Post on 30-Aug-2019
ESTILSTICA E GRAMTICA: ENTRE OS CONFLITOS DE UM CONCEITO E A LEGITIMAO DE UM GNERO
Marina Albuquerque de Almeida
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Ps-Graduao em Lingustica Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obteno do Ttulo de Mestre em Lingustica Aplicada. Orientador: Prof. Doutor Henrique F. Cairus
Rio de Janeiro Maro de 2018
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ESTILSTICA E GRAMTICA: ENTRE OS CONFLITOS DE UM CONCEITO E A LEGITIMAO DE UM GNERO
Marina Albuquerque de Almeida
Orientador: Prof. Doutor Henrique Fortuna Cairus
Dissertao de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinar de Ps-Graduao em Lingustica Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do ttulo de Mestre em Lingustica Aplicada. Examinada por: ____________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Henrique Fortuna Cairus ____________________________________________________ Prof. Livre-Docente Jos Luiz Fiorin (USP) ____________________________________________________ Prof. Doutora Lorelai Brilhante Kury (FIOCruz) ____________________________________________________ Profa. Doutora Branca Falabella Fabrcio (PIPGLA-UFRJ) ____________________________________________________ Prof. Doutor Fbio Fortes (UFJF), suplente ____________________________________________________ Profa. Doutora Tatiana Oliveira Ribeiro (PIPGLA-UFRJ), suplente
Rio de Janeiro Maro de 2018
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Almeida, Marina Albuquerque de. (1994- )
Estilstica e Gramtica: entre os conflitos de um conceito e a legitimao de um gnero/Marina Albuquerque de Almeida Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2018.
100 f.; 31 cm. Orientador: Henrique Fortuna Cairus Dissertao (Mestrado) UFRJ/Faculdade de Letras/Programa de Ps-
Graduao Interdisciplinar em Lingustica Aplicada, 2018. Referncias Bibliogrficas: f. 100 1. Estilstica. 2. Gramtica. 3. Histria dos conceitos. 4. Conflito Letras e
Lingustica. 5. Figuras e tropos. I. Cairus, Henrique Fortuna. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Ps-Graduao Interdisciplinar em Lingustica Aplicada. III. Ttulo.
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RESUMO
ESTILSTICA E GRAMTICA:
ENTRE OS CONFLITOS DE UM CONCEITO E A LEGITIMAO DE UM GNERO
Marina Albuquerque de Almeida
Orientador: Prof. Doutor Henrique Fortuna Cairus
Resumo da Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao
Interdisciplinar em Lingustica Aplicada (Discurso e transculturalidade) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de
Mestre em Lingustica Aplicada.
Entre os conflitos de um conceito (a estilstica) e a legitimao de um gnero (a gramtica), encontram-se caminhos que tangem questes epistemolgicas e tambm histricas. A disciplina que compe a histria do conceito de estilstica traz hoje consigo um universo de esvaziamento semntico, resultado de sua posio frgil em meio ao embate entre Lingustica e estudos literrios no sculo XX. O cientificismo herdado do positivismo do sculo XIX permitiu que a Estilstica vingasse como a sada para se dar carter cientfico aos estudos literrios; ao mesmo tempo, num caminho quase contraditrio, a Estilstica, na sua pluralidade de vertentes, tambm dava Lingustica a possibilidade de interlocuo com os estudos literrios. Com o rompimento entre os dois campos, a Estilstica cientfica em excesso para os estudos literrios, e cientfica de menos para a Lingustica no sobreviveu, visto o desinteresse de um pelo outro. Apesar disso, notou-se a presena remanescente dessa disciplina em gramticas normativas brasileiras ainda vigentes, herdado em certa medida o lugar da antiga Retrica, nomeando o catlogo de figuras e tropos estes, constantemente mantidos ou retomados, independente da disciplina que os nomeie. E chega-se, enfim, a um questionamento sobre que lugar haveria ainda hoje, institucional e epistemologicamente, para a existncia de qualquer pensamento que no separe por completo a lngua e a literatura.
Palavras-chave: estilstica; gramtica; histria dos conceitos; embate; campo; Lingustica e Literatura; Letras; figuras e tropos.
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ABSTRACT
STYLISTICS AND GRAMMAR: BETWEEN THE CONFLICTS OF A CONCEPT AND THE LEGITIMATION OF A GENRE
Marina Albuquerque de Almeida
Orientador: Prof. Doutor Henrique Fortuna Cairus
Abstract da Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao
Interdisciplinar em Lingustica Aplicada (Discurso e transculturalidade) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de
Mestre em Lingustica Aplicada.
Between the conflicts of a concept ('stylistics') and the legitimation of a genre (grammar) there are paths somehow related to epistemological and also historical questions. The discipline that constitutes the history of the concept 'stylistics' carries within itself today a universe of semantic emptiness, which is the result of its fragile position in the midst of the quarrel between Linguistics and Literary studies in the 20th century. The scientism inherited from the 19th century's Positivism allowed the Stylistics to thrive as a escape to give literary studies a scientific quality. Meanwhile, in an almost contradictory course, the Stylistics, in its plurality of aspects, also would gave Linguistics a possibility of interlocution with literary studies. With the separation between these two fields, Stylistics far too scientific for Literary studies and not scientific enough for Linguistics did not survived, since the lack of interest of one for the other. Nevertheless, it has been possible to notice the remnant presence of these disciplines in still valid normative Brazilian grammars, which place is an inheritance, in a way, of the ancient Rhetoric, naming the figures and tropes catalog these constantly kept or retrieved, no matter the name of the discipline imposed upon them. And there is, finally, a question about which place there would be still today, institutionally and epistemologically, for the existence of any reflections that would not detach completely language and literature. Keywords: stylistics; grammar; conceptual history; quarrel; field; Linguistics and Literature; Letras; figures and tropes.
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Para Fabiano, meu companheiro e leitor.
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Ao Professor Doutor Henrique Cairus, meu mestre, pela orientao atenciosa como jamais imaginaria receber, dedicando-me tempo, pacincia e confiana desde o incio do meu trajeto acadmico,
CAPES, pela bolsa de Mestrado, na esperana de que mais discentes pesquisadores
possam receber esse auxlio to necessrio promoo de um ensino efetivamente democrtico, contribuindo para a reduo dos abismos da desigualdade social no nosso pas,
s Professoras Doutoras Tatiana Ribeiro e Beatriz de Paoli, pela ateno, pela
companhia e pelos conselhos preciosos, Ao Proaera, grupo de pesquisa ao qual devo muito da minha formao acadmica e
que me rendeu valiosas amizades, como Artur Bezerra, Jeannie Bressan e Vanessa Abreu, companheiros desde o incio de minha caminhada, e os carssimos presentes que vieram em seguida, cada um a seu tempo: Adryele Gomes, Bianca Nascimento, Catarina Viana, Elisa Santana, Isabele Alexandria, Lvia Gallucci, Matheus Damio, Matheus Vargas, dentre tantos,
A Alana Gonzaga, Bruna Aquino, Patrick Bange, Sofia Clara de Paiva e Sofia Glria,
por me ensinarem a amizade incondicional, A Adriana e Evandro, meus pais, pelo cuidado e pela dedicao constantes e
imensurveis ao longo de toda a minha vida, A Maria e Gilson, Helena e Alusio, meus avs, pelo carinho infinito e papel
inconteste na minha formao humana, A Daniela, minha irm, pela admirao e ouvidos mais atentos que j recebi, A Fabiano, meu marido, pela cumplicidade, pelo carinho e apoio em todos os meus
passos,
Agradeo profundamente.
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[...] Como muito mais espesso o sangue de um homem do que o sonho de um homem. [...] Espesso porque mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu voo). (MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas, 1949-1950)
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SUMRIO
1. INTRODUO .......................................................................................................... 9
2. OS CONFLITOS DO CONCEITO DE ESTILSTICA ....................................... 14
2.1. A Estilstica entre a Lingustica e os estudos literrios ............................................. 15
2.2. Algumas tentativas de conceituao de estilstica no sculo XX ........................... 24
2.3. Falncia da disciplina ou suas novas roupagens ....................................................... 57
2.4. Para uma histria do conceito de estilstica ........................................................... 65
3. DA DISCIPLINA AO APNDICE GRAMATICAL ............................................... 72
3.1. Ventre retrico da Estilstica .................................................................................... 72
3.2. A estilstica como parte (final) da Gramtica ......................................................... 81
3.3. Figuras com(o) tropos: a permanncia da literatura na Gramtica ......................... 84
4. CONCLUSO ........................................................................................................... 90
5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................ 94
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1. INTRODUO
Esta Dissertao busca apontar para uma histria do conceito de estilstica, que
surgiu como disciplina, plural e conflituosa, em meio ao embate Lingustica e estudos
literrios do sculo XX. Observando, portanto, definies de autores basilares para a
construo da Estilstica desde o seu surgimento, compreendendo seus lugares
epistemolgicos e institucionais, procurou-se dar incio a esse extensivo trabalho.
Parte-se da premissa de que a Estilstica surge para ser o estudo de carter prescritivo
do estilo, tal como o entendeu Rafael Bluteau1, mas, libertando-se dos limites estritos
impostos pelo conceito de estilo (sem, no entanto, jamais abandon-lo completo), veio a
constituir uma disciplina que, em muitos aspectos, reivindica para si a herana da antiga
Retrica.
De fato, a Retrica como disciplina decai pari passu ascenso da Estilstica, que,
por sua vez, traduz-se mais pelos exerccios discursivos do que por uma teoria propriamente
dita, embora comporte ambas as prticas. Essa disciplina, porm, passou a ter lugar, mais
tarde, no gnero gramtica, de uma forma especfica: destacadamente como catlogos de
figuras e tropos.
A relao entre o conceito de estilstica e as ideias de ornamento, tropo e figura
levaram a pesquisa leitura de Donato e Quintiliano, dentre outros, onde se encontram
dados para a composio da histria dessas categorias que vm a constituir a Estilstica
entendida aqui como parte da gramtica em quase sua totalidade.
