“Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de...

16
14 a 27 de Abril de 2014 | Nº 54 | Ano 3 Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00 Denominador do Huambo na pena de Pichel de Lukoko PÁG. 5 LETRAS A Bicha e a Fila de Manuel Rui e Marco Guimarães PÁG. 2 ECO DE ANGOLA OS LIVROS E A EXALTAÇÃO À PAZ EM SAURIMO PÁG. 9 ARTES Bonga O semba é maneira filosófica de estar PÁG. 13 HISTÓRIA Adolfo Maria “ANGOLA Sonho e Pesadelo” “Wambu Kalunga em elegia” PÁG. 4 LETRAS

Transcript of “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de...

Page 1: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

14 a 27 de Abril de 2014 | Nº 54 | Ano 3 Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00

Denominador do Huambo na pena de Pichel de Lukoko

PÁG. 5LETRAS

A Bicha e a Fila de Manuel Rui e Marco Guimarães

PÁG. 2ECO DE ANGOLA

OS LIVROS E A EXALTAÇÃOÀ PAZ EM SAURIMO

PÁG. 9ARTES

Bonga

O semba é maneira filosófica de estar

PÁG. 13HISTÓRIA

Adolfo Maria

“ANGOLA Sonho e Pesadelo”

“Wambu Kalunga em elegia”PÁG. 4LETRAS

Page 2: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

2 | ECO DE ANGOLA 14 a 27 de Abril de 2014 | Cultura

Saurimo, 04 de Abril de 2014. A cidadeestá com um movimento desigual. Corosde igrejas (reconhecidas ou não pelo Mi-nistério da Cultura) atravessam as ruas dacidade de canto a canto. Há chuva, masninguém arreda pé. O destino é o Estádiodas Mangueiras onde decorre o culto ecu-ménico emsaudação e oração pelos 12anos do calar das armas. Cândida Narciso,a governadora e o seu elenco, altas paten-tes militares e sua praça, comandante dapolícia e representantes dos seus diversosramos, jovens, crianças (que aproveitam ocontacto com a relva sintética, enquanto oculto não começa), todos os angolanos re-sidentes na Lunda Sul representados noculto multi-denominacional .Cantaram os coros seleccionados. Che-gou a chuva, mas de pouca dura. Os kim-banguistas decidem enfrentar os dois mi-nutos de chuvisco e inundam o estádio como som das suas cornetas. O ambiente se re-faz. Na verdade, ninguém saiu do estádio.Foi apenas um recuo estratégico das banca-das para a parte coberta do campo de fute-bol. O culto retoma. Um pastor faz a prega-ção da "palavra" e o conteúdo é sobre "asvantagens de viver em paz". Faz-se a oraçãoe o protocolo recolhe as ofertas. A governa-dora dirige-se ao altar e faz apelo à necessi-dade de se preservar a paz, duramente con-seguida, com sangue e sacrifício…– Olhemos à nossa volta e comparemoscom o que éramos e tínhamos há doze anos,

antes da paz. – Solicitou a governante.Chegam os murmúrios voluntários, emjeito de resposta, cada um no seu lugar.A resposta era comum e evidente.– Muita coisa mudou para melhor. Hámuitos ganhos… Respondemos todos,sem coação.– Então, temos de preservá-la. Temosde multiplicá-la. Temos de expandi-la.– Voltou a apelar Cândida Narciso.No seu canto, atento, no verso do convi-te, o cronista apontava: “Mulheres e mili-tares, os que mais sofreram na carne osefeitos da guerra, estão grandemente re-presentados. Ainda bem que todos os an-golanos percorrem o dicionário para apa-gar (para sempre) a palavra guerra que le-vou muitos de nós a "partir londango porcausa do lukango” [1]. De Kabinda ao Ku-nene e do Lopito ao Lwaw, uma só país emPAZ. “Tri-ti-ti” [2] nunca mais, e que a PAZdo Senhor esteja e permaneça connoscopara todo o sempre!” Dissipadas as nu-vens chuvosas, quando era já o sol quemgovernava sobre o azul celeste, terminouo culto e todos os caminhos iam desembo-car no Largo 1º de Maio, centro de Sauri-mo, onde uma equipa procedente deLuanda promovia o festival da PAZ.Produção agro-pecuária, com produtosalimentares e animais; produção culturalcom dança Cyanda, música ao vivo e de dis-coteca, artesanato, escultura, e literatura;brinquedos vários para entreter os meni-nos que, por três dias, desfrutaram de umcarrossel. Tudo isso movimentou o largoque se tornou pequeno durante três dias.

Paz com livrosDias antes, a minha caixa de correioelectrónico alertava: “Convite para expo-sição de livros na feira de paz em Saurimo.Estás pronto”? A minha resposta foi ime-diata. Os “11 clássicos” reeditados peloGrecima e que andam à venda por kz.500,00. Aos 11 clássicos juntaram outrosficcionistas, dentre eles eu, e lá fiquei au-tografando para mais de sessenta pessoasem apenas uma tarde.– Agrada-me o crescimento do interes-se dos saurimuenses pela literatura. Foimuito bom autografar 60 livros em umatarde, numa cidade onde os hábitos de lei-tura começam a ser resgatados. – Expli-quei, satisfeito, à reportagem da TPA. Os leitores, muitos deles políticos, fun-cionários da administração do Estado eestudantes universitários, perguntaram

também por dicionários e gramáticas, li-vros que nas aulas de Língua Portuguesarecomendo sempre para comprarem e ler.Infelizmente não havia, mas quem sabe dapróxima se contactem também editoraspara se juntarem ao Projecto de IniciativaPresidencial, o Leia Angola?!__________________[1] Expressão em umbundo equivalente a:

partir os maxilares por causa da mastigação demilho torrado. Um retrato dos tempos árduos dafome causada pela guerra (música de CapendaSalongue).

[2]Passagem da música de Viñi Viñi, finadomúsico do planalto central angolano. Tri-ti-ti,por onomatopeia, é o som das ajadas de balas. Omesmo que guerra!

Soberano Canhanga

OS LIVROS E A EXALTAÇÃO À PAZ EM SAURIMO

Page 3: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

Eco dE AngolA | 3Cultura | 14 a 27 de Abril de 2014

Está postada desde 2 de Abril de2014, na internet, com mais de 900 as-sinaturas, uma petição dirigida ao Exe-cutivo Angolano, no sentido de preser-var um dos edifícios mais emblemáti-cos da cidade capital e que transcreve-mos na íntegra.O edifício do largo Matadi (ex-Tristão daCunha) é, como sabem aqueles que o fre-quentam, o maior ponto cultural da cidade.

Aquela informalidade e disponibilidadepara o outro, sem que seja o dinheiro a co-mandar a natureza das relações, represen-tando uma certa baixa de Luanda, de mis-tura sociocultural, de experimentação e demodernidade, entre o local e o global, comangolanos e estrangeiros, é praticamentesó ali que acontece. A convivência de doistipos de arquitectura é um marco da histó-ria da cidade, os vestígios de outros tem-pos lado a lado com o ritmo acelerado de

uma cidade frenética, também ali estãobem representados. Não nos faltam justi-ficativas para a preservação e valorizaçãodo Elinga.Construído por portugueses no séculoXIX, foi Colégio das Beiras nos anos 40,catalogado por despacho como “teste-munho histórico do passado colonial” emonumento histórico, em 1981, vindodepois a ser desclassificado pelo Ministé-rio da Cultura em Abril de 2012. O último

período – desde que nasceu formalmenteo Elinga Teatro, a quem foi cedida a ges-tão do espaço, até este desfecho enquan-to projecto imobiliário Elipark, entreparque de estacionamento, escritórios ehotel – dá continuidade à vida agitada doedifício. Pelo meio, antes da especulaçãoimobiliária vencer, decorreram quasedez anos de negociações e discussões so-bre a requalificação desse conjunto ar-quitectónico. “Uma morte anunciada masmal gerida”, como diz o actor Orlando Sér-gio ao Rede Angola.De vários lados vieram alertas e lamen-tos a esta perda, inclusive da imprensa in-ternacional. “Este centro da cultura angola-na, berço de artistas contestatários, vai de-saparecer em breve, com as suas paredescor-de-rosa reduzidas a entulho, esmaga-das pelos bulldozers e conhecer, assim, omesmo destino de tantas casas antigas docentro da capital angolana, entregue aospromotores imobiliários atraídos pelasfragrâncias do ouro negro do segundo pro-dutor de petróleo da África subsariana. E,no entanto, o teatro tinha todas as condi-ções para escapar a este destino funesto.”Escreve Christophe Châtelot no jornal LeMonde a 30 de Agosto do ano passado.[http://www.avaaz.org/po/petition/Gover-

no_de_Angola_Proibam_a_demolicao_do_Elin-gaTeatro/?cSznagb]

Petição ao Governo de AngolaProíbam a demolição do Elinga Teatro

A Contemporaneidade Factual

Edifício Elinga Teatro

Palmira Tjipilica

Ucrânia, parece não nos preocupar mini-mamente, por ser um problema dos ou-tros que rigorosamente nada têm a vercom a África, ou melhor ainda, com aUnião Africana. Podemos estar ligeira-mente confiantes, mas na verdade da “al-deia comum”, a ser consequente, tudo oque acontece a um país, pode ser um ras-tilho para o resto do planeta, especial-mente quando se trata de conflitos queenvolvam potências nacionais da Europa.Os cuidados que se colocam nas posiçõesdos grandes dos G8, sugerem que a pacifi-cação dos factos que sendo aparente-mente particulares do povo ucraniano,podem evoluir para um conflito degrandes dimensões, que não deseja-mos ver repetir, dado que da 2ª GuerraMundial a esta parte, a tecnologia de ma-teriais letais está sofisticadamente avan-çada e uma pequena impaciência, ou faltade comunicação de uma das partes envol-vidas, pode resultar em factos de conse-quências imprevisíveis.

A vida social, cultural e política dosnossos dias passa necessariamente pelamoda factual que encontra um bom res-paldo nas tecnologias de informação. Amaior parte dos letrados e não letrados ea cada um a seu nível e mundo de interes-ses, bebe das imagens e dos factos, umaboa parte da informação que se digere deacordo com os códigos de conduta e de va-lores adquiridos quer na infância, quer navida adulta, em que o motor educação é namaior parte dos casos, uma alavanca paraa transformação dos factos em história. Ahistória económica dos nossos dias, não émais que uma repetição de dados avança-dos desde que o homem começou a contaras primeiras pedrinhas e moedas de trocaao número de mulheres e filhos que for-mam grupos de famílias, tribos e, de for-ma mais alargada, da própria etnia e po-pulação de forma controlada de acordocom técnicas apropriadas de controle deindivíduos que compõe um Estado ou umaNação, tornando os respectivos habitan-tes, donos dos factos e acontecimentosque podem ir além do devido espaço geo-gráfico através da emigração, facto quepreocupa a maior parte dos países e Esta-dos mais vulneráveis pela componentetransfronteiriça que apesar de envidar es-forços no sentido da inversão e controle

dos indivíduos que em grupo ou não, searriscam a atravessar fronteiras terres-tres, marítimas e aéreas, à procura de me-lhor sorte ou destino, quais aves de arriba-ção sem regresso, tal como a natureza do-tou as andorinhas que se deslocam movi-dos pela força sazonal. Se é verdade que aemigração mais do que nunca, actualmen-te se tornou num desafio difícil de parar ede controlar, não é menos verdade que acomunicação social privilegiada em serfactual e aprimorada em dar a conhe-cer novos mundos ao Mundo e cultu-ras de diferentes espaços geográficose economias pela força da comuni-cação, tem necessariamente opoder de gerir os factos do ac-tual mundo global, que tei-ma em apostar nas dife-renças, ao contrário daigualdade que se pre-tende com a filosofiada “aldeia comum”.Há coisas que noslevam a pensar quecertos acontecimentos podem ser banais,quando não se transformam em factosque nos levam a construir monumentosde crenças, com base na nossa cultura enos nossos valores que orientam certosinteresses. Por exemplo, a questão da

Page 4: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

4 | LETRAS 14 a 27 de Abril de 2014 | Cultura

“Wambu Kalunga em elegia”Denominador do Huambona pena de Pichel de LukokoJosé Luís Mendonça (no Huambo)

Cem anos depois da paz colo-nial, forjada pela submissãodos povos autóctones do Pla-

nalto Central de Angola, o país conquis-tava, pelo calar das armas, a paz da re-conciliação na independência, a 4 deAbril de 2002. Doze anos passados, o 4de Abril foi a ocasião escolhida por Pi-chel de Lukoko, etnólogo, historiador epesquisador da tradição oral, paraapresentar a público o retrato literáriodo rei cuja autoridade perdurou pelasembalas e sobados que hoje integram aprovíncia do Huambo e à qual legou oseu nome para a posteridade. A obra“Wambu Kalunga em Elegia” era assimapresentada às centenas de jovens e ci-dadãos presentes no Pavilhão Multiu-sos Osvaldo Serra Van-Dúnem, na cida-de do Huambo, no quadro das come-morações do Dia da Paz, um acto orga-nizado pela direcção provincial da Cul-tura e pela Editora Australivros, emparceria com a Brigada Jovem de Lite-ratura do Huambo que levou ao palcouma mão cheia de poetas.

