Post on 11-Nov-2018
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
MULHERES NEGRAS E BRANCAS: RACISMO E SEXISMO COMO
DEMARCADORES DE CONFRONTOS E RESISTÊNCIAS NAS CARREIRAS
DE JORNALISTAS NO BRASIL
Isabel Cristina Clavelin da Rosa1
Resumo: Neste trabalho, abordo as dinâmicas decorrentes do racismo e do sexismo,
tomando por base as vivências de jornalistas negras e brancas no decurso de suas
carreiras no Brasil. Descumprimento de direitos trabalhistas, disparidades salariais e na
ocupação de cargos e oportunidades de trabalho, assédios sexual e moral e alta e baixa
consciência sobre as discriminações são alguns elementos em evidência nos discursos
das profissionais sobre as suas trajetórias no mundo do trabalho. O texto desenvolve a
reflexão sobre a prevalência do racismo nas tensões e nos confrontos vivenciados pelas
jornalistas, a qual é explicitada com ênfase pelas mulheres negras no desvelamento do
mito da democracia racial e das desigualdades de gênero em contraste com as
discriminações interseccionais naturalizadas no exercício da profissão. Ao se afirmarem
como sujeitas discursivas e parresiastas, as jornalistas negras delineiam aspectos
oblíquos das relações raciais e de gênero na profissão, expondo, ainda, certas
ambiguidades nos discursos de jornalistas brancas que pouco explicitam as vantagens
decorrentes da branquitude nas carreiras e até reduzem as assimetrias de gênero por elas
vivenciadas no exercício da atividade profissional.
Palavras-chave: mulheres, raça, gênero, trabalho, jornalismo.
A racialização do debate sobre as relações de trabalho no Brasil tem sido um
tema com pouca aderência por parte das trabalhadoras, dos trabalhadores, das categorias
profissionais, das empresas, dos órgãos públicos e das instâncias reguladoras do
trabalho. Resguardada até por neologismos ou eufemismos, tais como diversidade,
vieses inconscientes, sororidade e o que mais vier pela frente, a supremacia racial
branca mantém-se incólume sob os auspícios do racismo e do mito da democracia
racial.
Outro aspecto observado é a costumeira desrracialização das pessoas, embora
estejam hierarquizadas pelo racismo no desempenho de suas atividades produtivas, a
exemplo do mundo do trabalho, com vistas à sua desumanização. Afinal de contas, os
efeitos do racismo e da discriminação nas subjetividades negras pouco importam, uma
vez que são vistas e tratadas como objetos e não sujeitas e sujeitos de suas próprias
vidas. Evitam-se, assim, discursos racializados, os quais somente poderão vir à tona
com potência por sujeitas e sujeitos discursivos.
1 Doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília e professora de Jornalismo, Publicidade e
Propaganda e Serviço Social da Universidade Católica de Brasília. É jornalista, membro da Diretoria de
Educação e Aperfeiçoamento Profissional da Federação Nacional de Jornalistas e integrante do Núcleo de
Jornalistas Afro-brasileiros do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul.
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Após décadas de debates e produções teóricas do movimento negro e de
mulheres negras, Sueli Carneiro (2005) já sintetizava a impregnação da negação do
racismo na linguagem ao longo dos tempos: “o discurso que molda as relações raciais é
o mito da democracia racial. (...) a grande narrativa que desnuda a existência de um
acordo de aceitação do discurso em todas as suas decorrências” (CARNEIRO, 2005,
p.62).
