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ALGUMAS REFLEXES ACERCA DA CATEGORIA DA ALIENAO
NO MARXISMO FRANCS ENTRE O FINAL DA SEGUNDA GUERRA E OS
ANOS 60 DO SCULO XX
Mnica Hallak Martins da Costa
No imediato ps-segunda guerra, Lefebvre redige1 o primeiro volume de Crtica
da Vida Cotidiana. Em 1936 j havia apresentado ao pblico o livro A conscincia
mistificada, escrito com Norbert Guterman, que teve sua publicao rejeitada pelo
comunismo sovitico e mais tarde foi proscrito e queimado pelos nazistas2. Nos dois
trabalhos, como ele prprio admite no prefcio de 58 segunda edio da primeira parte
de Crtica da vida cotidiana, a alienao analisada nos termos de Marx surge como
preocupao central. No por acaso que esses dois textos aparecem justamente aps
momentos de grande mobilizao da esquerda francesa seguidos de atitudes cautelosas
das lideranas frente possibilidade revolucionria3.
Com efeito, o Partido Comunista Francs (PCF) assumiu sem maiores
questionamentos a poltica da URSS no entre guerras e ao final do segundo conflito
mundial armado. A estratgia de Moscou, como se sabe, consistia na subordinao da
ao revolucionria em qualquer lugar do globo aos interesses do Estado sovitico
(Cladin, 1886: 403). Essa posio orientava tambm o horizonte terico da esquerda
francesa no perodo que, como mostra Kallscheuer (1989), era caracterizado por uma
dupla filiao: 1) no materialismo dos enciclopedistas e dos pensadores da tradio
cartesiana (Kallscheuer, 1989: 51), que consideravam com apreo particular as cincias
naturais e 2) no marxismo sovitico.
Para Kallscheuer, este marxismo do PCF, ancorado politicamente Unio
Sovitica e teoricamente ao materialismo das cincias naturais, no era culturalmente
capaz de sobreviver guerra fria (Kallscheuer, 1989: 51). O autor faz uma s ressalva:
Henri Lefebvre seria, para ele, talvez a nica exceo, pois tinha publicado j nos
anos 30 as primeiras tradues dos Manuscritos econmico-filosficos, de Marx, e dos
Professora da Escola de Servio Social da Puc Minas e doutoranda em Servio Social pela UFRJ. 1 A primeira parte de Crtica da vida cotidiana foi escrito em 1945 e publicado em 1946. Conferir em LEFEBVRE, Henri. Tiempos equivocos. Barcelona: editorial Kairs, 1975, p.208. 2 Conferir em Monteiro, Guilhermino. Homenagem a Henri Lefebvre. In http://www.syllepse.net/lng_FR_srub_59_iprod_61-La-Conscience-mystifiee.html 3 Claudn em A crise do movimento comunista caracteriza o perodo ps guerra na Frana como revoluo frustrada.
Cadernos filosficos de Lnin. A ele devemos, de fato, os nicos trabalhos filosficos
srios realizados no campo comunista dos anos 50 (Kallscheuer, 1989: 52), afirma
Kallscheuer.
Assim, quando em 1956 o chamado socialismo realmente existente se v
abalado pela reao desencadeada pelas declaraes de Kruschev no XX congresso do
PCUS e o marxismo sovitico passa a ser abertamente questionado; Lefebvre mantm
sua linha de reflexo que foi reforada pelo rumo dos acontecimentos. Pois o repensar
Marx, provocado pela crise de 56, teve como uma de suas conseqncias a volta aos
textos juvenis que, como vimos, j faziam parte do universo de pesquisa de Lefebvre
desde os anos 30.
