Post on 20-Nov-2018
Universidade Federal de GoisFaculdade de Cincias Humanas e FilosofiaPrograma de Ps-Graduao em Sociologia
Mestrado em Sociologia
Identidade e Territorialidade entre os Kalunga do Vo do Moleque
Thais Alves Marinho
Goinia, Maro de 2008.
Universidade Federal de GoisFaculdade de Cincias Humanas e FilosofiaPrograma de Ps-Graduao em Sociologia
Identidade e Territorialidade entre os Kalunga do Vo do Moleque
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Faculdade de Cincias
Humanas e Filosofia, da Universidade Federal deGois, como parte dos requisitos para a obteno do
ttulo de Mestre em Sociologia
Aluna: Thais Alves MarinhoOrientadora: Dr Joana A. Fernandes Silva
Goinia, Maro de 2008.
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Ao Ccero, minha mais cativante
fonte de inspirao.
3
SUMRIO
INTRODUO .......................................................................................................................................... 10
CAPTULO 1 - 1 TRAJETRIA DOS NEGROS AO LONGO DA FORMAO HISTRICO BRASILEIRA: DE QUILOMBO REMANESCENTES DE QUILOMBO .................................................................................................................... 35 A OCUPAO DO VO DO MOLEQUE: CAPELA, TABOCA, CORRENTE, MAIADINHA E CURRIOLA ............................ 64 ETNOGRAFIA DOS KALUNGA: A VIDA DO MOLEQUEIRO ................................................................................. 108
1.A COMUNIDADE KALUNGA ........................................................................................................... 110
NDICE DE GRFICOS
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THAIS ALVES MARINHO
IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE ENTRE OS KALUNGA DO VO DO MOLEQUE
DISSERTAO DEFENDIDA E APROVADA EM 17 DE MARO DE 2008,
PELA BANCA EXAMINADORA, CONSTITUDA PELOS (AS) PROFESSORES
(AS):
___________________________________________________________Prof Dr. Joana Aparecida Fernandes Silva(Orientadora FCHF/UFG)
___________________________________________________________Prof. Dr. Alecsandro Jos Prudncio Ratts (IESA/UFG)
___________________________________________________________Prof. Dr. Edson Silva de Farias (ICC/SOL/UNB)
Prof. Dr. Sebastio Rios Correa Jnior (Suplente FCHF/UFG)
5
Agradecimentos
Agradeo aos moradores da comunidade Kalunga que no s proporcionaram a
realizao dessa dissertao, com depoimentos, relatos, contando causos, durante as
prosa, como me acolheram carinhosamente me tratando como um membro da famlia,
com uma enternecida prestatividade, sempre me guiaram, auxiliaram, compartilharam e
aconselharam. Dona Valeriana, Domingas, Ismael, Renivan e Ivan, Amiran e Z, que
acolheram a mim e meu filho, Ccero, em suas casas. Dividiram conosco alimento, teto,
respeito, confiana e amor. s amigas Marlene, Otlia, Ducimar, Domingas, Renivan e
Lina e ao amigo Rogrio, que tornaram a minha estadia mais divertida e rica com seu
grande senso de humor, perenes risadas e sinceros depoimentos. A todos que entrevistei
especialmente Alade, Joo, Domingos, Abel, seu Bertolino, Dona Jeroma e Pedro,
Nivaldo e Maria, Emdio e Ana, Elza, Jandira, Daniel, Guilherme, Florentino e Bencia
que compartilharam comigo preciosas histrias. Famlia de Joca da Costa Serafim (in
memorium) que me acolheram e permitiram que eu participasse de seu velrio dividindo
esse momento to difcil na vida de uma famlia. s crianas pelas brincadeiras e
carinho com Ccero, especialmente, Luan, Fabiana, Fabriele, Isabela e Anglica.
Agradeo minha orientadora Joana Aparecida Fernandes pela liberdade,
orientao, encorajamento e amizade ao longo desse processo acadmico. Agradeo
minha amiga Marjorie, que alm de sempre proporcionar tantos momentos de alegria,
diverso e amizade, sempre esteve presente para escutar e solucionar os inmeros
tropeos dessa empreitada. querida amiga e grande sociloga Ana Jlia Nascimento
pelas trocas de idias, informaes, livros, favores, alegrias, experincias nicas vividas
durante viagens, trabalhos e aulas.
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Agradeo a Maria Antnia Gomes, competente sociloga, me de minha grande
amiga Bruna, pela caridosa ateno, carinho e prestatividade na reviso do trabalho. s
amigas Jakelline, Ana, Bruna e Marjorie pela amizade e companheirismo.
Agradeo a toda minha famlia, minha me Lucimar, pelo apoio, amor, amizade,
interesse, dilogo e pacincia, durante toda minha existncia, inclusive durante as idas
ao campo, ao meu pai Wilson e meu irmo Thiago, sempre dispostos a solucionar os
problemas. Especial agradecimento ao Ccero, por ter dividido to companheiramente
comigo toda a experincia de viver na comunidade Kalunga e ser fonte de sonhos,
desejos e tantas felicidades. Ao Gustavo, por ter me lembrado que o amor faz parte do
sucesso.
Ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal de
Gois, especialmente ao professor Francisco Rabelo, professora Martha Rovery e ao
secretrio do departamento lder Pereira pela prestatividade, competncia e
encorajamento.
Mari Baiocchi, Alex Ratts e Edson Farias que aceitaram dividir seus
conhecimentos com o intuito de aperfeioar esse trabalho.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior - CAPES que
foi fundamental para concluso deste trabalho, disponibilizando minha bolsa de estudos
de abril de 2006 a maro de 2008.
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Resumo
A presente dissertao tem como proposta discutir a relao da territorialidade com a identidade, na Comunidade Remanescente de quilombo Kalunga localizada no nordeste de Gois, buscando compreender as ressignificaes identitrias ao longo de sua formao e a partir do reconhecimento dessas comunidades pela Constituio Federal Brasileira de 1988. A relao entre identidade e territorialidade ganha uma nfase diferenciada a partir desse perodo, que culmina no processo que chamo de etnicizao, a atual estratgia de reproduo da comunidade. Para tanto, fao um estudo de caso da regio do Vo do Moleque nos povoados de Maiadinha, Curriola, Capela e Taboca no Municpio de Cavalcante. O mtodo de apreenso etnogrfico por meio de observao participativa, atravs da produo e reproduo da memria coletiva e visa compreender os vrios aspectos da cultura Kalunga que contribuem para a compreenso da constituio de sua identidade e territorialidade.
Palavras-Chave: Comunidade Kalunga, identidade e territorialidade.
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Abstract
The present study aims to discuss the relationship of territoriality with identity, in the marron remaining community Kalunga located in the northeast of Goias, seeking to understand the identitarys remeanings over their training and from the recognition of these communities by the Brazilian Federal Constitution of 1988. The relationship between identity and territoriality gained a different emphasis from that period on, culminating in the process of what I call "ethnicisation", the current strategy of reproduction of the community. Therefore, I perform a case study in the area of the Vo do Moleque, in the towns of Maiadinha, Curriola, Capela, and Taboca, located in the city of Cavalcante. The method is ethnographic through participatory observation and the production and reproduction of the collective memory and seeks to understand the various aspects of culture Kalunga that contribute to the understanding about the formation of their identity and territoriality.
Key-words: Kalunga Community, identity, territoriality.
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Introduo
Essa pesquisa tem como objeto estudar as relaes da identidade com a
territorialidade na comunidade Remanescente de Quilombo Kalunga no norte de Gois.
Trata-se de um estudo de caso em quatro povoados da regio de um total de 62, Capela,
Curriola, Maiadinha e Taboca localizados no Vo do Moleque.
A comunidade Kalunga pode ser dividida em quatro agrupamentos principais:
Ribeiro dos Bois, Vo1 de Almas, Vo do Moleque e Engenho II, nos municpios de
Monte Alegre, Teresina de Gois e Cavalcante, respectivamente, sendo os dois ltimos
em Cavalcante.
A partir de visitaes em festejos da regio pude ter contato com alguns dos
problemas e discusses recorrentes comunidade. Aos poucos, observei que durante os
festejos se fala muito em como antigamente diferente. Os mais velhos clamam que
no passado se danava mais sussa e curraleira e que agora o povo bebia muito e ouvia
apenas forr. Os jovens quando no iam embora, no queriam mais trabalhar na roa,
ficam bebendo. Os mais velhos atribuem todos esses males rua (zona urbana e
cidades).
Apesar da hospitalidade e do bom humor sempre presentes entre os Kalunga, e
da impresso de fartura que os festejos podem sugerir, outros problemas comearam a
aparecer para mim. As pessoas sempre muito brincalhonas e bem humoradas, escondem
atrs dos sorrisos marotos uma vida difcil marcada por lutas. Ali, no h abastecimento
1 O termo Vo indica literalmente um vo entre os morros, serras e rios da regio, ou seja, um pedao de terra mais ou menos plano localizado entre os morros e serras s margens dos rios, constituindo um lugar perfeito para se esconder de colonizadores e manter uma agricultura de subsistncia, alm de ser possvel vrias rotas de fuga, seja pelo rio ou pelos morros. Assim, a regio ficou conhecida como Vos da Serra Geral, e algumas comunidades levam o nome de vo, como o Vo do Moleque no municpio de Cavalcante e o Vo de Almas no municpio de Teresina de Gois.
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de gua, energia eltrica ou esgoto, as secas se intensificam e se prolongam com a falta
de chuvas, cada vez menos freqentes, as estradas so precrias e em alguns locais se
quer existem, faltam pontes em diversos locais.
Mdicos e hospitais somente nas cidades, que ficam a dias de mula e/ou
andando, muitos contaram que j haviam transportado ou sido transportados quando
arruinavam (ficavam doentes) em redes apoiadas nos ombros de parentes, por
quilmetros. Mesmo nos locais onde tm estradas, a maioria em condies
inapropriadas, na poca das chuvas os rios transbordam, impossibilitando a passagem de
carros. Embora em alguns povoados j houvesse escolas, frutos das recentes polticas
afirmativas, muitas crianas e jovens tm que migrar para as cidades em busca de
educao e trabalho.
