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CORPO, TEMPO E ENVELHECIMENTO
DELIA CATULLO GOLDFARB
Este texto, produto da dissertao de mestrado Defendida no programa de Psicologia Clnica da PUC-SP em 1997,
sob orientao do Prof. Dr. Renato Mezn, foi publicado pela Editora do Psiclogo em 1998.
SUMRIO
Apresentao............................................................................ 1
Introduo: O SUJEITO DO ENVELHECIMENTO......... 8
Captulo I: A QUESTO DO CORPO...............................17
1-As fontes na filosofia.................................... 19
2 -O corpo na psicanlise.................................. 22
3 -O velho......esse outro.................................... 33
Captulo II: O TRABALHO DO TEMPO............................ 41
1- Tempo e psicanlise...................................... 43
2- O tempo e a questo clnica.......................... 53
3- Envelhecimento e projeto identificatrio..... 56
4- Histria ou repetio,
reminiscncia ou depresso......................... 58
5- Sobre a morte............................................... 61
6- A Fuso Pulsional........................................ 63
Captulo III: ENVELHECER.....CERTAMENTE................. 68
1- Algumas vias para o envelhecimento........... 69
2- O Velho Freud.............................................. 79
Concluso.................................................................................... 85
Bibliografia................................................................................. 91
A P R E S E N T A O
_______________________________________________________________
Eros o mais belo, e apresso-me a dizer por qual motivo:
antes de mais nada, caro Fedro, por ser o mais jovem dos deuses
e dessa qualidade ele prprio se encarrega de ministrar-nos uma
prova evidente: a de que fugindo, evita ser alcanado pela
velhice, que inegavelmente em si mesma rpida, como se
depreende do fato de vir a ns mais depressa do que deveria.
Eros, de conformidade com sua prpria natureza, sente
verdadeiro dio velhice e no suporta sua vizinhana, nem
mesmo a grande distncia.
Discurso de Agato
O Banquete
PLATO
1
As limitaes corporais e a conscincia da temporalidade so problemticas
fundamentais no processo de envelhecimento, aparecendo de forma reiterada no
discurso dos idosos, embora possam adquirir diferentes nuanas e intensidades
dependendo da sua situao social e da sua prpria estrutura psquica. Corpo e tempo se
entrecruzam no devir do envelhecimento, e das formas desse entrecruzamento nascero
as mltiplas velhices. Mas no podemos deixar de considerar que esta articulao ocorre
em um determinado contexto social e poltico que a influencia e determina nosso
particular modo de abordagem.
Queremos ento salientar que ao falar de velhice percebemos que aquilo que
supnhamos saber no suficiente para defini-la, e mais ainda, verifica-mos que esse
saber precrio produto de uma viso parcial engendrada na prtica de cada profissional
e de preconceitos fortemente enraizados no cultural. Ento, de que realmente falamos
quando falamos de velhice? E quando falamos do velho? Do velho reivindicativo que
briga com todo mundo e por tudo, ou do velho passivo que aceita seu destino sem
reclamar? Do velho engajado, ativo e divertido, ou do outro deprimido e solitrio?
Daquele que vive em famlia ou do que foi depositado em um asilo? Da velha elegante
que passeia nos bairros nobres, ou da faxineira que ainda ajuda a criar os netos? Do
velho que trabalha a nosso lado ou daquele que renunciou a lutar? Dos que
renunciaram sexualidade ou dos que reivindicam seu direito ao prazer ? Dos que vemos
na fila do banco ou no banco da praa? Da velha bruxa? Do velho sbio? Do doente?
Dos poderosos ou dos marginalizados?
Falamos de todos eles, j que so personagens conhecidos na nossa
cultura; falamos de um velho em particular e da velhice como categoria. Mas
fundamentalmente, atravs de todos eles falamos do velho que temos dentro de cada um
de ns, do velho de nossa famlia, daquele que entrou muito cedo na nossa histria e que
direciona nosso olhar para todos os outros. Falando de todas as velhices (dos outros)
sempre falamos de uma velhice (a nossa) e dos muitos velhos que poderemos chegar a
ser. Da velhice que desejamos e da que tememos. Mas se cada sujeito tem sua velhice
singular, as velhices so incontveis.
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No seria verdadeiro acreditar que s o crescimento populacional e o
aumento das expectativas de vida provocaram o colapso social que levou decadncia
dos sistemas previdencirios de todo o mundo nas ltimas dcadas. A m distribuio
dos recursos financeiros e tecnolgicos submetem uma grande parte da sociedade a
nveis de extrema pobreza, que afeta especialmente os setores menos participantes do
processo produtivo, como o caso das crianas e dos idosos.
A populao idosa cresce dia a dia e est cada vez mais pobre. Em meio a
esta realidade e como resposta a uma demanda social (e no s por motivaes
subjetivas, individuais) uma prtica clnica e elaboraes tericas comeam a aparecer no
universo da psicanlise. Temos conhecimento de numerosos trabalhos importantes na
Frana e na Argentina, onde muitos psicanalistas trabalham h anos sobre estas questes.
Acreditamos que isto se deva, entre outros fatores, ao fato de nesses pases haver uma
importante tradio de atividade sindical altamente politizada. Os aposentados
argentinos, sindicalizados em sua esmagadora maioria, beneficiaram-se durante dcadas
das assim chamadas obras sociais dos sindicatos que foram absorvendo ao longo dos
anos numerosos profissionais, especialmente das reas da sade e do servio social.
Foram assim desenvolvidos muitos projetos e pesquisas de ressonncia internacional,
embora muito deles tenham fracassado na atual conjuntura poltico-econmica.
Quando se deseja abordar a questo do envelhecimento do ponto de vista da
psicanlise, uma das maiores dificuldades a ser enfrentada a falta de bibliografia
especfica sobre o tema. Seria falso dizer que o mesmo nunca interessou aos
psicanalistas, como testemunham os trabalhos de Abraham (1920), Ferenczi (1921),
Erikson (1970)e Eliot Jaques (1963, citado por Krassoievitch, 1993) entre outros, mas
esta rea teve pouco desenvolvimento entre os seguidores de Freud. Poderamos pensar
que esta atitude talvez se deva ao fato do prprio Sigmund Freud ao menos em trs
ocasies, ter-se mostrado contrrio aplicao do mtodo psicanaltico em pacientes de
idades avanadas. Ele diz: A aplicabilidade da teoria psicanaltica apresenta as
seguintes limitaes: exige uma determinada maturidade intelectual dos doentes, sendo
portanto intil nas crianas e nos adultos dbeis ou incultos. Quando se trata de pessoas
de muita idade, a durao do tratamento, correlativo quantidade de material
acumulado,
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resultar excessivo, e talvez seu fim seja coincidente com o comeo de um perodo da
vida em que j no se atribui grande importncia sade nervosa (Freud 1898,T I, pg
155)
Quando tinha aproximadamente 47 anos escreve o seguinte: Em uma
idade prxima aos 50 anos criam-se condies desfavorveis psicanlise. A
acumulao de material psquico dificulta o trabalho, o tempo necessrio para a
recuperao torna-se longo demais e as possibilidades dos processos psquicos acharem
novos caminhos comeam a se paralisar (Freud 1904, T II, pg 396). Um ano mais
tarde, ainda acrescentaria a idade dos doentes desempenha tambm um papel
importante na sua seleo para um tratamento analtico, pois, em primeiro lugar, as
pessoas prximas aos 50 anos frequentemente carecem da plasticidade dos processos
anmicos necessria para se empreender uma psicoterapia. Os velhos no so educveis.
E em segundo lugar, a acumulao de material psquico prolongaria excessivamente a
psicoterapia (Freud 1904, T II, pg. 400):
Para compreender o fato de pessoas prximas aos 50 anos serem
consideradas velhas, devemos considerar que, nos albores do sculo XX, alm da
expectativa de vida no ultrapassar os 50 ou 55 anos, a sociedade tradicional da pr-
guerra reservava para estas pessoas o papel social de velhos. E a psicanlise tinha ainda
muito caminho a percorrer.
Corrobora esta idia o fato de, em 1937, Freud reconhecer a existncia de
rigidez, resistncia mudana e esgotamento da plasticidade (fenmenos que
impossibilitam a psicanlise) em pessoas muito jovens, o que demonstra que nessa poca
Freud j pensava que estes fenmenos se relacionam mais com o quadro clnico do que
com a idade do sujeito
Dentre os seguidores de Freud que mencionvamos h pouco, foi Karl
Abraham quem mais contribuiu a uma melhor compreenso desta questo. Desde 1907
atuou como colaborador de Freud e foi Presidente da Sociedade Psicanaltica de Berlim e
da Sociedade Psicanaltica Internacional. Seu trabalho se caracterizava por um agudo
rigor terico baseado em uma rica experincia clnica. Em 1920 escreve: Podemos
esperar que no comeo da involuo, uma pessoa se sinta menos inclinada a privar-se
de uma neurose que tenha sofrido durante quase toda sua vida. E prossegue: Durante
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minha prtica psicanaltica tratei pessoas de mais de quarenta e at de cinqenta anos
de idade. No comeo hesitara em tom-los em tratamento, mas vrias vezes os prprios
pacientes insistiam, j que tinham sido tratados por outros mtodos sem resultado
algum......Para minha surpresa, um nmero considervel deles reagiu favoravelmente
ante o tratamento. Conto essas curas dentre alguns de meus casos mais bem sucedidos
No mesmo texto ainda acrescenta: O prognstico mais favorvel se a
neurose apareceu com toda sua gravidade bem aps a puberdade e se o paciente
conseguiu desfrutar de alguns anos de atividade sexual prxima normal e de um
perodo de atividade social til. Os casos desfavorveis so aqueles em que ocorreu na
infncia uma neurose obsessiva etc, e como nos casos j mencionados, aqueles que no
conseguiram uma atividade prxima do normal; e afirma: So da mesma forma estes
os casos em que a psicanlise fracassa tambm com pacientes mais jovens (citado por
Krassoievitch, 1993, pg 69).
