Post on 13-Aug-2015
1
TECENDO O FIO DA LEITURA
Fátima BARROS / UFPE
Resumo
Leitura crítica do poema “Meio Fio”, tecida a partir da análise
do tema e de aspectos visuais, fônicos, morfológicos, sintáticos
e semânticos. Procura-se revelar a intrínseca correlação entre
esses elementos constituintes do tecido poético, da qual emerge
um efeito de sentido plural. Palavras-chave: leitura crítica,
poesia contemporânea.
MEIO FIO
Chacal
tem um fio de queijo
entre eu e o misto quente
recém mordido
tem um fio de goma
entre o chiclete e eu
recém mascado
tem um fio de vida
entre eu e teu corpo
recém amado
tem um fio de carne
entre teu corpo e teu filho
recém nascido
tem um fio de saudade
entre eu e você
recém passado
tem um fio de sangue
entre a razão e eu
recém partido
tem um fio de luz
entre eu e mim
recém chegado
2
O fio da modernidade
Uma primeira leitura do poema nos revela de imediato
que estamos diante de um texto de vanguarda em face da
disposição gráfica das estrofes e da escolha de palavras. Não
encontramos no poema uma variação ornamental da prosa como
na poesia clássica. O texto contrapõe-se à fluidez da linguagem,
construindo-se em torno de blocos de significado que lembram
quadros isolados, meramente justapostos. A ausência de
pontuação e o emprego de letras minúsculas no início das
estrofes são elementos nítidos da modernidade. A sintaxe
relacional e discursiva dá lugar ao valor unitário da palavra que
explode como unidade de significado, capaz de traduzir a
singularidade da experiência. O próprio título, MEIO FIO,
parece-nos de todo improvável em um poema lírico que
obedecesse aos cânones da tradição literária. A concretude do
termo desafia o valor abstrato da palavra na poesia clássica, que
se ordena em superfície, segundo normas de economia e
elegância. Cada semema tem um peso específico na construção
do significado do texto, não a partir de relações abstratas, mas
de uma leitura motivada dos elementos da realidade. Estamos
diante de uma nova ordem da qual o poema emerge como um
mosaico de cenas quotidianas. Sua poeticidade reside em
buscar, no absurdo da banalidade, a essência do homem
dilacerado.
O fio da imagem
A feição plástica do poema lembra um tabuleiro de jogo
infantil com suas várias casas, cada uma das quais encerra um
destino específico para o jogador: avançar, recuar, esperar.
As estrofes em número de sete parecem corroborar o aspecto
lúdico do poema, que se desdobra em torno de um número de
sorte ou azar.
Se lembrarmos a solidez que João Cabral atribui ao
número quatro, percebemos nas estrofes compostas por três
3
versos justamente o oposto - a idéia de instabilidade. Embora o
título do poema nos sugira o conceito de metade, MEIO FIO, o
número de estrofes e o número total de versos, vinte e um, não
são divisíveis por dois. Tal fato aparentemente casual é mais
um índice das incertezas que minam o texto poético. O meio, o
equilíbrio, que segundo a estética clássica, é sinal de harmonia,
confirma-se, de início, como uma impossibilidade.
A importância do título para a compreensão do texto é
ressaltada pelo uso de letras maiúsculas, as únicas do poema;
sua função de epíteto nomeia, de antemão, uma linha
interpretativa para o poema. MEIO FIO é inevitavelmente o fio
condutor para tecermos significados em torno do texto - entre o
meio e fio, o leitor em busca do código de leitura, capaz de dar
conta das transgressões do poético. MEIO FIO nos lembra uma
linha divisória entre dois planos: um fio tênue entre o ser e o não
ser, o eu e o outro, a vida e a morte, a dor e a alegria. O fio do
perigo, o risco: o sonho por um fio, entre o possível e o
improvável, o homem por um fio entre a lucidez e a loucura.
Um fio é também um resto, um resquício: um fio de esperança,
um fio de desejo. O adjetivo meio intensifica a noção de
proximidade entre duas instâncias opostas: menos do que um
fio, apenas meio fio separa dois elementos do real.
O título aponta ainda para uma encruzilhada de
significados que emergem do vocábulo homófono, meio-fio.
