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NOS IMPRESSOS PEDAGÓGICOS:
A CIRCULAÇÃO DE PRÁTICAS DE ENSINO DE LEITURA
Neusa Balbina de Souza1
Fernanda Zanetti Becalli2
Resumo: Este texto tem por objetivo discutir representações de leituras inscritas em
impressos pedagógicos voltados para a orientação de práticas de ensino de leitura na escola
primária capixaba, na década de 1960. É parte de uma pesquisa em andamento que está sendo
desenvolvida com vista à tessitura de uma narrativa acerca da história do ensino da leitura,
circunscrevendo-se a estudar o método global e sua concretização em materiais didáticos
(livros de leitura, impressos pedagógicos etc.) que circularam no Espírito Santo. Apoiamos-
nos em pressupostos teóricos e metodológicos da História Cultural com a expectativa de
compreender práticas escolares, em suas singularidades, como práticas culturais, produzidas
por determinados agentes educacionais (professores, diretores, técnicos, etc.), imersos em
contextos de produção e de circulação de sentidos da leitura. Numa perspectiva que considera
documento como testemunho vivo das práticas culturais humanas, para a análise apresentada
neste texto, utilizamos dois impressos pedagógicos. Um intitulado Boletim e o outro
Instrução para elaboração de provas, produzidos por técnicos educacionais da Divisão de
Orientação e Pesquisa Pedagógica, da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Espírito
Santo, na década de 1960, com a finalidade de orientar o ensino da leitura. Compreendendo-a
como prática discursiva cultural, muitas vezes ordenada como a leitura escolar, os conceitos
de representação, apropriação, circulação, prática e estratégia cunhados por Roger Chartier
(1990, 2009, 2011) e Michel De Certeau (2007) nos permitem entendê-la como estratégias
empregadas por determinados agentes, inscritos nessas práticas, para imposição de uma
representação de leitura desejosa de ser apropriada por sujeitos da escola para conformação e
modelação do ensino da leitura. Os documentos tomados para análise nos deram a ler indícios
de que as concepções de leitura veiculadas na escola primária capixaba, por meio dos
impressos pedagógicos, coadunavam com os princípios teóricos defendidos pelo movimento
escolanovista em voga no País, no período em apreço. Tais concepções concernem ao campo
1 Doutoranda em Educação pelo PPGE/CE/UFES, professora do Departamento de Biblioteconomia da UFES, membro integrante e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES), email: nebaso@gmail.com.2 Doutoranda em Educação pela UFES, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES), membro integrante e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES), email: nandazbn@gmail.com.
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da moderna pedagogia defensora do método global e foram baseadas em tendências teóricas
do campo da psicologia, da pedagogia e da linguística. Os boletins e as instruções para
elaboração de provas são compreendidos, em sua materialidade, como suporte em que se
inscrevem apropriações de concepções e saberes pedagógicos, logo, representações. E como
mecanismo de legitimação desses saberes.
Palavras-chave: Leitura-representação. Impresso pedagógico. Escola primária.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No ponto de articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito, coloca-se necessariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo (CHARTIER, 1990).
Estudos realizados sobre a história da leitura na escola primária no Espírito Santo (CAMPOS,
2008; FALCÃO, 2010; SCHWARTZ, 2012; SOUZA, 2008) têm demonstrado que nos anos
de 1950 e 1960 fizeram circular diversos materiais impressos em que se veiculavam
concepções, apropriações, representações sobre métodos de ensino, leitura e ensino da leitura
que serviram tanto como estratégia para disseminação de tais concepções na escola quanto
como orientação às professoras do que e como ensinar a leitura. Esses materiais se inscrevem
no contexto de produção local e de produção nacional como jornais, revistas, livros de leitura,
cartilhas, boletins informativos e/ou de instrução, relatórios, correspondências oficiais etc.