Entre os casos que Abraham descreve esto um paciente obsessivo de 53
anos, outro de 50 que sofria de depresso melanclica, uma mulher de 41 anos com
agorafobia. Como j mencionamos, estes sujeitos, adultos jovens para os padres atuais,
nas primeiras dcadas deste sculo j se encontravam na chamada idade involutiva.
Observamos tambm, no sem uma certa surpresa, que estes
autores usavam o conceito de involuo sem sequer questionar sua atribuio ao
processo de envelhecimento, quando muitos deles, e at seu prprio mestre,
continuavam evoluindo intelectualmente, legando ao mundo magnficas obras,
produzidas de forma criativa e original, apesar da idade avanada. Certamente, a idade
necessria para ser reconhecido (ou acusado) como velho mudou, o preconceito no.
No ano de 1961 so publicados os comentrios de Hanna Segal a respeito
de um caso clnico de um homem de 74 anos. Na apresentao a autora esclarece:
Acredito que seja interessante apresentar este caso, j que frequentemente devemos
decidir se iniciamos ou no a anlise de um paciente determinado e se sua idade
avanada no constitui um obstculo para o tratamento. Acho que seria de interesse
informar sobre o tratamento de um homem de 74 anos concludo com sucesso e at
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onde eu possa julgar, com excelentes resultados clnicos. Nas suas concluses a autora
acrescenta: No posso dizer que a cura analtica tenha sido completada e se meu
paciente fosse adolescente ainda precisaria de muitos anos de anlise para ter a
garantia de um desenvolvimento futuro saudvel e frutfero. Mas s vezes a anlise
produz pequenas mudanas que significam grandes diferenas. No caso de meu paciente
acho que a pequena mudana foi uma virada de mecanismos depressivos, o que lhe
permitiu enfrentar a perda da vida de uma forma mais depressiva e menos persecutria,
e como conseqncia, sentir que podia apreciar e gozar a vida que ainda lhe restava
(Segal, 1961)
Apesar das recentes aberturas neste campo de aplicao
da psicanlise, observamos algumas resistncias sua aceitao. Acreditamos que tal
fenmeno seja consequncia de preconceitos que vo desde a crena de que qualquer
interveno intil, j que os velhos no seriam modificveis e esto perto do fim, at o
medo de que os pacientes idosos morram durante o tratamento, o que sem dvida
mobiliza a prpria onipotncia; mas bastante plausvel que ele se deva bem mais
negao do prprio processo pessoal de envelhecimento do que a diferenas imanentes
s diversas teorias . Um fato inegvel: o profissional que, desde qualquer rea do
conhecimento se dispe a ouvir um idoso, s conta com a negao como estratgia para
evitar o confronto com seu prprio destino. Ele sabe que se tiver sorte, e no morrer
jovem, chegar l . E este chegar l na nossa sociedade moderna, no nada alentador.
Trabalharemos ento com uma certa representao social do velho e da
velhice que, como construo coletiva, est enraizada no nosso tempo histrico,
determinando atitudes e orientando estratgias. Nosso ponto de partida ser uma idia
predominantemente presente na nossa sociedade segundo a qual se atribui a sujeitos de
diferentes idades cronolgicas um estado de decrepitude e inutilidade, sem esquecer que
as prprias vtimas, frequentemente, assumem este lugar e incentivam estas atitudes.
Porm, veremos tambm como a auto-imagem dos idosos e as funes sociais que
exercem, muitas vezes no correspondem ao que a sociedade inevitavelmente lhes
outorga em temos de atributos negativos. Veremos como a imagem do corpo e a
representao do tempo constituem dois possveis eixos da anlise para se compreender
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a construo da subjetividade na velhice e os movimentos que podem ajudar, seja o
sujeito idoso , seja quem com ele trabalha, a quebrar e reinventar esta representao
social negativa.
Enfim, este trabalho pretende dar uma contribuio compreenso das
questes do envelhecimento desde o ponto de vista da psicanlise, e isso na convico de
que no pode esgotar toda a abrangncia do tema, cuja riqueza torna qualquer
aproximao limitada e restritiva. S um movimento no sentido da transdisciplinariedade
poder evitar que este objeto de estudo se perca nas limitaes que uma abordagem
parcial poderia-lhe infligir, permitindo que ele mostre a dimenso que lhe cabe no atual
universo do conhecimento .
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INTRODUO
O SUJEITO DO ENVELHECIMENTO
_____________________________________________________________________________
.................................................... Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mo pesada. Rugas, dentes, calva... Uma aceitao maior de tudo, e o medo de novas descobertas. Escreverei sonetos de madureza? Darei aos outros a iluso de calma? Serei sempre louco? sempre mentiroso? Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo? H muito tempo suspeitei o velho em mim. Ainda criana j me atormentava.
Hoje estou s. Nenhum menino salta de minha vida, para restaur-la. Mas se pudesse recomear o dia! Usar de novo minha adorao. Meu grito, minha fome...Vejo tudo impossvel e ntido, no espao. .............................................. Que confuso de coisas no crepsculo! Que riqueza! sem prstimos, verdade. Bom seria capt-las e comp-las num todo sbio, posto que sensvel: uma ordem, uma luz, uma alegria baixando sobre o peito despojado. E j no era o furor dos vinte anos nem a renncia s coisas que elegeu, mas a penetrao no lenho dcil, um mergulho na piscina, sem esforo, um achado sem dor, uma fuso tal, uma inteligncia do universo. Comprada em sal, em rugas, em cabelo.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Versos Boca da Noite
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O aumento da populao idosa em um meio social marcado pelo
progresso tecnolgico provoca uma considervel e constante mudana de valores, com a
transcendncia simblica da existncia deixando lugar ao efmero da imagem, e com
uma clara transformao no campo da famlia e, consequentemente, nos processos de
filiao.
Na literatura especfica sobre o tema, uma das primeiras questes a
chamar a ateno do leitor o uso frequente de eufemismos para nomear a velhice e tudo
o que a ela se refere; falida tentativa de suavizar o peso que a palavra velho causa na
nossa sociedade. Parece-me que a velhice, como alguma coisa da ordem do diablico,
no pode ser nomeada sem provocar medo e rejeio.
Neste sculo assistimos ao quase desaparecimento do substantivo velho, s
permanecendo no uso corrente sua funo adjetiva, quando falamos de coisas antigas ou
usadas. O substantivo velho deu lugar a um senhor de terceira idade ou uma senhora
de idade avanada, e a muitas outras tentativas de nomeao de alguma coisa que no
mais nominvel no discurso do homem da modernidade. Ora, se no tem um nome, pode
t-los todos, e ento a velhice vira uma espcie de buraco negro, onde qualquer
interpretao pode entrar, qualquer representao ser possvel e onde permanecemos
ignorantes sobre o que realmente contm. Queremos dizer com isto que o fato de ser
jovem ou velho, aparentemente to simples para a conscincia individual, passa a tornar-
se incerto quando percebemos que as noes de juventude e velhice sofrem srias
transformaes ao longo de nossa existncia. Quando temos 5 anos o velho tem 30,
quando atingimos os 40, o velho no pode ter menos de 70. E quando estamos nos
80.........o velho sempre o outro, como dizia Simone de Beauvoir (1970), que inclua a
velhice na categoria dos irrealizveis sartreanos. Irrealizvel porque no podemos
reconhecer a velhice em ns mesmos, s podemos v-la nos outros, embora eles tenham a
nossa idade.
A dificuldade principal para categorizar a velhice consiste em que ela no
unicamente um estado, mas um constante e sempre inacabado processo de
subjetivao. Assim podemos dizer que na maior parte do tempo no existe um ser
velho, mas um ser envelhecendo . Jack Messy (1993, pg 33) diz: Se o
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envelhecimento o tempo da idade que avana, a velhice o da idade avanada,
entenda-se, em direo morte
Como teorizar acerca de um conceito indefinvel como tal? Embora todos
saibamos reconhecer um velho, muito difcil defini-lo; com qual parmetro o faramos?
Poderamos usar um referencial biolgico que desse conta da aparncia ou das patologias
tidas como clssicas para este perodo da vida, como cabelos brancos, rugas, osteoporose,
artrose, hipertenso, perda de memria, cardiopatias etc; mas se de um lado estes sinais
se manifestam muitas vezes bem antes de que uma pessoa possa ser definida como velha
ou em processo de envelhecimento, de outro a cincia atual est colaborando para
superar a maioria deles, e ento eles nada definem .
Poderamos talvez arriscar uma definio mais psicolgica, tomando
parmetros como enrijecimento do pensamento, certo grau de regresso, tendncia a um
certo tipo de reminiscncia ou depresso. Mas nada disto fala de todas as velhices,
assemelhando-se mais a um apanhado de negatividades que a uma descrio
correspondente a uma categoria universal. Tampouco podemos defini-la desde um ponto
de vista social; a aposentadoria, por exemplo, no faz de um sujeito um velho, como o
direito ao voto no faz de um adolescente um adulto. Vemos assim que, apesar de
existirem sinais mais ou menos universais, para cada cultura, sobre o que seja a velhice,
nem individualmente nem em conjunto elas do conta de uma definio categorizante.
Como definir ento um objeto de estudo, se falamos de algo que parece
no existir seno como construo sempre mutante, como interpretao individual e
cultural sobre o percurso da prpria existncia e sobre a existncia dos outros ? Como
falar de um objeto cuja representao aparece silenciada quando nos remete
impossibilidade da representao da prpria morte?
De que sujeito falamos, quando como psicanalistas falamos do velho? O
sujeito velho que fala na clnica e na vida nos fala de tempo o tempo todo. Fala-nos de
uma conscincia de finitude, fala de morte e de um corpo imaginrio que se nega a
envelhecer e que no se reconhece no espelho. Fala de temporalidade.