Essa também tem sido uma constante também nas rotinas produtivas do
jornalismo no Brasil. Ocorre na relação de jornalistas com as fontes (ROSA, 2011) –
como destaco num primeiro momento –, e na relação de jornalistas entre si (ROSA,
2016), a ser observado na segunda abordagem. Nesse ponto, recuperarei o conceito de
parresia (FOUCAULT, 2011), para relevo da coragem de dizer das jornalistas negras,
visto que a
a parresia consiste em dizer a verdade, sem dissimulação nem reserva
nem cláusula de estilo nem ornamento retórico que possa cifrá-la ou
mascará-la. O “dizer tudo” é nesse momento dizer a verdade sem dela
nada esconder, sem escondê-la com o que quer que seja. [...] implica
uma certa forma de coragem, coragem cuja forma mínima consiste em
que o parresiasta se arrisque a desfazer, a deslindar essa relação com
o outro que tornou possível seu discurso. De certo modo, o parresiasta
sempre corre o risco de minar essa relação que é a condição de
possibilidade do seu discurso. (FOUCAULT, 2011, p. 11-12).
Ambos os elementos em abordagem são articulados nas dimensões de raça e de
gênero e se entremeiam à minha condição de pesquisadora de comunicação, professora
universitária e jornalista com atuação em assessoria de comunicação.
Racismo: entre maldita, não-dita e última palavra
Em julho de 2017, na coluna Primeira Palavra da revista Marie Claire, a diretora
de Redação, Marina Caruso (2017) – jornalista branca –, apresenta com ares de pseudo
altruísmo – ou mea-culpa, como ela mesma se refere –, o que poderia ser chamado de
momento catártico diante do boicote deliberado de sua parte, da revista e da editora à
atriz Taís Araújo e da estigmatização do ator Lázaro Ramos:
“Impossível começar este editorial sem fazer um mea-culpa. Aliás, um
não, dois. O primeiro é que deixamos Taís Araújo, uma das mulheres
mais admiráveis do país, longe das páginas de Marie Claire por um
tempo desde que, em 2015, ela se recusou a nos conceder uma
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
entrevista sobre os ataques racistas que sofrera na internet. (...) Me
parecia absurdo não falasse disso com Marie Claire, uma das
primeiras revistas femininas a colocá-la na capa, em maio de 2004.
Dois anos e uma longa conversa depois, entendi os motivos da atriz.
(...) O segundo mea-culpa vai para Lázaro, o marido, a quem nesta
mesma carta, no mês passado, descrevi como “o maior negro do
showbiz brasileiro”, quando deveria apenas ter dito “um dos maiores
atores do showbiz”, e ponto. (...) Lázaro e Taís me estarrecem. Me
mostram que mesmo eu, defensora da diversidade e da democracia,
tenho o preconceito arraigado.” (CARUSO, 2017, p.9).
Ao expor o racismo com que trata a revista Marie Claire e ela mesma – a
terceira pessoa que esconde e mostra o jogo de escamoteamento que o racismo e racista
gostam –, a diretora de Redação é muito audaciosa. Confessa o pecado sem a
penitência, buscando alento na plateia – no caso o leitorado da revista –, e com ares de
falsa reparação. Expõe, novamente, que a primeira e a última palavra é dela, a qual
detém o poder de barrar a atriz negra que lutava, há pelo menos dois anos sobre o que e
quando falar ou parar de falar das dores decorrentes do racismo –, a qual passa a ser
novamente vitimizada pelo racismo por meio de uma algoz que se apresenta como
redentora. Aqui, reside o velho racismo por novos rostos e plataformas, com ares de
cosmopolita, porém arcaico sobre como o poder se expressa e em que mãos está
concentrado mesmo diante daquela que tem fama, beleza e conta bancária, os quais
sucubem diante do velho racismo à brasileira (GONZALEZ, 1982).
Ao investir numa falsa coragem de dizer sobre racismo e relações raciais –
reivindicada, é verdade, para fins de efeito de real –, a diretora de Redação da Marie
Claire exibe a velha coragem de dizer de quem detém o poder, preservando-se, ao longo
dos tempos, nas posições de decisão. Ao confessar o crime com ares de pecado, Caruso
(2017) o faz com a quase certeza de absolvição, pois vive no País que nega os conflitos
raciais. E quando expostos, como faz Caruso (2017), confia na própria brancura para
manter-se no seu lugar de branca. Aquela que agride, violenta e devasta, entra na casa e
se faz de amiga em troca da visibilidade almejada pelas entrevistadas, garantindo o seu
poder a despeito de tudo. Prática muito característica da imprensa hegemônica e racista
deste País (ROSA, 2011), a qual tenta interditar, hierarquirizar e definir a circulação de
discursos e imagens.
