Post on 03-Jul-2018
MARCO RODRIGUES DA SILVA
DIÁSPORA, PÓS-COLONIALISMO E MEMÓRIA EM ADEUS HAITI, DE EDWIDGE
DANTICAT
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado Acadêmico em Estudos Literários da Fundação Universidade Federal de Rondônia como exigência a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários.
Orientadora: Profª. Dra. Marília Lima Pimentel Cotinguiba
PORTO VELHO
2016
BIBLIOTECA CENTRAL PROF. ROBERTO DUARTE PIRES
FICHA CATALOGRÁFICA
Bibliotecária responsável: Eliane Barros CRB11-549
S586d
Silva, Marco Rodrigues.
Diápora pós-colonialismo e memória em Adeus, Haiti, de Edwidge
Danticat. / Marco Rodrigues Silva. Porto Velho, 2016.
80f.
Orientador: Profa. Dra. Marília Lima Pimentel Cotinguiba.
Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Fundação Universidade
Federal de Rondônia. Porto Velho, 2016.
1. Diáspora. 2. Memória. 3. Pós-Colonialismo. 4. História do Haiti. I.
Fundação Universidade Federal de Rondônia. Mestrado em Estudos
Literários. II. Título.
CDU: 82
Marco Rodrigues da Silva
Diáspora, Pós-Colonialismo e Memória em Adeus Haiti, de Edwidge Danticat
Dissertação apresentada em 24 de agosto de 2016 ao Programa de Pós-Graduação
Mestrado Acadêmico em Estudos Literários da Universidade Federal de Rondônia –
UNIR como requisito final a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários e
aprovada em sua forma final.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a Deus, pela força e energia a mim concedidas
nesta trajetória;
A Professora Marília Lima Pimentel Cotinguiba, a quem me prestou total
confiança quando mais precisei, além da relevância da pesquisa e da indicação em
trabalhar a Literatura Haitiana como objeto de pesquisa;
Ao Professor Hélio Rodrigues da Rocha, a quem dedico estas linhas pela sua
prestatividade, paciência e dedicação, não somente a meu crescimento intelectual
enquanto mestrando, mas ao desenvolvimento crescente deste curso;
A todos os professores deste mestrado, em especial a Sônia Sampaio, Júlio
Rocha, Miguel Nenevê, Milena Guidio, Pedro Monteiro e Cláudia Maria que me
proporcionaram um aprendizado ímpar e de grande relevância;
Também não poderia esquecer dos professores Joseph Handerson (UFAP) e
Geraldo Castro Cotinguiba (UNIRON), pelo engrandecimento obtido pelos diálogos
acerca do Haiti e da Literatura Haitiana;
A Administração da Universidade Federal de Rondônia e o Núcleo de
Ciências Humanas, pelas orientações no campo burocrático e nos trâmites
necessários no decorrer do processo acadêmico;
A todos os meus colegas, companheiros de jornada acadêmica: Daniel,
Gabriel, Karla Andrea, Carla Piovezan, Larissa, Joamma, Taianni, Uryelton, Jazilane,
Lusilene, Mislene, Malu, Chirlane, Márcio. Todos vocês contribuíram para o meu
desenvolvimento acadêmico. Meu desejo é que todos tenham muito sucesso. O que
fizemos foi só o começo!
A minha família, maior base de tudo o que já conquistei. Meus pais que nunca
me colocaram obstáculos nos meus planos profissionais e que sempre me
incentivaram com seus conselhos. Meus irmãos que sempre foram “inspirados” em
dar confiança e suporte. Meus demais parentes: tios e primos, que pessoal ou
virtualmente transmitiram com altruísmo suas considerações a respeito desta nova
etapa da minha carreira.
Também dedico minha gratidão a meus amigos de várias partes do Brasil,
especialmente de três: Rio de Janeiro, Paraíba e Rondônia. Por onde eu passo,
desde a infância até a maturidade, vejo pessoas especiais que passam por mim e
deixam suas marcas. Sou muito grato pelos amigos que tenho! Neste fim, quero
lembrar em especial dos amigos da Graduação em História (UFCG): Mário Diniz ( in
memorian), Lucas Sanchez, José Lêudo Nobrega, Pablo Gomes, Jameson Oliveira e
Edilson Gomes, que tem uma “culpa” enorme por estar aqui em terras rondonienses.
Finalmente, dedico por fim a minha esposa, Fernanda Oliveira Fernandes
Silva, pela paciência, espera e arte em cooperar com doçura para este momento.
SILVA, Marco Rodrigues da. Diáspora, Pós-Colonialismo e Memória em Adeus
Haiti, de Edwidge Danticat. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Estudos
Literários). Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Porto Velho, 2016.
RESUMO
No presente estudo, proponho investigar a partir da obra traduzida para o
português da escritora haitiana Edwidge Danticat, “Adeus, Haiti”, as possíveis
relações da Literatura Haitiana com a diáspora e a memória e como ambas podem
abrir novas possibilidades de estudo sobre a identidade cultural. Para este fim, a
análise é subsidiada a partir de estudos sobre a diáspora, dialogando com alguns
críticos como Stuart Hall, Stephane Dufoix, Paul Gilroy e Homi Bhabha, estudando o
conceito de diáspora e como é atualmente construído. Partindo para um próximo
passo, é proposto analisar a diáspora a partir da obra, percebendo que diáspora ou
“diásporas” são possíveis a partir da escrita da autora. Finalmente, pretendo
associar a diáspora a um outro dilema: a construção de identidade. Podemos por fim
responder a uma questão: poderá uma identidade cultural ainda permanecer inerte
frente ao processo diaspórico?
Palavras-chave: diáspora, identidade, pós-colonialismo, História do Haiti.
SILVA, Marco Rodrigues da. Diaspora, Post-Colonialism and Memory in “Adeus
Haiti”, of Edwidge Danticat. Dissertation (Master’s Program in Literary Studies).
Foundation Federal University of Rondônia - UNIR. Porto Velho, 2016.
ABSTRACT
In the present study, I propose to investigate from the work translated into
Portuguese,of the Haitian writer Edwidge Danticat, "Adeus, Haiti", the possible
relations of Haitian literature with the diaspora and how both can open new
possibilities of study on cultural identity. To this end, the analysis is subsidized from
studies on the diaspora, dialoguing with some critics as Stuart Hall, Stephane Dufoix,
Paul Gilroy, and Homi Bhabha, studying the concept of diaspora and how it is
currently constructed. Moving on to the next step, it is proposed to analyze the
diaspora from the work, realizing that diaspora and diasporas are possible from the
writing of the author. Finally, I want to associate the diaspora to another dilemma: the
construction of identity. We can finally answer a question: can a cultural identity still
remain inert against the diasporic process?
Keywords: diaspora, identity, post-colonialism, Haitian History.
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................. 8
Seção 1. Adeus Haiti e a Literatura Haitiana ......................................................... 11
1.1 Breves Traços da História do Haiti ...................................................................... 11
1.2 Breves Traços das Literaturas Caribenha e Haitiana .......................................... 23
1.3 Edwidge Danticat................................................................................................. 30
Seção 2. Adeus Haiti e a Diáspora ......................................................................... 40
2.1 Conceituando Diáspora ....................................................................................... 40
2.2 Danticat, Uma Leitura Possível da Diáspora ....................................................... 48
Seção 3. Danticat, Memória e Pós-Colonialismo: Uma Tentativa do Discurso
Descolonizador.........................................................................................................58
3.1 A Teoria Pós-Colonial ......................................................................................... 58
3.2 Adeus, Haiti: Representações (Neo) Coloniais e Formas de Resistência .......... 62
3.3 Memória e Identidade ......................................................................................... 71
Considerações Finais ............................................................................................ 78
8
INTRODUÇÃO
O percurso histórico da Literatura Haitiana é provido de características que
apontam para a história da própria sociedade haitiana. Desde o tempo do
indigenismo, passando pelo realismo maravilhoso até a literatura contemporânea, a
literatura do Haiti sempre teve uma associação com sua cultura. A literatura sempre
revelou nuances dos valores sociais construídos durante anos de repressão política
e permitiu com que os artistas expressassem sentimentos alusivos a negritude, a
heranças culturais africanas e a resistência ao imperialismo.
Recentemente a literatura haitiana tem produzido obras mais voltadas para o
cenário da diáspora e da identidade. Este direcionamento da literatura tem levado
em consideração muitos aspectos. Entre eles, destaca-se o imigrante e seus mais
variados dilemas: como este imigrante se encontra no lugar de recepção ou fora de
sua terra-natal; como este se depara com o “novo” e como ele se adapta (ou não)
com este novo lugar. Para Stuart Hall (2003), o sujeito em questão está num “lugar
novo”, havendo um paradoxo de pertencer e não pertencer ao mesmo tempo ao país
de destino. O sujeito da diáspora, falando com base em Hall (2003), parece ser
inacabado e torna-se arriscado julgá-lo como um processo empírico ou fechado. A
própria diáspora não é simplesmente um ato de deslocamento para outro lugar, de
cultura, idioma e cosmovisão diferentes mas num ato complexo e individualizado,
cujo imigrante recria tanto suas tradições antes adquiridas quanto as que ele se
depara. Eis a constante experiência do que Bhabha (2003) sugere como o
entrelugar. A experiência diaspórica, por si própria, nunca é logicamente definida.
Na escrita de Edwidge Danticat, o grande desafio está em entender se há ou
não uma diáspora definida. Assim como na sua obra, a literatura caribenha recente
abre a discussão se migração e nação fazem parte de um encontro perene com a
história, principalmente no que se refere ao passado de dor e de opressão. O que
mais se admira na literatura haitiana é a possibilidade de enxergar a independência
dos contos que, mesmo havendo em comum os desafios de sair da terra natal, é
composto de leituras que desafiam qualquer tentativa de simplificar ou totalizar o
complexo entrelaçamento entre diáspora e identidade cultural.
Partindo desse pressuposto, o presente estudo estabelece a preocupação em
estudar sobre diáspora, mais especificamente a haitiana, sob uma perspectiva pós-
9
colonial. O livro Adeus, Haiti tem por objetivo abrir a discussão sobre possíveis
elementos da diáspora, bem como as reações em sua leitura sobre o sujeito da
diáspora em sua própria história. O leitor se coloca nos campos da indecisão, onde
não se tem uma afirmação objetiva de realização ou de regresso. Veremos como o
romance apresenta uma família separada pela migração, descrevendo os cenários
deste paradoxo que, praticamente se intercalam: o lugar de infância, Bel Air, com a
periferia de Nova York. Também será analisado como o drama também é marcado
pela relação entre história e literatura, combinadas a nostalgia da juventude e o
perigo da ausência em relação a família e ao lugar de origem.
Como hipótese, traremos também a discussão de como a configuração
histórica da narrativa se confunde com o próprio Haiti. A trama apresenta desde o
problema da ditadura dos Duvalier, a resistência dos que negam este espectro
político até a controvérsia da chamada “democracia” estadunidense, percebendo a
integridade do refugiado é questionado. A discussão levará em consideração sobre
a nova vanguarda da literatura contemporânea, emergente de regiões marcadas
historicamente pelo colonialismo, no intuito de estabelecer um contraponto com o
discurso colonizador.
No âmbito metodológico, esta pesquisa foi feita mediante a perspectiva
qualitativa, por um levantamento bibliográfico, cujos objetos de estudo são a
diáspora, os estudos pós-coloniais e possibilidades de resistência. Também é de
grande valia mencionar que muitos pesquisadores já trabalham o Haiti, o processo
migratório e a diaspora. Nesse caso, menciono autores como Joseph Handerson,
entre outros que contribuíram com artigos publicados em portfólios e páginas de
estudos culturais.
No primeiro capítulo, propomos apresentar um breve histórico sobre a
Literatura Caribenha, mais especificamente a Haitiana, com o intuito de entender
pelo estudo pós-colonial as relações entre a literatura e a história do país,
percebendo sua crítica em relação aos considerados “centros” da crítica literária.
Veremos também a recepção em relação a escritora haitiana Edwidge Danticat tanto
no Haiti quanto nos Estados Unidos, país onde reside, entendendo como Adeus,
Haiti foi atribuído nessa consideração de uma escrita não apenas contemporânea,
mas carregada deste processo migratório que acompanha em si as raízes culturais,
a família e a memória.
10
Já no segundo capítulo, realizamos um estudo mais analítico da obra,
permitindo associá-la ao conceito de diáspora, entre teóricos do pós-colonialismo
como Stuart Hall e Paul Gilroy até o tempo recente, a exemplo de Stephane Dufoix.
É viável entender como a idéia de diáspora nos ajuda a compreender uma literatura
de memória enquanto meio de entender os deslocamentos e os (des)encontros
entre várias culturas, o que nos permite adentrar na questão da construção de uma
identidade pela qual questionaremos se ela é trans ou intercultural. Veremos através
de uma análise da escrita em Danticat como então é representado na obra o
haitiano na diáspora.
No terceiro capítulo, analisaremos as possíveis representações mediante o
estudo sobre hibridismo a partir da obra citada. Tendo como objetivo tratar a
discussão sobre a literatura de Danticat com os estudos pós-coloniais, discutiremos
possíveis movimentos ou ações políticas e sociais associados à literatura de
Danticat, na contribuição teórica de autores que discutem questões acerca da
temática do hibridismo como Stuart Hall e Homi Bhabha.
Em síntese, a pesquisa busca uma reflexão sobre a possibilidade de um
contradiscurso, cuja análise dos personagens tratará da resistência do haitiano
frente à repressão social e humana encontradas tanto no seu país, quanto no
exterior. A visão do imigrante, em contraste com o seu receptor, os dilemas que este
mesmo sujeito itinerante enfrenta, entre o lugar de origem e o de imigração, levam a
questionar e pensar sobre a diáspora e sobre a produção de uma “nova” identidade,
percebendo possibilidade de denúncia aos problemas sociais nela existentes.
11
PARTE I – “ADEUS, HAITI” E A LITERATURA HAITIANA
Não sou uma potencialidade de algo, sou plenamente o que sou.
(FANON, 2011, P.122)
Literatura e História são dois saberes próximos pois abordam em comum
muitos momentos históricos. A narrativa de Edwidge Danticat não está distante
desta afirmação, pois a fronteira entre ambas são muito tênues e quase que
imperceptíveis. Portanto, como tarefa desta seção é válido apresentar um breve
panorama histórico do Haiti bem como dos movimentos literários, sobretudo a
chamada literatura da diáspora. Isso se justifica pelo fato de se tratar, no presente
trabalho, de uma obra escrita por uma escritora haitiana que migrou para o Estados
Unidos, conforme já assinalamos.
1.1 BREVES TRAÇOS DA HISTÓRIA DO HAITI
O território que corresponde ao atual Estado do Haiti era ocupado pelos
arawakos e tainos quando, em 1492, as três naus, Santa Maria, Pinta e Niña,
chefiadas por Cristóvão Colombo, chegaram à ilha, batizando-a de Ilha Hispaniola.
Para o grupo que pertencia essa expedição à Europa, ficou a emblemática atribuição
errônea de chamar a todos os nativos do lugar de “índios”. Ocuparam a ilha, se
estendendo da porção leste até o oeste da ilha, passando a dominar o espaço e
explorar a mão de obra indígena. A população nativa foi completamente prejudicada
frente à descoberta de riquezas minerais significativas e, mais tarde, pela prática da
agricultura. Louidor, apud Zavala, descreve uma visão prévia de como os nativos
eram vistos e quais as intenções dos “conquistadores” espanhóis:
Os índios eram tão sumariamente bárbaros e incapazes, que nunca
se poderia imaginar caber tal torpeza numa figura humana: tanto que
os espanhóis, que primeiro os descobriram, não podiam ser
persuadidos de que tinham uma alma nacional, mas, quando muito,
um grau a mais do que macacos ou papagaios, e não tinham
nenhum escrúpulo ao engordarseus cães com a carne dos
aborígenes, tratando-os como puros animais. (LOUIDOR, 2013, p.
13)
12
A impressão tida pelos colonizadores não foi nada agradável para os
arawakos e tainos que, por sua vez, passaram pelo doloroso processo colonizador
do europeu para com o nativo americano. O colonizador, achando-se na posição de
detentor de toda a terra possível que está à sua frente, passou a determinar naquela
ilha seu domínio. Não é de se admirar que “batizaram o nome da ilha de Ilha de
Santo Domingo, confirmando a aliança da exploração com a catequização,
consolidando a conquista, a princípio, dos espanhóis, logo após a chegada de
Cristóvão Colombo.
A população nativa foi praticamente exterminada, tanto pela opressão
violenta dos invasores europeus, quanto pelas doenças como rubéola e varíola. A
dizimação facilitou, por um lado, a conquista de novos espaços. Porém, era
necessária mais mão de obra, já que os espanhóis adotavam o sistema escravista.
Debaixo da justificativa oriunda da Idade Média, em que se baseavam suas
doutrinas religiosas para justificar a colonização, quem resistisse, seria executado.
Louidor discorre sobre o tamanho da atrocidade causada pela colonização
espanhola, no seu início:
Os espanhóis começam a caçar índios arawakos; muitos deles são
enforcados e queimados, e muitos outros começam a matar seus
filhos para livrá-los dos espanhóis. Em dois anos, a metade da
população de Hispaniola, calculada em 250.000 habitantes, morreu
assassinada, mutilada ou suicidada. Quando se viu que não restava
mais ouro, os índios foram tomados como escravos para trabalharem
em grandes fazendas chamadas “encomendas”. (LOUIDOR, 2013,
p.13)
Se para o colonizador, o domínio ou “descobrimento” foi um meio de espalhar
seu “progresso” e consolidação de suas ideias, para o colonizado, foi,
indubitavelmente, o retrato da atrocidade humana, na sua maior abundância. O
nativo era visto por um patamar não obstante aos outros animais da selva, ou seja,
era colocado numa posição de ser sem “cultura”, sem “língua”, sem costumes que se
adequem ao modelo europeu. Para o colonizador, era preciso que o colonizado
enquanto tido como “bárbaro” fosse convertido à sua religião e submetido a seu
poder. Muitos por uma resistência corajosa, reconhecendo as intenções do
colonizador, confrontaram com eles.
13
Tempos depois do genocídio ocorrido, houve um acordo entre a França e a
Espanha. Por fim, em 1697, foi assinado o Tratado de Ryswick, envolvendo os dois
países, no qual a ilha foi dividia. A parte ocidental da ilha foi cedida à França,
recebendo o nome de Saint-Domingue, sendo a mais importante possessão
francesa nas Américas. Ali ocorreu de forma radical o cultivo do açúcar e do café.
Para isso, com a redução drástica do trabalho indígena, milhares de africanos foram
trazidos para intensificar a produção e exportação dos produtos agrícolas. Não
houve diferença entre a colonização de exploração espanhola com a francesa, pois,
apesar de os negros agora estar no cenário colonial, as atrocidades e a exploração
continuavam na mesma intensidade:
Os escravos negros foram muito maltratados; mal nutridos, mal vestidos e mal dormidos; qualquer manifestação de rebelião era passível de mutilação corporal ou morte. De fato, em 1788, só restaram em Saint-Domingue cerca de 500.000
escravos negros, dos quais 60% tinham nascido na África. Centenas de milhares de escravos negros morreram também por causa dos trabalhos forçados nas plantações de cana-de açúcar, índigo, algodão, café e cacau. (LOUIDOR, 2013, p.17)
Deste momento em diante, a ilha recebeu uma ocupação de franceses pelo
lado ocidental, visto que o tratado entre espanhóis e franceses foi homologado.
Deste momento em diante, a então colônia seria uma fonte abundante da
exploração colonial francesa, voltada para o comércio escravo, sendo produzidas
mercadorias que seriam exportadas principalmente na Europa. A França chegou
nessa época a ser o maior produtor de açúcar, assim como um dos maiores
vendedores de café.
Para produzir um montante tão grande de açúcar, era recomendado um
contingente de aproximadamente quinhentos mil escravos nas fazendas da ilha.
Para se ter a idéia do contraste, a população eurodescendente, formada por
proprietários e administrados, era estimada em 35 mil pessoas. Havia também um
contingente de ex-escravos que conseguiram por inúmeros motivos sua alforria e até
enriqueceram, além dos mulatos que, por sinal, era um grupo resultantes da
miscigenação racial entre negros e europeus. Saint Domingue produzia quase dois
terços do açúcar comercializado no mundo, nas décadas que antecederam a
revolução dos escravos.
14
Porém esses mesmos escravos africanos rebelaram-se em 1791. Percebendo
que estavam em maioria, os escravos negros formaram uma rebelião liderada por
Toussaint L'Overture e pelo líder religioso Dutty Boukman, para que sua terra fosse
liberta do domínio da França. Em 1791, L'Overture incentivou os escravos a
dizimarem a população mandatária eurodescendente. No objetivo de libertação
frente a colonização francesa, tomando Louidor, os negros escravos evocavam
firmemente a sua cultura e seus antepassados (2013, p.17). A princípio, praticavam
pequenos “delitos” sobre as plantações, além de tentar comprometer recursos vitais,
como a água.