Tendo em vista o limite deste texto, selecionamos para análise os documentos intitulados
Boletim e Instrução para elaboração e aplicação de provas, produzidos por técnicos da
Divisão de Orientação e Pesquisas Pedagógicas (DOPP) da Secretaria de Educação e Cultura
do Estado do Espírito Santo.
O acesso a esses materiais se deu pela leitura de atas de reuniões pedagógicas e
correspondências que foram enviadas às escolas primárias pela DOPP. Essas fontes
documentais nos permitiram conhecer, por um lado, indicações/sugestões de textos que as
professoras poderiam/deveriam ler para orientar suas práticas pedagógicas bem como
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orientações específicas sobre o ensino da leitura e, por outro lado, conhecer vestígios de
representação e de apropriação de saberes que orientaram práticas de leitura e de ensino da
leitura.
Vale destacar o papel desempenhado pela DOPP com relação à disseminação de
representações de leitura veiculadas em materiais impressos pedagógicos, postos em
circulação na escola primária capixaba. A DOPP foi criada pelo Decreto-Lei nº 16.471, que
reorganizou a Secretaria de Educação e Cultura do estado do Espírito Santo em 24 de
fevereiro de 1947a, cuja regulamentação ocorreu em 01 de março de 1947 pelo Decreto nº
16.481. Com a finalidade de “[...] planejar e elaborar programas, sistemas de verificação do
rendimento escolar, orientar o magistério e promover a seleção de professores, diretores e
inspetores [...]” (ESPIRÍTO SANTO, 1947b, p.13), a atuação desse setor da Secretaria de
Educação, na década de 1960, estava articulada com a política nacional de educação do
momento, sobretudo no que diz respeito à orientação do magistério capixaba em relação ao
ensino da leitura (FALCÃO, 2010).
Nesse sentido, Schwartz (2012, p. 15) corrobora ao ter encontrado em fontes documentais no
âmbito do Ministério de Educação e Cultura (MEC), “[...] indícios de que havia tendência de
defesa de princípios que fundamentavam o método global via materiais produzidos em órgãos
responsáveis pela política educacional”. Esses princípios, observados pela pesquisadora,
também são encontrados em materiais que circularam na escola primária produzidos no
âmbito da DOPP, com a finalidade de orientar o ensino da leitura, o que reforça a existência
de articulação entre a política educacional estadual e a nacional no período coberto pela
pesquisa.
Isso nos leva a considerar que uma investigação que toma para análise impressos pedagógicos
que fizeram parte da política pública de educação no Espírito Santo, implica em
possibilidades de conhecer, além do objeto de estudo proposto, concorrências e competições
que podem ter sido travadas entre grupos que participaram da elaboração e da materialização
dessa política, assim como relações de poder e de dominação estabelecidas, ou como postula
Chartier (1990) conhecer as “lutas de representações”. Embora não nos deteremos nelas, não
podemos ignorar sua possível existência.
Isso posto retomamos o objetivo desse estudo: refletir sobre representações de leitura em
impressos pedagógicos que circularam na escola primária capixaba, nos anos de 1960. O
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corpus desta análise é constituído por um boletim sobre avaliação da aprendizagem, de
Instruções para avaliação e elaboração de prova objetiva de 1964; Instruções referentes à
prova de leitura oral: 1ª série primária, de 1963, para grupos escolares e escolas reunidas e
Instrução para aplicação de prova de língua vernácula - escola singular, 1963. Nossa
reflexão acerca da temática será balizada pelas seguintes questões: que representação de
leitura circulou na escola primária capixaba nos anos de 1960? O que essa representação
indica sobre a finalidade da leitura na escola? E que tipo de leitor permitia formar?
IMPRESSOS DA DOPP: UMA POSSÍVEL LEITURA
[...] penso que não existe história possível se não se articulam as representações das práticas e as práticas da representação (CHARTIER, 2011).
