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DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO EM ESPAÇOS NÃO ESCOLARES: A
EXIGÊNCIA DE UMA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE
Ana Maria Saul1
Pesquisadora do CNPq
Resumo
O texto analisa, de forma relacional, duas ideias-força mencionadas no título dessetrabalho: didática e prática de ensino em espaços não escolares e educação dequalidade. Compartilho a posição de CANDAU (2004), apresentada em seu clássicolivro Didática em questão, no qual a Didática é compreendida como o conjunto dedecisões e ações que vão para além de pura razão instrumental. O entendimento dessasubárea de conhecimento, como uma dimensão do quefazer na educação, no bojo darazão crítica, requer respostas às seguintes questões: para quê, porque, a favor de que,contra quem se faz educação. Significa, pois, tornar explícita a opção que se faz emrelação à educação, expressando o que se vai assumir e defender como educação dequalidade. É no bojo desse quadro de valores e princípios, portanto, que a Didática e aPrática de Ensino adquirem sentido e coerência. Os espaços não escolares, foco dessetexto, me remetem à Educação Popular. A referência para o trabalho que aquidesenvolvo, na perspectiva de discutir a qualidade da educação em espaços nãoescolares, é a matriz de pensamento de Paulo Freire. O texto sustenta, também, a ideiade que a Didática e a Prática de ensino, referenciadas pelos princípios da EducaçãoPopular, são igualmente válidas para os espaços escolares com o entendimento de queFreire levou esses princípios para todos os espaços no qual os seus pés pisaram. Aoassumir a pasta da Educação no Município de São Paulo, em 1989, Paulo Freire propôsa construção de uma escola pública popular de qualidade. Em seu livro Política eEducação (1993) encontra-se uma defesa veemente quanto à possibilidade enecessidade de se trabalhar com os princípios da educação popular na escola pública.
Palavras chave: didática e prática de ensino; qualidade da educação; Paulo Freire.
1 Ana Maria Saul é doutora pela PUC/SP onde é professora titular no Programa de Pós-Graduação emEducação: Currículo. Integra a linha de pesquisa Políticas públicas, reformas educacionais e curricularese coordena a Cátedra Paulo Freire da PUC/SP. É pesquisadora do CNPq. anasaul@uol.com.br .
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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1. Primeiras palavras
Que espaços são esses?
Imagem 01- Alunos Comunidade Bela Flor
Fonte: Site ContilNet
Imagem 02- Educação em ambiente não-escolar Imagem 03- Educação em ambiente não-escolar
Fonte: Desconhecida Fonte: Blog Minas em pauta
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Imagem 04- Viveiro do Assentamento Terra VistaFonte: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Essas imagens sugerem a existência de diferentes lugares para ensinar-aprender.
Várias perguntas surgem a partir da leitura dessas fotos: Que educandos e que
professores são esses? Quais são suas histórias de vida e seus percursos educacionais?
Quais são os seus saberes? O que querem/precisam aprender? Que didática e práticas
de ensino são necessárias nesses múltiplos e diferentes lugares para aprender?
É importante ter cuidado para evitar respostas pragmáticas, apressadas e
tecnicistas em relação à didática e práticas de ensino, nesses espaços não escolares. Ao
mesmo tempo, é urgente combater os equívocos e preconceitos a respeito da educação
que acontece nesses espaços, nomeada Educação Popular, à qual se atribui um caráter
assistencialista e que, por isso, recebe pouca atenção dos poderes públicos e se
desenvolve com práticas que se mostram questionáveis. Essas práticas revelam, por
vezes, concepções que desvalorizam os educandos, compreendidos como pessoas que
já passaram da idade certa para aprender ou, ainda, que não terão mais
necessidade/chance de se realizar na vida e por isso devem agradecer ao ‘ receberem
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um pouco de leitura’. Para tanto, qualquer didática, qualquer prática de ensino utilizada
pelo professor, ‘vale’, porque para esses resultados, “qualquer coisa já está bom”.
Essa constatação, por vezes mascarada ou, deliberadamente ocultada, em
práticas e políticas públicas, revela a perversidade da discriminação que é feita ao
grande contingente de pessoas das classes subalternizadas, em nossa sociedade. As
consequências dessa postura garantem e reforçam a exclusão social e cultural, a
opressão e a desumanização.
É preciso que se exija uma educação de qualidade , em quaisquer espaços e
tempos em que ela acontece. Nesses contextos, a didática e a prática de ensino adquirem
sentido ao se fazerem coerentes com a opção por uma dada concepção de educação.
O caminho que proponho, nesse texto, é o da problematização das duas ideias-
força anunciadas no título desse texto: qualidade da educação em espaços não
escolares e didática e práticas de ensino. E porque essas enunciações não são neutras,
cabe explicitá-las. Compartilho, com CANDAU (2004), a proposição de que a didática
é o conjunto de decisões e ações que vão para além de pura razão instrumental. O
entendimento dessa subárea de conhecimento, como uma dimensão do quefazer na
educação, no bojo da razão crítica, requer que se tenha clareza em relação às seguintes
questões: para quê, porque, a favor de que, contra quem se faz educação. Essas
questões exigem respostas, tanto em contextos de educação escolar como não escolar.
Ao respondê-las define-se, necessariamente, o contorno do que se entende por qualidade
na educação. E, são essas respostas que explicitam os valores e princípios de uma
concepção de educação. É essa afirmação que sustenta a tese de que a educação é
política, não é neutra.
Em Política e Educação, escreve Freire (1993a):
Além de um ato de conhecimento, a educação é também um atopolítico. É por isso que não há pedagogia neutra. Não basta dizer quea educação é um ato político assim como não basta dizer que o atopolítico é também educativo. É preciso assumir realmente apoliticidade da educação. Não posso pensar-me progressista seentendo o espaço da escola como algo meio neutro, com pouco ouquase nada a ver com a luta de classes, em que os alunos são vistosapenas como aprendizes de certos objetos de conhecimento aos quaisempresto um poder mágico. Não posso reconhecer os limites daprática educativo-política em que me envolvo se não sei, se não estouclaro em face de a favor de quem pratico. O a favor de quem praticome situa num certo ângulo, que é de classe, em que divisa o contraquem pratico e, necessariamente, o por que pratico, isto é, o própriosonho, o tipo de sociedade de cuja invenção gostaria de participar.(p.46-47).
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2. Um quadro de referência para uma educação de qualidade
A minha referência para dizer da qualidade da educação é a práxis de Paulo
Freire, entendendo que em sua pedagogia crítico-emancipatória estão os princípios da
Educação Popular que se fizeram presentes nos diferentes espaços em que os seus pés
pisaram.
O valor do trabalho de Freire, no campo da Educação Popular, é reconhecido
internacionalmente. Em escritos dessa área, Paulo Freire é menção obrigatória.
Streck e Esteban (2013), em recente livro organizado com capítulos de mais de
duas dezenas de autores, reportam-se ao protagonismo de Paulo Freire na criação e
recriação da Educação Popular, a partir da década de 1950, no bojo do Movimento de
Cultura Popular no Recife, expressando-se em ações, em redes públicas de ensino,
desde a década de 1980.
A atualidade do pensamento de Paulo Freire vem sendo demonstrada pela
multiplicidade de trabalhos teóricopráticos que se desenvolvem sobre e a partir de suas
propostas e práticas, em diferentes áreas do conhecimento, ao redor do mundo. A
crescente publicação de seus livros dos quais Pedagogia do Oprimido se destaca, em
dezenas de idiomas, confere ao conjunto de suas produções, o caráter de uma obra
universal, destacada na literatura e em depoimentos de reconhecidos autores da área da
Educação de diferentes países.
O pensamento de Paulo Freire ultrapassa as fronteiras da área da educação, stricto sensu
e se alonga em diferentes campos do conhecimento. Os últimos trinta anos demonstram
considerável ampliação de trabalhos sobre, e, a partir do legado freireano2.
No portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior
(CAPES), órgão do Ministério da Educação, podem ser encontradas 1843 pesquisas
(1311 dissertações e 330 teses) que trabalharam com referenciais freireanos, no período
2 O uso deliberado do adjetivo freireano, assumido nesse texto e em produções da Cátedra Paulo Freire daPUC/SP, é uma questão de preferência, pela compreensão de que a manutenção da grafia integral dosobrenome do autor em pauta destaca com mais vigor a proveniência, a origem das produções - opensamento de Freire. Em alguns redutos acadêmicos significativos seguiu-se, pois, o seguinte critério: àortografia original do antropônimo, foi acrescentado o sufixo ano, resultando no adjetivo freireano.
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1987 a 20113. O conjunto dessas evidências permite afirmar que Paulo Freire é um
clássico. O seu pensamento é novo. Há que se ter cuidado para não confundir novo com
novidade. A novidade é passageira, volátil (e educação é terreno fértil aos modismos) .
O novo vem, se instala, muda e permanece porque tem vitalidade, anima (inspira) e
estimula. Nesse sentido o pensamento de Paulo Freire é absolutamente atual. A
propósito de ser Paulo Freire um clássico, Mário Sérgio Cortella relata uma passagem
sobre uma provocação que ele fez a Paulo Freire, em uma aula inaugural, na PUC/SP,
nos idos de 1986. Ao final da exposição disse: Paulo, você se considera um clássico? E,
se assim o for, o que pensa da frase de Millôr Fernandes: Clássico é um escritor que
não se contentou em chatear apenas os seus contemporâneos? Paulo Freire, sem perder
a calma e sem falsa humildade respondeu incisivamente:
Sou um clássico sim. Não porque subjetiva e presunçosamente destemodo me considere, mas porque, como clássico sou considerado portodas aquelas e todos aqueles que encontram em minha obra uminstrumento para enfrentar um clássico problema: a existência deopressores e oprimidos. Por isso, enquanto esse problema persistir,quero continuar chateando, incomodando e fustigando os que,contemporâneos meus ou não, defendam a permanência dasdesigualdades. (FREIRE, 1986 apud CORTELLA, 2011, p.12).
3. A pedagogia de Paulo Freire: um quefazer na educação marcado por princípios
da Educação Popular
A luta intransigente de Paulo Freire contra situações de opressão e a favor de
uma práxis democrática, sustentada por princípios de solidariedade e justiça social ,
definiram a sua compreensão e a sua prática a favor dos oprimidos.
