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A memória positiva sobre o regime militar no Espírito Santo: Os caminhos do consentimento
(1968-1978)
DAVI ELIAS RANGEL SANTOS*
1 – A construção da memória
São os passados presentes (Andreas Huyssen) que necessitam de representações materiais ou
imateriais que tenham significado para o grupo social. São os lugares de memória na expressão
consagrada por Pierre Nora que diz:
“o lugar da memória é um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado
sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de
suas significações”.
Os lugares, as imagens e as lembranças compõem os quadros sociais da memória. Eles são
fundamentais na reconstituição do passado e sua identificação com determinada sociedade. Por
conseguinte, a memória coletiva envolve as memórias individuais que carregamos por sermos seres
individuais. Em todo ato de memória existe como premissa a consciência individual que nada mais
é que a memória individual apoiada sobre a memória coletiva. E a lembrança é essencial para
significação histórica de qualquer acontecimento social, pois ela pode ser emprestada como diz
Halbwachs:
“Elas ocupam um lugar na memória da nação. Porém eu mesmo não os assisti. Quando eu os
evoco, sou obrigado a confiar inteiramente na memória dos outros... Carrego comigo uma
bagagem de lembranças históricas... Mas é uma memória emprestada e que não é minha...”.
Nossas memórias são limitadas no tempo e no espaço. Eis o ponto em que a memória e a História se
encontram. A História como reconstrução incompleta do passado, daquilo que não existe mais
busca auxilio na Memória como representação sempre atual, vivida por grupos no presente. Na
verdade a História se apresenta como uma recodificação do passado, ou seja, seu objeto é o que já
aconteceu enquanto que a memória se dispõe dos seus objetos por associação através dos lugares de
memória. A conciliação entre a História e a Memória se dá quando:
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*Aluno Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (ES).
“... a História se esforça por criar uma história científica a partir da memória coletiva... História
que fermenta a partir do estudo dos “lugares” da memória coletiva: lugares topográficos, como
arquivos, as bibliotecas e os museus.... Estas memórias têm a sua história...” (Jacques Le Goff).
A lembrança, a memória é a reconstrução do passado com dados e questionamentos feitos no
presente. Ela é essencial para significação histórica de qualquer acontecimento social. É a imagem
ligada a outras imagens que remetem ao passado. Toda memória coletiva tem por base um grupo
limitado no tempo e no espaço. É importante entender que a memória não restitui o passado; ela se
baseia nas diferenças das lembranças do grupo que serão recontadas através da História. A grande
questão é: Há espaço de ação para essas diferentes lembranças de cada grupo na sociedade em que
estão inseridos?
Micheal Pollack analisa esse tema ao abordar com extrema felicidade a memória oficial, aquela que
é predominante porque representa o grupo social hegemônico; e as memórias subterrâneas que
permanecem vivas no seio da sociedade através da transmissão oral que passa de geração a outra,
representando uma forma de resistir aos discursos oficiais. A permanência dessas memórias entre os
grupos minoritários representa um passado esquecido, silencioso, porém não morto.
As razões do silêncio dessas memórias podem ser relacionadas com a falta de interesses políticos,
de pessoas que ouçam aquilo que está sendo dito e muitas vezes motivações pessoais que as
impedem de vir à tona. Porque elas geralmente são traumáticas e mexem com a vida e o imaginário
das pessoas. Sofrimentos, tragédias familiares como guerras, atentados, massacres étnicos,
ditaduras, torturas entre outras guardam consigo lembranças marcantes do período vivido e que
contrastam com o discurso oficial.
“Em face dessa lembrança traumática, o silêncio parece se impor a todos aqueles que querem
evitar culpar as vítimas. E algumas vítimas... preferem, elas também, guardar o silêncio” (Michael
Pollack)
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Por exemplo, um período marcado por traumas na história nacional foi a Ditadura Militar no Brasil
(1964-1985) que simboliza bem esse quadro de silenciamento da memória. Os governos e grupos
sociais dominantes tentaram manter cristalizados apenas uma memória oficial ao tentar calar as
outras memórias desse período através da utilização da censura a imprensa, a Lei da Anistia e o
“perdão” para todos que cometeram crimes nesse contexto repressivo, a demora em disponibilizar
os arquivos públicos para à pesquisa para que a História pudesse fazer o seu papel de recodificar o
passado.