Em matéria publicada no dia 21 de agosto de 1957, no jornal A Gazeta, Mesquita Neto tece
comentários a respeito da publicação do primeiro número do boletim elaborado pela equipe
técnica da DOPP. Com a finalidade de servir como ferramenta para aprimorar o professorado
capixaba por meio da divulgação de ideias e princípios pedagógicos orientadores da política
educacional espírito-santense, o material seria publicado mensalmente e enviado às escolas de
modo a
[...] oferecer ao magistério do Estado possibilidades de intercâmbio, subsídios para a atualização de seus conhecimentos pedagógicos sugestão para a realização de suas comemorações cívicas, publicando datas relativas às nossas datas e personagens históricos, dramatizações canções cívicas e populares, planos de trabalho, etc, [...] (NETO, 1957, p. 5).
As fontes documentais com as quais dialogamos – impressos pedagógicos da DOPP,
materializam discursos, de agentes responsáveis pela gestão da educação primária, sobre
leitura e ensino da leitura, dirigidos aos sujeitos dos fazeres ordinários na escola (professores,
diretores etc.). Enquanto objetos culturais, esses impressos são tomados por nós, assim como
fez Carvalho (2003, p. 272), “[...] como dispositivos de normatização pedagógica e suporte
material das práticas escolares” e, ainda, como estratégias para fazer circular na escola
representações que determinados agentes construíram sobre o processo de ensino da leitura.
Assim, é possível inferir que tais documentos apresentam indícios que podem nos ajudar a
compreender estratégias utilizadas pela DOPP para prescrever o que e como fazer de modo
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que pudesse conformar práticas pedagógicas por meio de modelos e concepções teóricas
materializadas nos materiais.
A DOPP era dividida em outros quatro setores, cada qual com atribuições específicas. Com
relação ao planejamento, estudos e elaboração de provas para verificação de rendimento
escolar, providências quanto à impressão e remessas dessas provas e, ainda, análise estatística
dos resultados das avaliações competia ao Setor de Planejamento e Programa (ESPÍRITO
SANTO, 1947b). As escolas recebiam, em envelope lacrado, as provas ou exames finais,
prontas para serem aplicadas, sendo que a aplicação não era executada pelo professor regente
da turma, mas por um sujeito da mesma escola ou de outra, conforme fosse estabelecido pela
DOPP. A correção era feita na própria escola, os resultados eram registrados em boletim do
aluno e enviava uma via à Divisão. Por essa razão, entendemos que a referida Divisão
buscava exercer controle sobre os textos que as crianças deveriam ler nos testes de leitura na
escola primária capixaba, nos anos de 1960, seja por meio de elaboração das provas ou por
meio de orientação/indicação de como deveriam ser elaboradas as provas parciais ou mensais.
A elaboração de provas finais de leitura, assim como as de outras matérias do curso primário,
no estado do Espírito Santo, ficou a cargo da DOPP até o ano de 1964. A partir de 1965 essa
responsabilidade passou para o diretor escolar, no entanto, as orientações para elaboração e
aplicação permaneceram com a Divisão, conforme consta em circular, do referido setor, do
dia 18 de outubro de 1965, encaminhado às escolas. No referido documento a direção da
DOPP informa os motivos pelos quais não mais enviaria os textos e que estes deveriam ser
organizados no próprio estabelecimento, cabendo ao diretor escolher entre as sugestões
apresentadas, a maneira pela qual preferia realizar o trabalho. Cabe salientar que elaborando
ou não as provas finais, a DOPP permanecia exercendo controle sobre o processo de
avaliação da aprendizagem dos alunos do curso primário, pois a escola deveria enviar, para
apreciação da Divisão a prova elaborada que depois de aprecia-la emitia devido parecer.
As provas de leitura eram compostas de duas partes: uma de leitura oral e outra de leitura
silenciosa. Esta, geralmente, com a finalidade interpretativa, ou seja, realização de atividades
de interpretação de texto e a outra para verificação de aprendizagem. Para a 1ª série, por
exemplo, recomendava que a leitura oral deveria ser clara, “[...] com as expressões
concatenadas (sem pausas após cada palavra)” e a silenciosa requeria ler com compreensão do
sentido (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1963a).