Este trabalho foi desenvolvido no Programa de Ps-Graduao Interdisciplinar em
Lingustica Aplicada, na Linha de Pesquisa intitulada Discurso e Transculturalidade, que
se dedica especialmente investigao da relao entre discursos em geral (literrios,
narrativos, filosficos etc.) de diferentes perodos histricos e prticas scio-culturais a eles
1 L-se em Bluteau (1713, p.319-20: Estilo): Antes da inveno do papel escreviam os antigos em lminas de chumbo, em tbuas engessadas, ou cobertas de cera, com um ponteio ou pena de ferro a que chamavam stylus, donde procedeu que a frase e o modo de compor tambm foi chamado estilo. [...] dividem os retricos os estilos de bem dizer em trs espcies, que so Gracil, Grande & Mdio, que podemos chamar humile, grave e meo. (grafia atualizada)
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entrelaadas.2 Mais especificamente, esta pesquisa foi produzida no Ncleo de Pesquisa
Proaera (Programa de Estudos em Representaes da Antiguidade), ao qual deve todo o seu
embasamento terico, a metodologia e as prticas utilizadas neste trabalho, que tem por
horizonte a investigao da relao de uma produo discursiva a gramtica de tempos
(e eventualmente de espaos) diferentes a saber, a Antiguidade e a Contemporaneidade
, e a histria de um conceito a estilstica , procurando interpretar essa relao a partir
de um instrumental mental legado sobretudo pela epistemologia da Histria. Dessa rea, a
pesquisa se apropria de conceitos instrumentais que vo sendo formulados desde os Annales
at a virada lingustica (entendida como o encontro da rea da Histria com a Lingustica
Aplicada e com a Anlise do Discurso).
Um dos objetivos dessa pesquisa , enfim, perscrutar uma parte da histria do
conceito estilstica, tendo como principal embasamento terico a obra de Reinhart
Koselleck (1992 e 2006), buscando compreender alguns dos propsitos a que este conceito
serviu, desde o seu surgimento como disciplina derivada da Retrica at sua constituio
como catlogo de figuras e tropos nas gramticas normativas brasileiras, observando em que
medida a tradio greco-latina serviu como legitimao de sua existncia e manuteno.
Apesar de o tema desta Dissertao ser algo novo porquanto esse objeto parea
jamais ter sido tratado como aqui se prope a faz-lo , muitos estudiosos j o abordaram
pelo vis lingustico, filolgico (clssico), literrio (como ferramenta para a descrio de
textos) ou retrico (como prescrio). Algumas dessas abordagens so apresentadas no
Captulo 2, onde so citados autores referenciais para a histria da Estilstica, que compem
os corpora desta Dissertao; dentre eles, esto Charles Bally, Jean Dubois, Roman
Jakobson, Martn Alonso, Mattoso Cmara Jr., Adriano da Gama Kury, Gladstone Chaves
de Melo etc.
A segunda parte desta Dissertao tem o objetivo de entender a razo de ser e a
localizao da parte geralmente intitulada Estilstica (e suas variantes, tais como
2 Descrio da pgina oficial do PIPGLA. Disponvel em: . Acesso em: 15 mar. 2016.
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Rudimentos de Estilstica e Potica3) nas gramticas normativas brasileiras. Localizando-
se quase sempre no fim das gramticas, essa parte oferece costumeiramente subsdios
(tcnicos) anlise literria dentro de um gnero que deixou de ter esta como objetivo.
A Gramtica normativa da lngua portuguesa, de Carlos Henrique da Rocha Lima,
foi tomada como primeira amostragem, no s pela sua relevncia no ensino de vrios
brasileiros, mas pelo fato de a literatura ter nela grande destaque e, no entanto, no
apresentar qualquer justificativa em seu prefcio ou em qualquer outro lugar da obra para a
presena desta parte final, a Estilstica.
Outras gramticas brasileiras que compem o corpus gramatical so a Moderna
gramtica portuguesa: cursos de 1 e 2 graus (1978) e Moderna gramtica brasileira (2001),
ambas de Evanildo Bechara que, apesar de dedicar um trecho a falar sobre a Estilstica,
no justifica, assim como Rocha Lima, seu lugar dentro da gramtica , e a Nova gramtica
do portugus contemporneo (1985), de Celso Cunha e Lindley Cintra.
A ausncia de justificativa para a presena dessa parte nas gramticas analisadas gerou
a formulao da primeira hiptese desta pesquisa: esse captulo, deslocado tematicamente e
cuja presena no se justifica nem por si nem pela obra, alguma espcie (mas qual?) de
tributo a uma tradio gramatical antiga (mas at que ponto?).
Seguiu-se, ento, o rastro das definies expostas no prximo captulo para buscar
compreender o que se entendia por Estilstica no perodo das gramticas analisadas. Tal
busca gerou, assim, o outro tipo de corpus j mencionado, que tambm utilizado neste
trabalho: definies ou conceituaes de autores referenciais na rea de Letras seja dos
estudos literrios ou lingusticos , com o fim de se traar ao menos parte da histria do
conceito de estilstica. Essa abordagem ensejou uma proposta para a compreenso da
presena de elementos relativos aos estudos literrios numa obra dedicada normatizao
do uso da lngua.
Para compreender o conceito de estilstica e seu lugar tambm como disciplina
nas gramticas normativas brasileiras, foi necessrio dividir o caminho da pesquisa em duas
principais etapas:
3 Frequentemente est associado a essa parte o captulo que trata da Mtrica, disciplina hoje praticamente extirpada dos currculos dos cursos de Letras.
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I. lanar as bases para uma histria do conceito de estilstica, partindo do embate entre
Lingustica e Literatura no sc. XX, perpassando as tentativas de conceituao por
autores referenciais da Estilstica, at sua falncia como disciplina, apontando, no
entanto, para algumas permanncias e recentes reapropriaes do conceito, e
II. a investigao da origem retrica da Estilstica remetendo Antiguidade como
caminho para compreender o que teria levado sua permanncia como catlogo de
figuras e tropos na parte final das gramticas normativas brasileiras selecionadas
como corpora desta pesquisa.
A primeira etapa foi realizada seguindo o rastro das definies de Estilstica em
dicionrios lingusticos, como o Dicionrio de Lingustica e Gramtica (1984), de Joaquim
Mattoso Cmara Jr., o Dicionrio de Lingustica (1973), de Jean Dubois, e em obras
relevantes para a composio da histria desse conceito, como Trait de stylistique franaise
(1921), de Charles Bally, Ciencia del lenguaje y arte del estilo (1970 [1947]), de Martn
Alonso, Contribuio estilstica portuguesa (1978), de Joaquim Mattoso Cmara Jr.,
dentre outros, incluindo a obra de Alicia Yllera, Estilstica, potica e semitica literria
(1979), que empreendeu um abrangente mapeamento da histria da disciplina Estilstica.
A segunda etapa abarcou a observao de gramticas antigas e tratados de Retrica
que possam ter servido de modelo para a tradio ocidental do gnero gramatical e para a
manuteno da parte dedicada aos tropos e s figuras de linguagem. Tericos do
pensamento gramatical em perspectiva histrica, como Maria Helena de Moura Neves,
Marcos Aurlio Pereira, Fbio Fortes e Maria Carlota do Amaral Paixo Rosa abriram
caminho para o que aqui se prope. De outra forma, alguns textos de Jos Luiz Fiorin, do
qual este estudo busca se aproximar, sero de extrema importncia para a composio da
histria dessa parte literria que compe as gramticas normativas at a atualidade.
Em ambas as etapas, foi preciso situar o embate entre os estudos lingusticos e
literrios que culminaram na sua segregao no sc. XX e compreender de que maneira
isso afetou tanto a histria da Estilstica tornando-a cada vez menos usada em ambas as
reas quanto a da Gramtica tendendo hoje ao estritamente lingustico. Por outro lado,
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deve-se tambm compreender o que levou permanncia desses resqucios, ainda que em
forma de apndice, nas gramticas normativas contemporneas. Entre o conflito e a
legitimao residem as histrias sinuosas de um conceito e de um gnero.
Trilhando, portanto, a Histria da Estilstica desde a sua constituio como disciplina
at se tornar um apndice gramatical, sero encontrados no apenas dados concretos para
mapear suas mudanas e permanncias, mas, a partir delas, observar que valores esto
imbricados nesse processo.
Para seguir esse roteiro, a Dissertao apresentar, em seu incio, os frutos da
pesquisa acerca da constituio dos significados que orbitaram em torno do significante
estilstica, medida que estes significados se especializaram na delimitao desse conceito,
a fim de erigir um campo. Por essa razo, a Dissertao foi dividida em duas partes
principais. A primeira parte (Captulo 2) versar sobre os conflitos do conceito de estilstica,
e, para tanto, ser necessrio percorrer o lugar epistemolgico e institucional da Estilstica
entre a Lingustica e os estudos literrios, principalmente no sculo XX (2.1); em seguida,
sero registradas algumas tentativas de conceituao de estilstica no mesmo perodo (2.2);
o item subsequente versar sobre a falncia da Estilstica enquanto teoria e disciplina ou as
novas roupagens que adquiriu recentemente na rea de Letras (2.3); e, a partir da construo
dos itens anteriores, um esboo da histria do conceito de Estilstica (2.4). A segunda parte
da Dissertao (Captulo 3), por sua vez, ser dedicada aos conceitos antigos de que se
apropria a Estilstica, da Retrica e da Gramtica, buscando compreender a origem retrica
da Estilstica (3.1) e sua configurao recente reduzida a um apndice gramatical (3.2),
nomeando quase que unicamente a parte dedicada a figuras de linguagem, de pensamento,
tropos etc. (3.3).
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2. OS CONFLITOS DO CONCEITO DE ESTILSTICA
Estilstica, potica e semitica literria so diferentes roupagens4, segundo Alicia
Yllera, que abrangem trs fases de uma mesma cincia, que reivindica para si a
denominao de cincia da literatura (1979, p. 9).
O livro da Alicia Yllera faz um longo mapeamento das diferentes correntes que se
(re)apropriaram da Estilstica no sculo XX. Diferente dos exerccios que constituam a
disciplina francesa, quando surge no sculo XIX lembrando muito aqueles exerccios
antigos de Retrica, especialmente os progymnsmata5 , a Estilstica toma as formas mais
variadas no sculo seguinte, e serve aos mais diversos fins.
Ora excluda da Lingustica, por se tratar do contedo individual, afetivo6 da
linguagem e no do que h de comum no sistema lingustico, como interessa aos
linguistas , ora considerada a Lingustica possvel dos estudos literrios, com critrios
coletivos, a Estilstica ocupa um lugar oscilante entre o cientfico (lingustico) e no-
cientfico (literrio) na rea de Letras.
