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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Artes
DA MINHA JANELA VEJO...
relato de uma trajetria pessoal de pesquisa no Lume
Ana Cristina Colla
Campinas, SP 2003
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 2
Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Artes Mestrado em Artes
DA MINHA JANELA VEJO... relato de uma trajetria pessoal de pesquisa no Lume
Ana Cristina Colla
Dissertao apresentada ao curso de Mestrado
em Artes do Instituto de Artes da UNICAMP
como requisito parcial para obteno do grau
de Mestre em Artes Cnicas, sob a orientao
da Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber.
Campinas, SP 2003
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 3
Banca Examinadora
Orientadora Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber
___________________________________
___________________________________
Campinas, ___ de ____________ de 2003
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 4
Resumo
Essa dissertao contm o relato parcial de dez anos de pesquisa prtica junto ao
LUME- Ncleo de Pesquisas Teatrais, vinculado a Universidade de Campinas. A busca
pelo encontro das palavras e a formalizao terica das experincias vividas.
Todo o relato permeado por anotaes retiradas de dirios de trabalho, realizadas
ao longo dos anos, dando um panorama do desenvolvimento das pesquisas e sua
aplicao em espetculos teatrais. A abordagem parte do foco pessoal rumo aos diversos
tempos contidos num processo de criao que tem como premissa a investigao
cotidiana, individual e coletiva.
Como parte final, um apndice contendo a narrao de trs pesquisas de campo,
realizadas em diferentes regies do Brasil, responsveis pela coleta de material
manipulados posteriormente em sala de trabalho, como auxiliar na visualizao desse
processo.
Como parte prtica integrante dessa dissertao, temos a apresentao do
espetculo teatral Caf com Queijo, aplicao cnica vinculada a pesquisa de Mmesis
Corprea.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 5
ao meu mestre Lus Otvio Burnier (in memoriam), pela descoberta do sentido
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 6
Agradecimentos minha orientadora preferida Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber, pela puxada de tapete,
pacincia e silncio, nos momentos necessrios, para que eu pudesse me ouvir, instigando-
me ao risco.
Ao meu anjo da guarda Renato Ferracini, que acreditou que eu seria capaz antes mesmo
que eu o soubesse.
Aos atores do Lume, irmos de corao e criao, Carlos Simioni, Jesser de Souza, Raquel
Scotti Hirson, Renato Ferracini, Ricardo Puccetti e Naomi Silman, pelo sonho partilhado.
Ao meu querido companheiro Pedro, pelo amor, alimento da minha sanidade.
minha irm-me Snia e seu companheiro Csar, pela confiana, incentivo e amor, que
sem eles, provavelmente, eu no teria sobrevivido.
Aos meus pais, presenas-ausentes, pela criao.
Ao amigo Barbosa, sempre presente.
atriz Andra Macera pela leitura das primeiras palavras.
Prola e Juliana, pelos aconselhamentos sempre teis e por suportarem minhas alteraes
de humor.
Juliana Jardim pelas conversas inspiradoras.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 7
Por mais intransmissvel que fossem os humanos, eles sempre tentavam se comunicar atravs de gestos, de gaguejos, de palavras mal ditas e malditas.
Clarice Lispector
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 8
Sumrio
Da minha janela vejo...................................................................................................................................... 10
Serestando ....................................................................................................................................................... 12
Corpo - territrio do (in)visvel ..................................................................................................................... 15
Primeiros passos... .......................................................................................................................................... 21
Solido compartilhada ................................................................................................................................... 36
Mestres ............................................................................................................................................................ 38
Hoje.................................................................................................................................................................. 39
Bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer, bem me quer... 41
O hoje no ontem.............................................................................................................................................. 42
Tempos ............................................................................................................................................................ 46 Tempo Recolhimento ................................................................................................................................... 48 Tempo Coleta............................................................................................................................................... 58
Objetos.................................................................................................................................................... 60 Msica..................................................................................................................................................... 65 Imagem pictrica .................................................................................................................................... 68 A Imagem Literria................................................................................................................................. 73 Animal .................................................................................................................................................... 77 Pessoas.................................................................................................................................................... 80
Tempo Construo....................................................................................................................................... 98 Universo pesquisado ............................................................................................................................. 102 Edio do material ................................................................................................................................ 103 Espacialidade ........................................................................................................................................ 105 Para onde o barco est nos conduzindo................................................................................................. 109
Tempo Nascimento .................................................................................................................................... 113 Tempo Transmisso................................................................................................................................... 117
Concluso para uma Academia................................................................................................................... 119
APNDICE................................................................................................................................................... 121 Pesquisa de Campo ................................................................................................................................... 121
Comunicado ao leitor............................................................................................................................ 122 Tempo primeiro ......................................................................................................................................... 124 Tempo segundo .......................................................................................................................................... 152
No Reino das guas ............................................................................................................................. 171 No Reino da Mata ................................................................................................................................. 175 No Reino das Mulheres......................................................................................................................... 178
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 9
No Reino da Msica ............................................................................................................................. 182 No Reino da Religiosidade ................................................................................................................... 186
Tempo terceiro........................................................................................................................................... 193
Bibliografia ................................................................................................................................................... 212
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 10
Da minha janela vejo...
(relato de uma curta trajetria)
Dentro do Passado est o Futuro, e dentro do Futuro, o Passado.1
Para que o hoje se fizesse presente o ontem precisou existir.
FECHADO PARA BALANO
DIRIO DE BORDO
Fevereiro de 2002 - inferno astral Planeta Terra Baro Geraldo, sub- distrito de Campinas Objeto de pesquisa: eu mesma, ser atuante Local de pesquisa: LUME - Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais2 Incio da trajetria: Janeiro de 1993 Riscos: perigo! no sair do prprio umbigo Venho aqui para o meu recanto em busca de mim mesma.
Onde me encontrar?
Como saber que palavras so minhas?
Quero a verdade, mas no muito, no toda, por partes, se puder, em pequenos torres.3
Frase solta, que acabou por me desafiar: "S sei fazer desta forma. a nica
maneira que conheo de ser atriz."
Busca da resposta: qual maneira? que forma?
1OHNO, Kazuo. Programa de divulgao sobre a vinda de Kazuo Ohno - Butoh, intercmbio cultural Brasil- Japo- Argentina, 1986, pg. 28 2 O LUME um Centro de Pesquisa Teatral, cujo foco de ateno o trabalho do ator, sua tcnica e sua arte. Criado em 1985, o LUME vem se dedicando a elaborar e codificar tcnicas corpreas e vocais de representao, redimensionando o teatro, enquanto ofcio, como uma arte do fazer e o ator como um arteso que executa aes. Hoje, como resultado de suas pesquisas, o LUME possui uma metodologia para desenvolvimento de tcnicas pessoais de representao para o ator; uma maneira particular de se trabalhar o clown e a utilizao cmica do corpo; bem como a Mmesis Corprea: imitao e tecnificao das aes do cotidiano. 3 PRADO, Adlia. Manuscritos de Felipa, 1999, pg. 9
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 11
responda e alguma coisa voc tem que saber nem que seja a pergunta 4
Fechado para balano. Busco o relato de um caminho percorrido. Nele me encontro.
Nele sou.
Me expressarei na primeira pessoa, o "eu", pois dele estou em busca. O "ns" tem
sido uma constante em meu percurso de criao em grupo e nele, sem querer, me perco.
Tenho que falar de mim, felizmente, porque de outrem - cabe perfeitamente aqui esta palavra - no conheo nada, o que me livra de julgar e pecar diuturnamente.5
Me parece um desejo pretensioso. Mas ele me desafia e vou tentar seguir adiante.
4 RUIZ, Alice, Pelos pelo. 1984, pg. 29 5 PRADO, Adlia, Manuscritos de Felipa, 1999, pg. 8
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 12
Serestando
Dor e prazer, em diferentes gradaes, sempre me acompanharam e fascinaram. A
necessidade de "ser" e "estar", simultaneamente, me conflituam. Sou covarde. Necessito de
mscaras que me revelem.
possvel ser e estar ao mesmo tempo? Ou para estar preciso deixar de ser? E
sendo, conseguirei estar?
Doidices de corao pensante.
Quando em cena cruzo com os olhos daquele que me assiste, me sinto "ser-
estando". Serestando. Ali me desfao e quando recolho os pedaos, sempre surge um
caquinho novo, para renovar a estrutura. Um a um, o olhar do espectador, aparentemente
figura passiva em sua cadeira, entra na cena, reinventando o dizer. Quando a troca se
estabelece, o jogo passa a existir, com finssimos fios invisveis interligando os dois
territrios. Pelos olhos d-se o primeiro encontro, que se espalha pelos poros atravs de
micro tenses, emitidas por ambos os lados.
Suores, suspiros, respirao suspensa, risos de diferentes matizes, preenchem o
espao. O barco flui, o ator maneja o remo e com ele vai abrindo as guas, rompendo o
tempo real, conduzindo os passageiros. E esse sentimento mgico, quase indescritvel.
Raro, de significado precioso. Nisso creio. Esse momento busco. Fugaz! to fugaz e to
intenso, que um prazer-dor, porque aps o pico vem o esvaziar. O corpo como que se
esvai, sugado, pela energia gasta pelo contato estabelecido. Um orgasmo conjunto. Talvez
exageros de pisciana.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 13
Triste ser uma viagem com hora marcada para acabar. Instigante nunca saber
qual rumo a prxima viagem ir tomar.
No espao da atuao, as mentiras so mal vistas e percebidas logo na primeira
respirao. Quando me detecto mentindo, o alarme soa e ai! como di. O fio que me une ao
espectador cortado e me sinto macaqueando aes ridculas. Mas at hoje me pego
mentindo, como um animal que insiste em brincar com o fogo apesar da pata queimada.
Na vida mentimos a todo momento - se a afirmao no plural causa rejeio,
recoloco os termos: na vida minto a todo momento. Talvez a utilizao da palavra "todo"
tambm possa ser assumida como um exagero para valorizar a argumentao que vir.