A obraVenceslau Cassessa, historiador, fez, deseguida, a apresentação da obra. Esta, dis-se Cassessa, integra três pensamentosfundamentais:1. O Huambo e as suas gentes que, em1902, travaram uma grande guerra contraa ocupação colonial. O desnível do mate-rial bélico, a favor dos portugueses, ditoua derrota dos nativos que, apesar de venci-dos, nunca foram convencidos.2. Wambu Kalunga foi um personagemmuito importante na região do Planalto

Central. A sintética narrativa situa a suaacção no século XVII, quando o caçadorWambu Kalunga saiu das terras do Sumbee aportou ao planalto do Moko. Ali despo-sou a filha do soba local, adquirindo assimtambém o título de soba, com a responsa-bilidade da administração do local que vi-ria a dar nome à cidade. Wambu era umgovernante impenitente, “cruel para osseus sobas de atumbu atito, com manifes-tos apetites canibalescos”. Foi morto pelosseus acompanhantes no dia em que se di-rigiu ao Etambu (tabernáculo tradicional)para exumar o cadáver do primo que jul-gava morto e retirar-lhe as ossadas do crâ-neo. 3. A parte final do livro integra uma ele-gia, com versos de triste memória, escri-tos pelo autor para elevação da figura dosoma Kalunga. Apesar de ser uma figuratétrica, este é um lamento aos antepassa-dos para que concedam um lugar na glóriade Deus a Wambo Kalunga. Um reparo a fazer, desde já, é a irregularcomposição gráfica da obra, com páginasalternando o tipo e corpo de letra.Paulo Santos, da Australivros, a editorada obra, mencionou, de seguida, “ um pro-blema a partilhar: a má preparação, o pou-co conhecimento que as nossas criançaspossuem. Escritores, não escritores, alu-nos, professores, estamos todos a escrevere a falar mal a língua portuguesa. E não es-tamos a fazer muito esforço para melho-rar”, esclareceu o editor de várias obras nasua maioria escritas pela nova geração.“O livro do mais velho pio Chiwale temmuito mérito. Vem colocar um pilar muitoimportante no conhecimento do que é An-gola. Porque é que o Huambo se chama

Huambo. A história dos reinos da regiãodo Centro de Angola. São matérias queprecisam de ser escritas pelos mais ve-lhos, para que não desapareça este conhe-cimento”, concluiu Santos, com esta máxi-ma dirigida aos jovens presentes: “é preci-so ler, antes de escrever.”Alegre colheitaO autor da obra disse, a abrir, um pro-

vérbio: “quem semeia com dor, colhe comalegria. Completei um ciclo. Veni, vidi, vinci(cheguei, vi e venci). Venci por causa daAustralivros, da direcção da Cultura e detodos os presentes. Com o desejo de que arealidade do nosso povo seja conhecida. Apartir de Olusapo até às lendas e narrati-vas, canções, tudo tem de ser escrito”, ape-lou o escritor, naquele fim de tarde de chu-va planáltica.

Pichel de Lukoko no centro ladeado por V. Casseque e Paulo Santos (de boné)

Pichel de Lukoko e o apresentador Venceslau Casseque

Pichel de Lukoko

Page 5: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

LETRAS| 5Cultura | 14 a 27 de Abril de 2014

"A Bicha e a Fila", o novo romance deManuel Rui, escrito em co-autoria como brasileiro Marco Guimarães, foiapresentado em Luanda, a 3 de Abril,no auditório Pepetela do Centro Cultu-ral Português (CCP). O livro conta coma chancela editorial da União dos Es-critores Angolanos.A anfitriã, Teresa Mateus, directorado CCP, protagonizou com Manuel Ruiuma performance dramático-decla-matória baseada no poema inédito"Face a face", escrito por MR ainda aotempo em que, na década de 1970, es-tava sob residência vigiada pela PIDEem Coimbra, Portugal."A minha homenagem ao mestre,poeta, escritor, ao homem e amigo,que declinou honrarias e pedestais pa-ra manter intacta a liberdade de olharo mundo em toda a sua nudez, semnunca descurar a sua pureza", diria Te-resa Mateus.A ideia de escrever "A Bicha e a Fila" aquatro mãos, segundo Manuel Rui, nas-ceu de um encontro com Marco Guima-rães no Brasil e se foi consolidando comcada um deles a escrever capítulos al-ternados. MR fez outra revelação: o per-sonagem doutor Miguel teve como

modelo real o médico angolano, já fale-cido, Carlos Alberto Mac-Mahon."O livro não é muito de humor, émais chaplinesco. A comédia cruzasempre com a tragédia. [...] Quando hátragédia a gente pode dançar, chorar erir ao mesmo tempo", explicou o co-autor, para quem "bicha" significa umconjunto de pessoas "posicionadaspor ordem de chegada com vista a ob-tenção de um resultado".Esse conceito semântico angolanode "bicha", referiu, é totalmente dife-rente do conceito brasileiro de "fila",que "é mais abrangente", pois podealudir, por exemplo, às cadeiras ali-nhadas de uma sala de cinema.Mais de uma vez MR fez alusão aocontexto histórico e sociológico dasbichas em Angola, surgidas num tem-po em que "nós importávamos esqui-zofrenias de Leste, que felizmente sedesgastaram".Concretamente, explicou que "as bi-chas surgiram num contexto de abso-luta falta de quadros, meios, indústriae num clima de guerra, em que era pre-ciso resolver os problemas da comida ede sustento das pessoas que estavamaqui em Luanda, principalmente".Indo mais longe, sublinhou: "A juven-tude não se vai lembrar que houve umaaltura em que nós, o MPLA, estávamos

cercados por todos os lados. O Ociden-te, esta Europa toda de que se fala ago-ra, os EUA e inclusive a China, eram to-dos contra nós. Estávamos reduzidos aum contexto de derrota e conseguimosganhar".O acto de lançamento de "A Bicha e aFila" acabou por ser uma ocasião decelebração das palavras, que, quandoditas por Manuel Rui, ganham novascintilações. No fim, ficou a promessade Carmo Neto, de que o livro "A Cai-xa", de MR, completamente esgotadono mercado, está na bicha das obras aserem reeditadas pela UEA.As lojas do povo e as filas dos praze-res Carmo Neto, secretário-geral daUEA, encarregou-se da apresentação,entremeando a sua dissertação com aleitura de trechos da obra.“Miguel e Manuel escrevem “A bi-cha e a Fila e o bicheiro”, a distânciasintercontinentais: Angola, Brasil, Por-tugal e França. A acção vai evoluindocom as tecnologias de informação ecomunicação: datilografam, escre-viam em máquinas Remington ou Oli-vetti, método preferido por Manuel. Oaparelho, de antiquário, dava ao Ma-nuel uma verdadeira fruição da escrita– a ele, que era “um doente por velha-rias”. As cartas para elaboração dos

textos do romance eram enviadas porcorreio, de avião, pelo amigo tripulan-te Ari, mais tarde por fax e, finalmentepor correio eletrónico. Já o Miguel ti-nha melhores condições de trabalho,usufruía do DDI (ligações telefónicasdirectas), telefone computador e tinhauma professora particular de informá-tica, Yara, que veio a ser sua namorada. Manuel Rui, figura incontornáveldas letras angolanas, (...) autor do Hi-no Nacional de Angola (...). Ensaísta,cronista, dramaturgo, poeta, escritor ecrítico literário, habitua-nos, nas suasobras, à ironia, comédia e humor so-bre o que ocorreu após a independên-cia de Angola.(...) De nacionalidade brasileira eportuguesa, Marco Guimarães é pós-graduado em Medicina e tem forma-ção em várias áreas: Astronomia, Físi-ca, Fisioterapia e Veterinária. Cronis-ta, escritor, professor universitário.Escreveu o seu primeiro romance, “Deescritores, fantasmas e mortos”, sob opseudónimo de Paul Lodd. O seu se-gundo romance, “Meu pseudónimo eeu”, foi nomeado como um dos 20 fina-listas do Prémio Portugal Telecom deLiteratura, 2012. (...)No romance “A Bicha e a Fila”, os es-critores revelam Angola dos meadosda década de 70 e anos 80.

Isaquiel Cori

Romance de Manuel Rui e Marco Guimarães

"A Bicha e a Fila" ou o texto e o contexto

Page 6: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

6| LETRAS 14 a 27 de Abril de 2014 | CulturaNessa época, as bichas em Angolaeram efectuadas em frente das lojas dopovo, supermercados, depósitos depão, peixaria, talhos, e em hospitais,para marcar uma consulta. As bichaseram a salvação de rendimentos econó-micos para a maioria da população dacidade de Angola e no país Angola, en-frentava-se muita confusão, faz sentido,admitir que a bicha ao mesmo tempoque dava alguma ordem aos utentes emdelírio que esperavam para ser atendi-dos, trazia também grande ansiedade,pois muitas vezes acontecia que os fun-cionários vinham anunciar, depois de osbeneficiários terem esperado muito

tempo, na bicha para aquisição dosbens alimentares, vestuários e/ou elec-trodomésticos, que já não havia alimen-tos, que já tinha acabado tudo!... Haviatambém os bicheiros, indivíduos queocupavam, em vez de outros, o respecti-vo lugar nas bichas, e vendiam os luga-res, faziam uma fortuna com o negócio.(...) O sector informal da economia tor-nou-se, mais do que nunca, um espaço desobrevivência para a grande maioria dapopulação. Os negociantes compravamvários cartões, adquiriam várias gradesde cervejas estrangeiras, vendiam e ad-quiriam um bilhete de passagem para oestrangeiro, preferencialmente Portugal,

para depois passarem dali a outros paí-ses europeus ou no continente america-no. Em Portugal ou América, sobretudo oBrasil onde encontravam a fila dos praze-res, em três categorias: fila dos prazeresabsolutos, que é aquela em que esperacom satisfação, para admirar uma obrade arte; fila dos prazeres relativos, re-lacionada com a espera no motel, ondese correm riscos em prazeres maso-quistas; as filas neutras: essa, Miguelrelaciona-as com a fila que a sua filhaenfrentará em Lisboa, para conse-guir receber o título de pós-gradua-ção; as filas das crianças miseráveis,relacionadas com as crianças que

passam fome. No entrelaçar do cená-rio, neste romance os autores descre-vem e relacionam que as filas maisdecentes eram as filas da Comunhão,para receber a Hóstia. A narrativaconcretiza-se, como ficção extrema-mente bem realizada, a reproduçãode um momento cultural de incon-testável importância para o desen-volvimento da história de Angola. Manuel Rui inspirando-se na socie-dade que vivia uma situação de adap-tação com a vida, cria uma riqueza in-confundível nas suas obras, faz pontede uma trajectória, pelo meio, de umalinguagem singela, típica da nova lite-ratura africana e um sentido de hu-mor refinado, muito eficaz, que leva oleitor de um sorriso permanente até àrisada inconveniente, cinjamo-nos osexemplos -, “bicha, bicheiro, fila e bi-cho para vocês, brasileiros, bicha é oque aposentou o apêndice frontal (pé-nis) e passou a usar a parte traseira(ânus), nas trepadas, não é mesmo?(…) Bicha no Brasil é o paneleiro paranós em Portugal, e tu bem o sabes. (…)Fernando, deixa o Lino prosear umpouco sobre os paneleiros portugue-ses ou bichas brasileiras.” (Rui e Gui-marães, 2013: p. 25).”As suas obrassuscitam grande interesse do público-leitor, entretanto, aborda a trama emanálise sintetizada e sociológica o re-trato realista da urbe brasileira, por-tuguesa especificamente angolana,feita de ironia e sátira, mas uma ironiasubtil.” Com esta subtileza sarcásticade M. Rui terminou a apresentação deCarmo Neto.