Ademais, vale-se da onda do chamado feminismo soft, que mais surfa do que
aprofunda a onda, esvaziando a urgência do debate sobre as desigualdades e as
discriminações de gênero na perspectiva interseccional. A reivindicada e pretensa
redenção de Caruso (2017) não se sustenta pelo adjetivo “absurdo”, que nos faz pensar
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
sobre a violência com que a contrariedade à vontade da atriz é brutalmente atacada, o
que nos faz pensar o que a diretora de Redação faria em plena era colonial. Nós,
mulheres negras, sabemos de quem descendemos e como somos historicamente tratadas
quando fazemos valer as nossas vontades – aquelas que seriam naturais de serem
expostas num quadro utópico de equidade –, as quais são violentamente atacadas física
ou simbolicamente, a exemplo da revelação da diretora de Redação da Marie Claire.
A coluna Primeira Palavra poderia estar mais para última palavra de Caruso
(2017), pois, ao final da revelação do caso de explicitação do editorial, em edição
passada, sobre o ator Lázaro Ramos e, após ter passado o vangloriado dia na casa do
casal, a diretora de redação faz a ode ao mito da democracia racial, quando se volta para
si mesma como “defensora da diversidade e da democracia, tenho o preconceito
arraigado” (CARUSO, 2017), aquela que nem mesmo consegue fazer uso das palavras
tão evidentes quanto as tergiversões, as quais poderiam ser reescritas como: defensora
da democracia racial, tenho o racismo arraigado. Na dinâmica enuvear-evidenciar-
enuvear, Caruso (2017) mantém-se fixa na sua posição de poder e de reificação do
racismo.
Sororidade – entre a ilusão e o poder intacto
O racismo e o sexismo são reconhecidos não somente na relação de jornalistas e
as fontes, mas também nas relações entre jornalistas. Desse modo, o racismo e sexismo
podem ser considerados demarcadores de confrontos raciais entre jornalistas negras e
brancas, jornalistas negros e brancos (ROSA, 2016). Em meio a silêncios e
encobrimentos, instalam e consolidam dinâmicas de tratamentos diferenciados em meio
a códigos que precisam ser racializados para a sua decodificação.
Nos últimos anos – valendo-me da minha trajetória como jornalista, com 17 anos
de atuação em assessorias de comunicação –, tenho dedicado a minha pesquisa
acadêmica a buscar rastros que colaborem para elucidar os emaranhados que o racismo
e o sexismo tecem nas dinâmicas profissionais por meio de relatos de jornalistas
(ROSA, 2016). Meu percurso alimenta-se, de certo modo, do mundo do trabalho,
especialmente no olhar e na vivência de assessoria de comunicação. Nesta área, tenho
me deparado com pesos desmedidos de trabalho e tratamentos díspares, nos quais as
vantagens para as mulheres brancas vão além das melhores posições de poder ocupadas
5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
por elas, as melhores pautas ou estabilidade profissional na comparação com as
mulheres negras.
Costumeiramente, as mulheres brancas desfrutam de créditos pouco
reconhecidos publicamente, que lhes são oferecidos em razão da sua brancura numa
articulação tão vasta quanto os dramas vivenciados por nós, mulheres negras. O
preterimento nos joga para léguas de distância de qualquer condição mínima de
isonomia. Geralmente, as mulheres brancas são adotadas como filhas ou alçadas à
condição de alunas ou discípulas por outras mulheres brancas, que exercem as funções
maternais ou professorais em meio a dinâmicas profissionais complacentes com o
racismo.