3 Essas pesquisas estão distribuídas nas seguintes grandes áreas do conhecimento: 1251 produções(76%), na área de Humanas; nas Exatas encontram-se 92 trabalhos (6%) e na área das CiênciasBiológicas, localizam-se 298 pesquisas, equivalendo a 18% da produção. Na área de Ciências Humanas,as pesquisas estão nas subáreas de Educação, com destaque para o campo do Currículo, Formação deEducadores, Gestão, Educação de Jovens e Adultos, Letras, Linguística, Psicologia, Filosofia, Sociologia,Recursos Humanos, Direito, Serviço Social, Ciências Sociais, Ciências da Religião, Ciências daComunicação, Fotografia, Música e Teatro. Nas Ciências Biológicas foram desenvolvidos trabalhoslocalizados nos campos da Promoção da Saúde, Enfermagem, Medicina, Nutrição, Fisioterapia, EducaçãoAmbiental e Ecologia Social e Saúde. Na área de Exatas, as pesquisa estão nos campos de Engenharia,Economia, Agricultura, Agronomia, Arquitetura, Ciências da Computação e Design. No ano de 2012.foram cadastradas mais 202 pesquisas, e em 2013, estão registradas 14, na Biblioteca digital de teses edissertações (BDTD) do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, perfazendo um totalde 1857 produções.
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Em seus escritos encontram-se princípios que podem ser tomados como crivo
para orientar e, ou, analisar a práxis de uma educação pautada pelo referencial da
Educação Popular.
No conjunto desses princípios destaca-se o compromisso a favor da construção
de um conhecimento crítico-transformador, na direção de uma sociedade democrática,
justa e solidária.
Paulo Freire (1993a) escreve:
Não se faz pesquisa, não se faz docência como não se faz extensãocomo se fossem práticas neutras. Preciso saber a favor de que e dequem, portanto contra que e contra quem pesquiso, ensino ou meenvolvo em atividades mais além dos muros da Universidade. (p.113).
É possível dizer, a partir de escritos de Freire, que uma educação pautada pelos
princípios da Educação Popular:
[É aquela que] jamais separa do ensino dos conteúdos o desvelamentoda realidade.
[...] É a que respeita os educandos, não importa qual seja sua posiçãode classe e, por isso mesmo, leva em consideração, seriamente, o seusaber de experiência feito, a partir do qual trabalha o conhecimentocom rigor de aproximação aos objetos.
[Está atenta à necessária] formação científica e clareza política de queas educadoras e os educadores precisam para superar os desvios que,se não são experimentados pela maioria, se acham presentes emmaioria significativa.
É a que, em lugar de negar a importância da presença [...] dacomunidade, dos movimentos populares na [instituição educacional]se aproxima dessas forças com as quais aprende para a elas poderensinar também.
[...] É a que supera os preconceitos de raça, de classe, de sexo e seradicaliza na defesa da substantividade democrática.
[...] É a que não considera suficiente mudar apenas as relações entre[educadores] e educandos, amaciando essas relações, mas, ao criticar etentar ir além das tradições autoritárias da escola velha, criticatambém a natureza autoritária e exploradora do capitalismo.
E ao realizar-se, assim, como prática eminentemente política, tãopolítica quanto a que oculta, nem por isso transforma [os espaços]onde se processa em sindicato ou partido.
É que os conflitos sociais, o jogo de interesses, as contradições que sedão no corpo da sociedade se refletem necessariamente [nos diferentesespaços educativos]. (Ibid., p.101-103).
Esses princípios definem um quefazer político-pedagógico, nos diferentes
espaços de ensino-aprendizagem nos quais se busca coerência com o quadro de
referência da Educação Popular.
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Destaque-se que não é suficiente apenas declarar, embora absolutamente
necessário, o compromisso que se tem com a Educação Popular, em documentos que
definem e divulgam os seus propósitos. A coerência desses princípios precisam se
expressar em ações de ensino-aprendizagem.
Essas perguntas de Freire (1992) apontam a exigência de se ter coerência entre o
discurso e a prática:
Como entender, mas sobretudo viver, a relação prática-teoria sem quea frase vire frase feita?Como superar a tentação basista, voluntarista e, também a tentaçãointelectualista, verbalista, blablabante? (p.136).
Tais perguntas requerem reflexão contínua, pois, elas se põem em diferentes
espaços da prática educativa. Não se trata de respostas fáceis, rápidas, porque essas não
podem ser perguntas retóricas. É preciso construir tais respostas em diálogo
aprofundado que passa pela prática e pela teoria dos educadores, sob crivos da política e
da ética.
É importante resgatar as questões que nos faz Paulo Freire, em Pedagogia da
Esperança, no tocante a ações educativas pautadas pelos princípios da Educação
Popular. Essas são, evidentemente, questões que estão no bojo de decisões sobre
didática e prática de ensino, nos múltiplos espaços e tempos para ensinar e para
aprender:
Que conteúdos ensinar, a favor de que ensiná-los, a favor de quem,contra que, contra quem. Quem escolhe os conteúdos e como sãoensinados?
Que é ensinar? Que é aprender? Como se dão as relações entre ensinare aprender? Que é o saber de experiência feito? Podemos descartá-locomo impreciso desarticulado? Como superá-lo?
Que é o professor? Qual seu papel? E o aluno, quem é? E o seu papel?Não ser igual ao aluno significa dever ser o professor autoritário? Épossível ser democrático e dialógico sem deixar de ser professor,diferente do aluno? Significa o diálogo um bate-papo inconsequentecuja atmosfera ideal seria a do “deixa como está para ver como fica”?
Pode haver uma séria tentativa de escrita e leitura da palavra sem aleitura do mundo?
Significa a crítica necessária à educação bancária que o educador quea faz não tem o que ensinar e não deve fazê-lo? Será possível umprofessor que não ensina? Que é a codificação, qual o seu papel noquadro de uma teoria do conhecimento? (Ibid., p.135).
Novamente, vale insistir, essas não são questões retóricas. Debruçar-se sobre as
mesmas, para respondê-las e para construir uma prática coerente, implica adentrar
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questões políticas, que se referem à utopia de uma sociedade democrática, justa e
solidária. Em decorrência, cabe questionar a natureza do conhecimento que é
construído/distribuído em espaços escolares ou não escolares e que, não pode ser outro,
senão um conhecimento crítico–transformador.
Diz Freire (1993a), “a Educação Popular cuja posta em prática, em termos
amplos, profundos e radicais numa sociedade de classe, se constitui como um nadar
contra a correnteza (p.101)”. Diante dessa constatação, porém, vem dele mesmo, a
esperança e o apelo, quanto à possibilidade de transformação, registrada em epígrafe de
seu livro A Educação na cidade (1991): mudar é difícil, mas é possível e urgente.
4. A didática e a prática de ensino em espaços não escolares: a pedagogia da
autonomia
Em Pedagogia da Autonomia, último livro de Paulo Freire, publicado enquanto
ele vivia, são apresentados 27 saberes necessários à prática docente. Essa obra que já
teve mais de 40 edições e continua sendo reeditada, já ultrapassou 1000000 de
exemplares. É um livro precioso que pode ser considerado um valioso referencial para a
didática e prática de ensino, em uma perspectiva crítico-emancipatória. Embora todos os
saberes apresentados por Paulo Freire, nessa obra, sejam de fundamental importância
como referência para educadores, em espaços não escolares ou escolares, nesse texto
comentarei alguns deles, fazendo o convite ao leitor para consultar a íntegra desse livro.
Esses saberes necessários à prática docente se interpenetram e são importantes
para o desenvolvimento da autonomia de professores e educandos.
4.1 Não há docência sem discência
Para Paulo Freire, aprender e ensinar constituem dois momentos de um mesmo
ato. O processo de ensinar é parte do processo de aprender e o processo de aprender é
parte do processo de ensinar, diz Freire. Não há ensinar sem aprender e os dois são
momentos de um processo maior- o de conhecimento.
Em Professora sim tia não: cartas a quem ousa ensinar, Freire (1993b) escreve
dez cartas com temas importantes que têm como foco o ensinar-aprender. É na primeira
carta que tem como título Ensinar-aprender, Leitura do mundo- leitura da palavra que
o autor escreve:
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É que não existe ensinar sem aprender e com isto eu quero dizer maisdo que diria se dissesse que o ato de ensinar exige a existência dequem ensina e de quem aprende. Quero dizer que ensinar e aprenderse vão dando de tal maneira que quem ensina aprende, de um lado,porque reconhece um conhecimento antes aprendido e, de outro,porque, observando a maneira como a curiosidade do aluno aprendiztrabalha para apreender [...], o ensinante se ajuda a descobririncertezas, acertos, equívocos. (p.27).
Diante da afirmação de que não existe ensino sem aprendizagem, Freire afirma
que não há docência, sem discência e, para sublinhar a força dessa relação, utiliza o
termo dodiscência, demonstrando a relação íntima, inseparável dessas duas ações.
Em Pedagogia da Autonomia, assim se expressa:
Quem forma se forma e re-forma ao formar, e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. [...] Ensinar não é transferirconhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeitocriador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado.[...] Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina aoaprender. [...] Não há docência sem discência, as duas se explicam eseus sujeitos apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem àcondição de objeto um do outro. (FREIRE, 1997, p. 23).
4.2 Ensinar não é transferir conhecimentos
É importante discutir aqui, o que é aprender-ensinar em diferentes espaços não
escolares. Freire nos ensina que aprender é desocultar a realidade, é ganhar a
compreensão mais exata do objeto, é perceber suas relações com outros objetos. Implica
que o educando se arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria.
Em decorrência, o autor se manifesta em relação ao ato de ensinar, enfatizando
que o ensino não pode ser uma transferência mecânica de conhecimentos opondo-se, ao
que denominou de educação bancária.
Em uma das passagens de Professora sim, tia não, Freire (1993b) expressa essa
compreensão:
Por isso também é que ensinar não pode ser um puro processo, comotenho dito, de transferência de conhecimento da ensinante ao aprendiz.Transferência mecânica de que resulte a memorização maquinal que jácritiquei. Ao estudo crítico corresponde um ensino igualmente críticoque demanda necessariamente uma forma crítica de compreender e derealizar a leitura da palavra e a leitura do mundo, leitura do texto eleitura do contexto. (p. 33).
A metáfora educação bancária foi assim explicitada por Freire (1971) em
Pedagogia do Oprimido:
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A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometemcom a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homenscomo seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não podebasear-se numa consciência especializada, mecanicistamentecompartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e naconsciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser ado depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens emsuas relações com o mundo (p.67).
