmo culto. Littr, tratando da obra experimental de Magendie,mestre de Claude Bernard, destaca seus postulados, que coincidem com as idias de Comte sobre aexperimentao em biologia e suas relaes com a observao dos fenmenos patolgicos [78,162]. E. Gley foi o primeiro a mostrar que Claude Bernard adotou a lei dos trs estados no seuartigo Progrs des sciences physiologiques (Revue des Deux Mondes, 1 de agosto de 1865) e quetomou parte em publicaes e associaes que receberam a influncia positivista de Charles Robin[44, 164-170]. Em 1864, Charles Robin publicava, com Brown-Squard, o Journal de l'anatomie etde la physiologie normales et pathologiques de l'homme et des animaux, em cujos primeirosfascculos foram publicadas memrias de Claude Bernard, Chevreul etc. Claude Bernard foi osegundo presidente da Sociedade de Biologia fundada por Charles Robin em 1848 e cujosprincpios diretores ele formulou em um estudo que foi lido aos membros fundadores: "Nossoobjetivo, ao estudar a anatomia e a classificao dos seres, elucidar o mecanismo das funes; aoestudar a fisiologia, chegar a compreender de que modo os rgos podem se alterar, e dentro deque limites as funes podem se desviar do estado normal" [44, 166]. Lamy, por outro lado,mostrou que os artistas e escritores que, no sculo XIX, procuraram na fisiologia e na medicinafontes de inspirao ou temas de reflexo no fizeram praticamente distino entre as idias deComte e as de Claude Bernard [68].

Dito isso, preciso acrescentar que realmente bastante difcil e delicado expor as idias deClaude Bernard sobre o problema preciso do significado e da natureza dos fenmenos patolgicos.Trata-se de um cientista de importncia considervel, cujos mtodos e descobertas at hoje aindano foram esgotados em toda a sua riqueza, a quem mdicos e bilogos se referem constantemente,e de cujas obras no h nenhuma edio completa e crtica! A maioria das aulas proferidas noCollge de France foram redigidas e publicadas por seus alunos. Porm, o que o prprio ClaudeBernard escreveu, sua correspondncia, no foi objeto de nenhuma investigao respeitosa emetdica. Ocasionalmente so publicados notas e cadernos seus dos quais a polmica logo seapodera, para fins to expressamente tendenciosos, que se chega a pensar se no seriam essasmesmas tendncias, alis muito diversas, que suscitaram a prpria publicao de todos essesfragmentos. O pensamento de Claude Bernard continua sendo um problema. A nica respostahonesta que lhe ser dada ser a publicao metdica de seus papis e a guarda de seus manuscritosnos arquivos, no dia em que decidirem faz-lo.1

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A identidade seria necessrio precisar se nos mecanismos, ou nos sintomas, ou em ambos? ea continuidade reais dos fenmenos patolgicos e dos fenmenos fisiolgicos correspondentes so,na obra de Claude Bernard, uma repetio montona, mais do que um tema. Encontra-se essaafirmao nas Leons de pysiologie exprimentale aplique la mdecine (1855), sobretudo naslies 2 e 22 do tomo II; nas Leons sur la chaleur animale (1876). Escolhemos, porm, de

1 Foi a d'Arsonval que Claude Bernard legou seus papis inditos. Cf. Claude Bernard, Penses, notes dtaches, com prefcio ded'Arsonval (J.-B. Ballire, 1937). Esses papis foram minuciosamente analisados pelo Dr. Delhoume, que, no entanto, deles ainda spublicou fragmentos. Dispomos atualmente de um Catalogue des Manuscrits de Claude Bernard, elaborado pelo Dr. M.-D. Grmek,Paris, Masson, 1967.

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preferncia, como texto fundamental, as Leons sur le diabte et la glycogense animale (1877),que, dentre todos os trabalhos de Claude Bernard, pode ser considerado como aquele que especialmente consagrado ilustrao de sua teoria, aquele em que os fatos clnicos eexperimentais so apresentados tanto ou mais pela "moral" de ordem metodolgica e filosfica quedeles se deve tirar que por sua significao fisiolgica intrnseca.