O sentido de limite, divisão surge em “arremate entre o plano do
passeio e o da pista de rolamento”, “chanfradura no batente da
porta ou em caixilhos”. Em todos esses significados, parece
implícita a idéia de que mesmo sendo um fio-de-pedra, o meio-
fio é uma estreita faixa entre dois planos contíguos que correm
paralelos, mas estão inevitavelmente separados.
Paradoxalmente, meio-fio, como termo náutico, carrega também
o valor de suporte e proteção, é um “anteparo que vai da popa à
proa, no porão, e serve para equilibrar a carga”. Além de linha
limítrofe, o meio-fio atua como uma barreira, impedindo a
coexistência de forças antagônicas em um mesmo espaço.
4
O meio-fio subsiste na invisível linha reta que divide o
poema em duas partes: quatro estrofes à esquerda, três estrofes à
direita. A sensação de desarmonia se revela seqüência de
estrofes distribuídas irregularmente em duas colunas. O poema
traduz a impossibilidade do equilíbrio pleno, revelando, no
plano visual, a divisão ontológica do sujeito a quem resta, na
operação inexata do existir, um fio de luz entre eu e mim recém
chegado.
O fio sonoro
O poema é composto por estrofes heterométricas. Seis
das sete estrofes iniciam-se por versos pentassílabos: tem / um /
fio / de / quei / jo, tem / um / fio / de / go / ma, tem / um / fio / de
/ vi / da; tem / um / fio / de / car / ne, tem / um / fio / de / san /
gue, tem / um / fio / de luz. Apenas a quinta estrofe inicia-se por
um verso hexassílabo: tem / um / fio / de / sau / da / de. Essa
quebra na versificação intensifica o sentimento de perda que
acomete o eu-lírico: a saudade parece ser a mais duradoura das
emoções.
O segundo verso de cada estrofe tem entre quatro e sete
sílabas. É interessante ainda observar que o menor número de
sílabas encontra-se no segundo verso da última estrofe, em que o
poeta volta-se para o encontro consigo próprio: “entre eu e
mim”. Diante do abismo entre o eu-lírico e o mundo, fonte de
inúmeros conflitos, a busca de si mesmo encerra um breve
percurso, a menor distância transponível. Dois versos
pentassílabos, entre eu e teu corpo e entre eu e você, em meio a
versos mais longos, de seis e sete sílabas, ressaltam o encontro
amoroso como um espaço real de aproximação. Em
contrapartida, o hiato que se instaura entre o indivíduo e a
realidade reflete-se nos versos com um maior número de sílabas.
Mesmo a relação mãe e filho encerra, após o nascimento, um
espaço de separação inevitável: sete sílabas se interpõem entre
um fio de carne e recém nascido.
5
O último verso de cada estrofe possui invariavelmente
quatro sílabas, atribuindo assim o mesmo peso aos vários
atributos do existir: re / cém / mor / di / do, re / cém / mas / ca /
do, re / cém / a / ma / do, re / cém / nas / ci / do, re / cém / pas /
sa / do, re / cém / par / ti / do, re / cém / che / ga / do.
A ocorrência de versos com menor número de sílabas na posição
final da estrofe cria uma anticadência, mas a simetria é
restaurada pela repetição do mesmo esquema em todas as
estrofes.
Excetuando-se o primeiro verso da quinta estrofe, que
apresenta um andamento ternário, os versos iniciais e finais das
estrofes caracterizam-se pelo andamento binário, com tônicas na
primeira, terceira e quinta sílabas. Dessa forma, ao longo das
estrofes, cada verso inicial e final ecoa o mesmo compasso,
embora as tônicas estejam distribuídas diferentemente.
Enquanto, no primeiro verso, a sílaba tônica antecede a átona;
no terceiro verso, ocorre o oposto – a átona precede a tônica.
O andamento ternário na quinta estrofe parece traduzir quão
longo é o fio de saudade que une o eu-lírico à amada. Enquanto
em todo o resto do poema prevalece o compasso binário, a
saudade prolonga a duração temporal do verso, deslocando a
sílaba tônica da quinta para a sexta sílaba.
