Post on 03-Dec-2018
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O ACONTECIMENTO DA LINGUAGEM INCLUSIVA: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA
Laís Virginia Alves Medeiros1
Resumo: Este trabalho, amparado na análise do discurso pecheutiana, apresenta resultados de dissertação defendida no
ano de 2016. Com o objetivo de analisar como discursos sobre língua e gênero circulam e se relacionam em diferentes
espaços, foram selecionados textos apresentados em leis e cartilhas referentes à linguagem inclusiva (classificados, para
fins metodológicos, como discurso institucional) e textos publicados em meios on-line de militância feminista que
comentam e problematizam essas propostas (classificados como discurso militante).Foram mobilizadas noções como
formação discursiva, posição de sujeito e acontecimento enunciativo, além da noção de língua conforme proposta pela
análise do discurso pecheutiana, considerando sua autonomia relativa e sua potencialidade enquanto resistência. Dessa
análise, identifiquei quatro diferentes posições de sujeito, delimitadas pelo modo como se relacionam com os saberes
sobre gênero e língua, incluídas aí as possibilidades de binarismo ou não binarismo, de modificações sintáticas e/ou
morfológicas, de aderência ou resistência às regras gramaticais. Finalmente, proponho que a linguagem inclusiva, ao
somar à Formação Discursiva Feminista questões sobre como se deve dizer (junto ao que se pode e ao que se deve
dizer) seja um acontecimento enunciativo dentro dessa Formação.
Palavras-chave: Linguagem Inclusiva. Língua. Gênero. Formação Discursiva. Acontecimento Enunciativo.
Introdução
O presente artigo apresenta os resultados da minha dissertação (Medeiros, 2016), analisando
discursos sobre língua e gênero. Começo pela apresentação das principais noções mobilizadas na
análise, com base na Análise do Discurso pecheutiana (doravante AD), para em seguida apresentar
o corpus selecionado e a análise.
Análise do Discurso: noções fundamentais
Para compreender o recorte da análise aqui apresentado, ao menos quatro noções
mobilizadas pela AD são fundamentais: Formação Discursiva, posição de sujeito, acontecimento
enunciativo e língua.
A concepção de Formação Discursiva de Pêcheux é fundada sobre a noção de formação
ideológica: “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa
conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito”
(Pêcheux, [1975] 2009, p. 147, grifos do autor). Formação ideológica quer dizer, segundo Haroche,
Pêcheux e Henry ([1971] 2007, p. 26), “um conjunto complexo de atitudes e de representações que
não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a
posições de classes em conflito umas em relação às outras”. Uma mesma formação ideológica
1 Doutoranda em Linguística na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil.
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
comporta diferentes formações discursivas, não havendo ponto pacífico em nenhuma delas: tanto a
formação ideológica quanto a formação discursiva são permeadas por conflitos. Partindo dos
pressupostos de que os enunciados deslizam, os saberes se compartilham, os sentidos não são fixos
e a alteridade está presente desde a entrada do sujeito na linguagem, é possível compreender os
conflitos como inerentes a qualquer formação.
O sujeito se identifica com uma formação discursiva pelo viés da forma-sujeito, conceito
que Pêcheux ([1975] 2009) toma de Althusser ([1974] 1978) e que diz respeito à “forma de
existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais” (Althusser, [1974] 1978, p.
67 apud Pêcheux, [1975] 2009, p. 150). A forma-sujeito, para Pêcheux ([1975] 2009), realiza a
incorporação-dissimulação do interdiscurso: é através dela que, elaborando seu dizer no fio do
intradiscurso, o sujeito seleciona dizeres do interdiscurso para deles se apropriar (afetado pela ilusão
de que aqueles dizeres são seus) e apaga os outros dizeres possíveis dos quais seu dizer se descola,
reforçando a ilusão de estar na origem do sentido.