Claude Bernard considera a medicina como a cincia das doenas, e a fisiologia como a cincia davida. Nas cincias, a teoria que ilumina e domina a prtica. A teraputica racional s poderia sersustentada por uma patologia cientfica e uma patologia cientfica deve se basear na cinciafisiolgica. Ora, o diabetes uma doena que levanta problemas cuja soluo proporciona ademonstrao da tese precedente. O bom senso indica que, conhecendo-se completamente umfenmeno fisiolgico, estamos em condies de avaliar todas as perturbaes que ele pode sofrerno estado patolgico: "Fisiologia e patologia se confundem e so, no fundo, uma s e mesma coisa"[9, 56]. O diabetes uma doena que consiste nica e inteiramente no distrbio de uma funonormal. "Toda doena tem uma funo normal correspondente da qual ela apenas a expressoperturbada, exagerada, diminuda ou anulada. Se no podemos, hoje em dia, explicar todos osfenmenos das doenas, porque a fisiologia ainda no est bastante adiantada e porque ainda huma quantidade de funes normais que desconhecemos" [9,56]. Por essa afirmao, ClaudeBernard se ope a muitos fisiologistas de sua poca, segundo os quais a doena seria uma entidadeextrafisiolgica, que viria reacrescentar-se ao organismo. O estudo do diabetes no permite maissustentar tal opinio. "Com efeito, o diabetes caracterizado pelos seguintes sintomas: poliria,polidipsia, polifagia, autofagia e glicosria. Nenhum desses sintomas propriamente um fenmenonovo, estranho ao estado normal, nenhum uma produo espontnea da natureza. Pelo contrrio,todos preexistem, exceto por sua intensidade, que varia no estado normal e no estado de doena"[9, 65-66]. fcil demonstr-lo no que se refere poliria, polidipsia, polifagia e autofagia,mas menos fcil no que se refere glicosria. Claude Bernard sustenta, porm, que a glicoria um estado "larvado e desapercebido" no estado normal e que s se torna aparente por suaexacerbao [9, 67]. Na realidade, ele no demonstra efetivamente o que afirma. Na dcima sextalio, depois de ter confrontado as opinies de fisiologistas que afirmam e de outros que negam apresena constante de acar na urina normal, depois de ter mostrado a dificuldade dasexperincias e de seu controle, Claude Bernard acrescenta que, na urina normal de um animalalimentado com substncias azotadas e privado de acares e feculentos, ele jamais conseguiuidentificar a presena da mais fraca quantidade de acar, mas que o mesmo no acontece com umanimal alimentado com acares ou feculentos em excesso. Segundo ele, tambm natural acharque a glicemia, no curso de suas oscilaes, pode determinar a passagem do acar para a urina."Em suma, no creio que se possa formular essa proposio como verdade absoluta: existe acarna urina normal. Porm admito muito bem que em um grande nmero de casos podem existirvestgios de acar; h uma espcie de glicosria fugaz que estabelece neste caso assim comoem outros uma passagem insensvel e imperceptvel entre o estudo fisiolgico e o estadopatolgico. Concordo, alis, com os clnicos, no sentido de reconhecer que o fenmeno glicosricos tem realmente um carter patolgico bem comprovado quando se torna permanente" [9, 390].

interessante constatar que, procurando encontrar um fato particularmente demonstrativo a favorde sua interpretao, em um caso em que a sentia especialmente contestada, Claude Bernard tevede admitir, sem provas experimentais, esse mesmo fato por motivos tericos supondo suarealidade como situada alm dos limites de sensibilidade de todos os mtodos ento usados parasua deteco. Precisamente a respeito dessa questo, H. Frdricq admite, hoje em dia, que no hglicosria normal, que em certos casos de ingesto considervel de lquido e de diurese abundante,a glicose no reabsorvida pelo rim no nvel do tubo contornado e , por assim dizer, eliminadapor lavagem [40, 353]. Isso explica que certos autores como Nolf possam admitir uma glicosrianormal infinitesimal [90, 251]. Se no h normalmente glicosria, qual o fenmeno fisiolgico deque a glicosria diabtica seria a exagerao quantitativa?