Acostumamo-nos tanto a mentir sobre as pequenas coisas que elas acabam por se tornar
verdades no decorrer do tempo. D preguia no mentir. to mais prtico. "Como vai?
tudo bem?" e a resposta vem automtica : "tudo bem"- mesmo se voc acordou naquele dia
com a sensao de que nada faz sentido na vida.
A palavra nos permite isso. Escondemo-nos por trs de seus significados. No
mximo, somos denunciados pelo tom impresso na voz, sinalizando que razo e sentimento
andam brigados. A comunicao por palavras, muitas vezes, leva a uma reduo prtica do
sentir.
Palavras no me bastam, so concretas demais. "Sim", "no", "sempre", "nunca",
ainda bem que existe "s vezes", "nem sempre", para amenizar e deixar em aberto. Seria
timo se houvesse como dizer um "no-sim" porque, muitas vezes, o "no" traz impresso o
desejo do "sim". Desejar no desejando. Ou eu que estou ficando esquizofrnica?
Se ampliamos a comunicao para todo o corpo, o invisvel pode ser comunicado.
Com a associao ou no das palavras. No nego a palavra. Apenas creio que ela no se
basta por si. Sinto-a traioeira.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 14
Da veio minha busca do fazer teatral, corpo presente. E podia faz-lo de diferentes
maneiras, porque muitas so as trilhas j abertas e percorridas. Mas escolhi uma (essa que
hoje busco compreender) ou talvez por ela tenha sido escolhida, j que pouco a conhecia no
momento em que a deciso fez-se necessria. Me verticalizei. Hoje vejo que por paixo,
desejo cego que consome e depois no deixa escapatria. Um preo me cobrado at hoje,
pago dia-a-dia no decorrer dos ltimos dez anos. Em compensao, rompi fronteiras e
visitei recantos, internos e externos, nunca imaginados no meu pequeno sonhar de
sanjoanense caipira, com os olhos acostumados a mirar o vermelhar do crepsculo cercado
de montanhas.
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Corpo - territrio do (in)visvel
Ns, homens contemporneos, no vivemos estabelecendo relaes com a pele que abandonamos.(...) Os homens de hoje, cheios de ms intenes, criam sinais e sistemas de cdigos para expressarem a si mesmos nas suas relaes com o mundo. Esta pele que nos separa arrancada violentamente do corpo, mas ela a nossa prpria terra e morada. Numa relao provvel com o corpo, uma vez mais, como se fosse pele abandonada, caminham juntos na iluso de estarem unidos. Em detrimento disso, eu acredito que "os homens de antigamente valorizavam muito o contato com a sola dos ps". Inseguros nos seus olhos cerrados e conscientes do medo da corrida no escuro, os homens de hoje no testam a si mesmos no confronto com a escurido. E entrando no interior do corpo invisvel, podemos ficar perdidos. Ser ameaado pelos prprios olhos assustador, portanto no podemos efetivamente confiar na dana de olhos abertos. A estrutura da sociedade funciona de acordo com a mente e portanto os homens de antigamente viviam como cegos, sem pensamentos maus e sem fugirem do perigo.
Tatsumi Hijikata
Ser-estar passou a ser uma busca cotidiana, quase vcio. Desses que misturam dor e
prazer quando saciados.
O corpo vivo como agente comunicador, atravs dele me revelo e transcendo.
Buscando o no mentir, mesmo que ainda minta em demasia, sendo eu a primeira a ser
ludibriada nesse jogo de esconde-esconde.
Nele - corpo - fucei, fuo, fuarei (passado-presente-futuro) em busca de mim
mesma, e mais abaixo, em busca da essncia que compartilho com os demais seres,
viventes em comum nesse pequeno- grande planeta, seja ele pedra, flor, homem ou galinha.
Descubro um corpo multifacetado.
Primeiro, o corpo fsico, matria palpvel, capaz de se apropriar de diferentes
formas, belas ou grotescas. Composto de msculos, ossos, pele, rgos, gordura, peso,
flexibilidade, fora. Capaz de emitir sons articulados, que se propagam em diferentes
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intensidades, tonalidades e dinmicas. Que sofre a ao da gravidade, do tempo e da idade.
Que quando se machuca, di demais e se recusa a trabalhar. Que nunca pode ficar muito
tempo parado porque enferruja e a tem-se que comear tudo do zero novamente. Que
preciso investig-lo constantemente para que ele revele do que capaz.
Segundo, no em ordem de importncia, mas de descoberta, o corpo invisvel, capaz
de tornar visvel diferentes qualidades de energia, preenchendo a forma moldada pelo corpo
fsico. A vida em si, sagrada. Que sustenta o corpo alm da musculatura. Que se expande
para o espao alm- corpo, quase palpvel. Cujo fluxo e intensidade so possveis de serem
ministrados, como a fagulha que se expande em chamas ardentes, queimando o corpo que a
hospeda e aqueles que dela se aproximam.
Unidos, visvel e invisvel, palpvel e etreo, vem a compor a matria bsica do
ator.
Todo ser vivente compartilha dessa dualidade complementar, mas cabe ao ator,
atuante por profisso e escolha, a explorao e o domnio desses dois universos. Qualquer
desequilbrio, na fixao de um ou outro, pode ser nocivo comunicao de sua arte. Um
corpo vazio, preso a forma externa, se enrijece, se mecaniza, pra essa funo existem os
cenrios e objetos de cena. O etreo tambm torna-se vazio sem uma forma moldada para
receb-lo; fora de foco gera psicologismos que devem ser resolvidos no div do analista,
poupando a sala de trabalho e a cena teatral.
Impossvel esconder-se atravs do corpo. Ele revelador. Hoje pela manh,
enquanto ministrava uma oficina no Lume para atores, observava seus corpos enquanto
danavam suas aes. Nenhum corpo era igual ao outro. Nenhuma regra comum podia ser
aplicada a todos. Cada um precisava crescer em um aspecto diferente, mesmo que alguns
conceitos fossem lanados para o conjunto. E percebia o quanto seus seres se angustiavam
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na tentativa do acerto. O prprio desejo de acertar tolhia suas expresses. Racionalmente
todos caminharam no sentido do entendimento, aps duas semanas de trabalho intenso.
Seus corpos que ainda necessitavam de tempo. Comeavam a aprender a falar atravs do
corpo mas no conseguiam com que seus corpos falassem. E cabe a cada um a descoberta:
Posso ensinar a um jovem ator qual o movimento para apontar a lua. Porm, entre a ponta do seu dedo e a lua a responsabilidade dele.6
6 Peter Brook in Oida, Yoshi, Um Ator Errante, 1999, pg. 11
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Tempo. Um passo de cada vez. (...) 21, 22, 23, 24, 25 (...) A sabedoria est em se
respeitar o tempo das coisas. Vrios tempos correm ao mesmo tempo, em universos
paralelos."Quanto tempo o tempo tem? O tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo
tem", emprestando o trava lnguas. O criar possui um tempo prprio, diverso do tempo
cotidiano. Ambos correm paralelos, mas em velocidades distintas. Dentro do criar tambm
existem tempos distintos: tempo-recolhimento, tempo-vazio, tempo-colheita e tanto tempo
quanto tempo o criar de cada um tem.
O corpo em sua complexidade assimila como quem come devagar mas quando
apreende, guarda impresso em suas clulas, um registro que jamais se perder. o tempo
da memria muscular, essa sim, palpvel, de matria diferente da memria dos sonhos ou
fatos vividos, cujo relembrar leva a um esfumaar de imagens ou a uma seleo de
determinados aspectos, num constante recriar da lembrana. Com o corpo diferente, ele
possui a memria das rvores seculares, esculpido pelo tempo, antes mesmo de existir
como conscincia. Uma vida poderia ser contada seguindo somente os trilhos deixados pelo
tempo, atravs de cada marca, nervura ou ruga, que colecionamos no passar dos anos. E
para nos livrarmos dessa marca- registro, caso ela passe a incomodar, s mesmo cortando
fora o pedao eleito e ainda assim, no mesmo lugar, aparecer um novo registro indicando
que ali algo foi extirpado.
Muitas so as camadas de que somos compostos, alm pele, alm superfcie. Temos
que acessar essas diferentes camadas, em direo mais central de todas, passeando pelos
meandros, em busca do que essencial. No momento da investigao, seja ela em sala de
trabalho ou pesquisa de campo, necessito provocar meu corpo, coloc-lo em risco, propor
desafios, estimular sensaes - aqui, corro para o Aurlio- dicionrio, sabedor-guardador de
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 19
palavras, estendido sobre a cama, com medo da amplitude ou vagueza da palavra sensao
e acabo por considerar importante o registro do que encontrei:
Sensao. 1. Fisiol. Processo nervoso que se inicia num rgo receptor quando este reage especificamente a um estmulo externo, e se estende ao crebro. 2. Psicol. Processo sensorial consciente correlacionado com um processo fisiolgico, e que proporciona ao homem e aos animais superiores o conhecimento do mundo externo.
Esses estmulos externos podem ser provocados via exerccios fsicos, imagens,
textos, msicas, na relao com outros corpos, com o espao, com objetos e tantas outras
maneiras, a serem descobertas por cada um. Mas para ns, os atores, no basta vivenciar
essas sensaes, elas precisam ser traduzidas em aes fsicas e tendo, necessariamente,
como passo seguinte, o aprendizado de como retomar o caminho percorrido, mantendo a
memria corporal viva, possvel de ser acessada voluntariamente. Ao acessar uma matriz7
fsica, automaticamente, meu corpo resgata todos os sentidos: diferentes nveis de tenso,
impulsos, batimento cardaco, ritmo respiratrio, direcionamento no espao, imagens, sons,
cheiros, saliva, surgem acoplados.
Nessa busca cotidiana, descobri minha pequenez. Me acompanharam angstias e
inseguranas. Certezas se originaram de conflitos. Hoje j coleciono algumas.