A noção de forma-sujeito introduz também a de tomada de posição, “compreendida como o
efeito, na forma-sujeito, da determinação do interdiscurso como discurso-transverso ” (Pêcheux,
[1975] 2009, p. 160). Pêcheux ([1975] 2009) teoriza também sobre as modalidades da tomada de
posição, ou diferentes modos de se identificar com os saberes de dada FD, resultantes do
desdobramento da forma-sujeito: a identificação plena, a contra-identificação e a desidentificação.
A identificação plena caracteriza o discurso do bom sujeito, uma superposição do sujeito do
discurso ao sujeito universal (a forma-sujeito) da formação discursiva, reduplicando os saberes da
FD sem questioná-los. A contra-identificação caracteriza o discurso do mau sujeito, que contesta,
duvida e se afasta dos saberes da formação discursiva com a qual está identificado – sem chegar a
desidentificar-se, no entanto. Já a desidentificação acontece quando o sujeito se desloca de uma FD
a outra, deixando de se identificar com os saberes da antiga para se identificar com os da nova.
Indursky (2008) propõe que, mais do que um desdobramento da forma-sujeito, o que ocorre
é uma fragmentação. Essa diferente perspectiva se deve à multiplicidade de posições-sujeito que a
forma-sujeito pode assumir: desdobrá-la em apenas três modalidades não daria conta de todas, que
se multiplicam à medida que o sujeito se aproxima ou se afasta da forma-sujeito que organiza os
saberes daquela FD. O que determina o surgimento de uma nova formação discursiva é a irrupção,
dentro dessa possível mobilidade entre as diferentes posições, de uma nova forma-sujeito, que não
mais se identifica com os saberes de sua FD e passa a dizer aquilo que, dentro dessa FD, com suas
diferentes posições-sujeito, não pode ser dito.
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Courtine ([1981] 2009) define a posição de sujeito como a relação que se estabelece entre
um sujeito enunciador (que se apropriou dos saberes daquela FD, articulando-os como se fossem
seus) e o sujeito do saber da FD (que reúne seus saberes centrais). As possíveis variações dessa
relação, sempre segundo Courtine, produzem os diferentes efeitos-sujeito no discurso.
Quanto ao acontecimento enunciativo, este é proposto por Indursky (2008) como
diferenciação do acontecimento discursivo. Com base em Pêcheux ([1983] 1999), Indursky (2003)
caracteriza o acontecimento discursivo como uma ruptura da inscrição na ordem da repetibilidade.
Por ordem da repetibilidade, entende-se a linearização dos saberes que o sujeito efetua em seu
discurso, gerando uma formulação própria e trabalhando com o repetível. O acontecimento
discursivo, rompendo essa ordem, instaura um novo sentido, até então impossível; “faz trabalhar a
memória do dizer, a estrutura, o repetível, provocando um reordenamento no que pode ser dito”
(Indursky, 2003, p. 115). Ao mesmo tempo, a ordem da repetibilidade permanece lá, ressoando,
pois não é possível apagar nem a memória nem o sentido-outro.
Em texto posterior, Indursky (2008) apresenta uma diferenciação entre o acontecimento
discursivo e acontecimento enunciativo. Para a autora, o acontecimento enunciativo se dá quando
novos saberes adentram no domínio de uma FD, provocando a irrupção de uma nova posição de
sujeito em conflito com a forma-sujeito daquela FD. A autora frisa que o acontecimento enunciativo
está relacionado ao afrontamento e à fragmentação da forma-sujeito. Esse acontecimento promove
não uma ruptura, mas uma coexistência tensa e conflitante.
Finalmente, a perspectiva da AD sobre a língua considera a relação entre história e língua
sob um ponto de vista materialista, no qual interessa o efeito das relações de classe sobre as práticas
linguísticas (Pêcheux, [1975] 2009, p. 22). Para Pêcheux ([1975] 2009), as relações capitalistas
desenvolvem uma luta entre “realizações” dessa língua: o que interessa em seu estudo é como as
diferenças se reinscrevem nas diferenças de sentido, o que conduz a direções diferentes
determinadas pelos interesses ideológicos que estejam em jogo.