E acrescenta:
Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que sejulgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numadas manifestações instrumentais da ideologia da opressão - aabsolutização da ignorância, que constitui o que chamamos dealienação, da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre nooutro (p.58).
4.3 Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos
Para Freire, o ato de ensinar inclui a necessidade de partir do conhecimento dos
educandos, e não ficar nele, para possibilitar a construção de um conhecimento crítico.
Essa premissa da pedagogia freireana reiterada por vezes, em sua obra, dada a sua
importância, tem como suporte a compreensão que os educandos trazem consigo uma
visão de mundo permeada de conhecimentos, preocupações, hábitos, desejos, sonhos,
sentimentos e medos, que precisam ser conhecidos e respeitados pelos educadores. É
fundamental que o educador respeite esse saber de experiência feito e trabalhe, a partir
dele, estimulando a criatividade e a capacidade de leitura do mundo dos educandos.
Além de justificativas epistemológicas, esse princípio atende a imperativos éticos, na
medida em que propõe a luta contra a discriminação e o desrespeito ao educando.
O respeito aos saberes dos educandos é princípio inspirador de uma didática que
requer práticas de ensino condizentes. Partir dos conhecimentos, dos contextos
concretos e das necessidades que os sujeitos trazem é condição para o desenvolvimento
de saberes críticos que têm, como horizonte, a ampliação de seus direitos e a construção
de uma vida digna.
Em oposição à crítica da educação bancária, antidialógica, na qual o educador
deposita no educando o conteúdo programático da educação, elaborado por elites
intelectuais, Freire propõe uma prática problematizadora, dialógica por excelência, na
qual o conteúdo jamais é ‘depositado’ mas, sim, se organiza e se constrói a partir da
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visão de mundo dos educandos, dos seus saberes de experiência feitos nos quais se
encontram os seus temas geradores (FREIRE; SHOR, 1987, p.102).
4.4. Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática
O trabalho do docente acontece em um contexto concreto, em uma realidade
prática e refletir criticamente sobre essa prática não é , senão, um momento da leitura
da realidade.
Como nos lembra Freire na Pedagogia da Autonomia (1997), conceber a prática
de ensino como um processo de permanente investigação significa assumir o
posicionamento epistemológico em que o educando é o sujeito de seu conhecimento,
estando sua aprendizagem associada a um processo constante de pesquisa sobre sua
realidade. Em outras palavras, significa não distanciar a prática educativa do exercício
da curiosidade epistemológica dos educandos.
A reflexão crítica sobre a prática tem se revelado um princípio poderoso quando
se trata do trabalho de formação de educadores, opondo-se a concepções e práticas que
tem se apoiado em matrizes positivistas.
Freire (1997), nos diz da importância do fazer e do pensar sobre o fazer,
enfatizando a necessária construção do pensar certo que envolve o formador e o sujeito
em formação.
A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve omovimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre ofazer.[...]. É fundamental que, na prática da formação docente, oaprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não épresente dos deuses nem se acha nos guias de professores queiluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelocontrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzidopelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. (p.17-18).
A formação permanente dos educadores na gestão Paulo Freire, na Secretaria de
São Paulo, teve como foco central, o desenho de grupos de formação que tinham, como
base de trabalho, a reflexão crítica sobre a prática, e atuavam com a dialética ação-
reflexão- ação.
De acordo com Freire (1991, 1993a), um programa de formação permanente de
educadores exige que se trabalhe sobre as práticas que os professores têm. A partir
dessa prática é que se deve descobrir qual é a "teoria embutida" ou quais são os
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fragmentos de teoria que estão na prática de cada um dos educadores, mesmo que não se
saiba qual é essa teoria.
É importante observar que não se trata aqui da experiência em si, mas sobretudo
da reflexão que incide sobre a experiência. De acordo com Freire (1997):
O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea,'desarmada', indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saberde experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica quecaracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. [...] O que seprecisa é possibilitar que, voltando-se sobre si mesma, através dareflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se comotal, se vá tornando crítica. (p.38 ).
4.5 Ensinar exige disponibilidade para o diálogo
O ato de ensinar-aprender envolve sujeitos que vivem a prática, mediados por
objetos de conhecimento. Para que essa prática se faça democrática, é fundamental que
se estabeleça uma relação horizontal entre educador-educando, no ato de construção,
(re)construção do conhecimento. Fazer isso implica disposição para o diálogo.
Pelo valor e centralidade do diálogo na construção do conhecimento, na obra
freireana, vale buscar a compreensão desse conceito.
Em seu livro, em diálogo com Ira Shor, Medo e Ousadia, o cotidiano do
Professor, Freire assim se manifesta:
Penso que deveríamos entender o diálogo não como técnica apenasque podemos usar para conseguir obter resultados, ao contrário, odiálogo deve ser entendido como algo que faz parte da próprianatureza histórica dos seres humanos. É parte de nosso progressohistórico, do caminho para nos tornarmos humanos. (FREIRE; SHOR,1987, p.122).
E acrescenta:
O diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que osseres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamentecomunicativos. O diálogo é o momento em que os humanos seencontram para refletir sobre sua realidade tal como a fazem erefazem... Através do diálogo, refletindo juntos sobre o que sabemos,podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade.[...] O diálogo sela o relacionamento entre sujeitos cognitivos,podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade...Eu acrescentaria que o diálogo valida ou invalida as relações sociaisdas pessoas envolvidas nessa comunicação... O diálogo libertador éuma comunicação democrática, que invalida a dominação ... aoafirmar a liberdade dos participantes de refazer a cultura. [...] Odiálogo implica responsabilidade, direcionamento, determinação,
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disciplina, objetivos [... ] Significa uma tensão permanente entre aliberdade e autoridade. (Ibid., p.123).
Dialogar, na perspectiva freireana, constitui-se em grande desafio. A pouca
experiência com o diálogo está associada a marcas autoritárias da sociedade brasileira e
à presença de uma pedagogia bancária que se expressa em uma didática na qual somente
o professor ensina e o aluno aprende, em um processo de aprendizagem caracterizado
pela transmissão de conhecimentos.
5. Paulo Freire levou para a administração pública os princípios da Educação
Popular
A grande oportunidade que tive de conviver e aprender com Paulo Freire, na
Universidade, ampliou-se quando fui por ele convidada para dirigir a reorientação
curricular da Secretaria de Educação do Município de São Paulo e coordenar o
programa de formação permanente dos educadores no período em que ele foi Secretário
da Educação, a convite da prefeita Luiza Erundina de Sousa, do Partido dos
Trabalhadores, eleita em 1989. Essa face da biografia de Freire, como gestor público,
nem sempre é conhecida ou divulgada.
Ao assumir a Secretaria da Educação, assim como em outras momentos de sua
vida nos quais respondeu aos chamados do sistema, Paulo Freire testemunhou ser
possível e necessário trabalhar com um pé dentro e outro fora, considerando o sistema
existente, porém lutando para transformá-lo.
A construção da escola pública popular e democrática foi a proposta de
política educacional para a rede municipal de Educação de São Paulo, lema da gestão
Paulo Freire, em busca da melhoria da qualidade social da educação para crianças,
jovens e adultos. (FREIRE, 1991; SAUL, 1998).
Por vezes, tanto durante o período em que esteve na administração pública,
assumindo a pasta da Educação, como depois desse período, foram feitas a ele
indagações sobre diferenças de significado entre Educação Popular e escola pública. No
bojo desse questionamento estava o fato de que, no ideário dos educadores, a Educação
Popular se referia à educação não escolarizada, em especial, dos adultos, contrapondo-
se à escolarização.
Freire debateu com vigor o seu argumento, afirmando que a Educação Popular
se referia, sobretudo, à natureza de uma prática política e crítica.
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400979
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Em um de seus textos, escrito em dezembro de 1992, intitulado Educação
Popular e Escola Pública, publicado no livro Política e Educação, Paulo Freire
sistematiza o seu pensamento sobre a relação entre Educação Popular e escola pública e
mais especificamente, como ele mesmo anunciou, buscou responder à indagação: é
possível fazer Educação Popular na rede pública?
A sua opção política pela educação crítica, comprometida com princípios de
solidariedade e justiça social foi explicitada em sua proposta de construção de uma
escola voltada para a formação social e crítica dos educandos, uma escola séria, na
apropriação e recriação de conhecimentos e, ao mesmo tempo, alegre, estimuladora da
solidariedade e da curiosidade. A abertura da escola à comunidade, a construção do
currículo, de forma participativa, autônoma e coletiva, o estímulo à gestão democrática
da educação, o respeito ao saber do educando, e a indispensável formação dos
educadores, foram marcos fundamentais que nortearam o seu quefazer na educação de
São Paulo. (FREIRE, 1991, 1993a).
A teoria e a prática da gestão Paulo Freire têm sido inspiradoras de várias redes
de ensino no Brasil que se comprometem com a educação crítico – emancipadora e
assumem o desafio de reinventar o legado freireano.
6. A cátedra Paulo Freire da PUC/SP
Quando Paulo Freire já não estava entre nós, em sua homenagem, a Reitoria da
PUC/SP aprovou a criação da Cátedra Paulo Freire, no 2º semestre de 1998, por
proposta do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo.
A Cátedra vem sendo compreendida como um espaço singular para o
desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre, e, a partir da obra de Paulo Freire,
focalizando as suas repercussões teóricas e práticas na Educação e a sua potencialidade
de fecundar novos pensamentos. Nesse locus de debate são analisadas as repercussões
teóricas e práticas do pensamento freireano para a educação, no Brasil e no exterior,
numa perspectiva crítica. A Cátedra oferece, semestralmente, uma disciplina para
mestrandos e doutorandos, podendo ser frequentada por alunos de diferentes programas
de Pós-Graduação da Universidade. Mais de 700 estudantes, mestrandos e doutorandos,
participaram da Cátedra durante os seus 16 anos de funcionamento. Na Cátedra têm sido
geradas pesquisas e publicações relevantes no escopo de uma pesquisa mais ampla, de
âmbito nacional, coordenada pela professora Ana Maria Saul, que investiga o
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400980
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pensamento de Paulo Freire na educação brasileira e que se intitula Paulo Freire na
atualidade: legado e reinvenção.