A Mediateca de Benguela acolheu, a3 de Abril, a cerimónia de lançamentodo mais recente livro de poemas da au-toria de Isabel Ferreira, intitulado “OLeito do Silêncio”, comercializado aopreço de 3 mil kwanzas. Cerca de meiacentena de almas assistiram ao acto,co-organizado pela Rádio Benguela e oMovimento Lev’Arte.Ao tomar a palavra, o docente e his-toriador Tuca Manuel, que cuidou deapresentar a obra literária, sublinhoutratar-se de uma autora a retratar asua vivência e a de sua gente, mas semser com uma voz de soberba, portantolonge de alguém que se coloca no pa-pel de subalternizar os demais em fun-ção das suas habilidades.“O Leito do Silêncio”, título da obra,foi interpretado pelo director provin-cial da Cultura, Mário Kajibanga, como

sendo um pau de dois bicos. “Por umlado, podemos ver o conselho de nãolevarmos a público coisas que aconte-cem na intimidade do lar. Por outro,podíamos dizer que é a falta de parti-lha de coisas boas que pode levar aviolências. Porquê calar, se podemospartilhar coisas boas?”, completou.Entre as curiosidades, elogios equestões da plateia, Isabel Ferreiraviu-se obrigada a justificar o preço dolivro, considerado muito caro para omercado livreiro benguelense. “Eucostumo dizer que sou uma zungueirados meus livros, como chamo os escri-tores que cuidam da distribuição desuas obras, com toda a maçada que is-so implica”, referiu, para adiante reto-mar o chavão segundo o qual “a artenunca é cara”.Ainda no que se refere às vendas, aautora aproveitou o ensejo para agra-decer ao Governo Provincial de Ben-guela, por ter adquirido já uma cente-na de exemplares. Na sua qualidade deanfitrião, o director da Mediateca,Leonardo Pedro, tranquilizou aquelesque não conseguiram custear a obra,uma vez que a sua instituição vai ad-quirir exemplares para os colocar àdisposição dos leitores que frequen-tam a Mediateca.

Com 75 páginas, “O Leito do Silên-cio” tem a chancela da embrionáriaEdições Kujiza Kuami, com sede na ca-pital do país, onde o livro foi tambémlançado recentemente.Isabel Ferreira nasceu em Luandaem 1958. Viria a partir para Portugalem 2002 em busca de formação. Émembro da União dos Escritores An-golanos, da Ordem dos Advogados deAngola, da União Nacional dos Artistase Compositores, bem como da Socie-dade Portuguesa de Autores. Publicouos livros "Laços de Amor", "CaminhosLedos", "Nirvana", "À Margem das

Palavras Nuas", "Fernando D'Aqui", "OGuardador de Memórias" e "O CoelhoConselheiro, Matreiro e Outros ContosQue Eu Te Conto".Isabel Ferreira lança em Benguela "O Leito do Silêncio"

Carmo Neto, Teresa Mateus e Manuel Rui

Gociante Patissa

Page 7: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

Como se prevê o leitor-modelo n´A La-goa Encantada? A questão que dá título a este texto nãopode ser respondida sem antes sabermosque se trata de uma obra literária infantil.Nada mais justo e adequado do que ana-lisar uma obra, começando pela pertinên-cia do seu título. Com isto concorda Eco(1984:10), que afirma que um título cons-titui desde logo uma chave interpretativa;e tal como na sua explicação, não podemosfugir ao poder de sugestão emanado do tí-tulo da obra que nos chega já premiada.A Lagoa Misteriosa da nossa já consa-grada Maria Celestina Fernandes é um títu-lo que tem muito da nossa ficção e apontajá para o enredo. Embora o nosso leitor já esteja habitua-do a narrativas como esta, que remetempara lendas e contos da nossa tradiçãooral, como confirma, na obra Sunguilandode Óscar Ribas, o conto O Peixarrão ou ain-da a lenda da Lagoa do Feitiço, situada nomunicípio de Dange-Quitexe, a autora afir-ma, no paratexto, que “é uma história fan-tasiosa, inspirada numa visita à cidademarroquina de Marráquexe – cuja belezasingular me encantou verdadeiramente – eum mito que gira em torno de uma lagoaangolana” (pág.4). Talvez essa seja tam-bém a justificação para o facto da obra lem-brar ao leitor a História de Beder, Príncipeda Pérsia e de Giauhare, Princesa do Reinode Samandal das Mil e Uma Noites, sem es-quecer a tão evidente história A Bela Ador-mecida; nisso a obra tem a sua transcen-dência textual, ainda que nisso perca umpouco de nosso pelo espaço onde decorre aacção, que define as características físicasdos personagens, como se representa nasilustrações. “Ela respirava normalmente emantinha-se bela e serena, parecia a BelaAdormecida.” (pág.42)Importa, para se confirmar que de lite-ratura infantil se trata, aplicarmos o con-ceito de Cagneti (1996:7), segundo o qual

literatura infantil é “a arte ou fenómeno decriatividade que representa o mundo, ohomem, a vida, através da palavra e fundeos sonhos e a vida prática, o imaginário e oreal, os ideais e a sua possível/impossívelrealização”, que é permitido pelo universoficcional. Para Coelho (1991), a criança dos3 aos 6 anos está na fase mágica, interes-sando-se pelo “faz de conta” e a expectativade tudo se resolver por simples toques má-gicos. É o tempo do interesse por históriasmaravilhosas.Assim percebemos, na página 22, um re-curso já muito conhecido na nossa literatu-ra de tradição oral para o toque de mágica:“Três kalubungo, três kalubungo” Ora, o texto desta obra não permiteconstruir o significado do texto em confor-midade com a convenção de congruênciados factos, isto é, a convenção F, referidapor Schmidt (1982:49-50, apud Aguiar eSilva 2008:90). É de crer que quem lê ououve este conto é levado para o universoficcional, o que pressupõe estarmos dianteda convenção E, que nos permite suspen-der, voluntariamente, a capacidade de in-credulidade, pois por meio dela se mani-festa o universo ficcional. Esta última con-venção é de tal modo própria do texto lite-rário, que o torna diverso do texto não lite-rário. Assim confirmamos quando lemos oterceiro parágrafo da página 5: “Na lagoa misteriosa só podiam entraros reis e apenas durante a fase da lua nova.Era uma regra que vinha passando de gera-ções para gerações. Às outras pessoas nemsequer era permitido passar muito perto e,caso se atrevessem a mergulhar nela, eramamaldiçoadas e desapareciam.”Se nos questionássemos se A Lagoa Mis-teriosa de Maria Celestina Fernandes éuma obra literária ou não, certamente, nãose adequaria à justiça da grandeza do no-

me da autora, que até é, sobejamente, umdos mais sonantes da literatura infantil fei-ta no nosso país.Podemos afirmar, como explica Reis(2008:169), que o texto desta obra é o re-sultado articulado, coerentemente estrutu-rado da enunciação da linguagem literária,com características como: ficcionalidade,coerência, pluristatificação e intertextuali-dade, como foi possível verificar acima. É imperativo levar em conta o leitor-modelo, como aponta Eco (1983:67), queneste caso, por se tratar de literatura infan-til, é a criança ouvinte-modelo. Isso impõeum nível de língua que lhe permita com-preender o texto, visto que é a fase de ini-ciação à comunicação literária; e se a lin-guagem comum for “o inventário léxico efraseológico referente aos conceitos co-nhecidos, em princípio, por todos e cadaum dos membros de uma comunidade ex-tensa (mas linguisticamente homogénea)independentemente da sua profissão, doseu sexo, e até certo ponto, da sua idade(admitindo que esses indivíduos atingi-ram já um grau adiantado de desenvolvi-mento mental e cultural)”, como apontaCarvalho (1967:335), atendendo os níveisde língua, será fácil afirmarmos que nestetexto a autora pretende um nível cuidado,introduzindo palavras que podem aindaestar além da compreensão da criança. É oque se percebe quando se lê:“Naquelas alturas, esqueciam-se o pro-tocolo relacionando-se afectuosamentecomo pai e filho” (pág. 17)“Todavia, ela parecia não ter percebidoa presença do rei Fahir, pois continuou a di-vertir-se livremente e ele, extasiado, nãofazia menção de a interromper com receiode que ela sumisse.” pag. (pág. 40) “Em pouco tempo realizou-se o casamen-to. Foi uma festa faustosa e muito animada.

Nove meses depois nasceu o primeiro filho eoutros mais foram vindo.” (pág. 43)O certo é que o texto da referida obra ébem dotado de linguagem literária e atédispensa que se enuncie aqui o conceito deliteratura já tão conhecido. Por isso talvezse deva suprimir os conceitos aqui apre-sentados, mas ficaríamos sem a base parasabermos que, se a autora escreve para asnossas crianças, estará a contribuir para aconstituição da sua consciência, como ex-plica Aguiar e Silva (2008:92), em funçãoda sua competência linguística e compe-tência enciclopédica – conjunto de infor-mações sobre o mundo, pressuposiçõescomplexas, sistemas de crenças e convic-ções, etc. – competência literária, constróium esquema, um dispositivo mental queprojecta na leitura do texto. A convenção E impõe à literatura infan-til recursos estilísticos que cativem a aten-ção da criança, facilitem o passeio nas pági-nas do livro e que, principalmente, lhe per-mitam tirar uma lição do que lê e vê, pois,para a literatura infantil, importa muito ailustração das cenas. Portanto, é necessário concordarmoscom a afirmação de Bakhtin (2002), segun-do a qual a linguagem é um instrumentomediador e organizador da constituição daconsciência do sujeito; e se assim for, é im-perativo responder ao leitor que a lingua-gem nesta obra, imposta pela convenção E,já prevê o seu leitor.______________________referências Bibliográficas

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de, Teoria e

Metodologia Literárias, 1ª edição, Lisboa, Uni-

versidade Aberta, 2008BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch, (Voloshi-

nov, V. N.), Marxismo e filosofia da linguagem, 6ª

edição,Tradução: Michel Lahud e Yara Frateschi

Vieira, S. P., HUCITEC, 2002CAGNETI, Sueli de Souza, Livro que te Quero

Livre, Rio de Janeiro, Nórdica, 1996COELHO, Betty. Contar História: Uma Arte

Sem idade. São Paulo. Ed. Ática. 1991CARVALHO, Herculano de, Teoria da lingua-

gem, Coimbra, Coimbra Editora, 1983ECO, Umberto, Porquê “O Nome da Rosa”?,

Lisboa, DIFEL – Difusão Editorial, 1984ECO, Umberto, Lector in Fabula, 2ª edição,