O objetivo deste captulo da Dissertao ser o de analisar parte do mapeamento feito
por Yllera, alm de acrescentar outras informaes, a fim de captar e atualizar os dados
levantados por sua investigao. No entanto, para alm da observao de quais correntes se
apropriaram da Estilstica, e de como o fizeram em grande medida j constatado por esta
4 Nota-se aqui o uso do termo roupagem, que deve ser entendido como um conceito intermedirio entre o significante e o significado. Mais do que o primeiro, menos do que o segundo. 5 A leitura dos Progymnasmata revelaram que esses escritos compem um relevante captulo da histria das prescries do bem escrever; talvez um dos mais importantes, dentre os primeiros. Para a leitura desses textos, fez-se acompanhar aqui pelos trabalhos de Marcos Martinho dos Santos (2009 e 2010) e de Georges A. Kennedy (1999). O exame mais detido dessas obras, pelo seu grau de complexidade, est previsto para outro momento da pesquisa. 6 A traduo latina cannica de , de fato, adfectus. Ccero parece ter institudo o termo na Retrica, mas Quintiliano, em sua Instituto oratoria que enuncia essa equivalncia: Graeci uocant, quod nos uertentes recte ac proprie adfectum dicimus [os gregos chamam de o que ns, traduzindo correta e propriamente chamamos adfectus]. Aristteles, em sua tica a Nicmaco (1105b), explica e exemplifica o conceito de tal como se o encontra na sua Potica, a partir de onde o conceito se tornou funcional para as teorias da literatura e do drama, e na sua Retrica: digo que os so: desejo, ira, medo, coragem, inveja, alegria, amizade, dio, anseio, cime, compaixo, seguidos sempre de prazer ou dor [ , ]. Todas as tradues desta Dissertao, salvo quando indicado, so nossas.
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autora , busca-se, nesta pesquisa, compreender:
1. a que essas diferentes apropriaes serviram na rea de Letras (em alguns momentos
como fator de legitimao, servindo necessidade de dar carter cientfico aos
estudos literrios);
2. como chegaram recente constituio da Estilstica como apndice nas gramticas
normativas brasileiras.
Lingustica e estudos literrios, cientfico e no-cientfico, Gramtica e Estilstica: so
os pares que, por contraste e semelhana, por sntese e anttese, constituem a histria
conflituosa desse conceito de Estilstica. E so esses conflitos histricos que nortearo a
composio a ser feita aqui da histria desse conceito.
2.1. A Estilstica entre a Lingustica e os estudos literrios
A Estilstica sempre ocupou um lugar que seria hoje considerado transdisciplinar,
perpassando a Retrica, a crtica literria e a Lingustica. O conceito surgido a partir dessa
disciplina , portanto, o mais conflituoso possvel. Segundo o Trsor de la Langue Franaise
informatis, no verbete stylistique, a primeira apario da palavra estilstica data de
meados do sculo XIX, na Alemanha, como aquilo que designava mtodos destinados a
completar o estudo gramatical de uma lngua pelo estudos das locues particulares (...)
neste momento como quase sinnimo de fraseologia7. Pouco depois, constituiu-se como
disciplina na Frana, onde a Estilstica era basicamente constituda por exerccios muito
semelhantes aos de Retrica na Antiguidade, que consistiam em repeties de tcnicas
discursivas com fim argumentativo nestes e literrio naqueles.
Carlos Ucha (2013, p. 14) afirma que, tendo perdido a Retrica sua longa
autoridade normativa, e tambm o seu valor de critrio de avaliao esttica, abre-se um
7 Anlise mais detida da primeira parte deste verbete, com original e traduo, no prximo subcaptulo (2.2).
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vazio no campo dos estudos da linguagem. O autor argumenta, ento, que a Lingustica,
no sculo XIX, firmando-se como estudo cientfico da linguagem, sob a lgica do
positivismo, no podia aceitar o estilo como objeto de estudo, compreendido ento como
um fenmeno individual e de natureza psquica. Em seguida, Ucha diz na contramo
do que afirma o verbete do TLFi e Alicia Yllera (1979), mas fazendo coro a Mattoso Cmara
Jr. (1978) e Gladstone Chaves de Melo (1976) que apenas no sculo XX surgiria de fato
a Estilstica, com seus novos mtodos e fundamentos, para se consolidar gradualmente como
uma rea de investigao de intrincados problemas, mas, sem dvida, das mais sugestivas
do estudo do fenmeno lingustico.
Ao longo do sculo XX, a Estilstica deixou seu carter mais prtico de exerccios
escolares de imitao dos estilos discursivos para se tornar, cada vez mais, teoria de
identificao e anlise desses estilos, geralmente em autores cannicos. Essas teorias
estilsticas, no entanto, tomaram as formas mais variadas, servindo a diversos fins.
O livro Estilstica, Potica e Semitica Literria, de Alicia Yllera, faz um longo
mapeamento das diferentes correntes que se (re)apropriaram da Estilstica. Ora considerada
parte da Lingustica, com critrios objetivos seja excluindo o texto literrio, como Charles
Bally, ou incluindo-o, como Roman Jakobson, Mattoso Cmara, e tantos outros , ora
excluda da Lingustica, por tratar-se de uma disciplina dos estudos literrios, a Estilstica
ocupa um lugar entre o cientfico (mais lingustico) e no-cientfico (mais literrio), na rea
de Letras.
Alicia Yllera inicia sua obra com a assertiva, j mencionada, de que a Estilstica, a
Potica e a Semitica seriam roupagens diferentes de uma mesma cincia da literatura.
Ainda que tal afirmao seja passvel de problematizao, essa aproximao que a autora faz
entre as trs disciplinas um dado importante para a composio da histria da Estilstica.
Yllera afirma, logo em seguida, que a estilstica ou potica baseia o seu carter cientfico
na aplicao de alguns modelos de anlise da cincia humana com mtodos mais rigorosos,
ou seja, da lingustica nuns casos e em outros da semitica, cincia em voga de que apenas
se lanaram os primeiros alicerces (1979, p. 9-10).
Pode-se notar, a partir desta ltima citao, que o lugar da Semitica oscila em Yllera,
indo de nova roupagem da Estilstica para ser, por vezes, considerada como mtodo para
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dar rigor cientfico Estilstica, ao lado da Lingustica. Apesar de Yllera no atentar para tal
oscilao, possvel not-la a partir de suas citaes, ora a Semitica sendo tratada como
mtodo, ora se confundindo ou se imiscuindo com a prpria Estilstica.
Quanto ao rigor cientfico necessrio para dar legitimidade Estilstica, Yllera diz,
nessa mesma introduo sua obra, que o desenvolvimento da estilstica ou semitica
potica sinal dos tempos, um resultado da procura de um rigor e de uma objectividade
numa poca, a actual, marcada pelo neopositivismo. (ibidem, p. 10). E prossegue, ento,
dizendo:
[...] a arte aproximou-se das cincias, fez-se experimental. No em vo que as trs principais orientaes e aquisies do sculo XX no domnio dos estudos literrios, at data, se chamam estilstica ou semitica potica, crtica psicanaltica e crtica sociolgica: em todas elas foi necessria a colaborao de uma cincia alheia literatura para proporcionar um mtodo e postulados sobre os quais construiu as suas teorias. (Ibidem, p. 10)
A autora aponta, assim, a aproximao vale dizer, conflituosa entre a arte e as
cincias como o ambiente propcio para o surgimento dessa disciplina intermediria
chamada Estilstica, que, assim como outras voltadas aos estudos literrios, precisava valer-
se de algum rigor cientfico para ter qualquer legitimidade ou, ao menos, o mnimo de
prestgio institucional que garantisse sua sobrevida. O conflito entre campos, como se
ver logo adiante, estava deflagrado e suas consequncias acadmicas seriam imediatamente
sentidas.
Sobre o surgimento da Estilstica e seu percurso, de maneira introdutria, Alicia Yllera
resume da seguinte maneira:
A Estilstica surgiu timidamente, com a inteno de completar o mbito da gramtica e sem pretender nem se permitir o acesso ao domnio da obra de arte. Porm, medida que se foi desenvolvendo e consolidando, tornava-se tambm mais audaz e comeava a sublevar-se contra os pressupostos dos seus criadores: comeava a invadir os domnios dos estudos literrios. Simultaneamente numerosas ramificaes, correntes vrias, diversificavam-na de tal maneira que o aparente monolitismo que at ento tinha ostentado
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estilhaou-se: apareceram orientaes e tentativas irreconciliveis que os prprios autores mais diversificaram pela sobrevalorizao das suas diferenas. Com o decorrer do tempo aumentava o fosso entre as diferentes correntes, que se ignoravam entre si e se refutavam mtua e categoricamente. (Ibidem, p. 10)
Esse breve resumo bem ilustrativo do caminho percorrido pela disciplina Estilstica.
No seu surgimento, a caracterstica de que fala a autora sobre a no pretenso, nem mesmo
a permisso de se adentrar o domnio da obra de arte; que pode aqui ser entendido como
domnio literrio, mais especificamente representada principalmente por Charles Bally,
que deixa bem claro o seu posicionamento quanto separao entre os estudos lingusticos
e literrios. Sendo a Estilstica, para Bally, parte da Lingustica, certamente no deveria ter
como objeto de anlise os textos literrios, devido ao carter voluntrio e consciente do uso
da lngua na literatura, alm da inteno esttica que neles existe enquanto obras de arte8.
No entanto, como adianta Yllera, a Estilstica acabou por adentrar os estudos literrios
e poder-se-ia acrescentar que foi nesse campo, por fim, que veio a encontrar morada de
forma mais perene, ainda que timidamente. Sobre a aplicabilidade do conceito de campo
nos estudos literrios, no entanto, parece oportuno recordar a postulao de Bourdieu
(1983b, p. 89):
Um campo, e tambm o campo cientfico, se define entre outras coisas atravs da definio dos objetos de disputas e dos interesses especficos que so irredutveis aos objetos de disputas e aos interesses prprios de outros campos (no se poderia motivar um filsofo com questes prprias dos gegrafos) e que no so percebidos por quem no foi informado para entrar neste campo (cada categoria de interesses implica na indiferena em relao a outros interesses, a outros investimentos, destinados assim a serem percebidos como absurdos, insensatos, ou nobres, desinteressados). Para que um campo funcione, preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem o conhecimento e o reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc.
8 Sobre o posicionamento de Bally quanto ao objeto de estudo da Estilstica, falar-se- mais frente, no tpico 2.2.
19
A partir dessa definio proposta por Bourdieu, a rea de Letras poderia ser
entendida, especialmente no incio do sculo XX no Brasil, como um nico campo que
abrigava a Lingustica e os estudos literrios na disputa pelo seu objeto: a lngua em suas
mais diversas realizaes. A Estilstica, testemunha desse conflito, era a disciplina que tentava
dar aos estudos literrios algum rigor cientfico, pressuposto essencial para a legitimidade
de qualquer estudo naquele momento. No entanto, esse cientificismo residia no uso de
mtodos lingusticos para o estudo de textos literrios isso de maneira geral, tendo rendido
diversas teorias diferentes e com os mais variados fins, que ser tema de discusso do
prximo subcaptulo (2.2). medida que a Lingustica abriu mo de tal disputa, deixando
de lado o estudo do texto literrio para se dedicar exclusivamente lngua falada9,
espontnea, reivindicando para si um campo autnomo, aquele outro campo nico inicial
(Letras) dividiu-se, no mais interessando aos linguistas o objeto dos estudos literrios.