A rebelião dos negros escravos de Saint-Dominique não tardaria a
acontecer. Começou com a resistência dos cimarrones negros, com destaque para o manco Mackandal, que utilizava seus conhecimentos das ervas, dos cogumelos e das folhas para fabricar venenos e, à noite, assaltava as plantações, envenenava as fonte de agua, as arvores frutíferas, e os campos onde pastava o gado, e incendiava os canaviais e cafezais. (LOUIDOR, 2013, p.17)
Mesmo com todo o aporte militar francês, a grande maioria que vivia na parte
oeste da ilha era de escravos africanos que tinham maior influência sociocultural na
região do que os próprios franceses. Além disso, as tradições que os escravos
trouxeram da África foram fundamentais para se construir uma pseudo-ideologia de
liberdade e valorização de seu povo. Como diz Euridice Figueiredo, “o Haiti teve
uma valorosa luta contra a metrópole francesa, iniciada em 1791 com a célebre
cerimônia de Bois-Caïman conduzida por Boukman, na qual vodu e revolta se
uniram para combater os senhores brancos.” (2006, p. 374) O creolle, dialeto pelo
qual ganhou espaço graças a influência africana e o vodu, religião originada dos
iorubas, levemente sincretizada com os bantos, contribuiu para a congregação dos
escravos.
Lengua y religión son las matrices fundamentales de toda cosmovisión o manera de ver el mundo. Es un secreto a voces que em todos los países birraciales del Caribe, los prejuicios epidérmicos y de casta están a flor de piel, supuran las heridas que no terminan nunca de cicatrizar. Haití, como es sabido, há sufrido no sólo la violencia colonial, sino además padecido pugnas intestinas enfrentando la elite burguesa mulata y la mayoríanegra de campesinos, las dos clases sociales predominantes. El colono blanco, como consecuencia de las luchas independentistas, huyó o fue víctima del odio racial que él mismo había engendrado durante el
15
régimen de la plantación. La cultura popular ha generado un proverbio que saca a la luz los complejos larvados de la sociedad haitiana: "Negre pauvre est noir; Negre riche est blanc". (GENOUD, 2002, p. 108)
Em reação às revoltas, os colonizadores cada vez mais restringiam a
“liberdade” de seus vassalos com políticas de opressão. As tropas francesas, sob a
batuta de Napoleão Bonaparte foram reforçadas por soldados vindos da Europa, o
que não diminuiu a revolta dos escravos. Em 1801, Bonaparte enviou seu cunhado
Leclerc para Saint-Domingue, com 25 mil homens. Iniciou-se uma guerra sangrenta
pela independência. Atrocidades ocorreram, mas os franceses foram derrotados. Por
fim, os escravos conseguiram promover a emancipação política, até então inédita no
continente americano. Assim, toma-se conhecimento da imagem de Toussaint
L'Overture.
L'Overture era um escravo instruído, que sabia falar tanto francês quanto o
creolle – dialeto falado pela expressa maioria, composta de africanos. Ainda na
juventude, entrou em contato com o livro de Abade Raynal sobre as condições de
exploração da força de trabalho escrava nas colônias e com o livro de Julio Cesar
sobre a guerra contra os gauleses. A leitura o influenciou a partir de duas possíveis
idéias: primeiro, no livro de Abade Raynal, haviam relatos das atrocidades causadas
por colonizadores europeus frente aos escravos. O segundo mostrava as estratégias
de guerra estabelecidas pelos romanos durante a antiguidade – que motivou o
desenvolvimento de táticas militares.
Essas atribuições foram úteis no governo de L'Overture, iniciado em 1801, em
que se promulgou uma Constituição para toda ilha, abolindo a escravidão e
declarando a liberdade entre a população. L'Overture tinha muitos apoiadores ao
seu governo, o que possibilitou na formação de um exército lembrado como de
grande resistência a quem tentava invadir o Haiti. No seu exército, muitos líderes
eram ex-escravos, a exemplo de Dessalines, Henri Christophe, Maurepas, Pétion e
Moise. Em seu governo, L'Overture manteve administração das fazendas e
engenhos nas mãos dos brancos, apesar de haver um controle do novo Estado, e
também manteve os ex-escravos em um trabalho compulsório, objetivando manter a
base da economia da ilha. O líder negro, aos poucos, não acreditava que os ex-
escravos ainda tivessem condições para manter as administrações das fazendas.
16
Em 1802, Toussaint L'Overture foi capturado pelos franceses, ocasião em que
morreu no cárcere, em 1803.
Porém, a morte de L'Overture não afetou a firmeza dos ex-escravos em
resistir as investidas militares da França. Em 1804, Jean-Jacques Dessalines formou
uma nova frente de batalha que, por sua vez, cercou e blindou o domínio da parte
oeste da ilha. Com a resistência e a desistência em recuperar o território, foi formado
uma nação independente sob a organização dos ex-escravos. O nome do lugar foi
mudado para Haiti (ayiti) - nome dado pelas primeiras populações indígenas de
Saint-Domingue, que significa "terra das montanhas".
A Independência do Haiti da metrópole francesa ocorreu após uma sangrenta
batalha na ilha antilhana, em que a população eurodescendente praticamente foi
exterminada. Além de ser um dos primeiros territórios a conseguir sua emancipação
política, também foi pioneira na abolição da escravatura. A radicalidade das ações
nas lutas pela separação da França e do fim da colonização de exploração foram
motivados por líderes, denominados Jacobinos Negros, em alusão ao grupo que
comandou a Convenção Nacional, durante a Revolução Francesa, entre 1792 e
1795.
Outros jacobinos negros, como Dessalines, Henri Christophe e Maurepas,
antigos aliados do seu líder anterior, continuaram expulsando os franceses até o fim
de 1803. O nome do território foi mudado para Haiti, sendo marcado definitivamente
a independência do país.
A obra autoficcional, “Adeus, Haiti”, que está sendo analisada neste trabalho,
tem uma grande carga de referências da História do Haiti. A narradora se apoiará
numa relação entre passado e presente, a despeito de tempo e espaço, fazer alguns
reencontros com o passado do Haiti. Os espaços transparecem os fatos históricos
do lugar, sempre guardados na memória, até mesmo daqueles que enfrentam o
dilema da diáspora, conforme citado abaixo.
A colina em Bel Air em que a casa foi construída havia sido o local de
uma batalha famosa entre abolicionistas mulatos e colonizadores
franceses que controlavam a maior parte da ilha desde 1697 e
importavam negros africanos para trabalhar como escravos nas
plantações de café e açúcar. Um século depois, escravos e mulatos
se uniram para mandar os franceses embora e, em 1° de janeiro de
1804, formaram a República do Haiti. (DANTICAT, 2010, p. 33)
17
Começamos a perceber que, no limiar da narrativa, muitos cenários da
autobiografia terão como referências lugares ou fatos que também marcaram
historicamente o Haiti, combinados as reminiscências dos relatos.
Mesmo com toda a relevância da luta pela emancipação do território, as
consequências da independência do Haiti foram graves e sufocantes para seu povo.
Os países que mantinham relações comerciais com a ilha ficaram receosos e se
retraíram, fechando os pactos coloniais com os haitianos. O que mais assusta é a
grotesca indenização que o Haiti teve que pagar à França, refletindo numa grave
crise econômica.
Outro impacto se remete à desestruturação da base da economia da ilha, a
cana-de-açúcar. A maior parte das lavouras foi destruída pela guerra. O Haiti foi
praticamente isolado do mercado mundial, já que muitos parceiros tinham uma
ligação econômica muito próxima com a França. O medo de que a revolta escrava
se espalhasse para outras colônias da América também motivou para o isolamento,
já que era eminente a presença de grupos anticoloniais, que promoviam o fim da
colonização europeia e do escravismo no continente. Apesar de representar a
liberdade da instituição da escravidão e conseguir a independência da metrópole
colonial, sendo o primeiro país da América a realizar este feito, o Haiti vivenciou um
processo posterior que levou o país à miséria, que se prolonga até hoje.
Até mesmo as dificuldades do Haiti não comoveram outros conquistadores da
independência no continente americano. Como diz Jacob Gorender (2004):
As dificuldades do Haiti não se deveram, com o passar do tempo, somente ao domínio da agricultura de subsistência e à ausência de perspectivas econômicas mais elevadas. Deveram-se também, e não menos, à quarentena, que lhe impuseram até mesmo as nações latino-americanas recém-emancipadas. Quando exilado, Simon Bolivar encontrou abrigo no Haiti, onde recebeu de Pétion proteção, ajuda financeira, dinheiro, armas e até uma prensa tipográfica. No entanto, Simon Bolivar excluiu o Haiti dos países latino-americanos convidados à Conferência do Panamá, em 1826. O isolamento internacional acentuou o atraso e agravou as dificuldades históricas, após uma das mais heróicas lutas emancipadoras do hemisfério ocidental. (GORENDER, 2004, p.131, 132)
Além dos problemas do isolamento, o Haiti voltou a ser alvo da exploração
econômica, diante de sua alta produtividade agrícola e pecuária. Por quase vinte
anos (1915-1934), o país caribenho foi ocupado por tropas estadunidenses, que por
18
sua vez aumentaram ainda mais as condições adversas, sejam estas econômicas,
políticas ou sociais.
Fazendo uma análise paralela sobre a situação interna dos Estados Unidos e
do Haiti, podemos entender alguns fatores que motivaram a invasão dos
estadunidenses. Nos Estados Unidos, a economia continuou a expandir-se baseado
no tráfico escravo. Vale salientar que era o Século XIX e nem todos os países, então
emancipados no continente, tinham de fato deixado a economia colonial, regida pela
escravocracia. Em oposição à situação dos Estados Unidos, o Haiti já havia
extinguida a escravidão. Além disso, os haitianos se apossaram da maior parte das
terras, dedicando economicamente ao sistema de agricultura de subsistência. O país
foi um reduto de pequenos agricultores independentes, privilegiando o campesinato
e dificultando qualquer possibilidade de compra de terras por estrangeiros.
A elite haitiana, entretanto, era possuidora de grande parte do poder político e
das relações exteriores do país, sempre buscando manter relações econômicas e
culturais com o capitalismo mundial. Foram obrigadas a agir com o pagamento da
absurda indenização à França, para que tivesse o reconhecimento diplomático e
derrubasse o bloqueio internacional, em termos políticos e econômicos. Essa elite,
dita mulata, que se considerava elitizada por ter uma aproximação muito intensa
com a Europa, comportaram-se como uma autêntica "burguesia nacional" que,
segundo Fanon, eram pessoas de "pele escura" no comportamento de pessoas de
"pele branca" (2008, p. 33).
Pois foi a partir da garantia do pagamento das dívidas internacionais e a
intervenção "missionária" (já que envolvia uma imagem "progressista" advinda da
máscara estadunidense) que foi concretizada a intervenção militar de 28 de julho de
1915. Os militares afirmavam estar combatendo os "bandidos", como eram
chamados os grupos de base rural conhecidos como Cacos, formados por
camponeses. O discurso do desenvolvimento econômico frente ao considerado
atraso, compelido a liderança do campesinato haitiano, estava nos lábios dos
soldados estadunidenses, especialmente a MINUSTAH (Missão das Nações Unidas
para a Estabilização do Haiti), em que o Brasil estava incluído com mais vinte
países.
Os militares e revolucionários dos EUA apoderaram-se da aduana e do Banco
Nacional da República do Haiti, passando a ter a "tutela" do City Bank de Nova York,
o que passou a destinar 40% da renda nacional ao pagamento da dívida externa.
19
Consolidado através do tratado, imposto de maneira lateral, a Gendarmerie foi
formada com o papel de manter a "segurança", ou seja, impor sua dominação, que
não deixa de ser uma matriz colonizadora.
Em 1917, para consolidar ainda mais o domínio da ideologia estadunidense,
foi imposta uma nova Constituição (o presidente Philipe Sudre Dartinguenave,
dissolveu legislativo, por não conseguir aprovação da maioria, manipulando o
referendo). A nova carta obrigava a abertura econômica, derrubando a proibição até
então vigente de estrangeiros comprarem e possuírem propriedades no Haiti. Tal
abertura possibilitou o domínio das empresas que se diziam ser haitianas, mas que
eram controladas por empresários estadunidenses, como a Haytian American Sugar
Company (HASCO), que tomou mais de sete mil hectares de terras. A borracha,
outra fonte de economia no Haiti, passou a atender as necessidades dos Estados
Unidos na Segunda Guerra Mundial. A Rubber Reserve Corporation produzia
borracha em 20% das terras em cultivo no Haiti.
A elite haitiana apoiou os invasores, já que não tinha pelas suas forças
combater com a maioria populacional, que era a base do campesinato. De um país
com pequenos agricultores independentes, o Haiti teve sua desigualdade
deflagrada, pois muitos agricultores saíram de suas terras, confiscadas pela invasão
e tiveram, em sua maioria, sair para os grandes centros urbanos. Esse processo
prosseguiu com mais afinco durante o regime duvalierista, com início nos anos 1950.
Dois terços das terras aráveis pertenciam a apenas 1% dos proprietários rurais (os
gran don), ao contrário de um percentual superior a 70%, que vivia em terras pouco
férteis. Muitos para sobreviver, saíram para a República Dominicana e Cuba, para
trabalhar como assalariados temporários, o que precede uma grande migração.
Mas durante a dominação estadunidense, não havia como esquecer das
atitudes racistas, generalizadas e segregadoras, mesmo em relação à elite local.
Existem relatos de abusos físicos e sexuais, além de torturas feitas apenas por
"esporte", além da satirização que ridicularizava a capacidade dos haitianos em ter
as mesmas atitudes e fazer a mesma política, imposta pela invasão.
Eduardo Galeano chamou a atenção para exemplos abomináveis dessa
concepção:
Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz
ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-
se a si própria, que tem ‘uma tendência inerente à vida selvagem e
uma incapacidade física de civilização’. Um dos responsáveis da
20
invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz:
“Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que
haviam deixado os franceses”. (GALEANO, Eduardo. Os pecados do
Haiti. Carta Maior.com.br, 2010)
Na década de 1950, o domínio dos Estados Unidos abre espaço para um
regime militar antidemocrático, conhecido como ditadura duvalierista. Com a
ascensão de François Duvalier à presidência, foi implantado um sistema de controle
de segurança, com o objetivo de evitar qualquer manifestação popular de oposição
que comprometa seu poder político. Um corpo paramilitar, denominado de Tontons
Macoutes, tinha a obrigação de intervir em qualquer ato considerado hostil ao
governo de Papa Doc, além de promover uma repressão ostensiva, que inclusive
comprometeu milhares de pessoas de forma violenta.
Duvalier mudava a Constituição, à sua maneira, estabelecendo
principalmente um tipo de presidência vitalício. Seu governo tinha fortes críticas no
cenário internacional, principalmente em função de sua imposição política estar em
choque constante com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Devido a
denúncias de alguns que conseguiam fugir do Haiti para outros países, tomou-se
conhecimento da opressão dos comandados por Papa Doc, em destaque os
Macoutes ficaram conhecidos enquanto perseguidores dos que se opunham ao
governo vigente.
Na própria obra de Edwidge Danticat, há algumas revelações que acabam
denunciando o arquétipo da política conturbada de François Duvalier:
Um homem cujos olhos não se podem mirar não é um homem em que se possa jamais confiar, disse muitas vezes seu pai, Granpè Nozial. Os macoutes tinham atitudes semelhantes, uma aparência tosca que faziam os magros parecerem sólidos, os baixos parecerem altos. Afinal, todos eram igualmente intimidantes, pois representavam o governo. Fosse Pressoir ou esse velho, cada um tinha o poder de decidir se o tio poderia viver ou morrer, se a filha dele viveria ou morreria. (DANTICAT, 2013, p. 76)
Na citação acima, menciona-se o momento em que o tio da narradora,
Dantica Joseph, procura libertar sua filha, Marie Micheline de um Macoute, um tipo
de “líder” da comunidade em que ele vivia. Provavelmente, Joseph era um senhor
conhecido pelas suas fortes opiniões, mesmo que estas fossem contrarias ao regime
21
duvalierista. Portanto, muitos Macoutes usavam estratégias, desde o cárcere,
passando pela tortura até a morte, causando medo a população.
Como Ron Howell, um jornalista de Nova York, estava cobrindo o
tiroteio militar em Bel Air naquela tarde, a morte de Marie Micheline
foi o tema de uma reportagem do Newsday publicada em 17 de abril
de 1989. Com o título “Haiti ainda lutando para brilhar”, foi publicada
junto a uma foto colorida ao cortejo fúnebre que seguiu lentamente
pelo centro de Porto Príncipe. (DANTICAT, 2013, p. 117)
Esse grupo era como uma “frente de batalha” dos Duvaliers. Para manter o
poder vitalício, tomando o empréstimo de Louidor, mantinham seu domínio
assassinando membros da elite intelectual do país, que se atrevessem a questionar
seu poder (2013, p.21)
Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, assume o governo após a morte do pai,
anunciando que manteria os métodos políticos de seu pai, no que concerne ao
pressuposto de uma “estabilidade”, o que de fato, não acontece. Ele tenta
estabelecer uma ponte entre as culturas afrodescendente e europeia, apelando a
criação de um clero nacional, que acabaria com a hierarquia católica, valorizando
mais o vodu. Além do mais, Baby Doc teve um grande embate com produtores de
porcos, pois os animais foram sacrificados por causa de uma suspeita não
confirmada de uma Peste Suína que se espalhou até a República Dominicana. Isso
afetou diretamente a economia rural de muitos haitianos, como é mencionado por
LouIdor como fator para a descapitalização das explorações agrícolas e o êxodo
rural (2013, p. 21). Foi um problema tão sério que, mesmo na tentativa de adaptar
outras raças de porcos, a suinocultura no país não conseguiu recuperar as perdas
econômicas. Problemas como estes só aumentaram o descrédito do regime de Baby
Doc que, por sua vez, teve que se exilar, o que marcou o fim de uma ditadura de
trinta anos, conforme fragmento do conto de Danticat.
Em 7 de fevereiro de 1986, no aniversário de 63 anos do meu tio, Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier fugiu do Haiti para a França, deixando uma junta militar governando o país. A junta, que esteve no poder por dois anos, era liderada por um ambicioso oficial do Exército, o tenente-general Henri Namphy. Um novo presidente, Leslie Manigat, assumiu em 7 de fevereiro de 1988, no aniversário de 65 anos do meu tio. Como a partida de Baby Doc aconteceu em 7 de
22
fevereiro, o aniversário do meu tio tornou-se a data oficial das posses e dos juramentos presidenciais haitianos. Quatro meses depois de assumir, Leslie Manigat foi derrubado pelo tenente-general Namphy. Logo Namphy foi deposto por um rival militar, o general Prosper Avril. Em abril de 1989, um grupo de ex-Tonton Macoutes e legalistas da linha dura de Duvalier tentou derrubar Avril num golpe fracassado, criando hostilidades dentro do Exército. (DANTICAT, 2010, p. 116)
A associação da saída de Jean-Claude Duvalier do governo com o aniversário
do próprio tio nos implica a associação constante e fundamental da narrativa com a
História. Mostra-se que, mesmo com a tentativa de um poder militar querer manter
sua hegemonia, a pressão popular feita por representantes do catolicismo e a crise
interna marcam uma nova etapa da vida política do Haiti.
Com o fim do regime ditatorial, já estava real a presença de um movimento,
influenciado pelo líder religioso Jean Bertrand Aristide. Sua origem cativou
principalmente os mais pobres, já que seu berço político era Cité Soleil, um bairro
violento da capital, Porto Príncipe. Aristide despontou como um nome que lembrava
liderança diante da mordaça colocada pelo governo anterior e, por isso, foi eleito
com mais de 60% dos votos no fim de 1990. Porém, os militares entram novamente
em cena, instaurando nova ditadura e pressionando para que Aristide saísse do
país.
O presidente eleito, em denúncia feita nos Estados Unidos, onde estava
exilado, conseguiu a atenção do então presidente Bill Clinton, com o objetivo de
retornar ao cargo. Como uma espécie de acordo, houve a aceitação de implantar
uma política conservadora com base nos programas de ajuste, impostos pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI) – o que talvez seja uma compensação pela ajuda
recorrente. O retorno de Aristide ao poder em 2004 provoca uma série de
manifestações armadas, marchando uma numerosa representação para a capital
Porto Príncipe, exigindo a saída do presidente. Em fevereiro, os fuzileiros norte-
americanos aterrissariam na capital, levando Aristide para um novo exílio. Foi
instituído um governo provisório e a ONU envia uma missão, que continua no país
até hoje.
Podemos localizar novamente, no livro Adeus, Haiti, fragmentos que se
relacionam com a situação política em que se encontrava o país, a passo que
recordavam os momentos em que Aristide estava no poder.