Dentre os fenômenos que tenho observado no mundo do trabalho, o
reconhecimento de si mesmas e entre si estabelece uma aliança inquebrantável entre as
mulheres brancas, as quais têm resgatado a sororidade. Palavra da moda, a sororidade
vem sendo forjada como uma aliança a ser firmada entre as diferentes mulheres,
contudo, encobre o elo entre mulheres brancas, que têm protegido a si mesmas e todas
suas vantagens decorrentes do racismo. Mais do que isso, a sororidade em tempos de
internet reveste-se de ilusão, arregimentando multidões de não brancas que gostariam de
fazer parte do seleto clube enquanto, as mulheres brancas mantêm-se intocáveis,
sobretudo, na ardilosa estratégia bem-sucedida de preservarem o seu poder por meio de
críticas moderadas ao seu poder, tendo em que vista que estão protegidas pelo pacto
falacioso da sororidade.
Assim como no passado, o feminismo branco transmuta-se para manter a sua
hegemônia, o poder praticamente intacto e a hierarquização do que pode ou não ser dito.
Aliás, nada além da assunção do tal privilégio branco e do respeito ao lugar de fala.
Estas são expressões recorrentes nas redes sociais e cada vez mais vazias quando
analisamos que pouco resultam em ações práticas de enfrentamento e eliminação do
racismo nas relações intragênero. Há mais de 30 anos, Lélia Gonzalez já nos ensinava
sobre o esgotamento do feminismo branco devido à coadunação com o racismo e o
eurocentrismo, bradando um feminismo afro-latino-americano (GONZALEZ, 1988).
Em tempos de debates sobre decolonialidade, Lélia Gonzalez revela-se atual e, ainda,
incomparável pela sua solidez intelectual e lucidez política.
Jornalistas brancas
6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Em minha tese, das 21 entrevistas que realizei com jornalistas negras, brancas,
negros e brancos, um dos aspectos questionados foi sobre a percepção das e dos
entrevistados sobre o racismo e o sexismo nas relações de trabalho. Na examinação das
enunciações das seis jornalistas – Adriana Carranca, Alessandra Machado, Julianna
Granjeia, Mara Régia, Patrícia Zaidan e Sílvia Salek – é notória a concentração de
reflexões em torno do racismo sobre os efeitos sobre jornalistas negras e negros e pouca
reflexão sobre a branquitude, até mesmo, sob os benefícios de terem suas vidas
impactadas positivamente pela ação do racismo. Controversamente, todas expuseram
compreensões elucidativas, quando perguntadas sobre o que é o racismo, porém, pouco
discorreram sobre as relações raciais desde a perspectiva de mulheres não-negras.
As parcas referências à branquitude foram feitas por três jornalistas – Julianna
Granjeia, Mara Régia e Patrícia Zaidan. Mara Régia é quem organiza um relato mais
completo, posicionando-se racialmente: Então eu acho que, como uma mulher branca,
eu fui menos testada à prova. Acho que as negras precisam se desdobrar. Se nós
fazemos a tripla jornada, elas fazem a quarta nesse esforço de se afirmar, de mostrar
o quanto são capazes. Porque o racismo embutido ou declarado, ele põe a dúvida
sobre a sua capacidade. Granjeia mencionou a sua branquitude como impossibilidade
de pensar soluções para enfrentar o racismo nas redações: (...) “eu como branca não me
sinto à vontade para falar. Eu realmente não sei como poderia ser feito. Não sei se de
repente o esquema de cotas ou abrir um processo seletivo somente para negro. Eu
não sei. Eu realmente, como branca, não me sinto à vontade assim para apontar um
caminho. Acho que os negros poderiam falar melhor sobre isso”. Apesar de, em sua
entrevista a esta pesquisadora Patrícia Zaidan ter feito diversas referências ao racismo
nas redações por que passou, em seu relato ocultou a brancura nas enunciações acerca
da diferença salarial, expondo a falsa alusão à pluralidade das mulheres: “Se para nós,
mulheres, a ascensão e o salário mais alto ainda é difícil, para os profissionais
negros, homens e mulheres, é mais ainda. Eu me lembro de um negro ocupando uma
chefia, aqui, na editora Abril”.