Faz-se ento necessrio um recorte, considerando que as
conceitualizaes atuais sobre o envelhecimento se fundam, como bem diz Joel Birman
...num campo de valores, implicando uma tica, uma poltica e uma esttica da
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existncia...(Birman 1995, pg 30). Formas de ser no mundo reguladas por escolhas e
satisfaes que orientam estratgias que podem ser de incluso ou excluso do idoso do
campo social, fundantes da singular subjetivao do ser velho. Consequentemente,
alm do sujeito da psicanlise, estaro sempre presentes, ao falarmos de velhice, o sujeito
da antropologia, da filosofia, e o sujeito social.
Nas sociedades tradicionais a figura do velho representava a sabedoria, a
pacincia, e transmitia os valores da ancestralidade: era ele quem detinha a memria
coletiva; quem, atravs da evocao e da transmisso oral, construa uma narrativa com a
qual se incorporava (fazia-se corpo) cada indivduo na histria do grupo, outorgando-
lhe uma filiao bem mais abrangente do que conhecemos atualmente, quase restrita ao
campo do familiar. O velho, ento, era um elemento na vida do jovem que colaborava
para sua ancoragem no registro do simblico, e este era o lugar simblico para a velhice.
Com as sucessivas transformaes que se operam no mbito social a partir
do sc. XVIII e que culminam com a revoluo industrial, h uma grande mudana de
valores: o grupo que vive e trabalha junto deixa de ser fundante de tradies (e
subjetividades) e o indivduo isolado na famlia nuclear, livre das ataduras da religio e
da tradio, passa a ter um valor quase que exclusivamente pelo que produz. Assim, os
valores tradicionais vo se perdendo em favor de uma sociedade individualista onde o
velho, por no ser reprodutor de vida nem produtor de riqueza, nada vale; o valor social
da velhice passa ento a ser associado inutilidade e decrepitude.
Chegados neste ponto, podemos sem dvida dizer que em nosso tema
encontram-se fundamentalmente implicados aspectos de ordem histrica, social, e
finalmente poltica. Mas, como eles podem se articular com um referencial terico como
o da psicanlise? Para uma possvel resposta a esta questo sugerimos a leitura de
outro artigo do mesmo autor, que nos oferece uma interessante reflexo a este respeito.
Ele sustenta que o fato das autoridades lidarem com a coisa pblica como se fosse a
coisa privada, e a no delimitao simblica dessas fronteiras provoca uma certeza da
impunidade sobre a qual se constitui uma crise de valores. Assim imperativo referir-
se a um registro tico onde ....... o que se evoca a idia e o valor de
cidadania..... a categoria de cidadania tem a tica como sendo seu Outro, de
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forma que pensar nas condies de possibilidade da cidadania implica em enunciar os
fundamentos ticos da poltica e da sociabilidade (Birman, Boletim 60 pg 6)
Ao se falar de cidadania e de poltica evoca-se a idia de sujeito do
direito, conceito este prprio modernidade, e que por sua vez remete idia do
indivduo como valor social; mas estes conceitos que se originaram na Grcia antiga
chegaram ao sc. XVIII deformados pelas vicissitudes do poder. Perderam parte de sua
magnitude original e hoje referem-se primordialmente a uma idia de valor individual,
onde cada cidado vale pelas prprias realizaes, no sendo determinado nem
responsvel pelo fato comunitrio. o indivduo que orgulhosamente se faz s.
Ento, como consequncia deste processo, perdem-se os referenciais nicos e seguros de
ordenamento social tal como eram sustentados pela sociedade tradicional, fato que
inaugura a existncia de um indivduo - outrora sustentado pelas rgidas normas sociais
e as obrigaes do cl, e psiquicamente identificado com os campos da razo, da
conscincia e da vontade- que se encontra agora dividido pelas dvidas inerentes aos
novos sistemas de valores e pelas angstias das livres escolhas prprias do liberalismo.
Um sujeito que parece existir na firme convico de nada dever a nenhum outro.
O resgate da verdadeira cidadania o resgate da possibilidade de existir
para o Outro. A garantia de ser olhado como algum que s se garante como ser social
na medida que possa exercer seus direitos. Com base neste sujeito do direito que surge
o sujeito da psicanlise, que no mais que o sujeito do desejo, ou seja uma construo
histrica ancorada nos fundamentos da modernidade. A psicanlise nasce
paradoxalmente como produto desta modernidade para ser sua grande questionadora.
O sujeito da psicanlise vem dar uma resposta s angstias de um
individuo como j dissemos dividido, descentrado , dominado por um inconsciente que
fala por ele. Este sujeito do desejo funda-se na alteridade, antecipa-se no desejo parental
que o determina como sujeitado ao desejo do outro.
Aqui retomamos o ponto de confluncia de vrias reas do conhecimento:
questo da tica, a questo do outro em nossa constituio como sujeitos, em nossa
atuao como cidados, em nossa prtica poltica que determinar os limites entre o
pblico e o privado, o individual e o comunitrio, e o que poder formar parte de nosso
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universo ou ficar defensivamente excludo do mesmo, j que de alguma forma ameaa o
individualismo e a realizao narcsica mais primarizada.
Na nossa cultura no nascemos para sermos iguais, nascemos expulsos da
comunidade que nos engendra porque somos concebidos para sermos diferentes,
maravilhosos, nicos, para sermos melhores que os nossos antepassados recentes e
destinados a realizar tudo que lhes foi impossvel. Mas um sujeito continua a se
constituir por dois caminhos: por um lado, tenta coincidir com as expectativas que os
outros, especialmente os pais, tem a seu respeito, ser a imagem que pode satisfaz-los;
por outro identifica-se com os valores da cultura, do social. Caso exista uma crise nesse
aspecto, a tendncia ser de correr atrs de imagens que assegurem uma certa identidade,
e no de valores que ofeream identificaes mais ou menos permanentes. (Calligaris,
Boletim 86)
Se os valores da tradio j no oferecem nenhuma segurana, se o
patrimnio moral herdado carece de todo valor, como operar esta identificao
simblica? O que fazer com tudo aquilo que faz parte de um universo simblico? A
resposta parece bvia: ocorre um processo de descategorizao, de excluso.
Cabe ento perguntarmos sobre a particular subjetivao do ser velho
em um momento histrico onde a velhice perdeu as atribuies prprias da sociedade
tradicional, e onde parece ser mais uma inveno social, uma categoria na qual
possvel depositar tudo o que remete inutilidade, dor, finitude e morte e que
assim expulsa em direo s bordas, marginalizada.
A maioria das culturas conhecidas na atualidade contam com uma
considervel bagagem de condutas negativas em relao s pessoas idosas, muitas delas
operadas de forma inconsciente, e muitas outras francamente explicitadas. Em 1973,
Butler estudou este fenmeno sob o nome de ageism, e mais tarde, na Argentina ,
Leopoldo Salvarezza chamou-o de viejismo. Este conceito define ...um conjunto de
preconceitos, esteretipos e discriminaes que se aplicam aos velhos simplesmente em
funo de sua idade..... Este um preconceito comparvel a outros que se aplicam s
diversas minorias conhecidas, e inclui a chamada gerontofobia que se refere a uma
conduta, felizmente menos frequente, caracterizada pelo medo ou dio irracional aos
velhos. (Salvarezzza, 1993, pg 23)
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Retomando o que at aqui foi analisado percebemos que na modernidade o
velho no existe sob signos positivos de incluso, no considerado produtor de bens
nem um consumidor importante; s muito recentemente esta imgem comeou a mudar e
assistimos ao surgimento de um mercado exclusivo para idosos que no se restringe a
medicamentos e servios de sade. Perdendo seu valor social, perde seu valor simblico
positivo. Passa assim a ocupar um lugar marginalizado da existncia humana, transforma-
se numa espcie de sujeito em suspenso , sujeito sem projetos. Sem futuro, ser ento
sujeitado pelo passado, que na forma de uma reminiscncia repetitiva, produzir um
discurso que perder significao social se ningum o escutar. assim lanado a uma
vida sem sentido, sem futuro, numa violenta marginalizao do circuito do desejo. Ento
precisa ser isolado, escondido, para que os mais jovens no tenham que ver neles seu
prprio futuro de carncia de recursos, de sade, de fora e poder. Assim, passa a
simbolizar de maneira muito clara a impotncia e a castrao, onde os jovens depositam
os aspectos mais denegridos e rejeitados de seu prprio Eu.
O velho, ento, impotente e incapaz de superar criticamente o modelo
vigente que prioriza o jovem, belo, forte e poderoso, a ele se submete tentando apagar as
diferenas, passar para o interior do crculo de poder, fazendo tudo por se incluir, muitas
vezes de forma manaca e caricata, ou caindo no isolamento, na renncia ao desejo.
O sujeito produto de um encontro, de uma articulao entre interioridade e
exterioridade, e esta no apenas fundante de subjetividade, mas tambm constitui o
campo onde se encontram os objetos de sua satisfao. A violncia exercida atravs do
discurso de exaltao da juventude e da produtividade prope um modelo desvalorizado
com o qual o velho se identifica, anulando sua condio desejante e seus direitos de
cidadania. Ento, a falta de um reconhecimento social para a velhice, a falta de um lugar
simblico, o fato de no mais ser fonte de prazer, resulta numa desnarcisao do sujeito.
Isto , numa falta de investimento do ambiente em direo a esse sujeito, e vice versa, o
que impede a elaborao da perda e provoca um crescente empobrecimento da vida
afetiva. Frequentemente, a resposta a este processo a depresso ou a demncia como
defesa do ltimo baluarte narcsico.
Se o limite da vida humana a morte, a velhice a fase da existncia que
est mais prxima deste horizonte. Por esta razo, os velhos so suportes ideais para a
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maior parte das significaes negativas que a eles se referem. Podemos observar como
muitas das aes supostamente destinadas a cuidar dos velhos, no so mais que
subterfgios para mant-los isolados, assim como muitos discursos elogiosos no so
mais que disfarces para encobrir o que de ameaador e angustiante a velhice encerra em
nosso imaginrio social.