Para abreviar o assunto, sabe-se que a genialidade de Claude Bernard consistiu em mostrar que oacar no organismo animal um produto desse prprio organismo, e no apenas um produtoimportado do reino vegetal por meio da alimentao; que o sangue contm normalmente glicose, e

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que o acar encontrado na urina um produto geralmente eliminado pelo rim quando a taxa deglicemia atinge certo limiar. Em outras palavras, a glicemia um fenmeno constante,independente do tipo de alimentos ingeridos, de tal modo que a ausncia de glicose sangnea que anormal, e que a glicosria a conseqncia de uma glicemia aumentada, e que ultrapassou umcerto teor considerado como limiar. No diabtico, a glicemia em si no um fenmeno patolgico,mas sim pela sua quantidade; em si mesma, a glicemia "um fenmeno normal e constante doorganismo no estado de sade" [9, 181]. "H apenas uma glicemia, que constante, permanente,quer no diabetes, quer fora desse estado mrbido. Apenas ela apresenta vrias gradaes: aglicemia abaixo de 3 a 4% no causa glicosria; mas, acima desse ponto, a glicosria ocorre... impossvel perceber a passagem do estado normal ao estado patolgico, e nenhuma questo poderiamostrar melhor a ntima fuso da fisiologia e da patologia do que a questo do diabetes" [9, 132].

A energia despendida por Claude Bernard para expor sua tese no parece suprflua se situarmosessa tese na perspectiva histrica. Em 1866, Jaccoud, professor adjunto* da Faculdade de Medicinade Paris, falava do diabetes, em uma lio clnica, professando que a glicemia um fenmenoinconstante e patolgico e que a produo de acar no fgado , segundo os trabalhos de Pavy, umfenmeno patolgico. "No se pode atribuir o estado diabtico exagerao de um fenmenofisiolgico que no existe... impossvel ver o diabetes como a exagerao de uma processoregular: a expresso de um processo totalmente estranho vida normal. Esse processo , eleprprio, a essncia da doena" [57, 826]. Em 1883, o mesmo Jaccoud, que tinha se tornadoprofessor de patologia interna, mantinha em seu Trait de pathologie interne todas as suas objees teoria de Claude Bernard, teoria essa que, no entanto, j estava mais solidamente assentada queem 1866: "A transformao do glicognio em acar um fenmeno ou patolgico ou cadavrico"[58, 945].

Se quisermos compreender bem o sentido e o alcance da afirmao de continuidade entre osfenmenos normais e os fenmenos patolgicos, preciso no esquecer que as demonstraescrticas de Claude Bernard visavam tese que admite uma diferena qualitativa nos mecanismos enos produtos das funes vitais no estado patolgico e no estado normal. Essa oposio de tesestalvez aparea melhor em Leons sur la chaleur animale: "A sade e a doena no so dois modosque diferem essencialmente, como talvez tenham pensado os antigos mdicos e como ainda pensamalguns. preciso no fazer da sade e da doena princpios distintos, entidades que disputam uma outra o organismo vivo e que dele fazem o teatro de suas lutas. Isso so velharias mdicas. Narealidade, entre essas duas maneiras de ser h apenas diferenas de grau: a exagerao, adesproporo, a desarmonia dos fenmenos normais constituem o estado doentio. No h um nicocaso em que a doena tenha feito surgir condies novas, uma mudana completa de cena, produtosnovos e especiais" [8, 391]. Para sustentar essa afirmao, Claude Bernard d um exemplo que eleconsidera particularmente apropriado para ridicularizar a opinio por ele combatida. Doisfisiologistas italianos, Lussana e Ambrossoli, tendo repetido as experincias de Claude Bernardsobre a seco do simptico e seus efeitos, negavam o carter fisiolgico do calor gerado pelavasodilatao nos rgos interessados. Segundo eles, esse calor era mrbido, diferente, sob todosos pontos de vista, do calor fisiolgico, este originando-se da combusto de alimentos, e aquele dacombusto dos tecidos. Como se no fosse sempre no nvel dos tecidos dos quais se tornou parteintegrante que o alimento queimado, replica Claude Bernard. E pensando ter refutado comfacilidade os autores italianos, acrescenta: "Na realidade, as manifestaes fisico-qumicas nomudam de natureza, conforme ocorram dentro ou fora do organismo, e ainda segundo o estado desade ou de doena. H apenas uma espcie de agente calorfico; o fato de ser gerado em umalareira ou em um organismo no faz com que seja menos idntico a si mesmo. No poderia haverdistino entre um calor fsico e um calor animal e menos ainda entre um calor mrbido e um calorfisiolgico. O calor animal mrbido e o calor fisiolgico s diferem por seu grau, e no por suanatureza" [8, 394]. Decorre da a concluso: "Essas idias de luta entre dois agentes opostos, deantagonismo entre a vida e a morte, entre a sade e a doena, entre a natureza bruta e a natureza