A interpretação das enunciações – análises dos discursos – evidenciam o
escamoteamento da branquitude a que Cida Bento (2013, p.25) designa como “traços da
identidade racial do branco brasileiro” e a sua indisposição de ponderar sobre as
relações raciais a partir da perspectiva das pessoas brancas e não somente da perspectiva
7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
de negras e negros. No artigo Branqueamento e branquitude no Brasil, Bento (2013,
p.25) agrega o sentido político dessa escolha deliberada ou, no mínimo, não admitida,
pois “evitar focalizar o branco é evitar discutir as diferentes dimensões do privilégio.
Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que
não é pouca coisa”.
Outra abordagem complementar é de bell hooks (2015), no artigo Mulheres
negras: moldando a teoria feminista, com relevo às vivências identitárias que
suscitam bagagem interpretativa mais ampla sobre as formas de opressão contra as
mulheres. Uma explicação seria a de que “a ausência de restrições extremas leva muitas
mulheres a ignorar as áreas em que são exploradas ou discriminadas” (HOOKS, 2015,
p. 198).
Sem dúvida, essas são questões que necessitariam ser mais dirimidas para o que
Sueli Carneiro (2015, p. 5) qualifica como “radicalização de uma perspectiva
democrática no país” por meio da combinação de “critérios de qualificação técnica com
recorte de gênero e de raça”, com vistas a “romper com a lógica excludente (...) nas
estruturas de poder no país”, cuja reprodução não se restringe ao ambiente de
representação política, mas se espraia para outros campos, como o mundo do trabalho.
Evidentemente, essa redistribuição de poder incide, sobremaneira, na desativação dos
mecanismos de manutenção da supremacia ou superioridade branca, qual seja, o
enfrentamento e a eliminação implacável do racismo e do sexismo.
Jornalistas negras
O outro grupo que compõem a tese é composto por jornalistas negras, das quais
reconstituo algumas enunciações. As sujeitas discursivas destacadas são cinco
jornalistas negras: Cleidiana Ramos (ex-jornal A Tarde), Flávia Oliveira (Globo,
GloboNews e Canal Viva), Juliana Nunes (Radioagência da Empresa Brasil de
Comunicação), Joyce Ribeiro (SBT) e Luciana Barreto (TV Brasil). Todas
autodeclararam-se negras e vivenciaram situações semelhantes de afirmação identitária
no desempenho de suas atividades profissionais num intercruzamento entre identidade
racial, de gênero e profissional, assim como vivências de racismo e sexismo no
exercício do jornalismo como profissão.
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Ao ser perguntada, Flávia Oliveira inter-relaciona sexismo com racismo,
refletindo sobre a concentração de vantagens e o consequente desfrute de privilégios por
parte dos homens brancos. Das raízes de tais operações aos dias atuais, ela enuncia a
persistência de valores coloniais ao revisar os papéis de liderança de mulheres negras e
brancas, dentro das redações e no cenário político brasileiro.
– Eu acho que é essa atmosfera de domínio desse homem branco que
mencionei no início da nossa conversa. Parece que as mulheres estão aqui de
brincadeirinha. Tem um lado ... eu já vivi isso ... em 25 anos de profissão, de uma
expectativa da ascensão feminina pela masculinização, né? Hoje, a gente vive uma
nova era: você pode ser mulher. Mulher mesmo. (...) Eu acho que o mundo ainda é
muito masculino, mas eu acho que as mulheres abriram muito espaço de trabalho.
Agora, abriram espaço na base, nos setores intermediários, mas não nas posições de
topo. Mesmo quando você tem uma mulher diretora ... no caso do jornalismo,
diretora de Redação, mas quem são os acionistas? Quem é o conselho de
administração, né?