Na primeira parte de Crtica da vida cotidiana, Lefebvre retoma alguns
elementos do trabalho de 36, ampliando a crtica s tendncias irracionalistas que se
desenvolveram no perodo da segunda guerra. Diante da arte e da filosofia que traduzem
essas tendncias, ele afirma a necessidade de reabilitar a vida cotidiana, visto que nos
poetas e metafsicos ditos modernos, pode-se encontrar os elementos de uma certa
crtica da vida cotidiana, mas indireta, e sempre fundada sobre a confuso entre o real
humano e o real capitalista (Lefebvre, 1958: 140). Para ele a verdadeira crtica da vida
cotidiana, que ter por primeiro objetivo a separao entre o humano (real e possvel) e
a decadncia burguesa, implicar uma reabilitao da vida cotidiana (Lefebvre, 1958:
140). Pois, pergunta-se (Lefebvre, 1985: 140):
(...) no na vida cotidiana que o homem deve realizar sua vida humana? A teoria dos momentos sobre-humanos inumana. No na vida de cada dia (...) que preciso dominar a verdade na alma e no corpo? Se a vida superior, aquela do esprito, deve ser realizada em uma outra vida alm-mundo mstico e mgico seria o fim do homem. A proclamao de sua falncia. O homem ser cotidianamente ou no ser.
Para o autor o marxismo a descrio e anlise da vida cotidiana e da sociedade
e indica os meios de transform-la (Lefebvre, 1958: 161).. E mais: no se contenta
em descobrir e criticar essa vida real, prtica, no detalhe da sociedade. Ele sabe passar
para uma integrao racional de um indivduo ao social do nvel individual ao nvel
nacional e social. E inversamente (Lefebvre, 1958: 161).
Como Lefebvre considera que a penetrao da vida individual e cotidiana do
mtodo dialtico bastante pouco conhecida (Lefebvre, 1958: 161), resgata alguns
elementos do marxismo que dizem respeito essa crtica. O primeiro deles a crtica da
individualidade na qual identifica como tema central, a conscincia privada,
descrevendo-a do seguinte modo (Lefebvre, 1958: 162): (...) os indivduos no mundo da produo, so efetivamente conscientes de si, mas eles tendem a viver dobrados sobre si mesmos, sobre sua tcnica e sua especializao. O resto da vida social e humana, eles no so conscientes seno para rejeitar, desdenhar, ou se transpor no irreal. Eles tendem ao individualismo. Ora, se a individualidade humana deve consistir em uma certa relao do ser singular com o universal razo, sociedade, cultura, mundo no se trata aqui da verdadeira individualidade, mas somente de uma forma abstrata, vide, negativa, do individual. esta forma , com um mnimo de contedo, que se pode nomear conscincia privada . Ela conscincia de si, mas conscincia limitada, demarcada, negativa, formal. Esta conscincia, separada de suas condies de (...) existncia, cr que ela se basta e tenta se bastar. Ela degenera. E isso que exprime perfeitamente a expresso correntemente empregada para designar a vida cotidiana dos indivduos nesta estrutura social: a vida privada. certamente uma vida privada: privada de realidade, de ligao com o mundo uma vida em que todo o humano estranho aquela do indivduo conformado pelas tendncias individualistas.
Os outros elementos levantados por Lefebvre so: crtica das mistificaes (tema
central: a conscincia mistificada), crtica do dinheiro (tema central: o fetichismo e a
alienao econmica), crtica das necessidades (tema central: a alienao psicolgica e
moral), crtica do trabalho (tema central: alienao do trabalhador e do homem) e crtica
da liberdade (tema central: o poder do homem sobre a natureza e sobre sua prpria
natureza). Enfim, Lefebvre constri esse dilogo com a literatura e a filosofia do seu
tempo resgatando da anlise marxista aqueles temas que mais nitidamente contribuem
para alcanar seu objetivo colocado inicialmente o de proceder a separao entre o
humano (real e possvel) e a decadncia burguesa.
No prefcio de 1958, Lefebvre atualiza o exame de obras que apareceram nos
anos entre a primeira e a segunda publicao do livro. Alm disso, dedica-se s
mudanas sociais ocorridas nesse intervalo (com destaque para o trabalho e lazer) e
retoma a anlise da alienao em Marx, principalmente nos Manuscritos de 44,
questionando a tendncia de cortar Marx de suas razes, e as obras cientficas de sua
maturidade das obras de juventude (Lefebvre, 1958: 63).