23
Alguns dias depois da reunião de família, meu pai me ligou para meu
tio Joseph no Haiti, para saber como ele estava. Era quinta-feira, 15
de julho de 2004, o 51° aniversário de Jean Bertrand-Aristide, o
presidente duas vezes eleito e duas vezes deposto do Haiti. Afastado
do poder em fevereiro de 2004, por uma ação conjunta da França, do
Canadá e dos Estados Unidos, Aristide agora estava passando seu
aniversário no exilio, na África do Sul. Porém, os residentes em Bel
Air, o bairro onde eu cresci e onde meu tio Joseph ainda morava, não
o haviam esquecido. (DANTICAT, 2010, p.30)
A história do Haiti é marcada pelo problemas da colonização, que por sua
vez, trouxeram efeitos devastadores que culminam até os dias atuais nos problemas
enfrentados pelo próprio haitiano. Na incerteza da política inconstante, entre a
tentativa da democratização e a política radical dominadora da ditadura, os
resquícios do efeito colonizador são visíveis. A literatura, assim como em Danticat, é
carregada de uma nova luz que tem iluminado o horizonte da percepção sobre os
problemas sociais encontrados tanto no Haiti, quanto nos países afetados pelo
fantasma da colonização, ou seja, uma literatura engajada.
1.2 BREVES TRAÇOS DA LITERATURA CARIBENHA E HAITIANA
No campo da literatura, o Caribe apresenta uma forte influência de sua cultura
e sua história. Consequentemente, esta cultura tão fascinante é provida de vozes
que pertençam ao processo de divulgação da região por meio da escrita. No caso do
Haiti, a literatura acompanhou uma grande tomada de consciência, incorporando a
riqueza literária à cultura popular, até então marginalizada. Ao mesmo tempo, a
literatura apresenta a força do negrismo, para contrapor as elites mulatas que foram
formadas no Caribe sob a influência da colonização. Até chegar ao fenômeno
diásporico, a literatura haitiana em si se enraizava na valorização de seu povo.
Para entender essa literatura frente ao colonialismo, em razão de uma
consciência popular, é importante tecer alguns momentos da História do Haiti. A
então colônia francesa começou a desencadear sua independência quando Dutty
Boukman (?–1791), então líder vodu, motivou os descendentes de africanos a se
revoltarem contra os “brancos”. Deflagrou-se ali em 1791 um conflito inevitável, que
inspirou na formação de outras revoltas na América, como a bolivariana. Mesmo
com a separação da então colônia francesa, o modelo político e econômico francês
24
permaneceu. Mantinham o modelo monárquico em parte, além de os mulatos,
mestiços de africanos com franceses, se declararem mais preparados para o início
do processo político, o que possivelmente tem a ver com raízes da elite crioula no
Haiti e em boa parte do Caribe. Esta postura motivou muitos conflitos entre a elite
mulata e a maioria de descendência africana. Enquanto a elite detinha a maior parte
da produção de café, além do latifúndio, a maioria vivia de agricultura familiar, tendo
quase sempre as terras menos férteis e vivendo de outras atividades menos
rentáveis como a do artesanato. Tudo isso até o momento era a permanência da
legitimidade do poder das minorias assim como no auge da colonização francesa.
Mas onde a literatura entra nesta questão? A produção intelectual vem
fortemente expressar questões sociais, através das experiências de memória que
narram as dificuldades de manter suas tradições e ritos como o vodu. A resistência
tanto política quanto psicológica ao discurso colonizador e aos interesses da elite e o
reflexo da barbárie, provocado por intermédio das artes e, obviamente, da literatura.
A literatura tem um poder esclarecedor sobre a História, sem perder sua
característica.
todo documento, seja ele literário ou de qualquer outro tipo, é representação do real que se apreende e não se pode desligar de sua realidade de texto construído pautado em regras próprias de produção inerentes a cada gênero de escrita, de testemunho que cria “um real” na própria “historicidade de sua produção e na intencionalidade da sua escrita”. Desta forma, todo tipo de texto possui uma linguagem específica, na qual foi produzido, própria de um segmento particular de produção, e esta ocorre considerando dadas regras peculiares ao meio intelectual de onde emerge, ao veículo em que será veiculada e ao público a que se destina. (CHARTIER apud BORGES, 2010, p. 96)
No que tange aos hábitos e costumes, o nacionalismo, a incorporação de uma
cultura marginalizada, eram parte do enredo predominante da literatura haitiana no
início de Século XX. A princípio, a literatura do Haiti demonstrava uma certa
“harmonia” com os padrões da literatura francesa, também denominada literatura de
imitação. A escrita literária tinha um valor mais reparável quando esta não só se
comunicava como também estava em concordância com o crivo da crítica francesa.
Oswald Durand (1840-1906), Demesvar Delorme (1831-1901) e Léon Laleau (1892-
1979) escreviam em comum a questões de embate entre os afrodescendentes e os
europeus, numa narrativa que identifica a opressão e a submissão associada ao
25
racismo como um processo natural do desenvolvimento da sociedade. Apesar de
ainda haver a visão de pobreza e subserviência do negro para com o branco, alguns
traços culturais do Haiti eram lembrados como a do creolle, dialeto local.
A partir de 1915, com a intervenção dos Estados Unidos, muitos autores
passaram a escrever uma literatura que precedia a ideia de autonomia e
originalidade. La Ronde era um movimento literário da época, tendo como nome
conhecido o de Jean Price-Mars (1876-1969) que, numa linguagem amplamente
antropológica, escrevia sobre a identidade haitiana baseada nas raízes africanas.
Era uma tentativa de descolonizar-se no sentido de manter os traços particulares de
sua cultura, que se diferenciava da Europa (e dos Estados Unidos). Geralmente, os
textos eram construídos numa escrita baseada na oralidade, com base na tradição.
Outro movimento literário, é o chamado Ainsi parla l’oncle (1928), partia do
pressuposto de escrever sobre a cultura baseada no folclore, incentivando as
práticas culturais independentes de novas tentativas de colonização. Outros
romancistas satirizavam a política, talvez como contraponto ao próprio modelo
político e a obsessão pelo poder, como os autores Fernand Hibbert (1873–1928) e
Justin Lhérisson (1872–1907). Esse último descreveu em La Famille des Pitite-Caille
(1978) – uma oralidade que permeava entre o francês e o creolle, associando a
leitura as classes menos privilegiadas.
Mas entre as décadas de 1930 e 1960, o movimento artístico e literário
chamado “indigenismo” vem com reconhecimento dos elementos culturais e da
importância de denunciar a resistência americana em face a ocupação americana. A
princípio esse movimento deu-se com a Revue Indigene. A associação com o
nativismo era muito forte, não porque a expressão indigene seja especificamente
aos índios mas no sentido de ser “nativo” enquanto forma de criticar a intervenção
estadunidense. Alguns desses organizadores tiveram um papel propagador especial
como Carl Brouard (1902-1965), Emile Roumer (1903-1988) e Jaques Roumain
(1907-1944) – este último bastante citado nos estudos sobre cultura haitiana.
Apesar de muitos serem “mulatos”, o indigenismo, do ponto de vista literário,
propunha um ideal de ruptura com a então literatura canônica, em virtudeda
valorização do primitivismo e das representações dos elementos da cultura local, em
contraste com a ótica estrangeira. O que marca esse movimento é a influência forte
da negritude e do africanismo nas artes e na literatura, utilizando-as no meio artístico
e reconfigurando o que antes se via na representação da cultura africana como
26
exótica. Vale salientar que este movimento se harmonizou com outros movimentos
ligados a negritude, motivado pelo intelectualismo de Aimé Cesaire (1913-2008) e
Frantz Fanon (1925-1961), que combatiam qualquer influência ainda que sutil do
colonialismo em todos os campos das sociedades antes colonizadas.
Jaqcues Roumain, considerado um nome dos mais lembrados do indigenismo
haitiano, dedicou-se a escrever acerca dos problemas do homem negro, num estudo
mais etnográfico. Escreveu trabalhos como Les Griefs de l’homme noir (1939), além
de poesia como o romance Governeurs de la rosée (1944). Suas obras tem uma
consideração de pioneirismo na literatura haitiana, visto que as particularidades de
seu texto com traços da cultura são eminentes e possuem um forte engajamento
com aspectos particulares do próprio Haiti. Apesar do enredo ser motivado por lutas
sindicais e pela forte identificação com ideologias políticas, combina as questões
sociais com práticas culturais de seu povo.
Outro gesto ousado é o de privilegiar o creolle na narrativa diante da
predominância do francês. A intenção seria a de descolonizar a língua, priorizando
na narrativa algo mais familiarizado ao que a maioria haitiana está acostumada a ler
e a ouvir. No indigenismo ou indigénisme, a literatura não se remetia simplesmente
ao romance rural, mas visa estabelecer um contradiscurso a favor das origens
africanas. Deixar de lado a África mítica e reforçar que o vodu era uma base
relevante à cultura haitiana eram partes de uma justificativa do indigenismo. Clément
Magloire Saint-Aude, mesmo sendo de elite mulata, introduziu o africanismo
enquanto parte fundamental do Haiti, objetivando reduzir ao máximo possível a
influência francesa. Porém Roumain, escritor que morreu jovem, foi o responsável
pela elaboração de uma ponte mais próxima entre a corrente indigeniste e o
marxismo proletário em Governeurs de la Rosée, (1944). O contraponto entre língua,
religião e costumes sempre destacou em sua obra as diferenças evidentes entre
classes: as elites eram ainda detentoras das raízes europeias baseando-se na
linguagem e na religião cristã em oposição a maioria que falava creolle e praticava
vodu. Jacques-Stephen Alexis (1955), influenciado por Roumain, estendeu a
ideologia combinada entre cultura africana e consciência política para as Antilhas em
Compére General Soleil (1955). O realismo está interligado às tradições populares
de modo que a escrita mostrasse particularidades da parte mais humilde da
sociedade, para que assim seja reconhecida enquanto conhecimento.
27
Na continuidade do indigenismo, vem o movimento mais específico chamado
de negrismo, destacando a herança africana de todas as matrizes culturais
presentes no Haiti. Mesmo com o sincretismo inevitável durante o período colonial e
também pós-colonial, detinham-se exclusivamente na herança presente da África. O
vodu era visto como uma “bandeira” desse movimento, pois estava em harmonia
com a cultura da maioria haitiana – tal manifestação cultural é presente em aspectos
das artes e da literatura. O próprio vodu era uma referência ao realismo maravilhoso,
tal como escreveu Alejo Carpentier (1904-1980) que, mesmo sendo cubano,
ressaltava em particular esse afrodescendente, em especial o haitiano. Em sua
escrita, destacava a luta pela independência cujo nativo era o protagonista. O nativo
era como um herói revolucionário, em especial na Revolução Haitiana. Não
obstante, Aime Césaire destaca na figura do herói da independência em Monsieur
Toussaint (1961) ou em Cahier d’unretour au pays natal (1939). Ambos tematizam a
figura do homem negro como o responsável pela busca da autonomia total frente à
dominação do outro. Mas vale lembrar que um outro precursor, François Duvalier,
também era uma mente intelectualizada deste grupo e, portanto, engajou num
movimento político no Haiti que culminou na sua ascensão ao poder muitos críticos
veem esta característica do negrismo como um movimento político.
Mas na década de 1960, como resultado de todo um embate causado pela
ocupação estadunidense e, em seguida, pela ditadura dos Duvalier, a literatura
passou a ocupar um novo espaço: o da diáspora. Mesmo com o indigenisme e o
noirisme, o Haiti ainda não havia superado os efeitos do colonialismo em suas
estruturas políticas e sociais. Com isso, a exemplo da literatura, a intelectualidade
anticolonialista apela para o fenômeno diaspórico, em resulta dos problemas
políticos e econômicos, sendo assim o foco de uma nova temática. A princípio, um
grupo começou esta tentativa de escrever uma literatura de ruptura, o chamado Haiti
Littéraire como Davertige (1963) com Port-au-Prince (1963) e Serge Legagneur
(1966) em Textes Interdits (1966), que escrevem de forma tumultuada, rompendo
com as tradições poéticas haitianas. Anthony Phelps (1966) traz a tona a ditadura do
Haiti e demonstra uma postura da aversão ao totalitarismo político em romances
como Moins I’infini (2007) e Mémoires en colin-mainard (1966). Com Rene Philoctéte
(1960), houve uma radicalização total a angústia vivida por causa da ditadura, que
deu nome ao Spiralisme. Em seguida, Franckétienne (1965) escreve o caos e
manifesta uma expressão, de certa forma, pessimista da realidade em Chevaux
28
del’avant-jour (1965) e Mur à Crever (1968). O vodu também é evidenciado através
do personagem transformado em zumbi, além de ser escrito em creolle. Era uma
escrita sem censura, rebelde, como em forma de desabafo e a manifestação de sua
indignação é válida. Em particular, mesmo com muitas transições, sempre a escrita
na literatura haitiana neste período foi carregada de um simbolismo externo e
intrínseco da vida haitiana. O cotidiano por onde se passeia pelas influências
culturais, principalmente na linguagem, é uma constante na leitura destas correntes.
Chegamos a uma fase histórica que, a exemplo da obra a ser analisada,
marca a geração mais recente da literatura haitiana: a diáspora. Marcada pela
mobilidade e dinâmica social que o Haiti atravessa há alguns anos, a diáspora
passou a ser integrado na própria literatura, principalmente por escritores nascidos
no Haiti, mas que residem em outros países na Europa e América. A mobilidade é o
dilema pois, independentemente de estar em terra estrangeira, sempre levará em
consideração a realidade social de sua comunidade local. Os autores desta fase
passaram pelo processo de diáspora por experiência própria. Apesar de afirmar ou
não a presença de autobiografia, este diálogo constante do Haiti com do lugar
estrangeiro é continuo, incansável e provido de incertezas e tensões.
Esta é uma tentativa de coesão e de recriar alguns poucos meses maravilhosos e terríveis, quando suas vidas e a mina se cruzaram de maneira espantosa, forçando-me a olhar para a frente e para trás ao mesmo tempo. Só estou escrevendo isto porque eles não puderam. (DANTICAT, 2010, p. 31)
Assim como é mencionado na citação acima, a diáspora tem exaustivamente
provocado um ritual de entrada e saída, onde passado e presente praticamente se
encontram e se harmonizam. Tempo e lugar estão dissolvidos pela experiência de
pertencer ou não ao lugar onde está. Pensando na fase mais recente da literatura
diaspórica, é notório pensar que esses autores se deslocaram para várias regiões
diferentes do mundo, principalmente na América do Norte e na França. Muitos foram
reconhecidos nos países de exílio por mostrar uma leitura até então desconhecida
de suas origens ou das culturas de nações consideradas de “Terceiro Mundo” –
então termo atribuído a muitas nações, principalmente fora do eixo Europa-América
do Norte. Começando primeiramente na França, muitas vozes literárias foram
reconhecidas mas por escrever de maneiras diferentes. Jean-Claude Charles
(1985), por exemplo, é reconhecido por não deixar muito a mostra seu lado haitiano,
29
como em Manhattan Blues (1985) e Ferdinand je suis à Paris (1987). Jean Métellus
(1987) escrevia romances que tinham como referência o camponês haitiano como
em Hommes de plein vert (1981), mas falava também de fatos que possuíam traços
históricos como o exílio em Paris em Louis Vortex (1992) e a ocupação americana
em Les Cacos (1989). Mas o nome mais lembrado entre estes é o de René Depestre
(1976), que transitou por vários países, inclusive no Brasil. Depestre tinha influência
de Carpentier em seu realismo. O fantástico e o maravilhoso eram características
em suas obras. Tratava muito da prática do vodu e da mestiçagem, a exemplo de
obras como Poéte à Cuba (1976), Minerai Noir (1956) e Le Mat de Cocâgne (1979),
traduzido para o Brasil como O Pau de Sebo.
Já, na América do Norte, houve um grande número de escritores que
migraram para a província de Quebec, ao leste do Canadá. Gérard Étienne (1974)
remetia as vozes de sua terra natal, refletindo as torturas nas prisões em oposição a
política vigente. Obras como Le Negre crucifié (1974) falam sobre essa tortura
enquanto modo chocante e explícito das atrocidades de um poder político que
tratava com hostilidade seus opositores. Mas no livro Une Femme muette (1983),
Étienne mostra algo que é comum ao exílio: a adaptação para uma nova cultura, as
profundas diferenças na linguagem, na religião, na cultura e até nas relações
sócioeconômicas. Émile Olivier (1970) tratava, em especial, da memória coletiva do
povo haitiano, reiterando o creolle e a valorização do território, sendo lembrado
como um romancista. Dany La Ferrière (1996), importante roteirista, remetia muito à
angústia de pessoas que, mesmo em terra distante, apresentavam seus dilemas.
Segundo Heloisa Caldeiras Alves Moreira, tradutora de Pays sin chapeaux (1996)
percebemos a presença de temas como a escravidão e suas consequências, o inferno da cana-de-açúcar, as dificuldades de relações entre classes sociais, raças e nacionalidades diferentes, o preconceito da cor, a violência das relações entre homens e mulheres, os excessos machistas, o problema social e econômico, assim como a paisagem (com suas singularidades tropicais e heranças coloniais). A questão da língua e o desejo de fazer ecoar na escrita do francês (ou do inglês) o imaginário poético da oralidade crioula, também aparece como preocupação constante. (LAFERRIERE, 1996, p. 43)
Não há como fugir do debate social que envolve o homem itinerante da
diáspora, pois a diferença está em não conhecer o limite fronteiriço do que pertence
30
ou não as suas origens. Em Pays sin chapeaux, é mostrado como o haitiano, na
condição de exilado, se depara com o estranhamento que deflagra a crise de
identidade. Outras obras tem referência a esta questão: Comment faire l’amour avec
un nègre sans se fatiguer (1985) e Chronique de la dérive douce (1994), nas quais o
dilema está em viver em dois universos diferentes, o de Porto Príncipe e da América
do Norte.
Finalmente, no que diz respeito a autora Edwidge Danticat, ela está no grupo
dos que são escritores radicados nos Estados Unidos. Nascida na capital, Porto
Príncipe, em 19 de janeiro de 1969, migrou para os Estados Unidos, passando a
escrever suas obras de ficção e não ficção. Embora seus pais inicialmente queriam
que ela se concentrasse no curso de medicina, Danticat passou a estudar literatura
francesa do Barnard College, em Manhattan, cidade de Nova York. A partir daí,
passou a centrar seu trabalho no ofício de escritora.
A escritora registrou seu primeiro romance intitulado Breath, Eyes and
Memory (1994). Ela traz uma narrativa sobre como os haitianos se deparam com a
realidade nova-iorquina, tendo em vista muitas questões cruciais como raça,
nacionalidade e idioma. Em seguida, elabora uma coletânea de contos com o título
Krik?Krak! (1995), traçando rotas sobre desencontros e tragédias entre a República
Dominicana e do Haiti.
A obra trabalhada, Brother, I’m Dying (2007), que em português é a obra
Adeus, Haiti (traduzido e lançado no Brasil em 2009), traça questões de angústia,
sofrimento e dificuldades nas relações familiares, durante a separação consequente
do processo de migração. A família haitiana tem uma presença muito forte na escrita
e, por isso, a relação entre história e memória seja tão incisiva na obra.
1.3 EDWIDGE DANTICAT
Traduzido para o Brasil em 2008, com o título “Adeus, Haiti”, a obra de
Danticat relata a experiência da dor e da lembrança de uma família de imigrantes
haitianos que vivem nos Estados Unidos. Em forma de uma narrativa feita por uma
personagem feminina, permite sobressair as memórias de quando vivia em Porto
Príncipe, sua terra natal, mudando mais tarde para os Estados Unidos na
adolescência e deparando mais tarde com a eminente doença de seu pai, a
separação de parte da sua família, que residia ainda no Haiti e da espera de um
31
filho. A narrativa é incisiva e impactante, inclusive nos momentos em que a
narradora reporta-se à própria memória, redefinindo o lugar onde se encontra, em
contraste com seu país de origem. Neste sentido, a relação turbulenta entre nascer
no Haiti e estar atualmente nos Estados Unidos é a coluna que sustenta toda a
crônica. No espectro da narrativa, é perceptível a evocação do tio da narradora,
Dantica Joseph Nosius, o Tio Joseph, cuja aparição é destacada pela tristeza da
separação do restante de sua família, em contraste com o engajamento com
movimentos de resistência ao governo dos Duvaliers.
A situação demonstrada na narrativa vai mais além de uma possível
experiência pessoal, mas de como ocorre a experiência da diáspora, seja forçada ou
não. A narrativa de Danticat é de uma constante evocação da lembrança e da
memória, mas que comunga com outras correntes: a de possíveis mecanismos de
resistência e permanência em relação às suas origens. As emoções da narrativa
perpassam na constante mobilidade, descrita na “ponte aérea” memorial, entre Nova
York e Porto Príncipe. A situação é não apenas de trazer à tona a problemática das
diásporas, resultantes de fatores socioeconômicos e políticos, mas de retomar a
preservação de práticas culturais e familiares, comuns à sua origem.
Meu pai contou essas histórias como se as tivesse visto acontecer. No elevador, no quarto. Enquanto ele falava, os que ouviam suspiraram de espanto, de medo, de admiração por sua coragem. - Nova York é como o Haiti de hoje – disse, enquanto puxava um Kelly com cara de cansado para seu colo -, é um lugar onde só os corajosos sobrevivem. (DANTICAT, 2010, p.83)
A narrativa é percebida como uma luta incansável pela sobrevivência. Tanto
no Haiti, quanto nos Estados Unidos, a visão particular das dificuldades enfrentadas
no processo migratório são marcantes e transitórias como é a própria diáspora.