Parte do fascnio que me levou escolha desse fazer teatral, onde o ator n, livre de
suas carcaas, revela seu ser na tentativa de conduzir o outro revelao de si mesmo, veio
7 Se procurarmos no dicionrio, encontraremos algumas das razes de essa palavra ter sido utilizada para definir uma ao fsica orgnica: Matriz: rgo das fmeas dos mamferos onde se gera o feto; tero; madre [...] que fonte ou origem; principal; primordial.Assim, a Matriz entendida como o material inicial, principal e primordial; como a fonte orgnica de material do ator, qual ele poder recorrer, sempre que desejar, para a construo de qualquer trabalho cnico. A matriz a prpria ao fsica/vocal, viva e orgnica, codificada.A matriz, entendida como rgo onde se gera o feto, o tero, a clula criativa do ator. Ela, como material inicial, pode ser moldada, remodelada, reconstruda, segmentada, transformada em sua fisicidade no tempo/espao, tendo, como nica condio, a necessidade de se manter seu corao, o ponto de organicidade que no pode ser perdido, que a essncia da ao/matriz, ou seja, sua corporeidade. In Ferracini, Renato. A Arte de No Interpretar como Poesia Corprea do Ator, 2001, p. 116.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 20
do fato de que um jovem mestre me apontava o caminho, seguido de dois, igualmente
jovens, discpulos. Dele ouvi as primeiras palavras que me fascinaram. Tocando sua flauta,
eu era um dos ratinhos que o seguiam. E mesmo nos momentos de dvida eu seguia seu
som encantado.
Burnier, mais tarde Lus8. E atravs dele Simioni e Ricardo9, os responsveis em
romper a pedreira dia-a-dia. Assim, em dose tripla, foram meus primeiros mestres.
8 Lus Otvio Burnier, fundador e ento coordenador do Lume. Faleceu em 1995. 9 Carlos Simioni, ator do Lume desde sua formao e Ricardo Puccetti, ator do Lume desde 1988.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 21
Primeiros passos... Lembra o tempo que voc sentia
e sentir era a forma mais sbia
de saber e voc nem sabia?
Alice Ruiz
Fui olhar nos primrdios, no incio da paixo. Onde o sentir era o nico indicador
de que esse era o caminho desejado.
A paixo no veio pelo resultado, eu jamais o havia visto. Veio pelos princpios,
pelos desafios do caminho. Sim, aquilo me parecia algo novo e me tirava do eixo.
Nos primrdios me vejo; vejo o ontem e vejo o hoje na repetio dos mesmos
princpios, tantas vezes transmitidos queles que cruzam meu caminho. Proclamo-os aos
quatro ventos porque neles creio.
Fao aqui uma pausa no dizer. Peo licena para um breve retorno no tempo. Fui
me buscar em meu primeiro dirio de trabalho. Nele vejo o primeiro olhar, mais vivo, de
quem v o novo e se atenta aos detalhes. Hoje vejo que meus dirios seguintes, com
algumas excees, se tornaram frios; anotaes mecnicas das aes externas. O dentro
como que esquecido.
A prtica do dirio de trabalho tem se mostrado bastante valiosa, componente
precioso para a retomada da memria cotidiana e individual.
As anotaes mesclam descries de exerccios, com apontamentos feitos por
Ricardo e Lus e impresses pessoais. Procurei no interferir na maneira original em que
foram redigidos, os apontamentos foram feitos logo aps finalizado cada dia de trabalho.
Os escritos em itlico so observaes atuais que no pude resistir em fazer.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 22
Compartilhemos juntos, para juntos entendermos os primeiros passos:
DIRIO DE BORDO Ano de 1993 Departamento de Artes Cnicas - UNICAMP Graduao- montagem de concluso de curso, espetculo Taucoauaa Panh Mondo P 10, sob orientao do Lume 19/01
(Quatro horas de trabalho)
Com Ricardo: o corpo sem limites
* Aquecimento individual.
* Trabalho com todas as articulaes, partindo do pescoo (peito, cintura, quadril,
ombro, brao, perna, p, joelho, mo).
* Lanamento com as articulaes.
* Trabalho com todas as articulaes simultaneamente, alternando os ritmos (lento,
rpido, suave, picadinho, quebrado, etc).
Observaes:
* Fazer tudo o maior possvel, partindo de um impulso interno, sem tentar comandar
o movimento.
* Descoberta dos impulsos, dinmicas, articulaes.
* No mecanizar o movimento, ao perceber a repetio, propor nova dinmica
automaticamente.
10 Espetculo de concluso do curso de graduao em Artes Cnicas - Unicamp, sob a direo de Lus Otvio Burnier. O foco central eram as lendas e causos brasileiros. Cada ator partiu em viagem para uma regio do interior do Brasil em busca dos causos e lendas "vivas", das pessoas que ainda nos encantam com suas histrias.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 23
* Colocar o corpo como um todo em movimento, cada pequena articulao deve
estar presente.
( Hoje eu que me vejo repetindo essas frases em oficinas. )
* Postura no trabalho: agir como ator e no como aluno.
* Explorar o no conhecido, abandonar o que j sabe pra que o novo possa surgir.
* Colocar sua pessoa constantemente em risco.
* Enfrentar os medos e as inseguranas.
* Trabalhar sempre no limite, exigindo-se cada vez mais.
( Onde se encontra o limite? ainda continuo em busca. )
20/01
* Observaes do segundo dia:
* Ao chegar no limite no deixar esvaziar.
* Deixar acontecer sem a cabea conduzir.
* Pular o "muro" e ver o quintal do vizinho.
* Se OUVIR, para diferenciar se ouve mecanizao do movimento ou se voc est
ultrapassando o limite.
* Integrar o corpo como um todo; nunca voltar, uma ao gera outra.
* Trabalhar muito mais com a COLUNA, explorar, descobrir.
* Sem psicologismo, agir como criana.
* Tomar cuidado pra no representar, no pegar personagens.
Estou trabalhando apenas braos, mos, ombros, peito. Tentar levar para o resto do
corpo.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 24
Sinto que aps movimentar determinadas partes do meu corpo, manifestam-se
algumas emoes: euforia, choro, medo, angstia...
(Incio da percepo, ainda sem compreenso, de que a emoo se encontra
impressa na musculatura. Nesses momentos tentamos enquadrar sensaes desconhecidas
em palavras conhecidas, em busca de classific-las. Hoje percebo diferentes matizes que
meu uso das palavras no alcanam.)
21/03
Terceiro dia:
* Aquecimento: sem utilizar os elementos da seqncia j estabelecida, fazer algo
que estimule a sair do fsico.
* Explorar cada parte do corpo: cabea, ombros, peito, cintura, quadril, pernas, ps,
braos, cotovelos, mos, coluna (chicote, cobra).
* Com diferentes dinmicas: rpido, lento, com ritmo quebrado;
com intensidades diferentes: forte, suave;
no espao: grande, pequeno;
com impulsos;
uma parte de cada vez ou duas a duas ou trs a trs ou todas ao mesmo tempo;
livre, variando tudo.
* Trabalho energtico com todas as partes do corpo, integrando uma parte a outra.
* Trabalhar melhor a coluna - Ricardo chegou a prender as minhas mos com um
cinto. Isso fez com que minha energia no se dispersasse nos braos, permitindo um
desenvolvimento maior da minha coluna.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 25
(Percepo das limitaes do meu corpo, ainda atravs de um olhar externo, nesse
caso o do Ricardo.)
22/03
Quarto dia:
Distenso do p, assisto o trabalho sentada. Muito vlido.
(Primeiro olhar de fora)
Observaes feitas por mim, enquanto assistia:
Ricardo deu uns toques individuais: para alguns, pediu para trabalharem relao
entre terra e ar, ou s terra ou s ar, ou imagens, etc, elementos que no continham no
trabalho dessas pessoas.
* Algumas pessoas percorriam os espaos, no os ocupava, no os fazia seus.
* Parece que as pessoas criam um campo de energia em torno de si, onde cada um
tem o seu espao; todos trabalham de olhos fechados sem se bater.
* Algumas pessoas, ao se movimentarem, demonstram estar com a energia trancada
dentro de si, no conseguindo faz-la escoar; essa energia torna-se pequena e contida.
* A "cabea" manda em muitas pessoas; h dificuldade em ouvir o prprio corpo.
* Muitos se prendem no mais fcil e conhecido, mecanizando e repetindo os
mesmos gestos; tem medo de sair da redoma, da segurana.
* Dificilmente trabalham a regio de trs do corpo.
* Sensibilidade a flor da pele.
* Contato- um faz o outro reage, tem que haver uma troca de energia, no adianta
ficar apenas fazendo movimentos um na frente do outro.
(Em letras maisculas, provavelmente frases frisadas pelo Ricardo)
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 26
NO ESQUECER:
TRANSFORMAR ENERGIA - no adianta chegar ao pice e retornar
RITMO - variar! brincar!
ENVOLVER TODO O CORPO - uma parte leva a outra. Deixar escorrer. Brincar!
OUVIR-SE. O CORPO CONDUZ!
CMERA LENTA: com os impulsos contidos, mantendo a presso interna, a
chama tem que estar acesa e percorrer o corpo, escorrer, explorar os extremos.
Principalmente no morrer. Imagem da panela de presso.
25/01
Quinto dia ( acrescentamos duas horas de trabalho, totalizando 6 horas. As duas
primeiras horas sozinhos e as quatro restantes com o Ricardo):
Sensaes: EST TUDO DOENDO!!
* Sinto que o controle dos meus movimentos deixa de ser racional quando executo
aes maiores e rpidas.
* A utilizao de imagens me ajuda na no mecanizao e na diversificao dos
movimentos.
* Hoje trabalhei bastante explorando meu cansao. Nesse estado meu corpo fica
como que adormecido, facilitando uma maior movimentao, com movimentos menos
rgidos e mais soltos.
* Ricardo pediu pra que eu trabalhasse focando mais minha coluna e meu quadril,
deixando escorrer para as pernas.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 27
* Sinto dificuldade em manter "contato" com algumas pessoas, como se a energia
delas me sugasse para baixo. Com outras, sinto o oposto, como se eu me abastecesse de
energia.