Assim, o autor afirma que:
o sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o
revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e
para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir
disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a língua se apresenta,
assim, como a base comum de processos discursivos diferenciados, que estão
compreendidos nela na medida em que, como mostramos mais acima, os processos
ideológicos simulam os processos científicos. (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 81).
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Reconhecendo a permanência de um sistema que rege a língua, Pêcheux ([1975] 2009)
retoma Henry ([1977] 1992) para explicar a autonomia relativa da língua: são as leis internas que
regem esse sistema e que, em sua totalidade, constituem o objeto da Linguística. Essas leis
importam para a teoria pecheutiana porque constituem a base dos processos discursivos: o sujeito
não se serve acidentalmente da língua para expressar suas atividades cognitivas; pelo contrário, o
discurso está atrelado à língua de forma constituinte, não existindo sem ela. Ainda que a língua,
sendo a mesma para o revolucionário e o reacionário, seja indiferente à divisão e à luta de classes, a
recíproca não é verdadeira: as classes a utilizam de modo determinado, principalmente na luta
política. Pêcheux ([1975] 2009, p. 82) salienta que isso não significa que existam “línguas de
classes” com suas próprias “gramáticas de classes”. Pelo contrário: a língua aparenta unidade, e é
sob essa aparência que ela autoriza a divisão. É nela que se desenvolvem as contradições
ideológicas constituídas pelas relações contraditórias que os processos discursivos, inscritos em
relações ideológicas de classes, mantêm entre si. Além de identificar as relações entre o modificável
e o permanente, interessa a Pêcheux compreender a língua enquanto materialidade do discurso,
trabalhando-a em sua contradição e historicidade.
Outra reflexão pertinente sobre a língua no campo da AD é a de Leandro Ferreira, que
explora a língua em seu espaço não categorizável, de onde eclodem a falha, a ruptura, a falta.
Sustentando a evidência do sentido e do sujeito como decorrentes do efeito de evidência da língua,
a autora trabalha com a língua enquanto “sistema instável e heterogêneo” (Leandro Ferreira, 2000,
p. 24), reconhecendo que nela há um espaço que escapa à gramatização, a uma “estruturação lógico-
matemática categórica” (Leandro Ferreira, 2000, p. 28). Esse espaço seria o lugar de resistência da
língua, que põe em questão o ideológico, bem como seu efeito de evidência (Leandro Ferreira,
1996). O estatuto de equivocidade da língua, por sua vez, é reconhecido “como um princípio
constitutivo que deixa marcas na forma como ela se organiza e como incorpora para o seu âmbito o
que lhe é próprio” (Leandro Ferreira, 1996, p. 49). A língua, voltada ao equívoco, apresenta
contradição no próprio modo como está ligada à história e aos sujeitos falantes.
Além disso, o que comumente pode ser classificado como pontos de dúvida, de indefinição,
mau uso, má compreensão, pode aqui ser interpretado como “formas de resistência” (Leandro
Ferreira, 2000, p. 67): assume-se que a língua, em sua opacidade, dispõe de mecanismos de
resistência, o que dificulta enquadrá-la de maneira categórica. Isso não significa que a língua seja
uma entidade solta e livre de amarras: há uma tensão permanente entre liberdade e coação. Se, por
5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
um lado, existe a possibilidade de escape, por outro existe a necessidade de ordenamento, o que
reforça a explanação de Pêcheux a respeito da autonomia relativa da língua.
Movimento de Análise
Analisar o movimento feminista pelo viés da Análise do Discurso permite uma leitura
particular sobre a problemática questão do sujeito do feminismo: podem ser vários, ou melhor,
podem se apresentar diversas posições de sujeito. É possível esboçar uma proposta de delineamento
de uma formação discursiva feminista que leve em consideração a multiplicidade de saberes e
posições de sujeito que a constituem.