Lisboa, Editorial Presença, 1983REIS, Carlos, O Conhecimento da Literatura –

Introdução aos Estudos Literários, 2ª edição,

Coimbra, Editora Almedina, 2008MOISÉS, Massaud, A Criação Literária – Pro-

sa I, 20ª edição, São Paulo, Editora Cultrix, 2006MOISES, Massaud, Dicionário de Termos Lite-

rários, 15ª edição, São Paulo, Editora Cultrix, 2011RIBAS, Óscar, Sunguilando, Luanda, Instituto

Nacional do Livro e do Disco, 2009SCHMIDT, Siegfried, Foundations for the Im-

pirical Studies of Literature, Hamburg, Helmut

Buske Verlag, 1982

A Convenção E e o leitord´A Lagoa EncantadaSérgio Rodrigues

Celestina Fernandes

Letras| 7Cultura | 14 a 27 de Abril de 2014

Page 8: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

8 | LETRAS 14 a 27 de Abril de 2014 | Cultura

Convergem, não se confundem: ma-dres, padres, presbíteros, bispos…Quantas vezes o comum dos mor-tais não mistura os referidos termos. Daconvergência, aqui, e diferença acolá, falaeste livro, radicado nos serviços dos cor-respondentes diocesanos da Rádio Eccle-sia e não só. Do exercício crítico e a vontadede superar as lacunas, nasceu a diligenteprodução da ferramenta: um instrumentoauxiliar do jornalista-alvo na sua missão.Poderá sempre socorrê-lo em falhas mo-mentâneas de inspiração, memória, deci-são ou determinação. Assim ser pode resumir a mais recenteobra o jornalista Siona Casimiro que, estru-turalmente, começa por recordar o lugar eo papel do correspondente na orgânica dacitada emissora e a sua linha editorial. Deseguida, destaca os potenciais pontos deinteresse do público e rememora o abece-dário da notícia de qualidade. Estampa oCódigo de Ética e Deontológico vigente.Brevemente, elucida o tema da identidadedo profissional, das fontes e encerra comum pequeno vocabulário da linguagemeclesiástica. O último aspecto alarga, sobremaneira,a utilidade do guião para todo jornalistaencarregue de tratar matérias religiosasem qualquer órgão de comunicação social.E mesmo ao largo público, na sua empatianatural para com uma profissão, de que es-pera tamanha reciprocidade em dignidadee em bem.

Daí o seu título: “Madres, Padres e De-vida Vénia – Roteiro para Corresponden-tes da Rádio Ecclésia e Jornalistas de As-suntos Religiosos”. 182 Páginas. Editadopelo Grupo Xanachel, estreante no merca-do no dia do lançamento da obra e anúnciodo seu Corpo Editorial.

O AUTOR SIONA Bole Casimiro, de 69 anos de ida-de, no limiar dos 70 cacimbos como elepróprio diz, é um cidadão angolano nasci-do em Matadi, lugar onde os pais se refu-giaram. Passou partes da sua vida até agorana RDC, Congo Brazaville, França e Angola.Cristão Católico.Há quase 50 anos que está na carreira deJornalista, tendo feito a sua formação noCentro de Formação Profissional de Paris.Em termos de órgãos passou pela ACP,ANGOP, Agência France Press e AgênciaPress.Este livro surge no contexto do seu tra-balho na Rádio Ecclésia como comentaristae membro do Conselho Editorial e sobretu-do como Formador e Editor do Jornal OApostolado.É membro e dinamizador do Sindicatodos Jornalistas Angolanos e do Misa –Angola.Esta é a sua segunda obra literária, se-gundo livro. A primeira obra intitulada Ma-quis e Arredores, Memória do Jornalismoque acompanham a luta de LibertaçãoNacional (UEA)

“Madres, Padres e a Devida Vénia” de Siona Casimiro

Roteiro para jornalistas de assuntos religiosos

Carolina Cerqueira à conversa com Siona Casimiro

Siona Casimiro no exercício da palavra (o primeiro a contar da direita)

Page 9: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

ARTES| 9Cultura | 14 a 27 de Abril de 2014 Bonga

O semba é uma maneira filosófica de estar

Matadi MakolaAmorna assumiu a alma das ilhas e ele-vou o mote do amor pelo mar e toda aidiossincrasia dos que a sentem no co-ração, criando assim a sua própria estirpe queCesária Evora elevou à escala mundial. Quanto anós, angolanos, é tempo de questionarmo-nos:quem é o sembista e o que o diferencia dasconturbadas novidades da máquina do hoje:sua visão, sua conduta, seu mister, seusideais e pragmatismo? Engana-se quem o tomar pelo ter-no, óculos de marca Prada e a exalaros mais finos aromas. Em Bongachegamos sempre à conclusãoque o menino do Marçal jamaisserá dizimado pela estrela “dosgrandes mundos” e das “euro-pas da vida”, duas carismáticas ex-pressões suas que estão em voga entreartistas da novíssima geração do semba. O es-tereótipo de atravessar o asfalto é uma condi-ção que ainda o afecta. Angola é guardada no la-do do coração que se nega à assimilação total dacultura moderna e pos-moderna. Tão logo su-biu ao palco lembrou bem ser o menino do Mar-çal e bom conhecedor das máximas em kim-bundu rebuscado que as bessanganas garbosa-mente ditavam com um muxoxo estaladiço àmistura, mas que hoje caíram naquilo que eletratou por “esquisitices”, na tentativa de classi-ficar os novos hábitos indiferentes às mais pro-fundas manifestações do ser e estar propria-mente angolanos. A invocação ao “mwangolé” ou “anangola” –também cantada pelo conjunto Nzaji, ou o meni-no das fimbas nas lagoas que o Waldemar Bastoscaracteriza com engenho e que faz eco em Carlosdo Nascimento na sua ode ao Bairro Operário,não fugiram da caracterização social que impõena sua música e na sua maneira de estar, adian-tando assim que o “semba é uma maneira filosó-fica de estar”. Talvez com isto nos esteja tambéma chamar a atenção para a consideração da pro-posição da “pinta do sembista”, que poderá seruma conduta do artista que o leve à elevação dogénero nestes tempos difíceis para o estilo deouro da Música Popular Angolana. Bonga tem essa pinta no seu toque de sem-ba de kimbundu recheado de caombo, o seuarrojo nas letras pouco maçadoras, na suaalegria imanente, na sua banga, no seu virtuo-so toque de gaita ou na sua preocupação emdar voz à dikanza e ao ngoma como instru-mentos sine qua non (proposição: a banda desemba e seus instru-mentos indispensáveis).São mais de cinco décadas atraves-sadas como músico, o que lhe deu o privilégiode atestar em jeito de brincadeira o facto dehaver a possibilidade de algumas pessoaspresentes ainda não terem sido nascidas.Afinal, o seu rebento musical apareceprecisamente em 72, quando um pouco

depois, 73, consegue o notável feito de actuar nosEstados Unidos da América, imbuído do espíritodas liberdades africanas.A sua “Água Rara” voltou a jorrar no Kilambanuma tarde calma de domingo, 6 de Abril. Lulas daPaixão, Calabeto, Yuri da Cunha e Edy Tussa ajuda-ram na festa. Aquele que nessa tarde a ministra da Cultura,Rosa Cruz e Silva, tratou com honras de soba daparada e elogiou por “estar sempre atento ao pas-sar para as outras gerações um semba de raiz”,veio cheio de ânimo e fez o Centro Recreativo Ki-lamba ganhar um jango de makotas a contarempara os kandengues estórias de máximas profun-das sobre a vida luandense. A sua voz meio rouca voltou ressonante no suces-so Mulemba Xangola, já uma vez tocado com a parti-cipação da consagrada cantora Lura numa dessassessões da alta roda da música africana no mundo. Tocou e fez dançar os sucessos “Lágrima nocanto do olho”, “Mona Ki Ngi Xika”, “Kambuá”,“Diakamdumba”. A tarde ia em declínio e o showfindava com a participação de Yuri da Cunha nosucesso “Kamakove”, nesse dia em que foi aplau-dido de pé e quase todos se sentiram obrigados adançar o seu semba tão sedutoramente angolano,soando o refrão winguééé, wingué, wingué, win-gé, wingé, wingé. O grau do preconceito dos europeus e ame-

ricanos em relação às nossas coisasSeguimo-lo então para uma pequena “conversa”a meio da sessão de fotos com admiradores. Come-çou por dizer ser muito importante destacar queaquilo que é nosso é muito mais importante do queaquilo que é do estrangeiro e que se impõe aqui pe-las transações interculturais, sendo que só aos an-golanos compete a preservação do bem cultural. “Essa coisa da imitação sistemática da coisa dooutro dá-nos a entender que a cultura do outro éque é superior. Ainda que haja uma ligação inter-nacional, não significa a permissão de uma absor-ção total do que é alheio. É preciso nos evidenciar-mos com aquilo que é nosso. Eu que moro lá forasei bem o grau do preconceito dos europeus eamericanos em relação às nossas coisas”, disse. É defensor assumido da proteção da Cultura, quedo assunto disse que corremos o risco de um dianão termos semba, kilapanga e outros ritmos da gé-nese da música angolana. “Corremos esse granderisco, se é que já não começou através dos grandestransmissores que é essa juventude pertinente, queanda um bocado distraída a fazer outras coisas comessa onda internacional e esse complexo de supe-rioridade”, alerta. Apesar de morar em Portugal, dificilmente can-ta lá. Disse ser mais fácil cantar na França, quepromoveu os nomes Mano Dibango, Salif Keita,Cesária Évora, pois há muito mais abertura. Tam-bém manifestou o desejo de ser convidado maisvezes, defendendo que o angolano deveria sermais importante em Angola do qualquer músicobrasileiro, europeu ou americano que venha aqui.

Page 10: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

10 |ARTES 14 a 27 de Abril de 2014 | CulturaTony Frampénio director do Enigma Teatro

“Ainda andamos à procura de um teatro bem conseguido”Para Frampénio, o homem do teatroé o indivíduo que consegue sem-pre sobreviver perante os desafiosdeste mundo. E anular o real sem dele se au-sentar é mais do que uma perspectiva céni-ca: é um caminho de amadurecer, encarar,chocar, conciliar emoções. Afinal, como elebem sabe reconhecer, “em tudo há semprealgo de teatral”. É optimista quanto ao desenvolvimen-to desta arte, que considera como ummovimento crescente muito confundidocom o modus vivendi das pessoas. Mas, entenderemos melhor Tony Fram-pénio, o jovem director e encenador daCompanhia Enigma Teatro, se tomarmosem consideração as posições formuladaspelos fazedores de teatro a respeito da legi-timidade artística e institucional desta arte. A propósito do 27 de Março, Dia Mun-dial do Teatro, foi dele que ouvimos estaconstatação sobre a posição atípica damaioria dos responsáveis de grupos deteatro: “Os directores assumem tudo nogrupo, e é deles que chega a depender asobrevivência do grupo. Nós ainda esta-mos à procura de um teatro bem conse-guido, pelo menos. Não temos quem for-me director, dramaturgo ou sonoplastade teatro, por exemplo. Somos ainda pu-ramente amantes. Mas não podíamos es-perar de braços cruzados. O teatro preci-sa acontecer. Usamos a oralidade e toda arealidade instantânea à volta. Foi o di-dactismo que também nos impulsionou.Que fosse empírico ou não, não podíamoscruzar os braços. Por outro lado, já quan-to à função de dramaturgo, temos proble-mas em adaptar textos porque há autoresque limitam a adaptação. “Arriscamos”para não deixar o teatro morrer. E, apesarde termos problemas de associativismo,vimos que essa insistência em existir éuma forma de defesa e de garantia dapossibilidade da presença do teatro”.