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Essas modalidades de leitura, de acordo com Chartier (2009, p. 143) são tradições antigas.
Nas sociedades do Antigo Regime, “[...] ler em voz alta era uma forma de sociabilidade
compartilhada e muito comum”, isto é, não se tratava de uma obrigação como passou a
ocorrer em espaços escolares, principalmente a partir do século XIX, quando “[...] o ensino e
a pedagogia: fazendo os alunos ler em voz alta, procurava-se paradoxalmente controlar sua
capacidade de ler em silêncio, que era a própria finalidade da aprendizagem escolar”. Esse
propósito parece ter sido também atribuído ao teste ou a prova de leitura de alunos da escola
primária capixaba, nos anos de 1960, conforme podemos constatar em uma Instrução
referente à prova de leitura oral - 1ª série primária (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1963b).
O documento acima referenciado informa o passo a passo para aplicação da prova. Esta era
aplicada em dois dias de modo que metade da turma fizesse em um dia e a outra metade no
dia seguinte. Eram quatro provas diferentes, assim, os alunos do primeiro dia realizariam a
prova de número 1 e 2, e os do segundo dia as de número 3 e 4. Essa dinâmica, de acordo com
a orientação, evitaria que os alunos examinados no segundo dia soubessem do conteúdo da
prova antecipadamente.
A aplicação desse instrumento avaliativo deveria ocorrer da seguinte maneira: o examinador
chamava dois alunos, seguindo de chamada na respectiva ficha de matrícula, entregava para o
primeiro a folha de número 1 e para o segundo a de número 2. O aluno que recebia a folha
número 2 deveria sentar-se no fundo da sala e aguardar até que o primeiro finalizasse. Para o
primeiro aluno o examinador dizia: “leia para você, com muita atenção, tudo o que está
escrito nessa folha [...] quando acabar avise-me”. Ao término o examinador deveria lhe dizer:
“Leia em voz alta, esta estorieta” (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1963b).
Na prova, o texto ou estorieta para leitura era constituído de seis frases:
Eduardo foi à feira com sua tia. Lá êle viu um macaquinho muito engraçado. O menino pediu para ficar olhando o animalzinho. Êle ofereceu-lhe banana. Era mesmo uma graça ver. Êle comia, pulava, dançava (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1963b).
Concluída a leitura do texto o aluno passaria para outra etapa, isto é, à interpretação. Nesta o
examinador deveria fazer perguntas, relacionadas ao texto lido, e o aluno respondia em voz
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alta. Cada prova tinha três perguntas, como as que seguem: “Com quem Eduardo foi à feira?
O que pediu o menino a sua tia? Que ofereceu o menino o macaquinho?” (ESPÍRITO SANTO
(Estado), 1963b). Finalizada essa etapa passaria à leitura de palavras desmembradas do mesmo
texto lido.
A indicação de leitura de uma “estorieta”, depois frases e palavras desmembradas dessa,
indicia uma perspectiva teórica que concebe a leitura como um ato global. Essa perspectiva se
fundamenta na ideia de que as crianças apreendem o mundo com base em uma visão do todo,
que posteriormente pode se organizar em partes, ou seja, as crianças apreendem o mundo de
forma sincrética. Trata-se, portanto, do princípio de globalização balizado pelo método global
ou ideovisual, formulado por Ovídio Decroly (BRASLAVSKY, 1971). De acordo com
Schwartz (2012, p. 18) “Para os defensores do método global para o ensino da leitura, as
crianças deveriam ser expostas a ideias que elas seriam capazes de compreender e só
posteriormente é que deveriam ser encaminhadas para análises dos constituintes da ideia”.