São situações reais que representam uma tentativa de silenciar o passado e todos os conflitos que ele
traz consigo. Quando essas memórias escondidas começam a ganhar o espaço público reivindicando
sua presença na memória coletiva ocorrem as disputas de memória que colocarão em lados opostos,
grupos sociais os quais representam.
“Esses acontecimentos geraram o que Giovanni Contini muito bem descreveu como uma “memória
dividida”... uma memória “oficial”, que comemora o massacre como um episódio da Resistência e
compara as vítimas a mártires da liberdade; e por outro lado, uma memória criada e preservada
pelos sobreviventes, viúvas e filhos, focada quase que exclusivamente no seu luto, perdas pessoais e
coletivas”.
Com base nessa discussão levantada por Alessandro Portelli sobre “memória dividida” é possível
perceber como a memória vai se moldando com o passar do tempo histórico em função das
mudanças do grupo social dominante, da política vigente e por questões ideológicas que permeiam
as relações sociais no tempo e espaço.
Daí levou-nos a pensar em um objeto de pesquisa que trata justamente da análise dos conflitos
silenciosos entre a memória oficial, linear, positiva e as memórias “subterrâneas”, sobre o Regime
Militar brasileiro no estado do Espírito Santo, num recorto de tempo histórico que percorre os anos
de 1968 a 1978. Esse tema carece de mais análise e de uma pesquisa sistemática para entender o
porquê da vitória dessa memória que se tornou oficial, sendo, porém esta parcial e pertencente a
grupos sociais minoritários dominantes, política e economicamente.
A natureza seletiva da memória nos permite levantar interpretações diferenciadas sobre
determinado período histórico que se quer pesquisar. Cabe ao historiador pensar, analisar, discutir
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com as fontes, os documentos do período analisado, interpretando-os criticamente, tendo a
consciência de que essas memórias são fragmentadas, múltiplas e que estão atreladas ideológica e
culturalmente a determinados grupos sociais.
Nessa perspectiva, se faz necessário compreender, estudar e analisar os instrumentos de consenso e
de consentimento que deram legitimidade aos governos estaduais e desempenhou papel crucial na
construção de uma memória “positiva” sobre Regime Militar no Espírito Santo que ainda é
predominante nos dias atuais. Haja vista, as passeatas de março de 2015 na capital Vitória (ES)
onde no meio de centenas de milhares de pessoas, em protesto contra o governo federal, foi possível
identificar vários cartazes, vozes pedindo intervenção militar, sugerindo a volta da ditadura militar
no país como se esta tivesse sido positiva para a nação.
2 – “Zonas Cinzentas”
Para análise e discussão sobre os usos políticos da memória na história, o historiador francês Pierre
Laborie ao refletir sobre o contexto social da França no período da República de Vichy (1940-1945)
durante a II Guerra Mundial cunhou o conceito de “’zonas cinzentas” para analisar os tipos de
comportamentos sociais, heterogêneos e complexos da sociedade francesa, num momento de grave
crise política, econômica e cultural que colocaram em evidência as relações conflituosas inseridas
naquele contexto e que, por conseguinte, serviram de parâmetro para reflexão sobre outros
contextos históricos em países que viveram regimes não democráticos.
Ele propõe a discussão sobre o meio termo entre a relação binária consagrada pela memória que, em
momentos traumáticos, coloca em lados opostos os resistentes e os colaboracionistas, sem levar em
consideração os tipos de consenso e as formas de consentimento que permeiam a complexidade
social e que justifica a longevidade desses regimes.
Daí a ideia que ele propõe de ambivalência, isto é, o pensar duplo que é justamente uma
característica daquele homem que é um e outro ao mesmo tempo. Ou seja, é capaz de apoiar, aderir,
consentir com o autoritarismo e ao mesmo tempo se posicionar contrário a partir de suas
experiências pessoais ou sociais. Isso diz respeito as formas de consenso em regimes não
democráticos, segundo o qual o homem pode ser colaboracionista e/ou resistente ao mesmo tempo.