Danticat fala que a narradora personagem permanece no Haiti com seu irmão
Bob aos cuidados do tio que, por sua vez, tem um forte engajamento de oposição ao
governo vigente no seu país, governo este regido pela ditadura dos Duvaliers. Os
problemas políticos parecem se “misturar” com os problemas político-históricos.
Em 7 de fevereiro de 1986, no aniversário de 63 anos do meu tio,
Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier fugiu do Haiti para a França,
deixando uma junta militar governando o país. A junta, que esteve no
poder por dois anos, era liderada por um ambicioso oficial do
32
Exército, o tenente-general Henri Namphy. Um novo presidente,
Leslie Manigat, assumiu em 7 de fevereiro de 1988, no aniversário de
65 anos do meu tio. Como a partida de Baby Doc aconteceu em 7 de
fevereiro, o aniversário do meu tio tornou-se a data oficial das posses
e dos juramentos presidenciais haitianos. (DANTICAT, 2010, p. 116)
A prosa de Danticat, no trabalho "Adeus, Haiti", é uma revelação que abrange
algo semelhante à essência do livro de memórias: a história está explícita e
incansavelmente impregnada na narrativa. As mazelas sociais presentes durante
anos de ditadura aliam-se às lembranças do passado.
Assim como a literatura de Danticat, a particularidade de muitos escritores da
nova geração em descrever os dilemas do Haiti são constantes, pois além da
descrição do lugar para onde migraram, dialogam com o país de origem. A literatura
haitiana da diáspora, na diversidade estética da literatura contemporânea, se
preocupa em delinear seu próprio caminho por meio da relação passado e presente,
que se confunde mutuamente como se fosse num só tempo. Na verdade, a escrita
da diáspora é a afirmação de um esclarecimento ao leitor de modo a repensar a
visão norteadora do colonizador construída pela mídia elitizada, ou seja, a de que o
Haiti não é uma representação unilateral do exotismo e da visão dita exuberante de
uma cultura essencialmente africana. A literatura da diáspora é a tentativa de
imprimir novas marcas ainda desconhecidas, marcadas pela História e pela memória
do povo haitiano. Como diz o pesquisador Salman Rushdie: “são assombrados por
um sentimento de perda, um desejo de recuperar, de olhar para trás, mesmo
correndo o risco de serem transformados em estátuas de sal” (RUSHDIE, 1982, p.
11).
Dentro desses parâmetros, ao estudarmos sobre possibilidades ou não de
classificar como uma obra autobiográfica, veremos algumas considerações sobre a
obra. Conta-se que, em julho de 2004, assim como ela aceita que seu pai está
profundamente doente devido a uma fibrose pulmonar, Danticat descobre que ela
está carregando seu primeiro filho. Isso parece transparecer na obra: "Meu pai
estava morrendo e eu estava grávida! Ambos me pareceu incrivelmente irreal."
(2008, p.79) Durante os meses seguintes, Danticat e sua família irão perdurar diante
das novidades e, com o tempo, começar a “curar” algumas das experiências mais
33
devastadoras de suas vidas dispersas. Na obra, o medo eminente da perda estreita
ainda mais a família, assim como se descreve no diálogo do pai com todos os filhos:
Vocês, meus filhos, não me envergonharam – continuou. – Tenho
orgulho disso. Poderia ser sido muito diferente. Edwidge e Bob, sua
mãe e eu deixamos vocês oito anos no Haiti. Kelly e Karl, vocês
cresceram aqui, num país onde sua mãe e eu não conhecíamos
muito bem quando os tivemos. Vocês todos poderiam ter se tornado
maus, mas não se tornaram. Dou graças a Deus por isso. Dou
graças a Deus por todos vocês. (DANTICAT, 2010, p. 27)
Seu pai, ficando ofegante, conclui que ele "tinha uma boa vida", indicando
suas "maiores realizações" para seus quatro filhos e seus três netos. Quando a
narradora ouve seu pai - neste momento e nos próximos meses - a história familiar
ganha ainda mais o que se caracteriza na própria literatura haitiana que é o
momento solene da morte ou do que antecede a morte. Intencionalmente, Danticat
entrelaça histórias, além de lendas herdadas pela oralidade. No capítulo intitulado "O
Anjo da Morte e Deus Pai" (2008, p. 120), a narradora menciona um sonho sobre
seu pai. O resultado é um tipo de testamento passado de uma geração passada
para a próxima, especialmente porque seu filho está para nascer:
Eu escrevo estas coisas agora, alguns como eu testemunhei-los e hoje se lembra deles, outros de documentos oficiais, assim como as lembranças emprestadas dos membros da família. Mas a essência deles foi dito para mim ao longo dos anos, em parte por meu tio Joseph, em parte por meu pai. [...] Esta é uma tentativa de coesão, e ao recriar alguns meses maravilhosas e terríveis quando suas vidas e mina cruzaram em formas surpreendentes, forçando-me a olhar para a frente e para trás no mesmo tempo. Eu estou escrevendo isso só porque eles não podem. (DANTICAT, 2010, p. 12)
Enquanto a narradora espera pela maternidade, ela mesma transparece sua
preocupação e lamentação pelos dois pais – tanto ela quanto seu pai biológico e o
irmão, Joseph, seu tio, pelo qual responsabilizou-se por ela e seu irmão mais novo,
Bob, por oito anos de educação. Como muitas famílias de imigrantes não
conseguem chegar no novo país em razão dos custeio, os pais migraram para Nova
York, partindo de sua Haiti nativa, a fim de preparar uma nova vida para os seus
filhos que, por sua vez, seriam conduzidos em seguida. Quando a narradora e seu
irmão estão finalmente se reencontrando com seus pais, seu pai pergunta sobre seu
34
irmão, ao passo que seu pai perde seu emprego, e comenta: "Um pai feliz, um pai
triste." (2008, p. 98)
A família de Danticat, em Nova York, permanece intimamente ligada às suas
origens. Tio Joseph, o patriarca da família de fato, por muitas ocasiões viaja para os
Estados Unidos, no intuito de cuidar de sua saúde, bem como por seu trabalho como
um líder religioso. Ele perde sua voz devido ao câncer, mas sua voz é recomposta
através de uma operação que, eventualmente, traz a capacidade de falar com uma
laringe artificial: "A ciência é maneira de Deus esconder os milagres" (2008, p. 114),
diz Joseph em sua voz recém-mecanizada.
O tio da narradora, ao voltar para seu lar no Haiti - e Haiti permanecerá
sempre lembrado enquanto “lar” - está constantemente ameaçado por turbulência
política e brutalidade. Joseph testemunha horrores indizíveis, preenchendo cadernos
com os nomes dos mortos - acrescentando a condição de seus corpos mutilados.
- Pastor – disse Anne -, minha tia me mandou dizer que ouviu que 15 pessoas morreram quando atiraram do seu telhado, e os vizinhos dizem que vão lhe trazer os cadáveres para que possa pagar seus enterros. Se não pagar as despesas de hospital das pessoas feridas, disseram que vão matá-lo e cortar sua cabeça, para que não seja nem reconhecido no seu próprio enterro. (DANTICAT, 2013, p.152)
Danticat Joseph Nosius, conhecido na narrativa como Tio Joseph, é um
importante da narrativa, já que foi ele quem cuidou da narradora e seu irmão Bob,
enquanto os pais estavam em Nova York à procura de estabilidade financeira.
Joseph era engajado em movimentos políticos, posicionando-se firmemente ao
grupo de resistência ao regime ditatorial militar, ao passo que apoiava o político
Daniel Fignolé.
O herói de tio Joseph nos anos 1950 era um político chamado Daniel
Fignolé. Tio Joseph gostava de contar sobre quando Fignolé, um
jovem legislador, foi ao hospital público em Porto Príncipe e achou
pacientes deitados no chão, enquanto os ricos se recuperavam nos
leitos; ele obrigou-os a sair das macas e as concedeu aos pobres.
Logo depois de o meu tio mudar-se para Bel Air, Fignolé fundou o
Partido dos Operários e Camponeses (mouvement Ouvriers-
Paysans), para o qual meu tio entrou. Durante anos, ele e Tante
Denise abriram sua casa aos simpatizantes de Fignolé para reuniões
regulares, que eram animadas com bastante bebida caseira – kleren
– e comida preparada por Tante Denise, que todos no grupo
35
concordavam ser uma das melhores cozinheiras de Bel Air.
(DANTICAT, 2013, p. 34, 35)
Com o tempo, foi dando lugar a fé religiosa, convertendo-se e congregando a
Igreja Batista no bairro de Bel Air, onde residia.
Antes da queda de Fignolé, meu pai havia pensado brevemente em disputar um cargo político, fosse como deputado por Bel Air, fosse como prefeito de Porto Principe. Depois da derrubada de Fignole, percebeu como podia ser precário o poder político e abandonou qualquer intenção de fazer parte dele. Sentindo um vazio ideológico, tio Joseph entrou para uma congregação batista a qual pertencia um de seus amigos, usando o tempo que gastaria em protestos e discursos para ir a igreja. (DANTICAT, 2010, p. 36, 37)
Mesmo com suas atividades numa igreja protestante, Joseph ainda mantinha
sua posição de oposição as medidas utilizadas pelo regime militar da época, o que
provocava ameaças e até retaliação da parte dos simpatizantes de Papa Doc.
Quando a violência atinge a casa, Joseph faz uma fuga ousada aos oitenta em anos
e as terras em Miami, face ao seu desagrado com o governo de seu país.
Apesar de sua documentação adequada, ele é detido por agentes de
imigração e enviado para um centro de detenção notório: "Foi meu tio ir para a
prisão, porque ele era haitiano [...] Será que ele estava indo para a cadeia porque
ele era negro?" (2003, p. 202). Tratado de maneira hostil na alfândega, sem levar
em conta sua falta de saúde e idade avançada, ele morre. No entanto, ele vive por
muito tempo o suficiente para manter sua neta bebê mais nova, de quem Danticat dá
o nome de seu pai. Depois de mais de três longas décadas de separação, os irmãos
compartilham um túmulo e lápide em Queens, Nova York. A escrita de Danticat é
considerada para os críticos como algo que demonstra em particular o que muitos
escritores haitianos da diáspora relatam: os problemas de ser estrangeiro,
especificamente ser haitiano, no cenário da migração forçada. Este livro de
memórias não é diferente do que se pensa sobre a reflexão dos efeitos causados
pelo imperialismo, mesmo em tempo recente.
“Estamos aqui para um enterro”, disse meu pai ao funcionário da
imigração que examinava silenciosamente nossos passaportes
americanos no aeroporto Toussaint Louverture. Meu pai e eu nos
36
tornamos cidadãos americanos naturalizados exatamente dez anos
depois de recebermos nossos green cards, e ambos nos sentimos
um pouco traidores quando o funcionário rabiscou rapidamente sua
assinatura em nossos formulários alfandegários destinados aos
estrangeiros. (DANTICAT, 2010, p. 127)
Ao falar sobre o processo de imigração, a narradora exprime a experiência
dolorosa de “romper” com o lugar de nascimento, tendo em vista as necessidades
econômicas e a fuga de uma realidade difícil. Sua narrativa se confunde com o
desafio que a diáspora impõe: se deparar com o lugar “novo”, sem se desvincular
completamente de seu passado e de onde veio. Ela se vê confrontada, como num
fogo cruzado entre Haiti e Estados Unidos, onde o que está em jogo é qual
identidade prevalecerá. Assim, recorre à memória e à família paralela e
constantemente. Todorov comenta que “o passado poderá contribuir tanto para a
construção da identidade, individual ou coletiva, quanto para a formação de nossos
valores, ideais, princípios” (TODOROV, 2002, p. 207).
Danticat cria uma narrativa que, mesmo sendo avaliada por alguns como
autobiográfica, não perde a caracterização da narrativa ficcional levando em
consideração a diferença entre o que se constrói enquanto sociedade haitiana de
maneira oficial e do ponto de vista cotidiano, vivenciado pela narradora. É uma
leitura particular sobre o passado no Haiti, mas que não deixa se apresentar uma
visão própria do Haiti, que poucos conhecem. Não apenas pela própria experiência,
mas pelas mais diversas narrativas é que autora privilegia assim como em Adeus,
Haiti, as narrativas que são produzidas pela oralidade, em especial as dos
caribenhos. A lembrança é um exemplo relevante pois, assim como na diáspora, a
literatura pode dispor da memória e da autorização da lembrança para usa-las na
escrita. Tais aspectos partem da pressuposição da autorização pelo qual permite o
uso de lembrar até mesmo o que não é fácil de se lembrar. Em um ensaio escrito
“Daughters of Memory”, Danticat afirma:
Travar lutas com a memória é, acredito, uma das obsessões complicadas do povo haitiano. Parece que temos um acordo coletivo de lembrar nossos triunfos e passar por cima dos nossos fracassos. Assim, falamos sobre a Revolução do Haiti, como se tivesse acontecido ontem, mas raramente mencionamos a escravidão que a provocou. Nossos quadros retratam a selva africana, gloriosa e edênica, mas nunca a travessia dos navios negreiros. Para proteger a psique coletiva, estilhaçada por uma longa história de retrocessos e
37
desilusões, pela nossa trajetória de altos e baixos, entre libertadores e ditadores, opressão interna e tirania estrangeira, cultivaremos uma amnésia coletiva e histórica, continuamente repetindo ciclos, sem nos darmos conta de que estão se aproximando até estarmos revivendo horrores semelhantes [ao que vivemos no passado] (DANTICAT: 2005, p. 63, 64)
Em Danticat, percebe-se que a questão não está na autonarração em si, mas
no incansável trânsito de ida e volta entre a História e a memória, em algo que ainda
continua sendo contado no Caribe, que é a opressão ou tortura, seja ela física ou
psicológica. Para isso, a memória coletiva e a problematização do passado são
intrínsecos e nítidos no sentido de ainda mais dispor ao leitor uma reflexão quanto à
disposição desta memória no contexto da diáspora e quanto ela representa. Para
Stuart Hall:
A cultura popular carrega essa ressonância afirmativa por causa do peso da palavra "popular". E, em certo sentido, a cultura popular tem sempre sua base em experiências, prazeres, memorias e tradições do povo. Ela tem ligações com as esperanças e aspirações locais, tragédias e cenários locais que são práticas e experiências cotidianas de pessoas comuns. (HALL 1998, p. 340)
Quando a memória representa ou traz significados quanto ao popular ou do
que se caracteriza como cultura, revela-se na narrativa uma possiblidade de
resistência. O convite da autora para o leitor é o de imergir na crise existencial
provocada pela sua história de vida, não tão somente pelo ritual de ida e volta, mas
exercer um papel de revelar elementos presentes na própria cultura. A utilização da
memória na literatura evoca a natureza social humana e a preservação de suas
raízes históricas.
Os mais velhos costumavam praticar a oralidade enquanto forma de transmitir
valores importantes a seus descendentes. Um exemplo na obra está na figura de
Granmé Melina – avó da narradora:
As histórias de Granmé Melina nem sempre tinham finais felizes. Um dia, ocorreu à serpente que ela podia simplesmente matar a mãe e forçar a jovem a sair. Assim ela fez, deixando a garota sozinha no mundo. Ainda assim, a moça nunca saiu da casinha, preferindo morrer intocada e pura, sozinha lá dentro, em vez de arriscar a enfrentar a serpente, lá fora. (DANTICAT, 2010, p. 65)
38
Nesta questão, a memória depende das palavras que são construídas dentro
de uma narrativa que se remete a uma família, etnia ou comunidade, permitindo a
combinação da evocação da terra de onde partimos associando-a aos percalços do
lugar que ocupamos no presente. Como diz Halbwachs em sua análise sobre a
memória:
Os homens, que vivem em sociedade, usam palavras, cujo sentido compreendem: é a condição do pensamento coletivo. Ora, cada palavra (compreendida) se faz acompanhar de lembranças; e não há lembranças a que não pudéssemos fazer corresponder palavras. Nós falamos nossas lembranças antes de evocá-las; é a linguagem, e é todo o sistema das convenções sociais com ela solidário, que nos permite, a cada instante, reconstruir o nosso passado. (Stoetzel 1976, p. 133-134)
Levando em consideração algo que esteja relacionado à experiência do autor,
não representa puramente que ele seja propriamente o personagem ou o narrador,
mas existe uma ligação seja esta leve ou profunda, com a capacidade de o escritor
ou de qualquer outra pessoa viver em sociedade e, especificamente, na situação da
diáspora, criar um novo olhar acerca deste processo incansável, angustiante, mas
que tem voz e, parafraseando Gayatri Spivak (2010), precisa falar.
Mais uma vez, o papel da memória individual e coletiva é destacável na
escrita de Danticat. Discutindo sobre a memória coletiva, essa mesma parte do
princípio das relações do narrador com suas experiências coletivas, ativando assim
o seu potencial de remodelar um futuro de e para outros assuntos.
Desde então, descobri que as crianças que passam a infância sem
os pais adoram ouvir histórias como essa, que podem embelezar e
exagerar quanto quiserem. Esse tipo de narrativa acalma nossas
mentes momentaneamente, assegurando que somos mesmo
amadas pelos pais que partiram. Infelizmente, não me contaram
muitas histórias assim. O que ouvi muitas vezes foi sobre o futuro,
um tempo indefinido quando meu pai buscaria minha mãe, Bob e eu.
(DANTICAT, 2010, p. 53)
Os atos de recordação são fundamentalmente “social e coletivo" (SMITH;
WATSON, 2010, p. 26). Em Adeus, Haiti, a narradora usa sua narrativa para
construir as memórias de sua família e, concomitantemente, suas próprias
memórias. Ela deixa claro que as fontes de sua narrativa abrangem a recordação de
39
incidentes que testemunhou, documentos oficiais e o empréstimo das lembranças
dos membros da família.
Nas minhas cartas, eu me surpreendia com que meu pai escrevia. A regularidade, a consistência de sua correspondência parecem-me agora um ato de coragem. Pelo contrário, minhas respostas, embora menos rotineiras – tio Joseph escrevia a maior parte -, eram diligentemente exageradas e suplicantes. Nas minhas cartas, eu me vangloriava de minhas boas notas e pedia, como recompensa, uma boneca americana no Natal, uma máquina de escrever ou de costura no meu aniversário, um par de brincos de ouro “verdadeiro” na Páscoa. (DANTICAT, 2010, p. 29)
Mas a maioria do que ela narra vem a partir de histórias contadas por seu tio
e seu pai ao longo dos anos. Assim como na literatura da autora, os instrumentos
produzidos no seio cultural falam muito alto na produção de uma literatura da
memória. Por causa disso, a literatura haitiana tem sido produzida neste prisma,
tomando de empréstimo a apropriação histórica dos fatos políticos e sociais com os
relatos de memória do haitiano, independentemente de sua permanência ou de seu
deslocamento para o lugar estrangeiro. Danticat reconhece que diferentes origens e histórias complexas geram
diferentes definições de casa para os escritores ocupados na mesma discussão. Ela
também argumenta que "atravessam fronteiras para chegar a um espaço neutro"
(DANTICAT, 2004, p. 71). Ela dá grande importância, na sua narrativa, às causas
comuns e à importância de aumentar a consciência para questões prementes. A
diáspora se torna o espaço onde se reescreve o passado. Sidonie Smith e Julia
Watson concordam que, atualmente, o termo “memória” classifica obras
autobiográficas marcadas pela linguagem densa e autorreflexiva em relação ao
processo produtivo, mostrando um ramo mais preciso da autobiografia “trazendo
para primeiro plano mudanças históricas e cruzando formações culturais [para que]
leitores sejam convidados a pensar na significância de tal escolha e o tipo de leitura
que sugere” (2010, p. 4). O que pressupõe é a presença de uma escrita que permeia
na vereda da autobiografia, tendo em consideração que não está ali uma verdade
absoluta, mas o resultado de uma experiência de um indivíduo que integrou
diretamente na diáspora, trazendo consigo a mão dupla do pertencimento e da
consciência de uma memória pessoal e coletiva.
40
SEÇÃO II - “ADEUS HAITI” E A DIÁSPORA
2.1 CONCEITUANDO DIÁSPORA
A experiência da diáspora é encantador mas, ao mesmo tempo, é
controversa. O fato de sair do lugar de origem para um destino traz, em sua
potencialidade máxima, a série de problemáticas sobre identidade, história e
sociedade – que nos permite um estudo mais aprofundado.
No caso da diáspora, muitos autores marcam seus debates, tendo em vista as
transformações ocasionadas pela migração internacional, partindo do pressuposto
do neoimperialismo e do neocolonialismo ainda existentes. Outros veem que o uso
do conceito é mais complexo e profundo. John Durham Peters (1999) usa o termo
como “conceito disperso” (1999, P.18), Avtar Brah(1996), em Cartographies of
Diaspora, menciona o termo “escorregadio” (1996, p. 179) e Hall (2003) como
“heterogêneo e diverso” (1997, p. 312). Dufoix (2012) corrobora (no campo da
semântica) com a ideia de que a “diáspora é, atualmente, um termo tão instável que
não é raro observar uma quantidade de alterações semânticas em um único texto,
às vezes em um mesmo parágrafo” (DUFOIX, 2003, p. 54). O mesmo autor sugere
que a atribuição para diáspora seja certamente relativa a cada fenômeno de
distanciamento e imigração, pois não há uma categoria fechada quanto ao termo,
podendo ser atribuído de acordo com cada grupo migratório.