26/01
Sexto dia:
Chamamos de elementos plsticos11, a explorao das diferentes articulaes. Hoje
desenvolvemos para cada parte do corpo um animal correspondente, escolhido
individualmente, de acordo com a imagem que viesse ao trabalhar as articulaes, exemplo:
cabea- tartaruga
ombro- pulga
brao- gaivota
mo- aranha
peito- siri
cintura- gato
quadril- cavalo
perna- lombriga
ps- tartaruga
11"Para esse trabalho o corpo dividido em segmentos para poderem ser trabalhados separadamente: cabea, peito, cintura, quadril, pernas, ps, ombros, braos e mos. A partir dessa separao, pesquisa-se, em cada parte, dinmicas e ritmos diferentes, explorando-as de maneira plstica e buscando suas possibilidades de articulao no tempo/espao. Inicia-se com cada parte separadamente. Aps algum tempo de trabalho, faz-se com que uma parte converse com a outra atravs de dinmicas diferenciadas. Convm frisar que, mesmo tendo uma parte do corpo como foco, todo o resto do corpo deve estar engajado na ao. Para tanto, a coluna e a base ampliada so imprescindveis." In Ferracini, 2001, pg. 106.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 28
Primeiro trabalhamos as dinmicas com os respectivos membros. A seguir a
comunicao entre a dinmica de dois animais. Por ltimo, a dinmica de cada animal no
corpo todo e depois a combinao de todas as dinmicas.
(Aqui comeo a perceber o quanto estimulante para o meu trabalho a utilizao
de imagens, funcionando como pequenos estmulos, sugestionando novas dinmicas.)
01/02
Dcimo dia:
* Elementos plsticos e suas dinmicas.
* Trabalho explorando terra e ar, em vrias dinmicas.
* Enfoque no quadril, ele quem lana ou sustenta o peso quando estamos na terra.
Hoje foi o primeiro dia que tive a impresso de que no era eu quem guiava meu
corpo. Os movimentos partiam de dentro para fora, sem lgica.
No incio d um certo medo, depois muito mais gostoso. As imagens aparecem
aos montes, surgem com qualquer estmulo, tanto interno como externo. As emoes ficam
salientes, raiva, medo, solido, desespero, euforia.
Fica muito mais difcil pensar nas dinmicas, control-las, porque todo movimento
fica involuntrio.
Creio que a qualidade do meu movimento no tenha melhorado por isso mas
acredito que esse caminho melhor que o anterior, quando eu ficava de olhos abertos
procurando mexer todas as partes, mesclando diferentes dinmicas; nesse caso era 'eu'
quem controlava meus movimentos.
No final Ricardo pediu cmera lenta, no consegui integrar todo meu corpo e deix-
lo fluir.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 29
necessrio OUVIR-SE!"
(Primeiras percepes, agora de dentro para fora. Comeo da descoberta de que o
trabalho se constri dia-a-dia. A meu ver, incio do que hoje entendo por pesquisa. )
Finalizamos com um trabalho de vibrao vocal, onde cada um procurava ouvir sua
msica e extern-la.
Mudou minha relao com o "contato", no necessito dos olhos abertos para ver
como reagir, tento "sentir" a outra pessoa.
02/02
Dcimo primeiro dia:
Chegada de Lus Otvio, sempre provocando um turbilho. Ele assistiu ao trabalho
conduzido por Ricardo e nos revirou a cabea.
Minhas anotaes, que acredito foram frases do Burnier assim resumidas e com
certeza, reduzidas, por mim:
* A relao tem que ser instintiva.
* O controle da mente funciona como uma peneira que censura.
* Entrar em contato com meu instinto mais profundo sem o controle da mente, mas
com ela presente. Trata-se de reverter o processo; no dia-a-dia da cabea para o corpo,
aqui do corpo para a cabea.
* Agir como a criana, que usa a inteligncia prtica, no a inteligncia abstrata do
dia-a-dia.
* Usar a razo a servio do instinto.
* Jogar-se na gua para aprender a nadar, na emergncia do afogamento voc utiliza
a inteligncia para no se afogar.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 30
* Quando sozinhos, procurar encontrar estmulos, imagens, animais, sons, cores.
* Nosso trabalho mescla dana pessoal e energtica. As duas trabalham elementos
semelhantes mas com dinmicas totalmente diferentes:
- dana pessoal12 - mergulho para dentro para convergir;
- dana energtica13 - mergulho para vomitar, divergente.
O objetivo de ambas o mergulho na energia instintiva, subjetiva, nos recantos
pessoais. Ambas pretendem provocar simultaneamente o encontro da vida e do corpo.
Numa viagem s suas entranhas, a seus feixes musculares.
* Abrir o ba da minha prpria pessoa, jogando fora, tirando o que contm dentro e
descobrindo, expurgar nova energia. Jogar fora o que est por cima, para encontrar o
tesouro essencial, a fonte de prazer. fundamental o contato, fundamental a privacidade.
* Tema para a semana seguinte: CONTATO
* Regra: OLHOS ABERTOS
* Pular o muro: a questo rtmica passa a ser orgnica.
(J pulei por alguns segundos.)
* O "contato" aquece, solidariza, d fora.
12 Dana Pessoal: nome dado a uma das linhas de pesquisa do Lume, consiste na dinamizao das energias potenciais do ator e na elaborao de uma tcnica pessoal de representao. Durante esse perodo de busca o ator passa por um processo de desnudamento, desvestindo-se de todo elemento superficial e condicionado. Parte ao encontro do essencial. Desse mergulho surgem aes fsicas e vocais, que vo sendo codificadas ao longo do processo, vindo a compor o repertrio pessoal de cada ator. 13 "Trata-se de um treinamento fsico intenso e ininterrupto, e extremamente dinmico, que visa trabalhar com energias potenciais do ator. 'Quando o ator atinge o estado de esgotamento, ele conseguiu, por assim dizer, limpar seu corpo de uma srie de energias parasitas, e se v no ponto de encontrar um novo fluxo energtico mais fresco e mais orgnico que o precedente' (Burnier, 1985:31). Ao confrontar e ultrapassar os limites de seu esgotamento fsico, provoca-se um expurgo de suas energias primeiras, fsicas, psquicas e intelectuais, ocasionando o seu encontro com novas fontes de energias, mais profundas e orgnicas. 'Uma vez ultrapassada esta fase (do esgotamento fsico), ele (o ator) estar em condies de reencontrar um novo fluxo energtico, uma organicidade rtmica prpria a seu corpo e sua pessoa, diminuindo o lapso de tempo entre o impulso e ao. Trata-se, portanto, de deixar os impulsos tomarem corpo. Se eles existem em seu interior, devem agora, ser dinamizados, a fim de assumirem uma forma que modele o corpo e seus movimentos para estabelecer um novo tipo de comunicao (...)'(Burnier, 1985:35)." In Burnier, Lus Otvio. A Arte de Ator: da Tcnica Representao, 2002, pg. 27.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 31
* Quando perceber que entediou, mecanizou, brigue com a cabea.
* No ser como uma folha morta que bia no rio mas como um barco que segue ou
vai contra a corrente.
* Se utilizar do cansao para transformar, assumi-lo mas no se deixar dominar.
* Estamos misturando dana pessoal com energtico, fechando-nos em ilhas. Temos
que nos relacionar.
* Impulsivo, instintivo, instantneo. Voc no pensa, faz. Fazer e escutar
simultaneamente.
* Se tiver dificuldade em manter a "panela de presso" suave, colocar para ferver
ervas-doces e o apito com notas musicais.
* A qualidade suave pode ser como folhas ou com resistncia. Como uma princesa
que vai delicadamente cortar a jugular de seu marido ou como porcelana chinesa.
* Os movimentos pequenos e suaves no so isentos de energia.
* O corpo exprime na tenso, no no relaxamento.
* O mximo esforo para o menor efeito.
* Tomar cuidado para no mecanizar os elementos plsticos, tem que cheirar
sangue.
03/02
Dcimo segundo dia:
Comeamos o energtico com os olhos abertos e estabelecendo maior contato.
bem diferente do que o que estvamos fazendo, que era uma mistura de dana pessoal com
energtico. Parece-me que as coisas fluem melhor, no ficam apenas presas dentro de
voc.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 32
O cansao faz com que eu abandone meu corpo, surgindo sensaes e movimentos
novos. Ricardo disse que consegui "pular o muro" por alguns segundos. Tenho que lutar o
tempo todo com meu cansao e me aproveitar dele o mximo que puder. Percebo que
minha conscincia corporal aumentou muito desde que o trabalho se iniciou. Consegui
brincar mais com os ritmos e as possibilidades de movimento que ele me d.
Surgiram esboos de movimento no cho e no ar, vou a terra e me lano para o ar e
vice-versa. Ricardo disse para eu explorar melhor esses movimentos.
05/02
Dcimo quarto dia:
Terminamos o trabalho com "cmera lenta". Fiquei fazendo impulsos pequenos,
como "panela de presso". Ricardo pediu pra que eu aumentasse esses impulsos, que os
fizesse maiores, cada vez mais. Fiquei muito tempo trabalhando rpido e grande. Em vrios
momentos achei que no iria conseguir continuar. O Ricardo me mandava estmulo e
energia a todo momento. At que perdi a noo de cansao do meu corpo, ele ficou leve e
malevel, minha cabea no comandava mais; meio animal. Perdi a noo de espao,
peso, etc. A voz saiu em alguns momentos e o som assustador, diferente dos que emito
normalmente; no um som individual mas ligado com todas as partes do meu corpo.
A energia se transforma: lento, rpido, pequeno, leve, pesado. Algo l dentro
conduzia meus movimentos. Meu corpo falava. Tive medo.
Aps finalizado um ms de trabalho, escrevi o texto abaixo, como sntese do que eu
havia experienciado:
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 33
Sbado, resolveram jogar fora o sof. Segunda, jogaram a televiso. Quarta
noite, a geladeira. Hoje, querem retirar todas as camas. Esto todos l,
entulhados no quintal da casa. Ainda no conseguiram se livrar deles
totalmente.