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Com base neste pensamento que mergulha nas relações intrínsecas entre as sociedades e os regimes
autoritários, se faz necessário olhar a ditadura civil militar (1964-1985) para além da ótica da
Resistência ou da Colaboração, sem negligenciar o modo de pensar e de viver dos seus
contemporâneos. Laborie afirma que essa característica do duplo pensar é uma forma de resposta
social a situações de extrema privação, um ajuste entre o desejável e o possível, pois num estado de
exceção, de autoritarismo há uma necessidade de se adaptar ao meio, a dura realidade vivida. Por
isso, importante estabelecer uma breve reflexão sobre as formas de adaptação da sociedade alemã e
italiana aos seus respectivos regimes autoritários.
3 – Breve análise sobre os casos italiano e alemão
3.1 - O Fascismo
Na Itália os partidos de oposição, antifascistas construíram o mito da resistência por meio da
memória. O fascismo enquanto sistema político autoritário fez alianças com a monarquia, o
exército, o judiciário e a igreja católica contribuindo para o consenso na sociedade italiana. Os
cargos, as funções administrativas e educativas ficaram a cargo das pessoas que faziam parte das
fileiras doo partido fascista.
Segundo Didier Musiedlak, o consentimento só poderia ser aceito caso fosse de forma consciente e
deliberadamente aceita pela sociedade. O fascismo possuía uma base sólida capaz de integrar quase
toda população ativa do país. Era percebido como uma estrutura nova, com base social capaz de
converter os espíritos. Fato é que o regime fascista italiano despertou fascinação nos jovens em
virtude das esperanças que vendiam. Assim, o regime se beneficiou de um imenso consenso ao
chegar ao poder.
Na década de 1930 o fascismo era visto pelos cidadãos italianos como um “modelo moral”
amplamente aceito e sem foco de oposição na sociedade. Foi capaz de despertar nas pessoas uma
livre vontade de participar, uma adesão espontânea que supera a ideia de obediência cega e
passividade. O autor diz que “o sucesso de um regime político se dá quando o indivíduo interioriza
as normas, as regras e age dentro dos limites impostos pelo sistema”. O próprio carisma do chefe,
do líder desempenha um papel importante no consenso, na adesão social ao regime.
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A dimensão religiosa contribuiu para a construção do consentimento da sociedade italiana ao
regime. Em favor da construção do consenso italiano a igreja católica se tornou peça chave a ser
reintroduzida no Estado italiano através do Acordo de Latrão em 1929. Além disso, este adotou
medidas assistencialistas à população durante a década de 1930, tais como serviço de previdência
social, programas de apoio às camadas mais pobres. Um dos principais objetivos do fascismo era
“fascistizar” as futuras gerações de italianos.
A imagem construída em torno do DUCE visava ampliar as bases de apoio junto às massas,
consolidando o seu poder através da legitimação do consenso. A imprensa contribuiu para reforçar a
popularidade de Mussolini junto à sociedade ao apresentá-lo como um homem acima da média. Ele
se tornou agente do consenso e do consentimento no regime fascista. A dimensão carismática mais
o projeto revolucionário pregado pela doutrina fascista de caráter religioso e a vontade de regenerar
os homens, foram elementos que fascinaram os intelectuais ao discurso fascista. Por isso, muitos
intelectuais abraçaram a causa espontaneamente assumindo o papel de homem duplo, ou seja,
militante e burocrata, produtores e difusores de sentidos. O consenso era o resultado de tudo aquilo
que contribuía para manter o equilíbrio da sociedade.