* Em francs, professeur agrg, professor que, depois de ter passado o concurso de Agrgation, ocupa um cargo que, na hierarquiauniversitria, se situa imediatamente abaixo do cargo de professor-titular. , portanto, mais ou menos o equivalente a professor adjunto.(N.T.)

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animada j esto ultrapassadas. preciso reconhecer em tudo a continuidade dos fenmenos, suagradao insensvel e sua harmonia" [ibid.].

Estes dois ltimos textos nos parecem particularmente esclarecedores, porque revelam uma relaode idias que no aparece absolutamente em Leons sur le diabete. A idia da continuidade entre onormal e o patolgico est, ela prpria, em continuidade com a idia da continuidade entre a vida ea morte, entre a matria orgnica e a matria inerte. Claude Bernard tem, incontestavelmente, omrito de ter negado oposies at ento aceitas entre o mineral e o orgnico, entre o vegetal e oanimal, de ter afirmado a onivalncia do postulado determinista e a identidade material de todos osfenmenos fsico-qumicos qualquer que seja sua sede e qualquer que seja seu comportamento.Claude Bernard no foi o primeiro a afirmar a identidade das produes da qumica de laboratrio eda qumica viva a idia j estava formada desde que Woehler realizara a sntese da uria em1828 , ele simplesmente "reforou o impulso fisiolgico que os trabalhos de Dumas e de Liebighaviam dado qumica orgnica".2 Mas foi o primeiro a afirmar a identidade fisiolgica dasfunes do vegetal e das funes correspondentes do animal. Pensava-se antes dele que arespirao dos vegetais fosse inversa dos animais, que os vegetais fixavam o carbono e que osanimais o queimavam, que os vegetais realizavam redues e os animais, combustes, que osvegetais realizavam snteses que os animais destruam utilizando-as, j que eram incapazes derealiz-las.

Todas essas oposies foram negadas por Claude Bernard, e a descoberta da funo glicognica dofgado foi um dos mais belos xitos da vontade de "reconhecer em tudo a continuidade dosfenmenos".