Partindo da definição inicial de Pêcheux, penso sobre o que pode e deve ser dito no âmbito
de uma formação discursiva feminista. Procurando uma similitude entre as demandas que variaram
de época a época – o direito ao voto; a autonomia sobre o corpo e os direitos reprodutivos; a
inserção sem ônus no mercado de trabalho; a representatividade da diversidade, dos diferentes
modos de ser mulher; o direito de escolha (Pinto, 2003, 2010; Pedro, 2005; Martins, 2015) –,
proponho a luta pelos direitos das mulheres como saber central e, assim, constituinte da forma-
sujeito dessa formação discursiva. Quais direitos e quais mulheres será a questão de análise que
delineará as diferentes posições de sujeito.
Começo a análise pelo que denominei, para fins metodólogicos, de discurso institucional. As
sequências discursivas foram retiradas da Lei Federal Nº 12.605, de 3 de abril de 2012, do Decreto
Estadual Nº 49.994 (Rio Grande do Sul, 2012), de 27 de dezembro de 2012, e da Lei Estadual Nº
14.484 (Rio Grande do Sul, 2014), de 30 de janeiro de 2014.
SD1: Lei Nº 12.605 Determina o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas. A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte
Lei: Art. 1oAs instituições de ensino públicas e privadas expedirão diplomas e certificados com a flexão de gênero
correspondente ao sexo da pessoa diplomada, ao designar a profissão e o grau obtido. (BRASIL, 2012).
Na SD1 não há referência explícita à questão da língua, ainda que o assunto seja
tangenciado pela flexão de gênero. Identifico nessa SD um pré-construído que se adere aos saberes
da gramática, que prevê nas estruturas de flexão de gênero da língua a visibilidade profissional
feminina. E, assim como na gramática, há uma correspondência entre sexo e gênero que não
problematiza a questão nem pelo viés da identidade nem pelo viés da língua: o gênero corresponde
6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ao sexo, e essa correspondência deve ser respeitada na emissão dos diplomas, dando ênfase à
distinção (ainda que binária) entre feminino e masculino.
SD2: Decreto Nº 49.994 Art. 1º Fica instituído o uso da linguagem inclusiva de gênero nos atos normativos, no que couber, nos
documentos e nas solenidades do Poder Executivo Estadual. Art. 2º Entende-se por linguagem inclusiva: I - a utilização de vocábulos que designem o gênero masculino apenas para referir-se ao homem, sem que seu
alcance seja estendido à mulher; e II - nos textos escritos ou falados, toda referência à mulher deverá ser feita expressamente utilizando-se, para
tanto, o gênero feminino. Art. 3º A menção aos cargos deverá observar o gênero de seu ou de sua ocupante, respeitada a condição
feminina ou masculina. (RIO GRANDE DO SUL, 2012).
Já na SD2 tanto a questão da língua quanto a do gênero são mais explicitamente abordadas.
Quanto ao gênero, identifico uma convergência aos discursos de representatividade feminina ao se
postular que a menção ao gênero feminino é imprescindível, contrariando o postulado gramatical de
neutralidade abrangente da forma masculina. Se os saberes gramaticais são confrontados no que se
refere ao gênero, eles ressoam na apresentação normativa, que determina como e o que se deve falar
e escrever, de uma linguagem inclusiva. Se, por um lado, o decreto é significativo por
institucionalmente reconhecer e ressaltar linguisticamente a participação feminina, por outro, ao
destacar os gêneros masculino e feminino, não se abre brecha para questionar o binarismo de
gênero, que figura não como identidade, mas como “condição”.