Na velhice, perodo de perdas de objetos significativos e de lugares de
reconhecimento simblico, falha frequentemente a funo reguladora do Ideal do Eu:
ento, no confronto entre o Eu Ideal e a realidade corporal, presentifica-se a
incompletude, que como uma avalancha arrasta todas as imagens narcsicas que foram
constituintes do Eu. Abrem-se assim buracos por onde se filtram as fantasias
inconscientes de castrao e aniquilamento ligadas a um Eu fortemente desvalorizado.
Perde-se a beleza fsica padronizada pelos modelos atuais, a sade plena, o
trabalho, os colegas de tantos anos, os amigos, a famlia, o bem estar econmico, e
fundamentalmente, a extenso infinita do futuro, e embora a qualidade de vida seja
preservada, no pode ser evitado o sentimento de finitude que inexoravelmente se instala.
A conscincia da prpria deteriorao pe fim onipotncia. Despojado da
beleza e da sade da juventude, de sua capacidade de produtor de bens e de reprodutor de
vida, o corpo, em declnio, acaba com a fantasia de imutabilidade e imortalidade.
Ser velho pode muitas vezes significar a perda da iluso da prpria
potncia, aceitar o domnio inelutvel da pulso de morte e apesar disso, continuar
lutando. Luta difcil, porque o luto que deve ser elaborado o da prpria vida, um luto
que age por antecipao, luto por um objeto ainda conservado, porm condenado: e a
ameaa de aniquilao pela morte no um sentimento ao qual algum se adapte. O Eu,
antes de qualquer outra coisa, exige continuidade.
A morte este pano de fundo sempre fugidio, irrepresentvel, que
constitui a violncia prpria do ser temporal, ser para a morte. O sujeito se configura nas
trs dimenses do tempo: ante os obstculos do presente, evoca o passado em busca do
sentido necessrio e joga para o futuro as possibilidades de reparao; porm, se o futuro
no mais existe, o sujeito se afunda em um futuro de no-ser que o arranca
violentamente do campo do desejo.
15
Atualmente observamos que, com a diminuio da taxa de natalidade e o
aumento das expectativas de vida, as famlias ficam cada vez menores e seus membros
cada vez mais velhos; estes fatos, somados exaltao das liberdades individuais, faz
com que exista uma maior visibilidade social da velhice, que colabora para um
reinvestimento nesta faixa etria , no sentido de outorgar-lhe um novo reconhecimento
simblico.
Em alguns pases existe em nossos dias um grande investimento social na
velhice, que garante alm de um merecido bem-estar, o exerccio de uma elementar
cidadania. Lamentavelmente no este hoje o caso de Amrica Latina, onde qualquer
iniciativa depende quase que exclusivamente da esfera privada e beneficia pequenos
grupos privilegiados com a sorte de ter acesso a servios diferenciados.
A mdia , com seu enorme poder de reagir e gerar mudanas, colabora para
este novo reconhecimento. Verificamos a presena cada vez mais macia de campanhas
publicitrias dirigidas a pessoas com mais de 60 anos, programas tursticos e de lazer,
planos de sade especiais, cursos universitrios exclusivos, escolas de ginstica, danas
e mil formas imaginveis de agrupamentos para esta faixa etria. Porm, preciso
pensar muito seriamente sobre o ponto de vista tico que oriente este reconhecimento, e
que determinar se as aes em relao aos velhos sero de incluso, excluso ou
indiferena; pois segundo as palavras de Foucault : ...as ticas no s refletem
diferenas no modo de subjetivao, mas participam da constituio de subjetividades;
em outras palavras, podemos ver as ticas como dispositivos ensinantes de subjetivao,
elas efetivamente sujeitam os indivduos, ou seja, ensinam, orientam, modelam e exigem
a converso dos homens em sujeitos morais historicamente determinados (citado por
Figueiredo, 1995, pg 43)
16
CAPTULO I
A QUESTO DO CORPO ________________________________________________________________________ Eu no tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos to vazios,
nem o lbio amargo.
Eu no tinha estas mos sem fora,
To paradas, e frias e mortas;
eu no tinha este corao
que nem se mostra.
Eu no dei por conta desta mudana
to simples, to certa, to fcil
__ Em que espelho ficou perdida
a minha face?
CECILIA MEIRELLES Retrato
17
Estou aprisionado num velho corpo BERTRAND RUSSELL
desse corpo priso, ao qual se refere Russell, que queremos falar, desse
corpo que ferramenta, mediador organizado entre a psique e o mundo, atravs do qual o
sujeito reconhecido e com o qual se identifica. Corpo, como genialmente descreve
Ceclia Meirelles, capaz de tais mudanas que at pode chegar a ser sentido como
estranho, a se separar do sujeito ou de aprision-lo por no acompanhar seus desejos.
Mas antes de entrar na especificidade que liga a questo do corpo com o envelhecimento,
vejamos algumas das interpretaes que diferentes reas do conhecimento do a este
conceito.
Atravs da histria da civilizao, diferentes discursos cientficos, poticos
ou religiosos tentaram dar conta da questo do corpo, do mistrio de seu funcionamento,
tom-lo como seu objeto. Cada um com suas prprias concluses, criando controvrsias,
provocando indagaes, falando enfim, de corpos diferentes. Ento, do ponto de vista
conceitual, no h um corpo nico, comum a todas as reas do conhecimento ou das
artes, mas sim diferentes discursos que tentam capturar esta problemtica
Especialmente para o paradigma religioso-cristo, predominante at a
modernidade, o corpo habita a representao fantasmtica da ressurreio, barro
modelado por Deus, ato pelo qual sempre se enlaar a um desejo divino, corpo
submetido e no desejante, cujo interior, invisvel e misterioso, guarda os segredos da
criao divina. Este corpo unificado em uma imagem do visvel, de interior
desconhecido e inexplicvel, preservava o enigma de seu funcionamento. J para a
cincia, no existe nada da ordem do desejo como causa do funcionamento somtico,
nem como explicao para seu destino de dor, prazer e morte.
O olhar da cincia concebe o corpo humano como uma somatria de
rgos e funes e confronta o sujeito com um interior feito de pedaos sobre o qual ele
nada sabe. Assim, um sujeito leigo no pode habitar a causalidade divina da doena
que aflige seu corpo e seu esprito. Para o paradigma cientfico tudo deve ser explicado
pelos eruditos que detm o saber. Os destinos do corpo se situam fora do desejo. O
sujeito profano no pode mais apelar a suas construes fantasmticas para explicar o
prprio corpo, devendo dar crdito a um saber que diz sobre ele mas que lhe estranho,
contrariando frequentemente a certeza da prpria experincia sensorial. A cultura
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outorgar os meios para que cada um se aproprie de diferentes formas desse saber, para
a construo cultural de um modelo do corpo, que embora diferente do discurso cientfico
dele derivado. A eleio dos enunciados depender de quanto estes sejam aptos para
dar conta de um corpo investido pela psique. Mas, qual a proposta da psicanlise para a
questo do corpo? Com que conceitos herdados de outras reas trabalhou Freud este tema
alm, claro est, da influncia biologizante exercida por sua formao mdica? Como foi
a evoluo desta problemtica?
1- AS FONTES NA FILOSOFIA
Em relao questo do corpo, as fontes na filosofia, assim como na
religio na cincia ou na mitologia, so remotas. Escolhemos ento dois filsofos
contemporneos a Freud, representantes do pensamento de sua poca e que tiveram
notada influncia sobre sua produo terica.
Para Nietzsche, que tentava eliminar o dualismo alma-corpo, o
pensamento no est desligado do corpo, e isso a tal ponto que as idias constituiriam
sintomas de sade ou doena, vitalidade ou morbidez. Assim, o corpo seria um revelador
das foras que o dominam ou lutam para domin-lo, e a alma designaria simplesmente
algo no corpo. Designando-a, outorga-lhe existncia e assim sua tentativa fracassa, ao
menos no sentido de poder se omitir do uso de um conceito que se refere a esse algo
que fica fora da ordem do natural.
O corpo chamado de Grande Razo, e o esprito que nele habita, a
Pequena Razo, seu brinquedo e instrumento. Esta Grande Razo que no diz EU, seno
que faz EU, nos remete ao conceito de identificao tal como foi elaborado por Lacan no
estdio do espelho, conceito ao qual voltaremos mais tarde.
Na nova dualidade, corpo natural- corpo da psicanlise, inaugurada por
Freud, e seguida por Lacan, parece haver uma ruptura com os conceitos de Nietzsche,
declaradamente contrrio aceitao de qualquer dualidade; porm no deixa de ser
interessante notar que ele no desiste de falar de alma ou de esprito, especialmente em
seus escritos pstumos, talvez afetado pela conscincia de finitude que s a
proximidade da morte pode outorgar. Ele diz tambm que a pulso matria e
demiurgo de toda concreo do mundo orgnico e cultural. Ora, sendo demiurgo,
ligao entre o humano e o divino, e s podem se ligar duas coisas que esto separadas,
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mesmo que por uma simples diferena, duas coisas que no sejam uma s. Novamente
Nietzsche parece aqui estar se referindo a um conceito limtrofe.
Para este autor, a pulso uma energia que transita entre a Grande e a
Pequena razo, originando-se no corpo. Podemos descobrir nesta idia algumas
coincidncias com os postulados freudianos sobre a pulso como conceito limtrofe e a
noo de apoio. As pulses enunciam urgncias, exigncias, comandos, representaes; a
exigncia pode at mesmo ser enunciada naquilo que contraria radicalmente sua
meta , (transformao no contrrio como destino possvel); toda pulso habitada por
uma natureza artstica, instituidora de formas realizando seu objeto com bela
aparncia (a sublimao como destino). (Giacoia, 1995)
Nietzsche no faz uma diferenciao clara entre Instinkt e Trieb, porm
nos fala de uma Fora (Triebkrafte) sem fundo, misteriosa, com carga energtica
impalpvel, invisvel, plurvoca. Devemos compreender esta fora como quantidades de
energia dinmica, cuja essncia seria seu prprio efetivar-se, produzir efeitos sobre os
outros quantas, instituir uma verdadeira relao de poder. ento uma intensidade que
se constitui em seu efetivar-se. Toda pulso uma nsia de domnio e cada uma tm
sua prpria perspectiva e rea de influncia. (pulso parcial). Assim compreendida, esta
fora pode-se resumir a uma nica forma fundamental de vontade: a Vontade de
Potncia. Assim sendo, a dinmica pulsional s pode ser entendida como uma verdadeira
guerra onde h composio, ajustamentos, alianas entre potncias rivais; o que implica
necessariamente na existncia de resistncias. A Vontade de Potncia s pode existir no
confronto.