3.2 - O Nazismo
O historiador Marc Ferro analisou o ressentimento como um processo acumulativo histórico que
marcou os povos, influenciou suas organizações sociais e políticas, determinou conflitos e fez surgir
guerras e regimes autoritários. O ressentimento, segundo o autor, é fruto das promessas não
cumpridas, violência sofrida, feridas abertas tanto no indivíduo quanto na sociedade. A existência
dele representa o elo entre o passado e o presente. Por exemplo, um dos elementos que fizeram o
nazismo chegar ao poder na década de 1930 na Alemanha foi o ressentimento da sociedade em
virtude dos termos estabelecidos pelo Tratado de Versalhes pós 1ª Guerra Mundial, cujos efeitos
foram sentidos pelos alemães nas décadas seguintes.
Essa grave crise econômica, associados aos milhões de desempregados, o declínio moral e cultural
da sociedade alemã, contribuíram para a eleição de Hitler na década de 1930. As mudanças
implantadas pelos nazistas avançaram em sintonia com o que a grande maioria da população queria.
Por exemplo, o historiador alemão Robert Gellately faz uma reflexão sobre a perseguição que os
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nazistas implantaram na sociedade alemã a dois tipos de “marginais sociais” (outsiders):
criminosos, prostitutas, bêbados e judeus.
Hitler tinha consciência de que para formar autoridade era preciso investir em sua popularidade.
Assim, o reforço na construção da sua imagem mais a força militar transformará seu governo numa
“ditadura de consenso”. Gellately afirma que é equivocado classificar o governo nazista como um
“regime de terror”, pois houve uma base social de apoio e de consenso em torno do seu governo que
incluía comunistas, socialistas entre outros. Com a retomada do emprego e o crescimento
econômico, Hitler vai conquistar os trabalhadores, facilitando o consenso na sociedade alemã.
Alguns questionavam, outros percebiam a tentativa de destruir a democracia e o estado de direito
por parte dos nazistas, porém a grande maioria apoiou ou simplesmente ignorou de forma
consciente. Houve um consenso social em favor do nazismo na Alemanha.
Hans-Ulrich Wehler disse que havia “disposição para o consenso” na sociedade alemã, pois o povo
estava pronto para o nazismo. Os campos de concentração formados por Hitler a partir de 1933
tiveram ampla divulgação e forte apoio das cidades onde eles foram construídos. O regime nazista,
segundo Jeremy Noakes, teve sucesso junto a sociedade alemã porque “esta tinha valores,
princípios e preconceitos que o nazismo defendia”. Portanto, o regime era reflexo dos anseios da
própria sociedade e não estranhos a ela. Hans-Ulrich Wehler disse que a “concordância dos
cidadãos com o regime se deu pelas suas experiências positivas, exitosas com o nazismo,
expressando uma força de vontade de ambos os lados”.
O maior obstáculo enfrentado pela resistência ao regime nazista era a enorme popularidade de
Hitler. Muitos que viveram o período de 12 anos do III Reich tiveram uma impressão positiva do
governo devido às festas cívicas, as promessas de um futuro próspero, o combate aos
marginalizados sociais, a manutenção da lei e da ordem. A maioria silenciosa e não silenciosa
apoiou o regime nazista.
3 – O Regime Militar brasileiro
O silêncio em torno das marcas expostas deixadas pelo regime civil militar no Brasil contribuiu
para esconder os traumas do passado, por meio de um pacto social estabelecido entre governos
militares e sociedade, que relegou ao esquecimento os dramas sofridos por parcelas da sociedade e
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que se fazem presentes no atual contexto histórico, pois, segundo Marc Ferro “o ressentimento é
uma força latente, pulsante na história”.
O historiador Carlos Fico desenvolveu um trabalho de pesquisa com o foco voltado para a questão
do otimismo numa perspectiva política. Segundo Fico, esse otimismo foi forjado pela propaganda
política militar através de um discurso que tinha por objetivo criar uma identidade, ressignificar as
representações sociais. Para tanto, investigou os meandros da informação/comunicação e os vários
sentidos que elas adquiriram no contexto militar em prol do controle e da dominação.