Os vizinhos que antes eram indiferentes, agora fazem visitas. Cada um traz
um presente. Esto todos guardados no quarto, sendo abertos aos poucos.
Vieram substituir as camas.
Algumas paredes foram derrubadas, janelas esto sendo construdas - sem
vidros, que pra ventilar melhor.
A filha chora por causa das mudanas, diz que tem medo, que agora com a
casa sem paredes a mula-sem-cabea vir peg-la. O irmo mais velho diz
que vai proteg-la e ela, aos poucos, vai parando de chorar.
Na cozinha, comea a nascer um ip, as orqudeas apontam para lhe fazer
companhia. A filha ficou responsvel por alimentar as pombinhas, que se
alojaram na sala.
Agora, todas as tardes, a famlia se rene com os vizinhos, para juntos,
poderem apreciar o pr-do-sol.
Volta para o tempo presente.
As anotaes de dez dias foram aqui transcritas e vejo que foram necessrios os
ltimos dez anos para digeri-las e assimil-las em sua profundidade.
No eram apenas ensinamentos sobre conscientizao do meu corpo e sua melhor
utilizao em cena. Meu ser mais ntimo estava em jogo. Se por esse caminho eu optasse,
deveria estar disposta a "abrir o ba da minha prpria pessoa, jogando, tirando o que
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 34
contm dentro, jogando fora o que est por cima, para encontrar a fonte de prazer"
(pegando emprestada a imagem utilizada pelo Burnier ).
Palavras como treinamento energtico e dana pessoal, foram primeiro
experimentadas pelo meu corpo, antes de qualquer compreenso racional sobre o tema.
Pelo conhecimento prtico dos primeiros dias e sua continuao nos meses
seguintes, pude perceber que a opo por esse caminho me exigiria uma dedicao
exclusiva, ao menos nos primeiros anos de formao. Era necessrio um aprofundamento
que s o tempo e a busca cotidiana poderiam conquistar. O fascnio provocado pelas
reviravoltas em meu corpo e pelos constantes desafios que cada dia de trabalho me
proporcionavam, foi o impulso inicial que me encorajou nessa aposta. Aposta por no saber
onde chegaria e nem ao menos, se em algum lugar chegaria. A aposta foi feita.
O que segue abaixo, reflete para mim, no presente, a continuao das metforas
iniciadas no texto anterior:
Dez anos e a casa continua sendo construda.
Os passantes, curiosos, observam da calada. s vezes, filas so organizadas
para visitao.
Ningum entende porque a parede que ontem foi erguida, hoje j est no
cho. E a que hoje se ergue, quem sabe o rumo que ter.
Os entulhos, antes guardados no quintal, foram jogados fora. Para que
guard-los se de nada servem?
E assim, passam-se os dias, ora lentos, ora de trs em trs, ora com tanta
gente que os vizinhos se revezam no emprstimo dos colches.
H anos o pai faleceu. De tanta dor, deram uma festa.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 35
princpio, quase mudaram de casa. Mas por escolha ou inrcia, foram
ficando... o tempo foi passando... e quando perceberam a casa j era outra,
construda a vrias mos, novas e antigas.
"Graas aos ensinamentos do pai, deixados antes de morrer", sempre
repetem entre si.
A filha que antes chorava, nem tem mais medo do bicho-papo. Comeu-o no
jantar, anos atrs. Aprendeu rezas e simpatias em suas viagens pelo mundo e
quando alguma miragem desavisada aparece, d logo meia volta, assustada,
com medo da menina hoje mulher.
A famlia cresce a cada dia, espalhada pelos quatro cantos.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 36
Solido compartilhada
Nesses anos de busca encontrei a solido compartilhada. Engraada a sensao de
sentir-se s, cercada por tantas pessoas seguindo o mesmo caminho ao meu lado. Mas cabe
somente a mim imprimir meus passos, o outro torna-se companheiro de viagem, que
compartilha e encoraja, auxiliando na construo do espao confivel, de valor imenso,
onde pode-se penetrar na escurido de olhos fechados, sem medo de esbarrar nos mveis.
No dia-a-dia da investigao, cercada por quatro paredes, em mim que necessito
encontrar a coragem de me desafiar. Quantas vezes pensei em desistir! E ainda o penso, em
momentos de crise, quando o sentido parece distante. Por vezes, brigo com meu corpo e
ficamos dias, semanas, s vezes meses, sem nos comunicar, de cara virada. E a o
redescubro, pulsante, vido por se expressar. Percebo, nesses momentos, o quo necessrio
o nada, a pausa, o se esvaziar para que o sangue novo possa jorrar. E toda culpa que senti
- sim, culpa, que me martiriza, como se pecasse contra mim mesma - se esvai e respiro
aliviada. Como se o tempo passivo me incorresse o risco da no reconeco. Mas creio que
os anos de investigao me trouxeram conquistas, difceis de serem arrancadas. O que o
corpo apreende, torna-se impresso em sua musculatura, como uma segunda pele.
Sei que essa ltima afirmao perigosa. Estagnar no j conquistado um dos
maiores perigos no ofcio de ser ator. Acredito que a pesquisa deva ser feita
cotidianamente: na sala de trabalho, numa investigao constante do corpo e seus
mecanismos de comunicao; no estar em cena, quando essas conquistas so confrontadas e
materializadas na troca com o pblico; no viver- ver o mundo e os sentidos, na msica
descoberta, nas palavras lidas e ouvidas, no compartilhar da vida, no trovo que cai, no fim
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 37
das coisas. Impossvel separar a Cristina atriz da Cristina RG 20.087.699-5. Por mais que,
em diversas ocasies, uma negue a outra.
Na construo de uma equipe de trabalho, o outro ou os outros, companheiros de
caminhada e parceiros na criao, tornam-se peas fundamentais. O crescer de cada um
vm a somar com o crescer dos demais. Os anos de convvio so os responsveis pela
criao de uma linguagem comum, composta de cdigos no verbais, responsveis pela
identidade criadora desse pequeno coletivo.
Em minha trajetria de grupo14, percebo que paralelo ao encontro, cada um de ns
precisou mergulhar na prpria solido para descobrir o que lhe prprio, individual, para
que a troca com o outro se efetivasse. O fato de estarmos juntos, possibilitou o
desenvolvimento de uma tica comum, com princpios compartilhados por todos, j que por
todos foram sendo criados no decorrer dos anos desse viver em criao. Criou-se um
espao onde o questionamento sempre bem vindo pois traz consigo a dvida, que por sua
vez, revira o conhecido conduzindo ao novo; criou-se o espao da confiana, da parceria,
da diviso dos sonhos; criou-se o espao da relao, tanto no momento da investigao
como no estar em cena.
No somos um nico corpo. Somos, alis, muito diferentes uns dos outros. Com
trajetrias distintas, desejos diversos. Em algum momento nos encontramos e passamos a
caminhar lado a lado, pulmo, crebro, estmago, pernas, olhos, boca, cada rgo com uma
funo distinta, formando, a sim, um nico corpo. Corpo esse, cujo corao mantido por
todos.
14 O Lume atualmente possui uma equipe de sete atores-pesquisadores.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 38
Mestres
Aprender a aprender. Sou aprendiz no ato de aprender. O aprendizado vem com a
experincia, com o exerccio, com a prtica. Preciso muito aprender para aprender a
aprender. A vida tem sido minha mestra. Sua primeira lio foi tirar-me cedo os mestres
(ciumenta ela): meu pai Dimas, mestre do viver cada dia, pacientemente, equilibrando o
tempo do agir com o tempo da espera; Lus Otvio Burnier, mestre do ofcio, da paixo que
move montanhas e minha me Ana, mestra na dor e ludibriada por ela, espelho-reflexo do
que no quero ser.
Desisti de busc-los fora de mim. Permito agora passagens, mestres- relmpagos,
que iluminam no breve encontro, seguindo caminho, iluminando outros.
A perda traz consigo a sensao do vazio. Iluso. Pura necessidade da
materializao. Existem ausncias repletas de presena, quase palpveis. Na memria do
toque, do ensinamento, das palavras ouvidas e vividas. Presenas ausentes, ausncias
presentes.
"O que os olhos no vem o corao no sente." Sente! E muito!
Aps a morte de Lus Otvio Burnier, senti-me vazia, vagando, sem a mo que
escolhi para me guiar no ofcio de ser atriz. Quase trada. Abandonada sem aviso prvio.
E sem pensar duas vezes, me agarrei as mos do Ricardo e do Simioni. Bom, pelo
menos os dois vo continuar me guiando!
Novo susto, nova sensao de traio: "No queremos ser guias, no somos mestres,
somos atores."
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 39
Passado o choque inicial, como no me pediram para ir embora, fui ficando. Eu e
mais cinco pessoas, igualmente sem rumo. Bebendo no dia a dia, seguindo os exemplos,
imitando os passos, criando laos.
A recusa em serem mestres foi provavelmente a maior lio que me deram. Sinal de
maestria.
Olhos aguados.
Meus primeiros anos de trabalho foram regados com muitas lgrimas, cobranas,
inseguranas. Muitas vezes, em sala de trabalho, me perguntava o porqu daquelas horas,
s vezes interminveis, cercada por quatro paredes. Esperava que algum me apontasse o
sentido. Buscava fora a resposta do de dentro.
Mas no parava. Mesmo na dor, continuava em movimento. Buscando. Tentando
decifrar o mapa do caminho. Perseguindo as primeiras palavras ouvidas: limite, risco,
enfrentar medos e inseguranas, deixar o corpo conduzir, pensar com o corpo, energia,
instinto.
Um dia parei de chorar. De esperar. De sofrer. Primeiro tive raiva e agarrei com as
mos o meu fazer. Depois senti prazer.
Hoje Hoje me pergunto se necessria tanta dor. Se no existe um caminho mais curto,
ao menos sem tantas pedras, sem perder em profundidade. No sei a resposta. Talvez as
dificuldades do caminho sejam criadas pelo caminhante mais do que pelo caminho em si.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 40
Na busca do sentido, constantemente tenho que responder o porqu do meu fazer
teatral. E a pergunta no vem dos outros, vem de mim mesma. E a resposta nem sempre
igual.