7. O ensino e a pesquisa na Cátedra Paulo Freire da PUC/SP
No espaço da Cátedra, os estudos visam a estudar criticamente o pensamento de
Paulo Freire, para compreendê-lo e reinventá-lo. Busca-se atender à orientação e ao
desejo de Freire (1987), assim registrados desde o seu livro Ação Cultural para a
Liberdade, ao dizer sobre a continuidade de sua obra:
Quanto aos outros, os que põem em prática a minha prática, que seesforcem por recriá-la, repensando também meu pensamento. E aofazê-lo, que tenham em mente que nenhuma prática educativa se dá noar, mas num contexto concreto, histórico, social, cultural, econômico,político, não necessariamente idêntico. (p.17).
Reinventar o legado freireano significa, na Cátedra Paulo Freire, fazer uma
releitura crítica da obra do autor cuidando, no entanto, de não descaracterizar as suas
propostas fundamentais, visando a compreendê-las frente aos novos desafios do mundo
atual. E, sobretudo, construir e sistematizar uma práxis coerente com os princípios
fundamentais da obra freireana. Rejeita-se, pois, qualquer compreensão de reinvenção
que possa significar rompimento com o pensamento do autor para que se ‘faça tudo de
novo’. Ao mesmo tempo em que se entende, como necessário, exercer uma postura
crítica às ações que aproximam ou reduzem a filosofia e a pedagogia de Freire a
métodos e técnicas, muitas dessas chanceladas por modismos e pela ‘grife’ das
chamadas inovações pedagógicas.
O trabalho que vem se construindo na Cátedra tem o compromisso de não
dicotomizar ensino e pesquisa, teoria e prática. Nessa perspectiva, dialoga-se com a
prática em dois contextos que interagem e se interpenetram: o do ensino e o da pesquisa.
A teoria e a prática da gestão Paulo Freire têm sido inspiradoras de várias redes
de ensino no Brasil que se comprometem com a educação crítico – emancipadora e
assumem o desafio de reinventar o legado freireano.
A pesquisa que se desenvolve na Cátedra: Paulo Freire na atualidade: legado e
reinvenção tem os seguintes objetivos: a) identificar e analisar a presença e reinvenção
do pensamento de Paulo Freire em sistemas públicos de educação, a partir da década de
1990; b) congregar e articular pesquisadores-professores e pós-graduandos- de várias
regiões do país, constituindo uma rede freireana de pesquisadores; c) subsidiar o fazer
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400981
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político-pedagógico de redes públicas de educação e d) documentar e divulgar os
resultados da pesquisa em periódicos científicos e em eventos nacionais e
internacionais.
Essa pesquisa teve início em 2004, a partir da orientação de dissertações e teses
de pós-graduandos que se interessavam em pesquisar a influência do legado freireano
em sistemas públicos de ensino. Uma ação sistematizada a fim de tornar essa
investigação mais ampliada e articulada, com a forte intenção de criar uma rede
freireana de pesquisadores, ocorreu a partir do ano de 2010, quando a pesquisa que se
desenvolvia na Cátedra Paulo Freire foi submetida ao Edital Universal 14/2010, do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Pretendeu-
se, pois, adensar a massa crítica de informações sobre a influência e reinvenção do
pensamento de Paulo Freire, com a expectativa de subsidiar a criação/recriação de
políticas e práticas educativas, nos sistemas de ensino, com especial destaque para o
currículo, na perspectiva crítico-emancipadora. A primeira edição desse projeto, com
apoio do CNPq, foi concluída em 2012 e a segunda segue vigente, com o apoio dessa
agência de fomento, até o ano de 2015.
8. O desenho e os procedimentos metodológicos da pesquisa
A crescente produção que tem se desenvolvido em torno do pensamento de
Paulo Freire sugeriu que essa pesquisa tivesse abrangência nacional. Isso significou
criar um desenho de investigação que pudesse articular pesquisadores e pós-graduandos
de várias regiões do país em torno do foco dessa investigação.
Por intermédio dessa pesquisa, a Cátedra Paulo Freire/PUC-SP vem construindo
um diálogo interinstitucional com vistas à construção e consolidação de uma rede
freireana de pesquisadores. Integram a Rede, nesse ano (2014), uma equipe de 28
pesquisadores sediados em 10 estados brasileiros, vinculados a 14 Programas de Pós-
Graduação das seguintes Universidades: UFPA, UEPA, UECE, UFRN, UFPB, UFPE,
PUC/MG, PUC/SP, UFSCar, USP, UEPG, UFSC, UNISINOS e UNOCHAPECÓ. Essa
Rede conta com a assessoria de 04 consultores, professores da PUC/SP, UNICAMP,
Universidade do Minho/PT e Universidade de Wisconsin-Madison/USA.
O desenho da pesquisa prevê um trabalho colaborativo no qual os seminários ganham
um espaço privilegiado, constituindo-se em momentos de encontro e formação dos
pesquisadores, permitindo a tomada de decisões sobre o planejamento e
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400982
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desenvolvimento da pesquisa. Dessa forma se materializam os princípios da construção
coletiva e da dialogicidade freireana.
A metodologia da pesquisa caracteriza-se pela investigação crítica, de
abordagem qualitativa. Busca-se apreender a práxis educativa por meio da análise de
produções bibliográficas, dissertações, teses, documentos e dados empíricos coletados
em estudos de caso que têm o objetivo de analisar como o pensamento de Paulo Freire
vem sendo reinventado nas políticas e práticas dos sistemas de ensino.
Na primeira etapa da investigação, realizada no ano de 2011, procedeu-se ao
levantamento bibliográfico da produção de dissertações e teses registradas no Portal da
CAPES, no período 1987 a 2010, com a intenção de mapear o estado das pesquisas
desenvolvidas no Brasil, a partir, e, com os referenciais freireanos, e iniciar a análise
desses estudos de modo a buscar subsídios que pudessem ser acrescidos ao quadro
teórico-metodológico dessa pesquisa. No plano empírico, no âmbito dessa pesquisa,
foram concluídos 17 estudos de caso, registrados em Dissertações e Teses.
9. Anunciando os resultados da pesquisa: breve síntese
Os resultados apresentados nessa pesquisa (SAUL, 2013) que já se alonga em
diferentes regiões do país, com o objetivo de investigar o pensamento de Paulo Freire na
educação brasileira, com destaque para a análise de sistemas de ensino a partir de 1990,
demonstram a presença do legado freireano nos trabalhos acadêmicos, nos movimentos
sociais, nas políticas e práticas curriculares. A proposta político-pedagógica de Paulo
Freire vem se revelando um paradigma inspirador de políticas e práticas de educação
nas várias redes de ensino pesquisadas, em especial, aquelas que se comprometem com
a democratização da educação, na perspectiva crítico-emancipadora.
As constatações da pesquisa permitem afirmar que o pensamento de Paulo Freire
continua vivo, mantém-se em movimento e dialoga com diferentes campos do
conhecimento e questões contemporâneas. Na área da educação, os trabalhos
pesquisados mostram uma interlocução com aspectos da matriz de pensamento de Paulo
Freire que têm, como crivo crítico, a superação de formas hegemônicas de agir e pensar
e, em oposição, propõem, com radicalidade, uma educação eticamente comprometida
com a educação libertadora e a humanização dos sujeitos.
As evidências apontam, também, a possibilidade de se trabalhar com uma nova
lógica na concepção e prática de políticas de currículo, à medida que se altera o
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400983
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movimento que define o currículo “de cima para baixo‟, relegando às escolas a
aplicação de políticas que são centralmente traçadas, para uma direção que reconhece a
escola em seu papel legítimo de conceptora de currículo, no quadro de referência da
educação crítica. A questão da autonomia das unidades escolares vem assim sendo
discutida e reinventada, em busca de uma autonomia compartilhada entre a escola e os
órgãos centrais da educação.
O desenho metodológico dessa investigação tem possibilitado consolidar a
experiência de produção de conhecimento em rede, o que lhe confere um
aprofundamento horizontal e vertical. Dessa forma, é possível captar tanto a
abrangência dos fenômenos estudados como aprofundar a análise dos resultados
encontrados.
A constituição da rede de pesquisadores que investiga o pensamento de Paulo
Freire na educação brasileira foi um resultado de grande relevância nessa pesquisa. A
consolidação dessa rede permitiu que os estudos desenvolvidos em diferentes regiões,
norteados todos pela intenção maior da investigação, pudessem ter uma análise mais
densa e profunda.
Um portal na web está sendo desenvolvido para a organização e divulgação dos
resultados da pesquisa, de modo a permitir a consulta permanente a essa produção e a
comunicação entre pesquisadores e gestores públicos.
No desenho dessa pesquisa destaca-se o seminário como momento articulador
dos pesquisadores, no qual são tomadas as decisões sobre o planejamento e o
desenvolvimento da pesquisa e se aprofundam as análises sobre os resultados.
Os seminários, como estratégia de construção e desenvolvimento dessa pesquisa
em rede, demonstraram a importância e a potencialidade desse desenho que define um
“modo de fazer pesquisa” que põe em prática o valor da construção coletiva e os
princípios da dialogicidade freireana.
Referências
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CORTELLA, Mário Sérgio. Paulo Freire: um pensamento clássico e atual. In: Revista
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http://www.pucsp.br/ecurriculum>. Acesso em: 20 abr. 2012.
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EdUECE - Livro 400984
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Editora Paz e Terra, 1987.
______. A educação na cidade. São Paulo: Cortez editora, 1991.
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Paz e Terra, 1997.
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SAUL, Ana Maria. A construção do currículo na teoria e a prática de Paulo Freire. In:
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SAUL, Ana Maria SAUL. Paulo Freire e a Educação Popular em sistemas públicos de
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http://36reuniao.anped.org.br/pdfs_trabalhos_aprovados/gt06_trabalhos_pdfs/gt06_278
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STRECK, Danilo; ESTEBAN, Maria Teresa (Orgs.). Educação Popular: lugar de
construção social coletiva. Rio de Janeiro, Editora Vozes Ltda. 2013.
