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Direito e trabalho análise Das reformas trabalhistas

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Cláudio ArmAndo CouCe de menezes

Direito e trabalhoanálise Das reformas trabalhistas

Desembargador da 17ª Região ES; mestre e doutor pela PUC-SP, Investigador Internacional pela Universidad de Castilla-La Mancha, Espanha.

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EDITORA LTDA.

Rua Jaguaribe, 571 CEP 01224-003 São Paulo, SP — Brasil Fone (11) 2167-1101 www.ltr.com.br Maio, 2017

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Todos os direitos reservados

Versão impressa — LTr 5629.7 — ISBN 978-85-361-9189-8 Versão digital — LTr 9144.1 — ISBN 978-85-361-9240-6

Índice para catálogo sistemático:

Menezes, Cláudio Armando Couce de

Direito e trabalho : análise das reformas traba-lhistas / Cláudio Armando Couce de Menezes. — São Paulo : LTr, 2017.

Bibliografia.1. Reforma constitucional — Brasil 2. Trabalho e

classes trabalhadoras — Brasil I. Título.

17-02630 CDU-34:331.001.73(81)

1. Brasil : Reforma trabalhista : Direito do trabalho 34:331.001.73(81)

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Dedicatória

Para você Glaucia, cujo gostar tornou possível que um simples pensamento se tornasse realidade.

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Meus agradecimentos ao Professor Pedro Paulo Teixeira Manus por todo apoio que

prestou para que este trabalho fosse adiante.

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Quanto mais nos avizinhamos do perigo, com maior clareza começarão a brilhar os caminhos para o que

salva, tanto mais questões haveremos de questionar. Pois questionar é a piedade do pensamento.

Martin Heidegger

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Sumário

ApresentAção .............................................................................................................15

introdução .................................................................................................................17

1. A pretendidA objetividAde dA CiênCiA Frente Ao reAl ...............................................23

2. o pApel dA téCniCA nA Análise CientíFiCA: eFiCáCiA e rACionAlidAde ...........................33

3. ideologiA e direito: A CrençA numA ideiA dAdA Como CertA ......................................39

4. A expressão do poder por meio do direito e suA legitimAção soCiAl ........................61

5. As Funções dA CiênCiA do direito ............................................................................89

6. o poder do disCurso e dA linguAgem jurídiCA e suA ApliCAbilidAde: o desCAso do direito Com o Fenômeno do trAbAlho .....................................................................98

7. As dimensões do trAbAlho e A reFormA trAbAlhistA ..............................................104

7.1. A evolução e o significado do trabalho nas diferentes sociedades ................104

7.2. A legislação laboral e as novas formas de trabalho ......................................110

7.3. Técnicas e estratégias empresariais de exploração do trabalho e a reforma trabalhista ....................................................................................................118

7.4. Considerações sobre a reforma trabalhista, o trabalho e o direito ................159

Conclusão .............................................................................................................. 169

Referências Bibliográficas ..................................................................................... 173

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Amando, aumenta

até duas mil vezes o tamanho.

(Paulo Leminski)

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ApreSentAção

É sabido que o Direito do Trabalho passa, neste momento, por sérias transformações, o que reclama cuidado extremo na condução dos rumos dessas mudanças. E a necessária relação entre o trabalho, a filosofia do direito e a ciência jurídica não se

mostra efetiva, o que é essencial para a correta compreensão das questões que envolvem as relações entre empregados e empregadores.

Para que se alcance estes objetivos sociais faz-se necessário um sério e sólido in-cremento do necessário embasamento científico, para fundamentar a correta condução das relações trabalhistas.

Neste sentido vem somar-se o livro Direito e Trabalho — análise das reformas trabalhistas, do Desembargador e Professor Cláudio Armando Couce de Menezes, que se ocupa, fundamentalmente, desta relação entre o fenômeno do trabalho com a filosofia jurídica e a ciência do direito.

O livro contém sete capítulos e uma introdução, na qual o autor expõe ao leitor o plano da obra e seu conteúdo, permitindo vislumbrar, desde logo, a importância da visão real sobre a condição do trabalho, com arrimo na filosofia do direito e na ciência jurídica.