As roas so prejudicadas por fatores climticos e ainda tm que se apertarem
entre as terras frteis restantes que no so cobiadas e/ou j haviam sido tomadas por
fazendeiros, grileiros e posseiros. No entanto, esse problema parece no ter mais as
mesmas propores que antes. A preocupao agora com a urgncia em sair a
titulao das terras (e conseqente indenizao para os proprietrios legtimos, inclusive
Kalunga, para a desintruso), agora garantidas por lei2, e com o fato de tal ttulo ser
coletivo, o que impediria os Kalunga de decidirem o destino de suas prprias terras3.
Essa realidade, no entanto, comum a diversas comunidades quilombolas
espalhadas pelo pas. Embora existam 2.228 comunidades remanescente de quilombos,
2 A lei Estadual n11.409/91 baseada em estudo feito pela equipe do Projeto Kalunga Povo da Terra foi adotado pelo extinto IDAGO (Instituto de Desenvolvimento Agrrio de Gois), que sancionou o direito aos ttulos da terra pelos Kalunga, e decretou inicialmente 241,3 mil hectares de terra da comunidade Kalunga como Stio Histrico e Patrimnio Cultural Kalunga. O reconhecimento a nvel Federal ocorreu a partir da insero de polticas pblicas voltadas para as comunidades remanescentes de quilombo, a partir de 2002, que teve a comunidade Kalunga como plano piloto para a regulamentao da terra, que agora seriam 253mil hectares. A certido de reconhecimento foi publicada em dirio oficial da Unio no dia 19 de abril de 2005, est em fase de georreferenciamento, mas ainda hoje no se concluiu.3 A discusso sobre Terras de Uso Comum e seus impasses se dar no captulo 1.
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apenas 42 so reconhecidas e s 19 j foram tituladas4. Esses dados demonstram a dura
realidade brasileira de desigualdade racial e social, resultado de anos de dficit de
polticas pblicas que proporcionasse a integrao dos negros sociedade e que
garantisse seus direitos de acesso cidadania, educao e sade.
Depois da abolio da escravatura o governo brasileiro no implementou
nenhuma poltica de integrao dos negros e quilombolas ao processo de
desenvolvimento do pas e no lhes foi possibilitado nenhum meio de acesso terra e
propriedade dos fatores de produo de modo a promover sua integrao sociedade
nacional (MOURA, 1993). Esse fato contribuiu para que tais comunidades
desenvolvessem ao longo da formao histrica brasileira, a partir da miscigenao com
ndios e brancos, caractersticas prprias de organizao social, produtiva, religiosa e de
ocupao da terra, alm de outras formas de manifestaes culturais que passaram a
funcionar como smbolos caractersticos da etnicidade que passaram a comportar.
No entanto, a elaborao tardia de polticas que beneficiassem as comunidades
remanescentes de quilombos criou uma srie de problemas e deficincias em todas as
esferas, de modo que a realidade dos Kalunga at os dias atuais de: deficincias no
sistema educacional, resultando em baixo nvel de escolaridade e alto ndice de
analfabetismo; falta de documentao pessoal, dificuldades em obter aposentadoria,
condies financeiras abaixo do nvel da pobreza; debilidade da organizao
comunitria e despreparo das lideranas; pouca capacidade de organizao poltica e
desconhecimento das formas de acesso aos programas governamentais; xodo dos
remanescentes de quilombo para as cidades; baixo aproveitamento das matrias-primas
locais e dos recursos nativos; produtividade limitada das atividades econmicas, restrita
agricultura de subsistncia, falta de acesso economia de mercado; situao fundiria
4 Fonte: Centro de Cartografia Aplicada e Informao Geogrfica (CIGA) da Universidade de Braslia, 2005.
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no regularizada, marcada pela necessidade de titulao e desintruso de fazendeiros e
grileiros; precrio servio de infra-estrutura social bsica, como energia eltrica,
transporte, estradas, comunicaes, saneamento bsico; desconhecimento das doenas
prevalecentes na populao negra, acompanhada pela precariedade dos servios de
sade, principalmente de sade preventiva, tais como nutrio, sade bucal, etc.
1. O problema de pesquisa e a Pesquisa de Campo
O contato com a comunidade Kalunga levou-me a trabalhar com alguns
problemas de pesquisa5 relacionados com os Kalunga, inclusive o projeto apresentado
ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFG ao qual resulta essa dissertao.
O foco da pesquisa estudar a relao da territorialidade com a identidade, na
Comunidade Remanescente de Quilombo Kalunga, buscando compreender as
transformaes dos seus meios de vida propiciadas pela expanso capitalista, a partir do
reconhecimento dessas comunidades pela Constituio Brasileira de 1988, mais
precisamente a partir da entrada das comunidades remanescentes de Quilombo na
Agenda do Governo em 2002.
A hiptese que a relao entre identidade e territorialidade ganha uma nfase
diferenciada a partir do reconhecimento constitucional, consolidada, de vez, pela
criao de uma secretaria com funes de ministrio, especfica para a demanda racial,
que a SEPPIR (Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial). A
partir do reconhecimento e visibilidade que a comunidade adquiriu, diversas polticas (e
olhares) foram implementadas nessas comunidades e passaram a interferir na
5 Que resultou na monografia da Especializao Lato Sensus em Polticas Pblicas na Universidade Federal de Gois, intitulada Avaliao de Polticas Pblicas para a comunidade Kalunga de 2004.
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organizao social, e consequentemente na dinmica cultural e identitria dessas
comunidades.
Para testar esta hiptese, utilizei-me da observao participante, entrevistas
formais e informais, que seguiam um roteiro de entrevistas, pr-elaborado e pr-testado,
alm da Histria Oral, buscando compreender os vrios aspectos da cultura Kalunga que
contribuem para a compreenso da constituio de sua identidade e territorialidade, ou seja,
os aspectos que encetam seu habitus6. Investiguei as relaes entre parentesco,
sociabilidade, origem, mitos7, Histria e territrio, a partir da memria coletiva do
grupo e da dinmica atual, a fim de produzir um material etnogrfico sobre a regio
pesquisada.
No demorou muito para perceber que a trajetria Kalunga, bem como o prprio
campo referente s comunidades remanescentes de quilombo8, que chamarei aqui de
6 O habitus o resultado de um trabalho de inculcao por meio da prtica em que o agente social interioriza de modo sistemtico e coerente as estruturas das relaes de poder, a partir do lugar e da posio que ocupa nessa estrutura, esse indivduo exterioriza essa estrutura apreendida por meio de prticas, que por sua vez, uma relao dialtica entre a estrutura interiorizada pela histria do grupo ou da classe social e a estrutura social presente. So estruturas (disposies interiorizadas durveis) e so estruturantes (geradores de prticas e representaes). Engendram e so engendradas pela lgica do campo social, de modo que somos os vetores de uma estrutura estruturada que se transforma em estrutura estruturante. O habitus, portanto, o produto da experincia biogrfica individual, da experincia histrica coletiva e da interao entre essas experincias. (BOURDIEU, 1989)7 Os mitos esto profundamente entranhados no modo de sentir e pensar da comunidade Kalunga, como j diria Chau (1995). A memria social porta o sentido de existncia contempornea e que conduz o sentido de continuidade histrica da comunidade Kalunga. Compreendendo memria social como todo conhecimento do passado partilhado por um grupo e por ele validado como conhecimento verdadeiro ou passvel de ser transacionado, remeta-se ele a um passado presumidamente testemunhado (expresso seja por um registro fsico fixado, seja por um relato transmitido) ou a um momento fundacional (da origem das coisas). Essa formulao acolhe tanto a memria mtica quanto a memria histrica, em uma tentativa de superar os conflitos sobre mito e histria, levando em considerao o pressuposto de Sahlins (1990) que defende que as pessoas de determinada cultura tambm representam suas interpretaes do passado no presente em que vivem, sendo que estas interpretaes podem comportar certa compreenso e vivncia de sua histria atravessada ou no por determinados mitos daquela cultura e suas concepes de tempo e espao.8 A categoria "comunidade" precisa ser problematizada nesses estudos. Merece ser relativizada a afirmao de que as "comunidades negras" vivem coletivamente e que seus membros socializam seus espaos cotidianos. Se a comunidade percebida como experincia de igualdade, idia manipulada com objetivos polticos, fatos empricos atestam que essa experincia uma fico. Afinal, a "comunidade" no imune organizao de uma sociedade dividida em classes, marcada por interesses antagnicos e contradies. Em ltima anlise, o movimento produzido por essas contradies homogeneiza todos os expropriados, como os antagoniza com os proprietrios dos meios de produo.
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sub-campo ou campo tnico-quilombola,9 eram muito mais complexos e desafiantes do
que minha racionalidade cientfica permitia at ento.
Os dados colhidos indicaram que a hiptese, de certa forma se confirma, de fato
h uma nfase diferenciada na relao entre identidade e territorialidade ocasionadas
pelo reconhecimento e implementao de polticas pblicas a partir da dcada de 1980,
que interferiram na dinmica identitria e cultural. Ficou claro que o esforo coletivo
desse povo pelo reconhecimento oficial tem como motivao maior resolver os
conflitos fundirios em que a comunidade sempre esteve envolvida, mesmo antes do
reconhecimento pela constituio, e no o desejo de se afirmar como continuidade
histrica e cultural, como interpretado por alguns o termo remanescente de
quilombo.