Muitos outros trabalhos de Lefebvre mereceriam ser recuperados. A prpria
Crtica da vida cotidiana ganha mais outros dois volumes, alm de Vida cotidiana no
mundo moderno, de 1967. A sua discusso sobre a cidade certamente tambm ofereceria
elementos importantes para anlise da alienao. Mas, pelos limites desse espao
somente mais um texto de Lefebvre ser ainda lembrado. Trata-se de Metafilosofia
(1967), no qual ao mesmo tempo em que retoma a crtica de Marx a Hegel para tratar da
superao da filosofia, realiza um acerto de contas com o marxismo oficial. Segundo ele
a crtica radical da filosofia, que traz sua verdade social e prtica, liga-se a crtica do
estado. O estado deve perecer para que a filosofia se realize e sejam atingidos na praxis
seus objetivos (Lefebvre, 1967: 78).
Portanto, segundo o autor (Lefebvre, 1967: 79):
Se a revoluo proletria no segue o curso anunciado por Marx, se o proletariado se mostra incapaz de cumprir sua misso histrica, ento o estado no perece; continua. A filosofia continua igualmente, mas se aplica seja a uma crtica pouco eficaz, seja apologia do estado existente (...) Correr o risco de tornar-se emprica, pragmtica, instrumental: ideologia posta a servio da poltica, dogmatismo constituindo o saber abstrato prprio de uma burocracia poltica, critrio de seleo dos quadros institucionais, justificao do estado e de seu aparelho. S uma ligao com o estado e a burocracia assegurar filosofia certa eficcia e ao filsofo as honras pblicas.
evidente que no se trata somente de uma anlise terico-conceitual, mas da
denncia de uma situao que o envolveu diretamente.
tambm em tom de denncia que Andr Gorz (1992) abre seu livro La morale
de lhistoire4 citando o ataque do governo socialista ao Egito em 1956 para perpetuar
um regime colonialista na Arglia5 e o apoio do PCF ao massacre na Hungria
promovido pelo exrcito sovitico no mesmo ano. Neste trabalho, Gorz coloca em
questo o papel das escolhas individuais no processo de construo de uma sociedade
alternativa capitalista. Diante das justificativas para o ataque do governo socialista da
Frana ao Egito e ao apoio do PCF represso na Hungria, ele (Gorz, 1992: 23)
desabafa: Agora compreendo meu mal-estar e minha rebeldia frente a esses marxistas que pretendem explicar-me a necessidade da poltica staliniana ou krucheviana pela inevitabilidade dos imperativos materiais. Se tiverem razo, se o comunismo no seno um processo determinado, que arrasta aos dirigentes impelindo-lhes seu sentido, perde, com efeito, sua finalidade humana, no melhor que o capitalismo, no h uma diferena profunda entre o comit central do PCUS e o conselho de ministros de Mollet.
No o caso de nos determos na especificidade da questo colocada por Gorz,
mas somente identificar o debate que se instalou entre os comunistas franceses a partir
4 O livro La morale de lhistoire foi publicado no Mxico sob o ttulo Historia e enajenacion. 5 Recentemente a imprensa britnica divulgou o contedo de alguns documentos dos arquivos nacionais britnicos segundo os quais o ento primeiro ministro francs Guy Mollet solicita a admisso da Frana na comunidade britnica das naes (Commonwealth of Nations). Segundo a fonte, Mollet se sentia pressionado pela crise do canal de Suez e pelos combatente da Arglia, que estavam sendo financiados pelo presidente do Egito, Gabel Abdel Nasser.. In http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2007/01/15/documento_diz_que_franca_propos_uniao_com_gra_bretanha_em_1956_351066.html acesso em 04/03/2007.
dos acontecimentos da poca. O autor (Gorz, 1992: 24) argumenta a favor da crtica
afirmando que: (...) justamente porque a empresa comunista tem como fim fazer o homem, vale a pena critic-la: porque seus fins so fins humanos, os homens podem opinar acerca da direo que toma, podem reivindicar o controle constante do desenvolvimento; sua crtica indispensvel se o empreendimento quer conservar seu sentido humano: sua crtica eficaz porque a empresa comunista no est predeterminada, seno que obra dos homens que perseguem seus fins prprios.