O efeito da repetição rítmica sugere que em momentos
diversos, de separação, dor e reencontro, o homem experimenta
a vida praticamente com a mesma intensidade. Já o segundo
verso de cada estrofe apresenta uma irregularidade rítmica que
denota as inúmeras circunstâncias enfrentadas pelo “eu”.
A variedade de situações é retratada nas cadências binária e
ternária desses versos em que tônicas e átonas alternam-se sem
um padrão definido.
A maioria dos versos são femininos, isto é, terminam em
sílaba átona: tem um fio de quei/jo / entre eu e o misto quen/te
/ recém mordi/do // tem um fio de go/ma / recém masca/do
/ tem um fio de vi/da / entre eu e teu cor/po / recém ama/do
// tem um fio de car/ne / entre teu corpo e teu fi/lho / recém
nasci/do // tem um fio de sauda/de / recém passa/do // tem um
6
fio de san/gue / recém parti/do // recém chega/do. Apenas
cinco versos são masculinos, ou seja, possuem a última sílaba
tônica: entre o chiclete e eu // entre eu e vo/cê // entre a razão
e eu // tem um fio de luz / entre eu e mim. Curiosamente, são
versos de grande densidade semântica, capazes de sintetizar o
percurso do eu em busca de autoconhecimento.
O poema em versos brancos, apresenta em todas as
estrofes a aliteração das nasais m e n, que dão origem a um tom
melancólico e sombrio: tem um fio de queijo / entre eu e o
misto quente / recém mordido”// tem um fio de goma / entre
o chiclete e eu / recém mascado”, etc.
Apesar da ausência de rimas entre os versos de uma
mesma estrofe, os versos finais das várias estrofes apresentam as
terminações ido e ado: mordido (A), mascado (B), amado (B),
nascido (A), passado (B), partido (A), chegado (B). Não é
observada, contudo, uma ordem de distribuição das rimas entre
as estrofes. Rimas entrelaçadas (ABBA) antecedem rimas
cruzadas (BAB). Essas irregularidades sinalizam as incertezas
do “eu” em face da realidade, refletem a inconstância de um
mundo em que nada é durável ou permanente. Não é possível
controlar as rimas ou o curso do destino.
Ao longo do poema, há um predomínio da vogal e
nasalizada sobre os demais sons vocálicos, devido a repetição
das palavras tem, entre e recém em todas as estrofes e da
ocorrência do vocábulo quente na primeira estrofe.
Observa-se no poema uma única aliteração na primeira
estrofe, embora em versos distintos, devido à repetição do
mesmo som inicial nas palavras queijo e quente. Ocorre ainda
uma rima interna na terceira estrofe entre os pronomes eu e teu,
e a repetição desse mesmo possessivo no segundo verso da
quarta estrofe: entre teu corpo e teu filho.
A ausência de rimas finais e de estrofes isométricas faz
com que a distribuição de sílabas tônicas e átonas, a incidência
de versos com o mesmo padrão métrico e a repetição de
expressões sejam determinantes para o ritmo do poema.
As irregularidades métricas ao longo do poema revelam que a
7
afetividade está sujeita às vicissitudes da existência: nada se
repete, tudo é fugaz. Não há padrões rígidos de versificação
porque a vida não cabe mais em fórmulas previsíveis.
O poema, fio com que se tece a experiência do mundo, denuncia
a instabilidade do homem em face do quotidiano, revoga a
certeza das formas fixas, das rimas exatas. A poesia é um tecido
de inconstâncias.
O fio da palavra
O poema é construído em torno de substantivos (meio
fio, fio, queijo, misto quente, goma, chiclete, vida, corpo, carne,
filho, saudade, sangue, razão e luz) e de adjetivos (recém
mordido, recém mascado, recém amado, recém nascido, recém
passado, recém partido e recém chegado).
Dentre os substantivos, onze são concretos e apenas três são
abstratos (vida, saudade, razão), motivo pelo qual o poema
impõe ao leitor um forte jogo de imagens. Palavras como queijo,
misto quente, goma e chiclete retratam o ambiente da juventude;
corpo, carne e filho aludem à descoberta da sexualidade; sangue
e luz traduzem o sofrimento e a descoberta do eu.