A nfase diferenciada est na forma de incorporao pelos indivduos Kalunga
da estrutura produzida pelo novo arcabouo jurdico/sociolgico, que constitui um
habitus, e na exteriorizao ou objetivao desse habitus pela comunidade, que integra
o campo tnico-quilombola, inaugurado pelo artigo 68 da Constituio Brasileira de
1988, que enfatiza elementos como etnia, raa, identidade e territrio. Considerando os
indivduos Kalunga como agentes, que atuam e so dotados de um senso prtico de
classificaes de percepes, que so produto de uma estrutura profunda, que
incorporaram um habitus gerador historicamente localizado, mas que varia no tempo e
no espao, e que condiciona as aquisies mais novas pelas mais antigas, podemos
9 Nas concepes de Bourideu (1989) campo um espao onde os objetos sociais compartilhados so disputados por agentes investidos de saber especfico, ttulos, privilgios, esforos, que permitem acesso aos vrios lugares em seu interior, bem como aos diferentes jogos de conflito. Os campos com autonomia tm a capacidade de traduzir em linguagem prpria os problemas relativos s classes sociais, bem como os frutos e lucros obtidos coletivamente so distribudos pelas posies, mesmo que de forma diferenciada. O campo tnico-racial compreende as instncias de poder responsveis pelas demandas tnicas (quilombolas e indgenas), pelas aes afirmativas, pelas polticas de erradicao de pobreza e de desigualdades sociais e raciais, o movimento negro, movimento indgena, movimento agrrio, as comunidades quilombolas e indgenas, e outros grupos da sociedade civil que exercem poder dentro do campo como a mdia e a academia. O campo pode ser subdividido em subcampos: campo tnico-quilombola, campo tnico-ndigena... e interage com outros campos o cultural, o poltico, o econmico, etc.
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analisar a ao e percepo do indivduo Kalunga pela liberdade propiciada pela lgica
do campo e da situao que nele ocupam.
2. Comunidades Remanescentes de Quilombo
A utilizao do termo remanescente certamente uma tentativa de tornar essas
comunidades negras nomeveis, adjetivando-as para que se fizessem visveis e
aceitveis. Tal frmula funciona como soluo classificatria por meio da qual se
admite a presencialidade do estado de negro/escravo nos atuais quilombolas. O termo
quilombo sem dvida o elemento mais importante na alquimia semntica formada
pela adio do termo remanescente (ARRUTI, 2006, p. 70).
As diversas interpretaes, leituras e metaforizaes desse termo promoveram e
ainda promovem discusses e presses de variados nveis da sociedade civil sobre a
comunidade. Turistas, estudiosos, polticos, jornalistas, fotgrafos, entre outros
passaram a visitar a comunidade e imputar-lhe seus anseios. Inspirados pelo conceito de
quilombos poca da escravido, muitos esperam encontrar comunidades atualizadas
dos antigos quilombos, presas a relaes arcaicas de produo e reproduo social,
misticismos, geralmente relacionados cultura africana, associando tais comunidades a
um smbolo de uma identidade, de uma cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e
militncia negra.
Essas presses, em muitos casos, serviram para que uma definio pragmtica
de identidade fosse adotada, onde a aparente conservao da cultura de origem daria
um status de legitimidade na consecuo do projeto de sobrevida e os traos culturais
exaltariam a etnicidade com vistas a adequar o passado ao presente. Isso quer dizer, que
quanto mais sinais diacrticos os remanescentes possurem relacionados ao passado de
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quilombo, mais legitimidade para acessar os benefcios garantidos pelo artigo 68 eles
tero (ARRUTI, 2006). Da, existir um alto grau de performatividade essencialista entre
essas comunidades, e diversas crticas sobre uma descendncia verdadeira de
comunidades remanescentes de quilombo, como ocorre no caso da tese de Neto (2006),
que insiste na idia de que no existe comprovao histrico/biolgica/cultural de que a
comunidade Kalunga seja de fato descendente de negros que formavam um quilombo
de mesmo nome.
A atual legislao por meio do Decreto 488710 que regulamenta tais questes
considera os remanescentes de quilombo os grupos tnicos raciais, que se identificam
como tais, com trajetria histrica prpria, dotadas de relaes territoriais especficas,
com presuno de ancestralidade negra relacionada com a luta e opresso histrica
sofrida. Adotando a auto-atribuio como critrio primordial de reconhecimento.
Essa nova conceituao de remanescentes de quilombos, embora insira o vis
racial, o relaciona com etnia, e perde de vez o vis culturalista de outras
conceituaes11, e ainda resolve um problema capital que o termo remanescente
implica, o da comprovao histrica.
10 O Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003 e tem como intuito de regulamentar o procedimento para identificao, reconhecimento, delimitao, demarcao e titulao das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias. O texto completo encontra-se me anexo.11 No anos de 1990 a Fundao Cultural Palmares criou a seguinte conceituao: quilombos so os stios historicamente ocupados por negros que tenham resduos arqueolgicos de sua presena, inclusive as reas ocupadas ainda hoje por seus descendentes, com contedos etnogrficos e culturais (revista Isto, 20/06/90, p. 34). Podemos perceber que a noo historicizante, arqueolgica e voltada para a noo de patrimnio histrico predomina. Logo, o abismo entre a noo tomada em seu aspecto de patrimnio histrico e as demandas apresentadas pelos grupos atuais se tornou insustentvel. Em 1994, a FCP oficializou outra proposta, muito divergente da anterior: comunidades negras rurais que agrupam descendentes de escravos [que] vivem da cultura de subsistncia e onde as manifestaes culturais tm forte vnculo com o passado ancestral. Esse vnculo com o passado foi reificado, foi escolhido pelos habitantes como forma de manter a identidade (MOURA, 1994). A conceituao de Moura (op.cit) comporta ao mesmo tempo um teor substancialista e idealizado com um teor pragmtico de identidade, respondendo apenas necessidade de conciliar as demandas dos agrupamentos negros e o iderio poltico do movimento social. Mas mesmo assim, ainda apresentando uma viso mais tradicional no teor de suas concepes, sem abdicar a afinidade eletiva com a cultura, converte de reminiscncia histrica em afirmao tnica.
17
3. Etnia e Etnicizao: uma nova estratgia de conservao do Campo tnico-
racial-quilombola.
A investigao no se configurou em uma tentativa de comprovao da
legitimidade da comunidade Kalunga enquanto remanescente de quilombo, j que esta
j reconhecida pelos devidos rgos estatais de acordo com a atual legislao. A
reconstituio histrica feita a partir de fontes bibliogrficas, Histria Oral e pesquisas
documentais no Frum, Cartrios e Casa Paroquial de Cavalcante, tm o intuito de
compreender as trajetrias e o habitus Kalunga, que so disposies duradouras para
certas percepes e prticas que acabam por se tornar parte do sentido de identidade,
constitudos por meio da estrutura histrico-brasileira, possibilitando a compreenso do
processo que culminou na etnicizao da comunidade Kalunga.
Assim, a nfase diferenciada estaria relacionada com a etnicizao 12 da
comunidade que deu inicio ao processo de homogeneizao de identificao com o
cone quilombola e com a denominao Kalunga. Tal processo de etnicizao, no
entanto, no refere-se criao ou estabelecimento de uma etnia, pois a consolidada
reflexo sobre etnicidade centrada principalmente em Frederik Barth (1976, 1967
1973), considera os grupos tnicos como um tipo organizacional que confere
pertencimento por meio de normas e meios empregados para indicar afiliao ou
excluso.
Esse sistema organizacional marcado pelo contato j existia na comunidade
antes do reconhecimento pela Constituio Brasileira de 1988, dessa forma, a
comunidade se constitua enquanto uma etnia mesmo antes do advento jurdico.
Embora o termo Kalunga no fosse empregado pelos indivduos da comunidade
para se auto-identificarem, ele era empregado pelos outros, pelos que no pertenciam
12 Essa tese ser apresentada ao longo da dissertao.
18
comunidade, para identific-los. Segundo Silva (2003) e depoimentos colhidos
durante a pesquisa de campo, o termo Kalungueiro era utilizado de forma jocosa no
passado para indicar os moradores da atual comunidade Kalunga, que outrora eram
identificados como moradores do serto, da chapada, dos vos.
Alm disso, mesmo antes do reconhecimento, os Kalunga sabiam identificar
quem eram os intrusos (grileiros, posseiros, fazendeiros, garimpeiros, comerciantes,
biscates) e quem pertencia quelas terras, independente da crena em uma origem
comum.
Assim, o que o reconhecimento inaugura uma nova estratgia de conservao
do subcampo tnico quilombola, j dado. Tal campo caracterizado pelas relaes de
fora resultantes das lutas internas, pelas estratgias em uso e por presses externas
(BOURDIEU, 1989). A estrutura do campo dada pelas relaes de fora entre os
agentes (indivduos e grupos) e as instituies que lutam pela hegemonia no interior do
campo, isto , o monoplio da autoridade que outorga o poder de ditar as regras, de
repartir o capital especfico de cada campo, no caso da comunidade Kalunga, o
Governo Federal com seus respectivos rgos responsveis (SEPPIR, Instituto
Nacional de Colonizao e Reforma Agrria - INCRA, Ministrio do Desenvolvimento
Agrrio - MDA, Fundao Cultural Palmares- FCP...).
O subcampo tnico-quilombola, como outros campos, vive o conflito entre os
agentes que o dominam e os demais, entre os agentes que monopolizam o capital
especfico do campo, pela via da violncia simblica (autoridade) contra os agentes
com pretenso dominao (BOURDIEU, 1989). Assim os agentes e instituies
dominantes tendem a inculcar a cultura dominante, de modo a reproduzir o habitus, as
desigualdades sociais nas maneiras de falar, de trabalhar, de julgar, legitimando
inconscientemente a reproduo. A famlia, a escola, o meio no s reproduzem o
19
habitus, como o legitimam inconscientemente. Assim, a vida social Kalunga
governada pelos interesses do campo, mas no mago do prprio sistema.
Tal interesse est ligado prpria existncia do campo (sobrevivncia) e s
diversas formas de capital, ou seja, aos recursos teis na determinao e na reproduo
das posies sociais (op. cit), que no caso desse campo, so determinados pelas
discusses acerca do artigo 68 da CFB, seus impasses e possibilidades sobre o
reconhecimento e garantia de seus direitos, que envolvem a transio de Terras de Preto
para comunidades remanescentes de quilombo, a regulamentao do territrio com a
titulao definitiva das terras e as linhas13 seguidas pelas polticas propostas e
implementadas na comunidade.