Today, its semantic horizon encompasses the challenges of modernity and supermodernity; it can designate both the root and rhizome; a persistence in time and space; the structures of state and territory, and their appearance; the static nature of identity or its constant transformation; all kinds of identities, from the most local to the broadest (human diaspora) while passing through every possible form of community … globalization from above and from below; and both the ancient world and the world to come (DUFOIX, 2008, p. 108).
Khachig Toloyan (1996) afirma que o conceito de diáspora é marcado por
incertezas: “os exemplos primordiais já contém as sementes da ambiguidade tardia.”
(1996, p. 11); destaca que a diáspora é mais ampla do que a simples discussão
acerca de questões geográficas de migração ou deslocamento. A dispersão de um
centro para duas ou mais regiões periféricas é acompanhada de muitas matrizes,
tais como a da construção do mito do lugar de destino em contraste com a terra
natal, a aceitação (ou não) do lugar de destino, permanência ou reinvenção das
41
práticas culturais, pensamento quanto ao retorno e relações com a terra natal por
meio de uma consciência étnico e comunitária. Enfim, algumas destas
características podem sugerir a construção de várias diásporas.
Mas, em consequência do estudo da obra de Danticat, especificamente sobre
diáspora haitiana, recorremos às teorias de Hall (2003; 2004) para embasar o corpus
da análise e para conceituarmos deslocamento e diáspora, além de Frantz Fanon
(2005; 2008) acerca das possibilidade de resistência pós-colonial, que são
elementares para a prática desta pesquisa.
Stuart Hall (2003), estudioso da cultura, vivenciou o processo da globalização
e da própria diáspora ao sair da Jamaica, seu país natal e se deslocar para a
Inglaterra, lugar onde aperfeiçoou grande parte do seu conhecimento acadêmico. Na
condição de imigrante jamaicano, Hall não se distancia de uma problemática: a de
que grande parte dos intelectuais do Caribe formam seu processo de conhecimento
científico fora da terra natal, frente às condições adversas que as nações caribenhas
enfrentam como guerras civis – poucas condições econômicas e hostilidade ao
conhecimento científico interno. Hall refere-se à diáspora da seguinte forma:
Essencialmente, presume-se que a identidade cultural seja fixada no nascimento, seja parte da natureza, impressa através do parentesco e da linhagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu mais interior. E impermeável! a algo tão "mundano", secular e superficial quanto uma mudança temporária de nosso local de residência. A pobreza, o subdesenvolvimento, a falta de oportunidades — os legados do Império em toda parte — podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento — a dispersão. Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor. Essa interpretação potente do conceito de diáspora e a mais familiar entre os povos do Caribe. (HALL, 2003, p. 28)
A questão se volta aos fenômenos presentes na diáspora. Para Hall (2003), a
diáspora caribenha está ligada ao problema da mudança para outro país ou
continente, sem deixar de ouvir as vozes que ecoam na mente e fazem recordar o
passado. Afirma que o problema da diáspora é de uma natureza colonizadora que,
através de seus mecanismos de domínio (que vão da guerra até a economia),
influenciam na dispersão de muitos para os chamados “grandes centros” mundiais.
Porém o que mais se destaca é a permanência das práticas, mesmo que sutis, da
insubordinação, que precede ao que Hall fala do in-betweeness, o sujeito diaspórico
está presente fora de sua “casa”. Todavia ao regressar à mesma, não sente
42
efetivamente pertencente a este lugar. A experiência na metrópole parece não ser
tão hostil, mas a visão hostil do colonizador ainda se faz presente em vários
aspectos: no lugar onde reside, no modo diferente de como é tratado pelos naturais
do país receptor, na obrigatoriedade de aprender um novo idioma, na vivência
subalterna que os obriga a trabalhar em funções mais desprovidas e, principalmente,
se submeterem à cultura do lugar.
De alguma maneira, não obstante ao processo colonizador dos séculos XVI e
XVII, a sutileza de transformar o imigrante em um ser aculturado pelo “primeiro
mundo” ainda é nítida. Como uma forma de ir ao encontro dessas práticas, o saber
da resistência se faz presente mesmo estando no lugar do europeu ou do
americano, sem admitir o processo ideológico colonizador e, tampouco, como diz
Fanon, a ideia de inferiorização (2008, p.133).
Dessa forma, Hall preconiza no trabalho Da Diáspora: Identidade e
Mediações Culturais (2003) uma discussão acerca do processo diaspórico, como
elemento que está ligado às reconfigurações das identidades culturais. Hall trata da
complexidade de se pensar sobre nação e identidade caribenhas a partir do
processo de globalização na Europa, em meados do Século XX. Ressalta que a
diáspora é importante enquanto elemento para se compreender a cultura, tendo em
vista que não são apenas importantes para seus povos, “mas para as artes e
culturas que produzem, onde um certo sujeito imaginado está sempre em jogo”
(HALL, 2010, P. 26). Tomando como exemplo a obra de Mary Chamberlain,
Narratives of Exile and Return, Hall menciona as dificuldades dos imigrantes
voltarem a se relacionar com sua terra de origem.
O livro Narratives of Exile and Return, de Mary Chamberlain, que
contam histórias de vida dos migrantes barbadianos para o Reino Unido, enfatiza como os elos permanecem fortes. Tal qual ocorre comumente as comunidades transnacionais, a família ampliada — como rede e local da memória — constitui o canal crucial entre os dois lugares. Os barbadianos, sugere ela, têm mantido vivo no exilio um forte senso do que e a "terra de origem" e tentado preservar uma "identidade Cultural" barbadiana. (HALL, 2003, p. 26)
A partir daí, é mencionada a impressão de uma identidade “múltipla”, que
pode ser gerada da combinação das experiências adquiridas nos limites entre o
lugar de nascimento e o destino da imigração. A identidade cultural trata das
questões adversas encontradas no processo diaspórico, pois sempre há o
43
pensamento do retorno. Seria então uma busca pelo reconhecimento das tradições
e que, mesmo com a dispersão, encontra-se uma possibilidade de restituir o que
antes fora quase que perdido: a identidade anterior. Para Hall, mesmo com a
fundação de uma identidade cultural, ela passa por transformações onde muitos
povos ou sociedades passaram por esse processo: “Nossas sociedades são
compostas não de um, mas de muitos povos” (HALL, 2003, P. 30)
A perspectiva da cultura no sentido diaspórico pode ser vista na ideia de um
movimento social criativo, onde são apresentadas combinações das traduções afro-
caribenhas e europeias. As culturas sempre são “encurraladas dentro das fronteiras
nacionais” – o que representa que há um trabalho produtivo onde a cultural é
constantemente recodificada. Hall não esconde os objetivos do processo
neocolonizador ao aculturar a seu modo os imigrantes, mas não impede de dizer
que as culturas são homogeneizantes, deixando de ser estáveis. O processo de
formação cultural é constante e complexo a partir da ruptura com o pertencimento de
uma “cultura única”. O processo não se resume ao jogo da “semelhança e da
diferença” (HALL, 2010, p. 47), mas encaminha para uma transformação mais
complexa da cultura.
No campo literário, a diáspora conduz o leitor a vários caminhos, destes,
alguns perigosos ao ponto de admitir a superioridade de uma determinada cultura
em detrimento da outra, e outros caminhos alternativos que dão voz à resistência
ante o pensamento colonizador. Talvez o mais próximo do pensamento de Hall seja
a possibilidade de um sincretismo ou de um hibridismo de culturas ou identidades.
Tal caminho possibilita novas traduções culturais, que fatalmente irão de encontro as
tradições.
Quando falamos sobre a ideia do espaço transnacional, vemos que o
migrante está transitando entre dois extremos: o do lugar de origem, com toda sua
carga de cultura e o lugar de exílio onde os limites sociais e familiares às vezes se
transmigram. Muitos migrantes mostram que há a existência da formação de novos
laços transnacionais que acompanham as raízes paternais – o que notoriamente
ocasiona um processo de interconexão do passado ancestral com o presente
transcultural. Daí, percebe-se que uma forte interconexão de práticas e vínculos
diminuem até praticamente diluir a consciência de fronteira, dando a construção de
uma outra realidade. Num trecho do livro de Danticat, a autora faz alusão ao
paradoxo familiar de estar na terra de origem e no lugar de imigração.
44
Olhando para Karl, todo aninhado nos braços de nossa mãe, não
pude evitar sentir inveja. Se ela pôde trazê-lo de Nova York para cá,
por que não pudera levar Bob e a mim quando partiu? Ao mesmo
tempo, pude perceber pelo jeito de como ela de vez em quando
passava os dedos sobre o rosto dele e o meu, que ela queria que ele
fosse um elo entre nós. (DANTICAT, 2010, p. 82)
Para a ótica haitiana, quando se remete ao termo diáspora, percebe-se que
tudo o que se associa a qualquer objeto trazido ou produzido no exterior, além do
lugar onde vive no exterior e a categoria atribuída ao próprio imigrante que volta
para sua terra, é visto como diáspora. Expressões como rad diáspora (roupa
diáspora), w’ap fe bagay diáspora (está fazendo coisa de diáspora) ou a própria
“casa diáspora” refletem a polissemia contida do uso do termo. Os usos da categoria
trazem algumas possibilidades que revelem as relações do haitiano com o
estrangeiro. O termo não se remete simplesmente a possibilidade de constituir um
processo de migração geográfica, mas como esta mobilidade está associada a
outros horizontes, como a forma de se vestir, a comunicação que vincula o creolle a
outras línguas, a reinvenção das práticas culturais, entre outras.
A diáspora haitiana possui indispensavelmente uma relação com a política
enquanto forma de defender os direitos dos imigrantes haitianos e promover a
divulgação dos problemas políticos, inclusive do regime ditatorial. Boa parte do
processo migratório ocorreu durante a ditadura dos Duvaliers, o que fez com que a
ideia de diáspora fosse utilizada enquanto uma forma de resistência não contra a
nação de origem mas uma forma de se opor ao modelo político em vigência.
Mas o uso da expressão diáspora está mais associada ao sujeito ativo do
processo migratório. A pessoa que permanece no lugar estrangeiro e retorna mesmo
que por pouco tempo também é um diáspora. Os viajantes que tem seus laços
familiares e retornam para sua terra a fim de revê-los são constituído deste termo
para qualificar que o indivíduo, mesmo haitiano, é diáspora em virtude do processo
pelo qual foi engajado. A peculiaridade do sujeito da diáspora haitiana é revelada,
apesar do mesmo sujeito permanecer ligado ao lugar de origem. Ele não se
esquivou de sua origem, mas apesar do ato dissociável do imigrante haitiano em
relação à sua família, ele apresenta a diferença dos demais, por ser um haitiano
enquanto viajante, no sentido moral de estar ligado a sua origem mas sendo um
45
sujeito diaspórico. A diáspora tem um sentido familiar pois a viagem de volta à sua
terra tem um efeito nostálgico, porem idealizado. Mesmo as adversidades de uma
política restritiva às possibilidades de amparo a maioria mais pobre, o sentimento da
diáspora é muito forte, pois há o rito da permanência, mesmo que por pouco tempo,
já que o sujeito diaspórico se constitui principalmente pela dicotomia do “aqui e lá”,
mantendo constantes os entrechoques de língua, cultura e outros aspectos sociais.
Muitos constituem sua família no lugar de destino – o que acentua mais esse
processo. A narradora nasce no Haiti, com seu irmão mais próximo, Bob. Por outro
lado, seus pais lhe dão dois irmãos nascidos nos Estados Unidos: Kelly e Karl.
Vocês, meus filhos, não me envergonharam – continuou. – Tenho orgulho disso. Poderia ter sido muito diferente. Edwidge e Bob, sua mãe e eu deixamos vocês oito anos no Haiti. Kelly e Karl, vocês cresceram aqui (DANTICAT, 2010, p. 27)
Assim como é relatado na obra, a questão diaspórica nos coloca frente ao
dilema de muitas neste processo: a mobilidade provê consequências humanas que
são estendidas até o fim da vida. Nisto, a constituição familiar também é marcada. A
presença de dois irmãos mais jovens reduziu mais ainda as barreiras políticas e
sociais. Podemos dizer que, através da mobilidade e da diáspora, a permanência de
signos provindos da terra de origem permanecem. Do mesmo modo, um trecho da
obra relata o quanto a família, constituída numa relação passado-presente, é um
elemento característico e componente do processo de diáspora.
Ouvindo meu pai, lembrei-me de uma época em que costumava sonhar que roubava palavras dele. Eu tinha 8 anos, Bob e eu morávamos no Haiti com seu irmão mais velho, meu tio Joseph, e sua mulher. Como não tínhamos telefone em casa – poucas famílias tinham na época – e o acesso as centrais telefônicas era caro, nossa única opção era escrever cartas. (...) Escritas na sua caligrafia miúda, as vezes em papel branco sem pauta, outras vezes pautado, com furos, ainda mostrando pedaços do papel pautado, com furos, ainda mostrando pedaços do papel rasgado na espiral, as cartas do meu pai eram escritas em francês formal, com o primeiro parágrafo dando notícias da saúde dele e da minha mãe, o segundo detalhado como gastar o dinheiro que mandaram via telegrafo para despesas de alimentação para mim e Bob, a terceira parte concluindo ab-ruptamente depois de garantir que logo teríamos notícias dele.
(DANTICAT, 2007, p. 27)
46
Percebe-se a relação próxima entre diáspora e memória. Compreendemos
que, neste momento, o imigrante é portador de um “retorno virtual”, remetido ao
homem diaspora, que detém através de suas lembranças, o entrecruzamento entre
o passado e o presente. O tempo e o espaço se confundem e se entrecruzam,
mesmo parecendo ser confuso, mas elementar no sujeito da diáspora. A busca por
uma identidade pura dá espaço a outra, constantemente deformada.
Apesar de indefinida, a questão da diáspora para os haitianos nos Estados
Unidos é bem peculiar, por se tratar de um posicionamento para aqueles que
imigraram para este país em busca de melhores condições econômicas. Os Estados
Unidos continua como um dos destinos mais escolhidos pelos imigrantes. Com os
haitianos, não é diferente. Calcula-se que mais de um milhão de haitianos vivem no
país, dentre estes 90% residem em grandes centros urbanos, como Nova York. A
diáspora haitiana trouxe grandes transformações que inclusive, na própria metrópole
acima citada, o funcionalismo público tem adotado o creolle como língua alternativa
para atendimento aos imigrantes. Isso impulsionou mais o conhecimento com o
idioma até então desconhecido e seu povo. Na obra, há uma descrição de como a
língua pode ser perceptível pelo estrangeiro:
- Como descreveria seu atual estado de saúde? – continuou o agente Reyes. Segundo a transição, meu tio respondeu: “Não está mal.” Provavelmente ele disse “Pa pi mal”, exatamente como meu pai
continuava a dizer mesmo enquanto agonizava. (DANTICAT, 2010, p.186)
A experiência coletiva se diferencia pela desterritorialização da diáspora,
depende da experiência coletiva e que se transforma dependendo das relações
entre imigrante e anfitrião. Aspectos destas relações irão transformar ou não ambos
os lados e, partindo disso, o sujeito migrante se comportará diante do choque
inevitável das relações de identidade, desde o mais amplo até o mais específico.
Neste pais a própria expressão diáspora é utilizada praticamente de modo
exclusivo aos haitianos, por se diferenciarem de outros grupos de origem afro-
americana. Tal atribuição categoriza os haitianos de forma mais específica, exceto
nos movimentos sociais que promovem a luta contra o racismo. No caso de Nova
York, os haitianos tiveram um processo muito particular no sentido de diáspora, pois
grupos religiosos participaram do percurso destes imigrantes. Problemas sociais
47
eram compartilhados nas reuniões religiosas e caracterizava a igreja como um tipo
de subterfúgio aos problemas enfrentados pelos imigrantes.
Uma vez, enquanto trabalhava bem cedo numa manhã de sábado, meu pai ultrapassou uns adolescentes que estavam numa van roubada e eles atiraram três vezes no meu carro. Ele estava com um passageiro dormindo no banco de trás e, por milagre, nem ele nem o passageiro se feriram. Ele nunca nos falava diretamente sobre esse tipo de acontecimento. Em vez disso, contava, nos cultos de oração às segundas-feiras à noite, quando as famílias se alternavam em reuniões semanais nas casas umas das outras, o que meus irmãos e eu chamávamos de aventuras na rua. (DANTICAT, 2010, p. 106)
Estes eram engajados em movimentos sociais de ajuda comunitária, a
exemplo dos padres e de suas respectivas paróquias. Os movimentos sociais
haitianos nos Estados Unidos favoreceram não apenas a visibilidade da imigração
caribenha no país como também a divulgação dos problemas sociais
desencadeados nos últimos anos do Haiti – o que conduziu a uma discussão de
nível global sobre a antidemocracia nos países considerados menos desenvolvidos.
Destaca-se a sensação familiar e moderna de “des-locamento”, experimentada, em
nosso tempo, por todos nós, que não precisamos, necessariamente, viajar para
senti-la. Trata-se ainda da dificuldade de nos situarmos de fato em um lugar preciso
e da consciência de que não nos é facultada a possibilidade de voltar para casa,
pois há sempre algo no meio, entre o presente e lá onde tudo começou (HALL,
2003, p. 27). Mas onde é o início de tudo? Não somos todos migrantes em trânsito
permanente que nos leva a recomeçar sempre?
Cabe-nos aqui penetrar na leitura do amor e da afetividade em tempos de
exílio. Associado às ideias de ausência e fragmentação, o exílio como ruptura é
compensado pela vivência amorosa que constitui, para personagens
desterritorializados, a oportunidade do encontro – encontro do outro e de um outro
lugar de referência identitária.
Num dos pólos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro pólo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso a escolha da identidade, que não tem direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros – identidades de que eles próprios se ressentem, mas não
48
tem permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar (BAUMAN, p. 44)
Não é de se admirar que o haitiano que vai para o exterior, apresenta uma
grande diferença ao retornar, seja temporário ou permanentemente para seu país,
tendo em vista que a socialização no lugar de acolhimento. O ser diáspora possui
essa multiplicidade – o que não significa obviamente que ele esteja negando o seu
passado, mas traz a sua experiência enquanto diáspora aletranje para seus
compatriotas.
Essa dinâmica da diaspora se inscreve numa dimensão de alteridade expressa numa dinâmica das identidades coletivas. Construir a relação na alteridade se sobrepõe, ao mesmo tempo, à confrontação cotidiana com os membros do lugar de residência no exterior e com aqueles do país de origem, ou seja, numa confrontação geral na diferença que constitui uma fonte de questionamento identitário e um desafio permanente. A pessoa diaspora se caracteriza pela dupla
condição de estranhamento. (HANDERSON, 2015, p. 364)
O Haiti é revestido pela história de luta que o circunda, especialmente a luta
em favor de sua própria autonomia. Um país que enfrentou diversos processos
políticos de crise e embate tanto interno quanto externo não deixaria de apresentar
seus traços na literatura. A construção de identidade passa pelo crivo do processo
histórico, onde percebemos a constante transformação de sua identidade
acompanhada pelo processo de mudanças institucionais. Assim como o processo
histórico político e social é complexo e interminável, a produção de uma identidade
fixa também é inconcebível, pois a historicização radical traz esta produção
inacabada sobre a identidade.
2.2 DANTICAT, UMA LEITURA POSSÍVEL DA DIÁSPORA
Na obra de Danticat, percebe-se como as questões políticas e sociais do Haiti
refletem sobremaneira a identidade da população. Assim, as relações familiares se
confundem com a trajetória que a nação percorre, o que precede uma relação
fortemente explícita entre memória e História.
Em 1956, Magloire renunciou após uma greve nacional devido, a entre outras coisas, à insatisfação crescente com seus gastos extravagantes. [...] Fignolé era um dos muitos que estavam numa vacilante linha de sucessão para eventualmente ocupar o seu lugar.
49
Em 25 de março de 1957, quando Fignolé fazia seu juramento para o seu cargo, meu tio e meu pai estavam na multidão maciça que acenava para o palácio nacional, dançando para festejar. Contudo, apenas 19 dias depois, Fignolé foi deposto pelo Exército e forçado a ir para o exílio. François “Papa Doc” Duvalier assumiu então a presidência. Tante Denise acordou na manhã seguinte para ver Tio Joseph soluçando na cama. (Meu pai, então com 22 anos, não lembra as suas reações a tudo isso; só a do meu tio, que estava ‘triste’). (DANTICAT, 2007, p. 36)
A memória biográfica das famílias e a narração autobiográfica são
maximizadas no campo identitário da literatura negra, bem como a história dos seus
antepassados, que foram vítimas das atrocidades da escravidão, são valorizadas
pela literatura da diáspora.