SD3: Lei Nº14.484 Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, entende-se por linguagem inclusiva de gênero o uso de vocábulos
que designem o gênero feminino em substituição a vocábulos de flexão masculina para se referir ao homem e à
mulher. Art. 2.ºPara os fins do disposto nesta Lei, são objetivos da linguagem inclusiva: I - a inclusão dos gêneros feminino e masculino, com as respectivas concordâncias, na designação, geral ou
particular, dos cargos, dos empregos e das funções públicas e dos postos, patentes e graduações; II - a não predominância, na elaboração de quaisquer documentos, mídias e outros veículos de divulgação, de
um gênero sobre o outro, ainda que sustentada em uso do costume ou das regras gramaticais da língua
portuguesa; III - a disseminação do uso dos dois gêneros, para os casos de pluralização, ao invés do uso do gênero
masculino; IV - a utilização do gênero feminino para toda referência à mulher; V - a não utilização do termo “homem”, para fins de referência a pessoas de ambos os sexos, substituindo pela
forma inclusiva “homem e mulher”; e VI - contribuirpara uma cultura de igualdade de gênero, por meio da linguagem inclusiva. (RIO GRANDE
DO SUL, 2014).
7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Para a análise da SD3, alguns pontos são pertinentes. Um deles é a convergência entre
práticas e objetivos; nos itens I a V do Art.2º, são apresentados os modos linguísticos de prática da
linguagem inclusiva, através da concordância de gênero e do uso expandido de dois gêneros; já no
item VI, há um deslizamento em que a linguagem inclusiva passa a figurar não como um fim em si,
mas como uma estratégia para que se alcance uma cultura de igualdade de gênero. Interessante
observar que esse deslizamento é acompanhado por uma quebra no paralelismo por meio da
mudança de classe gramatical: se até então eram os substantivos (“inclusão”, “não predominância”,
“disseminação”, “utilização”, “não utilização”) que descreviam a prática da linguagem inclusiva,
sua função é descrita por um verbo (“contribuir”). Entendendo que os itens de I a VI são
complementos de “são objetivos da linguagem inclusiva”, a repetição de “linguagem inclusiva” no
item VI, que poderia ser classificada como uma falha na coesão textual, pode ser uma pista de um
raciocínio circular, no qual a linguagem inclusiva tem confundidas sua função, sua aplicação e sua
existência.
Se na SD2 a neutralidade gramatical era combatida sem ser explicitamente mencionada, na
SD3 encontramos os saberes gramaticais reconhecidos como pré-construídos a serem enfrentados:
“ainda que” o uso e a gramática postulem a predominância de um gênero sobre o outro, a proposta
de linguagem inclusiva visa a combatê-la. A gramática, assim, figura como um saber cuja
legitimidade é reconhecida, mas que ainda assim pode ser contestado. No entanto, é possível
identificar na redação da Lei uma contradição marcada pela organização sintática: ainda que a
mulher seja incluída num nível lexical, seu papel é sintaticamente secundário, como vemos em
“homem e mulher”. Se no item II há uma abertura para criticar as amarras gramaticais, priorizando
a inclusão do gênero feminino, essas mesmas amarras se impõem na sequência.
Da análise das três SDs, é possível afirmar que todas trabalham com a categoria de gênero
enquanto pré-construído, no qual se enquadram a figura masculina e a figura feminina (nessa
ordem), linguisticamente marcadas pela concordância de gênero, sem que se cogitem neutralidade
ou não binarismo. A língua, dessa forma, já apresentaria em sua rigidez gramatical as estruturas
morfológicas (como a vogal de desinência de gênero) necessárias e suficientes para a promoção da
linguagem inclusiva: para falar aos homens, usam-se pronomes masculinos; para as mulheres,
pronomes femininos; para grupos onde se integram os dois gêneros, pronomes masculinos e
femininos, mantendo a posição masculina como primária e a feminina como secundária.