As práticas racistas e sexistas nas redações foram reconhecidas e exemplificadas
por todas as cinco jornalistas negras entrevistadas. Cleidiana Ramos as identificou ao
longo de sua carreira, em 17 anos, no jornal A Tarde. A jornalista conta a ocorrência de
piadas machistas, controle das roupas das mulheres e até as suas reações diante das
intimidações coletivas à presença das mulheres.
- Sim, o tempo inteiro. Eu entrei no jornal, em 1998, numa época em que a
própria Redação, onde trabalhei durante anos, ela tinha questões muito fortes de
racismo, machismo. Tanto é que aqui no jornal a gente foi perceber uma maior
quantidade de jornalistas se assumindo negros nos últimos dez anos.
Para Joyce Ribeiro, as práticas sexistas são perceptíveis na própria dinâmica do
jornalismo como profissão: –Se eu for observar o que eu vejo na Redação onde eu
trabalho [SBT] e nas outras, onde eu tenho colegas, a gente tem uma massa feminina
comandada por uma minoria masculina. Então, são poucas as mulheres nos cargos
de chefia. São poucas. Então, isso já mostra, né?, que a gente tem. Porque os chefes
são homens comandando um time de mulheres, né?, que ainda está tentando
ascensão.
9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A ocupação de cargos e funções foi apontada por Luciana Barreto pelo
entrelaçamento entre racismo e sexismo. Assim como Cleidiana percebe a frequência de
tais discriminações e faz uso da expressão “o tempo todo”, Luciana Barreto utiliza
expressão semelhante “o tempo inteiro” logo que a pergunta lhe é feito, o que chama a
atenção pela identificação automática das práticas sexistas e racistas no jornalismo
como profissão.
Flávia Oliveira dimensiona a ação do racismo na mídia e seus efeitos na
representatividade negra (HOOKS, 1992), num jogo de poder em que as pessoas
brancas dão as cartas e comandam o quadro de respostas face à operacionalização do
dispositivo da racialidade/biopoder (CARNEIRO, 2005).
– Essa exclusão literal ou simbólica dos negros nos espaços de poder e nas
representações. Hoje a minha grande briga tem sido desconstruir e reconstruir a
representação dos negros.
Flávia Oliveira também faz a interrelação entre racismo e sexismo no jornalismo
como profissão e ilustra situações em que ela mesma foi o alvo de tais práticas seja
dentro da Redação – com colegas –, ou fora da Redação, com as fontes, e nos lugares
por onde passou quando estava trabalhando. Perguntada sobre a ocorrência de práticas
sexistas e racistas no jornalismo, ela sentencia:
– Sexistas, racistas e homofóbicas. Ah, tipo reuniões de pauta, comentários,
piadas. Um bolinho de homens em torno de uma foto de uma mulher assim ou
assado. Essa coisa de qualificar a mulher pela forma física. Ela não é competente.
Ela é anta, ela é baranga, ela é puta, ela é vagabunda. Ela é ... isso é super ...
estranhamento. Já vivi situações assim ... até de assédio .... “Nossa, uma mulher
negra, falando de economia. Que vontade de te beijar”, entendeu? Você diz: oi? Tem
muito. Tem muito. No próprio exercício diário, na relação com a fonte, na forma
como você chega... o esperado é que você entre pela porta de serviço, mas você entra
pela recepção porque é convidada na cobertura. E esses comentários, essas piadas,
nas reuniões de pauta, momento do fechamento ...
São outros dois pontos enumerados por Flávia Oliveira: a apregoada fragilidade
das mulheres em situações de pressão e a masculinização daquelas que estejam em
posições de tomada de decisão. A maternidade – experiência comum na vida da maior
10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
parte das mulheres – acaba por se tornar outro empecilho na trajetória das mulheres,
entre elas as jornalistas, por estar revestida de estigmas e estereótipos. Amplamente
disseminados no imaginário coletivo, os estereótipos se tornam novos obstáculos
invisíveis, embora muito presentes na vida das mulheres.