As famílias haitianas apresentam fortemente a relação de suas gerações até
de seus antepassados com a história de seu país. A memória biográfica das famílias
se confunde com a narração autobiográfica, a exemplo de Danticat. Não obstante à
autora, diversos outros autores, tanto contemporâneos quanto mais antigos,
trouxeram fortemente a revelação dos fatos históricos que marcaram o Haiti, desde
a escravidão até as últimas guerras civis. A família haitiana se confunde com a
História, tanto a recente quanto a de seus antepassados. No caso da diáspora, não
é diferente, pois revelam os dilemas do processo migratório e os problemas
impostos pela mobilidade.
A imigração haitiana está interligada a várias questões que não estão
distantes dos processos de diáspora existentes. Uma grande porção desses
fenômenos ocorreram em virtude de questões socioeconômicas e, em casos mais
extremos, de embates políticos e ideológicos que levaram ao conflito armado.
Sociedades como as dos curdos, na Ásia Menor e Oriente Médio, assim como povos
do Centro da África, numa tentativa de fuga da opressão de governos totalitários,
nos permitem visualizar esta questão. No caso do Haiti, além de um longo processo
político que vem desde o governo de Jean Bertrand-Aristide até os tempos recentes,
o fato de haver um abalo sísmico de grandes proporções em 2010 levou o país a um
colapso social. Combinando estes fatores, pressupõe que o Haiti, que já era
considerado um país de baixo índice de desenvolvimento humano, teve reflexos
negativos com consequências ainda mais críticas. Tamanha crise motivou centenas
de milhares a migrar-se para outros países, em especial a países emergentes latino-
50
americanos, buscando novas alternativas para a sobrevivência e quem sabe,
aperfeiçoar-se para várias atividades que possam exercer, seja no país receptor,
seja na pátria-mãe.
Essa foi a terceira viagem do meu pai ao Haiti nos 32 anos de idade
que partira pela primeira vez e a minha vigésima quinta em quase
uma década. Depois da minha primeira viagem, em 1994, voltei
muitas vezes, nem sempre para a capital, mas também para outras
partes do pais, para ajudar nas aulas de um curso de verão para
universitários americanos. Também viajei com documentaristas,
entrevistei artistas para catálogos de arte, compareci a seminários
acadêmicos e até voltei por várias semanas para escrever um
pequeno livro sobre o Carnaval na cidade sulista de Jacmel.
(DANTICAT, 2010, p. 126)
Podemos ver no texto citado que a própria narradora faz parte de um grupo
especial que organiza serviços voluntários, ou seja, haitianos da diáspora que
contribuem com haitianos do lugar e com os próprios estadunidenses.
Documentários sobre o Haiti e sua História e cultura são comuns, a exemplo do que
é denunciado. Tal processo tem relação com o que Hall menciona sobre a
comunidade global, cada vez menos essencialista à medida que as relações sociais
vem sendo minuciosamente estreitadas. (HALL, 2014, p. 55) Encarada como um
processo epistemológico, a diáspora, exemplificando o estudo de Hall (2003),
permite repensar processos de construções identitárias de nosso tempo e as ideias
atribuídas até recentemente a nação, que passaram a serem visualizadas numa
sociedade “imaginada”. Pela perspectiva diaspórica da cultura, sugere mais o
movimento do “tornar-se”, que pode ser associada a ideia de diferença em Derrida,
um devir ou deslocamento inacabado, sempre havendo mudanças de identificação.
As identidades são múltiplas, assim como o local de origem não está
associada a uma única fonte que identifique ou classifique de maneira exclusiva. As
coletividades se diversificam a partir das variáveis de elaborações de identidades
que são fornecidas ou recolhidas a partir da desterritorialização. Falando do Caribe,
Hall reconhece que todos que estão no espaço caribenho “pertenciam originalmente
a um outro lugar” e sua história “está marcada pelas rupturas mais aterradoras,
violentas e abruptas” (HALL, 2003, p. 30). O próprio Caribe tem este processo
considerado inacabado, mas enriquecedor do contato entre culturas.
51
Mas a ideia não é ignorar a presença da cultura haitiana, mas levar em conta
que ela existe e permanece mesmo no processo migratório. Diante do que o novo
contexto colonialista pressupõe, a dificuldade do “ex” colonizado, frente à
dissimulada prosperidade do colonizador, impõe ainda uma relação de dependência
econômica – o que não se distancia da questão diaspórica. Neste processo, o
neocolonizador não apenas explora o imigrante em sua mão de obra ou na sua
economia, mas no sufocamento a sua cultura, fazendo-o enxergar como
“aculturado”. Em contraste com essa suposição, a memória, aliada à resistência e ao
colonizador são formas de manter a cultura do haitiano e sua história, não
permitindo ser dominado.
Quando discutimos sobre o hibridismo à luz de uma literatura caribenha,
temos aqui muitas dissonâncias e interferências. Mesmo com todo um enfoque que
dite uma relação muito próxima com a origem, não significa que o mesmo esteja
aculturado, ou naturalizado. A memória está sempre em processo de diálogo com a
representação do exilio. A ausência dos parentes está harmonizada com o
saudosismo e a reinvenção identitária do país o qual deu esse suposto abrigo. Tratar
da diáspora haitiana também não é apenas contribuir com a memória, mas carregar
em seus imigrantes a multiplicidade de se modificar nesta relação entre terra natal e
país de adoção.
A diáspora é como um processo de fecundação, pelo qual dificilmente cada
sujeito por coincidência desenvolverão o mesmo sentido de renovação. A
transitoriedade é inevitável, mas permite o entendimento sobre as múltiplas formas
de situações quanto a esta metamorfose cultural. A vivência do exílio tem algo de
chamativo que ela não tem uma lógica única, ela pode criar um enraizamento ou
também fazer com que o sujeito se desprenda de seu passado. Uma citação de
Danticat mostra que há uma dúvida, um tipo de incógnita que precede uma
imprecisão:
Tudo de repente misturava na minha cabeça e me levava aos lugares mais escuros. Seria a época certa? Haveria complicações? Eu iria morrer? O bebê iria morrer? Meu pai morreria antes de morrermos? Ou morreríamos todos ao mesmo tempo? Por outro lado, trazer um bebe ao mundo parecia ser qualquer coisa menos morte. Era um enorme salto de fé no futuro, um reconhecimento de que alguém, de alguma forma, continuaria a existir. (DANTICAT, 2010, p. 46)
52
A exemplo do fragmento citado, a questão da perpetuação da vida sugere a
continuidade da história de sua família. A narradora traz à tona o valor adquirido de
reminiscências, em combinação com o futuro que há de vir, materializado na
chegada de seu filho. A forte relação espiritual em relação à sua origem é revelada
no canal que liga seus antepassados ao tempo presente, através da comparação de
seu pai, em perigo eminente de falecer por problemas de saúde, com seu filho que
virá. A permanência dos valores familiares está fortemente aliada à permanência de
seus valores adquiridos de sua terra natal. Neste período, a narradora coloca em
questão a saúde de seu pai em comparação ao nascimento de seu filho.
Segurando o cilindro plástico agora úmido, sentei no chão e solucei. Estava com receio de perder meu pai e também afetada por um tipo diferente de medo: pânico de ter um bebê. Tudo de repente se misturava na minha cabeça e me levava aos lugares mais escuros. Seria a época certa? Haveria complicações? Eu iria morrer? O bebê iria morrer? Meu pai morreria antes de morrermos? Ou morreríamos todos ao mesmo tempo? (DANTICAT, 2010, p. 22)
Uma estreita ligação entre o passado familiar, peculiar de um Haiti eminente
se encontra com a visão de um novo ser (nascido, neste caso, nos Estados Unidos)
sujeito a um novo processo, o de um herdeiro da nova consciência ou de uma nova
construção da diáspora. Não seria um “legitimo” haitiano, mas não se abstém da
consciência de diáspora, agora com o rompimento de uma identidade totalmente
autêntica. O fenômeno da imigração e naturalização não se apresenta como uma
caracterização predominante de uma identidade própria e estruturada, mas que
apesar dos laços de consciência estarem presentes, não isenta da formação de uma
identidade complexa e inacabada. Paul Gilroy diz que pela diáspora, possivelmente
encontra-se “formas geopolíticas e geoculturais de vida que são resultantes da
interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só incorporam,
mas também modificam e transcendem” (2001, p. 25).
A percepção da diáspora não apenas extrapola a ideia de uma formação
unicamente cultural da fronteira étnica do Estado-nação, mas permite que as trocas
culturais ocorrem de modo que haja esse paralelo entre aceitação e estranhamento.
Isto enriquece mais ainda a possibilidade de não remeter o termo a pensamentos
estritamente políticos e econômicos.
53
A perspectiva de Edwidge Danticat leva em consideração a questão da
diáspora que precede a problemática da imigração caribenha. Dentro de sua
narrativa, no contexto especifico da migração de sua família para os Estados
Unidos, marca em comum a construção do fenômeno enquanto processo que marca
a resistência e luta em favor da permanência das identidades antigas, mesmo com a
reconstrução de novos vocabulários em torno do processo migratório.
Mesmo com a transcendência de um identidade original para uma reinvenção
de uma identidade transitória, a escrita da autora marca a angústia do exílio (em
geral, toda a família), no qual as identidades são postas em xeque. As migrações
forçadas, do ponto de vista econômico, produz a construção de comunidades
derivadas da diáspora, no qual, segundo Hall, provocam um desmantelamento de
uma identidade fixa e estável. Nela, as diferenciações passam por processos de
ambiguidades e similaridades, produzidas de forma constante. Na narrativa, a
discussão sobre nação e migração são constantes, onde há a contestação de se a
migração é amplamente positiva, se a diáspora em si é positiva e quais os efeitos
frente a uma identidade anterior.
Um exemplo crucial da obra está na comparação entre o pai e o tio da
narradora. De forma emblemática, a angústia da doença e da tentativa de evitar
mazelas ainda maiores são presentes e praticamente se entrelaçam entre os dois
irmãos:
Às vezes meu pai ficava quieto, enquanto meu tio implorava sozinho. “Deus, não abandone seu servo agora. Ele está com 69 anos. Tem tanto ainda, para experimentar. Ele gostaria de viver para desfrutar de todas as promessas que criou para aqueles que o servem. (DANTICAT, 2010, p.138)
A relação entre ambos é muito próxima, conforme vemos na citação. Mas, na
diáspora, as relações mesmo tendo o dilema da distância, parecem ser diferentes,
porém mais envolventes no sentido de aproximarem-se ainda mais. Ambos
compartilham seus problemas de saúde, conversam sobre suas famílias e nesse
contato, aproximam-se mais do lugar de onde vieram. Enquanto o pai enfrenta uma
doença degenerativa frente ao trabalho clandestino e exaustivo, o tio por vez se
depara pela perseguição política, tendo que levar as últimas consequências sua
sobrevivência ao entrar em solo americano.
Essas duas realidades em comum colocam em debate os laços parentais
frente às condições sociais enfrentadas aos problemas sociais tanto no país de
54
origem quanto no país a ser migrado. Em comum há a permanência da imagem de
humilhação e subserviência da ilha haitiana frente à potencialidade hostil do primeiro
mundo.
A narradora demonstra em sua testemunha diante dos dois fatos que o
processo diaspórico haitiano envolve a dramática interação das políticas de
imigração exercidas de forma ostensiva e a crise política e social demonstrada no
país de origem em sua história. No meio deste contraste, está a família. Comumente
a violência demonstrada tanto pela autoridade haitiana dos tontons macoutes quanto
pela alfândega estadunidense reflete que a diáspora é o lugar doloroso da
sobrevivência ou a cicatriz marcada pelo produto da migração forçada. Migração,
origem e diáspora estão enquadradas num mosaico de opressão seguida pelo
dilema da identidade haitiana ou caribenha comprometida pelo deslocamento aos
“centros”.
A diáspora gera um estado de inquietude que para Danticat, apesar da dor e
da perda, é praticamente necessária para que se tome conhecimento dos
significados da migração moderna. A identidade haitiana produz uma autoinvenção,
não negando suas origens, mas direcionando a atenção dos próprios haitianos e da
própria “metrópole” a percepção do uso de uma resistência e da divulgação deste
imigrante, na tentativa de rever o modelo negativo que se constrói a partir deste
mesmo imigrante. Stuart Hall (2003) menciona que a permanência no lugar
diaspórico não representa a admissão a tudo que este mesmo lugar proporciona
para o imigrante. Há a decisão de permanecer sem deixar a margem o senso da
resistência a apoio aos compatriotas no seu processo de adaptação. No processo
crítico dos direitos humanos, especificamente em Nova York, os caribenhos,
inclusive haitianos, estiveram envolvidos em movimentos afroamericanos, visto que
eram alvos de racismo. O que entra a diáspora nesta questão? A diáspora se torna
um meio de diferenciação. Para o Haiti, o sujeito participante deste processo tem
atividade constante até mesmo na economia, enviando os recursos financeiros
(principalmente em dólar) para sustento dos familiares que ficaram. Nas questões
políticas, não era diferente. Para Handerson:
Embora, na época, o país possuísse legalmente apenas nove distritos administrativos, chamados departamentos, no ano de 2003, o Governo criou um décimo departamento geográfico, chamado de Nippes na região sul do país. Fonds-des-Nègres e Pemerle, onde realizei a pesquisa de campo, fazem parte deste décimo departamento geográfico. Este sentido
55
político se justificou essencialmente no reconhecimento da existência de uma ordem política e econômica dentro da qual Haiti se insere enquanto país de emigração e de mobilidade. No discurso de posse de Aristide, foi evidenciado esse reconhecimento através do agradecimento à participação ativa dos haitianos da diaspora na vida social e política do país, sobretudo
porque aqueles residentes, particularmente nos Estados Unidos, apoiaram a sua candidatura, financiando e contribuindo na multiplicação dos organismos associados a sua campanha eleitoral. (HANDERSON, 2015, p. 347)
A questão política sobre a diáspora é bastante discutida no Haiti, pois se em
parte há uma contribuição em se tratando de questões econômicas, por outro lado
apresenta controvérsias sobre a questão de cidadania. Enquanto muitos acreditam
que o sujeito da diáspora pode participar politicamente, outros pensam que a
diáspora é um motivador para o rompimento de seus “laços patrióticos”.
Apesar de o processo migratório ser transmitido mediante a obra por uma
ótica do exilio forçado, é notório na obra que a diáspora parte do resultado de ações,
impostas pelo processo colonizador, não apenas da forma escravocrata dos Séculos
XVI a XIX, mas na sutileza do controle sobre o opressor nas formas de pensamento
e no comportamento. Antes o colonizador controlava geograficamente, de forma
exploratória e direta. Atualmente, a sutileza quanto ao controle econômico é que
precede a migração forçada.
Certa tarde, antes de fechar a a loja de calçados, meu pai estava conversando com seu patrão sobre o filho dele, que logo iria de férias a Nova York. - Você acha que consigo um visto? – meu pai perguntou. Na época, como agora, ir embora parecia a única resposta, sobretudo se alguém estivesse doente como meu tio ou fosse pobre como meu pai, ou desesperado, como ambos. (DANTICAT, 2010, p. 53)
As relações sociais entre colônia e metrópole são percebidas nesta interseção
entre o pai da narradora e seu ex-patrão, dando a impressão do poder resultante do
domínio sobre o outro e seus efeitos devastadores (perda da identidade do imigrante
com a terra natal, propagação de uma rotulação pejorativa quanto a origem). Esses
exemplos podem ser pensados da seguinte maneira: parafraseando Spivak quanto a
noção da subalternidade, o que se pode dizer de um imigrante caribenho, cuja
cultura tem raízes afroamericanas e que além das questões sociais ainda são
acompanhadas pelas raciais? Até que ponto a diáspora, face à necessidade de
56
sobreviver fora de seu país de nascimento, também pode preceder a permanência
das representações coloniais?
Torres comenta que
O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo está no poder de outro povo ou nação, o que constitui a referida nação em um império. Diferente desta idéia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial, utilizando-se, entre outras, da idéia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente (TORRES, 2007, p. 131).
O dilema que marca a diáspora neste sentido é o de dispor o passado
enquanto forma de resistência, mediante à dispersão de um povo ou de uma família.
As famílias haitianas têm um vínculo muito forte com o passado. Apesar deste
mesmo passado não possuir lembranças unicamente positivas (a exemplo dos
problemas políticos enfrentados pelo povo haitiano), eles remetem ao passado e,
mesmo no processo de negociação com outras culturas, não perdem por completo
sua identidade. Hall menciona que o imigrante consegue pela tradução, transpondo
muito além de suas fronteiras naturais, permanecendo ainda vinculado a sua origem
e sem perder suas tradições. (HALL, 2014, p. 52) Reafirmar suas raízes culturais
não significa que o imigrante esteja ausentando completamente de sua realidade
enquanto imigrante, pois conscientemente sabe que onde está não é o Haiti. Porém
não substitui suas afirmações anteriores quanto a sua origem, visto que elas sempre
o acompanharão.
No caso de Danticat, há uma percepção interessante quanto a tradução
enquanto forma de reinvenção de sua identidade cultural. Mesmo assim, as
questões da migração haitiana são muito pertinentes, a exemplo de os haitianos
praticamente viverem em comunidade, procurando estar juntos mesmo longe do
Haiti.
57
A expressão pa pi mal (2010, p.17) mostra a relação mutua entre os haitianos de
maneira familiar.
A língua é um outro pressuposto pois a “descentração” não impede da
narradora ainda manter as suas raízes no idioma creolle. Segundo Handerson:
Diaspora é vista assim como uma categoria de interação. Ao mesmo tempo, em que constrói as suas múltiplas identidades a partir de duas sociedades ou mais, ela não se desenraíza – no sentido próprio e forte do termo – do Haiti. Ela interconecta o universo haitiano com o de aletranje, realizando sínteses culturais fecundas constituídas
entre os diferentes espaços de mobilidade internacional e o Haiti. Diaspora pertence aos dois lugares ou mais, por viver nos dois ou entre os dois. A pessoa diaspora não está apenas em mobilidade, ela vive a circulação a partir dessas diferentes formas que acabo de evocar. A mobilidade faz parte da vida cotidiana da pessoa diaspora:
ela constitui e vive permanentemente em novos espaços sociais e culturais (HANDERSON, 2015, p.361, 362).
Ao passo que o imigrante haitiano pretende manter-se em contato com sua
origem, ele se depara no forte dilema de encontrar-se com o “diferente”, ou seja,
dialogar com a cultura do país receptor. A situação de aletranje possibilita haver esta
mobilidade de ser haitiano e, ao mesmo tempo, participar desta nova forma de
circuito cultural, onde ele se interconecta e troca as experiências com outros
espaços.
Entre estar longe de seu lugar de origem e o “novo mundo”, o distanciamento
permite o reconhecimento de si mesmo, não enquanto estar no Haiti, mas em ainda
ser haitiano longe de seu país. Homi Bhabha (2003) chama de entrelugar, cuja
dualidade está presente, a de ser de um lugar e a de estar em outro. A sensação de
não pertencimento ao lugar de imigração contrasta com o fato de saber estar neste
lugar novo com os dilemas culturais e de linguagem nelas presentes. As diferenças
são inevitáveis e a construção de múltiplas identidades é um processo inevitável e,
muitas vezes, doloroso, em função dos paradoxos existentes no processo
diaspórico. Por outro lado, o entrelugar, assim como cita Bhabha (1998), permite o
reconhecimento desse lugar de onde veio – o que possibilita desmistifcar a ideia
colonizadora de criar no imigrante o imaginário do lugar “exótico”. Eis a possibilidade
de ressignificar o lugar onde se encontra, no pensamento de não silenciar sua
origem.
58
SEÇÃO 3 - A LITERATURA DE EDWIDGE DANTICAT E O PÓS-COLONIALISMO:
UMA TENTATIVA DE INSTAURAÇÃO DO DISCURSO DESCOLONIZADOR
O que será proposto nesta seção é argumentar e refletir sobre a importância
da literatura de “Adeus, Haiti” como uma forma de denunciar os efeitos ainda
presentes no discurso colonizador, que mantém uma determinada ordem social
hegemônica. Para tanto, primeiramente será exposto um breve comentário sobre o
discurso pós-colonial, partindo de teorias desenvolvidas sobre temática do
colonialismo, com base em autores da teoria como Frantz Fanon, Aimé Césaire e
Albert Memmi. Logo após, será feito uma discussão para compor a discussão sobre
as representações coloniais, principalmente na preocupação em expor a voz dos
indivíduos que vivem na diáspora.
3.1 A TEORIA PÓS-COLONIAL
A literatura pós-colonial tem como um dos seus principais discursos a “crise
de identidade” característica do problema encontrado nos povos colonizados e que
anseiam por viver uma história que lhes seja própria. Tal escrita baseia-se na
reflexão da procura da identidade própria por parte daquele que antes fora
colonizado. Ao negar a cultura do outro, ele se depara com o dilema de não rejeitar
totalmente uma cultura que se tornou a sua. Dificilmente escapamos da
problemática da configuração da identidade do sujeito que se situa em um tempo e
espaço marcados pela descolonização que ainda é apresentado como um processo
em andamento.