A Fora no para Nietzsche vontade de vida, como para Schopenhauer,
porque aquilo que j existe no pode querer existir, e o que no existe tampouco; a vida
s pode querer mais vida, ou seja Vontade de Poder ou Potncia.
Se como faz Nietzsche, a Vontade de Potncia for identificada com a
prpria vida, esta ser ento uma vontade orgnica, prpria no somente do homem,
seno de todo ser vivo; vemos aqui uma clara diferena com Freud, para quem essencial
a diferenciao entre instinto como comportamento biologicamente determinado, sempre
igual, e com objeto especfico e pulso como conceito limtrofe, lbil, que suporta
diferentes destinos e objetos, originadas num corpo sim, porm erogeneizado,
20
atravessado pelo desejo parental, corpo que j muito pouco tem a ver com a biologia. Em
Nietzsche o movimento , ora de unio, ora de diferenciao. Em seu afinco por negar os
dualismos, no pode aceitar as especificidades no naturais da Triebkrafte, que ele
mesmo define como impalpvel e misteriosa. Coerente com seu esforo, atribui
conscincia uma origem biolgica, como ltimo e mais tardio efeito da evoluo
orgnica; assim entendida, a conscincia seria o rgo responsvel pela sobrevivncia, j
que surgiria pela relao do indivduo com o mundo exterior, e obteria atravs da
linguagem um meio de comunicabilidade. Neste processo haveria sempre presente um
carter falsificador pois no todo pensamento que se torna linguagem, que vira
consciente, mas s alguns podem atingir esta forma. Haveria ento um resto indizvel,
que constituiria o inconsciente, embora Nietzsche no use esta denominao, no
conseguindo portanto um lugar terico para o no- representvel.
Schopenhauer, predecessor de Nietzsche, aborda uma problemtica
semelhante inspirado em Kant. Para este h uma diferena entre a coisa-em-si
(noumenon) que existe em si mesma, e o mundo que aparece; este universo dos
fenmenos o objetivo do conhecimento cientfico e se rege pelas formas a priori da
sensibilidade (espao e tempo), o mundo do representvel que inclui o sujeito. A coisa-
em-si, pelo contrrio tudo aquilo que fica fora da representao por no ser acessvel
atravs do conhecimento cientfico. Esta coisa-em-si, raiz metafsica de toda realidade,
a Vontade que Schopenhauer coloca como eixo de seu pensamento; e justamente a crtica
que faz a Kant refere-se ao fato dele ter conferido Razo o papel mais importante em
seu sistema. (Cacciola, 1991)
A Vontade uma, com diversos modos de manifestaes que norteiam e
geram o mundo das representaes, como acontece com a vontade de conhecimento.
Embora o conhecer seja da ordem do sujeito da representao, e o querer
corresponda ao sujeito da vontade, para conhecer o sujeito tem que querer. Temos ento
uma Vontade cega, puro mpeto, irracional, essncia humana, que direciona as escolhas
dos atos dos homens, e uma vontade racional, poderosa, intelectual, que se submete
primeira, definida como o impensado, o desconhecido, o inconsciente, (embora
Schopenhauer, tampouco use este conceito), e que tem absoluta primazia em seu sistema.
O Eu aquele elo temporal entre estas duas manifestaes, o sujeito do querer e o sujeito
21
do conhecer. Colocado desta forma, o dualismo no se coloca entre instinto e pulso,
mas entre a vontade entendida como pulso e o intelecto.
Tanto a Vontade em Schopenhauer, quanto a Fora em Nietzsche,
manifestam-se no corpo, e s em suas manifestaes corporais que podemos
limitadamente conhec-las. No possvel conhecermos a Vontade, mas apenas a
manifestao de sua atividade; s temos acesso a ela mediatizada atravs de suas
representaes. Sua sede so os rgos genitais, ou seja, sua mais importante
manifestao a sexualidade, e seu objetivo a perpetuao da espcie. O querer viver,
um querer viver como espcie. Vemos ento a bvia relao entre o conceito de
Vontade em Schopenhauer e os postulados freudianos sobre a pulso, assim como a
influncia que este filsofo exerceu sobre Nietzsche , e seu papel de precursor ao atribuir
sexualidade um status constitutivo da vida do indivduo, alm de sua funo como
atividade procriadora: com Schopenhauer surge o homem como ser sexual. Pulso de
vida e de morte no s se anunciam em Schopenhauer como formam parte de seu
sistema, e daro a Freud base suficiente para continuar sua elaborao e recolocao no
sistema da Psicanlise que, claro, no deve ser confundida com uma simples
transposio.
Nosso interesse em seguir estas elaboraes foi o de balizar nosso
trabalho para melhor compreender o estatuto do corpo na psicanlise, especialmente no
que se refere ao conceito de pulso, ao que iremos frequentemnete nos referir no
decorrer deste texto. Mas vejamos quais foram, no pensamento freudiano, as
consequncias desta influncia exercida pelos filsofos de sua poca.
2- O CORPO NA PSICANLISE
A questo do corpo na psicanlise parece exigir um retorno ao caminho
traado por Freud desde o Projeto (1895) e consolidado com o longo desenvolvimento da
teoria das pulses. No texto de 1923 O Eu e o Id, ele reafirma a dimenso corprea do
Eu com as seguintes palavras: Na gnese do Eu e em sua diferenciao do Id, parece ter
atuado ainda outro fator diferente da influncia do sistema P (perceptivo) . O prprio
corpo e especialmente a superfcie do mesmo, um lugar do qual podem partir
simultaneamente percepes, externas e internas. Ele objeto da viso como outro
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corpo qualquer, porm produz ao tato duas sensaes, uma das quais pode-se equiparar
a uma percepo interna. A psicofisiologia se ocupou j suficientemente da forma em
que o prprio corpo se destaca do mundo das percepes. Tambm a dor parece
desempenhar um papel importante nesta questo, e a forma em que adquirimos um novo
conhecimento de nossos rgos quando padecemos uma dolorosa doena constitui
qui o prottipo daquela pela qual chegamos representao de nosso prprio corpo.
O Eu um ser corpreo, e no s um ser superficial, ele tambm a projeo de uma
superfcie. (Freud, 1923, T.II, pag 15)
na conscincia, camada mais superficial do aparelho psquico, que
reside o sistema perceptivo, que absorve tanto os estmulos provenientes do mundo
exterior quanto os emergentes do interior do organismo. Sendo a conscincia a receptora
dos estmulos externos, como exigncias de motilidade, dela que partem a maioria das
aes necessariamente organizadas que visam modificar o mundo exterior: Conscincia
e acesso motilidade pertencem ao eu, que assim se define de sada como a parte do
psiquismo voltada para o exterior e dotada por isto mesmo de uma coerncia prpria .
(Mezan, 1982. pag 270)
No ps-freudismo, em certa medida se esqueceu esta dimenso corprea do
sujeito, restando psicanlise um campo restrito pura interioridade do mundo do
pensamento. Mas o conceito de corpo, longe de ser alheio psicanlise, uma das mais
fundamentais questes, j que se articula com a formao da instncia que conhecemos
como Eu.
Cabe aqui tecer alguns comentrios sobre as teorizaes do Dr. Garcia
Roza. Ele nos fala de um corpo natural, dotado de uma organizao e de um modo
dearticulao com o mundo independente da linguagem; e de um corpo ergeno,
submetido linguagem e ordenado por ela. O corpo natural campo de pesquisa da
biologia, e no da psicanlise. Esta dualidade no interessa psicanlise, embora o corpo
ergeno seja objeto de seu estudo. Porm existe uma outra dualidade, que sim do
domnio da psicanlise, constituda pelo que ordenado, quer dizer submetido
linguagem, representado e que inclui tanto a linguagem como a representao do corpo,
e por aquilo que exterior ordem, que catico: as pulses em estado bruto, o corpo
real situado alm da representao, o corpo pulsional. Corpo de uma pulso que no
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fora natural, porm tem potncia corporal, representando as exigncias que o corpo
faz mente, e que no so de origem biolgica. No sendo nem energia fsica nem
psquica, energia pulsional
Temos ento um corpo simblico atravessado pela linguagem, o corpo
da representao, com representao no psiquismo, onde a pulso est representada, sem
entretanto aparecer em forma direta. Ora, se algo se encontra representado em algum
lugar, em outro lugar tem que existir o original; esse outro registro, no representvel, o
corpo pulsional, o corpo da pulso em estado bruto . Da articulao destes dois registros,
surge o terceiro que chamamos corpo imaginrio j que de uma imagem que se trata.
Neste corpo criado como um efeito de superfcie que se constituiro os sintomas
como expresso de um sentido, sentido que este corpo ergeno sempre manifesta
como articulao do pulsional (real) com a linguagem (simblico). E esclarece : No
estou tentando afirmar o corpo da psicanlise como anttese do biolgico, mas
simplesmente afirm-lo como diferena (Garcia Roza, 1990, pag 63) Para este autor,
toda a confuso em relao questo do corpo na psicanlise reside no fato de se pensar
em termos de gnese e no de estrutura. Estruturalmente no h uma instncia anterior
nem primordial. No existe um corpo biolgico sobre o qual a palavra vem impor uma
ordem, existe um corpo que vem a se encontrar com um destino j desejado.