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400985
INCLUSÃO SOCIAL E DIVERSIDADE CULTURAL EM PRÁTICASEDUCATIVAS NÃO-ESCOLARES EM UM NÚCLEO DE EDUCAÇÃOPOPULAR
Tânia Regina Lobato dos Santos - UEPAIvanilde Apoluceno de Oliveira - UEPA
ResumoEste estudo bibliográfico e documental tece reflexões sobre a convivência do educadorde um Núcleo de Educação Popular, com a diversidade cultural e a inclusão social emuma realidade educacional complexa, os ambientes hospitalares, comunitário e deacolhimento. Espaços não escolares, mas que possibilitam o desenvolvimento deatividades educativas com crianças, jovens, adultos e idosos. Os procedimentosmetodológicos adotados foram: revisão bibliográfica sobre o tema, consulta adocumentos, dados relatados pelos educadores e outros observados no processo deacompanhamento pedagógico. A convivência com a diversidade etária, étnica, clínica,cultural e social dos sujeitos vem sendo enfrentada pelos educadores, por meio dasuperação dos seus medos e preconceitos, buscando à luz de princípios éticos freireanosestabelecer o diálogo entre os diferentes, abrindo as portas para outros espaços,tornando visível as potencialidades dos sujeitos e motivando-lhes o desejo de estudar,de participar da vida social, de construir sonhos e viabilizá-los, entre outras ações.
Palavras-Chave: Diversidade Cultural. Educação Popular. Inclusão Social.
Introdução
O objetivo deste trabalho é tecer algumas reflexões sobre a convivência do
educador popular de um Núcleo de Educação Popular com a diversidade cultural e a
inclusão social, efetivada em atividades educativas com crianças, jovens e adultos em
ambientes hospitalares, espaço comunitário e com idosos em espaço de acolhimento.
O Núcleo promove estudos e práticas na área da educação popular, articulando a
universidade e instituições públicas, comunitárias e filantrópicas, por meio de atividades
voltadas para a formação de turmas de alfabetização, ação educativa e formação
continuada de discentes e docentes, constituindo-se em espaço de construção de novas
metodologias de ensino, de avaliação, de produção de materiais didáticos, de realização
de cursos, oficinas e de assessorias a projetos e práticas pedagógicas populares, entre
outras.
Entre as ações desenvolvidas destaca-se a prática educativa com crianças, jovens
e adultos em tratamento médico em ambiente hospitalar, provenientes de diversas
comunidades de Belém e de outros municípios do Estado. O fato de desenvolver ações
educativas em ambientes hospitalares o insere em um movimento de inclusão social e
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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educacional, entendendo-se que a educação é um dos principais instrumentos
propulsores de direito e exercício da cidadania.
Em relação ao ambiente hospitalar a referência é para dois Hospitais da cidade
de Belém onde o Núcleo desenvolveu atividades: o primeiro designado de Hospital A,
consistia em um espaço de atendimento transitório, a pacientes com transtorno mental,
em modalidade de semi-internato e o segundo, Hospital B, cujas atividades educativas
foram desenvolvidas em dois ambientes: o Albergue1 e o Infantil, atendendo tanto
pessoas em tratamento de saúde como os acompanhantes familiares. O espaço de
acolhimento, vinculado ao Governo do Estado, constitui num abrigo de idosos. O
espaço comunitário atende uma turma de jovens, adultos e idosos em processo de
alfabetização e funciona em uma escola municipal de um município da área
metropolitana de Belém.
Esses ambientes, no qual os educadores do Núcleo desenvolvem uma pedagogia
social, constituem uma realidade educacional complexa e diversa, tendo como um dos
principais desafios à inclusão social e educacional dessas pessoas marcadas por
estigmas e violência social.
Pedagogia Social pautada em:
uma educação inclusiva e para a diversidade cultural, engajadapolítica e eticamente com as problemáticas sociais das populaçõeshistoricamente negadas. Formação e prática pedagógica que seconfigure em luta pela inclusão social, que pressupõe umaresponsabilidade ética e política, em relação ao Outro, implicando emcriticidade, opção e decisão (OLIVEIRA; MOTA NETO; 2004, p.06).
Objetivamos, enquanto assessoras dos Grupos de Estudos e Trabalhos do Núcleo
apresentar e refletir sobre como os educadores que desenvolvem atividades educativas
com crianças, jovens e adultos, em ambientes hospitalares, comunitários e com idosos
em espaço de acolhimento, convivem com a diversidade cultural e o desafio da inclusão
socioeducacional.
Os procedimentos utilizados foram: o levantamento bibliográfico e documental;
a revisão bibliográfica sobre o tema; a consulta artigos, dissertações e relatórios de
atividades produzidos por educadores vinculados ao Núcleo; e dados relatados pelos
educadores e outros observados no processo de assessoria e de acompanhamento
1 Acolhe pessoas provenientes do interior do Estado e que necessitam permanecer em tratamentohospitalar em longo período. Os espaços foram mencionados neste texto com nomes fictícios.
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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pedagógico realizado nos ambientes hospitalares, comunitário e o espaço de
acolhimento locus das atividades educativas populares.
Três questões norteiam as nossas reflexões e análises: que contexto educacional
o educador popular se defronta no ambiente hospitalar? Que saber-fazer pedagógico
constrói nestes espaços educacionais complexos e diversos? Que desafios enfrenta para
desenvolver a inclusão socioeducacional das pessoas acolhidas nestes espaços?
Esperamos com este trabalho contribuir para o debate da diversidade cultural e
inclusão social e das possibilidades de trabalho educativo popular em ambientes
hospitalares, comunitários e de acolhimento de idosos.
Os desafios enfrentados pelo educador popular
Atualmente, no Brasil, encontram-se práticas educativas em ambientes
hospitalares e de acolhimento sendo desenvolvidas por instituições educacionais
governamentais, mas, sobretudo, as não-governamentais ou vinculadas à educação
popular, que vêem esses espaços denominados de não-escolar, como possibilidade de
garantir o direito de acesso ao conhecimento às classes populares, favorecendo ao
respeito à diversidade cultural e à inclusão social.
Entretanto, ao focarmos o olhar para esses ambientes não-escolares, nos
defrontamos com uma realidade complexa e diversa que coloca ao educador desafios
pedagógicos, entre os quais destacamos:
a) superar a escola como referência única do espaço pedagógico e modelo de
ensino-aprendizagem;
b) desenvolver a prática educativa atentando para a situação vivenciada pelo
educando: estado de saúde, crise, impedimentos médicos, motivações
individuais, entre outras;
c) superar do ponto de vista psicológico as dificuldades, os mitos, os
preconceitos, o estranhamento e o medo que o ambiente hospitalar e
especialmente o psiquiátrico provoca;
d) aceitar a diferença etária e cultural e o respeito às limitações do outro;
e) estabelecer relações interpessoais dialógicas e solidárias;
f) enfrentar o novo e construir novos referenciais educacionais;
g) ver-se em processo de formação humana permanente.
Esses desafios apontam para a construção de um saber-fazer pedagógico pautado
em pressupostos teórico-metodológicos da educação freireana, que norteia as ações
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400988
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educativas do Núcleo, considerando a sua dimensão ética e social e seu engajamento
político com os oprimidos. Os sujeitos dos ambientes hospitalares, de modo geral, são
oriundos das classes populares e seus quadros clínicos oriundos de uma situação social
demarcada pela pobreza, violência, marginalização, analfabetismo, desestruturação
familiar, entre outras.
Freire (1997) fomenta leituras de mundo, a construção dialógica de um pensar e
agir crítico no mundo e a valorização da pessoa humana, resultante de práticas
educativas libertadoras.
A esperança o diálogo, o respeito ao outro e ao diferente, a autonomia, a
tolerância e a solidariedade apresentadas por Paulo Freire em seu pensamento
educacional, constituem, antes de tudo, princípios éticos e atitudes perante a vida, a
educação e o conhecimento.
No decorrer deste trabalho percebemos como Ceccim (1997) e Freire (1997),
que o diálogo e a escuta pedagógica são fundamentais nesse processo, pois o fato de
existir preocupação com o outro torna essa escuta afetiva, pedagógica e dialógica. Freire
(1997, p.127, 128) nos auxilia, nessa reflexão, ao enfatizar:
Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário,não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como sefossemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, queaprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar comeles. Somente quem escuta pacientemente e criticamente o outro, falacom ele, mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele.
Ele refere-se a tolerância como uma:
virtude da convivência humana [...] por isso mesmo, da qualidadebásica a ser forjada por nós e aprendida pela assunção de suasignificação ética – a qualidade de conviver com o diferente. Com odiferente, não com o inferior. (FREIRE, 2004, p.24)
O respeito ético aos educandos é permeado por relações de alteridade e
afetividade. Tentar compreender o outro como ele é, significa respeitar as suas
limitações e potencialidades físicas, cognitivas e sociais e a sua autonomia como sujeito
histórico e social.
O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativoético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros[...] O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seugosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem [...]; o professor queironiza o aluno, que o minimiza, que manda que «ele se ponha emseu lugar» ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quantoo professor que se exime ao cumprimento de seu dever de proporlimites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estarrespeitosamente presente à experiência formadora do educando,
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transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossaexistência.(FREIRE, 1997, p.66).
Assim, é na perspectiva ético-política que entendemos ser a educação freireana o
caminho teórico-metodológico para o desenvolvimento de práticas pedagógicas
populares com crianças, jovens e adultos em tratamento de saúde em ambientes
hospitalares, comunitário e de acolhimento de idosos.
O ambiente hospitalar: de espaço de negação para o de afirmação depráticas educacionais
Historicamente o ambiente hospitalar assim como o de acolhimento não são
vistos como espaços de convivência de práticas educacionais, porque a educação vem
sendo dimensionada a um espaço restrito, a escola.
A partir do olhar para a escola como espaço de referência educativa,
caracterizado por ambientes fechados (salas de aula), horários rígidos, tempo e série de
estudo, presença regular e sistemática dos educandos e aprendizagem evolutiva, os
ambientes hospitalares e de acolhimento, por diferenciarem-se, são negados como
espaços educacionais.
Neste sentido, não só está restrito o espaço educacional como a concepção de
educação, que é vista reduzida à aquisição do saber escolar, não sendo reconhecido
outros ambientes possíveis de práticas pedagógicas como hospitais, abrigos, presídios,
entre outros. Estes espaços passaram a ser potencializados a partir dos movimentos
sociais e da educação popular, que problematizam a exclusão escolar pelo não acesso e
permanência com qualidade; apontam diversas situações de exclusão, como nos
ambientes hospitalares e de acolhimento, reconhecendo-os, também, como educacionais
e apresentam uma concepção de educação humanista e inclusiva, direcionada aos
“oprimidos” e excluídos sociais.
Para Brandão:
Uma das idéias mais fortes nos tempos de criação do que foi maistarde chamado de educação popular, é a de que podendo ser umaprática social de competência especializada, a educação é tambémmúltipla. Ela é plural, tem muitos rostos e serve a vários gostos. Elacomporta teorias sobre a pessoa, sobre a sociedade, sobre a história esobre o sentido do ensinar-e-aprender bastante diferentes. E elacontempla também diferentes planos de atividades. Educa-se dentro efora da sala de aulas, dentro e fora da escola (2002, p. 327).