Por que o fao? Para quem o fao? Com quem o fao? Como o fao?
A meu ver, a resposta para cada uma dessas perguntas, influi diretamente no
resultado do fazer artstico. Cada resposta reflete uma opo, consciente ou no.
Enquanto relato, tento ler meus passos e o que hoje me cerca. Hoje, 13 de maro de
2002, porque amanh tudo pode ser diferente.
Vivo em Baro Geraldo. Da minha janela vejo o quintal, muito mato e um cavalo
pastando.
H dez anos fao teatro com os mesmos atores. Juntos criamos diversos espetculos
e viajamos pelo mundo apresentando. Solteira, ex-casada, com namorado no Rio de
Janeiro, seis horas de estrada. Sem filhos. 31 anos.
Saio para caminhar porque penso ser besteira o que estou escrevendo. Retorno
pensando em apagar as ltimas linhas, que mais parecem terem sido tiradas das pginas da
revista Capricho. Ruminando um pedao de queijo mineiro, hesito. No apago.
Creio que nessas quatro linhas esto impressas minha frase inicial "S sei fazer
desta forma. a nica maneira que conheo de ser atriz."
Que maneira essa?
A escolha de um pequeno lugar para viver e produzir, longe dos grandes centros, o
que possibilita um espao constante para experimentao e aperfeioamento. A opo pela
pesquisa cotidiana, verticalizando num fazer teatral centrado na figura do ator. O
investimento constante na manuteno de uma equipe de trabalho fixa, cujo
amadurecimento nas relaes e investigaes conjuntas do origem a um corpo forte,
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 41
parceiro na busca e nos resultados. As constantes viagens, como respiros, em busca de
outros territrios, que alimentam, propondo novos desafios. O mais, o companheiro distante
e a ausncia de filhos, tem sido conseqncia das escolhas anteriores. E a idade vem vindo
sem que eu nada possa opinar, apesar de, at agora, s ter lucrado com o correr das horas.
Bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer, bem me quer...
Num universo de possibilidades e desejos, escolha e excluso encontram-se
interligados. Enquanto escrevo ouo a msica de Hermeto Pascoal, fui ca-lo na prateleira
empoeirada, dividindo espao com o Chico, com o Donga, com a Super Salsa. Eu nem
sabia ao certo que o escolheria mas ao faz-lo, acabei por excluir os demais.
Fazemos isso a cada micro movimento, definindo o devir, construindo o que vir.
Escolher para colher o fruto da escolha. Deixando pelo caminho fios de possibilidades no
vividas.
O desejo, a atrao, so parceiros da escolha. Vozes internas que do o alarme de
quando o corao bate. E ele no bate sempre, ah, no! o meu, pelo menos, no! fica ali
naquela modorra, batendo ponto, como se a conversa no fosse com ele e de repente,
quando menos se espera, d aquele salto. Opa! por aqui que devo seguir!
Ele meu espelho, reflete desejos, escolhas, covardias.
"Se a gente falasse menos talvez compreendesse mais" canta Jussara ao fundo,
vestindo palavras de Lus Melodia. Oh, Jussara, justo agora que estou aqui nesse exerccio
verbal fundindo a cabea!
Com a excluso vem a negao, o no. Talvez um dia, talvez nunca. E ponto final.
Neste texto esto refletidas as minhas escolhas. Poderiam ter sido outras?
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 42
O hoje no ontem
De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter f - muita coragem, f em qu? Na prpria f, que a f pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mos de Ulisses enquanto a outra mo de Ulisses empurrava-a para o abismo - em breve ela teria que soltar a mo menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida no de se brincar porque em pleno dia se morre. A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.
Clarice Lispector
Hoje me pergunto de que palavras e princpios compunham o chamado inicial, que
me levaram a seguir os passos de Lus Otvio Burnier.
Talvez seja necessrio distinguir as palavras, tanto de quem as proferia, como de
quem as ouvia. Entendendo que a palavra mais do que um amontoado de letras e quem as
pronuncia imprime no dizer, no tom da fala e nos gestos que a acompanham, o que vai alm
do significado semntico da palavra utilizada. E o receptor interpreta o dito, ouvido e
sentido, de acordo com suas referncias e possibilidades de assimilao. Nem sempre o dito
o que ouvido e vice-versa.
Palavras. Quem as pronunciava? Um jovem ator idealista, que imprimia em seu
discurso um tom quase proftico, como anunciando uma nova era. Fantico, louco,
arrogante, foram os primeiros adjetivos que me vieram a cabea, aps os primeiros
encontros. Era tanta a paixo impressa em suas palavras, entremeadas pelo seu riso solto,
que s me restava am-lo ou odi-lo. Impossvel a indiferena ou o caminho do meio.
Subvertia a ordem cristalizada da academia. No como quem critica para destruir mas como
algum que v uma sada e no poupa esforos para criar o novo. E o seu dizer era
acompanhado de aes, quase sempre provocativas, to marcantes quanto suas palavras.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 43
Talvez as definies acima sejam fruto de um olhar idealizado. Imagem que se
forma aps a perda, seletiva dos aspectos a serem sempre relembrados.
Ser que foi a ele que segui, a sua fora contagiante e no o caminho que ele me
apontava?
Talvez essa fosse a resposta no incio.
Paixo a princpio no se explica, se sente. S mesmo o sentimento da paixo
explicaria a entrega a algo que no se tem plena conscincia do que seja. Como se explica
o trancar-se horas e horas, numa sala de trabalho, at a exausto, num momento onde
sequer se tinha conhecimento dos resultados?
Palavras. Quem as ouvia? Eu, essa que lhes escreve, num outro tempo, papel em
branco com poucas linhas escritas. Na poca, eu no sabia o que queria. Sabia o que no
queria. E ser atriz era algo que estava comeando a entrar na lista do no querer. Algo me
incomodava, um desconforto contnuo. Era rara a sensao de prazer no estar em cena.
Questionava o "dom". Ser que tenho o "dom", o "talento" para ser atriz? Ao meu redor
algumas pessoas brilhavam, extrovertidas, comunicativas. E essa mscara no me servia.
Imaturidade. Comprava a imagem que me vendiam.
Mas j sonhava em trilhar o caminho acompanhada, sem pressa. Com vrios
parceiros, montamos um grupo, numa troca de experincias e inexperincias, seguindo
intuitivamente o caminho tradicional: escolha de um texto, distribuio dos papis,
separao ator e diretor, leitura de mesa, improvisaes em grupo, genealogia do
personagem. Levamos nisso dois anos e acabamos por chamar a ateno de Lus Otvio.
No sei se pelo resultado ou se pelo tempo gasto.
E por fim, quais foram as palavras? Qual foi o chamado inicial?
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 44
Aqui o discurso emperra. Passo um dia inteiro sem nada conseguir escrever. Todas
as respostas me parecem redutoras. Espero, talvez, alguma grande revelao que conduza o
leitor e a mim mesma, a exclamarmos em coro: "Ah, ento foi isso! Essas foram as
palavras! Agora entendo porque voc escolheu esse caminho."
Chego a concluso de que as palavras no bastam para sintetizar uma opo. Ou que
a culpa que ponho nas palavras, reside em mim e na ignorncia do sentimento primeiro. Ou
que as escolhas nem sempre so fruto de grandes revelaes, talvez as revelaes s
apaream aps as escolhas terem sido feitas.
Mas eu me desafiei para esse jogo de relatar em palavras, do dizer no presente o
passado que corre e cresce, e no vou abandonar a partida pela metade. Vamos as
aproximaes possveis:
Um dos elementos que mais me instigava era o novo. No apenas nos princpios
apresentados, como na maneira com que eram conduzidos. Estvamos reunidos para a
montagem de um espetculo teatral e em nenhum momento se falava sobre a escolha de um
tema ou texto dramtico ou sobre a montagem de cenas ou sobre a distribuio de
personagens. O foco estava na preparao e na expresso do ator, fora do contexto da cena.
A obra a ser construda partiria das aes coletadas desse mergulho. Que ofcio de ator era
esse? To diferente das notcias que eu tinha, dentro da minha imaturidade.
claro que paralelo a entrega que esse processo me exigia, eu tambm me
exasperava com a ausncia de caminhos conhecidos.
Entrega era uma das palavras mais utilizadas. No se questionava a qualidade do
desempenho individual mas o quanto cada um estava disposto em transpor os prprios
limites, na investigao do prprio corpo.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 45
Eu tinha medo. Do novo, da entrega, do meu corpo. Possua barreiras que
considerava serem caractersticas fixas. Mas no era destreza, nem virtuosismo o que me
era exigido. E sim, a disponibilidade em colocar meu ser prova. Dia aps dia, hora aps
hora, passo aps passo.
Toda entrega exige generosidade para ser verdadeira. Tanto para quem se entrega
no ato de doar o j aprendido, como para aquele que recebe, doando-se para ser conduzido.
Uma abertura no sentir. Confiana e desejo da troca. Assim aconteceu o encontro.
No me deram um mapa do caminho, nem as diretrizes para que seguisse sozinha.
Tiveram a generosidade de me apontar a trilha, via estreita marcada por pegadas frescas,
mato aberto. O barro seco nas botas os denunciava como caminhantes.
Me acompanharam os primeiros dias, com palavras de incentivo ou desafio e
quando me vi s, aps a cegueira inicial, apavorante princpio, percebi que haviam me
deixado as ferramentas necessrias para continuar a abertura da trilha e a criao de meu
prprio mapa.
Revivendo na lembrana - e somente na lembrana, porque a vivncia dos fatos s
nos permitida uma vez, cabendo aos descontentes a busca do responsvel pela imposio
da regra, eu mesma j o busquei por diversas vezes - meus trs primeiros anos de pesquisa
(1993 a 1995) assemelham- se, no meu entender, a um processo de iniciao, um ritual de
passagem. Tive que me pr a prova.
Reafirmar o desejo e fazer a escolha. Sair do universo das propostas para o
aprofundamento numa proposta especfica.
Fui em busca de mim mesma.