Nesse aspecto da propaganda, os brasileiros se diferenciaram dos métodos empregados pela
propaganda nazi-fascista nos aspectos doutrinários, na personalização do líder e nas poucas
referências oficiais. A visão otimista do regime militar foi um fenômeno de curta duração que se
relaciona com a tradição de longa duração no Brasil de otimismo tanto quanto de pessimismo. Neste
período, vários grupos econômicos, instituições públicas e privadas contribuíram ativamente na
fabricação e na comercialização de uma imagem positiva do país. No campo das representações os
governos autoritários criaram um projeto de nação, frágil e duvidoso, porém real, que mexia com o
imaginário social: “Brasil grande”, “país do futuro”, “ninguém segura este país”, ideologias que
encobriam os reais problemas nacionais.
Essa visão otimista de longa duração reforçada pela propaganda política durante o regime militar foi
uma tentativa de alicerçar a convicção dos brasileiros de que “tudo vai dar certo” uma visão mítica
e otimista do futuro. A grande dificuldade dos historiadores, segundo Fico, é entender que as
imagens positivas não estão associadas a ações coordenadas de forma intencional; e sim que são
frutos de um processo mais complexo dentro de um sistema de representações. Isto é, a imagem de
que a propaganda política do regime militar como uma “máquina de controle ideológico” ou
“instrumento de manipulação” criado para reagir aos movimentos civis contrários ao regime, não se
sustenta.
Carlos Fico afirma que a invenção da tradição brasileira foi à invenção do otimismo. Este está
associado à certeza de que o Brasil está predestinado ao sucesso. Por intermédio do “Milagre
Econômico” que coincidiu com o “espírito modernizante”, vários setores médios e industriais do
país viveram um clima de grande otimismo. Foi a época dos grandes projetos na área da construção
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civil, como a Transamazônica, Ponte Rio-Niterói, Hidrelétrica de Itaipu. Essas grandes obras
relacionavam-se com uma perspectiva otimista de futuro calcada num presente de realizações. Ou
seja, a ideia de “Brasil potência” atendia aos anseios das elites interessadas no desenvolvimento e
na segurança, representações muito bem trabalhadas pelo Regime Militar.
A historiadora Janaína Cordeiro, ao pesquisar os discursos oficiais otimistas do Governo do General
Médici (1969-1974) e, sobretudo, a visão analítica sobre as comemorações cívicas organizadas no
ano do Sesquicentenário (1972) que representou o auge do regime, da popularidade do então
presidente e a produção de uma legitimidade num regime não democrático, se debruçou sobre os
conceitos teóricos que abordavam o consenso e consentimento, valendo-se do pensamento de
autores que discorreram sobre o assunto.
O consenso na visão de Nobert Bobbio é “o acordo compartilhado pela e na sociedade; ponto de
vista de princípios, valores e normas comuns que estabelecem um acordo entre o regime político
vigente e a sociedade”. O consentimento versa com os comportamentos sociais, pois estas são as
formas pelas quais o acordo se manifesta socialmente.
O objetivo era compreender como se manifestava o consenso em sociedades não democráticas, haja
vista, ser ela uma categoria que teoricamente só poderia ser aplicada em regimes democráticos. Por
isso, a autora utiliza-se do pensamento do historiador francês, Pierre Laborie, que aborda o
consenso em regimes não democráticos como uma “zona cinzenta”, ambivalente e que caracteriza o
pensar duplo do homem.
Assim ela avançou na discussão binária sobre estado opressor x sociedade vitimada, sustentada
pelos lugares comuns da memória que consagrou a ideia de resistentes de um lado e colaboradores
do outro em vários regimes não democráticos, ao analisar apoio dado pela sociedade brasileira, de
formas múltiplas e heterogêneas, ao regime militar brasileiro. Houve um pacto social pós 1964 que
sustentou o regime militar por 21 anos e que ainda alimenta uma memória positiva sobre o ele no
presente. Somente a repressão, a coerção, a censura, não são capazes de dar sustentação a regimes
autoritários.
Os regimes autoritários produzem orgulho, encantamento que fascinam a maioria da sociedade onde
já possui traços conservadores e autoritários em sua gênese. Sob essa ótica é possível compreender
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porque alguns segmentos sociais, pessoas das mais diversas camadas pedirem a volta da ditadura
nas passeatas contra o governo petista (2015-2016) e que culminaram com o impedimento da
presidente Dilma Russeff.