No interessa saber agora se Claude Bernard tem uma idia exata sobre o que seja uma oposio ouum contraste, e se tem boas razes para considerar o binmio de noes sade-doena comosimtrico do binmio vida-morte, para da tirar a concluso de que, tendo reduzido identidade ostermos do segundo, est autorizado a procurar a identificao dos termos do primeiro. Interessasaber o que Claude Bernard pretendia dizer ao afirmar a unidade da vida e da morte. Saber seClaude Bernard era ou no materialista ou vitalista um problema que foi muitas vezes levantado,para fins de polmica leiga ou religiosa.3 Parece que uma leitura atenta das Leons sur lesphnomnes de la vie (1878) sugere uma resposta menos categrica. Claude Bernard no admiteque se distinga, do ponto de vista fsico-qumico, os fenmenos do reino orgnico e os fenmenosdo reino mineral: "O quimismo do laboratrio e o quimismo da vida esto sujeitos s mesmas leis:no h duas qumicas" [10,1, 224]. o mesmo que dizer que a anlise cientfica e a tcnicaexperimental podem identificar e reproduzir os produtos das snteses vitais da mesma forma que asespcies minerais. Mas apenas a afirmao da homogeneidade da matria na forma viva e foradesta forma, pois, rejeitando o materialismo mecanicista, Claude Bernard afirma a originalidade daforma viva e de suas atividades funcionais: "Apesar de as manifestaes vitais estarem sob ainfluncia direta das condies fsico-qumicas, essas condies no poderiam agrupar, harmonizaros fenmenos na ordem e na sucesso em que se apresentam de modo especial nos seres vivos"[10, II, 218]. E mais claramente ainda: "Acreditamos, assim como Lavoisier, que os seres vivosesto sujeitos s leis gerais da natureza e que suas manifestaes so expresses fsicas e qumicas.Mas, em vez de considerarmos, como os fsicos e os qumicos, o tipo das aes vitais nosfenmenos do mundo inanimado, professamos, ao contrrio, que a expresso peculiar, que omecanismo especial, que o agente especfico, apesar de o resultado ser idntico. No h umnico fenmeno qumico que se realize, no corpo, da mesma forma como fora dele" [ibid.]. Estasltimas palavras poderiam servir de epgrafe obra de Jacques Duclaux sobre a Analyse physico-chimique des fonctions vitales. Segundo Duclaux, cujo afastamento de qualquer espiritualismo evidente nessa obra, nenhuma reao qumica intracelular pode ser representada por uma frmulade equao obtida graas experimentao in vitro: "Logo que um corpo se torna representvel pornossos smbolos, a matria viva o considera como inimigo e o elimina, ou neutraliza... O homemcriou uma qumica que se desenvolveu a partir da qumica natural sem com ela se confundir" [36].

2 Pasteur, no artigo sobre Cl. Bernard, ses travaux, son enseignement, sa mthode.3 Ver o Claude Bernard de Pierre Mauriac [81] e Claude Bernard et le matrialisme de Pierre Lamy [68].

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De qualquer modo, parece claro que, para Claude Bernard reconhecer a continuidade dosfenmenos, no significa desconhecer sua originalidade. Conseqentemente, poder-se-ia afirmar,simetricamente ao que ele disse sobre as relaes entre a matria bruta e a matria viva: h apenasuma fisiologia, mas em vez de considerar que os fenmenos fisiolgicos constituem o modelo dosfenmenos patolgicos, deve-se considerar que sua expresso peculiar, seu mecanismo especial,apesar de o resultado ser idntico; no h um fenmeno que se realize no organismo doente damesma forma como no organismo so? Por que afirmar sem restries a identidade da doena e dasade, ao passo que no se afirma o mesmo sobre a morte e a vida, sobre cuja relao pretende-semoldar a relao entre a doena e a sade?

* * *

Ao contrrio de Broussais e Comte, Claude Bernard traz, para sustentar seu princpio geral depatologia, argumentos controlveis, protocolos de experincias, e sobretudo mtodos dequantificao dos conceitos fisiolgicos. Glicognese, glicemia, glicosria, combusto dosalimentos, calor de vasodilatao no so mais conceitos qualitativos; so os resumos de resultadosobtidos ao cabo de mensuraes. Desde ento, quando se acha que a doena a expressoexagerada ou a expresso diminuda de uma funo normal, sabe-se exatamente o que se querdizer. Ou pelo menos tm-se os meios de sab-lo, pois, apesar desse progresso incontestvel dapreciso lgica, o pensamento de Claude Bernard no est isento de qualquer ambigidade.

Em primeiro lugar preciso notar em Claude Bernard, assim como em Bichat, Broussais e Comte,uma convergncia de conceitos quantitativos e qualitativos na definio dada aos fenmenospatolgicos. Ora o estado patolgico "o distrbio de um mecanismo normal, que consiste em umavariao quantitativa, uma exagerao ou atenuao dos fenmenos normais" [9, 360], ora o estadodoentio constitudo pelo "exagero, pela desproporo, pela desarmonia dos fenmenos normais"[8, 391]. Impossvel deixar de ver, nesse trecho, que o termo "exagerao" tem um sentidonitidamente quantitativo na primeira definio e um sentido mais qualitativo na segunda. Ser queClaude Bernard julgava anular o valor qualitativo do termo "patolgico" substituindo-o pelostermos dis-trbio, des-proporo, ds-armonia?