Esse tipo de articulao utilizado como estratgia de conservao pelos lderes
da comunidade Kalunga, que emergiram a partir do envolvimento da Antroploga Mari
Baiocchi na comunidade com o Projeto Kalunga: Povo da Terra, em 1982. Tais lderes
tiveram participao na consolidao e continuidade da comunidade como
remanescente de quilombo, acompanhando as tendncias do novo arcabouo jurdico e
continuam atuando na sua conservao, procurando sempre enfatizar o teor tnico de
suas representaes sociais para os outros membros do grupo e para os outros.
4. Pressupostos Terico-metodolgicos
Nas acepes sobre etnicidade de Frederik Barth (1967, 1976, 1973), ele destaca
que a anlise sobre etnicidade em um grupo deve ser gerativa no deve se limitar a
explorar a conservao ou a persistncia dos grupos tnicos, muito menos as narrativas
13 Via de regra, tais polticas tendem a seguir dois caminhos um de cunho culturalista e outro pragmtico. As polticas de cunho culturalista pregam uma total preservao dos sinais diacrticos da comunidade
20
de origem, mas tem que procurar esclarecer a dinmica incessante de conformao e
reestruturao do mesmo.
A dinmica incessante de conformao e reestruturao sob a perspectiva
interacionista de Barth enfatiza uma autonomia dos indivduos frente s escolhas da
vida. Tais escolhas seriam avaliadas, calculadas, maximizadas, sempre optando e
escolhendo, negociando os custos e benefcios de cada um de seus atos, sem se
preocupar com os condicionamentos sociais ou estruturais. Dessa forma, a sociedade
estaria na mente dos indivduos de forma concreta, na forma de objetivos, metas,
valores, necessidades, expectativas, seria a prpria organizao social a causa da
estrutura social.
O interacionismo simblico se preocupa com a anlise do processo de
socializao, entendido como uma negociao constante que no se limita ao vnculo
social, ou seja, as pessoas agem a partir do sentido que elas atribuem s situaes, s
outras pessoas e aos objetos, sendo a interao processo de construo formadora de
ambientes entre as pessoas, onde o ator social agente ativo da elaborao de esquemas
interpretativos, anlises e categorias que no so definitivos nem apriorsticas, o
significado dado pelo participante ainda no um dado em si, mas negociado em
funo do evento, do contexto e da situao. Os contextos sociais pela perspectiva do
interacionismo simblico, no so estticos, eles contm sua histria, seus valores, seus
riscos e seus limites.
A teoria da etnicidade no pode se basear somente a partir da constituio das
fronteiras tnicas, como prope Barth, devemos levar em considerao que o
estabelecimento da identidade tnica se d por meio da interpretao das impresses
dos sinais diacrticos pelos agentes em interao, isso quer dizer que embora Barth
aponte que a compreenso dos grupos tnicos deve se dar pela constituio de suas
21
fronteiras o que vai tornar a anlise sociolgica possvel a compreenso de que as
percepes e impresses dos agentes tm um referente social, tendo significao
enquanto existe como uma representao coletiva, que no somente comum entre
um determinado conjunto de pessoas, mas tambm partilhado por elas de forma que
tais percepes possam se tornar a base de um entendimento entre o grupo em suas
relaes sociais, ou seja, quando os sinais diacrticos tnicos formam as construes de
senso comum ultrapassando a noo de idiossincrasias para trat-las como parte da
cultura do povo em questo (MITCHEL, apud: OLIVEIRA, 2003 a).
No entanto, devemos considerar que a etnicidade um processo ancorado em
condies histricas concretas, a investigao sobre a identidade tnica (ou etnicidade)
deve contemplar o processo de institucionalizao dos limites tnicos. J que para
Cardoso de Oliveira (2003 b) o que define a identidade tnica a situao de contato
intertnico e a conscientizao dessa situao pelos indivduos inseridos na conjuno
intertnica que seria o alvo preliminar do cientista social durante a investigao, tal
conscincia etnocntrica estaria pautada por valores e se assumiria como ideologia.
Em outras palavras, deve-se compreender a funo latente da instituio, para
alm de seu contedo cultural, ou ainda, para alm dos nveis epidrmicos da
realidade, para assim, despir os fatos de sua aparncia para serem revelados em toda a
sua significao (R. C. OLIVEIRA, 2003 a). Isso porque, tanto a cognio tnica (i.e.,
do fato tnico) quanto o comportamento intertnico (i.e. o que emerge das relaes
tnicas) so orientados para valores que frequentemente escapam do horizonte
perceptivo dos agentes embora tais valores estejam contidos em ideologias (o que
torna a anlise sociolgica possvel) (op. cit., p. 144) ao contrrio do que prope
Mitchel e que Barth falha em considerar.
22
Isso quer dizer que os grupos sociais esto imersos em um mesmo ambiente de
competio que nem sempre so complementares, muitas vezes at se amparam em
traos culturais emblemticos diversos, e entre eles h desigualdades de poder
impossveis de serem ignoradas caso se pretenda revelar como se fixam suas respectivas
identidades, ou seja, a anlise deve contemplar tambm o nvel macro14 da interao.
Para Pacheco Oliveira (1999, p.35) o contexto inter-societrio no qual se
constituem os grupos tnicos no um contexto abstrato e genrico, mas sim um
contexto no qual o quadro poltico definido pelos parmetros do Estado-nao, assim
o territrio deve ser tomado como a dimenso estratgica para se pensar a incorporao
de populaes etnicamente diferenciadas nesse contexto.
Assim, quando falamos de uma identidade tnica quilombola no podemos
dissociar esses grupos tnicos da idia de territorialidade. O prprio Pacheco de
Oliveira prope que a justa anlise dos grupos tnicos (quilombolas ou no) deve
agregar ao conceito de etnicidade, o conceito de territorializao.
Logo, os grupos tnicos devem ser vistos como uma forma de organizao
social, cujo aspecto fundamental seria a j clssica caracterstica da atribuio tnica,
identidade tnica categorizada por si mesmo e pelos outros, um tipo de organizao
baseado na auto-atribuio dos indivduos categorias tnicas.
Para os Kalunga a terra tem uma importncia fundamental, no s de
sobrevivncia, como tambm a respeito da constituio da identidade desse povo. O
territrio aqui compreendido segundo as acepes de Correia de Andrade (1994), que
conceitua o territrio a partir da forma de apropriao de um determinado espao, por um
14 O interacionismo simblico adotado por Barth parece levar em considerao apenas o nvel micro da interao, baseado no enquadre analtico das interaes face a face, formulado por Goffman (1974), nos trabalhos microetnogrficos de Erickson (1971), entre outros, no levando em considerao o nvel macro da interao baseado no enquadre descritivo-analtico de descrio densa apresentado por Geertz (1989) que procura compreender de maneira mais ampla e qualitativa, o universo a ser pesquisado, sem perder de vista a complexidade das relaes de poder.
23
grupo social que o transforma pelo uso que lhe destina, e imprime identidades dessa
mesma comunidade. o uso do territrio e no o territrio, em si mesmo, que faz dele
objeto de anlise social, o territrio em questo o territrio usado (SANTOS, 2002).
No caso dos Kalunga, como em outras comunidades quilombolas, o territrio pode
ser entendido como uma rea demarcada por uma coletividade onde exerce o seu poder. A
territorialidade reflete o multidimensionamento do vivido territorial pelos membros de
uma coletividade, pela sociedade em geral. Os homens vivem ao mesmo tempo, o processo
territorial e o produto territorial por intermdio de um sistema de relaes existenciais e/ou
produtivas. O que faz com que o territrio passe a constituir uma identidade, no em si
mesma, mas na coletividade que nele vive e produz. A exemplo dessa dinmica em
comunidades quilombolas podemos citar15, o Quilombo Praia Grande em Iporanga - So
Paulo, que devido a um processo de territorializao construiu uma territorialidade
profundamente ligada ao lugar que habita, sendo a identidade do grupo e a terra
entrelaadas de tal forma que ela (a terra) passa a ser num determinado momento uma
extenso do grupo familiar, como no caso Kalunga; ou o quilombo Brotas em Itatiba SP,
onde a identidade foi construda tendo como elemento intermedirio a religio que
possibilitou a elaborao de uma identificao da comunidade com seu territrio.
Isso quer dizer que o territrio no deve ser visto apenas na dimenso do espao
fsico, que abriga comunidades, mas deve resgatar fatos, histrias e prticas do cotidiano de
tais comunidades.
A terra deixa de ser terra e tende a tornar-se simples solo ou suporte da territorializao e dos contedos sociais, um processo composto de significaes elaboradas pelas prticas humanas. O territrio de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos que o territorializa, um produto de uma territorializao dos meios e dos ritmos. A territorializao o ato do ritmo
15 Ver: GIACOMINI, Rose Leine Bertaco. Cultura,Territrio eEtnodesenvolvimento: A Poltica Pblica de Desenvolvimento das Comunidades Remanescentes de quilombo no Estado de So Paulo. Anais do III Simpsio Nacional de Geogradia Agrria II Simpsio Internacional de Geografia Agrria. Jornada Ariovaldo Umbelino de Oliveira, 11 a 15 denovembro de 2005, retirado de: http://www2.fct.unesp.br/agraria/Trabalhos/Artigos/Rose%20Leine%20Bertaco%20Giacomini.pdf em 25de julho de 2007 s 16:00.
24
http://www2.fct.unesp.br/agraria/Trabalhos/Artigos/Rose Leine Bertaco Giacomini.pdf
tornado expressivo, ou dos componentes de meios tornados qualitativos. [...] O territrio no s assegura e regula a coexistncia dos membros de uma mesma espcie, separando-os, mas torna possvel a coexistncia de um mximo de espcies diferentes num mesmo meio, especializando-os. Ao mesmo tempo em que membros de uma espcie compem personagens rtmicos e que as espcies diversas compem paisagens meldicas, as paisagens vo sendo povoados por personagens e estes vo pertencendo paisagem (DELEUZE & GUATARRI, p. 128, 1997)
Como prtica social o territrio um campo que se constitui em simultaneidade
identidade coletiva dos moradores, que se expressam por meio de sua cultura e das
possibilidades de sua condio socioeconmica. Somando-se esse conjunto de
elementos temos um conjunto de variveis que sinalizam um habitus comum, que est
contido no territrio na mesma medida que este o contm. O habitus comum produto da
territorialidade, estrutura as relaes culturais em um territrio que assenta a identidade
social do grupo.