Quando Freud, em 1895, escreve o Projeto de uma psicologia para
neurlogos, est preocupado com a dualidade corpo-alma e com a necessidade de
outorgar a sua teoria a cientificidade que ento lhe era negada. Mas ainda no mesmo
artigo reconhecer, com as seguintes palavras, o fracasso do enfoque
biologizante: .......A comprovao da diferente importncia que tm as diversas partes
do crebro, e suas particulares relaes com determinadas partes do corpo e com as
atividades psquicas leva-nos um passo mais adiante, embora no possamos dizer que
esse passo seja grande. Todos os esforos realizados para deduzir desses fatos uma
localizao dos processos psquicos, ou seja, todas as tentativas de entender as idias
como armazenadas nas clulas nervosas e as excitaes como seguindo o curso das
fibras nervosas fracassaram por completo (Freud, 1895, T III, pag 883) Dever
empreender ainda a tentativa de transpor estas conceitualizaes para o plano do
psquico em A interpretao dos sonhos de 1900 para, j em 1905, nos Trs ensaios
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para uma Teoria Sexual, postular o conceito de pulso com sua fonte no processo
somtico de excitao, seu objeto varivel, a finalidade da satisfao, e as zonas
ergenas como o apoio necessrio de onde emanam as pulses sexuais .
Em 1910, em As Perturbaes Psicognicas da Viso Freud diferencia
as pulses sexuais e as pulses de conservao tambm chamadas de pulses do Eu,
incompatveis entre si, dado que seus objetivos so opostos. Este verdadeiro conflito
entre suas foras engendraria um Eu capaz de se defender das representaes intolerveis
atravs da represso. Teramos ento, pulses do Eu, ligadas conscincia e regidas pelo
Princpio de Realidade que aparece como imposto a partir do exterior do sujeito e pulses
sexuais ligadas a uma atividade fantasmtica e regida pelo Princpio do Prazer. Neste
ponto vemos claramente colocado um dualismo, ou melhor, um confronto ente cultura e
sexualidade.
O passo seguinte de Freud ser a elaborao do conceito de Narcisismo
em Introduo ao Narcisismo de 1914. Aqui a teoria das pulses se complica, porque o
Eu tambm sexualizado, parecendo ento no haver mais espao para as pulses no
sexuais, o que representaria o fim do dualismo pulsional. Faz-se necessrio prosseguir
at o texto de 1915 A pulso e suas Vicissitudes onde o autor recapitula seu trajeto
conceitual e define a pulso dizendo: Se consideramos a vida anmica do ponto de vista
do biolgico, a pulso mostra-se como um conceito limtrofe entre o anmico e o
somtico, como um representante psquico dos estmulos provenientes do interior do
corpo que chegam alma e como uma magnitude da exigncia de trabalho imposta
ao anmico em conseqncia de sua ligao com o somtico (Freud, 1915, T I, pag
1037) Ou seja, um impulso que tem sua fonte no corpo porm no biolgico,
representado no psiquismo, porm no psquico, tem como nica finalidade a
satisfao, que pode ser proporcionada atravs dos mais variados objetos. Isto vale para
todas as pulses sem se distinguir entre sexuais e de auto-conservao. Porm, antes de se
referir aos quatro destinos possveis para as pulses (transformao no contrrio-
orientao contra a prpria pessoa- represso- sublimao) esclarece: Como avanamos
mais no conhecimento das pulses sexuais, limitaremos a elas nossa investigao dos
destinos pelos quais passam as pulses no curso de seu desenvolvimento e da vida
(Freud, 1915, T I, pg. 1039)
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Ainda no mesmo artigo Freud estabelece o carter conservador e
ambivalente da pulso e reconhece a presena, nas tendncias erticas, de componentes
agressivos e destrutivos.Enquanto as pulses sexuais passam por um complicado
desenvolvimento, aparecem fases preliminares do amor como fins sexuais...a primeira
destas fases a incorporao e a ingesto, modalidade do amor que resulta compatvel
com a supresso do objeto e que pode ento ser qualificada de ambivalncia. E
continua: Na fase superior de organizao pre-genital sdico-anal, surge a aspirao
ao objeto na forma de pulso de domnio, impulso para o qual indiferente o dano
infringido ou a destruio do objeto. ( Freud, 1915, T I, pg. 1044)
Estas elaboraes e outras (1) que datam do comeo da primeira
Grande Guerra, so sem dvida o ponto de partida para que Freud, em 1920, vivendo
seus lutos pessoais e os lutos pela humanidade produza a grande virada de 1920 em
Alm do Principio do Prazer onde conceitualiza a Pulso de Vida e a Pulso de Morte.
Neste percurso dos textos sobre a Pulso podemos verificar como Freud vai tomando
distncia de uma formulao biologizante do psiquismo e outorgando questo do corpo
(erogeneizado) um estatuto fundamental no edifcio terico da psicanlise. Por
consider-lo tematicamente mais adequado, deixaremos este tema para ser discutido no
prximo captulo (ponto 5) detendo-nos agora nas teorizaes de alguns seguidores de
Freud que, pela originalidade de pensamento e rigor conceitual, muito tm contribudo
ao enriquecimento desta questo.
Para Piera Aulagnier (1991, cap 2) o corpo faz-se visvel, manifesta-se
atravs de inmeros sinais, corpo manifesto falando de um corpo latente que permanece
oculto . Entre todos os signos possveis do corpo visvel, toma especialmente dois:
emoo e sofrimento somtico, que considera os mensageiros por excelncia do
psiquismo para suas manifestaes no plano somtico. Emoo diferente de afeto,
emoo uma vivncia da qual o eu tem conscincia: sabe o que aquilo que a
provocou e guarda relao com algo sensorial; algo visto, ouvido, tocado, que modifica
o estado somtico de quem a experimenta e estimula uma identificao com quem a
compartilha. ________________________________________________________________________ 1- a este respeito recomendo a leitura dos textos de S. Freud: Consideraciones de actualidad sobre la Guerra e la Muerte (1915) e Lo Perecedero ( 1916)
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O sofrimento, causado por exemplo por uma doena, vem informar que
algo que acreditvamos invulnervel pode ser afetado, que algo que permanecia oculto
pode aparecer, provocando tambm uma reao em quem o testemunha; dizemos ento
que dor e emoo so relacionais, pois realizam uma conexo entre o corpo sensorial e
um corpo relacional. Mensageiros, porque alm de falar das prprias manifestaes
somticas, possibilitam diferentes leituras das reaes dos outros.
Quando um acontecimento ligado dor ou emoo irrompe em uma
histria singular, a construo que o sujeito far dessa ocorrncia depender no s da
conexo particular entre seu corpo e sua psique, mas tambm da resposta que sua dor ou
emoo gerem no outro. Emoo e dor, (2) vo formando sucessivas representaes do
corpo , que se articularo com as motivaes inconscientes , e juntas estas decidiro sobre
a eleio da causa qual o sujeito vai atribuir o sentido histrico dos acontecimentos de
sua vida. A identidade de um sujeito ser ento esta historia que ele mesmo escreve, na
qual fala de seu corpo. A histria do sujeito a histria das marcas relacionais de dor e
emoo em seu corpo; esta sua identidade, e a histria que ele escreve atribuindo
sentidos a estas marcas uma histria que jamais se completa. Tal identidade corporal
que parece sempre definitiva, deve permanecer sempre em aberto, ser uma verso sempre
inacabada, para que o sujeito possa aceitar as mudanas que o tempo impe, sem perder
o sentido de permanncia.
A certeza de habitar um nico corpo, sempre o mesmo, quaisquer que
sejam suas modificaes, a garantia de uma identidade e de uma permanncia na
relao com o outro. Para consegu-lo, o sujeito dever dar o mesmo sentido relacional a
uma srie de experincias, embora tenham acontecido em tempos diferentes, ou seja,
devero ter tambm um sentido temporal.
Seguindo o pensamento de Piera Aulagnier vemos que o reconhecimento
de um outro separado de si, de um espao fora do eu acompanhado de um saber
sobre a autonomia desse outro; sua possibilidade de estar presente ou ausente, de infligir
________________________________________________________________________ 2- Piera Aulagnier esclarece que no toma o prazer como mensageiro porque: enquanto o sofrimento apela ao poder de quem supostamente capaz de modificar a realidade somtica e o meio que envolve o sofredor, o prazer (como depois o gozo) vai acompanhado da mensagem contrria: O que poderia vir a se modificar no corpo ou no exterior vivido como ameaa. (Aulagnier, cap2, pg 131)
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prazer ou dor, ou seja, a capacidade do outro de ser sempre mutvel submete o eu a uma
situao de ser, ele tambm, sempre auto-modificvel, j que se forja na relao com o
objeto investido. Porm, para sustentar a diferena, necessrio que o eu se auto-
represente como o plo estvel dessa relao de investimento. A continuidade desta
relao depender da possibilidade de negociao do eu entre as demandas do prprio id
e as do outro. Por isso Piera Aulagnier no vacilar em dizer que: O eu o redator de
um compromisso identificatrio; o contedo de uma parte de suas clusulas no dever
mudar; enquanto de outras dever ser sempre modificvel e assim garantir o devir desta
instncia (Aulagnier, 1991, cap 5, pag 224)
O corpo mediador entre a psique e o mundo, ou entre duas psiques,
constri-se nessa relao e constri suas causalidades; se o eco do prprio corpo no
mundo no encontra respostas adequadas, se o outro for surdo e cego dor (ou no tiver
a resposta esperada) ir se operar uma desconexo relativa com toda a histria do
sujeito. S a ttulo de comentrio podemos dizer que a compreenso deste ponto ajuda na
explicao de certos fenmenos freqentes na velhice, como o fato de muitos idosos se
demenciarem ao sofrer hospitalizaes rigorosas ou doenas prolongadas. Os modernos
Centros de Terapia Intensiva e sua alta tecnologia isolam o paciente em prol da
preservao de um corpo biolgico sem se considerar as suas necessidades emocionais,
especialmente as de contato com os outros significativos e com um meio social e
cultural. Visitas mais frequentes e prolongadas, uma msica adequada, a presena de
objetos estimados e uma reao mais emocionada por parte da equipe tcnica evitam
um corte radical com o entorno habitual e a consequente retrao da libido.