Assim, o modelo de atividades de leitura proposto para as provas de alunos da 1ª série, aponta
vestígios de que agentes da DOPP, responsáveis pela orientação do magistério capixaba,
defendiam o método global como adequado para o ensino da leitura na escola primária, nos
anos de 1960.
Competia a DOPP também, como dissemos anteriormente, orientar os professores e o diretor
escolar na elaboração das provas parciais que eram aplicadas mensalmente aos alunos do
ensino primário. No entanto, uma cópia dessa prova deveria ser enviada à Divisão para ser
apreciada pela equipe técnica. A partir da apreciação era produzido um boletim, e enviado às
escolas, com a finalidade de informar, às professoras e diretoras, os erros cometidos para,
assim, corrigi-los nas próximas provas.
Isso está explícito, por exemplo, em um boletim elaborado em 1963c. Vejamos:
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Fonte: Arquivo EEF “Augusto Luciano”, Cariacica-ES
Como podemos visualizar, na capa está impresso o seguinte termo: “Leia! Isto interessa a
você”. Na centralidade da folha, temos um desenho de uma mão segurando um lápis feito
sobre uma seta indicando no pé da folha a autoria. A expressão, a forma utilizada no
enunciado nos remete às considerações feitas por Chartier (2011, p. 20) de que
Todo autor, todo escrito impõe uma ordem, uma postura, uma atitude de leitura. Que seja explicitamente afirmada pelo escritor ou produzida mecanicamente pela maquinaria do texto, inscrita na letra da obra como também nos dispositivos de sua impressão, o protocolo da leitura define quais devem ser a interpretação correta e o uso adequado do texto, ao mesmo tempo em que esboça seu leitor ideal.
Partindo de uma análise como nos propõe Chartier, a identificação dos protocolos de leitura
no documento em questão – Boletim, pode nos apontar pistas interessantes que possibilitam
compreender por um lado o sentido que os autores desejaram ver atribuído ao texto, isto é,
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que os destinatários (professores, diretor) se apropriassem, fazendo uso correto das
orientações prescritas e, por outro, as táticas (CERTEAU, 2007) do leitor que permitem
utilizar, manipular e alterar o prescrito.
No boletim de instruções referentes à elaboração de provas (ESPÍRITO SANTO (Estado),
1963c) há indicação das disciplinas que devem ser avaliadas nas quatro séries do curso
primário bem como à quantidade de questões para cada uma. Assim, além da indicação de
conteúdos de matemática, ciências, geografia, higiene, educação moral e cívica, a prova
deveria contemplar conteúdos da língua vernácula distribuídos em sete questões: leitura
silenciosa, composição e ditado (uma questão de cada para as quatro séries), exercícios de
gramática (três questões para a 1ª série e quatro para 2ª, 3ª, e 4ª) e, ainda, para a 1ª série, cópia
de um texto com seis linhas. Orienta também sobre o modo como as questões devem ser
configuradas de modo a facilitar a compreensão e o desempenho do aluno, ou seja, que as
questões fossem objetivas e claras. Nesse sentido, adverte para que evite questões que exigem
mais de uma palavra nas respostas.
Com relação à orientação sobre leitura e cópia indica, com base nas apreciações das provas
parciais (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1963c), para evitar textos e frases que não fossem
ligados à vivência da criança e que apontassem “[...] comportamentos negativos ou cenas
desagradáveis ao espírito infantil”. O texto abaixo, retirado do referido documento, é dado
como exemplo do tipo de texto que se devia evitar na 1ª série:
O pai de Lina se sentia doenteÊle se sentia tontoO doente tomou leiteAinda se sente doente (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1963c, p. 5).
No lugar deste, aconselhava o seguinte texto para leitura e cópia:
O papai de Lina chama a filhinha:____ Lina! Lina! Tenho uma surpresa para você.Lina vem correndo.____ Fale, fale papai. Qual é a surpresa?O papai abre um grande embrulho e dá a Lina um ursinho de pelúcia.Ela muito contente disse:_____ Obrigada papai! Que linda surpresa! (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1963c, p. 5).