O espao da territorialidade como suporte da identidade comporta duas
dimenses: a acepo de formao social e a produo coletiva do espao. A partir
dessas dimenses o territrio da comunidade Kalunga se torna produto de prticas
sociais e polticas e constitudo por um conjunto de regras e cdigos, normas e
disposies institudas pelo sistema de representao vigente no grupo, que dinamiza e
fornece um status especfico para a populao que o habita.
No entanto, a meu ver existe uma terceira dimenso que interfere no suporte da
identidade pela territorialidade, essa terceira dimenso refere-se a variveis exgenas
comunidade e diz respeito s articulaes institucionais e discursos elaborados de vrios
setores, entre eles, o sociolgico, o antropolgico, o jurdico, o administrativo e o poltico.
Nesse sentido, o governo e seus rgos exercem um papel fundamental no s de rbitro
como tambm de mediador de polticas, no s para a demarcao de terras, mas tambm
para o reconhecimento tnico, para a valorizao tnica e cultural, para a conscientizao
25
do valor da terra, da cultura, da identidade Kalunga, e ainda polticas de educao, de sade
e de integrao, fatores que possibilitam maior coeso do grupo enquanto comunidade.
Nessa perspectiva, a falta de implementao de polticas pblicas que
caracterizou a primeira parte da histria dos negros aps a abolio, bem como o
habitus vivido pelos negros desde sua chegada ao Brasil, tm interferncia direta na
formao da identidade tnica dos remanescentes de quilombos, entre outros fatores.
Por essas razes a pesquisa no se configura apenas como uma reflexo sobre
etnicidade, ou seja, que enfatiza a anlise apenas da organizao social (via fronteiras
intertnicas), em detrimento da estrutura social16. Pois compreendo que os agentes
sociais so histricos, determinados socialmente, imersos em um universo social fora
de nossos controles, no existindo uma unicidade do ser, constante no tempo e espao,
capaz de garantir uma ordenao dos acontecimentos e de dar um sentido racional e
consciente s aes individuais. As aes no seguem uma linearidade progressiva e de
causalidade, que se concentre e d sentido a todas as escolhas de uma pessoa, no h
um todo coerente, coeso e atado por uma cadeia de inter-relaes, tal construo
realizada a posteriori (pelo pesquisador ou pelo prprio indivduo) por meio da
observao das trajetrias individuais onde possvel a objetivao do habitus, que se
configura como resultado estvel, mas no imutvel do processo de interiorizao
social e de incorporao de identidade. No entanto, reitero algumas concepes das
teorias da etnicidade propiciadas pelo dialogo com antroplogos brasileiros sobre o
tema, tais como: Roberto Cardoso de Oliveira (2003 a, 2003b), Pacheco de Oliveira
(1999), Manuela Carneiro da Cunha (1985, 1992), a fim de adaptar as teorias da
etnicidade para uma leitura mais completa sobre a realidade dos remanescentes de
quilombos.
16 Entendendo a estrutura social como o sistema de constrangimentos institucionais, simblicos e de conduta que limitam as opes do indivduo, enquanto que a organizao social seria o resultado das escolhas feitas pelos agentes, de acordo com tais limitaes.
26
Nesse sentido, para compor o rol explicativo para os dados colhidos adotei a
postura de que a noo de identidade pode ser entendida, prvia e genericamente, como
um tipo de mediao da relao entre indivduo e sociedade. uma construo que
passa necessariamente pelas malhas da individualidade, elaborada sempre na
originalidade de trajetrias individuais, mas tem um sentido eminentemente social, ou
seja, mobilizada pelos indivduos em suas relaes sociais (BOURDIEU, 1989). por
meio de sua identidade que o indivduo se apresenta ao mundo social, mas tambm no
processo de construo de sua identidade que a conformao social dos indivduos se
explicita.
As trajetrias individuas unidas a todos os outros traos dos grupos sociais,
definem trajetrias comuns, feixes de percursos muito semelhantes, ou afinal, uma
trajetria, que seria a objetivao das relaes entre os agentes e as foras presentes na
estrutura social, no sistema de constrangimentos institucionais, simblicos e de conduta,
historicamente construdo, que limitam as opes do indivduo (BOURDIEU, 1989).
Assim, toda trajetria social deve ser compreendida como uma maneira singular de
percorrer o espao social, onde se exprimem as disposies do habitus e reconstitui a
srie das posies sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo
grupo de agentes em espaos sucessivos (BOURDIEU, 1996, p.34).
A perspectiva da praxiologia defende que o grupo social deixa visvel os
aspectos de dinamicidade e permanncia de sua ao, incorporando os elementos
constituintes da realidade social e, a seu modo, exterioriza os contedos simblicos
interiorizados, compartilhando os traos de uma cultura comum que pode ser
examinada por meio do conceito de habitus.
O dilema metodolgico proposto, ou seja, o de realizar uma investigao em um
grupo tnico a partir tanto da organizao social quanto da estrutura social, explorando
27
os nveis micro e macro do objeto, pode ser feito por meio de uma investigao sobre o
habitus da comunidade em questo, j que este, ao contrrio do contedo cultural que
se modifica no tempo e varia de acordo com ajustamentos ecolgicos, como nos diz
Barth, composto de disposies duradouras para certas percepes e prticas que
acabam por se tornar parte do sentido de identidade individual, e obedece ao princpio
de no-conscincia de Bourdieu. A noo de habitus que j fora proposto por Weber
nos estudos de grupos tnicos e que Bourdieu tambm utiliza para fundamentar sua
teoria da prtica, permite diferenciar expresses culturais superficiais daquelas
estruturais e profundas, de forma que, enquanto estruturas profundas do habitus
fornecem a base para o reconhecimento da identidade, essas estruturas produzem uma
grande variedade de expresses culturais de superfcie, que variam de acordo com o
contexto e estratgias escolhidas pelo grupo tnico.
Assim, a investigao sobre o habitus Kalunga se deu pela investigao e anlise
de trajetrias dos Kalunga, adotando um mtodo estruturalista, mas que tambm parte
de certo construtivismo fenomenolgico, presentes nos pressupostos de Bourdieu.
Busquei compreender o sistema completo de relaes nas quais e pelas quais as aes se
realizam, na interao entre os agentes e as instituies que podemos encontrar uma
estrutura histrica que se impe sobre os pensamentos e as aes (BOURDIEU, 1989).
As dimenses do habitus: ethos, eidos e hexis, de acordo com Bourdieu (1983),
no podem ser vistas como instncias separadas. O ethos a dimenso tica que
designa um conjunto sistemtico de princpios prticos, no necessariamente
conscientes, podendo ser considerado como uma tica prtica. Ope-se tica que
constituda por um sistema coerente de princpios explicativos. Por conseguinte, o
habitus desperta, nos agentes, a necessidade de respeitar as normas e valores sociais, o
que lhes possibilita uma convivncia adequada s exigncias da sociedade. O eidos a
28
dimenso que corresponde a um sistema de esquemas lgicos e cognitivos de
classificao dos objetos do mundo social, portanto, leva o habitus a traduzir-se em
estilos de vida, julgamentos morais e estticos.
A hexis a dimenso que possibilita a internalizao das conseqncias das
prticas sociais e, tambm, a sua exteriorizao corporal, por meio do modo de falar,
gesticular, olhar e andar dos agentes sociais. Com tais dimenses, o habitus viabiliza-se
enquanto produto de uma situao concreta com a qual estabelece uma relao
dialtica, de onde se originam certas prticas sociais.
Na interao com os diferentes espaos sociais, o habitus pode ser apreendido
sob a forma de capitais (lingstico, corporal, material, social e outros). Por exemplo,
falar de acordo com as normas hegemnicas, ter um corpo adequado aos padres
estticos mais valorizados, so capitais que materializam os esquemas de determinados
habitus, assegurando uma insero social diferenciada aos agentes que os detm.
Nessa perspectiva, ao se estudar a comunidade Kalunga deve-se vislumbrar que
os diferentes habitus no existem em estado puro, mas enquanto sntese de outros
habitus presentes nos indivduos, como um resultado de suas pertenas a diversos
grupos, ocorridas ao longo de suas trajetrias de vida. Assim, o habitus da comunidade
Kalunga, como demonstrado neste trabalho, construdo enquanto sntese do habitus
negro, rural, religioso e de campesinato especfico da construo histrico-social
brasileira.
O presente trabalho um estudo de caso nas regies da Maiadinha, Taboca,
Capela e Curriola, todas no Vo do Moleque no municpio de Cavalcante, somando 122
residncias, 30 delas foram visitadas, onde realizei, alm da observao participante,
entrevistas formais e informais, que seguiam um roteiro de entrevistas, pr-elaborado e
pr-testado e Histria Oral. A regio do Vo do Moleque foi escolhida pela
29
convenincia da existncia de estradas, mesmo que precrias, o que facilita o acesso e
tambm por tratar-se de uma regio populosa, mas distante das cidades vizinhas. O
acesso ao Vo do Moleque feito por uma estrada de terra em condies ruins e fica
cerca de 150 km de Cavalcante de carro. Outro fator determinante para a escolha da
localidade que muitas polticas pblicas j comearam a ser implementadas nessa
regio como a instalao da rede eltrica, a construo de escolas, construo de casas,
entre outros.
As observaes foram registradas no dirio de campo, algumas delas transcritas
de gravaes feitas durante as entrevistas; essa tcnica, a de gravar, foi logo
abandonada, uma vez que interferia na participao dos atores, e assim a maioria das
entrevistas foram reconstitudas com base nos registros da minha memria. Algumas
vezes fiz anotaes durante as entrevistas que auxiliaram nos registros posteriores, mas
essa prtica tambm interferia na participao do entrevistado, que logo desconfiava
das minhas intenes ao anotar o que era dito, essa tcnica tambm foi abandonada
enquanto mtodo.