Enquanto a Lingustica se constitua como um campo, os estudos literrios
permaneceram parte do campo chamado Letras10, no tendo xito na reivindicao de um
campo prprio, apesar das tentativas11. Alm de no haver nome especfico para os
9 Posteriormente, em algumas correntes lingusticas, a lngua escrita recuperou certo espao como objeto de estudo, mas sobretudo nos textos jornalsticos, ou em outros gneros considerados mais espontneos; a literatura permaneceu excluda dos seus corpora. 10 Em 2017, a CAPES, rgo do MEC para controle e avaliao de cursos de Ps-Graduao, substitui a nomenclatura Letras por Literatura, e inverte, mui sintomaticamente a ordem: Lingustica e Literatura. Disponvel em: . Acesso em: 13 jan. 2018. 11 Uma das tentativas dos estudos literrios de se legitimar enquanto campo autnomo pode ser notada na prpria escolha do nome do Departamento de Cincia da Literatura, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, um exemplo institucional forte dessa disputa pela legitimao num perodo de cientificismo flagrante. Em recentes entrevistas com o Prof. Joo Camillo Penna que j coordenou o Programa de Ps-Graduao de Cincia da Literatura foi relatado que o Prof. Eduardo Portella ocupante de diversos cargos, desde Diretor da Faculdade de Letras na UFRJ, em 1978, at Ministro de Estado da Educao, Cultura e Desportos, em 1979/80, alm de membro da Academia Brasileira de Letras havia-lhe explicado a origem do nome desse Departamento, que derivado do alemo Literaturwissenschaft. Pode-se concluir, a partir dessa escolha, que se tratava de uma tentativa de inserir este Departamento e posteriormente o PPG homnimo nessa tradio. Ainda que o termo wissenschaft no alemo corresponda a um significado mais amplo, podendo ser tanto cincia quanto estudo (sistematizado) a inspirao flagrante e imediatamente reconhecvel pelos que tm experincia com as instituies germnicas. Para alm de remeter tradio germnica, tal nome parece reforar uma escolha pela traduo cientificista em Cincia da Literatura, em vez de simplesmente Estudos literrios. Naquele momento, vale ressaltar, havia um forte influxo da semitica greimasiana e de certa semiologia de Barthes nos estudos literrios opes tericas que ento robusteciam a disputa por um lugar junto aos campos de estatuto cientfico, como a prpria Lingustica.
20
estudiosos de Literatura enquanto que na Lingustica h o termo linguista , o ponto
que Bourdieu ressalta, sobre a irredutibilidade dos interesses de um campo a outro, foi mais
um empecilho para os estudos literrios se assumirem enquanto campo. Tendo ao fim do
sculo XX abandonado a Estilstica quase que inteiramente que a aproximava da
Lingustica , as teorias dos estudos literrios passaram a se imiscuir, em grande medida,
com as teorias de outros campos, como a Filosofia, a Psicanlise, a Sociologia etc.
Apesar dessa dificuldade para distinguir o campo dos estudos literrios desses outros
que lhe fazem fronteira, a outra caracterstica que Bourdieu aponta como necessria para
haver um campo o habitus. Sobre este conceito, diz Bourdieu:
[...] o habitus, como diz a palavra, uma experincia e tambm uma posse, um capital; ou, na traduo idealista de um sujeito transcendental, o habitus, a hexis, significa a disposio incorporada, quase postural, mas a de um agente em ao: tratava-se de chamar a ateno para o primado da razo prtica de que falava Fitche, ao mesmo tempo em que se pegava do idealismo, como Marx sugeria nas Teses sobre Feuerbach, o lado ativo do conhecimento prtico, a que a tradio materialista, principalmente na teoria do reflexo, tinha cedido.12
Bourdieu acrescenta, logo em seguida, que as primeiras aplicaes que ele prprio
fez da noo de habitus provavelmente comportavam mais ou menos tudo isso, mas apenas
em um estado implcito13, sua abordagem do conceito era menos o produto de um clculo
terico como na citao acima, e mais uma estratgia prtica do habitus cientfico, espcie
de percepo do jogo que no precisa ser calculada para se orientar e se situar de maneira
racional num espao14.
12 [...] habitus, as the word says, is an experience and also a possession, a capital - or in the idealist tradition of a transcendental subject - habitus, hexis, means the incorporated and quasi-postural disposition-, but that of an acting agent: it was a matter of recalling "the primacy of practical reason," of which Fichte spoke, while at the same time taking from idealism, as Marx suggested in the Theses on Feuerbach the "active side" of practical knowledge which the materialistic tradition notably in the theory of "reflection" had yielded to it. (BOURDIEU, 1985, p. 13) 13 [...] probably contained more or less all of that - but only in an implicit state [...] (Ibidem, p. 13-4) 14 [...] practical strategy of scientific habitus, a kind of feel of the game which does not need to calculate in order to find its direction and place in a reasonable manner in space. (Ibidem, p. 14)
21
Ainda sobre este conceito, Maria da Graa Jacintho Setton, em seu artigo A teoria
do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contempornea, diz que:
O habitus uma subjetividade socializada (Bourdieu, 1992, p. 101). Dessa forma, deve ser visto como um conjunto de esquemas de percepo, apropriao e ao que experimentado e posto em prtica, tendo em vista que as conjunturas de um campo o estimulam. (SETTON, 2002, p. 63)
Sendo assim, possvel pensar no habitus como uma das poucas coisas que
efetivamente une o campo dos estudos literrios, onde as aes, comportamentos, escolhas
ou aspiraes individuais no derivam de clculos ou planejamentos, so antes produtos da
relao entre um habitus e as presses e estmulos de uma conjuntura. (SETTON, 2002,
p. 64).
Evidentemente, os conceitos de habitus e de campo de Bourdieu fazem parte do
embasamento terico desta Dissertao. No entanto, a citao seguinte constitui uma
pequena exceo, mas vlida, em que Bourdieu tambm acaba por tentar conceituar o
estilo, e por isso, esta citao compe, excepcionalmente, os corpora que tratam da
Estilstica, com o fim de demonstrar o alcance que a estilstica juntamente com o estilo
tiveram no sculo XX, ultrapassando a rea de Letras e encontrando referncias nas Cincias
Sociais. Sobre o estilo, diz ento Bourdieu:
O estilo pessoal, isto , essa marca particular que carregam todos os produtos de um mesmo habitus, prticas ou obras, no seno um desvio, ele prprio regulado e s vezes mesmo codificado, em relao ao estilo prprio a uma poca ou a uma classe (Bourdieu, 1983a, p. 81)
No tpico seguinte (2.2), notar-se- que a mesma noo de desvio aparece
recorrentemente dentre as definies dos autores que trataram da Estilstica.
No livro Introduo anlise do discurso, Helena H. Nagamine Brando faz um
apanhado de diversos tericos da Anlise do Discurso, citando Bakhtin, Jakobson, Pcheux
etc. notvel a proximidade do objeto de estudo da Anlise do Discurso ao da Estilstica,
provavelmente ocasionada pela origem retrica comum a ambas.
22
Nagamine Brando afirma, por exemplo, que Bakhtin antecipa em muito as
orientaes da lingustica moderna ao ultrapassar a restrio saussuriana de que apenas a
lngua como algo abstrato e ideal a constituir um sistema sincrnico e homogneo
deveria ser o nico objeto da lingustica (2004, p. 7). O prprio Bakhtin dedicou boa parte
de sua vida ao estudo da Estilstica, tendo inclusive uma parcela da obra Marxismo e filosofia
da linguagem (BAKHTIN; VOLOSHINOV, 1999 [1929]) a ela destinada e seu livro
produzido na dcada de 1930, mas publicado parcialmente apenas em 1975, e
completamente em 2012, intitulado Teoria do romance I: A estilstica (2015 [1975])15.
Como se pode observar, esse rompimento com a lingustica estruturalista para dar
lugar ao que, mais tarde, Pcheux vai chamar de lingustica da fala, foi relevante no
apenas para a histria da Anlise do Discurso, como a finalidade da autora explicitar, mas
serviu igualmente histria da Estilstica.
Nagamine Brando (2004, p. 39) aponta ainda para uma diviso que Pcheux faz da
lingustica do seu perodo, identificando trs principais tendncias. Abaixo est a prpria
citao de Pcheux (1995 [1975], p. 21) sobre as tais tendncias lingusticas de ento:
1) A tendncia formalista-logicista, hoje essencialmente organizada na escola Chomskyana, enquanto desenvolvimento crtico do estruturalismo lingstico atravs das teorias "gerativas". Essa tendncia pde encontrar um aval filosfico nos trabalhos da escola de Port-Royal. Voltamos a isso.
2) A tendncia histrica, formada desde o sculo XIX enquanto lingstica histrica (F. Brunot, A. Meillet), desembocando hoje nas teorias da variao e da mudana lingstica (geo-, etno-, socio-lingsticas).
3) Enfim uma ltima tendncia, que se poderia chamar lingstica da fala" (ou da enunciao, da "performance', da "mensagem", do "texto", do "discurso", etc.), em que se reativam certas preocupaes da Retrica e da Potica, atravs da crtica do primado lingstico da comunicao. Essa tendncia desemboca numa lingstica do estilo como desvio, transgresso, ruptura, etc., e sobre uma lingstica do dilogo como jogo de confrontao.
Nas trs notas de rodap relativas a esse excerto, Pcheux (ibidem, p. 35) cita mais
autores que esto ligados a cada uma dessas tendncias. Em relao tendncia formalista-
15 Esta obra ser mais bem abordada no prximo subtpico (2.2).
23
logicista, por exemplo, cita, alm de Noam Chomsky, C. J. Fillmore de um lado, G. Lakoff
& McCawley, de outro, e ainda o formalista sovitico S. K. Saumjan. Na tendncia da
lingustica histrica, inclui M. Cohen, U. Weinreich, W. Labov e, num ponto de vista
menos terico, B. Bernstein. J na ltima tendncia, e que mais nos interessa aquela que
chama de lingstica da fala , insere os autores R. Jakobson & E. Benveniste, O. Ducrot,
R. Barthes, A. J. Greimas e J. Kristeva.
No s muitos dos tericos citados nessa terceira tendncia lingustica de que fala
Pcheux so relevantes para a constituio de importantes correntes estilsticas, como esta
parece tambm definir a prpria Estilstica, em alguns momentos, como aquela em que se
reativam certas preocupaes da Retrica e da Potica, ou a referncia lingstica do
estilo etc. (ibidem). Ainda que Pcheux seja citado por Brando com o objetivo claro de
evidenciar a tendncia lingustica onde a Anlise do Discurso se insere, tais elementos
reforam mais uma vez a sua filiao comum com a Estilstica.