Ana Cristina Colla Da minha janela vejo... Pg. 46
Tempos
O ser e o no ser geram-se simultaneamente: antes- depois, belo- feio, fora- dentro,
coisa- anti coisa, figura- fundo, sujeito- objeto, consciente- inconsciente, corpo- mente, yin-
yang, dia- noite, visvel- invisvel, imanente- transcendente. constante a busca da
complementaridade, do equilbrio entre foras; para que uma exista j se pressupe a
existncia da outra. Sempre em relao, porm incerta, incerteza complementar, ora uma
ora outra se deixam revelar, impossvel contemplar ambas as faces ao mesmo tempo.
Assim surge o ser criativo, vazio ativado pelo observador- mergulhador, criando a
realidade que o cerca e se torna material. Transformando o inconsciente em consciente,
cuja inconscincia a prpria conscincia ainda sem conscincia. Mais parece um trava-
lnguas ou trava- idias.
O processo criativo descontnuo por natureza: preparao, incubao ou processo
inconsciente, insight repentino e manifestao. Processos no lineares, cujas etapas so
perfeitamente perceptveis na criao de um espetculo teatral. Descontnuo e intuitivo,
cuja materialidade ocorre em diferentes ritmos e fases. Nele, experimentamos a
materializao de imagens, idias, signos que devem ser capazes de traduzir o ainda no
dito ou o j dito, agora por um novo prisma.
Num primeiro estgio, o da preparao, d-se o mergulho no material proposto,
seja ele a corporeidade do ator ou o tema em questo, ou ambos ao mesmo tempo. O tempo
passa devagar, no h como ter pressa nessa fase. necessria a maturao e a in-
corporao dos elementos trabalhados. A fase seguinte, da incubao, que pressupe uma
inatividade, muitas vezes, d-se paralela ao processo ativo da preparao. As diversas fases
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se interligam, no obedecendo a uma ordem cronolgica. Imagens dspares vo sendo
compostas, formando um quebra- cabea sem conexo aparente, at o momento em que
surge o fio condutor que acaba por interligar as imagens, estabelecendo as conexes, que
daro origem a obra final, que a manifestao material das fases anteriores. Normalmente,
esse fio acaba surgindo de alguma casualidade ou insight repentino. Esse processo no
segue nenhuma lgica pr- existente; mesmo seguindo os mesmos passos, no decorrer do
caminho a criao de uma obra teatral sempre nica, impossvel de ser repetida.
Caminhemos juntos, revendo os tempos do meu tempo de criar, que no so nicos,
nem exclusivos de minha pessoa.
Tempo qualitativo que corre paralelo contagem dos segundos, minutos, horas,
dias, anos.
Subdivido-o em pequenos tempos:
Tempo-recolhimento, tempo-coleta, tempo-finalizao, tempo-nascimento, tempo-
transmisso, tempo-reflexo.
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Tempo Recolhimento
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Esse o tempo da preparao, individual ou coletiva. Tempo de voltar-se para
dentro.
Seja cercado por quatro paredes, seja no espao aberto. Sem preocupao com o
resultado, com o ponto final. Em busca da prpria expresso. Para se ter autonomia sobre o
dizer necessrio conhecer-se, saber o que vital ser dito e o domnio do como se deseja
dar voz. A descoberta do que e o domnio do como tornam-se imprescindveis para que a
comunicao acontea.
Defendo o ator autnomo, criador da prpria arte, investigador incessante dos
mecanismos de seu fazer artstico. Que tem a coragem de se desnudar perante aquele que o
assiste, expondo-se.
No tempo do recolhimento, fazemos a incubao, ganhamos fora para a tarefa
final. Alimentamo-nos de experincias alheias, selecionamos o que adquire sentido e
descobrimos o novo.
Em minha trajetria de pesquisa no Lume, iniciei por seguir os passos trilhados
pelos primeiros atores Simioni e Ricardo. Considero-me parte da segunda gerao de atores
do Lume. Tive a sorte de receber tcnicas antes experienciadas, cujo resultados j haviam
sido comprovados e eram evidentes nos corpos de ambos. Graas a uma metodologia que j
se encontrava em fase de estruturao, pude usufruir mais rapidamente dos resultados,
trilhando um caminho mais curto, j livre dos primeiros tropeos.15
15 As descries e reflexes referentes aos primeiros anos de pesquisa do Lume encontram-se no livro de Burnier, 2002, op.cit. pg 30
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Em minha primeira fase de "incubao", pude fechar os olhos e me deixar guiar,
passo a passo, na incorporao das tcnicas transmitidas. Eu pouco refletia, vorazmente
meu corpo consumia, transformando-se lentamente a cada dia.
Nessa poca, j era perceptvel para mim que os trs guias: Lus, Simioni e Ricardo,
apesar de possurem as mesmas bases e serem coerentes nos mesmos princpios, possuam
maneiras distintas de conduo e enfoque.
Do Ricardo, carrego impressa a imagem do primeiro dia. Louco, era a nica palavra
que conseguia denomin-lo, aps quatro horas de exausto, movidas ao som de seus gritos:
"Vai! No pra! Coragem! No volta para trs!" entre tantos outros grunhidos que meu
corpo no conseguia mais assimilar. Conduzia-me ao limite, ao vmito, s minhas vsceras.
Estimulava-me a ir em busca de imagens, do corpo livre. Introduzia diferentes
objetos, a relao livre com o material do outro, sonoridades. O caos criativo, sem a perda
da conscincia do que se deseja alcanar.
Simioni primava o elemento tcnico, a preciso, o vigor, o direcionamento no
espao, a elaborao de seqncias precisas, o corpo sendo modelado partindo da
apropriao de diferentes tcnicas. Sempre rigoroso na manuteno do corpo em vida, por
mais tcnico e maante que fosse o elemento trabalhado. Propunha-nos trilhos por onde
deveramos ser capazes de navegar. A princpio, me pareciam camisas de fora, irritantes
amarras. Com o decorrer dos meses e a assimilao pelo corpo dos diferentes exerccios, o
prazer pelas pequenas conquistas comeou a ganhar espao.
Ricardo provocava o despertar do leo e o Simioni ensinava a dom-lo.
O Lus me amedrontava. Suas palavras iam alm da minha percepo, seu olhar me
parecia ver atravs das coisas, como antecipando aes. Sentia-me menina, imatura.
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Seguia-o por f. F no que suas palavras me provocavam e no mundo que ele descortinava
minha frente. Em sua passagem, nunca deixava pedra sobre pedra.
Penso que, em diversos momentos, ele tambm se encontrava perdido, sem saber
para onde nos guiar. Via-o tateando ou batendo a cabea e cheguei, por vezes, a desconfiar
de sua conduo. Em minha primeira crise, no segundo ano de pesquisa, quando o treinar
no era mais revestido do novo, tornando-se, portanto, menos estimulante, desafiei-o,
questionando se ele realmente sabia o que estava fazendo. Sentia-me exposta, exausta e
queria resultados. Sua resposta foi rpida, rspida, num tom que no deixava dvidas: "Se
voc no confia em mim, caia fora!"
Por que no parti?
Porque confiava.
Ao sab-lo passvel de dvidas, redobrei o desejo. Ao perceber que o caminho no
era fixo e preciso, percebi que poderia ajudar a cri-lo, fazendo-me parte dele. E precisava
confiar em que ramos capazes, do erro e do acerto.
Ao nos conduzir, cada um imprimia o seu vivenciar. Isso me fascinava, instigando-
me na busca de um enfoque pessoal. Mas, claro, que a imaturidade, naquele momento,
no me permitia tal conquista.
Com o passar do tempo e a ausncia dos mestres primeiros, na prtica fui
percebendo quais aspectos me estimulavam e quais meu corpo rejeitava. Importante saber
ler os motivos reais da recusa, normalmente so os que mais desafiam por serem
dificuldades necessrias de serem sanadas.
Cada pessoa possui caractersticas prprias que determinam seu desempenho em
determinados aspectos, sem com isso tentar atribuir nenhuma valorao de melhor ou pior.
So caractersticas determinadas pelo seu corpo fsico, pelo meio em que se desenvolveu,
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pela sua personalidade e tantos outros elementos que venham a influenciar e a compor um
indivduo.
No meu caso, sendo mulher, de baixa estatura, constituio mida (aquela coisa
mirrada que Deus ps no mundo), tenho por natural as aes delicadas, redondas, fluidas,
com o predomnio da qualidade comumente associadas energia feminina. Sendo assim,
sempre tive dificuldade em incorporar qualidades da energia masculina, como vigor, fora,
agressividade. Natsu Nakajima16, em seus comentrios sobre o trabalho individual,
apontava sentimento e sensibilidade no meu danar, mas dizia que a energia suave tambm
provocava o sono e que eu deveria danar o contraste dentro- fora.
Constantemente tenho que me desafiar para no fugir desse terreno que sempre me
dificultoso. Com o risco, caso no o enfrente, de ser uma atriz monocrdica.
Nesse sentido o treino coletivo me precioso, na medida em que o outro, possuidor
de dinmicas distintas, imprime sua maneira, permitindo que uma troca de qualidades se
estabelea. O trabalho solitrio, apesar de valioso, pode conduzir o ator a ensimesmar-se,
frisando caractersticas negativas ao seu trabalho.