As entrevistas informais se mostraram mais eficazes em relao quantidade e
qualidade das informaes cedidas, uma vez que as anotaes e gravaes inspiravam
desconfiana e medo nos entrevistados, enquanto que uma conversa informal permitia
que os agentes ficassem mais vontade, em outras palavras, o curso livre dos
depoimentos apreendidos por meio das entrevistas informais demonstrou-se muito mais
rico como fonte de dados empricos essenciais do que a entrevista formal.
A escolha das residncias no seguiu nenhum critrio de amostragem, e meu
pouco conhecimento das inmeras trilhas da regio e da distribuio das residncias
dificultaram o acesso, assim escolhi como critrio de escolha das mesmas o mtodo
bola de neve, assim que encontrava uma residncia pedia referncia sobre a mais
30
prxima, que no estivesse com mais de dois km de distncia, uma vez que o trajeto
feito a p, e eu carregava meu filho de dois anos, mantimentos, roupas e gua e ainda
teria que retornar ao ponto de partida.
O contato com as famlias das outras residncias, bem com moradores
pertencentes outros povoados do stio, ocorreu na cidade de Cavalcante, onde alguns
tambm possuem residncia, ou no Festejo de Nossa Senhora do Livramento e na
ocasio do Velrio de Joca da Costa Serafim e/ou quando estes estavam de passagem
pelas residncias visitadas. Esses eventos ocorreram durante a pesquisa de Campo que
contou com cinco viagens ao Vo do Moleque, de durao varivel, a mais longa durou
32 dias consecutivos, somando 90 dias de convivncia ao todo com a comunidade,
outras inmeras viagens foram empreendidas Cavalcante para a pesquisa documental.
Em momentos anteriores, pude conhecer diversos outros povoados pertencentes ao
Stio, mas o contato se deu sob outras bases que no a de pesquisadora, incluindo os
povoados de Areia, Boa Sorte, Prata, Corrente, Engenho II, Vo de Almas, Sucuri,
Fazenda Ema e Mochila, entre outros.
Como o objetivo do trabalho um estudo qualitativo, o mtodo utilizado de
escolha das residncias no interfere nos resultados da pesquisa, j que no se pretende
quantificar nenhum dado colhido.
A reconstituio histrica exigiu uma pesquisa das fontes documentais no
Frum de Cavalcante e uma pesquisa bibliogrfica minuciosa que inclui documentos
histricos do sculo XVIII, que esto no Instituo Histrico e Geogrfico Brasileiro no
Rio de Janeiro e no Acervo Histrico de Gois. Essa parte da pesquisa exigiu bastante
sensibilidade na conexo entre dados esparsos, aparentemente desconectados, que
quando transposta para a pesquisa de campo confere ao pesquisador maior segurana na
utilizao de histria oral e melhor aproveitamento dos dados obtidos.
31
A leitura da maioria desses documentos, no entanto, revela um silncio em
relao populao negra e indgena, demonstrando a situao perifrica que se
encontrava essa populao. O vazio de informaes rompido somente por ligeiras e
curtas referncias a escravos e quilombos, para ressaltar ou ilustrar fatos de interesse
dos brancos.
Metodologicamente, tanto a coleta de dados quanto a anlise se encaminharam
sob dois planos complementares: como se d a constituio dessa comunidade e como
ela se mantm, em termos de opes de processos organizativos e culturais, e como se
d a elaborao da identidade tnica desse grupo sob o impacto da expanso capitalista
e sob o alvoroo causado pela inaugurao do artigo 68 da Constituio Brasileira de
1988.
Para compreender a formao da comunidade Kalunga recorro s fontes
primrias e a trabalhos de historiadores brasileiros que se ocupam do negro na
sociedade escravocrata brasileira e de Gois17, tomando os dados disponveis e
ordenando-os numa leitura tnica em termos de identidade dos negros, em diferentes
situaes de alteridade historicamente configurada. Para analisar as representaes
coletivas da comunidade investiguei o sistema scio-econmico a partir da famlia, dos
sistemas de produo, distribuio e consumo, das relaes de parentesco, das relaes
de produo, do ciclo comunitrio de festas. Para entender as reaes da comunidade
17 Ver: ALENCASTRE, J.M.P. - "Annaes da Provncia de Goyaz". R. Inst. Hist. Geogr. Bras., 1864CARNEIRO, E.: O Quilombo dos Palmares. So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957.CUNHA, M.C. Negros, Estrangeiros.Os escravos libertos e sua volta frica. Editora Brasiliense. So Paulo.MOURA, G. Ilhas negras num mar mestio. Carta: fala, reflexes, memrias, publicao do gabinete do senador Darcy Ribeiro, Braslia 4, n.13, 1994.MATTOSO, K de Q. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982.PALACIN, L; MORAES, M. A. S. Histria de Gois, Editora UFG - 1989. Ministrio das relaes exterioresSILVA, Martiniano Jos. Quilombos do Brasil Central: Violncia e Resistncia Escrava. Goinia. Kelps, 2003.REIS, J. J.; SILVA, E. Negociao e conflito. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.RAMOS, A. O Negro na Civilizao Brasiliera, Rio de Janeiro: Casa do Estudante Brasileiro, 1953.
32
invaso do capitalismo, investiguei as relaes de dominao por meio das relaes
intertnicas e os impactos das polticas de reconhecimento das comunidades tnicas
sobre a comunidade Kalunga.
Os nomes dos depoentes foram omitidos com o intuito de preservao da
integridade dos mesmos, no entanto, quando sua condio indica um dado ele
demonstrado. Todas as fotografias, bem como os grficos so de minha autoria, por
isso a fonte no aparece junto s fotos.
5. A Dissertao
O desenvolvimento da identidade Kalunga teve diversos marcos estruturais e
histricos, que sero divididos em trs grupos de abordagem para a anlise, so eles:
Da origem ao reconhecimento: o sistema escravocrata, a colonizao do centro-
oeste brasileiro, a decadncia do Ouro em Gois, diversos processos de ocupao de
Terras de Preto decorrentes da decadncia do sistema, inclusive a formao de
Quilombos no Brasil, A Lei de Terras de 1850, a abolio da escravido em 1888, o
dficit de polticas pblicas que proporcionasse a integrao dos negros sociedade
aps a abolio, o que contribuiu para uma profunda desigualdade scio-racial,
resultando tanto na excluso da populao negra e indgena ao acesso de bens e
servios, quanto num frgil exerccio da cidadania.
O reconhecimento em si, o artigo 6818 da Constituio Brasileira de 1988,
impasses e possibilidades.
A partir do reconhecimento: o envolvimento da antroploga Mari Baiocchi com
o Projeto Kalunga: Povo da Terra na dcada de 1980, O projeto de uma usina de
18 Art. 68: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos.
33
Hidroeltrica de FURNAS no Stio, grilagem, a influncia do movimento negro e
polticos locais, a entrada do Governo Lula em 2002 e o Decreto 4.887 de 2003.
O primeiro Captulo, portanto, trata de compreender a estrutura e a organizao
social do negro em Gois desde o perodo da escravido, ou seja, a relao do sistema
colonialista com o negro, captando a organizao social composta pelos mesmos a partir
dessa estrutura, que originou, entre outros, no habitus Kalunga. Buscando compreender
os diversos processos que resultaram nas 2.228 comunidades remanescentes de
quilombo do Brasil na atualidade, especificamente a comunidade Kalunga, e como esse
novo objeto compreendido em diversas esferas. Ainda, investigo a origem da
comunidade a partir de documentos histricos da regio no perodo escravista.
No segundo Captulo, analiso a origem da comunidade Kalunga a partir da
constituio familiar do Vo do Moleque e sua forma de ocupao da terra, analisando
a dinmica de (re)configurao cultural, a partir do reconhecimento, que resultou em
trs mitos de origem da comunidade Kalunga e da passagem de Terras de Preto para
Remanescentes de Quilombos.
No ltimo Captulo procuro apresentar a organizao social Kalunga resultante
desse habitus historicamente construdo na atualidade, a partir da observao
participante e sistematizao dos dados (em uma leitura tnica).
34
Captulo 1 - 1Trajetria dos Negros ao longo da formao Histrico Brasileira: De Quilombo Remanescentes de Quilombo
Tanto a memria social Kalunga quanto a formao Histrico Brasileira so
aqui utilizadas como dados para composio do habitus Kalunga e conseqente
compreenso da identidade e territorialidade Kalunga.
No entanto, preciso considerar que quando h fronteiras simblicas
objetivizadas pela cultura, no se deve considerar os grupos em si como as unidades
referenciais desta busca, j que grupo ou comunidade, sociedade no tem
extenso emprica e varia de acordo com tempo e espao, s vezes to somente uma
comodidade jurdico/terica para lidarmos com certas realidades sociais. Este um
problema que se pe no desenvolvimento da etnografia, do trabalho de campo de um
socilogo junto a um grupo tnico, pois quase sempre as unidades significativas para as
relaes travadas dentro de um coletivo so as famlias, as linhagens, as casas, como no
caso da comunidade Kalunga. Salvo, talvez, em condies em que h instituies
polticas bem formalizadas e supra familiares.
Esse captulo, portanto, trata de compreender a estrutura e a organizao social
do negro em Gois desde o perodo da escravido, relacionando tal anlise com a
origem da comunidade Kalunga.
1. O Negro na Histria do Brasil e de Gois
A histria brasileira marcada pelo deslocamento espacial e progressivo em
direo ao interior do pas, a conquista e a ocupao de terras oferecem uma longa
genealogia retomada na construo da identidade brasileira. O surgimento do quilombo
35
Kalunga est ligado histria de colonizao do Estado de Gois e, de forma geral, de
todo centro-oeste. A provncia de Goyazes foi explorada por bandeirantes que deram
inicio colonizao do Estado a partir da explorao das minas de ouro que tiveram o
negro como principal suporte. Os negros serviram de sustentculo para a manuteno
da estrutura colonizadora desde as primeiras lavouras de cana-de-acar at o marcante
ciclo do ouro (MOURA, 1993).
As posies dos indivduos ou grupos no interior da estrutura social no Brasil do
sculo XIX no tinham como referncia apenas a figura do senhor branco e do escravo
negro (e marginalmente tambm a do ndio), eram pautadas em relaes
multidimensionais que levavam em considerao uma srie de construes simblicas
em torno de uma grande pluralidade de figuras e tipos sociais: homens, mulheres,
velhos, moos, negros, brancos, mulatos, escravos, escravos de ganho, livres, libertos,
ingnuos, europeus, ndios, africanos, crioulos, brasileiros, imigrantes, portugueses,
fazendeiros, agregados, assalariados.