A historiadora Janaína relata que no lugar comum da memória, os “anos de chumbo” ficaram
consagrados, porém, essa realidade de violência, perseguição e tortura foi vivida por uma pequena
parcela da sociedade brasileira. Para a grande maioria esse período representou “anos de ouro”.
Vários segmentos sociais passaram a largo do sistema repressivo e experimentaram uma
prosperidade intensa, segurança, estabilidade e alívio em função da ação do estado contra a ameaça
terrorista comunista.
A ideia da “construção do novo” trazida no bojo pelo Milagre Econômico foi capaz de criar
expectativas positivas, patrióticas, nacionalistas, mobilizando grande parte da sociedade. Ela
dialogou com a tradição otimista nacional numa perspectiva de longa duração enraizada na
sociedade. O êxito desse discurso se deu por conta da coerção e do consentimento. A multidão
silenciosa que vivenciou esse período e que acompanhava as festividades das comemorações cívicas
consentiu com o regime militar. Isso mostra as formas diversificadas dos comportamentos sociais
que representam o consentimento. Há necessidade de compreender a ditadura como produto da
sociedade brasileira que se manifestou favoravelmente de forma ativa, militante, engajada e também
de forma silenciosa.
A autora sugere que novas pesquisas acadêmicas superem as batalhas pela memória. Por exemplo,
Médici foi o presidente mais popular do país desde Juscelino Kubitschek, segundo pesquisa
realizada pela revista veja a época e também o presidente que mais rápido caiu no esquecimento.
Conforme Michel Polack: “memória, esquecimento e silêncio fazem parte da dinâmica social”.
Porém, ele entrou para a história como um presidente soturno, sério, violento que viveu seus
últimos dias no ostracismo. Isto é, na batalha pela memória a que venceu foi a do anti-herói.
A memória não se opõe ao silêncio. Segundo a autora, a sociedade não esqueceu Médici, o que
ocorreu foi à determinação das memórias de acordo com as circunstâncias do presente. O que se
deve ser lembrado e o que de ser silenciado passa por uma escolha coletiva. Para Pierre Laborie o
silêncio não é a perda de memória, não é esquecimento. É sim uma forma de lembrar, de se
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posicionar diante das situações no passado e que não se fazem mais urgentes no presente. Silêncio é
a incapacidade de assumir coletivamente os erros do passado.
Esse sucesso só foi possível porque o regime fascinou a maioria dos grupos sociais. Para essa
discussão a autora usou o historiador alemão Peter Reichel que ao analisar o nazismo afirmou que o
regime nazista foi capaz de fascinar o povo alemão. Esse conceito de fascinação em regimes não
democráticos não se traduz em manipulação ou passividade. Simboliza antes de tudo uma tomada
de posição consciente que encontra eco nos anseios e expectativas das pessoas.
A ditadura civil militar foi capaz de fascinar muitos segmentos da sociedade por dialogar com
tradições antigas, valores presentes no imaginário social como o otimismo, o conservadorismo e o
próprio autoritarismo. Segundo Peter Reichel, todo regime ditatorial possui duas facetas opostas,
porém complementares: a face terrível, violenta, da repressão; e a face bela, graciosa, espetacular. O
governo Médici soube capitalizar os ganhos políticos ao potencializar o lado harmonioso do regime
ao conceder festas cívicas, eventos esportivos, propagandas oficiais que reforçavam as esperanças
da sociedade com o governo. Houve aprovação, identificação, consentimento representado pela
espetacularização da ditadura.
O consenso foi estabelecido através de um pacto social entre a sociedade e o regime militar em
função de várias políticas públicas, da propaganda oficial, das comemorações cívicas, do otimismo
gerado pelas grandes obras públicas que foram capazes de estabelecer um equilíbrio social. Este só
foi possível ser conquistado em razão das tradições, dos valores e cultura política da sociedade
brasileira que foram atendidas pela capacidade do estado ditatorial em dialogar com esses valores
que passavam pela presença do elemento militar.
