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O CAIPIRA: O JECA E O BURRO
RUBENS DE MORAIS SILVA1
Introdução
A maioria de nós, brasileiros de hoje, tem no sangue, na cultura e na memória, algo de
velhos parentes de origens diversas, como indígenas, negros e migrantes, que viveram a vida
caipira em antigas áreas rurais. A região do Vale do Paraíba é um dos berços desta Cultura
Caipira, tendo, em Taubaté, seu primeiro grande núcleo urbano.
Taubaté, cidade de 374 anos, tem mais de 300 000 habitantes e se classifica entre as
melhores cidades brasileiras, tanto no PIB (Produto Interno Bruto) como no IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano). Localiza-se na privilegiada região do Vale do Paraíba, no eixo
Rio-São Paulo, entre a Serra da Mantiqueira e o Sul de Minas, e o Litoral Norte do Estado de
São Paulo. Mas, embora tenha forte expressão cultural, não tem boas aparências para visitantes.
Esta cidade se destacou na História do Brasil, como ponto de partida de bandeiras que
penetraram os sertões brasileiros. Ela fundou outras cidades, explorou ouro, escravizou
indígenas e negros. Foi a principal cidade produtora de café desta região. Sediou, por isso, em
1906, o Convênio de Taubaté, onde foram tomadas decisões na grande crise do café,
beneficiando grandes produtores, que começaram a investir em gado e leite, abrindo estradas
entre zonas rurais e urbanas, e grandes comércios e indústrias na cidade. O braço negro,
desprezado, foi substituído pela corrente migratória europeia, dentre outras. Crescia o êxodo
rural, o processo de urbanização, e a miséria da população negra.
Perfil Cultural da Cidade
A parte central da cidade de Taubaté é marcada por igrejas seculares e de rica
arquitetura, com destaque para a Catedral, o Convento Santa Clara e a Igreja de Santa
Terezinha. Outras estão fechadas e abandonadas pelo poder público.
Perto da Catedral, fica o Mercado Municipal, inaugurado em 1889, com a conhecida
Feira da Barganha, e um grupo musical de chorinho às sextas-feiras. Na parte baixa fica a Bica
do Bugre que traz memórias indígenas Goitacazes, com a linda escultura mítica de Nhá Chica,
tudo muito abandonado. A cidade tem vários e bons museus, como o Museu Histórico, o Museu
de História Natural, o Museu do Mazzaropi e o museu do Sítio do Pica-Pau Amarelo de
1 Mestre em História Cultural pela UnB – Docente aposentado pela UCB/DF
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Monteiro Lobato. A poucas quadras da Catedral, localiza-se o Teatro Metrópole (1919). E, um
pouco mais adiante, a velha Estação Ferroviária, hoje usada só para transporte de cargas. Parte
dela foi transformada na Estação do Conhecimento, um centro cultural muito bonito, mas pouco
usado. Na periferia, há um centro artesanal conhecido como Casa dos Figureiros, assumido
mais por mulheres, perto do Alto do Cristo. Na beira da estrada para Campos de Jordão, há o
distrito italiano do Quiririm, com seus restaurantes de boa qualidade e comidas típicas.
A memória africana marcou presença durante longo tempo na Festa de São Benedito.
Em frente do Convento Santa Clara, há um cruzeiro, usado para ofertas de terreiros afros. Pouco
abaixo, há um pequenino espaço dedicado a Firmino, um santo popular que teria sido
assassinado neste local há uns 200 anos. Da cultura africana, surgiu recentemente o grupo
denominado À Sombra de um Baobá, que apresenta lindos espetáculos no Teatro Metrópole.
Cultura Caipira
Taubaté é uma cidade onde culturas rurais e urbanas ainda se misturam bem, o que se
pode ver claramente na feição e gingado de pessoas, mesmo em ruas centrais da cidade. É uma
cultura caipira que se revela ainda no jeito de falar, nos hábitos alimentares, na religiosidade, e
outras tradições familiares. Há vários hotéis-fazendas, restaurantes de comida caipira,
pesqueiros, espaços de dança, Folias do Divino, Festas Juninas e outras tradições.