Essa ambigidade certamente instrutiva, pois revela a persistncia do prprio problema no seio deuma soluo que se acreditava ter sido dada a esse problema. E o problema o seguinte: o conceitode doena ser o conceito de uma realidade objetiva acessvel ao conhecimento cientficoquantitativo? A diferena de valor que o ser vivo estabelece entre sua vida normal e sua vidapatolgica seria uma aparncia ilusria que o cientista deveria negar? Se essa anulao de umcontraste qualitativo teoricamente possvel, claro ento que tambm legtima; e se no possvel, o problema de sua legitimidade suprfluo.

Pudemos observar que Claude Bernard utiliza indiferentemente duas expresses que so variaesquantitativas e diferenas de grau, isto , utiliza, de fato, dois conceitos, homogeneidade econtinuidade, o primeiro, implicitamente, e o segundo, expressamente. Ora, a utilizao de um ououtro desses conceitos no leva necessariamente s mesmas exigncias lgicas. Se afirmo ahomogeneidade de dois objetos sou obrigado a definir ao menos a natureza de um dos dois, ouento alguma natureza comum a um e a outro. Mas, se afirmo a continuidade, posso apenasintercalar entre extremos, sem reduzi-los um ao outro, todos os intermedirios cujas disposioobtenho pela dicotomia de intervalos progressivamente reduzidos. Isso to verdadeiro que certosautores tomam como pretexto a continuidade entre a sade e a doena para se recusarem a definirtanto uma como a outra.4 Segundo eles, no existe estado normal completo, nem sade perfeita.Isso pode significar que existem apenas doentes. Molire e Jules Romains mostraram com muitohumor que tipo de iatrocracia pode ser justificada por essa afirmao. Mas isso tambm poderiasignificar que no existem doentes, o que no menos absurdo. Ser que, afirmando seriamenteque a sade perfeita no existe e que por conseguinte a doena no poderia ser definida, os mdicos

4 o caso de H. Roger, por exemplo, em Introduction la mdecine. O mesmo ocorre com Claude e Camus na sua Pathologie gnrale.

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perceberam que estavam ressuscitando pura e simplesmente o problema da existncia da perfeioe o argumento ontolgico?

Durante muito tempo procurou-se descobrir se seria possvel provar a existncia do ser perfeito apartir de sua qualidade de perfeito, j que, tendo todas as perfeies, ele tambm teria a capacidadede criar sua prpria existncia. O problema da existncia efetiva de uma sade perfeita anlogo.Como se a sade perfeita fosse apenas um conceito normativo, um tipo ideal? Raciocinando comtodo o rigor, uma norma no existe, apenas desempenha seu papel que de desvalorizar aexistncia para permitir a correo dessa mesma existncia. Dizer que a sade perfeita no existe apenas dizer que o conceito de sade no o de uma existncia, mas sim o de uma norma cujafuno e cujo valor relacionar essa norma com a existncia a fim de provocar a modificaodesta. Isso no significa que sade seja um conceito vazio.

Mas Claude Bernard est bem longe de um relativismo to fcil, em primeiro lugar, porque aafirmao de continuidade subentende sempre, no seu pensamento, a afirmao de homogeneidade,em seguida porque ele julga poder atribuir sempre um contedo experimental ao conceito denormal. Por exemplo, o que chama de urina normal de um animal a urina de um animal em jejum,sempre comparvel a ela prpria j que o animal se nutre de suas prprias reservas e de talmodo que sirva de termo constante de referncia para qualquer urina obtida nas condies dealimentao que se quiser estabelecer [5,11, 13]. Trataremos, mais adiante, das relaes entre onormal e o experimental. Por enquanto, queremos apenas examinar em que ponto de vista ClaudeBernard se coloca quando considera o fenmeno patolgico como variao quantitativa dofenmeno normal. Naturalmente, est bem claro que se utilizamos, enquanto apreciamos a questo,dados fis