Analisa no capítulo dois a pretendida objetividade da ciência frente ao real, subli-nhando a necessidade, para a correta compreensão da realidade a visão concreta, sem o que se torna fictícia e enganosa a análise dos fenômenos sociais. E no capítulo três ocupa-se a obra do papel da técnica na análise científica, sob a ótica da eficácia e da racionalidade.

O capítulo quatro trata da questão central da ideologia e direito, expressa na ques-tão da crença numa ideia dada como certa, alertando o leitor para o viés ideológico de toda análise. Segue-se no capítulo cinco o exame da expressão do poder por meio do direito como forma de sua legitimação social.

A análise das funções da ciência do direito e o poder do discurso e da linguagem jurídica e sua aplicabilidade ocupam o capítulo sete da obra.

Fixados os fundamentos da sólida argumentação do autor, passa o capítulo oito da obra ao estudo das dimensões do trabalho e a reforma trabalhista que se anuncia.

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Aqui cuida da evolução e significado do trabalho nas diversas sociedades, assim como disserta sobre o tema das novas formas de trabalho. A seguir examina as técnicas e es-tratégias empresariais na exploração do trabalho e a reforma da legislação do trabalho, para chegar ao exame desta reforma, sob a ótica do trabalho e do direito.

Conclui a obra o autor afirmando a necessidade de “rever os paradigmas na análise do trabalho, cuja reflexão não deve ficar em patamar inferior à propriedade, aos contra-tos, à sucessão, ao Estado, aos problemas da lei e à outras questões que empolgam os cientistas e pensadores do direito”, asseverando a premência de uma postura séria em relação ao fenômeno do trabalho, como compromisso social dos pensadores do Direito.

Cláudio Armando Couce de Menezes, Desembargador do Tribunal Regional do Tra-balho da 17ª Região, com sede em Vitória, no Espírito Santo. Foi membro do Ministério Público do Trabalho, no qual ingressou por concurso público e, a seguir, igualmente me-diante concurso público, ingressou na Magistratura do Trabalho, ocupando os cargos de juiz substituto, juiz titular de Vara do Trabalho, até alcançar o cargo de Desembargador do Trabalho. Foi Vice-Presidente e Presidente daquela Corte, além de ter atuado como convocado no Tribunal Superior do Trabalho.

Como acadêmico e professor é mestre e doutor em Direito do Trabalho pela Pon-tifícia Universidade Católica de São Paulo, além de ser Investigador Internacional pela Universidad de Castilla-La Mancha, na Espanha. Ademais, tem larga experiência no magistério superior, em cursos de formação profissional na área do direito, além de ser autor de obras jurídicas.

Conheço Cláudio Armando Couce de Menezes do programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica, além do contato com sua produção científica e sua atuação como magistrado do trabalho.

Desde nossos primeiros contatos observei seu interesse pelo estudo do direito e participação construtiva e valiosa nos debates acadêmicos. Destacou-se pelo seu em-penho, dedicação e entusiasmo, voltados à necessidade de priorizar os princípios do Direito do Trabalho e a proteção ao trabalhador, sem perder de vista a necessidade do debate acadêmico para melhor equacionar e solucionar os conflitos entre empregados e empregadores.

Com estes predicados o Desembargador e Professor Cláudio Armando Couce de Menezes oferece-nos uma valiosa e polêmica obra, ao ensejo da reforma trabalhista, que pelo seu conteúdo de qualidade e posições assumidas ensejará rico e intenso debate sobre o tema, o que nos auxiliará na escolha dos melhores rumos a seguir.

Pedro Paulo Teixeira Manus Professor Titular e Diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP.

Ministro aposentado do Tribunal Superior do Trabalho.

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introdução

Os temas que abordaremos aqui dizem respeito à difícil relação entre o trabalho, a filosofia do direito e a ciência jurídica. A nosso ver, o trabalho não parece consti-tuir um tema que empolgue, em geral, os filósofos e cientistas do direito, ficando

mais adstrito ao campo dos juslaboralistas e sociólogos. Isso ocorreria apesar dos ricos questionamentos que seu enfoque pode trazer ao enfrentamento de pontos importantes, como a função e o escopo da técnica e das ciências, além de debates relevantes acerca dos fenômenos do poder, da dominação, da legitimação e da ideologia, sem perder de vista seus vínculos com o direito, em especial com o direito do trabalho.