O substantivo corpo, mencionado em duas estrofes consecutivas
(entre eu e teu corpo // entre teu corpo e teu filho) sugere
conceitos distintos: intimidade e maternidade, respectivamente.
Nos substantivos e adjetivos compostos, percebe-se a
omissão do hífen determinando uma grafia marginal que escapa
à norma da língua. O Dicionário Escolar da Língua Portuguesa
registra meio-fio e misto-quente, além de prescrever que o
prefixo recém deve ligar-se ao particípio com hífen1, logo
cabem as grafias: recém-mordido, recém-mascado, recém-
amado, recém-nascido, recém-passado, recém-partido e recém-
chegado. É interessante observar que o prefixo refém é formador
de seis adjetivos e de um único substantivo, recém-passado. Se
1 Recém é de uso generalizado só como prefixo, unido a um particípio:
recém-chegado, recém-nascido, recém-vindo.
8
fosse adjetivo, o termo deveria concordar em número com os
pronomes eu e você: tem um fio de saudade / entre eu e você /
recém passados. Trata-se, portanto, de um aposto, apesar da
omissão da pontuação – entre eu e você: recém passado.
O pronome pessoal eu tem um alto índice de ocorrência,
sendo omitido apenas na quarta estrofe, cuja temática é a relação
mãe e filho, da qual o eu-lírico se exclui. Os demais dêiticos teu,
você e mim deixam claro o dialogismo central da composição, o
qual se estende por três estrofes em posição mediana, limitadas
por dois monólogos, um inicial e outro final, formados pelas
duas primeiras e pelas duas últimas estrofes. O caráter
vanguardista da composição justifica o emprego do pronome de
tratamento você ao lado do possessivo teu, e do pronome pessoal
eu após a preposição entre. A Nova Gramática do Português
Contemporâneo (Cunha & Sintra; 1985:291-2) prescreve o uso
das formas oblíquas tônicas depois dessa preposição, logo
construções como entre o chiclete e eu // entre eu e teu corpo //
entre eu e você // entre a razão e eu // entre eu e mim são
licenças poéticas que refletem a linguagem coloquial.
Apenas o verbo ter repete-se ao longo do poema com
sentido impessoal de haver na expressão tem um fio de.
A escassez de verbos de ação é compensada por adjetivos
formados com prefixo recém e um particípio, alguns dos quais
são neologismos (recém mordido, recém mascado, recém
amado, recém passado e recém partido) que sugerem as ações
morder, mascar, amar, passar, partir. O eu-lírico parece
insinuar que a vida lhe foge ao controle, pois o ato é percebido
como passado, após haver sido concluído. O gesto escapa de
suas mãos, e somente é sentido como uma ação irrevogável,
fugidia, que se instaura no presente como recordação. Esse hiato
entre o sujeito e a ação marca a impotência do eu diante de todas
as situações, sejam elas banais como o misto quente / recém
mordido ou significativas como eu e você / recém passado. O
poema traduz o momento fugaz, recém-vivido, sobre o qual se
debruça o poeta em busca de respostas, pois entre o ontem e o
9
hoje resta apenas um fio de recordação, que segundo Emil
Staiger, é a essência do lírico (Staiger; 1975:55).
O fio da sintaxe
A repetição de estruturas sintáticas ao longo do poema
dissimula as disparidades da mensagem, em que coexistem
opostos como misto quente, chiclete, teu corpo e teu filho.
Ao mesmo tempo, a repetição opõe-se ao caráter prosaico da
linguagem que resiste ao verso e tenta desdobrar-se em frase.
É a reiteração de expressões que faz do texto poesia, apesar do
tom coloquial das palavras. A repetição lírica, contudo, não
gera novos significados. Trata-se da mesma disposição anímica
que retorna e faz eclodir um sentimento de perplexidade diante
da vida. Tem um fio de queijo, tem um fio de goma, tem um fio
de vida, tem um fio volátil de tempo entre presente e passado.
Nesse universo efêmero, o poeta se volta ao instante passado à
procura de sua identidade no emaranhado de gestos entre o ser e
o mundo.