Os estudos, as pesquisas sobre o consenso social precisam superar a bipolarização inserida nas
batalhas pela memória que silenciam as variáveis complexas, o meio termo, a ambivalência, a
chamada “zona cinzenta”. A memória oficial consagrou a ideia dos traumas vividos pelas vítimas
do Estado. Essa visão predominou em detrimento dos silêncios das memórias de grupos que de
forma heterogênea apoiaram, sustentaram, consentiram com o regime civil militar. No papel da
fascinação, a sociedade exerceu um papel ativo, de protagonista e não de massa de manobra ou
seduzidos inocentemente pelo governo autoritário.
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4 – O Espírito Santo e a construção do consenso
Este trabalho tem por objetivo estabelecer a relação entre otimismo, enraizado no imaginário social
brasileiro numa perspectiva de longa duração, com o conceito de memória positiva numa
perspectiva regional, no caso o estado do Espírito Santo, visando compreender como essa memória
positiva sobre a ditadura militar no ES se fez e ainda se faz presente em nossos dias e de quais
formas ela se sustenta em pleno século XXI. Como os mecanismos que determinam a consolidação
de certa memória em detrimento de outras foram fundamentais para substituição da memória do
triunfo pela memória do trauma em solo capixaba.
Com base nesta análise, é necessário investigar quem produziu e quem patrocinou a memória oficial
no ES nos anos de 1968 a 1978 e os interesses políticos e econômicos ligados ao poder autoritário
para compreender como se construiu o discurso oficial do Regime Militar em solo capixaba e os
caminhos trilhados pela comunicação/informação dos governos estaduais neste recorte histórico. O
aspecto da propaganda política utilizada pelos governos estaduais capixabas como forma de
comunicação com a sociedade requer uma reflexão sobre como elas foram utilizadas, como
conseguiram ocultar a realidade das prisões, torturas, perseguições e mortes, indicando uma
possível indiferença da própria sociedade. Este consentimento pode ter influenciado a forma como
os discursos dissonantes foram tratados no Espírito Santo.
Outra questão relevante é entender como essa classe média urbana e as elites, inclusive a
intelectualizada, viam e se relacionavam com os governos de Cristiano Dias Lopes Filho, Arthur
Carlos Gerhardt Santos, Élcio Álvares, pois a ideia de prosperidade que tomou conta do Brasil no
governo Médici pode ter gerado uma onda de otimismo que também se fez sentir também no
Espírito Santo. Qual era a imagem, a visão que a sociedade capixaba tinha dos seus governadores
entre 1968-1978? Qual deles, neste período de 68-78, foi capaz de despertar a atração, fascinação
entre os capixabas?
Um norte para ampliação dessa pesquisa são s grandes obras realizadas no ES na década de 70 e o
clima de otimismo que elas produziram em torno da visão de um estado forte e próspero, em
sintonia com discurso oficial do governo federal de “construção do novo”. Elas apontam para o
enraizamento de uma memória positiva sobre esse período histórico e que ecoa no presente como
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foi possível constatar nas manifestações contrárias ao governo federal no ano de 2015 na capital
Vitória.
Esse otimismo em relação ao crescimento econômico, a “prosperidade” do Estado capixaba nos
anos entre 1968-1978, pode não ter sido percebido por todos os segmentos sociais. Então é
imperativo compreender da parte de quais grupos vinham esse clima positivo sobre a Ditadura.
Relevante também é identificar a presença do consentimento, na perspectiva discutida pela
historiadora Janaína Cordeiro com base em Laborie e outros teóricos, sobre as formas de
comportamentos sociais tais como: a indiferença, o silêncio, a apatia, fascinação, adesão declarada,
submissão declarada, que favoreceu a construção do consenso entre a sociedade capixaba e a
ditadura militar.
Para tal fim, se torna essencial uma análise sobre o consenso social no período de 68-78 em
território capixaba que supere os embates, as batalhas pela memória que produziram e ainda
produzem uma bipolarização entre dominadores e vítimas que é frágil e limitadora, pois escondem
as variáveis complexas e heterogêneas sociais, definidas pelo historiador francês Pierre Laborie
como “zonas cinzentas”.