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Góes (2009) enfatiza que, a Educação Popular adentra nos espaços não
convencionais de ensino, como movimento social de ruptura com as práticas
pedagógicas tradicionais. Insere-se como movimento de contestação do estabelecimento
das relações humanas discriminatórias e excludentes e tem na reflexão-ação-reflexão
sobre as condições concretas de vida do sujeito no mundo e com o mundo o
favorecimento de práticas de solidariedades e de respeito à vida.
Mas foi pela educação especial que a classe hospitalar passou a ser reconhecida
como modalidade de atendimento especial, direcionando suas ações educacionais para
deficiências, quadros psicológicos, neurológicos ou psiquiátricos e de dificuldades de
aprendizagem, entre outros.
O Documento “Diretrizes Nacionais da Educação Especial na Educação Básica”
(BRASIL, 2001, p. 38) garante o atendimento educacional especializado fora do espaço
escolar em classe hospitalar e em ambiente domiciliar, cujos objetivos são: possibilitar a
continuidade do processo de desenvolvimento e aprendizagem de alunos matriculados
em escolas de educação básica, de modo a reintegrá-los ao grupo social, e “desenvolver
currículo flexibilizado com crianças, jovens e adultos não matriculados no sistema
educacional local, facilitando seu posterior acesso à escola regular”.
Classe hospitalar é definida pelo MEC/SEESP como:
serviço destinado a prover, mediante atendimento especializado, aeducação escolar a alunos impossibilitados de freqüentar as aulas emrazão de tratamento de saúde que implique em internação hospitalarou atendimento ambulatorial.(BRASIL, 2001, p.38).
Assim, os pressupostos de uma educação inclusiva para a diversidade e de uma
educação de qualidade para todos, norteiam a preocupação com as crianças, os jovens e
os adultos confinados em tratamento de saúde, viabilizando a educação escolar em
ambientes fora do contexto da escola.
De fato, a educação inclusiva nessa perspectiva requer que o educador popular
seja capaz de trabalhar com a diversidade e que saiba criar novos ambientes de
aprendizagem, fator essencial à efetivação da inclusão na perspectiva de atender a
diversidade de situações e de espaços educacionais.
A educação hospitalar vem sendo apontada como significativa por estudiosos do
assunto, entre os quais, Teixeira (2006, p. 01):
Nos hospitais públicos brasileiros é possível encontrar quadros deextrema miséria da população e conhecer a realidade de muitascrianças e adolescentes enfermos que nunca freqüentaram as escolas
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regulares por motivos diversos tais como: dificuldades econômicas epatologias graves que os impediam de chegar até as escolas,processos de exclusão social, trabalho infantil, dentre outras razões.Muitas destas crianças e adolescentes somente tiveram aoportunidade de participar da escola, dentro do hospital. Nestaexperiência, esses alunos puderam compreender o seu significado apartir do momento em que nela se fizeram presentes. Desta maneira,as escolas nos hospitais têm representado uma outra ordenação nosistema escolar para estes cidadãos.
A identidade de ser criança ou adolescente é, nestes espaços, esquecida pela
internação ou tratamento prolongado, momento em que se depara com uma realidade
completamente adversa e longe do espaço comunitário e familiar, que lhe é peculiar. O
ser criança ou adolescente esconde-se nas rotinas e práticas de cuidados com a saúde
que as visualizam como “pacientes” ou “clientes”, que merecem cuidados específicos,
no caso médico, e o brincar e o estudar ficam em segundo plano. Este afastamento
temporário da sua rotina de vida familiar e comunitária provoca nas crianças e
adolescentes uma baixa auto-estima, uma apatia, uma desesperança.
Fonseca (2003, p.28) explica que: “para o aluno hospitalizado as relações de
aprendizagem numa escola hospitalar são injeções de ânimo, remédio contra os
sentimentos de abandono e isolamento, infusão de coragem, instilação de confiança no
seu progresso e em suas capacidades”. Sendo assim as atividades educativas realizadas
nos ambientes hospitalares acabam se transformando em motivadoras de esperanças e
sonhos que haviam sido perdidos. Berhrens (2012) contribui para essa argumentação ao
enfatizar que os profissionais que convivem nestes espaços com as crianças e
adolescentes, em situação de adoecimento, percebem a importância das atividades
pedagógicas para a melhora do estado de saúde.
No espaço de acolhimento, para os idosos estarem participando de «encontros
educativos» semanais possui um significado especial, é o momento da socialização, da
conversação, de trazer para discussão o que ficou na memória e no coração, sobre o que
experienciaram na família, no trabalho e na convivência social. Alguns idosos,
principalmente aqueles com seqüelas físicas em decorrência da idade avançada, vêm
superando as suas deficiências, pelos laços de solidariedade e de amizade que são
traçados pelo grupo de trabalho.
Neste sentido, nesses espaços, as práticas educativas se apresentam como
elevadoras da auto-estima dos sujeitos e motivadoras de projetos, como no espaço de
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acolhimento, cujos idosos construíram junto com os educadores, um glossário de
palavras que o tempo não permitiu esquecer.
Neste sentido, nesses espaços, as práticas educativas se apresentam como
elevadoras da auto-estima e motivadoras de projetos e de valorização dos sujeitos, que
ao questionarem suas condições materiais no mundo, desvenda as barreiras ideológicas
que o impedem de perceber-se como protagonista da sua própria história, como ser
contraditório e inacabado, como no espaço de acolhimento, cujos idosos construíram
junto com os educadores, um glossário de palavras que o tempo não permitiu esquecer.
A práxis que vem sendo construída nos espaços educacionais do Núcleo
No projeto pedagógico do Núcleo encontramos uma proposta de educação
popular freireana, sendo a prática pedagógica realizada por meio de um grupo de
trabalho interdisciplinar. Os educadores são provenientes de cursos diferentes e de áreas
de conhecimento também diferentes: Pedagogia, Ciência da Religião e Terapia
Ocupacional. Entretanto, a maior concentração é da área de educação do curso de
Pedagogia.
Ao iniciarmos as atividades pedagógicas no Hospital A o educador se defrontou
com um espaço não-inclusivo, por estar às relações interpessoais dos sujeitos restritas
aos membros de um determinado grupo social, o de pessoas em tratamento psiquiátrico.
Ambiente em que as portas fechadas eram impeditivas de sua circulação livre a outros
espaços do próprio hospital, ficando o contato destas pessoas apenas aos familiares e
aos profissionais de saúde. Há existência de rotinas e normas rígidas, com horários e
atividades pré-estabelecidas, geralmente não existe espaço preparado para o
atendimento educacional, usa-se o refeitório ou sala de atendimento médico para este
fim e há predominância de práticas de recreação e de terapia ocupacional em detrimento
das direcionadas à escolarização.
Em relação aos sujeitos observamos que estão afastados da escola, não estão
matriculados e não a freqüentam e este afastamento pauta-se, sobretudo, em um
discurso ideológico de que o doente em tratamento psiquiátrico não aprende e o acesso à
escola piora o seu estado mental.
Em Relatório Final da EJA (2006a) os educadores relatam que: a maioria das
crianças e adolescentes a partir do momento em que os sintomas psicológicos se
manifestam, apresentam dificuldades de adaptação na escola, sendo também excluídos
por integrantes das unidades escolares. Identificamos, também, a existência de
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preconceito em relação às pessoas em tratamento, percebido e expresso por eles, da
forma como os outros se referem a eles, como doidos, loucos. Esse preconceito é
materializado pela restrição de espaço, confinamento e afastamento de outros grupos
sociais.
A convivência com o mesmo grupo de pertencimento faz com que estes sujeitos
aceitem o outro doente, sem espanto, sem medo, como uma ação normal. Observamos,
em suas falas, a reprodução de fatos de sua vida familiar e da própria vivência no
hospital; expressões de críticas e, em alguns momentos, tanto a consciência dos motivos
de suas crises quanto situações de ausência ou surtos. As angústias dos sujeitos são
partilhadas e expressas pelos familiares.
Entre as cenas do cotidiano contadas em textos no formato de quadrinhos, foram
relatadas pelos educandos as seguintes situações de discriminação, entre outras:
L... em seu trabalho se baseou num fato real, desenhou cenas dadiscriminação sofrida, na qual seu vizinho fez sinal que era “doida” ,só porque foi reclamar da música alta [...] J.F... afirmou que a famíliachamou o bombeiro para ser retirado de casa, pois o mesmo não saiamais, devido ao transtorno. A... descreveu que uns amigos da oficinamecânica diziam que não podia mais trabalhar porque era “doido”(RD/EJA, 2006b, p.1-2).
Nas atividades pedagógicas os educandos expressaram, também, seus
sentimentos em relação ao trabalho educativo e de saúde desenvolvido no hospital,
como relevante para o momento que estão vivenciando. Para eles o Hospital A significa:
Um lugar de tratamento especializado [...] levando-nos saída ereabilitações para a vida.
Atendimento melhor na área da psiquiatria, somos mais assistidos.
Esperança, recomeço, grande ajuda profissional. É o amparo na horaque mais se precisa, é a vida renascendo. É o abraço fraterno quandonecessário [...] saúde mental, física e espiritual. A nossa vida nasmãos de profissionais e na nossa. (RD/ EJA, 2006b, p. 1)
As ações educativas foram desenvolvidas por meio de dois grupos: o primeiro,
no turno da manhã, com crianças e adolescentes, e o segundo, no turno da tarde, com
jovens e adultos. Estes grupos eram demarcadas pela diversidade etária, cultural e de
formação escolar.
As crianças e adolescentes atendidas foram cerca de 30, na faixa etária de 06 a
17 anos e na turma de Educação de Jovens e Adultos aproximadamente 25 educandos,
na faixa etária de 24 a 70 anos. Estes educandos permanecem no ambiente hospitalar em
tratamento de saúde de 01 a 03 meses, ou mais e são oriundos das classes populares. No
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momento em que a doença se manifesta afastam-se da escola (RF/CA, 2006), existindo
um processo de individualização proveniente da exclusão social e institucional.