Tambm para Franoise Dolto (1986) o corpo ferramenta, mediador
organizado entre o sujeito e o mundo, mas ela ir diferenciar esquema corporal de
imagem inconsciente do corpo. O esquema corporal uma realidade de fato, mais ou
menos comum a todos os indivduos de uma cultura, poca e regio determinadas.
Estrutura-se mediante o aprendizado e a experincia, e consciente, pr-consciente e
inconsciente. A imagem do corpo, pelo contrrio, prpria a cada sujeito e est ligada a
sua historia. relacional, depende especialmente da histria libidinal , se presenta como
sntese das experincias relacionais do sujeito desejante e pode ser considerada como sua
encarnao simblica. eminentemente inconsciente; memria da vivncia relacional
28
sempre dinmica pois estrutura-se atravs da relao entre sujeitos e nela que se
inscrevem as experincias relacionais (valorizantes ou no, narcisisantes ou no), que no
so da mera ordem da necessidade mas fundamentalmente do desejo. Quando uma
criana pede um doce, isto se articula com o prazer do contato da boca com o peito;
porm, desprendido do nutricional (mera necessidade), o doce age como prova de amor e
reconhecimento como sujeito desejante. Nesse caso, o doce pode ser substitudo, ele j
no importa. Como as necessidades devem ser satisfeitas de imediato para preservar a
vida, essa satisfao ou essa falta, ligadas ao esquema corporal, no produzem uma carga
narcsica como acontece com as manifestaes do desejo ligadas imagem corporal.
A fonte das pulses, seu lugar, o esquema corporal, mas onde elas se
representam na imagem inconsciente do corpo.Tem que haver um corpo que represente
as pulses, e no importa quo lesionado este esteja. Um sujeito pode no ter pernas e ter
simbolizado o andar, graas relao afetiva com seus pais, que devem ser capazes de
suportar a prpria frustrao e projetar sobre a criana uma imagem saudvel do corpo
simbolizada em palavras. Assim, uma imagem inconsciente do corpo integrado e potente
pode conviver com um esquema corporal deficitrio, o contrrio sendo tambm
possvel..
Como a realidade de fato do esquema corporal depende de nosso contato
carnal com o mundo fsico, ento as experincias de realidade dependero do tipo de
contato do organismo com este mundo, e a qualidade deste contato depender da
integridade do organismo, de suas leses permanentes ou transitrias, das suas sensaes
possveis. Como vemos, h aqui uma semelhana do pensamento de F. Dolto com o
da P. Aulagnier: ambas ligam as primeiras sensaes corporais , os primeiros contatos
com o mundo fsico, s experincias de realidade e ao processo identificatrio.
Contrariando Lacan para quem a experincia do espelho inaugural e
primeira, Dolto afirma que a imagem especular no mais que uma estimulao
sensvelentre tantas outras no processo da produo da imagem inconsciente do corpo .
Para esta psicanalista o corpo da criana que sofre o impacto do espelho no um corpo
fragmentado, disperso; um corpo coeso e contnuo, dotado de um esquema corporal
fruto de seu contato com a realidade fsica e de uma imagem inconsciente do corpo,
produto da vida relacional, do contato afetivo, das experincias amorosas, ambos sempre
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em evoluo, sempre mutantes. O confronto de experincia do espelho ser ento entre
duas imagens: por um lado a imagem inconsciente do corpo, e por outro, a imagem
especular, que contribui para modelar e individualizar a primeira. O que para Lacan o
comeo jubilatrio, para Dolto uma experincia de castrao, que provoca na criana a
constatao dolorosa da diferena que a separa da imagem inconsciente. Imagem
tambm alienante (como para Lacan), porm em outro sentido. Pensamos que o
sentido da experincia especular vai depender da experincia prvia de contato com a
realidade, que determinar o modo singular do impacto afetivo com o espelho. A imagem
especular pode tanto abolir quanto integrar a imagem inconsciente do corpo
Outro fator fundamental nesta experincia a presena do outro, do
adulto presente nesse espao para nomear o que acontece, e para compartilhar este
campo concreto do espelho; a presena do adulto que marcar a diferena entre a
criana e o outro, que lhe ensinar a distinguir as diferentes qualidades da relao com
um outro e com a prpria imagem. Esta experincia de nada valer se o sujeito enfrenta a
falta de um espelho de seu ser no outro.
Quando um beb nasce, ele tem um corpo, mas ainda no tem um Eu nem
um Outro. Ento, como j dizamos, o adulto fala, nomeia, diferencia, deseja. Assim, o
recm-nascido investido de tal maneira que nele so projetadas todas as idias de
perfeio e principalmente todos os sonhos aos quais os pais tiveram que renunciar;
assim, sua majestade o beb representar a reproduo do narcisismo dos pais. Neste
campo de mtua potenciao, o narcisismo do beb nasce e o dos pais renasce.
O Eu do beb no existe ento desde o comeo da vida como instncia
do aparelho psquico, ele deve se constituir. A constituio do Eu e a consequente
possibilidade de sua separao dos objetos o novo ato psquico que permitir o
surgimento do Narcisismo Secundrio e a procura de satisfao nos objetos externos e
separados dele. Mas tambm este um processo doloroso. Quando a criana, em suas
limitaes, v-se confrontada com os ideais impostos pelos desejos parentais, quando a
me falha porque olha para outros objetos que no ela, quando deve esperar pela
satisfao, percebe que j no mais sua majestade o beb, profunda ferida no
narcisismo primrio marcado pela segurana do amor incondicional e imediato. A partir
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deste momento, todo o esforo residir em se fazer amar pelos outros tentando reproduzir
a situao de onipotncia originria, sem jamais consegu-lo.
O Eu Ideal do rei da casa cede espao para outra imagem idealizada, um
Ideal do Eu, desta vez baseado nos imperativos sociais e culturais, transmitidos pelos
pais. A libido assim regida ir se dirigir a muitos outros objetos, sempre falhos e
incompletos, e que sero amados e abandonados, resgatando de cada um deles algum
trao idealizado e incorporado a este difcil caminho de se constituir em um sujeito
psquico. Ideal do Eu, eterno mediador da esperana de alguma vez, nem que seja
apenas por um instante, voltar l.
A partir de Lacan sabemos que, quando uma criana entre os 12 e 18
meses de vida se olha no espelho e finalmente se reconhece, invadida por uma sensao
de jbilo e pensa: Esse sou eu. Mas devido imaturidade neurolgica haver uma
discordncia entre esta imagem virtual, total, que o espelho lhe oferece, e seu corpo
sentido como descoordenado, impotente. A criana se reconhece em uma espcie de
invlucro que lhe traz a iluso de totalidade. Ir se identificar em relao a um outro a
quem anunciar sua descoberta, diferenciar a imagem de seu prprio corpo da imagem
do corpo do outro. Por isso dizemos que o eu imaginrio um eu corporal, j que se trata
da conscincia do prprio corpo operada por uma imagem.
Esta imagem no espelho fascina-a, porm tambm aliena-a, engana-a, j
que no corresponde a seu corpo sentido como fragmentado. E justamente a esse eu
corporal , imagem idealizada de si mesma, a esse eu ideal que a criana ficar presa, e
embora nunca se una a ela, estar sempre a persegu-la.
Lacan diz exatamente o seguinte: suficiente compreender o estdio
do espelho como uma identificao no sentido pleno que a anlise d a esse termo: a
saber, a transformao produzida no sujeito quando ele assume uma imagem cuja
predestinao a esse efeito de fase est suficientemente indicada pelo uso, na teoria do
termo imago. A assuno jubilatria de sua imagem especular pelo ser ainda
mergulhado na sua impotncia motora e na dependncia da nutrio que o pequeno
homem, nesse estdio infans, parecer-nos- portanto manifestar, numa situao
exemplar, a matriz simblica onde o eu se precipita em forma primordial, antes que se
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objetive na dialtica da identificao ao outro e que a linguagem lhe restitua no
universal sua funo de sujeito (Lacan, Boletin 26, pag 16)
Quando trabalhamos com esta noo do estdio do espelho devemos levar
em considerao que esta foi uma das primeiras formulaes de Lacan, anterior questo
do simblico, sendo uma noo elaborada visando entender melhor a questo do
narcisismo em Freud. Quando ele fala do infans mergulhado na impotncia motora ou na
imaturidade neurolgica, ainda no contava com outros conceitos fundamentais em sua
teoria. Desde a perspectiva das elaboraes posteriores vemos que no se trata de um
corpo que vai madurando no sentido biolgico; o corpo no algo que surge por
maturao neurolgica, no este o corpo do qual a psicanlise quer falar. A idia
fundamental de Lacan que o corpo algo que deve ser constitudo, construdo, e que
esta construo no da ordem do organismo biolgico. O organismo biolgico no est
disperso nem fragmentado, muito pelo contrrio, tem uma coerncia funcional que o
mantm vivo. S podemos falar de corpo fragmentado, reino das pulses parciais do
auto-erotismo, a partir da existncia de um corpo unificado pela libido narcisista.
A criana do espelho no constri essa imagem do corpo a partir de
sensaes internas de ordem biolgica mas a partir de dados que lhe chegam do exterior
atravs de um processo psquico de identificao com um outro que est fora,
identificao com uma imagem que do outro. Este processo se antecipa maturao
neurolgica. Constri-se essa superfcie-corpo por identificao com uma imagem
exterior antes de poder se contar com a maturidade biolgica, antes de se ter um
domnio sobre o organismo e poder manej-lo de forma coordenada. A imagem do corpo
anterior maturidade orgnica, por isso se diz que o corpo completo se constri por
antecipao, mas isto graas a um processo psquico e no orgnico. Assim, quando a
maturidade orgnica se produzir, s ter como caminho a seguir aquele j marcado por
essa outra experincia que a antecedeu. S para citar um exemplo, podemos
lembrar que a identidade sexual humana est estabelecida antes da maturidade
sexual do sujeito. Esta idia nos ajuda tambm a entender melhor a diferena entre
esquema corporal e imagem inconsciente do corpo elaboradas por Franoise Dolto,
qual nos referimos em pginas anteriores.