O fato de cada estrofe ser formada por uma oração sem
sujeito sugere que o poeta coloca-se à margem do processo de
escolhas em sua própria vida, renunciando à posição de agente
da ação. Os complementos verbais são formados pelo
substantivo fio e uma locução adjetiva que funciona como
adjunto adnominal. Já o adjunto adverbial de lugar inicia-se pela
preposição entre e apresenta dois termos ligados pela conjunção
e, seguidos, na quinta estrofe, por um aposto. Nas demais
orações, o último termo parece oscilar entre predicativo e
adjunto adnominal. Na segunda estrofe, por exemplo, julgamos
estar diante do predicativo recém mascado que se refere ao
pronome eu. Já na quarta estrofe, recém nascido parece
funcionar como adjunto adnominal do termo antecedente, filho.
Na primeira e na segunda estrofes, tem um fio de queijo /
entre eu e o misto quente / recém mordido // tem um fio de
goma / entre o chiclete e eu / recém mascado temos uma
hipotipose, descrição nítida e precisa de uma ação que se traduz
10
em imagem plena e inconfundível. Já as demais estrofes soam
como epifonemas, elaborados em torno de reflexões curtas e
generalizadoras como tem um fio de sangue / entre a razão e eu
/ recém partido. Em tais construções, contudo, predomina a
abstração, e a metáfora se sobrepõe à denotação.
O fio semântico
O poema estabelece um jogo de significados em torno do
semema fio que se desenrola da primeira à última estrofe. .
Passamos da concretude instaurada em fio de queijo e fio de
goma à linguagem conotativa em fio de vida, fio de carne, fio de
saudade, fio de sangue e fio de luz. Fio de vida sugere uma
frágil relação amorosa e ao mesmo tempo uma breve esperança
de reencontro. Fio de carne nos remete à ligação entre mãe e
filho, mas paradoxalmente também à separação dos corpos com
o nascimento, deixando apenas um fio definitivo entre ambos –
a hereditariedade. Fio de saudade alude a uma tênue
recordação, em que se fundem o ontem e o hoje no percurso
inevitável da memória. Fio de sangue traduz a dor entre a razão
e o sentimento, o conflito entre o desejo de ficar e a decisão de
partir. Fio de luz representa uma esperança sutil, um passo em
direção ao reencontro interior.
A palavra fio assume um valor metafórico nas expressões
um fio de vida, um fio de carne, um fio de saudade, um fio de
sangue e um fio de luz, em que se encontra uma correspondência
nítida com a expressão um pouco de. Os substantivos carne,
sangue e luz igualmente encerram com o termo fio metáforas
por adjunto adnominal, referentes à maternidade, ao sofrimento
e à esperança. O poeta resgata a palavra de seus múltiplos
contextos e significados para, então, transformá-la em poesia.
Na segunda estrofe, ocorre um jogo sinestésico quanto ao
emprego do adjetivo recém mascado que, em co-ocorrência com
a palavra chiclete, refere-se, entretanto, ao pronome eu.
O adjetivo adquire, assim, por analogia, um novo sentido –
recém-magoado, criado a partir da metáfora. Livre das amarras
11
da linguagem denotativa, o poema volta-se para sua própria
tessitura e refaz os percursos da palavra enquanto teia de idéias e
processos combinatórios.
Na última estrofe, surge um oxímoro, construído em
torno da oposição entre eu e mim, que à primeira vista parece
uma impertinência, mas traduz o conflito interior e a busca da
essência do ser. O eu-lírico descobre no presente a
impossibilidade de ser o que ontem fora possível: eu e mim são
duas faces de um vazio irrecuperável.
Entre a insensatez do gesto cotidiano de comer um
misto-quente e a dolorosa percepção de si mesmo, a estranheza
do ser no mundo, diante de ações impensadas e momentos de
intensa lucidez. Em um extremo do fio, o desencontro, a vida
sem sentido; no outro extremo, o rumo, a revelação.
Referências
BUENO, Francisco da Silveira. (1980). Dicionário Escolar da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Fename.
CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. (1985). Nova Gramática
do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
STAIGER, Emil. (1975). Conceitos Fundamentais da Poética.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.