Numa visão de longa duração, na perspectiva discutida por Carlos Fico que concluiu a invenção da
tradição no Brasil como sendo a invenção do otimismo, se faz necessário refletir sobre o atual
momento de crise política, econômica e institucional que se instalou no Brasil, na metade da
segunda década do século XXI, e analisar se essa crise é capaz de trazer ao coletivo social uma
memória positiva, otimista de um passado não muito distante que tenha experimentado um clima de
otimismo e esperança como a Ditadura Militar.
Porque ela foi capaz de fascinar (com base na definição de fascinação de Peter Reichel) segmentos
sociais capixabas ao que tudo indica. Estabeleceu um diálogo com tradições antigas e presentes no
imaginário social a ponto de despertar otimismo entre diversos grupos sociais. Essa perspectiva de
longa duração de uma visão otimista do país pode ter relação com as justificas apresentadas para
participação de vários grupos sociais nas passeatas pelos grandes centros capixabas, em protestos
legítimos contra o governo petista da presidente Dilma Russeff, que pediam intervenção militar no
país e compreender as representações sólidas construídas no imaginário coletivo social que trouxe a
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cena atual do jogo político capixaba, uma memória positiva sobre a Ditadura Militar em pleno
século XXI.
Isso sugere uma análise sobre os discursos amplamente produzidos pela mídia sobre os desvios
éticos, morais do governo federal no tempo histórico recente (2015-2016) e que estiveram presentes
na mobilização da classe média urbana e industrial brasileira e, no caso analisado, a capixaba
ressoando em vários segmentos, cujo resultado final foi o consenso em torno do Impeachment da
então presidente do Brasil.
As formas de percepção do poder por parte das elites capixabas no período de 68-78, Como a
sociedade capixaba via o poder autoritário do Regime Militar através dos governos estaduais, quais
os símbolos, as imagens, a que eles utilizam no Espírito Santo e que representavam a aparição do
poder no imaginário coletivo social são espaços vazios que precisam ser resgatados para uma
compreensão mais abrangente da complexidade da sociedade capixaba.
A própria forma de comunicação permite questionar quem eram os responsáveis pela propaganda
política dos governos estaduais no Espírito Santo. Como atuaram os órgãos ou agências de
propaganda criadas pelos governos capixabas com a finalidade de projetar esse discurso sobre o
futuro otimista na década de 1970. As grandes obras públicas no estado apontam para uma relevante
contribuição para “reinventar” o otimismo num contexto de falência da do sistema econômico do
Regime Militar no estado.
O sistema educacional estadual também merece atenção, pois é uma vertente que se mostrou útil
para vários regimes não democráticos, como espaço apropriado para a propagação e difusão de
valores patrióticos, do nacionalismo, do otimismo que foi utilizado para a construção do consenso
social. Os órgãos de propaganda dos governos capixabas valeram-se da educação para
disseminarem a ideologia autoritária do regime militar, o que configuraria o estabelecimento de um
pacto social e que deram sustentação ao regime autoritário.
Nessa perspectiva, este trabalho de pesquisa analisa os instrumentos de conciliação, de consenso e
de consentimento utilizados pelos governos autoritários que não só deram legitimidade ao regime
na década de 70, como foram essenciais para construção de uma memória “positiva” do Regime
Militar no Espírito Santo e que dá indícios de que ainda é predominante nos dias atuais. Para tanto,
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um olhar sobre as passeatas de março de 2015 realizadas na capital Vitória, em meio a centenas de
milhares de pessoas em protesto contra o governo federal, foi possível identificar vários cartazes,
vozes pedindo intervenção militar, sugerindo a volta do regime autoritário no país como se este
tivesse sido “positivo” para a nação.
O Regime Militar brasileiro (1964-1985) é um período que nos mostra indícios de várias relações
complexas entre a sociedade civil e o regime autoritário em solo capixaba, que carece de maior
compreensão e estudo para trazer à tona as realidades vividas e sentidas pelo povo, as relações de
poder constituídas entre os atores políticos e econômicos que estavam em cena naquele contexto
ditatorial.
BIBLIOGRAFIA:
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