Dentre as tendências, duas delas despontam: afastamento de posições com mais
poder e remuneração, as quais exigem mais carga de trabalho, ou a assunção de mais
poder e remuneração, e o distanciamento da vida pessoal. Ambas têm efeitos muito
concretos na vida das mulheres. Contudo, limitam-se ao universo delas e pouco são
repensadas nas empresas, em particular nas empresas jornalísticas. Recaem sobre as
mulheres as buscas por alternativas provisórias ou permanentes sobre as suas condições
de trabalho, as quais seriam mais amenas com o compartilhamento das soluções,
envolvendo outros agentes: empresas e família. De acordo com a OIT, o equilíbrio entre
trabalho e família é condição fundamental para a igualdade de gênero no trabalho, de
modo a não prejudicar o desenvolvimento das carreiras das mulheres.
A organização política interna das mulheres, por meio de coletivos e comitê em
favor da igualdade, como narra Juliana Nunes, tem propiciado movimentos internos de
exposição de práticas discriminatórias, algumas delas com processos administrativos.
– A gente teve um recente caso de um chefe que chegou no meio (da Redação)
e disse: “Mais uma grávida? Por favor, fechem as pernas”. (...) É. Mulheres, fechem
as pernas. É desse jeito. O cara está sendo processado na sindicância. Mas já tem
outro que chamou a funcionária de gostosa que vai se ferrar mais. Enfim. É bizarro.
É cada história lá dentro que a gente não acredita.
A almejada igualdade de gênero no jornalismo como profissão é negada como
prática incorporada nas empresas jornalísticas por todas as cinco jornalistas negras
entrevistadas. Continua, portanto, a ser uma utopia, sobretudo, pelas práticas enunciadas
para expor o quão adiada é a igualdade entre mulheres e homens jornalistas na atual
configuração do jornalismo como profissão. Questionadas acerca da igualdade de
gênero, as cinco jornalistas constestaram as perguntas interseccionalizando as
dimensões de raça e gênero, pontos elementares sobre o ethos mulher negra, fartamente
teorizado pelo pensamento feminista negro, e sinalizaram algumas estratégias para a
superação das realidades excludentes. Ademais, indicaram como imperativo o
engajamento efetivo das empresas para a eliminação do racismo e do sexismo,
estruturantes de desigualdades, ao passo em que urge a instauração de novas práticas de
11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
trabalho para o livre desenvolvimento das carreiras de negros e brancos, mulheres e
homens.
Considerações finais
A parresia (FOUCAULT, 2011) – ora mais incisiva pela coragem da verdade
das sujeitas-discursivas negras, ora oblíqua pelos interditos ou não-ditos das jornalistas
brancas – imprime características na comunidade real, seja pelas funções, mídias,
especialidades, lugares e tempo de trabalho em que as relações raciais e as relações de
poder estruturam subordinações, exclusões e opressões sistemáticas.
As formas simbólicas de jornalistas negras desvelam singularidades
contrastantes possivelmente pelo fato de serem as mais oprimidas e violentadas pelas
sucessivas discriminações. São elas, também, as que contestam a cultura discriminatória
de ordem racista e sexista no jornalismo como profissão no Brasil, propõem mudanças
mais assertivas e mostram-se mais contundentes com relação à exposição das vivências
opressivas. Como grupo intrarracial e intragênero, as jornalistas negras são as que
respondem mais ao ethos político das mulheres negras brasileiras, a exemplo do que se
viu na Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver,
ocorrida em 2015, com mais de 50 mil mulheres negras. De tal modo que emergem
discursividades combativas frente às intimidações decorrentes da rejeição existencial
das mulheres negras na sociedade brasileira por meio da conjugação do racismo e do
sexismo, circunscrevendo-as no signo da morte (CARNEIRO, 2005), ao passo que a sua
invisibilidade e a inviabilidade na gestão da vida possibilita, sobremaneira, o grupo
racial branco.