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Chartier (2011, p. 27) ao dizer que "As representações não são simples imagens, verídicas ou
enganosas, do mundo social. Elas têm uma energia própria que persuade seus leitores ou seus
espectadores que o real corresponde efetivamente ao que elas dizem ou mostram", nos ajuda a
pensar na dinâmica das representações sobre leitura existentes nas práticas discursivas, de
agentes da DOPP, inscritas nos textos destinados a orientação pedagógica. Esses mesmos
textos nos permitem ver, também, pistas sobre representação de criança, de ideal de criança.
Esta era considerada um ser frágil e por conta disso deve ser resguardada, poupada de grandes
problemas, dramas, discussões. Enquanto a leitura era representada não como ação no mundo,
como “caça furtiva” ou como interação entre sujeitos, mas como prática não problemática.
Desse modo, assuntos polêmicos ou que expressassem tristeza, angústia, que pudessem
apontar tipo de conduta ou comportamento diferente do almejado, para sujeitos daquela
sociedade, deveria ser evitado.
Essas representações de infância e de leitura modelariam ou conduziriam as práticas de leitura
infantil sem adversidade, sem conflitos, mas repetidoras, apassivadoras: a criança
se apropriaria da ideia de leitura como algo que não causa problemas, como algo estável e
agradável que não exigiria um grande investimento do sujeito. Com isso, a tendência é que o
tipo de texto que a criança produziria fosse um texto com essas mesmas características: fácil,
sem questionamento ou problema, superficial, ingênuo. Ingênuo, assim como a criança.
Por outro lado, esses textos dirigidos aos professores e diretor escolar, com a finalidade de
impor determinada ordem, de prescrever maneiras de fazer, revelam indícios de subversão à
ordem, ou seja, as operações astuciosas e clandestinas dos sujeitos em suas práticas comuns
mediante “[...] uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e
espetacular [...]” que nos fala Certeau (2007, p. 94). Isto está posto, e de modo bastante
explícito, em um texto produzido em 1964, também com a finalidade de orientar a elaboração
de provas nos estabelecimentos de ensino primário. Fazendo uso de recursos gráficos para
chamar a atenção para erros cometidos nas provas, o texto inicia assim: “FOI VOCÊ?
ENTÃO MODIFIQUE...”. Em seguida, diz que a professora encarregada de avaliar a
qualidade dos textos de provas aplicadas no mês de maio, daquele ano, informou as falhas
mais comuns encontradas nos mesmos. São as seguintes:
1. Provas excessivamente longas.2. Questões não ligadas aos interêsse infantil.
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3. Ausência de exercícios de composição.4. Ausência de certa escala de dificuldade.5. Falta de variedade nos tipos de exercícios.6. Falta de técnica na organização de alguns exercícios.7. Ausência de leitura silenciosa (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1964a, p. 16).
Isso nos dá a ler tanto vestígios de resistências dos professores aos objetos e modelos culturais
que lhe eram impostos quanto aos indícios de usos, apropriações distintas feitas desses
modelos, acentuando o que pontua Chartier (1990, p. 123), o
[...] leitor é sempre pensado pelo autor, pelo comentador e pelo editor como devendo ficar sujeito a um sentido único, a uma compreensão correcta; a uma leitura autorizada. Abordar a leitura é, portanto, considerar, conjuntamente, a irredutível liberdade dos leitores e os condicionamentos que pretendem refreá-la.
Nessa instrução (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1964a, p. 17), ao tratar sobre o esclarecimento
acerca das pontuações feitas relacionadas ao interesse da criança, chama a atenção para o
cuidado que se deve ter ao selecionar os textos para ditado e leitura silenciosa de modo a
evitar ditado com palavras soltas e textos que não correspondam ao “[...] gôsto infantil”.