Com isso, chegamos ento discusso epistemolgica sobre o lugar da cincia na
rea de Letras; e, mais especificamente, o lugar que a Estilstica buscou ocupar (como
cincia) para se legitimar enquanto estudo.
A pretenso cientificidade, na perspectiva positivista, como diz Ricoeur, implica a
pretenso no-ideologia16. Visando ento sua legitimao, diversas correntes da
Estilstica buscaram aproximar-se da Lingustica o considerado mais cientfico na rea de
Letras17 , e afastar-se dos estudos literrios; ou, mais ainda, propor um mtodo mais
cientfico que todos os anteriores para o estudo literrio.
A pretenso no-ideologia, ainda que um pressuposto positivista, no vingou, no
entanto, em muitos tericos da Estilstica como Bakhtin, alm de autores do Crculo de
Praga como Jakobson, assim como no foi um pressuposto aderido pela Anlise do
16 Ricoeur (1990 & 1994) apresenta uma reflexo acerca do conceito de ideologia que redunda numa verdadeira redimencionalizao desse conceito, ao modo aristotlico. Destaca-se aqui a didtica explanao que fez do conceito Ernane Salles da Costa Jnior (2014. p.52): Se, de uma parte, o imaginrio procura salvaguardar uma ordem social, atribuindo uma imagem, uma identidade e meios pelos quais uma coletividade capaz de se identificar e projetar-se a si mesma (ideologia); de outro lado, ele pode romper, questionar, abrir essa ordem possibilidade de ser diferente (utopia). Portanto, no existe uma sem a outra. 17 A nomenclatura na qual se inscreve Letras, de resto, faz ressoar, no s a etimologia (, litterae), relacionada apreciao, ao estudo e prtica literria, como tambm beletrismo cado em desfortnio diante das pretenses cientficas que os estudos literrios mimetizavam da Lingustica.
24
Discurso. Esta, pelo contrrio, pressupe inclusive a existncia inevitvel de ideologia em
todo e qualquer discurso.
evidente que o fato mesmo de se buscar legitimao j por si s ideolgico.
Brando (2004, p. 29) assinalou a postura de Ricoeur (1990, p. 75), sintetizada por ele
mesmo desta forma:
[...] a ideologia um fenmeno insupervel da existncia social, na medida em que a realidade social sempre possui uma constituio simblica e comporta uma interpretao, em imagens e representaes, do prprio vnculo social.
Essa busca da Estilstica pela prpria legitimao enquanto cincia foi, assim,
perdendo cada vez mais lugar, uma vez que esta no conseguia cumprir a expectativa de
objetividade, e lidar com interpretaes e representaes explicitadas acima como fatores
ideolgicos, por Ricoeur era o centro do seu objeto de estudo. Apesar dos esforos de
muitos tericos em atribuir o mximo possvel de cientificismo Estilstica como as
frmulas dos formalistas russos e franceses a falta de preciso, de empirismo e de
objetividade nos estudos literrios eram, ainda assim, contrastantes com o alegado notrio
rigor cientfico na Lingustica.
2.2. Algumas tentativas de conceituao de estilstica no sculo XX
Ao procurar possveis explicaes para o que se chama de estilstica no sculo de
maior produo dessa teoria e disciplina, encontramos no j referido verbete stylistique,
do Trsor de la Langue Franaise informatis, editado pelo Institut National de la Langue
Franaise e pelo LANDISCO (Langue Discours Cognition - Universit Nancy), um
mapeamento importante da histria desse conceito, especialmente na sua constituio
inicial, na Europa. A primeira parte, ento, deste verbete diz:
ESTILSTICA, subst. fem. e adj.
25
A. LINGUSTICA 1. Subst. fem. a) Datado. Conhecimento prtico das particularidades caractersticas de uma lngua dada e notadamente das figuras e idiotismos (MAR. Lex. 1951, p. 21318); A palavra estilstica apareceu em meados do sculo XIX na Alemanha. Ela designa ento mtodos destinados a completar o estudo gramatical de uma lngua pelo estudo de locues particulares (...). Uma obra ainda utilizada em nossos dias, a Estilstica latina, do alemo [Ernst] Berger, utiliza a palavra estilstica no sentido assim definido, pela qual poder-se-ia substituir a palavra fraseologia (F. DELOFFRE, Stylistique et potique franaise, 1970, pp. 10-11). por metonmia: raro, obra que trata dessas particularidades.19
Nesta primeira acepo, que localiza a origem do termo estilstica na Alemanha do
sculo XIX, est indicada uma equivalncia semntica com um outro termo: fraseologia.
Foram encontradas referncias que, de fato, fazem convergir a significao desses dois
termos, fraseologia e estilstica. Um exemplo disso a meno a Charles Bally e a sua obra
Trait de stylistique franaise, em dois artigos publicados com dcadas de distncia,
intitulados: Lexicologia e fraseologia no portugus moderno (KLARE, 1986) e
Fraseologia: perspectiva da lngua comum e da lngua especializada (BEVILACQUA,
2004/2005). Nestes artigos, Bally colocado como um dos precursores da fraseologia,
depois das primeiras bases terem sido lanadas pelos linguistas russos, como A. A. Potebnj,
E. F. Fortunatov e A. A. Sachmatov (KLARE, 1986, pp. 355-356) e pelo seu prprio mestre
Saussure (BEVILACQUA, 2004/2005, pp. 76-77).
Alm de referenciar o autor e a obra fundadores da disciplina estilstica como
precursores da fraseologia, Johannes Klare relaciona esta expressividade ideia que,
18 As referncias bibliogrficas internas citao so preservadas tais quais na obra citada, e no constam da Bibliografia desta Dissertao quando s figuram nessa posio. 19 STYLISTIQUE, subst. fm. et adj. A. LINGUISTIQUE 1. Subst. fm. a) Vieilli. ,,Connaissance pratique des particularits caractristiques d'une langue donne et notamment des figures et idiotismes (MAR. Lex. 1951, p. 213); Le mot de stylistique est apparu vers le milieu du XIXe sicle en Allemagne. Il dsigne alors des mthodes destines complter l'tude grammaticale d'une langue par l'tude des locutions particulires (...). Un ouvrage toujours utilis de nos jours, la Stylistique latine, de l'Allemand Berger, utilise le mot de stylistique dans le sens ainsi dfini, auquel on pourrait substituer le mot de phrasologie (F. DELOFFRE, Styl. et pot. fr., 1970, pp. 10-11). p. mton., rare, ouvrage traitant de ces particularits. (STYLISTIQUE. In: TLFi. http://www.atilf.fr/tlfi.)
26
como ser mostrado mais frente neste mesmo captulo, usada pelo prprio Bally, e mais
tarde reforada por Mattoso Cmara Jr., para definir o objeto de estudo da Estilstica , e
ainda metfora. Como diz Klare, as unidades fraseolgicas ou idiomticas desempenham
um papel essencial no aumento da expressividade de enunciados e textos [...]. No raras
vezes que o aumento da expressividade se baseia nas imagens contidas nos fraseologismos,
na sua metafrica. (1986, p. 357). A noo de expressividade, que surgir muitas vezes,
parece compor a linha tnue que possibilita a construo de uma histria do conceito de
estilstica20. Uma histria que, de resto, assim como a de todo conceito, mostra-se
conflituosa e fragmentada.
Essa primeira acepo do termo, no verbete do TLFi, tambm coincide com a viso
de Yllera, que situa as primeiras manifestaes da Estilstica no sculo XIX, com o alemo
Ernst Berger, que escrevia uma Estilstica latina, concebida como estudo de expresses
especiais, com a inteno de completar os estudos gramaticais (1979, p.13-14). Yllera,
inclusive, afirma: O sculo XIX conheceu diversos estudos de estilo ou estilsticos21, e
divide, ento, seu caminho em trs principais momentos: 1. Autores alemes conceberam-
nos como anlise de diversas expresses especiais, complemento da gramtica; 2. Outros
analisaram as diversas figuras da antiga retrica, reduzindo o termo estilo ao que os antigos
chamaram elocutio ou inclusivamente ao ornatus; 3. Finalmente, vrios estudos de estilo
compreendiam a anlise do pensamento, da tcnica, etc., de um autor particular. (ibidem,
p. 15).
Gladstone Chaves de Melo22, em Ensaios de estilstica da lngua portuguesa, inicia
seu segundo captulo, intitulado Conceito de estilstica, dizendo ser a Estilstica uma
cincia (ou tcnica) muito recente, e atribui a sua criao a Charles Bally, em 1902. Em
20 Essa relao entre os conceito de expressividade e de estilstica so abordados no subcaptulo 2.4. 21 Note-se a diferenciao necessria que a autora faz entre de estilo e estilsticos, visto que alguns autores, como o prprio Charles Bally, fazem questo de assinalar tal diferena. 22 Gladstone Chaves de Melo foi Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Universidade Federal Fluminense, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, na Faculdade de Filosofia e Letras de Juiz de Fora, na Universidade de Coimbra (Portugal) e na Universidade de Tbingen (Alemanha). Sua atuao poltica, junto UDN na Constituinte do Estado da Guanabara (e, mais tarde, sua atuao nos setores de Cultura e Educao da fase mais dura do Governo Militar no Brasil), contribuiu, ainda que modestamente, para o imaginrio sobre a Filologia como um reduto acadmico conservador. As notcias sobre seu falecimento, em 2001, foram notadamente desproporcionais ao seu prestgio em vida.
27
seguida, afirma que, desde ento e at o momento presente, ela est procurando seus
direitos de cidadania, ou seu foral, no reino das disciplinas lingusticas (1976, p. 15).
A determinao de Bally como fundador da Estilstica, defendida por Gladstone
Chaves de Melo, parece convergir com a viso de Joaquim Mattoso Cmara Jr., reproduzida
por Carlos Ucha, no Prefcio obra do linguista: Para Mattoso Cmara a base
verdadeiramente slida da estilstica foi proposta por Bally: a conceituao nos moldes de
Bally que vai ao cerne do assunto, proclama ele na primeira parte da obra. (UCHA,
1985, p. i-ii).
Como possvel ver, nem mesmo o surgimento da Estilstica consenso entre os
autores. Enquanto o verbete do Trsor de la Langue Franaise e Alicia Yllera, por exemplo,
reconhecem as primeiras ocorrncias do termo como j marcadores da existncia da
disciplina, ainda que reconheam suas diferenas com as correntes do sculo XX, os
brasileiros Gladstone Chaves de Melo, Mattoso Cmara Jr. e Carlos Ucha consideram
Bally o criador da Estilstica enquanto tal.