As propostas apresentadas dentro daquele que denominei de discurso militante caminham
num sentido diferente, como se pode ver nas seguintes sequência, recortadas do texto Deixando o X
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
para trás na linguagem neutra de gênero, assinado por Juno e publicado em agosto de 2013 (com
atualizações em setembro e novembro de 2014), no blog Batatinhas2, que se apresenta como
“Perspectivas trans fora da binária”:
SD 4: os gêneros das pessoas não-binárias costumam ser muito mais difíceis de explicar às pessoas, de forma que
“não ser”, “ser nenhum dos dois”, ou ser qualquer um deles de forma não-normativa (bigênera, multigênera,
pangênera, etc) será algo encarado como uma invenção, uma tolice, etc, porque estas experiências são
apagadas, e estão sempre na margem. É certamente mais complicado explicar a alguém que você não é nem
homem, nem mulher do que explicar que você é homem ou mulher, apesar de não assim terem te designado no
nascimento. Estas dificuldades demonstram no geral como o sistema está orientado no sentido de preservar uma estrutura
rígida, de dois gêneros. Todas as práticas que retornam a estas afirmações são dificuldades encaradas porque
organizamos o mundo ao redor destas duas categorias. Por todos esses motivos, é importante perceber que construções neutras de gênero são importantes para tornar
o mundo mais vivível às pessoas trans* não-binárias, e que elas ocupam um local importante nesta discussão
sobre neutralidade e sobre o uso da linguagem demarcada. Em nossos cotidianos, as marcações de gênero e as
tentativas de torná-las neutras ou melhores frequentemente falham nesse quesito específico, como em “todas e
todos”, “homens e mulheres”, “senhoras e senhores”, “masculino e feminino”, “todos/as”, “srs(as)” etc.
(JUNO, 2013).
O que destaco nesta SD, em primeiro lugar, é um posicionamento de discordância com o
discurso institucional, dentro do qual as propostas de neutralidade são insatisfatórias, visto que
mantêm o binarismo e não abrangem as pessoas que não se encaixem nas categorias rígidas de
feminino ou masculino. O não binarismo, inexistente nos trechos selecionados do discurso
institucional, ocupa papel central na SD4. A neutralidade de gênero não visaria apenas a combater
um suposto sexismo estrutural da língua, mas também a reconhecer que existem grupos outros que
precisam ser incluídos de forma não binária num sistema que tende ao binarismo. Assim, são
apresentadas algumas alternativas:
SD5: Utilize generosamente termos neutros como “pessoa”, “indivíduo”, etc. para retirar o gênero marcado
diretamente. Coloquialmente, qualquer palavra serve. Ela partiu > A pessoa partiu / essa pessoa partiu A casa dela > A casa da pessoa Todas as presentes> Todas as pessoas presentes Quantas temos aqui? >Quantas pessoas temos aqui? [...] Minha irmã > A pessoa minha irmã Tua irmã > A pessoa sua irmã / A pessoa que é sua irmã Nossa irmã > A pessoa nossa irmã (Nota: O português provavelmente não oferece uma forma melhor de fazer isso com palavras como a acima. O
que podemos fazer é literalmente sugerir a desgenerificação ao propor que “irmã” se refere a “pessoa”.
Como a construção não é usual, ela já impõe um motivo.)
2 Disponível em: <https://naobinario.wordpress.com/>. Acesso em: 25 fev. 2016.
9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Aquelas que ganharam estão liberadas para ir > Quem ganhou pode ir / Aquelas pessoas que ganharam estão
liberadas para ir. (JUNO, 2013).
As sugestões apresentadas caminham no sentido de incluir sem determinar quem se abrange
nessa inclusão: ao não se referir nem a mulheres nem a homens, a forma “pessoas” teria o potencial
de abarcar a totalidade da diversidade de gêneros sem incluir explicitamente nenhum deles. A
modificação que é proposta na língua se limita ao terreno do léxico e da sintaxe: à sintaxe
tradicional da frase, é acrescentada uma palavra que fugiria, de modo quase conciliador, do
binarismo imposto pela flexão de gênero. A língua aqui, mais uma vez, é negociável até certo
ponto: muda-se parte de sua disposição, mas não a sua estrutura morfológica.