Nosso esforço inicial é uma tentativa de indagar as razões pelas quais o trabalho seria alvo de um quase silêncio institucionalizado nos campos do saber mencionados aci-ma, ao passo que empolga estudos, seminários, teses e congressos; inflamados editoriais jornalísticos e matérias veiculadas na grande mídia; movimentos populares, discursos empresariais e da classe política, a par de uma febril atividade legislativa destinada à sua desconstrução (precarização, desregulamentação e flexibilização, por exemplo) — tudo sob o argumento de que é necessária uma reforma para modernizar as relações trabalhistas no país.

Curioso é que pouco se fala de uma reforma tributária (profunda) ou de uma (au-têntica) na esfera política, que possa corrigir os descalabros em que vive a República há longos anos. Mas isso é tema para outras reflexões, embora cause grande estranheza pôr o trabalho e seu direito como algo danoso, atrasado e pouco eficiente, enquanto a vida política patina em sucessivos escândalos, assim como os partidos e seus líderes, para não dizer toda a classe política, gozam de uma grande falta de legitimidade. E, na esfera tributária, a injustiça fiscal permanece, além da oneração das empresas em tributos de toda ordem, que pesam, decididamente, no desenvolvimento da atividade econômica.

Mas nosso objeto de preocupação imediata reside, após uma investigação sobre os motivos pelos quais se cogitaria acerca da existência de uma lacuna ou de um tratamento secundário sobre o fenômeno do trabalho, evidenciar sua relevância, perquirindo se a dita ciência jurídica e a filosofia do direito deveriam cuidar do trabalho como um fenômeno central do direito — sobretudo em um momento tão delicado, em que, sob o pretexto

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de modernizar as relações laborais, o que se persegue, em realidade, é a desconstrução do trabalho como valor e a sedimentação da sua precarização social e jurídica.

Para responder a tal questão, procuramos tratar de certas concepções e mistifica-ções comuns na esfera jurídica que inúmeras dificuldades trazem para uma análise mais abrangente do trabalho e das leis, da doutrina e da jurisprudência criadas em seu entorno.

Com efeito, isso se faz necessário frente às ocultações e distorções trazidas por certa retórica, hoje hegemônica no campo político e econômico, com reflexos nas relações jurídicas e no direito do trabalho e nas suas questões de forte impacto social. Esse quadro torna-se mais difícil de ser analisado (e enfrentado) quando setores do saber jurídico não se propõem a fazê-lo, conquanto seja fundamental, já que trata do homem. E o homem, pensamos nós, deve ser sempre a preocupação maior do direito e da sua elaboração.

Assim, para que não pairem dúvidas sobre nossa visão, iniciamos este estudo re-fletindo sobre a autodenominada ciência do direito, que, por meio de seus discursos e sistemas, termina por camuflar, ou pôr em segundo plano, os problemas gerados por uma concepção tecnicista do direito, cujo conteúdo ideológico é inegável ao mascarar ou negar as relações de poder e os interesses das classes dominantes na construção, na interpretação e na aplicação do arcabouço jurídico.

Nessa breve exposição inicial, faremos um registro de algumas correntes jurídicas e filosóficas, assim como da reflexão de juristas e pensadores relevantes para o enfren-tamento das questões que trataremos a seguir.

Propomos como ponto de partida o positivismo, base da ciência do direito, cujas inúmeras vertentes, seja no plano filosófico, seja no jurídico, onde ocupa lugar de desta-que, servem como referência às nossas preocupações. O positivismo, presente no lema da bandeira do Brasil (Ordem e progresso, esqueceram o amor: “O amor por princípio, a ordem por base; o progresso por fim”, no original de Auguste Comte), foi reativado como positivismo lógico, também denominado empirismo lógico ou neopositivismo.