Especificamente, no que concerne à leitura silenciosa afirma: “Também é parte
imprescindível numa prova de língua pátria, uma questão que procura medir o grau de
compreensão da criança na leitura. Isto porque o conceito moderno de leitura diz – ler é
interpretar” (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1964a, p. 18). Tal conceito, de acordo com
indícios apontados no documento, está relacionado aos princípios difundidos em cursos de
formação de professores do PABAEE3 (Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao
Ensino Elementar) frequentados por professoras integrantes da equipe técnica da DOPP, nos
anos de 1960. Esses indícios aparecem em documento que acompanha a Instrução para
avaliação e elaboração de prova objetiva (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1964b), enviado aos
estabelecimentos de ensino pela direção da DOPP, em 20 de agosto de 1964, quando diz:
“Senhor Diretor: O trabalho que ora apresentamos a V. Sa., resume o esfôrço e dedicação da
equipe de professôres primários possuidores de Cursos Especializados feitos no P.A.B.A.A.E,
que, nesta Divisão exercem funções técnicas” (ESPÍRITO SANTO (Estado), 1964c).
3 Acordo assinado entre o Brasil e os Estados Unidos, em junho de 1956, tendo por objetivo central a melhoria do ensino elementar brasileiro. PABAEE (1956-1964): a americanização do ensino elementar?. Rev. Bras. Educ.[online]. 2003, n.24, pp. 194-196. ISSN 1413-2478. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782003000300015>.
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O conceito de leitura, difundido em curso de especialização do PABAEE. aparece em artigo
publicado na Revista do Ensino de Porto Alegre, de março de 1962. Intitulado Compreensão,
alma da leitura, de autoria de Magdala Lisboa Bacha, professora de metodologia de língua
pátria do PABAEE. A professora assevera que o ensino da leitura há muito tempo tem sido
preocupação de pais, professores e psicólogos, salientando que diferente do modo como o
ensino ocorria “antigamente”, preocupada apenas com a decifração dos símbolos,
reconhecimento de sílabas e palavras, a leitura consistia numa atividade mecânica, assim, a
criança lia, decifrava o texto, mas não o compreendia, não capturava o sentido. Diz ela:
“Hoje, isto não é considerado leitura, porque ler é interpretar. Os símbolos são, no nôvo
conceito, estímulos que após percebidos pelos olhos são levados à mente, a qual reage a êles,
lhes reconhece e lhes dá sentido” (BACHA, 1962, p. 23 grifo nosso).
Com relação à Revista do Ensino de Porto Alegre, localizamos vestígios que revelam fortes
indícios de sua circulação no estado do Espírito Santo. Ela é citada em documentos,
elaborados pela equipe da DOPP com a finalidade de orientar a elaboração de provas e indicar
temas/assuntos para serem discutidos em reuniões pedagógicas nos estabelecimentos de
ensino primário. E em atas de reunião pedagógica, consta sugestão do diretor escolar no
sentido de que as professoras utilizassem a Revista, existente na escola, para auxiliar na
elaboração de provas e outras atividades escolares (GRUPO ESCOLAR PROFESSOR
“AUGUSTO LUCIANO”, 1963).
No entanto, saber dos usos feitos desses materiais que prescreveram maneiras de fazer, dos
sentidos que foram atribuídos aos textos pelos sujeitos do/no fazer na escola, torna-se difícil
de mensurar, uma vez que os sentidos escapam ao previsível. Como afirma Chartier (2011, p.
20) “[...] uma história das leituras [não] pode contentar-se com esses balizamentos nos textos
e objetos impressos, com essas identificações escriturais ou tipográficas de leitura desejadas
ou supostas [...]”, que tentam coagir o leitor “[...] ‘prendê-lo na armadilha’[...]” (CHARTIER
2002, p. 172), tendo em vista a produção inventiva da apropriação e a liberdade dos leitores
em atribuir sentidos aos textos lidos ou escutados.