Acrescenta que em relao s sociedades capitalistas as exigncias so menores,
visto que so arrastadas por processos que no controlam (e que no podem, nem
podem querer, controlar). Na segunda parte de seu texto, Gorz trata da elaborao de
uma teoria da alienao. Retoma, ento, a tematizao de Marx, em especial nos
Manuscritos de 44, mas no perde de vista o objetivo de analisar o papel das decises
individuais nos processos histricos. Neste sentido, constri (Gorz, 1992: 78-9) a
seguinte reflexo: Minha situao singular sempre a especificao de uma situao que me envolve; meus fins pessoais so sempre especificaes de fins mais gerais (...) a razo ltima da alienao mtua dos indivduos deve buscar-se na alienao de cada indivduo com respeito s exigncias materiais do campo prtico.
Colocado dessa forma, diz o autor adiante, parece que os indivduos so produto da
sociedade que se serve deles com vistas a seus fins (Gorz, 1992: 97). E, aps uma
longa citao de A ideologia alem, afirma que em realidade, os indivduos so os
produtores de sua prpria condio e do processo socioeconmico (Gorz, 1992: 98).
Esta realidade est oculta aos indivduos, segundo Gorz, em primeiro lugar porque a
sociedade no era o fim das atividades individuais (Gorz, 1992: 98). Para o autor
(Gorz, 1992: 110): A originalidade do marxismo que ele no se reduz a uma teoria cientfica dos processos socioeconmicos. Esses processos, pelo contrrio, assim como suas leis, no lhe interessam enquanto so explicaes rigorosas do curso de mundo; interessam-lhe, sobretudo, enquanto permitem compreender a contradio que se desenvolve inexoravelmente entre os fins dos indivduos e os resultados que produzem.
Desse modo, Gorz coloca no centro do debate a contradio entre indivduo e sociedade nos termos da reflexo marxiana da categoria da alienao. Neste sentido, afirma (Gorz, 1992: 111) :
Em nenhum caso pode admitir-se que a mudana histrica seja o fruto de uma evoluo mecnica. Resulta, pelo contrario, da converso dos fins humanos, converso operada quando os indivduos reconhecem a resultante de seus atos como um obstculo insupervel para a realizao de seus fins primrios.
Tratando do que seriam os referidos fins primrios Gorz desenvolve, no
captulo seguinte, uma anlise acerca da alienao das necessidades. Aqui, retoma a
crtica de Marx, nos Manuscritos, ao comunismo grosseiro e seu desejo de nivelao, ou
seja, perspectiva de generalizar a pobreza (Gorz, 1992: 270), desconsiderando,
desse modo, a riqueza das faculdades humanas que se desenvolve no contato com os
objetos sociais e com os outros homens. Sem citar Marx diretamente, ele assume o
debate da Introduo de 57 ao esclarecer como a indstria orienta a produo de
necessidades. Constri, ento, uma reflexo sobre a produo do indivduo na sociedade
capitalista tratando da formao da personalidade individual, tema que, como veremos
adiante, ser central nos estudos de Lucien Sve.
Na concluso de seu trabalho de 59, Gorz retorna anlise das possibilidades do
socialismo, afirmando que ele no resolve todos os problemas humanos (Gorz, 1992:
318) e, no caso das sociedades socialistas atuais, dominadas pela escassez e pela
necessidade, no se pode exigir uma resposta sem que se eliminem as causas dos
problemas materiais. Arrematando sua reflexo, o autor situa mais perguntas do que
respostas6, o que o leva a se adiantar em relao s possveis crticas: Miservel diro
talvez vocs ; escreve todo um livro para demonstrar o valor tico da exigncia
marxista e fundar nela sua tomada de posio em favor do socialismo, para dizer-nos
finalmente que no sabe se o comunismo far felizes aos homens e suprimir todas as
alienaes. Quanto a essas possveis objees, o autor responde que ele acredita que
essa maneira teolgica de apresentar o socialismo faz mais mal do que bem, pois
enquanto empreendimento humano, ele tem valor no somente no resultado, mas na
prpria ao de faz-lo, enquanto confirmar a exigncia do homem de colocar-se
como fundamento da sociedade (Gorz, 1992: 321). A respeito da apropriao do
mundo e da histria, diz ele(Gorz, 1992: 321) : (...) ser necessariamente uma empresa infinita. No podemos saber como nem em que medida ser alcanada e podemos adivinhar que jamais se realizar plenamente. Esta no uma razo para no desej-la, para no apoiar a nica classe que, por sua praxis, pode empreend-la. Para ns no h outra esperana possvel, nem condio mais desesperante do que permanecer atracados em nossas alienaes presentes por medo de que sua superao engendre outras alienaes.