O objetivo do trabalho educativo do Núcleo era possibilitar aos sujeitos do
Hospital A o acesso a conhecimentos escolares como a leitura e a escrita e a saberes do
cotidiano; a socialização, a reflexão crítica e o desenvolvimento de habilidades
cognitivas, emocionais, artísticas, e a inclusão escolar, entre outras. Isto é, viabilizar a
apropriação de conhecimentos e o domínio das habilidades de leitura e escrita associada
à leitura do mundo em que vivem, bem como, propiciar uma compreensão crítica do
cotidiano, com o objetivo de atenuar o processo do tratamento de saúde fadigoso e
prolongado ao qual estão submetidos, longe do espaço comunitário e familiar.
Os educadores explicam que um dos resultados positivos foi o retorno de 04
crianças e adolescentes à escola do ensino regular. (RF/CA, 2006), mas há uma
preocupação com o retorno destas pessoas à escola regular, que muitas vezes
apresentam práticas pedagógicas excludentes, face ao paradigma tradicional adotado.
A base metodológica são os temas geradores, mas entre as estratégias utilizadas
destacamos, com as crianças, a ludicidade e com os jovens e adultos, o teatro e a
comunicação popular. Nesta construção metodológica o diálogo e a escuta são as
referências pedagógicas. Os educadores escutam e dialogam com os profissionais de
saúde, o grupo de formação, os sujeitos em tratamento psiquiátrico e os seus familiares.
Neste diálogo e escuta ocorre a problematização de situações vividas pelos
educandos no seu cotidiano, como por exemplo, o relato de uma das atividades de
comunicação popular contida no Relatório Diário EJA (2006b):
Atividade: cada grupo com 3 pessoas iria relatar um problema e discutir como
resolver esse problema.
A forma de comunicação do grupo foi a Assembléia. Um dos participantes disse
que a assembléia é um espaço do hospital em que se diz o que se gosta e o que não se
gosta.
Problematização do grupo: “o medicamento é muito pesado, toma 11 remédios,
tem medo de dormir de tanto sono que tem, nem consegue participar das atividades”
expressou um dos participantes.
Resolução: a assembléia decidiu conversar com a médica para diminuir o
problema.
Essa escuta dialógica dimensiona-se, também, em um processo de formação
continuada, o educador ensina-e-aprende, bem como busca aprofundar os seus
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conhecimentos, por meio de cursos de formação e promover eventos de socialização do
trabalho produzido, um CD da rádio-novela da oficina.
As atividades educativas no Hospital B acontecem três vezes por semana, com
duas horas e meia de duração. (segundas, quartas e quintas-feiras) no horário de 14h as
15h30. O planejamento e avaliação das atividades são semanais.
Os sujeitos dessas atividades educativas eram crianças, jovens e adultos, na faixa
etária entre 05 a 45 anos, em processo de alfabetização ou não, que estavam em
tratamento especializado de saúde ou os acompanhando em Belém. Os educandos se
encontravam em situações diferenciadas: algumas permaneciam por pouco tempo;
outras, devido à gravidade do tipo de doenças ou as cirurgias reconstituidoras,
permanecem mais tempo. Todas as crianças, jovens e adultos presentes nos ambientes
hospitalares dispõem de acompanhamento de familiares, durante todo o período de
permanência. Assim, no Hospital B as pessoas que acompanham os educandos nos
hospitais também participam das atividades educacionais.
Vale ressaltar ainda, que o grupo era plural no que se refere à formação escolar e
de vida, encontrando-se em permanente movimento, ou seja, em determinados
momentos na formação do grupo predomina crianças, em outros, os jovens e adultos e
em outros, todos. Situação que requer habilidade e domínio teórico e metodológico dos
educadores, além de demandar estudo e reflexão sistemática do grupo sobre a prática
pedagógica desenvolvida.
O Hospital B pode ser caracterizado como um espaço que abriga crianças,
jovens e, adultos e seus acompanhantes que são oriundos do interior do Estado e estão
em tratamento de saúde especializado. Esse espaço apresenta característica diferenciada
dos demais, pois atende pessoas vitimas de escalpelamento2. A maioria dessas pessoas
são mulheres que são marcadas psicologicamente e traumatizadas por muito tempo, pelo
escalpelamento, pois altera a sua aparência física ao perder parte do couro cabeludo.
Esse ambiente hospitalar tinha, em comum, com o Hospital A, a convivência
com a diversidade cultural, a de uma população rural-ribeirinha da região amazônica,
desprovida de recursos necessários ao atendimento das necessidades básicas de vida e
de trabalho e usuários da assistência social. Deparamo-nos, de modo geral, com
pessoas, de diversas cidades do interior do Estado, que por sua condição de classe,
2 Acidentes em que crianças, jovens e adultos são escalpeladas pelas hélices de barcos, necessitandopassar por uma série de cirurgias plásticas reconstituidoras e permanecendo vários meses hospitalizadas.
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acrescida da de paciente em tratamento hospitalar, face à situação momentânea ou
permanente de saúde em que se encontram, estavam sem acesso ao saber escolar.
Oliveira (2004) explica que,
nossos educandos, advindos em sua maioria do interior do Estado, sãocrianças, jovens, adultos e idosos, mulheres e homens das classes populares,acometidos por uma enfermidade estigmatizada socialmente, que enfrentaminúmeras dificuldades, inclusive a financeira; tem que se deslocar paraBelém em busca de tratamento, sendo desafiados constantemente face àtriste realidade vivenciada no hospital e na Associação. Realidade doloridapelos tratamentos, pela discriminação social, pelas dificuldades financeiras eafetivas. Realidade carregada por um sóbrio sentimento de morte“circulando” entre corredores e salas de espera (OLIVEIRA et al, 2004, p.16).
Nas ações desenvolvidas no Hospital B os educadores identificavam que as
crianças, jovens e adultos vivenciavam situações adversas de vida, tais como, o
enfrentamento da morte e a esperança de cura, ou seja, a esperança de voltarem a ser
fisicamente o que foram um dia, antes da doença, o que as motiva a construírem
projetos de vida, entre outros.
Entretanto, a maioria possui uma baixa auto-estima, que geralmente encontra-se
associada à idéia de culpa, pois demonstram não estar satisfeito consigo mesmo,
valoriza os erros, pois estes estão associados ao fracasso e demonstram dificuldades em
se adaptar ao seu ambiente etário, social e escolar.
Diante deste quadro vivenciado no ambiente hospitalar, os educadores do
Núcleo desenvolvem ações lúdico-pedagógicas, alfabetizadoras e educacionais visando
ampliar e superar as dificuldades pessoais das crianças, jovens e adultos, fazendo com
que eles se percebam potencialmente capazes e assim contribuir para seu processo de
recuperação. É importante ressaltar que as práticas pedagógicas desenvolvidas se
caracterizam como inovadoras, pela maior flexibilidade curricular e a construção de
novas metodologias face à especificidade do grupo atendido.
Os educadores, por meio da ação-reflexão-ação, buscam a construção o processo
de formação das pessoas envolvidas, não só para formar, mas, também, para se formar,
mediante a escuta solidária e fraterna que humaniza. Portanto, é um processo
educacional caracterizado pela diferença tanto da prática educativa tradicional, pelo seu
aporte freireano, como pelas ações pedagógicas realizadas no espaço.
Ressaltam os educadores:
fomos capazes de auxiliar os educandos a superar dificuldades comofalar diante do grupo, de maneira espontânea, falta de integração aogrupo, e, além disso, podemos dizer que nossa maior conquista nestavivência foi ganhar a confiança dos educandos, no sentido de eles
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estarem à vontade conosco, não nos verem como pessoas estranhasque vão passar algumas horas da semana com eles, isso é muitoimportante para nós. (RF/CJA, 2007, p.22)
As atividades educativas do Núcleo ressignificam o sentido da permanência de
crianças, jovens e adultos nesses ambientes. Antes considerado espaço de espera e de
tratamento ambulatorial, com as ações educativas, passou a ser visto como um espaço
educacional, ao estabelecer laços de convivência fraterna, solidária, reflexiva, amorosa e
esperançosa entre os sujeitos atendidos, e, ainda, romper barreiras do preconceito. O
Núcleo, então, vem possibilitando um clima de maior confiança e aceitação ao
tratamento e do ambiente hospitalar como espaço educativo.
Rodrigues (2014) enfatiza que a partir do engajamento no ambiente hospitalar
contatou que existia a falta de informação sobre a doença e o tratamento que estão
sendo submetidos, as práticas educativas populares contribuiam de certa forma para
ressignificar o poder da palavra e da escuta pedagógica.
No decorrer das atividades no ambiente do Hospital A, foi possível perceber que
o diálogo e a escuta pedagógica são fundamentais para os educandos superarem a
insegurança e a angústia da situação em que estão vivendo. Neste sentido, a
aproximação com os mesmos é significativa, tanto para estabelecer processo de
verbalização e superação do medo como também gerar situação de humanização.
A escuta pedagógica “vai além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar,
no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito
que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro”
(FREIRE, 1997, p. 135). Neste sentido entendemos a relação dialógica como a
possibilidade dos sujeitos aprenderem e crescerem juntos respeitando as diferenças.
As ações no Hospital B aconteciam de forma sistemática, a partir de um
planejamento semanal e do registro das atividades e das falas significativas, que
subsidiam outras atividades e temáticas geradoras. Este levantamento possibilita
conhecer a história de vida dos educandos, famílias e responsáveis mediante sucessivos
diálogos, complementado por atividades individuais e em grupo, com o auxilio de
atividades lúdico-pedagógicas, educacionais e de alfabetização.
Nesses diálogos os educandos expressavam desde a saudade da família por
estarem muito tempo no hospital até aspirações de vida em função das causas de
estarem hospitalizados.
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Estou aqui há duas semanas e quatro dias, já estou com saudades daminha mãe, do meu pai, dos meus irmãos, da minha filha e da minhaesposa que me tratam com muito carinho. (J apud /RF/CJA, 2007, p.8).O meu cabelo era mais ou menos assim como o cabelo desta mulher,eu queria tanto que o meu cabelo voltasse a ser como era antes (Eapud /RF/CJA, 2007, p. 15).
Nas atividades desenvolvidas subjaz o construto sócio-antropológico, que
subsidia a elaboração da rede temática e faz emergir os temas de maior significação para
as crianças, jovens e adultos. A metodologia apresenta-se como dinâmica,
interdisciplinar e com flexibilidade curricular, tendo como referência a análise
contextual de temas e palavras geradoras extraídas de atividades criadoras
desenvolvidas com os educandos e leva em consideração o estado clínico dos educandos
e o respeito as limitações decorrentes da doença e do tratamento a que estão se
submetendo.