PARA FINALIZAR
É necessário um estudo mais aprofundado sobre representações de leitura veiculadas em
impressos pedagógicos, aqui analisados, de modo que possamos compreender como
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representações antigas construídas socialmente se relacionavam ou conviviam, nas práticas
discursivas inscritas nesses materiais, com novas representações em construção. Em princípio,
podemos ligeiramente perceber, nos indícios, nos rastros deixados nos textos, que o velho e o
novo concorriam, isto é, há tensões e contradições no campo do prescrito em relação à nova
concepção de leitura e de leitor que permeava os discursos dos sujeitos da DOPP e as
concepções inscritas nos textos que os alunos deveriam ler nas provas.
Na nova concepção, apresentada por agentes da DOPP, a leitura era entendida como ato de
compreensão, de interação entre leitor e texto. Nesse sentido, a compreensão implica
atribuição de sentido e considerando as pontuações de Chartier (2002, 1990, 2011) o sentido
não é único, idêntico para leitores distintos. Sendo assim, as tensões e as contradições das
quais dissemos são percebidas, sobretudo, nos textos indicados para leitura silenciosa em que
as crianças, na prova, deveriam responder em voz alta perguntas feitas pela professora sobre o
texto lido, que admitia uma única resposta. Ou seja, a compreensão do texto era previsível.
Enfim, percebemos que representações antigas estiveram ou estavam emparedadas com as
novas, evidenciando que nenhuma nova teoria pode ser considerada absolutamente como
fundadora de novas práticas, novos fazeres, pois, estas estão prenhes de nossas experiências
anteriores. Assim, o novo sempre emerge do velho, das práticas sedimentadas com as quais
não se rompe repentinamente.
REFERÊNCIAS
BRASLAVSKY, B. P. de. Problemas e métodos no ensino da leitura. Trad. Agostinho Minicucci. Edições melhoramentos. São Paulo, 1971.
BACHA, Magdala Lisboa. Compreensão, alma da leitura. Revista do Ensino, Porto Alegre-RS, p. 23-28, mar. 1962.CAMPOS, Dulcinéia. A alfabetização no contexto das políticas públicas (1950): uma contribuição para a história da educação no Espírito Santo. 2008. 220 f. Dissertação (Mestrado em Educação) -- Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008.
CARVALHO, Marta Maria Chagas. A escola e a república e outros ensaios. Bragança Paulista: EDUSF, 2003.
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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: [1.] artes de fazer. 12. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre praticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa [Portugal]: Difel, 1990.
CHARTIER, Roger; LEBRUN, Jean. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Ed. da UNESP, 2009.
CHARTIER, Roger. Uma trajetória intelectual: livros, leituras, literaturas. In.: ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Roger Chartier, a força das representações: história e ficção. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-54.
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ESPÍRITO SANTO (Estado). Secretaria de Educação e Cultura. Divisão de Orientação e Pesquisas Pedagógicas. Instrução para aplicação de prova de língua vernácula: escola singular. Vitória, [1963a]
ESPÍRITO SANTO (Estado). Secretaria de Educação e Cultura. Divisão de Orientação e Pesquisas Pedagógicas. Instrução referente à prova de leitura oral: 1ª série. Vitória, 1963b.
ESPÍRITO SANTO (Estado). Secretaria de Educação e Cultura. Divisão de Orientação e Pesquisas Pedagógicas. Instrução para elaboração de prova. Vitória, 1963c.
ESPÍRITO SANTO (Estado). Decreto-Lei n.º 16 471, de 24 de fevereiro de 1947. Reorganiza a Secretaria de Educação e Cultura e dá outras providências. Vitória: DIO, 1947a.ESPÍRITO SANTO (Estado). Decreto-Lei n.º 16 481, de 01 de março de 1947. Regulamento da Secretaria de Educação e Cultura e dá outras providências. Vitória: DIO, 1947b.
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