Gladstone Chaves de Melo afirma, inclusive, a existncia anterior do termo
escolhido por Bally para nomear sua disciplina o que, alis, est expressamente dito no
incio do prprio Trait de stylistique franaise , e defende, ainda assim, tratar-se de um
outro conceito: A palavra de que se serviu o criador para batizar a nova especulao j teria
cerca de trinta anos na lngua francesa e mais do que isso na lngua alem. Porm, o conceito
agora muito outro, sensivelmente diverso do que lho assina Littr teoria do estilo
(MELO, 1976, p. 15).
Essa discusso parece refletir uma questo ainda mais profunda, no que diz respeito
a interpretaes distintas quanto ao surgimento do conceito. Na perspectiva da histria dos
conceitos, de Reinhart Koselleck, possvel que um conceito s venha a surgir
posteriormente e no concomitantemente criao do termo que lhe corresponda. Seria
possvel, portanto, considerar que o conceito de estilstica que rendeu diversas teorias no
sculo XX tenha surgido com Charles Bally no incio do mesmo sculo, apesar de o termo
j existir anteriormente. O mesmo vale para estilo, um termo evidentemente mais antigo
que estilstica e tambm com uma ruptura mais clara do que veio a ser o conceito de estilo
aps o surgimento da disciplina e do conceito de estilstica.
28
Outra interpretao possvel para isso seria a da virada conceitual, tambm prevista
na histria dos conceitos. Neste caso, o conceito de estilstica anterior a Bally seria to
distinto do que veio a ser depois dele que se marcaria uma quebra ou virada conceitual a
partir de ento. Seja qual for o caso, essa divergncia de interpretao conceitual tambm
representativa da relao institucional do conceito nos diferentes contextos. A viso
europeia (francesa do TLFi, e espanhola de Alicia Yllera) ser divergente da brasileira
(Gladstone Chaves de Melo, Mattoso Cmara Jr. e Carlos Ucha, para citar apenas alguns)
tambm resultado dos diferentes nveis de impacto terico e institucional que a Estilstica
gerou em tais lugares. Enquanto, na Europa, a Estilstica j protagonizava vrios estudos no
sculo XIX, no Brasil essa disciplina s veio a ser conhecida, ou ter relevncia, no sculo
XX.23
O prximo trecho do verbete trata do objeto de estudo da Estilstica, e, para tanto,
cita o prprio Bally:
b) Disciplina que tem como objeto o estilo, que estuda os processos literrios, os modos de composio utilizados por um autor em suas obras ou os traos expressivos prprios de uma lngua (v. estilo II A). A tarefa da estilstica interna (...), limitando-se lngua comum, desvelar os germes do estilo (...): sob que condies um modelo expressivo empregado por todo mundo pode se transformar num procedimento literrio, reconhecvel por estas duas caractersticas: inteno esttica e marca individual? (BALLY, Le langage et la vie, 1952, p. 61)24
No entanto, ainda que essa citao de Bally no produza estranhamento a priori, a
escolha deste autor em especial para se legitimar o estilo como objeto de estudo da
Estilstica um tanto curiosa, visto que este autor j se colocou contrrio correlao entre
23 Relevncia essa, no Brasil, adquirida especialmente a partir da Estilstica de Charles Bally, provavelmente advinda junto com a Lingustica estruturalista. 24 b) Discipline qui a pour objet le style, qui tudie les procds littraires, les modes de composition utiliss par tel auteur dans ses uvres ou les traits expressifs propres une langue (v. style1 II A). La tche de la stylistique interne est (...), tout en se confinant dans la langue commune, de mettre nu les germes du style (...): dans quelles conditions un type expressif employ par tout le monde peut-il se transformer en un procd littraire, reconnaissable ces deux caractres: intention esthtique et marque individuelle? (BALLY, Lang. et vie, 1952, p. 61) (STYLISTIQUE. In: TLFi. http://www.atilf.fr/tlfi.)
29
estilo e estilstica. Na sua principal obra dedicada estilstica, Trait de stylistique
franaise, diz Charles Bally:
Dizem que o estilo o homem25, e essa verdade, que no contestamos, poderia levar a crer que ao se estudar o estilo de Balzac, por exemplo, estuda-se a estilstica individual de Balzac: o que seria um erro grosseiro. H um abismo intransponvel entre o emprego da linguagem feita por um indivduo dentro das circunstncias gerais e comuns impostas a todo um grupo lingustico, e o emprego que faz um poeta, um romancista, um orador. Quando o sujeito falante se encontra nas mesmas condies que todos os outros membros do grupo, existe uma norma a partir da qual se pode medir as diferenas da expresso individual; para um literato, as condies so totalmente diferentes: ele faz da lngua um emprego voluntrio e consciente (fala-se de bom grado em inspirao; na criao artstica mais aparentemente espontnea, h sempre um ato voluntrio); em segundo lugar, e sobretudo, ele emprega a lngua com uma inteno esttica; ele deseja produzir beleza com as palavras, assim como o pintor a produz com as cores, e o msico, com os sons. Contudo, esta inteno, que quase sempre a do artista, no quase nunca a do sujeito que fala espontaneamente a sua lngua materna. Isso j basta para separar para sempre o estilo da estilstica.26
A julgar estritamente pelo dito neste trecho, Charles Bally pe em forte oposio o
conceito de estilo e o de estilstica. No entanto, na sua obra Le langage et la vie, publicada
25 A frase inicial que Bally cita derivada do adgio cunhado por Buffon: Le style est lhomme mme, provavelmente derivada de uma traduo da mxima ciceroniana qualis autem homo ipse esset, talem esse eius orationem (Tusculanarum disputationum, V, 16 (47)), onde a eius oratio (i.e., o discurso dele, do homem) encontrou, no pensamento de Buffon, o correspondente em style. Essa frase de Buffon com ou sem mme foi amplamente reproduzida pelos estudiosos da Estilstica de maneira quase potica, independentemente da linha de que faziam parte. 26 On a dit que le style, cest lhomme, et cette verit, que nous ne contestons pas, pourrait faire croire quen tudiant le style de Balzac, par exemple, on tudie la stylistique individuelle de Balzac: ce serait une grossire erreur. Il y a un foss infranchissable entre lemploi du langage par un individu dans les circonstances gnrales et communes imposes tout un groupe linguistique, et lemploi quen fait un pote, un romancier, un orateur. Quand le sujet parlant se trouve dans les mmes conditions que toutes les autres membres du groupe, il existe de ce fait une norme laquelle on peut mesurer les carts de lexpression individuelle; pour le littrateur, les conditions sont toutes diffrentes: il fait de la langue un emploi volontaire et conscient (on a beau parler dinspirations; dans la cration artistique la plus spontane en apparence, il y a toujours un acte volontaire) ; en second lieu et sourtout, il emploi la langue dans une intention esthtique; il veut faire de la beaut avec les mots comme le peintre en fait avec les couleurs et le musicien avec les sons. Or cette intention, qui est presque toujours celle de lartiste, nest presque jamais celle du sujet qui parle spontanment sa langue maternelle. Cela seul suffit pour sparer tout jamais le style et la stylistique. (BALLY, 1921, p. 19)
30
poucos anos depois do Trait, e de onde a citao do verbete do TLFi foi tirada, Bally
apresenta uma posio menos incisiva quanto separao entre o estilo e a estilstica,
ainda que continue considerando-os domnios distintos:
Estilo e estilstica so dois domnios ao mesmo tempo distintos e vizinhos: todo signo expressivo da lngua coloca a seguinte questo: sob quais condies um modelo expressivo empregado por todo mundo pode se transformar num procedimento literrio, reconhecvel por estas duas caractersticas: inteno esttica e marca individual? 27
Apesar da aparente relativizao de Bally, nesse trecho escolhido pelo TFLi28, o que
permanece como algo caracterstico da teoria desse autor para a tradio posterior
justamente seu forte posicionamento contrrio a uma Estilstica que leve em conta o texto
literrio. H, inclusive, constantes ressalvas feitas por autores que abordam o tema quando
comparam Bally a outros tericos enfatizando sempre a recusa de Bally utilizao do
texto literrio.29
Essa leitura recorrente de Bally provavelmente se explica pelo fato de o linguista
entender a lngua literria como espcie de consequncia da lngua falada. A mesma lngua,
portanto, que depois de ser biolgica e social, pode ser usada com fins estticos. Tal
posicionamento est no trecho a seguir:
J tempo de no mais considerar a lngua literria como uma coisa parte, uma espcie de criao ex nihilo; ela antes de tudo uma transposio especial da lngua de todos; apenas os motivos biolgicos e sociais dessa lngua se tornam motivos estticos. Contudo, nada marca melhor essa analogia e essa diferena que as palavras estilstica e estilo, que se evocam e se opem. Eis a razo por que acredito poder indicar, como no passado, a partir de um termo frequentemente
27 Style et stylistique sont deux domaines la fois distincts et voisins: tout signe expressif de la langue pose cette question: dans quelles conditions un type expressif employ par tout le monde peut-il se transformer en un procd littraire, reconnaissable ces deux caractres: intention esthtique et marque individuelle? (BALLY, 1965, p. 61) 28 Note-se que no TLFi no est o trecho citado integralmente. Omitiu-se, no verbete, a parte inicial: Estilo e estilstica so dois domnios ao mesmo tempo distintos e vizinhos [Style et stylistique sont deux domaines la fois distincts et voisins]. 29 Cf. Yllera (1979, p. 19) e Ucha (1985, p. iii).
31
criticado, um tipo de estudo que parece orientado para as coisas da literatura sem se confundir com ela. 30
O trecho abaixo contribui para essa compreenso da estilstica da lngua falada que
viria em primeiro lugar. No entanto, ainda que Bally tenha sido referencial e possivelmente
fundador de uma nova viso da Estilstica, pouco se verificou dessa anlise estritamente
baseada na lngua na tradio que o seguiu, que frequentemente inseria a anlise lingustica,
tal como Bally, mas com o fim de analisar o texto literrio. Para compreender melhor a
definio bsica de estilstica para Bally, l-se no Trait:
Definio da estilstica: ela estuda o valor afetivo dos fatos da linguagem organizada, e a ao recproca dos fatos expressivos que concorrem para formar o sistema de meios de expresso de uma lngua. A estilstica pode ser, a princpio, geral, coletiva ou individual; mas o estudo s pode, atualmente, se fundar na linguagem de um grupo social organizado; ela deve comear pela lngua materna e pela linguagem falada.31
Levando em conta que Bally discpulo de Saussure, no de se surpreender que os
critrios de seleo do objeto de estudo da Estilstica tenham sido herdados da Lingustica
saussuriana, a saber, a necessidade de se partir da lngua materna e falada. Apesar disso, Bally
abre espao para um estudo lingustico que se debrua sobre o valor afetivo da linguagem
juntamente com a noo de expressividade , algo que permanecer nas mais diversas
teorias estilsticas.