Considerações Finais
No discurso institucional, a língua em si não é identificada como machista, basta que
saibamos usá-la, manipulando as possibilidades que ela apresenta. A língua é em parte dominante
(pois suas estruturas devem ser respeitadas) e em parte dominada (pois seu uso pode ser modificado
para atender a certos propósitos). No entanto, exemplos deste uso são marcados pela contradição, na
qual identificamos o furo da língua, o escape, o não sistematizável. Delineamos, assim, a posição
Institucional Binária (PS-IB)3.
No discurso militante, o não binarismo de gênero aparece como pré-construído, e parece
haver consenso quanto ao papel da língua de fugir do binarismo ao se referir às pessoas. Delineando
que o discurso militante sobre língua se agita em torno do não binarismo, delineamos a posição
Militante de Transgressão Sintática (PS-MTS).
Os saberes que caracterizam cada posição podem ser assim descritos: a PS-IB, embora
impulsionada por uma proposta de linguagem inclusiva, não se afasta do binarismo de gênero,
propondo uma língua que inclua homens e mulheres – apenas. Marcada por contradição, essa
posição oscila entre uma proposta de transgressão das regras sintáticas no momento em que teoriza
sobre a linguagem inclusiva e a manutenção das mesmas regras no fluir da escrita. Desse modo,
disfarçada por uma intenção de inclusão, reproduz os saberes tradicionais de binarismo de gênero e
subordinação feminina. Quanto à PS-MTS, esta está inserida no discurso militante e adota os
saberes do não binarismo de gênero, mais próxima da manutenção das regras sintáticas e
3 Em minha dissertação (Medeiros, 2016), a análise de outros trechos permitiu que mais posições fossem delineadas,
não apresentadas aqui por se tratar de um recorte.
10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
morfológicas, transgride apenas dentro dos limites da sintaxe, de modo que sua contestação ao
binarismo de gênero só pode ser percebida no conjunto da frase.
Delineadas essas posições, identificamos, com base em Indursky (2008), um acontecimento
enunciativo a partir da posição de sujeito identificada como militante, visto que insere na formação
discursiva feminista saberes que não se contentam com a inclusão da mulher, postulando o não
binarismo. A emergência de novos discursos sobre língua e gênero age, assim, na reorganização dos
saberes e posições dentro da formação discursiva na qual se inscrevem. Se o próprio da formação
discursiva é delinear o que pode e deve ser dito dentro do seu domínio de saberes, o acontecimento
enunciativo de um novo modo de expressão, que confira destaque linguístico a grupos até então
invisibilizados (mulheres e/ou pessoas não binárias, a depender da posição de sujeito) propõe que se
considere um delineamento diferente: não apenas o que pode e deve ser dito, mas também como
pode e deve ser dito. É por isso que, embora o debate seja marcado por pluralidade de saberes, é
possível afirmar que, numa formação discursiva feminista, o como se pode e deve dizer tem se
firmado como um saber que circula lado a lado com aquilo que se pode e se deve dizer.
Referências
ALTHUSSER, Louis. Resposta a John Lewis. In: ______. Posições-1. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1978.
BRASIL. Lei Nº 12. 605, de 3 de abril de 2012. Determina o emprego obrigatório da flexão de
gênero para nomear profissão ou grau em diplomas. Casa Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12605.htm>. Acesso em: 10 jan.
2016.
COURTINE, Jean-Jacques. (1981) Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado
aos cristãos. Tradução de Cristina de Campos Velho Bircket al. São Carlos: EdUFSCar, 2009
HAROCHE, Claudine; PÊCHEUX, Michel; HENRY, Paul.(1971) ASemântica e o corte
saussuriano: língua, linguagem, discurso. Tradução de Roberto LeiserBaronas e Fábio Cesar
Montanheiro. In: BARONAS, Roberto Leiser. Análise do Discurso: apontamentos para uma
história da noção-conceito de formação discursiva. São carlos, SP: Pedro & João Editores, 2007, p.
13 - 32.
HENRY, Paul. (1977) A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. Tradução de Maria
Fausta Pereira de Castro. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992.