A estrutura social constitui-se como um sistema complexo de relaes cujo
modelo de estratificao, embora seja certamente influenciado pelas relaes de
trabalho e produo, no se resume a tais relaes, que se definem a partir de um
espao multidimensional de posies, ou um campo de foras, no qual os agentes
esto inseridos e so definidos em funo de sua posio relativa (BOURDIEU, 1989).
Os jogos de relaes que determinam a posio dos indivduos e grupos na sociedade e
que, assim, fundamentam as construes identitrias, so mltiplos, como procuro
demonstrar ao analisar o papel do negro na Histria do Brasil e de Gois.
A histria de Gois tem como ponto de partida o final do sculo XVII, com a
descoberta das suas primeiras minas de ouro, e incio do sculo XVIII. Esta poca,
iniciada com a chegada dos bandeirantes, vindos de So Paulo em 1722, foi marcada
36
pela colonizao de algumas regies. A primeira parte da histria de Gois representou
uma etapa de investigao das possibilidades econmicas das regies goianas, durante a
qual o seu territrio tornou-se conhecido. J no sculo XVIII, em funo da expanso
da marcha do ouro, o territrio goiano foi ento, ocupado, de fato, por meio da
minerao, logo, seu povoamento s ocorreu em virtude do descobrimento das minas
de ouro (sculo XIII), tendo sido feito de forma irregular e instvel, como todo
povoamento aurfero19. As descobertas iniciais ocorreram nas pores sulinas de Gois,
sucedida por outras, ocorrendo penetraes rumo ao Tocantins, depositrio das mais
ricas minas de Gois.
Os bandeirantes so acusados de serem assassinos cruis, instrumentos
selvagens da classe dominante, mas tambm so aclamados por terem sido os
verdadeiros construtores da nacionalidade pela bravura e integridade de sua conduta
(LIPPI, 1998). No entanto, essa viso marginaliza outros protagonistas da histria
brasileira, como os negros, os ndios, os jesutas, entre outros.
A primeira informao sobre a populao de Gois so os dados da capitao20
de 1736 . Dez anos depois do incio da minerao, havia em Gois mais de 10.000
escravos adultos. O total da populao era menor de 20.000, pois os escravos deviam
constituir mais da metade da populao. Os dez primeiros anos de minerao instalaram
em Gois quase 20.000 pessoas que, abriram caminhos, cidades, colocando em
atividade grande parte do territrio.
19 A descoberta de Ouro em diversas regies do pas estimulava a instalao de inmeros mineradores, que vinham geralmente sem famlia, nessas localidades, logo esse tipo de atividade econmica atraa um tipo especfico de pblico, mineradores, cujo, nico interesse na regio era a explorao de ouro, assim que a mina se esgotasse eles procuravam nova localidade ou retornavam para sua famlia. Poucas eram as famlias que se constituam nessas localidades, fazendo com que o povoamento a partir da explorao aurfera se tornasse instvel e irregular.20 Capitao o nome dado aos impostos que so pagos per capita. No Brasil colonial, foi cobrada a partir de 1734 com o intuito de acabar com a "ociosidade dos pretos livres", que inclua toda a populao pobre negra ou mestia. Cada branco ou "Preto Forro" (negro alforriado ou mulato livre) tinha de pagar semestralmente o imposto de 4 oitavas e 3 quartos de ouro por cabea de escravo, e cada "Preto Forro" tinha de pagar por si mesmo capitao semestral de 2 oitavas, 1 quarto e 4 vintns de ouro.Obtido em "http://pt.wikipedia.org/wiki/Capita%C3%A7%C3%A3o"
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Capita??ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Escravohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ourohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Impostohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mulatohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Carta_de_alforriahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Branco_(caucasiano)http://pt.wikipedia.org/wiki/Mesti?ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Negrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Pobrehttp://pt.wikipedia.org/wiki/1734http://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil_colonial
Na dcada de 1740 a poro mais povoada de Gois era o sul, mas a expanso
rumo ao setentrio prosseguia com a implantao dos arraiais do Carmo, Conceio,
So Domingos, So Jos do Duro, Amaro Leite, Pilar de Gois, Cavalcante e Palma
(Paran), essas ltimas abrigam a comunidade Kalunga.
A descoberta do Ouro promoveu, de vez, o estabelecimento do homem ao
territrio goiano e inaugurou as bases de colonizao portuguesa no Centro-Oeste,
integrado, a partir de ento, no contexto mercantil da colnia. A regio passou a
funcionar como rea fornecedora de metais preciosos metrpole, e a minerao em
Gois teve papel de suma relevncia, determinante de aspectos peculiares fundamentais
do conjunto da capitania.
Em 1750, ao tornar-se Gois uma capitania, os habitantes deviam ser pouco
menos de 40.000 pessoas. A populao continuou aumentando, embora j em menor
ritmo e em 1783 havia em Gois quase 60.000 habitantes; um aumento de mais de
50%21.
As descobertas aurferas numa fase inicial propiciaram elevado afluxo
populacional. Mas a regio, se visualizada no seu conjunto, no chegou a ser
efetivamente ocupada. Os ncleos de povoamento representados pelos arraiais foram
concentraes isoladas, cercadas por vastas pores desrticas sob o aspecto humano
branco.
semelhana do povoamento, a administrao, os transportes e as
comunicaes foram envolvidos no processo de mercantilismo portugus, para o qual,
durante trs quartos de sculo Gois funcionou como uma vasta feitoria, cuja
populao, dividida em turmas de operrios mineiros, sob a direo do guarda-mr
21 V. PALACIN, Luiz - "Gois, Estrutura e Conjuntura numa Capitania de Minas", Goinia, 1972, pg.18).(ALENCASTRE, J.M.P. - "Annaes da Provncia de Goyaz". R. Inst. Hist. Geogr. Bras., 27:20-21, 1864).(ABREU, Joo Capistrano de - "Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil". Rio de Janeiro, 1960, pg. 84). (CASAL, Aires do - "Corografia Brasilica", Apud BRUNO, Ernani Silva - As selvas e o Pantanal Gois e Mato Grosso. Cultrix, 1959 p.66.
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territorial, se movia em todas as direes, parava onde havia trabalho, no tendo amor
ao lar domstico nem afeio ao solo (ALENCASTRE, 1864, p.20-21 e 27).
A quase totalidade da mo-de-obra foi empregada na minerao, enquanto a
agricultura e a pecuria at o final do sculo XVIII, foram como atividades subsidirias.
O comrcio, com exceo dos metais, foi de cunho interno, fundamentado na
importao dos gneros de primeira necessidade e dos manufaturados, e as ligaes
diretas com o exterior da provncia foram proibidas. O fechamento do intercmbio
direto com o exterior pelo Par e Maranho, via Tocantins, decorreu, sobretudo, da
necessidade de conter o contrabando do ouro. Portugal adotou esta poltica isolacionista
em todas as regies aurferas.
A partir da segunda metade do sculo XVIII, Portugal comeou a entrar em fase
de decadncia progressiva, que coincidiu com o decrscimo da produtividade e do
volume mdio da produo das minas do Brasil. A partir de 1778, a produo bruta das
minas de Gois comeou a declinar progressivamente, em conseqncia da escassez
dos metais das minas conhecidas, da ausncia de novas descobertas e do decrscimo
progressivo do rendimento por escravo. Em 1749, o rendimento por escravo
apresentava-se baixo, no mais que uma oitava por semana (PALACIN, 1989 , pg.
139.)
Entre 1750 e 1781,o crescimento populacional teria sido da ordem de 70%.
Entre 1783 e 1804, no entanto, possvel perceber que a decadncia da minerao se
traduziu numa diminuio da populao em 20%, a populao nesse ltimo ano o
mais baixo da curva censitria (50.365 habitantes). No se importavam mais escravos
para suprir as mortes, muitos brancos e livres emigravam para outros territrios. Houve,
consequentemente, diminuio da produtividade do trabalho escravo, que quase no
pagava os prprios custos e aumento das alforrias, nesse sentido, o trabalho assalariado
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ou semi-assalariado passou a constituir a forma mais barata e segura de labor, como
descritos abaixo.
Um novo tipo de povoamento se estabeleceu a partir do final do sculo XVIII,
sobretudo no Sul da capitania, onde os campos de pastagens naturais se transformaram
em centros de criatrio de gado. A necessidade de tomar dos mineradores reas sob seu
domnio, que serviam de empecilho marcha do povoamento rumo s pores
setentrionais, propiciou tambm a expanso da ocupao neste fim de sculo.
Somente nesse perodo que se pode observar o surgimento de Campo Alegre,
originada de um pouso de tropeiros, primitivamente, chamou-se Arraial do Calaa; e de
Santo Antnio do Morro do Chapu (Monte Alegre de Gois), na zona Centro-
Oriental, na rota do serto baiano, cidades que atualmente tambm abrigam a
comunidade Kalunga.
Ao se evidenciar a decadncia do ouro, vrias medidas administrativas foram
tomadas por parte de governo, sem alcanar, no entanto, resultado satisfatrio. A
economia do ouro, sinnimo de lucro fcil, no encontrou de imediato, um produto que
a substitusse em nvel de vantagem econmica. A decadncia do ouro afetou a
sociedade goiana, sobretudo na forma de ruralizao e retorno a uma economia de
subsistncia.(PALACIN E MORAES, 1989).
Gois viveu um longo perodo de transio. Desaparecera uma economia
mineradora de alto teor comercial. Nascia uma economia agrria, fechada, de
subsistncia, produzindo apenas algum excedente para aquisio de gneros essenciais,
como: sal, ferramentas, querosene, etc.