30 Il est temps de ne plus considrer la langue littraire comme une chose part, une sort de cration ex nihilo; elle est avant tout une transposition spciale de la langue de tous; seulement les motifs biologiques et sociaux de cette langue deviennent motifs esthtiques. Or, rien ne marque mieux cette analogie et cette diffrence que les mots de stylistique et de style, qui sappellent et sopposent. Voil pourquoi je crois pouvoir dsigner, comme par le pass, dun terme souvent critiqu, un genre dtude qui semble orient vers les choses de la littrature sans se confondre avec elle. (BALLY, 1965, p. 62) 31 Dfinition de la stylistique: elle tudie la valeur affective des faits du langage organis, et laction rciproque des faits expressifs qui concourent former le systme des moyens dexpression dune langue. La stylistique peut tre, en principe, gnrale, collective ou individuelle; mais ltude ne peut prsentement se fonder que sur le langage dun groupe social organis; elle doit commencer par la langue maternelle et le langage parl. (BALLY, 1921, p. 1)
32
No mesmo tpico b do verbete do TLFi, em que aparece o trecho aqui j
problematizado de Bally, cita-se tambm Pierre Guiraud:
... da retrica ns herdamos uma dupla definio da estilstica: por um lado,
uma descrio dos recursos estilsticos que a lngua pe disposio do escritor (a teoria das figuras); por outro lado, as regras de utilizao e a escolha dessas figuras de acordo com a situao lingustica (a teoria dos gneros). (...) os modernos acrescentam uma terceira com a noo de lngua prpria do escritor. H, finalmente, trs estilsticas: descritiva, funcional, gentica. GUIRAUD, Essais de stylistique, 1969, p. 27.32
Essa diviso da estilstica proposta por Guiraud encontrou eco, inclusive, em
materiais didticos que se propem a definir essa disciplina. Alm disso, Castelar de
Carvalho cita Guiraud em um artigo intitulado A estilstica e o ensino de portugus,
porm descreve sua diviso de maneira distinta do verbete, elencando a estilstica no em
trs, mas em apenas duas correntes, talvez por se basear em uma obra diferente desse mesmo
autor:
Dividida por Pierre Guiraud (1970:6233) em estilstica da lngua ou da expresso (linha estruturalista de Bally: nfase expressividade latente no sistema) e estilstica gentica ou do autor (corrente idealista de Vossler e Leo Spitzer: nfase criao expressiva individual), trabalha com algumas categorias bsicas, como funes da linguagem, estilo, desvio e escolha. (CARVALHO, 2015, p. 1)
Sobre o lugar em que se insere Pierre Guiraud na Estilstica, Alicia Yllera (1979, p.
50) afirma ser ele herdeiro da Estilstica estrutural e potica de Jakobson, tendo sido
influenciado pela obra de Bachelard, e conhecedor da estilstica descritiva e gentica. Um
dado relevante fornecido por Yllera o de que Guiraud teria procurado a prpria
32... de la rhtorique nous hritons une double dfinition de la stylistique: d'une part, une description des moyens stylistiques que la langue met la disposition de l'crivain (c'est la thorie des figures ); d'autre part, des rgles d'utilisation et de choix de ces figures en fonction de la situation linguistique (c'est la thorie des genres). (...) les modernes en ajoutent une troisime avec la notion de langue propre l'crivain. On a finalement trois stylistiques: descriptive, fonctionnelle, gntique. GUIRAUD, Essais de styl., 1969, p. 27. (STYLISTIQUE. In: TLFi. http://www.atilf.fr/tlfi.) 33 Referncia a: GUIRAUD, Pierre. A estilstica. Trad. de Miguel Maillet. So Paulo: Mestre Jou, 1970.
33
originalidade fazendo uma sntese de diversas correntes, buscando conciliar diferentes
tendncias estilsticas. Sendo assim, Guiraud procurava reintegrar a retrica no quadro
epistemolgico da lingustica e reconciliar a estilstica lingustica com a crtica literria.
No trecho abaixo do verbete stylistique, pode-se ver que Guiraud utiliza Bachelard
para sua descrio do que seria a estilstica, confirmando a influncia deste autor na sua obra:
Em partic. Que pertence ao contedo afetivo, subjetivo de uma expresso, de um texto. Efeito estilstico; emprego estilstico de uma palavra. Bachelard (...) mostra que o valor das palavras, tais como mole, pegajoso, viscoso transcende constantemente seus significados (...). H, assim, diversos empregos metafricos, com diversos valores estilsticos por trs dos quais se deve procurar menos uma imagem formal objetiva do que uma experincia ntima e intuitiva (GUIRAUD ds Langage, 1968, p. 444).34
Vale ressaltar tambm nesse trecho do verbete uma definio de estilstica que se
baseia no contedo afetivo e subjetivo de uma expresso. Tais termos, afetivo e
expresso (ou derivados, como expressividade), so extremamente recorrentes nas
diversas correntes estilsticas. O que h de diferente nesta ltima citao de Guiraud a
noo de valor estilstico, que no parece aqui ser prescritivo, num julgamento axiolgico,
mas sim uma noo de valor mais prxima da Lingustica como em valor semntico,
por exemplo.
Alicia Yllera tambm utiliza a diviso dupla da estilstica de Pierre Guiraud (e baseia-
se tanto na obra citada no verbete do TLFi quanto a referenciada por Castelar de Carvalho),
situando Cressot na estilstica descritiva utilizando o termo de Guiraud para a escola
franco-sua, reservado a autores que se dedicam a estudar a obra literria , em oposio
ao que chama de estilstica da lngua ou lingustica, de que fazem parte Bally e
34 En partic. Qui appartient au contenu affectif, subjectif d'une expression, d'un texte. Effet stylistique; emploi stylistique d'un mot. Bachelard (...) montre que la valeur de mots tels que mou , gluant , visqueux transcende constamment leur signification (...). Il est ainsi de nombreux emplois mtaphoriques, de nombreuses valeurs stylistiques derrire lesquels on doit chercher moins une image formelle objective qu'une exprience intime et intuitive (GUIRAUD ds Langage, 1968, p. 444). (STYLISTIQUE. In: TLFi. http://www.atilf.fr/tlfi.) Ressalta-se que este trecho do verbete foi o nico retirado da ordem; ele pertence ao ponto 2. Adjetivo.
34
Marouzeau (1979, p.18). Diz Yllera, portanto, que Cressot inverte totalmente a frmula de
Bally, afirmando que a obra literria faz parte do domnio da estilstica justamente pelo fato
de a escolha na literatura ser mais voluntria e consciente (YLLERA, 1979, p. 20).
Assim como depois far Dmaso Alonso, Cressot critica os argumentos utilizados
por Bally para afastar a Estilstica da obra literria, argumentando que esta tambm
comunicao, sendo o elemento esttico parte do desejo do autor de conseguir a adeso do
leitor e, portanto, no se opondo comunicao oral (ibidem, p.20).
H tambm no verbete do TLFi um trecho retirado de Cressot:
Estilstica comparada. Estudo comparado dos meios de expresso prprios de duas ou mais lnguas. Quando se tiver libertado das leis que regem a expresso do pensamento francs, ser possvel estudar as analogias ou as diferenas que o aproximam ou o separam do das lnguas irms ou de uma outra famlia. Essa ser a estilstica comparada (CRESSOT 1969, p. 6).35
Essa citao pode ser mais bem esclarecida a partir do que diz Yllera sobre o objetivo
desse autor; para ele, a estilstica consistiria, em ltima anlise, em determinar as leis gerais
que regem escolha da expresso, e dentro do quadro mais reduzido do nosso idioma, a
relao entre a expresso francesa e o pensamento francs36. Dessa maneira, no parece
estar ausente deste autor a anlise lingustica, apesar de fazer uso de textos literrios. Yllera
(1979, p. 21) conclui, em seguida, que Cressot e Bruneau recorriam obra literria como
mera fonte de dados, uma tendncia que a autora diz permanecer viva at o seu presente
momento (portanto, por volta dos anos de 1970).
Para concluir a referncia ao verbete stylistique, o Trsor de la Langue Franaise
informatis cita Paul Valry para associar a estilstica ao estilo individual aspecto este
35 Stylistique compare. tude compare des moyens d'expression propres deux ou plusieurs langues. Quand on aura dgag les lois qui rgissent l'expression de la pense franaise, il sera possible d'tudier les analogies ou les diffrences qui la rapprochent ou la sparent de celle de langues surs ou d'une autre famille. Ce sera la stylistique compare (CRESSOT 1969, p. 6). (STYLISTIQUE. In: TLFi. http://www.atilf.fr/tlfi.) 36 [...] dterminer les lois gnrales qui rgissent le choix de lexpression, et dans le cadre le plus rduit de notre idiome, le rapport de lexpression franaise et de la pense franaise (CRESSOT, 1969, p 3, apud YLLERA, 1979, p. 21)
35
divergente entre os autores , e ao modo ideal de escrever prescrio que remete
Retrica, assunto do subcaptulo (3.1). L-se, portanto:
2. Adjetivo a) De estilo (v. estilo II A); que concerne ao modo de se exprimir prprio de uma pessoa e, em particular, na maneira ideal de escrever. Lido le Bal du Comte d'Orgel (...). Segurana extraordinria desse livro (...). O xito quase perfeito (apesar das incompreensveis falhas estilsticas (...)) (GIDE, Journal, 1933, p. 1149). Estas Tentaes [de Santo Anto] (...) era para ele [para Flaubert] como um antdoto ntimo contra o tdio (...) de escrever seus romances de costumes modernos e de de criar monumentos estilsticos para a trivialidade provincial e burguesa (VALRY, Varit V, 1944, p. 202).37
E continua com Jean Dubois, referindo-se ao sentido de estilstica na Lexicografia:
LEXICOGR. Indicador/marca estilstica. Indicao que permite notar um certo nvel da lngua. Os nveis da lngua ou marcas estilsticas, pelo prprio nome, indicam que existe uma hierarquia social, diagnosticada pelos componentes verbais (J. et Cl. DUBOIS, Introd. la lexicogr., Paris, Larousse, 1971, p. 37). Quando muitos indicadores estilsticos so necessrios para introduzir uma palavra ou um sentido, o indicador valorativo ou pejorativo precede, nos artigos do TLF, o indicador de nvel de lngua, o qual precede o indicador relativo ao uso (G. GORCY ds Wrterbcher, t. 1, Berlin-New York, W. de Gruyter, 1989, p. 913, col. 1).38
37 2. Adjectif a) De style (v. style1 II A); qui concerne la faon de s'exprimer propre telle personne et, en particulier, la manire idale d'crire. Lu le Bal du Comte d'Orgel (...). Extraordinaire sret de ce livre (...). La russite est peu prs parfaite (en dpit d'incomprhensibles dfaillances stylistiques (...)) (GIDE, Journal, 1933, p. 1149). Cette Tentation [de saint Antoine] (...) lui tait [ Flaubert] comme un antidote intime oppos l'ennui (...) d'crire ses romans de murs modernes et d'lever des monuments stylistiques la platitude provinciale et bourgeoise (VALRY, Varit V, 1944, p. 202). (STYLISTIQUE. In: TLFi. http://www.atilf.fr/tlfi.) 38 LEXICOGR. Indicateur/marque stylistique. Indication permettant de noter un certain niveau de langue. Les niveaux de langue ou marques stylistiques, par le nom mme, indiquent qu'il existe une hirarchie sociale, diagnostique par les comportements verbaux (J. et Cl. DUBOIS, Introd. la lexicogr., Paris, Larousse, 1971, p. 37). Quand plusieurs indicateurs stylistiques sont ncessaires pour introduire un mot ou un sens, l'indicateur mlioratif ou pjoratif prcde dans les articles du TLF l'indicateur de niveau de langue, lequel prcde l'indicateur relatif l'usage (G. GORCY ds Wrterbcher, t. 1, Berlin-New York, W. de Gruyter, 1989, p. 913, col. 1). (loc. cit.)