Para o positivismo jurídico, o direito consistiria em uma ciência, separada da moral, do substrato axiológico, girando em torno da segurança jurídica por meio de sistemas lógicos e científicos. Em sua concepção mais primitiva, o direito seria apenas o conjunto das leis postas pelo ordenamento jurídico, e crenças, moral, valores e princípios restariam ao largo do foco de análise do cientista do direito. A este ficaria a incumbência de evitar (ou superar) antinomias, lacunas e imperfeições do sistema.

Os pontos de contato entre as duas construções são bem maiores do que em geral reconhecem os cientistas do direito. Em verdade, o positivismo jurídico foi apenas mais uma das vertentes do positivismo filosófico, em sua desmedida pretensão de explicar todos os fenômenos do conhecimento humano de forma objetiva, racional e sujeita à demonstração por métodos científicos. Daí que, em nosso rápido registro, teceremos considerações genéricas, particularizando alguns aspectos que entendemos relevantes à reflexão.

O positivismo, segundo Comte (SIMON, 1991; VERDENAL, 2000), não é uma corrente filosófica como as outras, mas o último estágio alcançado pela humanidade,

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fundado e regido pela ciência. Sua concepção tem na ordem, na norma, no sistema e na hierarquia lugares de destaque. No pensamento positivista comtiano, presenciamos a recusa e o desprezo pela metafísica; a confiança sem reservas na ciência; o esforço por dar forma científica ao estudo dos fenômenos sociais; a proposta de uma sociedade científica. A ciência consiste numa instância dogmática, fonte de certeza absoluta. A sua filosofia positivista propõe ainda a limitação de fronteiras entre as disciplinas, pois as ciências formariam um todo fechado, compartimentado, sujeito a uma hierarquia ordenada (VERDENAL, 2000, p. 235-236).

Em Carnap (2002), expoente dos positivistas do Círculo de Viena, encontraremos condensado e claramente exposto o racionalismo científico, descritivo, lógico e coorde-nado. Segundo ele, — Kelsen, outro positivista, já da área jurídica, também fazia parte dessa comunidade —, a nova maneira de filosofar, o positivismo lógico, teria surgido de um contato estreito com as ciências. Em consequência, o filósofo adotaria um procedi-mento rigorosamente científico, inato ao cientista. A ciência seria única, objetiva, sem o desvio que caracterizaria a filosofia especulativa, carecedora de rigor científico e incapaz de justificar suas teses de modo racional (CARNAP, 2002, p. 54). A pretensão de negar a filosofia (ao menos a metafísica) e a existência de ideologias e interesses nas teses científicas são constantes na atitude positivista (BOUVERESSE, 2002, p. 54).

Essa atitude do positivismo corresponde a um tema clássico, encontrado em Comte, Mach e nos lógicos (tema central da filosofia das ciências do Círculo de Viena): a unidade fundamental da ciência e de seus métodos. Deve haver uma unidade que permita uma distinção entre a ciência e a não ciência (BOUVERESSE, 2002, p. 22). Para os positivistas lógicos, inclusive, todas as ciências se parecem, ao menos no sentido de que, pela sua linguagem, assumem métodos da lógica científica.

Tal programa estabeleceria uma base única que, a partir de conceitos e enunciados, compreenderia, por exemplo, a sociologia e a psicanálise (BOUVERESSE, 2002, p. 24). E daí para o direito, história, antropologia etc. O caminho é o indicado pela ciência. Não há via de acesso à verdade que não seja a científica. Cabe ao pensador filósofo/cientista construir significações e assinalar sua validade.

Esse escopo de transformar o pensamento em um método ou em sistemas lógi-cos, matemáticos, formais ou técnicos, segundo uma crítica humanista, não se presta (ou pode não servir ou serve muito mal) a vários domínios do conhecimento. Aliás, a história recente das experiências totalitárias e autoritárias da humanidade bem revelaria os perigos das teorias que reivindicam, obstinadamente, a denominação de científicas, neutras, racionalistas ou desprovidas de interesses, valores ou ideologia.