Uma solução para a gritante makada falta de salas É dos que defendem que temos alter-nativas valiosas, embora não sejam apro-veitadas. Acha que é preciso melhorar aspolíticas de trabalho. Explica: “Temosmuitas escolas com anfiteatros bons eque poderiam ser aproveitados, tantoque muitos deles estão encerrados. Eranecessário que se criasse um convénio –que já existia – entre os ministérios daCultura e da Educação. Isso poderia for-mar públicos no ciclo académico e apro-ximar o teatro à educação geral, para quepossamos colmatar esses problemas”.

E disso, Frampénio indaga que pode-mos ter uma sala com todos os requisitosuniversalmente aceites, mas, sem forma-ção, quem poderá dirigir o espaço. Con-clui que ainda não temos formação para agestão de salas culturais, e que apenas te-mos salas adaptadas mas que tambémestão muito mal cuidadas, tanto que sãoos grupos de teatro que às vezes usam es-tes espaços indevidamente, como é o ca-so flagrante da LAASP, que foi reformadano seu interior mas já apresenta cortinasrasgadas e som de péssima qualidade.PúblicosFranpénio assegura que o Teatro Ave-nida tinha os seus segredos. Lá foramapresentadas peças dignas de memória eo público se fazia presente, e até dispen-savam o suporte publicitário. Lembra asextintas rubricas Quintas de Teatro, o

Prémio Cidade de Luanda, Angola Teatro,prémio DSTV como alguns dos grandesincentivos que faziam os grupos e o pú-blico acorrerem ao local. Em comparação com o teatro de hoje,lamenta a falta de uma dinâmica assim.Entretanto, ressalta o caso do HorizonteNjinga Mbande, que conseguiu um espa-ço e se fez regular, podendo afirmar serum grupo que conquistou o seu público,garantido duas sessões com casa cheiaem espaços que só eles “ousam” actuar,como os cines Atlântico e Tropical. Existe público para o teatro? CitandoAgnela Barros, o director concorda que omotivo seja o tipo de teatro de cada gru-po. Já a explicação é a de que o teatro po-pular ainda se impõe e o público aindanão está habituado a outros tipos de tea-tro: “Não estão preparadas para o teatrorequintado”, reforça. O Elinga-Teatro é outro caso, que temassumido uma postura vanguardista, quejá tem um grupo e público dirigido. Ocontrário acontece quando outros gru-pos tentam fazer um espectáculo dessadimensão: a sala fica vazia. 4 de AbrilComo toda a gente do teatro, esperacom ansiedade as “boas novas” sobre asinstalações do Instituto Médio de Artes.A vivermos o advento da aurora social epolítica desde 4 de Abril de 2002, a cultu-ra ainda tem reagido aos estados de almapor alimentar: a sensibilidade artística afavor da reconstituição da pátria e ser an-golanos, que especificamente no teatroacontece com a vigente “escola do riso”,uma opção a que os grupos assumiramatendendo à condição do público. Isso gerou uma das grandes críticasque se atira à escolha do stand up come-

dy no nosso teatro, a de que tudo ficou

tomado como arte de fazer rir, e não pro-priamente teatro. Mas a resposta é a deque talvez isso tenha se sobreposto deforma espontânea, como resposta às fa-ses traumáticas do próprio país. O teatrooptou por falar do país e suas vicissitu-des com alegria. Este eufemismo podeser entendido como um gesto repleto degrande patriotismo e leitura contextualdo estado do Estado, que, em resumo, odirector define: “O teatro nos preparapara novas perspectivas”.Hoje o teatro já está inserido no currí-culo escolar, o que permite às crianças to-marem contacto com o teatro ainda na fa-se dos seus quatro anos. Também tem si-do meio de abertura para outras áreassociais, cuja particularidade assenta nademonstração do funcionamento dosgrupos sociais. O director recorda que antes era difícilfazer teatro para qualquer um, as reaçõesdependiam muito do local: “Ir fazer tea-tro no sul, por exemplo, exigia outrasquestões e entendimento. Hoje a realida-de é bem diferente. A arte perdeu o medode se expressar e tem ultrapassado limi-tes e barreiras que então vivia”, acentua. Por outro, relaciona que o ganho dapaz traz valores que poderão causarmais progressos no capítulo do teatro,avançando que a cultura “é a alma de umpovo”, sendo meio privilegiado paratransmitir a consciência de patriotismoe o ideal de convivência harmónica nadiversidade.“Quando alcançamos a paz os cami-nhos abriram-se. O teatro tem estado afuncionar até em localidades que jamaispensamos que alguma vez chegaríamos.O teatro não ficou alheio ao desenvolvi-mento, se envolveu na consolidação dapaz através de boas peças de teatro co-munitário durante o processo de recon-ciliação e estabilidade social. Quem teráesquecido os personagens Vissolela eAvô Ngola e outras que os antecederam?O teatro se envolveu e usou do eufemis-mo e sua retórica a fim de educar e incitarhábitos culturais”, explica. Desse período recorda o grupo de tea-tro Julu como testemunho bem consegui-do que se impôs no teatro comunitário eganhou notoriedade trabalhando nas co-munas e aldeias num período em quemuita gente não tinha televisão, rádio oujornal, sendo que o teatro tem esse poderde fazer passar a mensagem de forma au-tomática.

Matadi Makola

Tony Frampénio

Page 11: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

ARTES| 11Cultura | 14 a 27 de Abril de 2014Actor David Inok do Horizonte Njinga Mbande

“Dói ver o teatro ainda pouco calcado no resto do país”

Emílio Lucombo é um dos rostos do novo teatro em Angola

“Muitas vezes o ideal e o realnão conciliam”

Ogrupo impôs-se como uma espéciede “máquina funcional” de um em-preendedorismo invulgar nas li-des do teatro. O teatro ainda não pegou o jei-to de tocar em algumas temáticas da contem-poraneidade. As pessoas têm necessidade deuma arte que seja muito real, que intervenhanas coisas do agora. Uma arte que não sejapresa das obras de que lhe serviram de pro-tótipo. Foi a contrariar esta tendência que oHorizonte Njinga Mbande se fez extrema-mente contemporâneo, com peças do mo-mento, chocando e/ou concordando com asociedade. Essa postura casou debates sau-dáveis entre os fazedores, aliás, motivou apossível identificação dos tipos de peça. Esta empreitada contou grandementecom o actor David Inok, o nosso interlocutor,que também acrescenta que já estamos maispreparados para debater sobre a política tea-tral e o seu papel em sociedade, lembrandoque foram gerações (cerca de trinta anos deteatro), começado em tempo de guerra até àdata, passadas por décadas de sensibilizaçãoe alerta sobre vários fenómenos, principal-mente sobre a nossa maneira de ser e estar,para fazer prevalecer a consciência de cida-dania, civismo e o patriotismo. Em defesa de uma justa qualificação doactor, reage dizendo que “a arte não deixade ser um ofício como outro qualquer”,que também os artistas acordam às mes-mas horas e que podem acabar por traba-lhar por mais horas.

“O Xuxuado”Quando apareceu o colã que provocato-riamente ou não ficou apelidado por xu-xuado, kotas e kandegues da nossa socie-dade entraram em discussões oficiosas.Uns assumiam, outros não. O HorizonteNjinga Mbande interveio com uma peçaintitulada “ O Xuxuado”, um raro caso debilheteria. “O Amante” é outra peça do Ho-rizonte Njinga Mbande que se aproximadesse sucesso de bilheteria, mas não tãolaborioso como o primeiro. Questionado a respeito deste acto cul-tural não menos importante (vestir), disseser um fenómeno que apareceu e que aspessoas não souberam abordar na horaesperada. “As pessoas comentavam queera um atentado ao pudor, e era uma críti-ca, favorável ou não. Tivemos que questio-nar até que ponto estamos educados parareceber outras culturas e tendências. Co-mo é que as recebemos? O que é que discu-timos? Qual fórum: familiar, escolar, so-cial, grupos? Nós também estamos inseri-dos e podemos propor debates. “O Xua-xuado vem dessa necessidade de questio-nar. Por exemplo: que pai aceita ver a filhade xuxuado? Será que não tem condiçõespara comprar outro tipo de roupa?” sãopreocupações sociais que explicam as ra-zões da criação da peça. Ficamos a saber que a peça resultouporque o debate tem acontecido. Apesarde ser uma comédia, David argumenta que

a peça “deixa o público muito analítico”. Confessa que pensar em sair do Njingafica meio doloroso: “Nós criamos afinidadecom as pessoas e o espaço. Temos uma rela-ção amorosa de quase trinta anos. Isto éuma escola e passam por aqui milhares dealunos, e são essas pessoas que um dia po-derão se aproximar do teatro. Não sei se foipor paciência ou por amor, mas acho quesão as duas coisas juntas, embora seja mes-mo mais amor do que outra coisa”, explica.Hoje é mais trabalho, mas sempre comalgum amor e dedicação, porque antesnão se importavam com essas questões.

Traça ser importante que as peças ga-nhem uma dimensão nacional: “Dói ver oteatro ainda pouco calcado no resto dopaís, onde também gostaríamos de levarpeças como “O Xuxuado”, desabafa.Insatisfeito por saber que só os luan-denses conseguem consumir, indica quedevemos discutir a nossa maneira de seralém do contexto provincial que é Luanda,sendo importante que o ministério recebaas propostas de circulação das peças daparte das pessoas que pensam o teatro.

Matadi Makola

Matadi Makola

Pela sua disciplina em palco, pelaleveza e controle da sua movi-mentação em cena, pelo seu à-

vontade que em momento nenhum podeser confundido como distracção, provocasempre um gozo vê-lo actuar.

Não é por acaso que está novamentede malas feitas para Portugal, Brasil eSão Tomé, onde actuará em “As Oraçõesde Mansata”, uma co-produção entre aCena Lusófona, a Companhia de Teatrode Braga e o Teatro Vila Velha do Brasil,

no âmbito da quarta edição do projecto P-STAGE – Estágio Internacional de Actores.

O elenco ficou três meses em Portugale um mês em São Tomé. Começa a prepa-ração em São Tomé. A peça foi escrita porum africano (o guineense Abdulai Sila),motivo que levou o director a preferir tra-balhar em África, também para fazer osactores de Portugal e Brasil absorvermais a cosmologia africana e melhor en-carnarem os seus personagens.

Já aconteceram dez apresentações em

Coimbra, quatro em Braga, duas em Évo-ra e uma em Montemor. Emílio volta paraconcluir a segunda fase das apresenta-ções, iniciada no dia três de Março quan-do a peça foi transportada para o Brasil,volta a Portugal por duas semanas, passapor Guiné-bissau e chega a Angola emMaio, altura em que poderemos assistirao espectáculo no Festival Elinga-Teatro.Emílio cumpre esta façanha juntamentecom Marleny Musa, atriz do HorizonteNjinga Mbande.