36
Uma primeira observao possvel de se fazer que os indicadores estilsticos citados
acima, ainda que referentes Lexicografia, lembram os marcadores estilsticos recentemente
recuperados pela Sociolingustica39. Para alm disso, no entanto, importante lembrar o
lugar que ocupou Jacques Dubois, um dos autores citados acima e de grande relevncia nos
estudos estilsticos: integrante do grupo , buscou elaborar uma retrica geral, segundo
Yllera (1979, p. 16), entendendo a retrica como um conjunto de desvios com fins
estticos especficos. Alicia Yllera o menciona, no entanto, como exemplo do movimento
recente, em seu tempo, da Estilstica e da Potica tentarem se apropriar das anlises da velha
retrica cada no esquecimento h mais de um sculo ou repenser la rhtorique en termes
structuraux (reequacionar a retrica em termos estruturais), como assinalava Barthes em
1964 (ibidem, p. 16).
Por fim, citaremos o ltimo ponto da primeira parte do verbete do TLFi:
b) Relativo estilstica (supra A 1 b). Para recusar estilstica literria o direito existncia, Croce alega que toda criao artstica procede de uma intuio sinttica; que essa intuio escapa anlise estilstica (BALLY, ds Wrterbcher, t. 1, Berlin-New York, W. de Gruyter, 1989, p. 913, col. 1). Um primeiro tipo de estudos estilsticos unir as anlises dos sistemas da expresso: 1 de uma lngua (...); 2 de um gnero (...); 3 de um escritor (...) o objetivo tanto de L. Spitzer como de G. Devoto ou de Ch. Bruneau (...). Um segundo tipo abarcar (...) as anlises de um ou mais recursos de expresso (G. ANTOINE ds R. de l'enseign. sup., t. 1, 1959, pp. 59-60).40
A citao de Benedetto Croce acima feita por Bally explica menos o que o prprio
item do verbete prope (b) Relativo estilstica), j que se trata de uma tentativa de
39 Essa e outras reapropriaes recentes de estilstica por correntes lingusticas se encontram no subcaptulo 2.3 desta Dissertao. 40 b) Relatif la stylistique (supra A 1 b). Pour refuser la stylistique littraire le droit l'existence, M. Croce allgue que toute cration artistique procde d'une intuition synthtique; que cette intuition chappe l'analyse stylistique (BALLY, ds Wrterbcher, t. 1, Berlin-New York, W. de Gruyter, 1989, p. 913, col. 1). Un premier type d'tudes stylistiques groupera les analyses des systmes d'expression: 1o d'une langue (...); 2o d'un genre (...); 3o d'un crivain (...) c'est l'objectif aussi bien de L. Spitzer que de G. Devoto ou de Ch. Bruneau (...). Un second type embrassera (...) les analyses d'un ou plusieurs procds d'expression (G. ANTOINE ds R. de l'enseign. sup., t. 1, 1959, pp. 59-60). (STYLISTIQUE. In: TLFi. http://www.atilf.fr/tlfi.)
37
justificar uma recusa estilstica literria, que diz bem mais do posicionamento do prprio
Bally, como j foi discutido.
E quanto ao autor da citao final, Grard Antoine, Alicia Yllera (1979, p. 38) lembra
que ele props uma dupla estilstica: das formas ou dos temas. Sobre a primeira, Antoine diz
que se trataria daquela estilstica que v a obra como um sistema de valores ou de efeitos a
servio seja da inteno de significao, e principalmente de expresso, que provm do
autor nesse grupo se inseririam Bruneau, Marouzeau, Devoto e Spitzer , seja da
possibilidade de recepo e percepo oferecida pelo leitor ou ouvinte neste, insere
Riffaterre e todos os representantes da integrao da estilstica na lingustica. J na estilstica
dos temas, Antoine insere autores que pertencem ao domnio da crtica literria Barthes,
Poulet, Richard, Starobinski e outros que so principalmente filsofos Bachelard,
Foucault, Sartre (ibidem, p. 38-9).
Sobre essa diviso de Antoine, no entanto, Yllera diz que ela apresenta srios
inconvenientes, uma vez que se baseando numa reelaborao simplista da antiga distino
entre fundo e forma, confunde estilstica e nouvelle critique (ibidem, p. 39). Essa crtica
que Yllera faz se baseia na sua forte posio quanto ao fato de no bastar que a maioria das
correntes dessa crtica tenham adotado termos lingusticos como estrutura, sistema etc.
para serem consideradas parte do domnio da estilstica. A autora, prossegue, ento, numa
comparao: tal como aplicaes anlogas em psicologia, antropologia, sociologia, etc. no
bastam para destruir a autonomia das diversas cincias humanas (ibidem, p. 39).
Yllera, conclui, ento que a dificuldade da estilstica em se delimitar das outras
disciplinas fez com que alguns dos seus representantes se declarassem cticos (ibidem, p.
39). No entanto, a autora da opinio de que a diversidade terminolgica que a estilstica
recebeu (potica, semiologia da obra literria etc.) no representaria a existncia de
disciplinas de fato distintas, e sim as vicissitudes que acompanham todos os esforos para
um estudo objectivo da literatura: para um estudo que parta da sua prpria matria, a
linguagem.
Tal posicionamento de Yllera mostra uma quase defesa da Estilstica enquanto campo
autnomo, algo pouco crvel tendo em vista seu lugar intermedirio entre dois campos j
em conflito (a Lingustica e os estudos literrios). No entanto, sua compreenso do que seria
38
o cerne comum a unir as teorias estilsticas relevante para se pensar no que perpassaria
todas as correntes to divergentes. Sobre isso, ela prope que o ponto em comum o estudo
objetivo da literatura.
Retomando, ento, as subdivises j propostas da Estilstica, mais recentemente Carlos
Ucha dividiu a Estilstica do sculo passado em duas grandes correntes o que diz ser
consensual, ainda que no explicite ningum em particular41 , que focalizavam o estilo
com propostas distintas, mas que no deixavam de se pressupor: liderada por Leo Spitzer, a
primeira seria a chamada idealista, que teria tal nome pela relao com a filosofia idealista
de B. Croce e K. Vossler. Ucha afirma que nesta chamada escola idealista alem, o estilo
abarca todo elemento criado pela linguagem, reconhecido como prprio do indivduo,
refletindo, assim, a sua originalidade (2013, p. 14). E a segunda corrente que menciona
a iniciada por Bally, que se preocupa em criar uma metodologia cientfica, e que se opunha
ao positivismo dos neogramticos, ainda que no se afastasse ela prpria dos mtodos
positivistas.
Essa subdiviso de Ucha parece remeter quela j tambm citada por Castelar de
Carvalho, baseada em Pierre Guiraud (que tambm encontra divergncias, ora dividida em
duas grandes linhas, ora em trs). Para alm dessas separaes da Estilstica, que so, no geral,
pouco elucidativas, vale descrever brevemente a primeira corrente de que fala Ucha.
Alicia Yllera, que subdivide em bem maior quantidade as linhas da Estilstica, afirma
que as correntes histricas e filosficas na Alemanha prepararam terreno para o surgimento
de duas novas correntes estilsticas: uma concebida como histria da cultura, com E.
Auerbach, e outra idealista, influenciada por Croce, com Vossler e Leo Spitzer (1979, p.
21-22).
Vossler, segundo Yllera, reage violentamente ao positivismo que imperava no seu
tempo e recorre dupla formulao humboldtiana da linguagem como ergon (produto
criado) e energeia (criao) (ibidem, p. 22). A nica via de penetrao estilstica para
Vossler era a intuio, e nesse aspecto coincide com parte do mtodo de Leo Spitzer, que
se diferencia do autor, no entanto, ao afastar-se do seu historicismo. Enquanto Vossler
41 Pelas frequentes referncias a Guiraud, no entanto, pode-se supor que tambm tenha tirado sua diviso deste autor.
39
buscava entender o estilo pessoal dentro de uma linguagem determinada historicamente,
diz Yllera que Spitzer parte da expresso individual do autor, pela qual penetra seu mundo
mental, prescindindo da sua historicidade (ibidem, p. 22).
E Leo Spitzer, segundo Yllera, torna-se o principal representante da escola idealista,
propondo estabelecer uma ligao entre a lingustica, a filologia e a histria literria, campos
entre os quais o positivismo havia criado um fosso que poucos autores se atreveram a
transpor (ibidem, p. 24). No entanto, o pensamento positivista no parece estar de todo
ausente neste autor, visto que logo a seguir afirma Yllera: Spitzer era linguista e, por
conseguinte, cientista e sonhava transferir seu rigor para um domnio antes submetido
crtica impressionista e fragmentria, a obra potica (ibidem, p. 24).
Por fim, Yllera afirma que o mtodo impressionista de Spitzer e, de modo geral, da
escola idealista foi muito atacado, ao que contrape a autora dizendo que, apesar das
crticas, Spitzer foi o primeiro a tentar vincular a lingustica histria literria,