6 No sei quando nem como as sociedades socialistas atuais passaro a essa fase superior da sociedade comunista...onde as fontes da riqueza coletiva surgiro com abundancia; no sei se as condies demogrficas e geolgicas permitiro a abundancia universal; e no sei tampouco que outras alienaes resultaro da sociedade comunista; nem sequer sei se os homens sero felizes nela.( Gorz, 1992: 320).
Alguns anos depois em 1966, a partir de uma srie de conferncias proferidas na
Escola Nacional de Cincias Polticas e Sociais do Mxico, Gorz (1968) amplia o
debate acerca da alienao, discutindo tambm outros temas em pauta7 , mas sobre os
quais no nos dedicaremos nesse trabalho.
Em 1974, Lucien Sve publica Anlises Marxistas da Alienao, livro que trata
diretamente do tema da presente comunicao, mas que j foi objeto de investigao em
outros momentos8. Ser considerado neste espao um ensaio intitulado Marxismo e
teoria da personalidade que ele havia publicado em 1969, no qual o problema da
alienao j aparecia como central. Nestas duas oportunidades, Sve explicita um
grande domnio das obras de Marx e um cuidadoso exame da categoria da alienao em
perodos distintos do itinerrio marxiano.
No texto de 1969 o autor afirma de partida que o presente livro totalmente o
contrrio de uma obra circunstancial, fruto da improvisao (Sve, 1972: 7). E nos fala
da motivao desde o perodo de graduao em filosofia quando no contato com a
psicologia existente s encontrou rigor cientifico no estudo de objetos completamente
impessoais, sem divisar nela nada que mostrasse uma relao concreta com os
problemas de uma vida humana real (Sve, 1972: 7). A crtica da psicologia de
Politzer, os estudos de Lnin nos anos 50 e principalmente a leitura e o estudo atento
de O capital (Sve, 1972: 8), realizado em 1953, so referncias construdas por muito
tempo por Sve para o seu Marxismo e teoria da personalidade.
Sve, portanto, se insere no debate de seu tempo a partir da preocupao com a
formao da personalidade individual. Afirma ele(Sve, 1972: 9): (...) a importncia verdadeiramente central do problema da individualidade humana se manifestava em todos os pontos cardeais da investigao marxista e dos debates ideolgicos: crtica e superao das deformaes dogmticas do marxismo, assim como de sua alterao humanista; elaborao precisa do materialismo histrico e reflexo acerca das modalidades e finalidades humanas do socialismo; discusso dos resultados recentes das cincias do homem e do anti-humanismo estruturalista; tudo isso traz de contnuo ordem do dia a pergunta temvel: que o homem?.
Foi precisamente essa temvel pergunta que levou Sve a buscar nos textos de
Marx elementos para anlise. O autor considera a teoria da alienao dos Manuscritos
como pr-marxista (Sve, 1972: 66). Por isso mesmo, ir considerar o problema a partir
7 Dentre outros, discute o problema do colonialismo, o debate sino-sovitico e a questo do Vietn. 8 Na introduo da dissertao de mestrado tratei rapidamente da abordagem de Sve e no artigo produzido para a seleo no doutorado ela tambm foi objeto de pesquisa.
de A ideologia Alem, pois para ele em 1845-46 se deu a mais decisiva entre as rupturas
no avano cientfico do pensamento de Marx9.
No captulo em que trata da articulao, entre psicologia da personalidade com o
Marxismo, Sve (1972: 134). imediatamente afirma que h (...) entre as foras produtivas e os homens uma correspondncia fundamental: a de que eles so, precisamente, a fora produtiva mais importante. Considerados antes de tudo em sua condio de produtores, de foras de trabalho, ou seja, de um conjunto de faculdades fsicas e intelectuais que existem no corpo de um homem, em sua personalidade viva.