No Sul e no Norte de Gois, no incio do sculo XIX, a minerao era de
pequena monta. O respaldo econmico do novo surto de povoamento foi representado
pela pecuria, estabelecida por meio de duas grandes vias de penetrao: A do
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Nordeste, representada por criadores e rebanhos nordestinos, que pelo So Francisco se
espalharam pelo Oeste da Bahia, penetrando nas zonas adjacentes de Gois. O Arraial
dos Couros (Formosa) foi o grande centro dessa via. A de So Paulo e Minas Gerais,
que por meio dos antigos caminhos da minerao, penetrou no territrio goiano,
estabilizando-se no Sudoeste da capitania. Assim, extensas reas do territrio goiano
foram ocupadas em funo da pecuria, dela derivando a expanso do povoamento e o
surgimento de cidades como Itabera, inicialmente uma fazenda de criao, e Anpolis,
local de passagem de muitos fazendeiros de gado que seguiam em demanda regio
das minas e que, impressionados com seus campos, ali se instalaram.
Este povoamento oriundo da pecuria, entretanto, apresentou numerosos
problemas. No foi, por exemplo, um povoamento uniforme: caracterizou-se pela m
distribuio e pela heterogeneidade do seu crescimento. Enquanto algumas reas
permaneceram estacionrias, outras decaram (os antigos centros mineradores), e outras
ainda, localizadas principalmente na regio Centro-Sul, surgiram e se desenvolveram,
em decorrncia, sobretudo do surto migratrio de paulistas, mineiros e nordestinos.
Com o advento do Imprio, em 1822, o quadro geral da ocupao de Gois no se
modificou sensivelmente.
Outro problema crucial do povoamento residiu na dificuldade de comunicao
com as outras regies brasileiras. Comunicaes carentes e difceis com as diversas
regies do Imprio, mesmo para os recursos disponveis do perodo, derivavam
principalmente da pobreza da Provncia, incapaz de obter meios eficientes para vencer
as enormes distncias que separavam Gois dos portos do litoral, refletiram
negativamente sobre o comrcio de exportao e importao, freiando qualquer
possibilidade de desenvolvimento provincial.
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As caractersticas da pecuria extensiva, no propiciavam a criao de ncleos
urbanos expressivos, pro perodo22. A economia tendeu a uma ruralizao cada vez
mais marcante e o tipo de atividade econmica gerou grande disperso e nomadismo da
populao. Os antigos centros mineradores decadentes no foram substitudos por
povoaes dinmicas. No incio do sculo XIX, os ncleos urbanos eram pobres e em
nmero reduzido, destacando-se apenas as povoaes de Meia Ponte e Vila Boa de
Gois, esta funcionando como sede do governo.
Apesar de constiturem a base de sustentao da economia aurfera os negros
escravizados, provindos da frica e seus descendentes eram considerados em diversas
regies do pas, inclusive em Gois, inferiores, ficando abaixo, inclusive dos ndios,
que consideravam ofensa serem chamados de negros (DOMINGUES, 1996). As
condies de trabalho dos escravos negros eram pssimas, trabalhavam de sol a sol
dentro dos rios ou tneis, contraindo malria e doenas pulmonares. Alm das pssimas
condies de vida e trabalho, os negros viviam longe de suas famlias e de sua cultura,
entre negros de etnias diferenciadas provindos de diferentes regies da frica, cada um
com costumes e lngua diferentes.
Todos esses fatores contribuam para as freqentes rebelies de escravos, que
pelo cansao e a falta de perspectiva, praticavam abortos, suicidavam-se, faziam
motins, roubavam ou fugiam. Todas essas aes expressavam a resistncia contra o
roubo de sua identidade, contra a escravido e contra a opresso (MOURA, 1993).
Os Quilombos eram constitudos, inicialmente, pelos escravos, que conseguiam
fugir e se refugiar nas matas, e posteriormente, por ex-escravos que procuravam terras
22 Quando se encerrou o Sculo XVIII, a populao total brasileira atingia cerca de trs milhes de habitantes. Salvador, a cidade mais populosa do Brasil, tinha 50 mil moradores, alm dos 15 mil que habitavam em seus subrbios; a capital, o Rio de Janeiro, tinha atingido 40 mil habitantes; Ouro Preto alcanara 30 mil em meados do sculo, porm com a decadncia do ouro, possua apenas 20 mil habitantes, seguida de Cuiab, Belm e So Luiz com 10 mil moradores. Fonte: www.brasil.gov.br, retirado em 04 de Agosto de 2007
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http://www.brasil.gov.br/
para se abrigar aps a decadncia do ciclo do ouro e da Abolio da Escravatura. No
entanto, as formas de apropriao da terra por negros que passaram a constituir os
quilombos contemporneos ao qual se baseia a atual legislao, envolvem diversos
meios, entre eles, doaes, heranas, ocupaes de terras devolutas, compra de terras,
como veremos a seguir.
1.1.1.Formao de Terras de Preto
Mesmo na condio de escravos o sistema propiciava acordos e ocupaes aos
negros que possibilitariam a arrecadao de peclio suficiente para a compra de
alforria, bem como para a compra de terras, comrcio, entre outros. Existiam diversas
formas de relao entre o senhor, o escravo e a terra que vo desde fugas de fazendas
escravistas, confronto armado, compra de terras, doaes ou ocupaes, herana,
recebimento de terras como pagamento de servios prestados ao Estado, simples
permanncia nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes
propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigncia do sistema
escravocrata quanto aps sua extino.
Havia, entre outros, a possibilidade de grupos negros permanecerem nas
grandes propriedades devido miscigenao com os proprietrios, ou seja, laos
consangneos com o senhor de escravos que orientavam a permanncia nas terras,
mesmo que no fosse legitimada pelo senhor. Esses filhos de senhores e escravas,
muitas vezes eram alforriados durante os batizados, outras vezes ficavam escravos o
resto da vida.
Durante a colonizao de Gois ocorreram srios momentos de recesso
econmica, inaugurados pela decadncia do ouro em Gois. Como o mercado no
absorvia escravos ou estes se tornavam um peso, os senhores passavam a considerar
novas alternativas que possibilitavam ao negro a conquista de sua alforria e a
possibilidade de ocupao de terras.
Havia um direito costumeiro de o escravo se alforriar mediante apresentao de
seu valor, a esperana na manumisso23 central ao sistema, e complementar aos
castigos e violncia fsica usados contra os escravos, mas essa esperana era de tal
23 Sinnimo de alforria.
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modo construda que passava pela dependncia pessoal do senhor. A venda da alforria
ao negro repercutia em entrada de renda para o senhor falido, uma oportunidade para
ele de reaver seu capital. Mas ainda havia outra forma, eles tambm podiam conseguir
sua alforria mediante um acordo condicional, onde se trocava anos de servio pela
liberdade, ou at a morte do senhor.
Os escravos exerciam atividades econmicas paralelas servido. Segundo
Cunha (1985), no Brasil, coexistindo com a escravido, havia trs outras formas de
trabalho dependente, que pode ser identificado tambm no Estado de Gois: os
agregados ou moradores, que recebiam um lote de terra e proteo em troca de pequena
parcela da colheita, geralmente de sua cultura de subsistncia, e de proverem servios
pessoais que incluam a defesa do senhor, havia a variao do chamado morador de
condio que trabalhava alguns dias por semana para o senhor; o segundo tipo era
constitudo pelos assalariados e diaristas, sendo os mais numerosos os no qualificados
e sazonais, com paga diria; o terceiro tipo, era constitudo pelos parceiros ou
arrendatrios, que recebiam um lote de terra e s vezes as mudas para a primeira safra
em troca de plantarem, cultivarem, colherem e transportarem os produtos, e pagarem
metade da prpria safra ao proprietrio das terras. Essa ltima, era a mais prspera e
empregava certo nmero de escravos. Essa dependncia era mais comum nas culturas
de cana do que de algodo ou fumo, nas regies do caf os libertos parecem ter-se
estabelecido nas vilas ou em terras de cultivo mais difcil, perifricas s grandes
fazendas.
Segundo Cunha (op. cit.), o padro era que desenvolvessem uma agricultura de
subsistncia ou de mantimentos para o abastecimento das cidades, enquanto que as
fazendas e engenhos estavam voltados para a produo de bens de exportao. Assim,
no Brasil todo abastecimento das cidades dependia desses pequenos agricultores, na
maioria libertos.
Quanto agricultura, s tenho a dizer em termos diretos que os estoques principais de farinha, de feijo e de milho com que se aprovisionam as cidades, so cultivados por pessoas livres de cor, estabelecidas por todo o pas,onde o acaso ou a inclinao de melhor ou pior aparncia, segundo a diligncia ou a capacidade de seus donos, e a cada um desses lugares ligado um pedao de terra para o trabalho de um ou dois homens. As terras pertencem sobretudo aos grandes agricultores e so alugadas s classes inferiores de pessoas a baixo preo. As grandes lavouras dedicam-se ao acar e ao algodo e raramente cultivam mais mandioca (o po desta terra) ou feijo do que necessrio para o consumo dos escravos (KOSTER, apud: Cunha, 1985, p.65).
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A venda desses produtos proporcionava ao negro a obteno de capital para
compra de sua alforria. Em Cavalcante, esse tipo de categoria de trabalho era muito
exercida, visto que as principais atividades em diferentes perodos estavam voltadas
exportao, seja de ouro, monocultura ou gado, as atividades paralelas, como a
produo de bens de consumo no eram significativas ou pelo menos suficientes para
abastecer a rea urbana, o que proporcionava aos pequenos agricultores negros
obteno de renda.
At os dias atuais, o abastecimento de itens da roa24 em Cavalcante ocorre pela
importao desses produtos de regies vizinhas. Existe relatos de que os gros e
produtos Kalunga no passado eram comercializados e bem aceitos, especialmente a
farinha e gros25, no entanto, nos dias atuais h a competio com produtos
industrializados, alm de ter ocorrido uma queda drstica na produo devido ao
aumento dos perodos de seca, empobrecimento do solo, invaso das melhores terras
por fazendeiros, entre outros.
Alm dessas categorias, existiam os escravos de ganho, que realizavam tarefas
remuneradas, entregando ao senhor uma quota diria do pagamento recebido. As
principais atividades a que se dedicavam eram as de carregadores, doceiras e pequenos
consertos, alguns senhores induziam