Com efeito, não se deve olvidar que, de sua pretensão original de tornar-se a Teoria do Direito, o positivismo jurídico transformou-se (se já não era desde o seu início) em ideologia, de modo a propiciar que, em diferentes partes do mundo, o fetiche da lei e o legalismo acrítico servissem de disfarce para o autoritarismo das mais diferentes espé-cies. Fundando a legitimidade do discurso jurídico a partir do plano exclusivo da validade formal — e esta, por sua vez, estruturada apenas em uma relação de exercício de poder legiferante —, permitiu, ao longo do século passado, que certos movimentos políticos

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de índole conservadora ou reacionária, ascendendo ao poder, promovessem a barbárie em nome da legalidade que estava em suas mãos. A ideia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida — qualquer ordem (BARROSO, 2010, p. 24).

Em tempos em que a humanidade novamente flerta com a intolerância política e o autoritarismo, impõe-se lembrar os riscos da sustentação jurídica à autoridade e seus atos direcionados a políticas de retrocesso social e jurídico, supressão de garantias e liberdades individuais (ainda que por meios dissimulados) e restrição de direitos funda-mentais e sociais, legitimadas por leis, jurisprudência e doutrina que seguem uma certa lógica positivista, que procura imunizar a crítica e a resistência. A prisão do magistrado à lei, seja qual for o seu conteúdo, neutro, um mero técnico do direito, distante dos conflitos sociais, serviu perfeitamente aos regimes autoritários da América Latina nas décadas de 1960 e 1970 (Argentina, Brasil, Chile, Uruguai etc.), aos regimes fascistas da Alemanha e da Itália e aos de colorações semelhantes como a Espanha de Franco e Portugal de Salazar.

Importante lembrar que o Documento Técnico n. 319 do Banco Mundial, conhecido como Relatório do Banco Mundial para a Reforma do Judiciário, propõe um sistema jurí-dico em que o Poder Judiciário deve aplicar as leis de forma previsível e eficiente, propício ao comércio e aos investimentos econômicos e financeiros. Essa diretriz, entre outras tantas repercussões, informou as sucessivas reformas judiciárias e processuais que vêm ocorrendo no Brasil desde 1994, até chegar ao Código de Processo Civil (CPC) de 2015.

Esse relatório bem poderia ser considerado a norma fundamental, acima e por trás das normas (inclusive de emendas constitucionais) que se formaram em torno dos pactos republicanos, cartilhas que determinam, passo a passo, um caminho a ser trilhado pelos poderes do Estado, pelo Executivo, pelo Legislativo e pelo Judiciário, notadamente pelas cortes superiores, para evitar que o Estado e o direito atrapalhem o mercado: agências reguladoras ou órgãos de controle administrativo; o controle jurídico e jurisdicional por súmulas; o estímulo a meios alternativos de solução dos conflitos que ajudem a reduzir a demanda do Poder Judiciário; o processo eletrônico; o incentivo total à conciliação (como na semana da conciliação), inclusive sem levar em consideração a natureza dos créditos.

Também a respeito desse plano elaborado e financiado pelo Banco Mundial podería-mos mencionar a remodelação dos cursos jurídicos para que sejam voltados à formação de profissionais treinados para a aplicação de técnicas tendentes a favorecer a lógica de mercado; a fixação de metas de produção e produtividade no Judiciário e outros mecanis-mos de gestão empresarial como o sistema de premiação de juízes e tribunais produtivos e conciliadores; além da administração por estresse, responsável pelo adoecimento de servidores e magistrados.

O que se espera por meio desse documento, cujos postulados já foram transfor-mados em Emendas Constitucionais, leis, projetos legislativos, resoluções e provimentos é uma aplicação cordata de todo seu conteúdo por uma magistratura, que atue como simples instrumento do ordenamento jurídico positivado. Aquilo que já se pugnou, em séculos passados, como a mera função de “boca da lei”.

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Se tudo isso já é suficientemente grave, mais o é a intenção de esvaziar a proteção social sob a alegação de que se faz urgente uma reforma trabalhista para efeitos de modernização das relações de trabalho no Brasil.

Como procuraremos demonstrar mais adiante, encontramos nesse movimento, a par de motivações ideológicas, interesses econômicos muito bem definidos em desmontar o arsenal jurídico construído para reduzir o desequilíbrio social e jurídico entre trabalhadores e empregadores e demais beneficiários do labor alheio.