O trecho final extrado de O Capital, sobre cuja leitura o autor se pergunta(1972: 136). :
(...) como possvel ler em O capital, por exemplo, as pginas dedicadas distino entre trabalho concreto e abstrato, o valor da fora de trabalho e a taxa do salrio, a diviso do trabalho e a manufatura capitalista, o efeito do dinheiro nas relaes mercantis, a extorso da mais-valia absoluta e relativa, a lei geral da acumulao capitalista etc. at as ltimas pginas dedicadas s classes sociais, sem compreender que se trata de indivduos humanos para alm de categorias econmicas.
Arrisca uma resposta para essa interrogao, tomando-a em seu nvel mais simples
(Sve, 1972: 136), ou seja, para compreender essa articulao entre a anlise econmica
de Marx e a cincia do indivduo h de estar em condies de conceber (...) a idia
radicalmente nova de que uma cincia semelhante seja articulvel com a economia
poltica e o materialismo histrico de Marx (Sve, 1972: 136). Pois, para ele a
ignorncia em relao a essa possibilidade na obra de Marx est relacionada
compreenso de que qualquer teoria da personalidade especulativa.
O esforo de Sve para empreender a elaborao de uma teoria da personalidade
no especulativa chega ao ponto de buscar, a partir de O Capital, referncias para
determinar o papel do emprego do tempo na formao da personalidade. Com efeito, o
que h de mais objetivo quando se trata da formao dos sentidos e, portanto, da
personalidade, do que o uso efetivo da matria atravs da qual nos formamos como
seres humanos?
Em sntese, o marxismo francs do perodo ps-guerra (Lefebvre) at os anos 60
(Lefebvre, Gorz, Sve e outros) trouxe para a discusso a questo central da produo
do indivduo na vida social em um frtil debate entre as referncias analticas de Marx e
as questes concretas do socialismo realmente existente. Mas, paralelamente para ser
9 Sve afirma que no seria demasiado dizer que desde os Manuscritos de 1844 at as obras marxistas da maturidade h avano cientfico; este foi marcado por uma ruptura melhor dito, rupturas de continuidade, a mais decisiva das quais se produziu em 1845-46. (Sve, 1972: 69).
preciso, a partir de 196510 produziu um afastamento tal do homem a ponto de
desembocar em uma estrutura sem sujeito - para usar os termos de Anderson (1985) em
seu A crise da crise do marxismo.
Assim, de um cenrio analtico marcado pela aproximao ao indivduo concreto
produzido historicamente (Gorz, Sve e Lefebvre e, claro, muitos outros11) chega-se
quilo que Chasin (2001) caracterizou como absurdo ontolgico, aquela situao na
qual, pelo distanciamento da vida real prtica, parte-se de imediato da teoria e no do
ser que faz a teoria, ou [parte-se] deste como uma abstrao da inteligibilidade, ou seja,
de uma faculdade abstrada do ser que a possui (Chasin apud Vaisman, 2001: XI). O
absurdo ontolgico a suposio de que h uma teoria acima dos homens, que
caracteriza, de forma distinta, desde os grandes sistemas filosficos at o estruturalismo
francs.
Portanto, retomar a anlise dos autores tratados nesta pequena pesquisa, e de
outros que investiram na apropriao reflexiva das possibilidades humanas, significa
reacender o debate acerca da transformao social sem desconsiderar o papel dos
indivduos sociais nesse processo.
10 Pelos limites desse espao a anlise do estruturalismo no ser desenvolvida aqui, visto que, como se sabe, a abordagem de Althusser interdita a reflexo sobre questes como a da alienao, por serem consideradas no cientficas, filosficas, caractersticas do jovem Marx. Os textos de Otto Kallscheuer e Perry Anderson citados nesta comunicao so algumas das referncias acerca da presena do estruturalismo no marxismo francs na segunda metade do sculo XX. 11 Como se sabe a relao entre indivduo e sociedade um tema central dos Prolegmenos (1990), ltimo ensaio escrito por Lukcs antes de sua morte (ainda no publicado no Brasil). O plano de trabalho para o estgio de ps-doutorado da professora Ester Vaisman discute exatamente as relaes entre indivduo e gnero nos Prolegmenos. Portanto, promover uma interlocuo desses autores com aqueles do marxismo francs estudados aqui pode se constituir um trabalho fecundo para pesquisas futuras.
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