A teoria pós-colonial se opõe às formas econômicas e políticas engendradas
pelo imperialismo contemporâneo após a derrocada do colonialismo eurocêntrico.
Porém, no panorama do continente americano, a imagem neocolonial está
configurada através da dependência político-econômica de países menos
privilegiados da economia dos Estados Unidos que, por sua vez, determinaram sua
superioridade através de programas econômicos que foram desde a Doutrina
Monroe até o Plano Marshall. A população atual do Caribe está neste círculo da
dependência econômica, pois muitas delas apresentam grande deficiência no
sistema econômico em face da experiência colonial e neocolonial, que tomaram o
máximo possível que havia de recursos econômicos, principalmente minerais, além
59
de configurar a população no modelo desigual da economia, cuja minoria, elitizada e
mestiça, tem poder sobre a maior parte da economia agrícola e comercial, frente a
maioria nativa, que possui a menor parte das riquezas. A política desses países foi
codificada aos moldes do colonialismo, baseando-se em regimes totalitários e
ditatoriais.
O argumento central dos estudos pós-coloniais, assim como a sua maior
contribuição, é a ruptura com a história única, sustentada pelas narrativas
sustentadas pela ideologia do processo colonizador. Esse mesmo estudo expõe as
ideias de dominação do homem pelo próprio homem, como justificativa para o
processo “civilizatório”, no qual uma cultura e sociedade tentará se sobrepujar a
outra, para transformar outros povos em reprodutores de sua cultura, língua e
sociedade. Segundo o comentário de Aimé Césaire, o que importa saber sobre o
colonialismo é
Reconhecer que ela não é evangelização, nem empreitada filantrópica, nem vontade de fazer retroceder as fronteiras da ignorância, da enfermidade, da tirania, nem a expansão de Deus, nem a extensão do direito; admitir de uma vez por todas, sem titubear, por receio das consequências, que na colonização o gesto decisivo é o do aventureiro e o do pirata, o do mercador e do armador, do caçador de ouro e do comerciante, o do apetite e da força, com a maléfica sombra projetada por trás por uma forma de civilização que em um momento de sua história se sente obrigada, endogenamente, a estender a concorrência de suas economias antagônicas a escala mundial. (CÉSAIRE, 2010, p.17)
O pós-colonial tem como um lema o comprometimento com a crítica ao
colonialismo e divulgar a desconstrução do seu discurso. Na literatura, a discussão
das histórias contadas vão sustentar esta critica. Neste sentido, percebe-se a
manifestação do que é colonial ou neocolonial, baseando-se na memória e nas
experiências dos processos brutais da vida, principalmente a banalização por parte
do outro. Segundo Bhabha:
[...]toda uma gama de teorias críticas contemporâneas sugere que é com aqueles que sofreram o sentenciamento da história – subjugação, dominação, diáspora, deslocamento – que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e de pensamento. Há mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da marginalidade social – como ele emerge em formas culturais não – canônicas – transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets d’art ou para
60
além da canonização da ‘idéia’ de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e valor, frequentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da sobrevivência social. (BHABHA, 1998, p.240)
A questão pós-colonial traz a ideia de dominação enquanto posta contra si
mesma, ou seja, questiona o poder colonizador e neocolonizador enquanto forma de
dominação nos campos da política, da religião, da economia e das mentalidades.
O discurso pós-colonial traz o confronto das relação colonizador-colonizado,
redimensionando a relação entre o que está no centro e o que está à margem,
criticando o conhecimento ocidental, os textos e as práticas coloniais de essência
imperialista. No pós-colonialismo, há a possibilidade de contextualizar a maneira
como o discurso colonial classifica questões ligadas a cultura, ao gênero, à história e
às nações ex-colonizadas. Esse contraponto em relação as metrópoles ocidentais foi
construído principalmente por intelectuais que investigaram amplamente a partir das
ex-colônias, tendo em vista não apenas a aquisição de conhecimento de causa, mas
de terem passado pela experiência colonizadora. O pós-colonialismo promove o
questionamento sobre o poder europeu e mantém este questionamento acerca da
produção de um controle sócio-economico dos Estados Unidos, no qual a
característica de subverter seu domínio não se distancia da Europa no processo
colonial até o Século XX.
Thomas Bonnici (2005) afirma que o termo pós-colonialismo levanta o
questionamento de maneira positiva – o que inclui a problemática do colonialismo e
da dominação por parte do estrangeiro. Com o processo colonizador, as marcas de
pertença passaram a ser substituídas pela cultura do dominante, dando lugar a
dúvida do afrodescendente quanto à sua origem. Neste sentido, a memória se torna
uma forma de ainda permanecer ligado às suas raízes, mantendo ainda um vínculo
de pertencimento do lugar de onde veio. Mesmo com o dilema da diáspora presente,
a história, ou seja, o passado eminente na memória significa que mesmo estendo na
diáspora, o personagem tem sua ligação com o lugar de nascença, não se
desvencilhando em função do processo migratório.
Não diferente do processo colonizador nos idos dos Séculos XVI a XIX, as
representações e as identidades do sujeito americano tem produzido uma crise de
identidade do que se tem sobre o negro. Segundo Homi Bhabha, “o estado colonial,
a ideologia colonial perturba a representação social e psíquica do sujeito humano”
61
(BHABHA, 1998, P. 72). Assim como na colonização dilacerada dos tempos de
Cristóvão Colombo, o afrodescendente tem sofrido o problema do silenciamento,
frente a sua origem, através de padrões de sistema neocolonial, justificada em seu
discurso em nome de um ideal “civilizatório”. Traz a partir daí a imposição religiosa,
linguística e cultural.
O discurso colonial se estrutura na demarcação das diferenças, em uma
dinâmica maniqueísta na qual o colonizado (neste caso, o negro) é comparado ao
europeu, o qual recorre ao processo de branqueamento ou crioulização, que é uma
forma de miscigenar para transformar o negro em todos os sentidos: tanto exterior
quanto interiormente. Para Bhabha, “o discurso colonial produz o colonizado como
uma realidade social que é ao mesmo tempo um outro e ainda assim inteiramente
apreensível e visível” (BHABHA, 1998, p.111). É criado um sistema de
representação que nega qualquer perspectiva de alteridade. A suposta essência
simultaneamente apaga.
Assim, como diz Fanon (2008): assimilamos o problema ainda presente no
que concerne a discriminação ao imigrante caribenho. Essa discriminação ainda se
manifesta com mais ênfase quando se apresenta o dilema da cor. Para haver uma
transformação aos olhos do colonizador, é preciso que o afrodescendente deixe sua
mentalidade ancestral, dando margem a mentalidade do colonizador. Isso
indubitavelmente mostra a manifestação de um poder do colonizador em apossar da
mentalidade do imigrante.
Baseando na obra, é válida a afirmação de Fanon sobre “o que quer um
homem” (FANON, 2008, p. 26). Para o teórico, o homem negro quer o confronto
objetificador com a alteridade; na psique colonial há uma negação inconsciente do
momento negado. O outro deve ser visto como a negação necessária de uma
identidade primordial introdutora do sistema de diferenciação, que permite ao
cultural ser significado como realidade linguística, simbólica e histórica. Manifesta a
sua identidade, não como algo acabado, mas que apresente também resquícios de
sua ancestralidade.
Procurando compreender sobre a questão do colonialismo, Danticat nos
mostra a possibilidade de, mesmo diante da inevitável interferência, como a
identidade, manter as questões culturais, da língua e da memória, como resquícios
de seu passado diante da migração no tempo presente. Percebemos o quanto a
questão da cultura e da língua são influentes no contexto da diáspora haitiana. Tanto
62
a presença do creolle quanto do vodu reforçam o sentimento muito intenso da
comunhão que os haitianos mantem em relação a sua origem, em harmonia a
identificação deles enquanto imigrantes, que lutam pela materialização desses
traços culturais mesmo em país estrangeiro. Fanon afirma que
O problema é saber se é possível ao negro superar seu sentimento de inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo, tão semelhante ao comportamento fóbico. No negro existe uma exacerbação afetiva, uma raiva em se sentir pequeno, uma incapacidade de qualquer comunhão que o confina em um isolamento intolerável (FANON, 2008, p. 59)
3.2 ADEUS, HAITI: REPRESENTAÇÕES (NEO) COLONIAIS E FORMAS DE
RESISTÊNCIA
Na obra de Edwidge Danticat, é perceptível que a literatura haitiana apresente
uma representação da situação que tange a diáspora. Esta questão, visualizada na
obra de Danticat, não está distante do problema referente ao colonialismo. Mas
antes, é importante remeter a colonização e seus efeitos ao Haiti e ao seu povo. Não
obstante, o processo colonizador teve como um dos seus dilemas a restrição de
deus direito a manter sua história pelas antigas colônias. Mesmo com a
independência, as matrizes do colonialismo ainda eram reproduzidas, bem como a
consolidação da elite crioula, a pertinência de um idioma europeu como o francês,
as disputas políticas e as guerra civis precedidas por ideologias militares, a exemplo
dos Duvaliers. Essa intolerância não se distancia do momento em que o africano,
trazido a força de seu lugar de origem, foi atirado por uma diáspora dolorosa, tendo
laços afetivos e culturais comprometidos. Segundo Louidor
A corrupção foi parte fundamental do regime duvalierista. A família Duvalier enriqueceu, principalmente, com o dinheiro recebido da máfia estadunidense, em especial a nova-iorquina, e com os recursos do país. Além da repressão e da corrupção, a presidência de Jean-Claude Duvalier, filho de François Duvalier, se caracterizou também pela “liberalização econômica”, através da instalação das industrias de manufatura, principalmente têxteis e de vestuário, para exportação. (LOUIDOR, 2013, p.21)
O governo dos Duvaliers no Haiti passou a adotar um modelo econômico que
favorecesse a produção industrial de grandes empresas transnacionais, ao passo
63
que a maior parte dos lucros vai para estas mesmas empresas. Por outro lado, a
geração de emprego não era suficiente para a população haitiana, que presenciava
cada vez mais a dominação dos produtos importados. Esse modelo econômico
adotado pelo regime duvalierista favoreceu principalmente os Estados Unidos, fora
outros países economicamente mais abastados. Para o Haiti, baseando na fala de
Cotinguiba (2014), “o projeto não seguiu de acordo com a vontade dos seus
revolucionários e sim com as circunstâncias impostas pelas condições históricas e
sociais exteriores, as quais lhes impuseram inúmeros percalços”. (2014, p. 69)
Diante dos problemas políticos de repressão e favorecimento a política
externa, sem a devida atenção aos dilemas enfrentados pela população, muitos
intelectuais haitianos estabeleceram uma crítica a este modelo político de
dependência com os Estados Unidos, bem como questionar as sucessivas
intervenções sofridas pela nação haitiana nos últimos anos e as consequências
destas intervenções. Sempre sob o pretexto de reorganizar a ordem econômica e a
instabilidade institucional, os Estados Unidos intervieram no país com a finalidade de
extrair ao máximo, novas alternativas para compensar a dívida externa do Haiti, o
que suscitou ao país caribenho uma dependência financeira, econômica e militar.
Danticat, em sua obra Adeus, Haiti, deixa impressões que denunciam
possíveis representações e identidades do que está sendo analisado enquanto
resquício do colonizador e de suas estratégias de dominação. Como já foi
mencionado na seção anterior, o dilema da diáspora é acompanhado por outras
representações sociais que, ao serem confrontadas pela análise crítica pós-colonial,
apresentam as condições que os centros hegemônicos impõem em relação ao
imigrante haitiano, especificamente o imigrante da diáspora haitiana.
Roger Chartier (1998) fala sobre a “luta de representações” (CHARTIER,
1998, P.17) a partir do momento em que uma classe elabora o real, em
conformidade com seus interesses, formando a ideia de hierarquização da
metrópole em relação a “periferia”. Representar o outro está em questão e os
representantes da metrópole fatalmente legitimarão sua condição superior, ao passo
que conceituam o imigrante como “inferior”. Na obra analisada, algumas citações
apresentam esta forma de pensamento, assim como a reprodução de suas matrizes
simbólicas de dominação.
64
Pensei que talvez não devesse ter ligado para ele no trabalho. Deveria ter esperado até que voltasse para casa. Sempre havia muita coisa acontecendo em seu trabalho. Sempre havia gente aparecendo, seu telefone não parava de tocar. Provavelmente estava sob pressão. Eu lhe jogara aquilo do nada, contara-lhe depressa demais e ele não havia tido opção a não ser reagir daquele jeito, de cara. (DANTICAT, 2010, p.23)
O trecho abaixo revela que a narradora transmite a seu pai de que está
grávida. O pai estava preocupado com o trabalho, ao passo que mais um motivo de
preocupação é manifestada com a chegada do neto. o detalhe está na maneira
como o pai se aflige com o trabalho: ele é taxista, um serviço não visto como
promissor, mas que ocorre com a maioria dos imigrantes que não apresentam uma
qualificação muito aproveitável em terras estadunidenses.
Para as leituras em família, eu recitava as cartas do meu pai de modo monótono, valorizando o que interpretava como um segredo entre nós, pois o estilo impessoal da correspondência era devido tanto a sua falta de fé nas palavras e na capacidade delas de reproduzir exatamente suas emoções quanto a seu cuidado com os sentimentos de Bob e os meus, evitando notícias felizes demais que poderiam aumentar a angustia da separação, notícias demasiadamente tristes que poderiam nos preocupar e qualquer insinuação de julgamento ou desaprovação em relação a minha tia e meu tio, o que eles poderiam interpretar como sugestões de que não estavam me tratando bem. (DANTICAT, 2010, p.29)
A dor da ausência é um dos problemas enfrentados no dilema da diáspora.
Um tipo de “mal necessário” que separa parentes, familiares e amigos, no sentido de
até mesmo não dar alguma garantia sobre o futuro. Nesta narrativa é possível
entender que, para alguns agentes da diáspora, o processo apresenta incertezas
quanto ao futuro, se a família irá se reunir ou quando isso acontecerá. Uma das
problemáticas que o pós-colonialismo apresenta sobre novas matrizes de
colonização está no rompimento temporário entre os que entram no processo
migratório e os que ficam para trás. É possível ver esse aspecto na narrativa:
Alguns anos depois da reunião de família, meu pai ligou para meu tio Joseph no Haiti, para saber como ele estava. Era quinta-feira, 15 de julho de 2004, por uma ação política conjunta da França, do Canadá e dos Estados Unidos, Aristide agora estava passando seu aniversário no exílio, na África do Sul. Porém, os residentes em Bel Air, o bairro onde eu cresci e onde meu Tio Joseph ainda morava não o haviam esquecido. (DANTICAT, 2010, p.30)
65
Esta citação está ligada ao problema da intervenção estrangeira, que por sua
vez interfere nas ações políticas do país, motivando a saída do então presidente
eleito. A questão não está diferente do viés neocolonial da dominação, mesmo que
sutil, do estrangeiro, em intervir direta e indiretamente na própria democracia, em
favor de seus interesses.
Uma das consequências da diáspora é a desilusão sobre o lugar de destino.
Desconstrói-se a ideia do lugar da metrópole como o “Eldorado” do mundo, o refúgio
dos imigrantes que saem de sua terra em virtude dos problemas econômicos e das
guerra internas. É notório que os problemas encontrados em solo estadunidense
não são distantes as que se encontram no Haiti.
– Ouvi dizer que pode ser perigoso em Nova York – disse Bosi, o outro irmão de Tante Denise. – Tão perigoso quanto com os macoutes aqui. Isso levou meu pai a falar de duas lendas urbanas da comunidade haitiana de Nova York. Uma mulher era roubada toda semana por um rapaz mascarado no elevador do seu edifício. Um dia ela levou uma faca de cozinha, que usou para esfaquear o ladrão. Quando tirou a máscara do assaltante, descobriu que era seu filho. Na outra história, um rapaz levou uns colegas de escola até os 5 mil dólares que sua mãe escondia no colchão e, numa luta pelo dinheiro, a mãe foi baleada. “Talvez todos nós estejamos morrendo, a cada vez que respiramos.” (DANTICAT, 2010, p.83)
O lugar do “Eldorado” na verdade, apresenta similaridades com o Haiti
marcado pela violência. Isto acontece principalmente com os imigrantes vindos de
nações economicamente menos “desenvolvidas”, que vão para os bairros mais
perigosos e com menos segurança dos grandes centros urbanos. O pensamento do
estrangeiro como o lugar da redenção é substituído pela concepção do lugar da
incerteza e do medo.
Danticat expõe em “Adeus, Haiti” as dificuldades ocasionadas pela migração,
tanto do viés familiar, quanto do viés enquanto migrante. Na obra, percebe-se
nitidamente que o problema não está apenas voltado a separação familiar e afetiva
em relação aos parentes e ao Haiti, mas a leitura de uma realidade não muito
favorável para o imigrante, especialmente sendo haitiano. O desafio de se tornar um
diáspora como diz Handerson (2014), desde a documentação até a chegada ao
novo país, passando pelo dilema do trabalho não muito favorável, como seu pai no
táxi “clandestino”, apontam que o problema da mentalidade do outro em relação ao
66
imigrante enquanto “inferior” ainda se manifestam, o que não se distancia de um
discurso colonizador. Perante os problemas de saúde, tanto do pai quanto do tio, há
nitidamente uma revelação do retrato de um Haiti marcado pelos problemas sociais
dos quais o exterior tem conhecimento.
Independente da razão de a personagem ter passado pela diáspora, isto não
representa que o processo seja totalmente por uma questão unicamente de
interesse econômico ou de status social. Porém o que não há como esconder é que
muitos imigrantes passam pelo mesmo processo da diáspora tendo algo em comum
a realidade histórica, até hoje presente no Haiti, marcada pelas mazelas históricas
de uma organização social fragmentada por processos políticos e invasões
estrangeiras, que resultou em feridas abertas na sociedade.
Mas a marginalização ao sujeito da diáspora não se resume apenas as
mazelas históricas. O sujeito da diáspora também é rotulado. Um exemplo no texto é
a expressão “Cigano”, muitas vezes usada como delimitar o trabalho de uma pessoa
que não possui um vínculo empregatício ou seja contratado por alguém. A
expressão é utilizada para atividades conhecidas como “bicos”. Essa forma de
descrever tal serviço ocorre com muitos imigrantes haitianos, a exemplo do pai da
narradora, que trabalha num taxi “cigano”.
Poucos anos atrás, descobri, depois perdi outra vez, algumas linhas que datilografei em tinta vermelha uns dois verões após termos chegados a Nova York. O táxi do meu pai tem esse nome por causa de andarilhos, errantes, nômades. É chamado de táxi cigano. Ao contrário de um táxi amarelo, um cigano não tem escudos ou filiação. Pertence inteiramente ao motorista, que roda pelas ruas o dia inteiro, procurando passageiros. (DANTICAT, 2010, p.106)
Outro fragmento diz respeito à resistência frente ao colonialismo: lembrar a
história que evoca a promessa e a consciência de “liberdade”.
Nos seus discursos para o grupo, meu tio as vezes evocava seu pai, Granpè Nozial, que participava da resistência guerrilheira contra a invasão americana e que frequentemente estava longe de casa, lutando em uma batalha que ele evitava da melhor maneira possível que chegasse até seus filhos pequenos. (DANTICAT, 2010, p.35)
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Aparentemente irônico, pois mais tarde, parte da família de Granpè Nozial vai
para os Estados Unidos, o trecho apresenta o fragmento da resistência haitiana
diante da tentativa de recolonização iniciada pelos Estados Unidos. O dilema da
diáspora torna antigos inimigos em “alternativas” para suprir as necessidades
econômicas daqueles que, um dia, lutaram para manter sua integridade social contra
o “american way of life”.
O tio Joseph era antes um militante político que lutava em favor da política do
então presidente eleito, Daniel Fignolé, em 1957. Após a decepção em ver seu
representante ser forçado a ir para o exílio, vê sua condição política ser substituída
por uma posição religiosa importante na igreja batista. Apesar de não sendo
aparente, o fato de se converter ao protestantismo denota a impressão da
aculturação ter sido muito forte no Haiti, em decorrência da influência estadunidense
que, por sua vez, leva junto na invasão suas matrizes culturais, incluindo a religião
protestante.
Ainda suspeitava dos americanos, pelas suas lembranças da ocupação dos Estados Unidos, mas os missionários procuravam estabelecer um projeto na sua região e, sem ter muito o que fazer pessoalmente, propôs uma ideia a eles, que lhe deram algum dinheiro para ajudar na construção, nos quadros-negros, bancos, e contribuíram mensalmente para um programa gratuito dos estudantes. (DANTICAT, 2010, p.37)
Na colonização, a influência religiosa não está separada da estratégia de
influência de uma cultura advinda do colonizador, tendo em vista, mesmo na
atualidade, que algumas matrizes culturais das nações imperialistas permanecem
com suas práticas nos lugares que passaram pelo processo “civilizatório”. No caso
do Haiti, esta matriz cultural mais recente foi influenciada pela cultura estadunidense
que, ao se deparar com o vodu, repetiu a estratégia do colonialismo, tendo em vista
a dicotomia cristianismo versus africanismo. Aimé Césaire comenta que o histórico
da civilização, defendido pelos agentes responsáveis por uma nova proposta de
sociedade e cultura, apresentam uma “falsa objectividade [...] viciosa veemência na
negação de todo o mérito às raças não brancas, singularmente as raças melânicas,
a sua monomania de monopolizar toda a glória em proveito da sua.” (CÉSAIRE,
1977, P. 41) Para consolidar um modelo colonizador, a estratégia da religião é
elementar.