Nessa senda, ainda constatamos as tentativas de extinção ou redução da importância da Justiça do Trabalho e o esvaziamento do processo laboral.

Do que sobressai a relevância da reflexão crítica acerca da postura positivista, do comportamento da academia, dos cientistas e dos filósofos do direito.

Como registro final dessa introdução, deixamos claro que não estamos a fazer uma profissão de fé contra o positivismo, pois não desconhecemos que construções como o jusnaturalismo já serviram para justificar o odioso regime da escravidão, para não citar exemplos recentes de teorias que se pretendiam pós-positivistas e que foram utilizadas como instrumentos para manobras antidemocráticas e cerceadoras de direitos humanos e garantias fundamentais. Em verdade, mencionamos apenas algumas de suas premissas mais caras para refletir sobre o direito, sua ciência e filosofia, destacando as tentativas de ocultação de interesses, ideologias e formas de dominação, ignorados em certos discursos, sistemas e construções teóricas. Nessa reflexão, pomos em evidência o fenômeno do trabalho e da pessoa que o presta, nem sempre objeto das preocupações de juristas, cientistas jurídicos e filósofos do direito.

Uma tomada de posição contra a teoria positivista, se fosse o caso, exigiria mui-to mais do que essas poucas linhas. Ficaremos apenas na análise de algumas de suas formulações e no enfoque de temas que a ciência jurídica e a filosofia do direito não enfrentam ou, quando deles trata, não soluciona — e que possuem alta relevância para os problemas aqui postos.

A seguir, procuraremos desenvolver, mesmo que superficialmente, os pontos des-tacados nesta introdução para tentar esclarecer nossos questionamentos e a pergunta que anima nossa investigação, qual seja: a ciência jurídica e a filosofia do direito devem cuidar do trabalho como objeto essencial do direito?

Nossa pesquisa busca demonstrar por que não se considera de forma satisfatória o papel do trabalho, ressaltando a necessidade deste fenômeno encontrar um papel cen-tral no direito, revisando a postura até hoje dedicada pela ciência e a filosofia jurídicas, especialmente quando se presencia uma espiral de demolição de sua tutela jurídica e do seu valor social.

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1A pretendidA objetividAde dA CiênCiA Frente Ao reAl

Não poucos refutam a pretensão à cientificidade das ciências (ciências humanas, ciência sociais, ciência do direito), afirmando que as diversas teorias construídas acerca de sua natureza científica falharam, bem como os sistemas idealizados para

lhe conceder uma substância descritiva e objetiva, quando não técnica. E quanto maior a pretensão à pureza, maior o fracasso, traindo não só sua ideologia, mas igualmente suas incompletudes e contradições, e reduzindo o conhecimento a estratégias de poder e de dominação.

Comecemos com Heidegger. Em seu ensaio sobre ciência e pensamento do senti-do, expõe que, de há muito, as ciências encaixam-se, de maneira sempre mais decidida e ao mesmo tempo cada vez menos perceptível, em todas as formas da vida moderna: na indústria, na economia, no ensino, na política, na comunicação e na publicidade de todo tipo. Suas teorizações são plurais, envolvendo várias dimensões que terminam por ‘entulhar’ (a expressão é dele) os mais diversos campos do conhecimento como a teoria do direito, a jurisprudência e a história (HEIDEGGER, 2008, p. 40; 46).

No seu questionamento sobre a ciência e o real, lembra que, no alemão, Betrachtung significa observação. Trachten, por sua vez, diz pretender, aspirar. No latim, Tractare é tratar, empenhar-se. Pretender e aspirar alguma coisa diz, para o filósofo, empenhar-se todo para alcançá-la, persegui-la e correr atrás para dela se apossar. Nesse sentido, a teoria, como observação, seria uma elaboração que visa apoderar-se e assegurar-se do real. Tal caracterização da ciência poderia parecer naturalmente contrária à sua essência. Pois, como teoria, a ciência seria justamente teórica. Prescindiria de qualquer elaboração do real. Faria tudo para apreender o real puramente em si. Não interveria no real para alterá-lo. A ciência pura, como se proclama, seria desinteressada e sem propósito (HEIDEGGER, 2008, p. 48).

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