INDURSKY, Freda. Unicidade, Desdobramento, Fragmentação: Trajetória da noção de sujeito em
Análise do Discurso. In: MITTMANN, Solange; GRIGOLETTO, Evandra; CAZARIN, Ercília
(Orgs.). Práticas discursivas e identitárias: sujeito e língua. 1ª ed. Porto Alegre: Nova Prova, 2008,
p. 9-33.
11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
______. Lula lá: estrutura e acontecimento. Organon, Porto Alegre: UFRGS, v. 17, n. 35, p. 101-
121, 2003.
JUNO. Deixando o X para trás na linguagem neutra de gênero. In: Batatinhas, agosto, 2013.
Disponível em: <https://naobinario.wordpress.com/2014/11/01/deixando-o-x-para-tras-na-
linguagem-neutra-de-genero/>. Acesso em 18 dez. 2015.
LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Da ambigüidade ao equívoco: a resistência da língua nos
limites da sintaxe e do discurso. 1ª ed. Porto Alegre: Editora da Universidade-UFRGS, 2000
______.O estatuto de equivocidade da língua. In: Lima, Marília dos Santos e Guedes, Paulo. (Org.).
Estudos da linguagem. 01ed. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1996, v. 10, p. 39-50.
MARTINS, Ana Paula Antunes. O Sujeito “nas ondas” do Feminismo e o lugar do corpo na
contemporaneidade. Café com Sociologia, 2015, v. 4, n. 1, p. 231-245.
MEDEIROS, Laís Virginia Alves. Essa língua não me representa: discursos sobre língua e gênero.
104 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2016.
PÊCHEUX, Michel. (1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de
Eni Puccinelli Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa e Silvana
Mabel Serrani. Campinas, Ed. Pontes, 2009.
______. (1983) Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et alii. Papel da memória. Tradução de
José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica.
História, v. 24, n.1, 2005
PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Revista de Sociologia e Política,
Curitiba, v. 18, n. 36, jun. 2010, p. 15-23.
______. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
RIO GRANDE DO SUL. Lei Estadual Nº 14.484, de 30 de janeiro de 2014. Dispõe sobre a
utilização da linguagem inclusiva de gênero no âmbito da Administração Pública Estadual.
Assembleia Legislativa. Disponível em:
<http://www.al.rs.gov.br/filerepository/repLegis/arquivos/LEI%2014.484.pdf>. Acesso em: 10 jan.
2016.
______. Decreto Nº 49.994, de 27 de dezembro de 2012. Estabelece a utilização da linguagem
inclusiva de gênero nos atos normativos, nos documentos e nas solenidades do Poder Executivo
Estadual. Assembleia Legislativa. Disponível em:
<http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=588
84&hTexto=&Hid_IDNorma=58884>. Acesso em: 10 jan. 2016.
The event of inclusive language: a discursive analysis Abstract: This work, supported by Pêcheux’s discourse analysis, presents the results of a
dissertation defended in the year 2016. With the objective of analyzing how discourses on language
and gender are used and relate to one another in different spaces, I selected texts presented in laws
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
and booklets referring to inclusive language (classified for methodological purposes as institutional
discourses) and texts published in online media of feminist militancy that discuss these proposals
(classified as militant discourse). The following notions were important for the development of this
study: discursive formation, subject position and enunciative event, as well as the notion of
language proposed by Pêcheux’s discourse analysis and considering its relative autonomy and its
potentiality as resistance. Based on this analysis, I identified four different subject positions,
delimited by the way they relate to the knowledge of gender and language and including the
possibilities of binarism or non-binarism, syntactic and/or morphological modifications, adherence
or resistance to grammatical rules. Finally, I propose that inclusive language, when adding
questions about how one should say (as well as what one can and what one should say) to the
Feminist Discursive Formation, be an enunciative event within this Formation.
Keywords: Inclusive language. Language. Gender. Discursive Formation. Enunciative event.