Os exerccios so como amuletos que o ator traz consigo, no para exibir, mas para extrair determinada qualidade de energia da qual lentamente se desenvolve um segundo sistema nervoso. Um exerccio feito de memria do corpo. Um exerccio se torna memria e age atravs do corpo inteiro.17
Existem diferentes exerccios codificados que auxiliam o ator a se
instrumentalizar18, tm-se que partir em busca da experimentao, at o encontro daqueles
16 Natsu Nakajima danarina japonesa de Butoh, tendo realizado diversos intercmbios com o Lume, entre os quais eu estava presente em 1995 e 1996. 17 BARBA, Eugnio, Revista do Lume, nmero 1, Um amuleto feito de memria, 1998, pg. 31 18 O LUME possui como um dos objetivos principais de sua pesquisa, a codificao de diferentes exerccios pr- expressivos para a instrumentalizao do ator. Esses exerccios so compartilhados atravs de workshops ministrados pelos atores- pesquisadores do ncleo em sua sede em Baro Geraldo e nas diversas viagens que
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que se adequem as suas necessidades. Acredito, porm, que uma pesquisa verdadeira,
necessita aprofundamento e verticalizao. Grande parte das conquistas a que cheguei,
acredito serem fruto da escolha de um caminho especfico e do afunilamento em seus
princpios. Impossvel apropriar-se de algo atravs de breves vivncias. Vejo, num grande
nmero de atores, uma procura incessante por oficinas e tcnicas, de diferentes linhas de
pesquisa, diversas a cada montagem de espetculo. A diversidade excessiva promove a
informao, mas raramente a incorporao. No defendo, com isso, a cristalizao ou a
mecanizao em princpios fixos, que com o crescimento deixaram de ser teis. Defendo a
pesquisa viva, fruto da busca e da indagao constante, cujas bases permitem a respirao e
a incorporao do novo, atenta ao momento presente e suas particularidades.
Para reforar esse aspecto, exemplificando, proponho um salto para trs no tempo
cronolgico.
DIRIO DE BORDO Ano de 1999 processo de pesquisa que deu origem ao espetculo "Um Dia..."19
"Com as energias dinamizadas pela dana dos ventos20, partamos para a realizao
de aes ldicas com canes, objetos (bolas de diversos tamanhos, cordas, pneus, mesas,
o grupo realiza pelo Brasil e exterior. Esses mesmos exerccios encontram-se descritos nos livros de Burnier, 2002, op.cit. p. 30 e Ferracini, 2001, op. cit. p. 19. 19 O desenvolvimento das pesquisas para a realizao desse espetculo foram em conjunto com as atrizes- pesquisadoras Raquel Scotti Hirson e Naomi Silman. O tema central surgiu do desejo de corporificarmos a situao de trauma, partindo da investigao de diferentes situaes limites vividas pelo ser humano: vtimas do holocausto, pessoas em situao de guerra e moradores das ruas dos grandes centros como So Paulo e Rio de Janeiro. A explorao desse universo foi realizada atravs da incorporao de fotos, textos, animais e observaes em campo. Projeto vinculado ao Projeto Temtico de Equipe "Mmesis Corprea - A Poesia do Cotidiano", financiado pelo Fundo de Apoio a Pesquisa do Estado de So Paulo. 20 Elemento do treinamento criado por Iben Nagel Rasmussem (atriz do Odin Teatret da Dinamarca) em conjunto com os atores da Ponte dos Ventos, seminrio anual do qual Carlos Simioni membro. A dana dos ventos consiste em um passo ternrio, harmonizado com a respirao - que binria da seguinte forma: o passo ternrio tem um acento forte ao incio que deve coincidir com a expirao. A dana dos ventos fundamental, pois uma maneira de desenvolver a fluidez da energia da qual, por sua vez, depende a organicidade do ator.Apoiando-se no passo ternrio da dana dos ventos, o ator pode realizar
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cadeiras e sucatas), jogos de palavras, jogos infantis, entre outros, que nos mobilizassem
uma energia primria e de relao instantnea.
Com os objetos realizvamos circuitos de aes, como exemplo: pular na mesa, sair
com o corpo arrastando pelo cho, balanar trs vezes num pneu, encostando os ps na
parede, saltar pisando nas bordas e no centro dos pneus e assim por diante. Esses circuitos
nos permitiam, alm do treinamento fsico, a mobilizao de uma energia infantil, que, sem
que o soubssemos na poca, veio dar origem a diversas matrizes que utilizamos
posteriormente.
Um outro motivo que nos levou escolha dos jogos, foi que necessitvamos
quebrar com a dinmica de treinamento que vnhamos desenvolvendo at ento dentro dos
trabalhos conjuntos no LUME e criar uma nova, que ecoasse apontando novos rumos.
Muitas vezes esses jogos eram entremeados de elementos do treinamento anterior, como
saltos, quedas, rolamentos, lanamentos, entre outros, mas sempre alterando o foco para a
questo ldica.
Cabe ressaltar que a vivncia de tantos anos de treinamento impressos no corpo de
cada uma de ns, fazia com que os jogos no fossem banalizados como simples
brincadeiras infantis sem maiores conseqncias, mas permitiu que realizssemos
constantemente uma ponte entre as duas abordagens, vindo apenas acrescentar novos
dados.
Esse tipo de treinamento permeou quase todos os meses de trabalho, passando por
algumas variaes de acordo com o acrscimo de novos elementos que foram inseridos no
decorrer do processo. Em alguns momentos os jogos foram abolidos para darem origem a
todo tipo de variaes: passos largos, curtos, rpidos, lentos, mudanas de ritmo, etc. Burnier, 2002, p. 131, op. cit. p. 30
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outras dinmicas. s vezes deixvamos mais tempo livre para o trabalho individual em que
cada ator repassava seu material codificado.
Hoje percebo o quanto essas aes ldicas foram fundamentais para a ventilao
de nossas pesquisas, j que manipulvamos em tempo integral um material cuja densidade
nos levava a um estado de exausto, emocional e fsica, que muitas vezes teria se tornado
improdutivo. Eram como respiros por onde podamos escoar nossas tenses para
renovarmos as foras.
Em 1996, o LUME, dando continuidade aos intercmbios com a danarina japonesa
de Butoh Natsu Nakajima, com o apoio da FAPESP, realizou um ms de trabalhos em sua
sede. Nesse perodo, Natsu desenvolveu diversas aes ldicas com objetos, como lenis,
canetas, prendedores de roupa, papis, entre outros, realizando diferentes dinmicas que
deram origem a coreografias que reuniam o material coletado. Ela nos conduzia para que
nos sentssemos e agssemos inconscientemente como crianas e desse estado surgissem as
aes. Pode parecer simples, num primeiro olhar, mas resgatar verdadeiramente esse
esprito infantil e toda a pureza que ele contm, requer muito esforo para adultos
calejados. Na poca, um dos motivos levantados por Natsu para adotar os jogos como tema
do encontro era que o LUME estava muito srio.
As pesquisas que englobam o trabalho com o clown21 desenvolvidas no LUME,
constantemente nos fazem entrar em contato com essa pureza e espontaneidade primeiras,
bsicas para qualquer ator, independente de sua esttica teatral.
21 O clown e a utilizao cmica do corpo uma das vertentes de pesquisa do LUME, sendo o jogo e o ldico um de seus principais aspectos. A qualidade de relao com os objetos, com o pblico ou com os parceiros de cena, conquistada atravs da tcnica do clown deve ser desenvolvida ao ponto de estar presente no corpo do ator, podendo ser utilizada em diferentes contextos.
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Concluo, a partir dessas diferentes vivncias, o quo fundamental para o ator um
eterno reciclar de energias e dinmicas de trabalho, imprescindveis para a manuteno de
sua arte. O olhar sempre atento e a coragem de buscar novos rumos nos impede de nos
acomodarmos no terreno j conquistado."
A transcrio acima refora o argumento anterior da necessidade de uma pesquisa
viva, capaz de redefinir os rumos durante seu desenvolvimento.
O espao, em sala de trabalho, propcio para o recolhimento, permitindo a
investigao pessoal. parte fundamental no movimento de encher e esvaziar, necessrio
na vida do ator e deve ocorrer independente da associao com a montagem de espetculos.
o tempo do ser, na busca do ser-estar.
Para mim, um dos momentos mais preciosos e difceis. Exige disciplina e saber
ouvir-se.
Nas vrias viagens que o Lume realiza apresentando seus trabalhos, tenho ouvido de
vrios atores, a curiosidade em torno do treinamento desenvolvido por ns. Em vrios
deles, o tom impresso sempre no sentido de que passamos o dia todo em sala de trabalho,
como treinadores profissionais. Como se nosso objetivo e enfoque principal fosse o treino e
no a obra teatral. Mitos que se criam, movidos pela falta de conhecimento, na tentativa de
nos enquadrar em padres. O conhecimento de nossa realidade cotidiana, com certeza,
apontaria para novas direes. E mesmo que desejssemos viver na clausura de uma sala de
trabalho, seramos impedidos devido s inmeras atividades que temos necessidade de
executar para manter em p o nosso sonho teatral.
Entendo o treinamento como o momento da investigao, do recolhimento e no
como um objetivo em si. Aps as tcnicas assimiladas, tenho que esquec-las. O que j ,
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incorporado est. Vir embutido nas mnimas aes executadas. Ao pblico no interessa
ver um ator bem "treinado", o que lhe interessa um ator capaz de conduzi-lo ao
imaginrio, capaz de arranc-lo da cadeira do teatro e transport-lo para territrios
imagticos e sensoriais no navegados. E essa proeza no se atinge somente com talento e
predestinao mas com muito suor e trabalho.
Acho que um treinamento tcnico ainda continua sendo necessrio, para se aprender a liberar o corpo de seus hbitos cotidianos e chegar a controlar a conscincia. Uma vez que essas tcnicas so adquiridas, esto prontas para serem jogadas fora. Ou seja, o ator no se utiliza diretamente de seu treinamento tcnico quando se encontra, mais tarde, no palco. Simplesmente aprendeu a liberar-se para poder representar. Treinamos para atingir uma tcnica que em seguida jogamos fora para passar ao estgio da criatividade.22
Trata-se do conflito entre duas necessidades: por um lado, a liberdade absoluta na abordagem, o reconhecimento do fato de que tudo possvel, e, por outro lado, o rigor e a disciplina que fazem com que tudo no seja no importa o qu. Como situar-se entre o tudo possvel e o no importa o qu? A disciplina, em si, pode ser quer negativa, quer positiva. Ela pode fechar todas as portas, negar a liberdade, ou ao contrrio constituir o rigor indispensvel para sair da lama do no importa o qu. por isto que no h receitas. Permanecer demasiado tempo na profundidade pode ser enfadonho. Permanecer demasiado tempo no superficial, torna-se banal