Parresiastas por excelência, as jornalistas negras distinguem-se dos demais
grupos estudados pela ênfase da coragem da verdade, distanciando-se da covardia e do
imobilismo decorrentes ora do mito da democracia racial – pela narrativa que
desarticula confrontos raciais por meio de uma falsa harmonia – e das dinâmicas
patriarcais, seja pela divisão sexual do trabalho, aquela que, inclusive, determina as
funções e os cargos de maior e menor mando, salários, ou pelo androcentrismo pela
valorização das experiências e modos de gestão masculinos.
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Para as pessoas negras, essa coragem de dizer somente é possível pela
hermenêutica do sujeito na dinâmica do cuidar de si, como observou Carneiro (2005),
em enfrentamento às experiências catalisadas pelo dispositivo de racialidade/biopoder, o
qual implica confrontos abertos e contundentes com a hegemonia da brancura. No
entanto, são as jornalistas negras as que melhor correspondem à hermenêutica do sujeito
devido à ruptura constante e desafiadora da supremacia branca. Para as pessoas
brancas, a parresia em torno da temática deste estudo implicaria o confronto com o
ideário da brancura e da branquitude por meio da emergência de reflexões, por vezes,
raríssimas de serem acionadas devido ao lugar de privilégio a que estão circunscritas
pelo racismo.
As vivências sobre a branquitude são ofuscadas pela intensidade do racismo a
partir das enunciações de jornalistas negras e negros. As sujeitas e os sujeitos
discursivos não negros, possivelmente pela ênfase do roteiro de entrevistas, evidenciam
relatos e situações em referência a sujeitas e sujeitos negros, restringindo o arcabouço
de formas simbólicas sobre a branquitude.
Referências bibliográficas
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil.
Disponível em: <
http://www.ceert.org.br/premio4/textos/branqueamento_e_branquitude_no_brasil.pdf>.
Acesso em: 18 set. 2013.
CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.
339f. São Paulo:USP, 2005. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo, 2005.
CARUSO, Marina. Primeira palavra. Marie Claire, Rio de Janeiro, n. 316, p.9, Julho
2017.
HOOKS, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de
Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015, pp. 193-210.
GONZALEZ, Lélia. O movimento negro na última década. In: GONZALEZ, Lélia;
HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
________________. Por um feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis
Internacional, Santiago, v. 9, p. 133-141, 1988.
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros. Tradução
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
13
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ROSA, Isabel Cristina Clavelin da. Racismo em Pauta: a pluralidade confrontada no
noticiário da Folha de S. Paulo na década de 2000. 241f. Brasília: UnB, 2011.
Dissertação (Mestrado em Comunicação), Faculdade de Comunicação, Universidade de
Brasília, 2011.
__________________________. Parresía e hermenêutica de profundidade nas
trilhas de Hermes: raça e gênero no jornalismo como profissão no Brasil. 688f.
Brasília: UnB, 2016. Tese (Doutorado em Comunicação), Faculdade de Comunicação,
Universidade de Brasília, 2016.
Black women and white women: racism and sexism as demarcates of
confrontations and resistances in the careers of journalists in Brazil
Abstract: In this work, I approach the dynamics derived from racism and sexism, based
on the experiences of black and white journalists in the course of their careers. Non-
compliance with labor rights, pay gaps and barriers to occupation key-posts and job
opportunities, sexual and moral harassment and high and low awareness about
discrimination are some elements in evidence in the discourses of professionals on their
trajectories in the world of work in Brazil. The text develops the reflection on the
prevalence of racism in the tensions and confrontations experienced by journalists,
which is explicitly emphasized by black women in the unveiling of the myth of racial
democracy and gender inequalities in contrast to naturalized intersectional
discrimination in the exercise of profession. Black journalists, outlining oblique aspects
of race and gender relations in the profession, have also stated certain ambiguities in the
speeches of white journalists who make little explicit the advantages of career whiteness
and even reduce asymmetries of gender in the exercise of their professional activity.
Keywords: women, race, gender, work, journalism.