Page 12: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

12 | ARTES 14 a 27 de Abril de 2014 | CulturaFoi numa tarde de um dia Janeiro quenos encontramos no Elinga-Teatro. Pon-tual, fazia trinta minutos que nos espera-va. A abrir a conversa, de imediato ques-tionamos o que fica de Portugal e dessa ex-periência. Receptivo, reportou: “A primei-ra coisa que fica de Portugal é a saudade.Voltamos já no final de Fevereiro. Nãoconstituiu muita novidade aquilo que nósaprendemos. Nós já fazemos aqui, só quenão levamos muito a sério”. Emílio é um dos rostos do corpus do no-vo teatro, por isso quisemos saber as suaspreocupações a respeito. Dele ouvimosque o novo teatro lusófono está no bomcaminho, mas, tanto em Angola como emSão Tomé, a recorrente “queixa” da faltade salas ainda impõe muitos questiona-mentos sobre o que realmente se preten-de fazer, embora reconheça haver um cer-to avanço da parte de Angola. De modo geral, constata que a Áfricacomeça a atrair a atenção artística da cenaBrasileira e Portuguesa, pelas suas histó-rias e novidades de criação, o que leva aprecisar os novos tempos como “temposde abertura entre o teatro e a África”.Ser actorDecididamente, a sua imersão nas artescénicas data da primeira peça em que actua,“A Herança”, em 2007, pelo Horizonte Njin-ga Mbande. Foi a partir daí que definiu o ru-mo a tomar. Um pouco antes tinha dúvidasentre a dança e o teatro. O dilema se impôsquando sai de uma formação com duas pro-postas em mão: ir a Espanha com o grupode dança Minessa ou actuar numa estreia.Sentia-se dividido. Mas o teatro faloumais forte. Inicialmente, justificou a es-colha por ter dado muito para aquele

espectáculo acontecer. Sentia que senão fizesse aquele espectáculo não fica-ria bem consigo mesmo.Antes de entrar no palco chorou muito.“Boa merda”, disseram-lhe. Foi pela pri-meira vez que ouve esta expressão do tea-tro. Ninguém se apercebia das razões dosseus soluços. Era algo muito interno. Gol-pe de sorte ou destino, Emílio vira que ti-nha escolhido o melhor para ele. E era issoque interiorizava naqueles instantes. Depois foi pedir à família que com-preendesse que queria ser actor a tempointeiro. Não foi muito difícil aceitaremporque já fazia teatro na igreja. Sempre foimuito próximo das artes cénicas. Era facil-mente escalado para fazer actuações nasfestas de Natal, Páscoa, Dia da Juventude,Ano Novo…Essa definição de actor foi se ajustandoao longo dos tempos. No início, foi sempreuma maravilha. A par do convívio com

muitos actores veteranos, foi se descobrin-do entre as formações em Angola e Brasil.O Brasil se abriu para ele ao ganhar aoportunidade de fazer o teste na Malha-ção. Do sucedido, conta que foram convi-dados a participar num festival de teatroem Piauí, Brasil, onde durante o festivalmanteve laços com uma das responsáveis.A brasileira chega a admirar o seu trabalhoe personalidade e toma a liberdade de en-dereçar uma carta ao programa Caldeirãodo Huck a levantar a possibilidade do actorangolano tentar alguma coisa no Projac.Lembra que foi no dia 16 de Dezembro de2009, um dia antes de ter pisado as terrasdo samba. Ficou todo o dia a trabalhar coma equipa de selecção, aprendendo o que éfazer teledramaturgia. Assim, reforçou aleitura devido à dicção, preocupou-se ain-da mais em definir técnicas de expressãocorporal que o ajudassem em cena e seabriu para a formação.

Apesar de não ter dado certo, sai daímais explícito e mais humilde. Percebe oteatro como um encontro sincero consigomesmo, ao contrário dos períodos em quechegava a se achar “a estrela”, sem sequergostar de ouvir isto ou aquilo de alguémmais experiente. Mas a experiência entreo homem e o actor veio mostrar que é pre-ciso sempre saber aprender, e talvez issoseja a primeira lição e uma das mais fun-damentais no percurso da vida de um ar-tista que se propõe aberto ao mundo dacriação. Assim, percebeu que era precisomudar radicalmente: “ser humilde, master coragem de dizer não às coisas que nãoconvém. O que acho é que tem de haverresponsabilidade e disciplina da parte dosartistas ao se afirmarem como tal”, define. Tem noção do trajecto por desbravar, epor isso reconhece esta entrega sinceraque faz com que as pessoas dêem algumaatenção ao seu trabalho. Muito pessoal,não assiste aos seus espectáculos. Nemteatro, nem filme. É aquela coisa de sermuito auto-crítico, o que reconhece quetambém é mau: “Muitas vezes o real e oideal do que faço não conciliam”, justifica. Sabe que o Marado Teatro é uma escolaboa. Viu pela primeira vez no Brasil eachou interessante o teatro de rua. Entranessa empreitada com o Mara, seu compa-nheiro de conversa, de palco e de ideias. • Merda: palavra vulgarmente empregue paraque tudo corra bem na estreia. Segundo a tradiçãoteatral, desejar boa sorte para a estreia é sinal deazar.

Os nomes de Paquito, António daLuz, Cassule, Urbanito Filho, Fa-tó, Arlindo Show, Mãe Guida,Chico Coio podem não dizer muito paraquem apenas está atento às sugestões mu-sicais do mercado comercial. Nos dias 4, 5e 6 uma parte significativa de músicoscom insucesso comercial foram as estre-las do palco da Feira dos Cantores e Com-positores Associados, que decorreu sob olema “A rocha que teima em bater em nós”,organizada pela ARTEVIVA. Foi lá que o músico Jorge Rosa vendeu odisco “Axiluanda”, um mote de arranjosdos clássicos de Sofia Rosa e Ilda Rosa queo público de ouvido sensível tem agora emmão e pode tecer as suas opiniões sobre aobra que já ganhou uma nota positiva docrítico musical Jomo Fortunato. O lança-mento aconteceu precisamente na manhãdo dia 6, domingo. O certame aparece como uma plataformade troca de experiências, promoção e via devisibilidade para boas vozes que a barreirado invisível deixa à margem do sucesso. Essas directrizes foram sustentadas pe-lo próprio Jomo Fortunato que adiantou

que a ideia é evoluir para um festival queenalteça e promova este grupo de cantorese compositores que não vendem.“Eles têm qualidade mas não estãodentro do sucesso comercial, que se vêagora de forma retumbante e absurda.Também a estratégia é a de promover pa-ra orientar o gosto. Nós pretendemos fa-zer evoluir este projecto para um festivalpremiado e fonte da orientação do gosto.A maioria da população, sobretudo jo-vem, não conhece determinados segmen-tos musicais por não chegarem a eles. Nãosei como gostar. Diga-me como? Nós esta-mos nesse departamento do “digam-mecomo saber”. Ou seja, nós temos que levaro produto para que os jovens estejam nes-tes locais”, traça.O domínio dos médiaUma das grandes preocupações é o do-mínio dos média da parte dos que usu-fruem do sucesso comercial, sendo talvezuma das razões fundamentais. Para o crítico musical, este problema co-meça a ser resolvido quando surge a oportu-nidade de verem os mais velhos cantarem.

Os pequenos concertos ao longo destes trêsdias surgem para provocar um certo meca-nismo de marketing que promova os canto-res e compositores associados.Quanto à pertinência (em tom de desa-bafo) do lema projecto que é “A rocha quebate teimosamente em nós”, disse ser ne-cessário pois não é o sujeito que bate narocha mas a rocha que vem bater no sujei-to por ele não ter culpa de encontrar umpúblico que não absorve este género mu-

sical. “Se há músicos que não conseguemvender e têm pouco impacto junto do pú-blico, nós temos que encontrar estraté-gias. Estes movimentos ligados à músicaque tem sucesso comercial mantêm umaforte ligação com os meios de comunica-ção social e fazem com que todo o proces-so de divulgação esteja do seu lado. Do ou-tro lado há quase impedimento ou mesmoobstrução. A protecção destes artistastambém cabe ao Estado”, reclama.

A rocha que teima em bater em nósMatadi Makola

Emílio (ao centro) em As Orações de Monsata

Cantores presentes na feira

Page 13: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

HISTÓRIA| 13Cultura | 14 a 27 de Abril de 2014

Adolfo Maria utiliza a escrita co-mo repositório da memória. Deuma memória que é autêntica,porque vivida e presente porque ele nun-ca a perdeu. Na sua serenidade – uma serenidadeque nos interpela – ele foi carregando odesassossego existencial de ser, a final,depositário da narrativa de muitas vidasdramaticamente devoradas pela cruelda-de da História.E eu penso quão libertador será, ape-sar de tudo, os homens e os povos pode-rem ter um espaço de confrontação com asua história, mesmo aquela que não cor-responda aos seus melhores momentos... Porque a História dos povos se faz deconvulsões, em que há violência e sanguee sofrimento perdas de vidas; em que há oeu e o outro e em que há momentos emque o outro pode passar de companheiroa adversário e de adversário a inimigo. Mas é preciso que o tempo e a distânciaajudem a explicitar e a desfazer as razõesdesse momento em que eu esmaguei ooutro – que foi meu companheiro, aquelecompanheiro ao lado de quem enfrenteitodos os perigos ou a quem ensinei as ra-zões, a justiça e os métodos da luta, masque passei a considerar inimigo – e a se-guir conjurei-me para apagar o seu traçoda memória comum e da vida.A história é pródiga em exemplos derevoluções que devoram os seus própriossímbolos ou os seus mentores. Ao escrever “Angola Sonho e Pesadelo”o Adolfo Maria dá um passo em defesa damemória, da integralidade da História, eleque dela é fonte privilegiada. Ao fazê-lo ele vive a sua condição eprossegue a sua acção de nacionalista an-golano, sem concessões nem acomodação.A contemporaneidade desperta-nos pa-ra sociedades fragmentadas por uma mul-tiplicidade de valores, com racionalidadespor vezes contraditórias, em que a aparên-cia supera toda a substância e as represen-tações do presente tendem à deslegitima-ção do valor do facto, da experiência histó-rica e das qualidades em que todos reco-nhecíamos o valor intrínseco do homem.

Essa ligeireza do tempo que passa re-clama de nós um estado de vigilância per-manente que impeça a contaminação; areafirmação constante do valor único dasubstância das coisas e da dignidade hu-mana como referência e marca de decên-cia dos comportamentos sociais.Só seremos inteiros se nos libertarmosdos preconceitos forjados na ligeireza dassimplificações.As nações serão sempre diminuídasenquanto não poderem ser integralidade.Enquanto não poderem contar com todose não acordarem à vida de todos os seus fi-lhos o estatuto que tiveram na concerta-ção de esforços em que se forjam o desen-volvimento e a independência nacionais. Recuperar a capacidade de falar com ooutro; de falarmos todos, preservando asnossas singularidades e diferenças éuma das interpelações maiores do nossotempo. E é isso que o Adolfo faz ao escre-ver este livro.Sobressalto cívicoA leitura de “Angola Sonho e Pesade-lo” produz em nós um enorme sobres-salto cívico.Angola, Sonho e Pesadelo é um grandeconfronto entre expectativas acalentadase uma realidade desprovida da virtudeesperada.Este livro, poderia ser apenas a históriado exílio interior de um homem. Mas émuito mais do que isso. É uma parte da história das organiza-ções que lutaram pela independência deAngola, vista de dentro, através da narra-tiva dramática de um combatente da li-berdade que se isola do mundo para esca-par à repressão dos seus companheirosde armas e que nos fala de como chegou aesse momento e como dele saiu. É uma reflexão lúcida tributária dosfactos, na forma como o Autor deles fezparte, vendo, sentindo, vivendo.Na torturada sucessão de dias longos eiguais, o autor resiste pela disciplina fér-rea, domando o corpo, exercitando a men-te. Recordando, registando, compondo.Mesmo não concordando com alguns

pressupostos de partida ou pontos dechegada, não hesito em afirmar que o per-sonagem central da obra – o Adolfo Maria– é alguém que, no quadro de uma expe-riência de injustiça, nos indica uma certanorma. Traça-nos um caminho marcadopor uma enorme exigência cívica e moral.Ao escrever sobre esta experiência, oAdolfo mostra-se-nos inteiro, sem disfar-ces nem recomposições: é um homem.Um homem que sofre, que sente tudo in-tensamente; que tem receios e angústias,que se desfaz e se recompõe; que é forte efraco a um só tempo, porque só pode ver omundo através do buraco de uma fecha-dura pela qual lhe é interdito espreitar.Mas este livro é também um tributo àcadeia de solidariedade humana que segerou em torno dele. Porque hoje pode fa-lar de nomes e revelar identidades, semcorrer o risco de pôr em perigo a liberda-de ou a vida de quem generosamente oacolheu e resguardou.Depois, Angola Sonho e Pesadelo étambém a história de um grande amor. Deum amor infinito. É uma ode à Lena. A luzdos seus olhos. A dado momento quase afonte primária da sua energia vital. Ela está sempre presente. Com a sua força, a sua abnegação, a suainesgotável capacidade de dádiva e irre-dutível determinação de partilha de umdestino que começou por trilhar poramor.Na narrativa a Lena é a mátria. A mu-lher salvadora, aquela que nunca o largaquando a pátria parece tê-lo abandonado.A heroína que veste magistralmente amáscara da mulher que busca desespera-da e incessantemente o marido preso ouabatido pela repressão.Escrito numa linguagem elegante, secae depurada, o livro lê-se de um fôlego e dá-nos a conhecer as qualidade literárias epoéticas do autor, espelhadas por vezesem trechos de uma desesperança radical.Alguns desses trechos são poemas deuma intensidade e um realismo tão vivosque nos rasgam a alma.Permito ler-lhes um que escolhi:Loucamente Lúcido, na página 120:

“ANGOLA Sonho e Pesadelo” de Adolfo MariaEm defesa da integralidade da HistóriaFrancisca Van Dúnem

ADOLFO MARIA nasceu em Luanda em 1935. A partir de 1957, foi um dos dirigentes do Cine-clube de Luanda e da Sociedade Cultural de Angola,onde era membro do corpo redactorial do jornal Cultura. Desde jovem ganhou uma consciência nacionalista que o levou a lutar contra o colonialismoportuguês. Foi membro do segundo PCA angolano e do MLNA, tendo sido preso pela PIDE portuguesa em 1959. Foi redactor do diário luandenseABC, em 1961.Partiu para o exílio em 1962 para se juntar às forças nacionalistas. Em Argel, foi um dos fundadores do Centro de Estudos Angolanos, em 1964.Transferido em 1969 para a II Região Político-militar do MPLA, dirigiu a rádio Angola Combatente e, temporariamente, o departamento de Informa-ção e Propaganda. De 1974 a 1991 viveu diversas vicissitudes derivadas da conjuntura política reinante, marcada pelas ideologias obsidiantes daGuerra Fria, que incluíram a clandestinidade no pós-independência em Luanda, o ostracismo e finalmente o exílio em Portugal.Depois dos Acordos de Bicesse, voltou livremente a Angola, em fins de 1991 e Maio de 1992, tendo sido recebido, conjuntamente com Gentil Viana,pelo Presidente da República. Depois do recomeço da guerra pós-eleitoral, renunciou a qualquer iniciativa de carácter político. Todavia, forneceu tes-temunhos e análises publicados no livro “Angola no percurso de um nacionalista – conversas com Adolfo Maria”, e também para a série documental“A Guerra” da RTP e para a recolha gravada em vídeo da Associação Tchyweka sobre a luta pela independência. Tem participado em alguns coló-quios com comunicações sobre a África e Angola, é colaborador permanente do jornal cultural “O Chá”, da Associação Chá de Caxinde, e faz partedo painel de comentadores do programa radiofónico “debate Africano”, da RDP África.

LOUCAMENTE LÚCIDO

Quando o corpo está dorido por a alma estar partida

Quando a mente é povoada pelo vazio circundante

Quando o presente tanto se afoga no passado tão desentranhado

Quando a angústia cresce em futuro no desespero da solidão de agora

Quando o tempo perdido se chora nos homens e mitos em cacos pelo chão

Quando esperança e criação me estiolam no húmus feito deserto pela alheia malvadez

Quando a vida não vivida me é sepultada assim tão viva

É a dúvida ao infinito é a loucura extra-lúcida é o mundo feito zero é a vida feita nada

Ardo no fogo das ilusões queimadas broto verde na lucidez renovada renasço em mim para não morrer quando morro devagar para sobreviver.

Page 14: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

14 | GRAFITOS NA ALMA 14 a 27 de Abril de 2014 | CulturaCelebrar a comunicação com Sofia Pidwell e Yonamine Luísa FrestaNa Praça das Amoreiras, em Lis-boa, vive a Fundação Arpad Sze-nes - Vieira da Silva (FASVS), cujonome homenageia os dois artistas plásti-cos e expõe a obra que desenvolveram aolongo de décadas e através dos diversospaíses que os acolheram. Este local (a anti-ga Real Fábrica dos Tecidos de Seda, con-vertida em Museu e Centro de Documenta-ção e Investigação) magnificamente entra-nhado num pequeno jardim verde e húmi-do, em pleno inverno lisboeta, foi tambémo palco de encontro de dois outros artistas:ela, portuguesa, a publicitária e artistaplástica Sofia Pidwell, presença regular emexposições individuais e colectivas, criado-ra de linhas curvas e rectas, fragmentadas,de formas geométricas fractais, de dese-nhos abstractos com traços fortes e fundosde telas monocromáticos com nuances, decomposições com sabor a trovoada, quegalgam paredes, ocupam espaços e ostransformam em teias de arte e caminhosinfinitos, sugerindo conjecturas, propon-do uma infinidade de interpretações; ele, oangolano Yonamine, artista multifacetadonatural de Luanda, fruto da colheita de 75do século passado, alberga no seu currícu-lo inúmeras participações em mostras in-ternacionais, é naturalmente africano e ci-dadão do mundo por extensão. Talvez a es-trela da independência lhe tenha traçado odestino, pois também ele evidencia umaautonomia rebelde em relação aos câno-nes dominantes da arte e da sociedade deconsumo, questionando-a, criando mal-entendidos gráficos, subvertendo senti-

dos, provocando, rasurando, fazendo hu-mor, recriando e reciclando, com imagense materiais de texturas diversas recolhidosda mesma sociedade que confronta com oseu olhar participativo e interessado, abs-traindo-se de qualquer tipo de abstracção,arranhando consciências e arrancando-nos da sonolência. Depois de atravessar o jardim em equilí-brio instável, deslizando, tropeçando(muito mais do que andando), sobre a cal-çada portuguesa, que espelhava então en-tre alguns tímidos raios de Sol de uma ma-nhã domingueira o brilho da chuva miudi-nha (tão oblíqua quanto traiçoeira), entreino pequeno átrio da Fundação, não semantes me deixar encandear pelo tom cinza-pérola do céu que, pressentindo a nossa in-quietação, ameaçava abater-se ruidosa-mente sobre as nossas cabeças. A sala de-dicada a RE-MOVE, a exposição de Sofia eYonamine, deu-me as boas-vindas na sualinguagem aberta e transgressora, com co-lagens, traços fortes e símbolos conheci-dos da cultura de massas. Senti que aí se ce-lebrava a inclusão e a informalidade da re-cepção não me soou ultrajante, ao contrá-rio, cedi ao convite para participar naquelejogo divertido entre dois artistas que seaceitam e se respeitam, ouvintes genero-sos e atentos que criam espaço nas suasnarrativas gráficas para acolher comoda-mente o outro, que recebem e valorizamum olhar diferente, uma perspectiva maisdistanciada, procurando tranquilamenteuma plataforma de entendimento comum.A sala acolheu-me sem meias-tintas, calo-

rosamente, inteira, e devolveu-me intactaaos meandros do museu, onde segui via-gem, uma viagem fascinante. Entre figuras geométricas, traços de vá-rias espessuras e intenções, colagens crite-riosamente escolhidas transformadas emveículos de mensagens, agressivas ou in-terrogativas, creio ter captado a essênciado percurso que ambos desenharam paraoferecer ao visitante uma jornada semprincípio nem fim, ensurdecedora, sem eu-femismos, sem falsos moralismos, onde seintui que é possível um mundo mais justoque aponte os limites e desafie as lógicasdo mercado, livre dos constrangimentosde sistemas economicamente questioná-veis e socialmente confrangedores. Na FASVS o espaço multiplica-se sobria-mente através de corredores funcionais eluzes veladas, difusas, que nos integram napaisagem interior. O próximo passo é a ex-posição temporária intitulada Escrita ínti-ma. Aí me perdi na leitura de cartas, dese-nhos, esboços, símbolos e pequenos reca-dos afectuosos, divertidos ou suavementenostálgicos trocados ao longo de décadasentre a pintora portuguesa Maria HelenaVieira da Silva e o seu companheiro húnga-ro, Arpad Szenes, também ele artista plás-tico. Nessas missivas sóbrias, ternas e codi-ficadas, redigidas na língua comum, o fran-cês, algumas expressões e palavras húnga-ras e portuguesas emprestam também asua graça e espontaneidade ao discursofluido e imaginativo que aproxima estas al-mas que confluem para um mesmo desti-no, verdadeiros «atomes crochus» que a

arte fundiu. Nos retratos em que mutua-mente se descrevem, nas fotografias, estásempre implícito o seu próprio olhar sobreo outro, protector e confidente. Arpad Sze-nes e Vieira da Silva continuam a fazer par-te da nossa vida e a dar forma ao amor en-quanto conceito abstracto e enquanto lin-guagem. Albergam, além disso, outros ar-tistas, nas paredes da sua Fundação, comquem generosamente dividem o espaço,proporcionando-lhes uma estadia tran-quila nas suas acolhedoras instalações. Anós, meros espectadores-ouvintes-leito-res, receptáculos privilegiados, apenas nosresta celebrar a imensa generosidade dapartilha e festejar com alegria todas as for-mas de comunicação que se desprendemdestas exposições vivificantes.

Depois de ler, no nobre livro Ensa-boado & Enxaguado – LínguaPortuguesa e Etiqueta, um lúcidoe inteligente texto do seu autor JOSÉ CAR-LOS DE ALMEIDA – amigo e ilustre irmãona língua – sobre a real designação da nos-sa selecção masculina de futebol “Palan-cas Negras” [pp. 90-91], resolvi, como me-ro e eterno aprendiz da Língua Portugue-sa, expressar a minha humilde e despre-tensiosa opinião sobre o assunto, sem ne-nhum objectivo, é claro, de causar polémi-ca ou mal-estar, mas tão-somente no intui-to de contribuir.Em nosso humilde entendimento, o em-prego do artigo “o” para designar a selecçãomasculina de futebol estaria, hoje, já autoriza-do, até porque “apadrinhamento” respeitávelpara tanto, como se vê abaixo, é o que não falta!

Parece-nos oportuno citar MIGUELMOITEIRO MARQUES, em Ciberdúvidas

da Língua Portuguesa, a propósito de OsPalancas Negras/As Palancas Negras:«Sendo possíveis as duas designações, ouso terá determinado, por agora, a opçãopor «os Palancas», reflectindo o género dosjogadores da selecção angolana, emboraseja também válida, e para alguns maisacertada, a designação «as Palancas», emque o artigo concorda com o género gra-matical da palavra, tanto mais que não seconfundirá com a selecção feminina de fu-tebol, oficialmente designada por Welwit-chia, uma planta existente no sul de Angolae na Namíbia». Aliás, transcrevemos, por oportuna, a li-ção de outra notável consultora linguística– HELENA FIGUEIRA –, vazada nos seguin-tes termos:«A partir da locução substantiva femini-na palanca negra, que se refere a um ani-mal comum em África, surgiu a designação

Palancas Negras para a selecção angolanamasculina de futebol, cujo género é ten-dencialmente masculino, por se entenderque a denominação se aplica a um grupo deindivíduos do sexo masculino (ex.:os Pa-lancas Negras [de Angola] defrontarão osÁguias [do Mali]) . No entanto, a atribuiçãodo género feminino (ex.: as Palancas Ne-gras ganharão) pode também ser justifi-cada pela manutenção do género do ani-mal. No caso de a denominação de palan-cas se aplicar a um grupo de indivíduos dosexo feminino (por exemplo, uma equipafeminina de futebol), não há, porém, hesi-tação no género feminino (ex.: I As Palan-cas venceram as Panteras)». Donde se con-clui que ambas as designações Os PalancasNegras e As Palancas Negras podem serdefendidas, com mais ou menos razões.E estes factos não são eventuais nemmeros caprichos: obedecem a certos

princípios sintácticos, hoje quase desco-nhecidos ou desprezados.Registemo-los ao menos.E saber que todos os angolanos que que-rem falar e escrever correctamente a nossalíngua estão obrigados a seguir o que o autordo Ensaboado & Enxaguado – Língua Portu-guesa e Etiqueta decide! Sabem como mesinto? Eu me sinto como aquele recrutaque, disciplinado, segue rigorosamente oseu comandante em direcção a um abismo,para suicidar-se…

LUSOFONIAOs Palancas Negras ou As Palancas Negras? Alberto Manuel Sebastião

Yonamine

Page 15: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

OCarnaval é a mais emblemáticamanifestação étnico-cultural daGuiné-Bissau, símbolo de unida-de deste povo martirizado pela instabilida-de política, social, paz e desenvolvimento. Os foliões eufóricos e desbundadosmarcham pela paz e assim animam, con-tagiam, fascinam e seduzem. É o povo amanifestar o que lhe vai na alma, a sua ale-gria e tristeza, a mostrar a sua força e ape-lando ao resgate dos valores sublimes queoutrora serviram de protesto contra tantoderrame de sangue e de suor na gesta daluta pela libertação, independência econstrução da pátria amada.Júlio Silvão Tavares fez do carnavalguineense um documentário: “A Espe-rança dos Foliões”. É um filme de 20 mi-nutos que entrelaça a história conturba-da da Guiné-Bissau com o sonho de pazque os grupos de Carnaval teatralizam.De todas as partes do país, de várias tri-bos, todos os anos desfilam com as suasbelas máscaras pelas ruas de Bissau,exortando os líderes a encontrar o cami-nho da conciliação.