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Quanto a política no Haiti, demonstrada em trechos da obra, apresenta-se
uma conotação do imperialismo político produzido pelos próprios agentes políticos
do país: a ditadura militar exercida com base na repressão.
Esse período na vida do meu pai, o começo dos anos 1960, também foi obscurecido por fatos muito maiores. Papa Doc Duvalier, que sucedera Daniel Fignolé no palácio presidencial, recusou-se a deixar o poder ou a permitir novas eleições, apesar de uma crescente insatisfação com seus métodos cada vez mais repressivos de aprisionar ou executar publicamente seus inimigos. (DANTICAT, 2010, p.50)
O regime duvalierista, tão falado em fragmentos da narrativa, mostra a
questão política como grande desafio para muitos haitianos. a diáspora não apenas
é uma questão puramente econômica, mas apresenta uma posição de negação, não
em relação ao próprio Haiti, mas ao poder em vigência. O resquício político do
colonizador é deixado no próprio conflito civil e interno no Haiti, em harmonia com o
pensamento de Fanon sobre a “fúria” entre pessoas da mesma origem e
ancestralidade, influenciados pelo poder:
Essa fúria contida, que não se extravasa, anda à roda e destroça os próprios oprimidos. Para se livrarem dela, entrematam-se: as tribos batem-se umas contra as outras por não poderem atacar de frente o verdadeiro inimigo - e podemos contar com a política colonial para alimentar essas rivalidades; o irmão, empunhando a faca contra o irmão, acredita destruir, de uma vez por todas, a imagem detestada de seu aviltamento comum. Mas essas vítimas expiatórias não lhes aplacam a sede de sangue. Abstendo-se de marchar contra as metralhadoras, eles se tornarão nossos cúmplices: vão por sua própria autoridade acelerar os progressos dessa desumanização que lhes repugna. (FANON, 1961, p.13)
A autora fala muito sobre a morte. Morte não apenas no sentido literal, já que
a narrativa apresenta relatos de perda da família. Ela pode apresentar uma outra
representação, que denota o problema da perda em relação a sua própria
identidade. A morte de alguém para o imigrante haitiano pode não apenas
representar o problema da perda familiar, mas o comprometimento de sua
identidade em manter os traços ou as linhas de seu lugar de origem. “Talvez todos
nós estejamos morrendo, a cada vez que respiramos.” (Danticat, 2010, p.58) Para
69
isso, a memória evoca o passado, que por conseguinte, evoca também a dor da
ausência que se faz necessária, para que o Haiti não seja esquecido.
Uma pequena parte do capítulo intitulado “Irmão, eu consigo falar” (2010,
P.111), a autora denuncia como o estrangeiro reproduz a imagem sobre o Haiti. É
rotulado como um lugar de violência sem fim, marcado pelo histórico dos conflitos e
pelos resquícios da colonização.
Como Ron Howell, um jornalista de Nova York, estava cobrindo o tiroteio militar em Bel Air naquela tarde, a morte de Marie Micheline foi o tema de uma reportagem do Newsdaypublicada em 17 de abril
de 1989. Com o título “Haiti ainda lutando para brilhar”, foi publicada junto a uma foto colorida do cortejo fúnebre que seguiu lentamente para Porto Príncipe. Marie Micheline, escreveu Howell, era sob muitos aspectos “um retrato do Haiti e seu potencial, uma centelha de luz frustrada em sua tentativa de brilhar.” (DANTICAT, 2010, P.117-118)
A autora mostra Bel Air como cenário de violência e medo:
Aquela era a primeira vez que ia a Bel Air desde a operação de domingo. Nunca viu a coisa tão ruim. As ruas estavam atoladas de lixo. Havia bombas vazias de gás lacrimogêneo, granadas explodidas, cartuchos vazios, buracos de bala e mais lixo por toda parte. Algumas casas estavam sem partes inteiras, por causa da ação das escavadoras das Nações Unidas. [...] Um tanque das Nações Unidas estava estacionado a uma boa distância dali, no pé da ladeira, perto do Lycée Pétion. Ela e tio Joseph só tinham de chegar ali para poderem se considerar em segurança, pelo menos com relação as gangues. Ela teria de achar o caminho certo, talvez o mais cheio de lixo, a trilha menos frequentada, dentre o labirinto de passagens que a levariam ali. (DANTICAT, 2010, p.167)
Um grupo de soldados armados vindos de várias nacionalidades estiveram
presentes durante a missão de “paz” da ONU. A forma de manter o controle no país
era através do uso da “paz” armada, na tentativa de estabelecer uma possível
revolta no país tinha em sua frente grupos de soldados estrangeiros, sob a ordem
das nações participantes.
Ao contrário das “forças de paz” ou soldados da MINUSTAH, os agentes da CIVPOL usavam uniformes das forças policiais dos seus países, com capacetes azuis das Nações Unidas e coletes à prova de balas combinando. Meu tio reconheceu logo as túnicas e calças escarlates da Real Polícia Montada canadense, agentes que falavam francês e pareciam superar em número os outros grupos que conversavam em várias línguas diferentes ao seu redor. (DANTICAT, 2010, p.172)
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A MINUSTAH seria, à princípio, uma missão militar no âmbito de promover
uma missão de paz ao Haiti. O Brasil, apoiado pela ONU, era representado por
observação que vinha como contraposição a possíveis governos antidemocráticos,
além de empregar um poder de defesa a possíveis atos de agressão, dispondo de
toda a logística possível das Forças Armadas. Através desta missão, há um objetivo
governamental por trás, que concerne no espaço do Conselho de Segurança das
Naçoes Unidas, visando maior amplitude do Brasil em relação a segurança
internacional. Conforme diz Tardin
A participação na MINUSTAH se enquadra perfeitamente nessa tradição brasileira, ao mesmo tempo em que proporciona ao país importante projeção internacional, abrindo caminho para que consiga um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, desejo explícito do governo. O Conselho é o órgão responsável pelas ações da ONU nas questões de paz e segurança, e é reconhecido pelo governo brasileiro para tratar de questões de segurança internacional. O Brasil ocupou o assento nove vezes, igualando-se ao Japão. Na Nova Ordem Mundial, pós-1989, participou da composição do Conselho nos biênios 1993-94, 1998-99 e 2004- 05. Em 2010 mais uma vez foi eleito para um novo biênio. De uma forma geral, esse objetivo fez parte da agenda política do país durante todo o século XX, com destaque para o pós-Segunda Guerra, com a contribuição brasileira dos pracinhas da FEB para lutar ao lado dos Aliados, como vimos no capítulo anterior. Certamente há uma maior ênfase nesse objetivo na era democrática (1985-2011), e a MINUSTAH é um forte marco dessa política.
(TARDIN, 2011, p. 81)
Mesmo em sua função, o discurso não condiz com o relato feito pela autora
que, por sua vez, apresenta uma visão diferenciada do movimento militar brasileiro.
A questão não está em generalizar todo um contingente militar, mas na ação de
segurança que os ditos movimentos de paz, têm feito nas ocasiões em que a
intervenção no Haiti tem sido realizadas. No Haiti, muitos não aceitam a intervenção
militar estrangeira, pois alegam um pretexto para um novo processo colonizador.
Temem também por represálias, tomando como fato histórico o dilema da invasão
estadunidense no início do Século XX, tendo em vista que muitos argumentam
mortes e desaparecimentos de milhares de haitianos. A presença da MINUSTAH
não é uma novidade, mas nem sempre é acompanhada de maneira positiva pela
grande maioria da população. Neste conflito, os discursos de contrapõem: de um
lado, a população haitiana afirma que há uma perseguição da parte dos soldados.
Do outro, o discurso das missões de paz se baseia no problema da insegurança e
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da criminalidade que, segundo conclusões, são decorrentes da profunda crise
política e do agravante do terremoto ocorrido em 2010.
3.3 MEMÓRIA E IDENTIDADE
A relação entre memória e identidade social é muito próxima, levando em
consideração a prática da oralidade enquanto manifestação da história oral de quem
a pronuncia.
Muitos fatos ligados a oralidade são designadas através de fatos pelos quais
o próprio agente testemunhou. Estes fatos são percepções particulares de quem a
relata. Mas também podem ser entendidos como fenômenos coletivos e sociais,
propagados através de uma cadeia transmissora desta memória que, por sua vez, é
legitimada.
A história de vida é construída individual mas não foge da coletividade da
memória, pois há elementos irredutíveis que contribuem para a solidificação desta
mesma memória: posicionamento político, família, etc. Estes e alguns elementos
fazem parte da própria essência de uma sociedade ou etnia, propagando-a mesmo
fora de seus limites geográficos, culturais ou intelectuais.
A oralidade não é construída apenas do ponto de vista dos acontecimentos
vividos de modo pessoal, mas atribui-se ao conjunto de relatos vividos por outros
que, ao se convergirem, contribuem para a produção de uma memória em grupo. A
socialização da memória, seja ela histórica, cultural ou política, gera o fenômeno da
projeção de uma memória que se propaga ou se transmite de geração em geração.
Além desses acontecimentos, a memória é constituída por pessoas, personagens. Aqui também podemos aplicar o mesmo esquema, falar de personagem realmente encontradas no decorrer da vida, de personagens frequentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim dizer, se transformaram quase que em conhecidas, e ainda de personagem que não pertenceram necessariamente ao espaço-tempo da pessoa (POLLAK, 1992, p. 202)
Acontecimentos traumáticos são transmitidos constantemente, o que precede
um alto grau de identificação com os fatos. No Haiti, não é diferente, pois a memória
transmitida evidencia o fenômeno da valorização dos fatos históricos, o que não
deixa de ser uma construção ou projeção da identidade coletiva de grande parte da
população.
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A memória possui não apenas um, mas vários personagens, que mesmo não
pertencendo ao mesmo espaço-tempo, contribuem para que os fatos sejam quase
que perpetuados, em comum. A comunicação familiar contribui para a permanência
de uma memória permanente, visto que, a exemplo de Danticat, os relatos são
desencadeados entre a narrativa da autora e dos demais personagens,
principalmente seus parentes.
Ouvindo meu pai, lembrei-me de uma época em que costumava
sonhar que roubava palavras dele. Eu tinha 8 anos, Bob e eu
morávamos no Haiti com seu irmão mais velho, meu tio Joseph, e
sua mulher. (DANTICAT, 2010. P. 27)
Os lugares da memória também são desenrolados na narrativa, como se a
autora projetasse ao leitor o ambiente público no qual vivenciou no passado, o que
também caracteriza a memória pública. Tais lugares são elementos constituídos na
rememoração de quem relata.
A memória também é organizada a partir de onde se encontrava. Neste caso,
Danticat tinha ligações estreitas com sua família que, declarando-se direta ou
indiretamente, explicitava o outro lado de um momento histórico, o do regime
duvalierista. A memória também é engajada num pensamento de ruptura e oposição
ao discurso vigente. Neste sentido, percebemos a resistência na memória, uma
válvula de escape comum em espaços determinantes de um povo ou parte dele que
entra em divergência com outro discurso (neste caso, o regime político vigente).
A memória pode ser seletiva a partir de quem a pronuncia, assim como
declarar um sentido único e construído como forma de evocação a um certo
pensamento. No caso da crônica analisada, a organização da memória da
personagem, na relação passado-presente, é passível de uma representação que,
por sua vez, é construída de maneira familiar e coletiva. A memória é uma
demonstração do sentimento de continuidade e coerência de quem relata com sua
origem e, principalmente, na permanência de seu pertencimento com seu lugar de
origem. Geograficamente está fora mas sua memória contribui para que ela ainda
mantenha seu pertencimento com o lugar de onde veio. Como diz Pollak
A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de
73
estruturação da memória. Isso é verdade também em relação à memória coletiva, ainda que esta seja bem mais organizada. Todos sabem que até as datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de vista político. Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. (POLLAK, 1992, p.204)
Por outro lado, a memória que precede a construção de sua própria
identidade é definida a partir também de sua relação com o outro, pois a construção
da autoimagem é perceptível a medida que o eu está em contraste com o outro, no
sentido de haver uma transformação ou negociação, que precede uma construção
de sua identidade que, apesar de estar entrelaçado com seu passado,
inevitavelmente passará pelos critérios de aceitabilidade ou admissibilidade.
Se é possível o confronto entre a memória individual e a' memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos. (POLLAK, 1992, p.205)
A memória e a identidade são interligados num processo inacabado e
conflitante, pois existe a intersecção dos grupos, das etnias e de sociedades
ambíguas. Na oralidade, isto é perceptível pois as estruturas familiares ou nas
esferas populares não há a possibilidade de haver pontos em comum, visto as
heranças culturais e sociais adquiridas nas mais diversas sociedades do globo.
O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma Ocasião para invadir o espaço público e passar do "não-dito" à contestação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização. Para que emerja nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples “montagem" ideológica, por definição precária e frágil. (POLLAK, 1989, p. 9)
A memória política demonstra o ideal de disputa entre grupos antagônicos, a
exemplo do Haiti. Assim como é perceptível na crônica, a formação de uma história
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nacional é interligada a uma maioria popular que contribui para a legitimidade desta
historiografia ou a um grupo que, apesar de minoritário, tem para si o controle social.
As identidades coletivas são contribuidoras da permanência de uma memória social
que, no caso da autobiografia, pode ser identificada como o pertencimento de quem
a escreve a um sentimento coletivo de unidade coerente.
Podemos portando dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. (POLLAK, 1992, p. 204)
O reconhecimento da complexidade da oralidade mostra como os fatos
sociais ligados a esta memória privilegiam os considerados marginalizados, ou
excluídos, no qual esta mesma oralidade é um elemento pelo qual os ditos
“dominados” conseguem manifestar enquanto forma de resistência. Por mais que
seja dolorosa, as lembranças expressas são uma forma de permanecer viva o
embate de gerações contra o discurso de uma certa ideologia dominante. Neste
caso, em Danticat, há uma forte evocação das lembranças a partir do momento em
que o comprometimento com a família e com aqueles que ficaram é mais
efervescente, o que precede ao clamor da memória como forma de agir perante a
opressão ideológica de um poder instituído.
A memória coletiva, na sua concepção, é composta pelas lembranças de
cada um dos indivíduos que pertencem a uma determinada coletividade e, por isso,
apresentam formas e conteúdos semelhantes de memória. Ao mesmo tempo, a
memória coletiva seria o fundamento sobre o qual cada indivíduo constrói suas
lembranças individuais. Dessa forma, Danticat também relaciona a memória
individual ao meio social, pois as lembranças individuais estão concretamente
baseadas na vida social, não ocorrendo isoladamente das ações e necessidades de
uma sociedade. Em outras palavras, as lembranças são constituídas no contexto
das relações individuais e coletivas.
A concepção de escrita como forma de superar conflitos, medos ou traumas
também corresponde às funções psíquicas em seu estudo sobre narrativas
históricas. De acordo com esse pesquisador, quando embasada em uma
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consciência histórica, a narrativa memorialista apresenta vínculos concretos com a
vida social. Memórias não estariam isoladas das ações e anseios de uma sociedade.
Na narrativa de Danticat, a experiência diaspórica é marcante, mas não
esconde uma questão que permeia todo o texto: o uso da memória. A partir desta
feita vem a questão: é possível que, apesar de estar em terra estrangeira, a
narradora esteja tão fortemente ligada ao lugar onde nasceu e cresceu? A memória
é o elemento pelo qual a narradora personagem demonstra uma forte ligação com o
lugar de onde veio. Sua experiência de vida é uma confissão de que o lugar de
imigração em nenhum momento a fez esquecer de sua terra natal. Tanto que a
narrativa sempre atribui a autora a função de estabelecer uma relação entre
passado e presente cuja temática se atrela a herança dolorosa do seu passado e de
sua família e as consequências da separação imposta pela migração forçada.
O espaço físico é apresentado na narrativa, principalmente como o espaço da
rememorização, funcionando como ponte entre a situação contemporânea da
narradora em contraste com seu passado. A impressão é que o passado e o
presente não apenas se convergem, mas também se harmonizam a ponto de pensar
se a narradora estava ali nos Estados Unidos ou no Haiti. Fisicamente se falava de
um lugar, mas o sentimento está no lugar de onde partiu.
Para as leituras em família, eu recitava as cartas do meu pai de
modo monótono, valorizando o que interpretava como um segredo
entre nós, pois o estilo impessoal da correspondência era devido
tanto a sua falta de fé nas palavras e na capacidade delas de
reproduzir exatamente suas emoções quanto a seu cuidado com os
sentimentos de Bob e os meus, evitando notícias felizes demais que
poderiam aumentar a angustia da separação, notícias
demasiadamente tristes que poderiam nos preocupar e qualquer
insinuação de julgamento ou desaprovação em relação a minha tia e
meu tio, o que eles poderiam interpretar como sugestões de que não
estavam nos tratando bem. (DANTICAT, 2010, p. 29)
Danticat dispõe da memória como uma forma de não esquecer do lugar de
onde veio. A perspectiva de um futuro no país estrangeiro não representa a negação
de sua origem, pelo contrário, deixa transparecer que está mais próxima do Haiti. A
mobilidade por intermédio da diáspora, apesar de evidente, não a afasta de seu
passado. Ela só está passando pelo “jogo da história”, conforme afirma Hall (2003,
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p. 236). O processo diaspórico no texto parece evocar ainda mais as lembranças de
sua terra natal.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Este trabalho é um projeto inacabado, passivo de discussões teóricas, mas
feito em consideração ao uso de uma literatura pouco estudada por nós que é a
Literatura Caribenha. Neste sentido, estamos nos referindo a uma escrita recente,
uma autobiografia. Edwidge Danticat assegura uma incorporação de uma
característica bem peculiar na Literatura de seu país que é a relação entre a
narrativa e a História. Ambas as questões permeiam na narrativa de “Adeus, Haiti”.
Compreender sua leitura é um paralelo com a revelação da História do Haiti e dos
problemas mais recentes que tem ocorrido com seu povo, tanto com os que ficam,
quanto com os que partem de sua terra natal. A diáspora revela não apenas um
problema social, mas que marca ou identifica para sempre aqueles que são
participantes diretos deste processo.
Na obra, é possível perceber que as tradições e os costumes são pertinentes
ao próprio haitiano mesmo fora de sua terra. As questões geográficas não interferem
nas questões culturais as quais os haitianos pertencem. Na narrativa de Danticat,
estas evidências consolidam este pensamento. Para isso, o eixo que mais permite
entender esta forte relação do haitiano com suas origens está na memória. Este
habitus é conduzido por toda a escrita da autora supracitada, tendo em vista que a
mesma dialoga constantemente com seu passado. O mesmo passado pelo qual se
remete na narrativa é a mesma que mantém presente sua relação com a família,
mesmo com a perda do pai e do tio Joseph. Em contraste com a perda dos
parentes, vem o nascimento da filha, como se fosse um rito de passagem, que
demonstra uma reconstrução da identidade, na qual a narradora-personagem não
perde sua identidade em relação a sua terra natal, mas consciente que está em
outro lugar, no pais de recepção que marca uma nova etapa de sua vida através da
filha, sem contar que dois de seus irmãos nascem em terras estadunidenses.
A partir do processo inevitável do deslocamento, diáspora e memória, foi
possível identificar na obra, uma narradora compromissada com a relação entre o
aqui e o lá. Mesmo com uma identidade aparentemente dúbia, traz em si fortes
elementos e ligações familiares.
Ao analisar o livro “Adeus, Haiti”, objeto da análise é possível realizar uma
confissão que combina perplexidade e proeminência de um engajamento. Primeiro
porque, conhecer parte da história do Haiti pelos olhos de uma narradora que, assim
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como muitos, passa pelo processo diaspórico, culmina num aprofundamento maior
sobre o tema principalmente nos dilemas enfrentados pelo sujeito diáspora.
Segundo pela questão da memória, que evidencia a resistência de minorias frente a
novas codificações do sistema colonizador ainda presente. Não esquecer de onde
veio é um meio, um subterfúgio para manter vivas suas origens. Exemplificando, é
nítido o desfecho que envolve o tio Joseph. Quando este morre, Edwidge questiona
o local do enterro e leva em consideração sobre o passado do Haiti, sob domínio da
força estadunidense e, na sua morte, sendo sepultado em pleno solo do país que ele
tanto questionava. Ironicamente é revelada a relação nascimento-morte sob o jugo
dos EUA, logo o tio que era tão apegado às suas raízes e à sua terra.
Em si, podemos perceber que a leitura da narrativa nos coloca de frente ao
problema ainda pertinente: a do discurso colonial e como o mesmo ainda atua de
forma devastadora, principalmente nas questões humanitárias, envolvendo centenas
de povos e sociedades, entre estas, a haitiana.
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