Neste sentido, o trabalho desenvolvido a partir de temas geradores torna-se
fundamental em atenção a estes aspectos citados anteriormente e ao desenvolvimento de
uma postura que privilegia a construção do conhecimento, pois valorizam os saberes
culturais, situando os conteúdos na perspectiva cultural dos educandos. Os temas
geradores são caracterizados como um percurso que favorece a análise, a interpretação e
reflexão crítica, diálogo e criatividade.
As educadoras destacaram sobre a aprendizagem vivenciada no Hospital B as
relações humanas construídas:
Há educandos que foram embora e que não voltarão, mas quemarcaram nossas vidas para sempre. Neste momento nos referimos apessoas como R que se alfabetizou conosco e que foi uma de nossasmaiores fontes de aprendizagem. De todas as aprendizagens com R,tantas M... a maior foi, está sendo o relacionamento humano,aprendemos, sobretudo, o quão complexo (no sentido de grandioso,enriquecedor) é o nosso relacionamento com todas essas pessoas [...]A substancial recompensa do nosso trabalho vem de dentro daspessoas e, assim, cresce dia-a-dia dentro de nós. (RF/CJA, 2007,p.22-23)
No espaço de Acolhimento o educador popular se defronta com um ambiente
restrito a um grupo de pessoas, os idosos e profissionais de assistência social e da saúde.
Convivem com rotinas, normas, horários e atividades pré-estabelecidas. Não existe
espaço preparado para o atendimento educacional, usava-se a sala de visita, a maloca,
que é espaço aberto e ventilado, ou a sala de fisioterapia.
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Entretanto, é no campo das representações que os educadores encontravam os
maiores desafios, porque existe um olhar para a pessoa idosa como a que não tem mais
porque aprender e desenvolver determinadas ações, entre as quais a de freqüentar uma
escola. A perspectiva de vida é restrita, sem esperanças e sem sonhos para o futuro.
Os encontros educativos do Núcleo, então, tornam-se mais do que um espaço
alfabetizador, um ambiente socializador e humanizador, de convivência, de diálogo, de
amorosidade e de inclusão sócio-educacional.
Os encontros educativos são realizados nas 4ª e 6ª feiras das 9:00 às 11:00 horas,
em um abrigo de idosos localizado em área periférica da cidade de Belém do Pará.
A turma é diversa, constituída em torno de 10 pessoas, com idade entre 65 e 85
anos. Alguns se encontram na fase inicial de alfabetização, mas a maioria está em nível
mais avançado, com o ensino fundamental incompleto e um com o ensino médio
completo. Alguns idosos apresentam limitações na fala, visão, audição e locomoção.
Entre as atividades desenvolvidas destacam-se: a) pesquisa socioantropológica,
em que se faz o levantamento do universo vocabular do grupo; b) ações educativas
interdisciplinares em torno de temas geradores, entre as quais, a discussão da temática
geradora, o trabalho pedagógico com as famílias semânticas, a construção de novas
palavras geradoras e a construção de texto coletivo e c) memória viva. Construção do
glossário de palavras que fazem parte do vocabulário popular expressas no decorrer do
encontro educativo. Algumas dessas palavras, segundo os idosos já caíram em desuso,
mas permanecem em suas memórias. (RF/ID, 2006).
A atividade de memória viva foi significativa para os idosos que não apenas
apresentavam os significados das palavras, mas as associavam às suas histórias e
experiências de vida. Um dos pressupostos do trabalho pedagógico desenvolvido no
espaço de acolhimento foi considerar “o cotidiano dos sujeitos envolvidos no processo
educativo, porque o cotidiano é espaço de relações sociais carregadas de significados
[...] fecundo de questões sociais” (SILVA et al, 2007, p. 03).
Silva et al (2007, p. 03) refere-se à compreensão que os educadores possuem
sobre o idoso:
O idoso na simplicidade da sua vida cotidiana é considerado, aqui,como uma pessoa, um ser humano que tem importância, valor e voz.Que tem oportunidade de falar, de criar e recriar.
Os educadores no trabalho pedagógico utilizaram metodologias diversificadas
como, dinâmicas grupais, leituras de poemas e poesias, produção de textos orais,
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escritos e coletivos. Destacam-se entre as estratégias pedagógicas a escuta de músicas
antigas e a apresentação de vídeos das cidades de origem dos idosos, em torno dos quais
memorizam fatos do cotidiano social, assim como expressam oralmente as palavras em
desuso e os educadores trabalham de forma interdisciplinar os conteúdos.
Neste sentido, oralidade, diálogo e memória são as palavras-chave do trabalho
pedagógico com os idosos. A partir do diálogo, da problematização e da relação de
confiança e carinho que foi estabelecida pelos educadores com os idosos possibilitou
que os mesmos expressassem com naturalidade o seu pensamento, a sua linguagem, os
seus desejos e as suas angústias partindo da história de vida de cada um.
O espaço comunitário possui uma turma de alfabetizandos e tem como locus
um município da região metropolitana de Belém e funciona em uma escola municipal.
O grupo é constituído de jovens, adultos e idosos excluídos do sistema educacional e em
processo de alfabetização, que se integram às práticas escolares mediadas pela
Educação Popular.
As educadoras desse espaço são da área de educação sendo que três estão em
processo de formação inicial. Estas desde o inicio do trabalho se deparam com uma
diversidade de sujeitos, formações, trajetórias de vida, que as impulsionam a
curiosidade, conscientização e a conhecer a realidade dos sujeitos envolvidos no
processo educativo. Nas palavras de uma educadora do espaço o Núcleo “me ensinou
através da prática que por meio do empenho coletivo tanto de educadores quanto de
educandos é possível que você possa exercer transformações satisfatórias naquele
aluno”.
Segundo Rodrigues (2014) esses educadores ao terem contato com a educação
popular repensam a sua atuação humana e percebe o “outro” como um ser humano.
Destacam ainda, o compromisso e a responsabilidade social de lutar pela inclusão dos
excluídos. A Educação Popular humanista de Freire subsidia o trabalho dos educadores
com o grupo de jovens, adultos e idosos. Consideram: a) educação e saberes a partir de
Freire; b) estudo para além do ler e escrever; c) garantia e respeito à voz dos
alfabetizandos.
Neste sentido o trabalho realizado é a possibilidade por meio da Educação
Popular de construir um espaço de diálogo, de respeito a identidade, ao conhecimento e
contexto social que vivem. É o respeito ao conhecimento popular ir além do processo de
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alfabetização em atenção à diversidade cultural dos educandos. A esse respeito enfatiza
Rodrigues (2014) que “durante o trabalho com o tema gerador “desemprego” que
desdobrou para “produtos da cesta básica”, e, em seguida “produtos agrícolas
produzidos no Pará”, os alunos comentaram sobre o plantio do Açaí, fruto que tem uma
dimensão cultural muito forte no Pará [...]”. Essa situação vivenciada com o grupo
aponta a necessidade de o educador valorizar a diversidade da realidade sócio-cultural,
ou seja, transformando-a dando um novo sentido.
Os educadores diante dos ambientes hospitalares, comunitário e de acolhimento
retiram como lições dessa convivência com a diversidade cultural: (a) a contradição
entre a formação recebida e a realidade vivenciada no ambiente hospitalar. A formação
do pedagogo está centralizada no ambiente escolar; (b) a necessidade de enfrentamento
da realidade, tendo que partir em busca de formação, de articular-se a outros
profissionais da saúde, da educação e de Movimentos Sociais, e o desenvolvimento de
estratégias pedagógicas, como o trabalho em equipe interdisciplinar, para a construção
do saber-fazer pedagógico que possibilite a convivência com a diversidade cultural e a
inclusão socioeducacional.
Segundo Rodrigues (2014) o contato dos educadores com a concepção freireana
de educação possibilita aos jovens graduandos envolvidos nas ações do núcleo, os ajuda
a constituírem-se como educadores e construírem valores éticos, responsabilidade em
uma dimensão humana, política, critica e dialógica. A participação do sujeito-educador
gera a reflexão sobre a prática e sobre o sujeito-educando e conduz a formação de
“novas” concepções de ensinar e aprender. A educação em uma perspectiva popular
toma a realidade social dos sujeitos, problematizando-a.
Considerações Finais
Nos ambientes educativos hospitalares, comunitário e de acolhimento de idosos
foi redimensionado o sentido da permanência das crianças, jovens, adultos e idosos.
Antes eram considerados espaços de espera, e atualmente, desenvolvem-se ações
educativas, de caráter pedagógico-lúdico, que enfrentam resistências, estabelecem
possíveis laços de convivência mais fraterna, solidária, reflexiva, amorosa e esperançosa
entre os sujeitos atendidos, e, ainda, rompe barreiras do preconceito. Surge, nesses
lugares, um clima de maior confiança e aceitação do ambiente hospitalar como espaço
educativo. Com os jovens e adultos foram potencializadas as suas diversas habilidades e
a construção de projetos de participação coletiva.
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Espaços que, tanto no âmbito da formação dos direitos, como na construção de
pedagogias específicas, apresentam resultados significativos tanto no trabalho
desenvolvido com as crianças quanto com os jovens, adultos e idosos, contribuindo
também para a formação continuada dos educadores.
As possibilidades de construção coletiva de saberes e alianças, pelas práticas
interdisciplinares reforçam a força transformadora e libertadora dos espaços de
educação “popular” em ambientes hospitalares, comunitário e de acolhimento de idosos.
A educação, como caminho para a construção da cidadania e o processo educativo com
vistas à autonomia, que transforma tanto os profissionais envolvidos como os discentes
em sujeitos de direitos, voltados para o bem estar individual e coletivo, promovendo o
educar da autonomia e para a cidadania.
Como conseqüência da ação pedagógica dialógica e humanizadora do Núcleo,
identificamos que a convivência com a diversidade etária, étnica, clínica, cultural e
social dos sujeitos vem sendo enfrentada pelos educadores, por meio da superação dos
seus medos e preconceitos, buscando à luz de princípios éticos freireanos estabelecer o
diálogo entre os diferentes, abrindo as portas para outros espaços dos hospitais,
comunitário e de acolhimento de idosos, tornando visível as potencialidades dos sujeitos
como pessoa humana, motivando-lhes o desejo de estudar, de participar da vida social,
de construir sonhos e viabilizá-los e, ainda, informando-se e formando-se em processo.
Enfim, enfrentando o desafio da inclusão educacional em ambientes não-escolares.
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