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Este espelho, ento, no mais que o olhar da me, ou seja, certa imago
pre-existente no desejo materno com relao a esse filho. O olhar da me que, ao v-lo,
outorga-lhe determinados atributos com os quais a criana de identifica. Este corpo
unificado e reconhecido na experincia do espelho ir sofrer depois duas grandes crises,
dois momentos especiais em que ser sentido como estranho. O primeiro ser a
adolescncia, em que o corpo cresce meio desproporcionado, e o sistema endcrino traz
muitas novidades, mas onde fundamentalmente h a promessa de um futuro pleno de
realizaes. Mas quando um idoso se olha no espelho, o que este lhe devolve uma
imagem ligada a uma deteriorao, uma imagem com a qual ele no se identifica. No h
jbilo nem alegria, h apenas estranheza e ele pensa : esse no sou eu. Novamente uma
discrepncia entre a imagem inconsciente do corpo e a imagem que o espelho lhe
devolve.
3- O VELHO, ESSE OUTRO
Como j apontamos em nossa introduo, a velhice para Simone de
Beauvoir um dos irrealizveis sartreanos. Ela afirma que o sujeito no pode ter uma
experincia plena do ser velho, esta sera uma experincia irrealizvel em si prpria, e a
velhice, a decadncia e a finitude so mais aspectos percebidos pelos outros, do que pelo
prprio sujeito que envelhece. o olhar do outro que aponta nosso envelhecimento.
Assim, o velho ser sempre o outro e tratamos de representar o que somos atravs da
viso que os outros tm de nos.
Lembremos do episdio acontecido com Freud quando tinha
aproximadamente 63 anos, com o qual exemplifica o sentimento do estranho inquietante.
Ele nos conta : Posso contar uma aventura semelhante que ocorreu comigo. Estava eu
sentado sozinho no meu compartimento do carro-leito quando, devido a um violento
solavanco do trem, a porta que dava para o banheiro anexo se abriu e um homem de
uma certa idade, de roupo e bon de viagem entrou na minha cabine. Imaginei que ao
sair do banheiro que ficava entre os dois, ele tivesse se enganado de direo e tivesse
entrado por engano no meu compartimento. Precipitei-me para inform-lo do equvoco,
mas percebi, completamente perplexo, que o intruso nada mais era do que minha
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prpria imagem refletida no espelho da porta de comunicao. Recordo-me ainda que
esta apario me desagradou profundamente ( Freud 1919, pag 57)
O conto A Outra, de Mariana Frenk Westheim, escritora mexicana ,
tambm ilustra muito bem o tema que aqui nos ocupa:
Um dia a senhora NTS se viu no espelho e se assustou. A mulher do
espelho no era ela. Era outra mulher. Por um instante pensou que fosse uma
brincadeira do espelho, porm descartou esta idia e correu a se olhar no grande
espelho da sala. Nada. A mesma senhora. Foi no banheiro, no corredor, nos pequenos
espelhinhos que carregava na sua bolsa, e nada. Aquela mesma senhora desconhecida
estava l.
Decidiu sentar e fechar os olhos. Sentia vontade de fugir para um lugar
bem longe onde no pudesse se encontrar com aquela pessoa. Porm era mais prudente
ficar por perto, no deix-la sozinha. Observ-la.
Parou para refletir: quem poderia ser essa senhora? Talvez a que morou
antes de mim neste apartamento?. Talvez a que morar aqui quando eu sair? Ou quem
sabe, a mulher que eu mesma seria se minha me se tivesse casado com seu primeiro
namorado? Ou quem sabe, a mulher que eu mesma teria gostado de ser?
Lancei uma rpida olhada no espelho e decidi que no. De jeito nenhum
eu teria gostado de ser essa senhora. Depois de pensar muito tempo, a senhora NTS
chegou concluso de que todos os espelhos da casa tinham enlouquecido, agiam como
atacados por uma doena misteriosa.
Tentei aceitar a situao, no me preocupar mais, e simplesmente parar
de me olhar no espelho. A gente pode viver muito bem sem se olhar no espelho. Guardei
os pequenos espelhos de bolsa para tempos melhores, e cobri com panos os maiores. Um
belo dia, quando por fora do hbito estava me penteando frente ao espelho do armrio,
o pano caiu, e ali estava a outra me olhando, aquela desconhecida. Desconhecida?
parece-me que j no tanto assim. Contemplo-a durante longos minutos. Comeo a
achar que tem um certo ar de famlia. Talvez esta dama compreenda minha situao e
por pura bondade tente se adaptar a mim, a minha imagem que por tanto tempo habitou
meus espelhos.
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Desde ento , olho-me ao espelho todos os dias, a toda hora. A outra,
no tenho dvidas, se parece cada vez mais comigo. Ou eu com ela? (Frenk Wenstein,
1995)
O velho sempre o outro em que no nos reconhecemos. A imagem da
velhice parece sempre estar fora, do outro lado, e embora saibamos que aquela a
nossa imagem, nos produz uma impresso de inquietante estranheza, o apavorante ligado
ao familiar. Apavorante porque a imagem do espelho no corresponde mais imagem da
memria; a imagem do espelho antecipa ou confirma a velhice, enquanto a imagem da
memria quer ser uma imagem idealizada que remeta familiaridade do Eu especular.
Quando o sujeito que envelhece diz: esse no sou eu, evidentemente nos
diz que o rosto no qual ele poderia se reconhecer tranquilamente no aquele. Como
dissemos no pargrafo anterior, o reconhecimento de que falamos no se refere a uma
ignorncia do sujeito como tal, pois tanto o adolescente quanto o sujeito que envelhece
sabem perfeitamente que aquela imagem lhes pertence, mas experimentam ante ela uma
certa estranheza, um susto, como se a imagem fosse de outro: h uma falta de
reconhecimento como imagem, no como sujeito. No o rosto que lhes corresponde.
Aquele ali, o velho do espelho outro, no a representao conhecida por ele como
seu prprio rosto; a representao conhecida de sua face ficou perdida, e em alguns
casos, como na demncia, para sempre.
Dona Fanny uma bela senhora de 75 anos. De inteligncia vivaz, gosta
de conversar e se mantm ocupada em atividades prazeirosas; conserva sua autonomia e
independnia graas a seu trabalho e desenvolve um vnculo saudvel com seus filhos e
netos .Ela est satisfeita com sua imagem, no acha nada de errado com seu corpo, cuida
da sua sade e doaspeto esttico, mas a estranheza se presentifica quando olha as
fotografias da juventude, al percebe a diferena, como ela diz: ento era linda, era
linda quando era o caroo, o centro da famlia, quando tinha filhos pequenos para
criar; agora ela se sente amada, cuidada, mas no sou mais necessria, .... ela acredita.
O rosto procurado ante o espelho (ou nas fotografias) coincide com aquele das fases de
maior satisfao narcsica, fases que de um ou outro modo remeteriam iluso de
completude do Eu Ideal, de s-lo todo. Quando o ideal fracassa, revela-se desde o
simples descontentamento com a prpria imagem at o pior dos horrores, como acontece
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com Dorian Gray quando enfrenta seu retrato envelhecido e decrpito, como reverso de
um ideal para sempre perdido (Wilde, 1989). Podemos ento pensar que, enquanto a
criana se rejubila ante o espelho antecipando sua unidade corporal, o sujeito que
envelhece se deprime, antecipando a decrepitude da velhice e a finitude da morte. Mas
um sujeito bem harmonizado nas suas instncias psquicas encontra sempre como se
defender das surpresas do espelho. Muitas vezes parece bastar um pequeno truque. Dona
Maria outra de nossas entrevistadas de mais de 70 anos resolve a questo muito
graciosamente: no usa os culos de olhar de perto.
Este momento singular de estranheza ante a prpria imagem, que
chamamos espelho negativo, acontece na maioria dos casos antes da velhice se instalar,
entre os 50 e 60 anos; um fenmeno que anuncia a velhice em termos de esttica, e que
vem acompanhado de outros, relacionados com a funcionalidade do corpo e com o
significado social que cada cultura outorga a esta fase da vida. A sensao que a
transformao acontece de repente, como se um relgio que marcava sempre a mesma
hora comeasse a funcionar bruscamente. Observamos que geralmente existe um fator
desencadeante como uma doena, uma perda, ou at um fato proveniente do social,
algo que venha de fora e localiza ao sujeito em um novo tempo. sempre o outro que
repentinamente nos nomeia velhos.
Dona Elzie de 76 anos uma pessoa muito ativa, e de vida social
intensa. Quando fala do corpo ela diz: Estava pensando nessa questo do corpo que
muda. Como eu j disse para voc, eu sempre me olhei. No sei se curiosidade ou o
que , mas nunca tive vergonha de me olhar, muitas mulheres tm vergonha de se olhar
ento, quando se olham levam um choque. Eu no, eu acompanhei meu corpo, eu
percebi as mudanas quando tive filhos, quando envelheci............. Eu tento passar isso
para minhas filhas, vocs devem estar sempre se olhando que para no tomar choque,
para no se deprimir e para se cuidar, no tem que se deixar decair. Olhar-se sempre,
criticamente, fazer com que o espelho seja um aliado e no um inimigo, driblar os efeitos
do espelho enganoso e alienante, uma soluo, mas no a nica para Dona Elzie, que
na sua entrevista prope: verdade isso de pessoas que no se reconhecem. Acho que
deveria haver nos centros de sade onde funcionam grupos de terceira idade,
profissionais que desenvolvessem um trabalho com as pessoas de 40 a 50 anos, para
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orientar sobre como elas vo envelhecer, de que