Em 2007, o Centro Cultural Portuguêsna Guiné-Bissau convidou Júlio Silvão Ta-vares e dois realizadores portugueses aproduzir três olhares sobre o Carnaval daGuiné-Bissau. A meio do caminho, quan-do o realizador cabo-verdiano já haviaconcluído as filmagens, o projecto abor-tou. “Tinha de dar um destino a essas ima-gens. Faltava saber qual”, conta Júlio Sil-vão Tavares.O pivô do filme é a máscara do Carnavaltradicional da Guiné-Bissau. É ela que ditaa cadência da história e o tempo dos pro-tagonistas: os grupos de diferentes etniasque desfilam pelas ruas de Bissau mastambém as personalidades da Guiné. (...)A máscara simboliza uma Guiné livre, so-lidária e acolhedora”, declara o cineasta.Júlio Silvão Tavares é um dos mais pro-dutivos cineastas cabo-verdianos. Da suafilmografia fazem parte Batuque – A Almade um Povo; Cabo-Verde a Cores, Em Bus-ca de Liberdade, Praia – A Cidade de So-nhos, Eugénio Tavares - Coração Crioulo eS. Tomé e Príncipe – Minha Terra, MinhaMãe, Minha Madrasta. , documentário “O

Sonho de Liberdade”, que retrata o assaltoa mão armada do navio Pérola do Oceanoem 1970 por um grupo de camponeses deSantiago a fim de alcançarem o continen-te africano e participarem na luta para li-berdade e independência de Cabo Verde e“O DESAFIO” – sobre o meio rural e centrode formação de técnicos agrários.

DIÁLOGO INTER CULTURAL| 15Cultura | 14 a 27 de Abril de 2014

Guiné-Bissau“A Esperança dos Foliões”

Com a criação do Festival de Teatroem Assomada (Santa Catarina, Ilhade Santiago), as artes cénicas ga-nham novo impulso em Cabo Verde, saltan-do de Mindelo – natural capital cabo-verdia-na de teatro e onde decorre o Mindelact, deraízes firmadas – para a ilha de Santo Antão,onde existe uma boa companhia (“Juventu-de em Marcha”), e para a Praia que começa areceber excelentes representações. Trata-se de facto de uma extensão da cultura tea-tral que está a acontecer neste arquipélago,dando nova expressão a esta arte.Tendo como vereador da Cultura um in-térprete de qualidade (Tikai, um ator deconhecidos méritos na ilha de Santiago,que orienta o Grupo Raiz de Cabo Verde),Assomada recuperou a sala do Cineclube evocacionou-a para espaço cénico, provo-cando com essa transição alguma contro-vérsia, na medida em que a antigo conces-sionário, Luís Leite, tem desenvolvido tra-balho assinalável na divulgação da taban-ka. Todavia, os resultados desta mudançaestão agora à vista com a afirmação do Fes-tival, que pede meças ao que ocorre noMindelo ou na Praia.

Revela isto que o teatro está de boa saúdeem Cabo Verde, palco de “Março, Mês do Tea-tro, MMM”. Em 1993 – portanto, ainda antesda independência de Cabo Vede – houve apedra de toque, onde tudo começou, surgiuno Mindelo (ilha de São Vicente) o Grupo Cé-nico do Centro Cultural Português, GC-CCP,com um curso de iniciação e no seu reportó-rio estão hoje trabalhos de Arménio Vieira,Germano Almeida, Aurélio Gonçalves, Eugé-nio Tavares e Mário Lúcio Sousa e peças deShakespeare a Lorca, de Molière a Becket.No programa do Mindelact está agora“Quotidiano”, um jogo de palavras entre‘quotidiano’ e ‘amor’, uma peça que fala darelação de um casal que se deteriora emconsequência dos naturais problemas dodia-a-dia. Trata-se de um exercício sobre oamor e o tempo que nos falta para amar,elaborado por quatro autores (entre osquais o angolano José Mena Santos, a pardo português Rui Zink, do cabo-verdianoAbraão Vicente e do brasileiro Ivan Ca-bral). A peça inova no cenário, apresentadanum espaço urbano alternativo e para umnúmero reduzido de pessoas, recorrendo àutilização permanente do vídeo, em direto.

O encenador é o “histórico” João Bran-co que afirma, a propósito: “A histórianasceu sem nome e foi-se revelando as-sim, órfã de um batismo. Até que chega-mos a uma palavra nova, criada para oefeito: ‘Quotidiamo’. O título do espetá-culo, que é um jogo entre as palavrasquotidiano e amor, dá um vislumbre doretracto desenhado pelos quatro autoresdo texto. Não podia ser mais universal”.Entretanto, o Prémio de Mérito Tea-tral do Mindelact, criado em 1999 parahomenagear grupos de teatro, foi atri-buído a Ducha, atriz que entre outrospapéis, atuou “Bodas de Sangue”, “Autoda Compadecida”, Casa de Nha Bernar-da”e “Morte e Vida Braba”.No Mindelact deste ano apresenta-setambém o grupo teatral dirigido pela bra-sileira Janaina Alves Branco, Trupe ParáMoss (TPM). Segundo ela, o êxito se deve à"qualidade e criatividade colocada em to-das as 5 peças em cartaz”. Esta trupe é mar-cada pelo bom humor, profissionalismo eseriedade no trabalho que desenvolve. A peça “5 peças 5 sentidos” poderá re-gressar no verão, período das férias escola-

res para aproveitar a movimentação extraprópria da época.Assim, em março, com “Mais teatro paraum melhor teatro”, o Março Mês do Teatroapresenta-se em São Vicente, Cabo Verde,até ao próximo dia 30.

Mindelact regressa em Cabo Verde:Assomada ganha Festival de TeatroNuno Rebocho (em Cabo Verde)

Tikai e Simão Veiga

No Mindelact deste anoapresenta-se também o gru-po teatral dirigido pela bra-sileira Janaina Alves Branco,Trupe Pará Moss (TPM).

Page 16: “Wambu Kalunga em elegia” Denominador do Huambo na pena de ...imgs.sapo.pt/jornalcultura/content/files/cultura_54.pdf · ramos, jovens, crianças (que aproveitam o contacto com

16 | NAVEGAÇÕES

Efemérides Culturais

14 a 27 de Abril de 2014 |Cultura

2014– Ano International da Cristalografia 2005-2014- Decénio das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável

2005-2015- Segundo Decénio Internacional das Populações Indígenas do Mundo2013-2022 - Decénio internacional da aproximação das culturas

Matadi Makola

Quinteto Franco na BisoA melodia de um herói convicto da música africanaTanto em hasta pública numa ar-téria movimentada de Luandaou a atracção especial num des-tes festivais que Luanda começa a ter àfarta, ver o Franco na Biso tocar Francónos dias de hoje seria como uma obriga-tória aula magna sobre cultura musicalafricana e seus heróis contemporâneos.Dar a conhecer o génio artístico africanopor via de acções académicas interdisci-plinares deveria ser um acto obrigatóriaque possibilitaria muito bem responderà questão de quem somos (o caso inerteda disciplina de Introdução às CulturasAfricanas, por exemplo, que não apre-senta ferramentas do legado etnomusi-cal do Reino do Kongo, esse que é consi-derado como uma das fontes da músicamoderna africana, tendo Kinshasa apa-recido na linha da frente da vanguarda).Tocar Francó nasceu do desejo de home-nageá-lo e procurar suscitar outras sonori-dades que sirvam de ponte e inspiração anovas tendências, como é neste caso o darumba/jazz que o quinteto Franco na Biso

nos propôs num concerto no Cine TeatroNacional na noite de 5 de Abril, sábado.O quinteto procurou trazer umFrancó genuíno, mas com a energia ju-venil da explosiva possibilidade musi-cal dos dias de hoje. Tudo assenta naessência. Mario, aquela que é sobeja-mente considerada uma das três gran-des músicas da moderna discografiaafricana, também é para o quinteto acanção mais popular nas suas actua-ções. A mais pedida e a mais dançada. Francó era apelidado por “feiticeiroda guitarra”. Muitas vezes em concerto, opróprio Francó adaptava a sua guitarrapara poder ter mais liberdade e possibi-lidade de jogo das cordas. Kojack Kossakamvwe, o guitarristaprodigioso do quinteto, para se aproxi-mar com engenho e arte à sonoridade doícone, também o faz. Vimo-lo parar porinstantes para acertar. Tirou do bolsoqualquer pedaço de metal que o ajudas-se. O Cine Teatro Nacional era outra vezrestituído ao silêncio depois de bons

momentos de rumba misturada com atónica do sax do jazz saída do único fran-cês do quinteto, Jean-Rémy Guédon.Com Kojack, a guitarra é exploradaao último suspiro e a música ganha evo-lução instantânea, ou como dirá o saxo-fonista francês Jean-Rémy Guédon:“mistura com êxito a tradição do violãocongolês com os últimos temas de Ri-chard Bona e as fugas de Bach, que eleescuta e toca de repente. Além de serum solista muito dotado, é também umexcelente cantor…”Foi do seu toque genial de guitarraque Layile soou refinado a ponto de dei-xar o público de pé. A música da guitarrade Kojack Kossakamvwe reaparecia nofundo de cada presente. A guitarra é do-minada de forma maquinal. Este som ge-nuíno foi também bem conseguido emLes on dit e Kinshasa Mboka Ya Makambo.

Educação africanaComo ousamos ser tão insensíveis,tão cépticos, tão esquecidos e vazios de

nós? Era a pergunta que se instalara mi-nutos depois de uma congolesa residen-te em Angola ter-se afirmado algo desi-ludida com a África de hoje que uma dasvozes femininas que acompanhou a len-dária marca de Francó era nada mais doque uma despercebida teóloga com al-guns dotes vocais digno de aplausos.“Ela agora é pastora e mora na Cuca”,afirma. Trata-se simplesmente de JolieDetta, a vocal que entra para a obrigató-ria banda de respeito ET TP OK JAZZ lápara idos meados de 80, acabando maisuma vez de confirmar a urgência deuma intervenção académica. Formado pelo vocalista e guitarristasolo Christian Kossakamvwe “Kojack”,o saxofonista e corista Jean-Rémy Gué-don, o corista e guitarrista Alberto Ma-poto, o baterista e corista ChristianKamba e o guitarra baixo e corista GuyTusiama, o quinteto está a fazer umatournée por África e chegou a Angola aconvite da Aliança Francesa de Luanda.