Também foi criado aqui o Projeto Sertões de Taubaté, iniciativa de Silésio Francisco
Tomé, um funcionário público municipal. É uma viagem de ônibus de um dia, a baixo custo,
percorrendo uns 80 km da região rural, com animação de sanfoneiro, visitando casarões do café,
senzalas, sítios tradicionais, alambiques, lugares históricos da Revolução de 1932, de filmagens
de Mazzaropi, igrejas e cemitérios antigos, mina de grafite, e outros. O custo inclui um bom
almoço e dois fartos cafés, no início e no fim da trajetória. Nas paradas, há locais de repouso,
serviços sanitários de boa qualidade, famílias acolhedoras, contadoras de histórias, barracas de
produtos como cachaça, licores, doces, dando aos viajantes aquele orgulho do sangue caipira.
Taubaté se orgulha ainda de dois personagens da cidade que extrapolam a cultura local:
Monteiro Lobato, aqui nascido (1882-1948), e Amácio Mazzaropi (1912-1881) que adotou,
como sua, esta cidade.
Monteiro Lobato e seu Jeca
Monteiro Lobato teve um grande mérito em seu empenho na divulgação da leitura, para
adultos e crianças, e na luta pelo desenvolvimento nacional. Nascido em Taubaté em 1882, foi
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para São Paulo onde se formou em Direito. Em 1911 voltou para Taubaté, morando na fazenda
herdada de seu avô, o Visconde de Tremembé, onde hoje funciona o Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Foi escritor, pintor, editor, adido comercial do Brasil em Nova Iorque. Em 1936, com sua
publicação O Escândalo do Petróleo, denunciou a corrupção política das autoridades
brasileiras. Devido a isto, em 1941, ficou preso por 90 dias no Presídio Tiradentes de São Paulo,
por ordem do presidente Getúlio Vargas. Faleceu em 1948 em São Paulo, onde então morava.
Seu destaque foi a literatura. De seus livros, teve grande divulgação o conhecido Urupês
(1918), onde criou o personagem do Jeca Tatú. Nesta obra, Lobato fala do Jeca, que já tinha
sido apresentado no artigo Uma Velha Praga (LOBATO, 1914:3), onde dizia:
Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade,
inadaptável à civilização, mas que vive a beira dela na penumbra das zonas
fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando, [...] vai ele fugindo em
silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão [...] de modo a sempre conservar-se
fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-
se [...] o caboclo é uma quantidade negativa.
Em Urupês (1957:290) Lobato diz:
Pobre Jeca Tatú! Como és bonito no romance e feio na realidade! Da terra só quer a
mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado pela natureza.
Basta arrancar uma raiz e deixá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade ambiente.
Em 1919, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, Rui Barbosa se referiu à obra de Lobato,
ao falar sobre A Questão Social e Política no Brasil (BARBOSA, 2020):
Senhores: Conheceis, porventura, o Jeca Tatu, dos Urupês, de Monteiro Lobato, o
admirável escritor paulista? Tivestes, algum dia, ocasião de ver surgir, debaixo desse
pincel de uma arte rara, na sua rudeza, aquele tipo de uma raça que, “entre as
formadoras da nossa nacionalidade”, se perpetua, “a vegetar de cócoras, incapaz de
evolução e impenetrável ao progresso?
Mas Lobato, ao ler o livro O Saneamento do Brasil, de Belisário Pena, mudou sua
interpretação do Jeca. Descobriu que ele era um pobre homem doente, explorado pelos
políticos. Na introdução da 4ª. edição de Urupês (1919), Lobato tentou se retratar pela má
impressão deixada em sua visão do Jeca Tatú. E, arrependido, escreveu em palavras de simples
conversa, e com certa ironia:
Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças tremendas. Está
provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É
essa bicharada cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro
que não. Assim, é com piedade infinita que te encara hoje o ignorantão que outrora só
via em ti manparra e ruindade. Perdoa-me, pois, pobre opilado, e crê no que te digo
ao ouvido: és tu isso se tirar uma virgula, mas ainda és melhor coisa desta terra. Os
outros, os que falam francês, dançam o tango, fumam havanas e, senhores de tudo, te
mantêm nessa geena infernal para que possam a seu favor viver vida folgada à custa
do teu trabalho, esses, meu caro Jeca Tatu, esses têm na alma todas as verminoses que
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tu tens no corpo. Doente por doente, antes como tu, doente só do corpo. (LOBATO,
1919)
Em 1910, o farmacêutico Cândido Fontoura, de Bragança Paulista, criou o famoso
Biotônico Fontoura, para combater a ancilostomose, conhecida como Amarelão. Ele disputava
espaço com outro medicamento, importado dos EUA, o Emulsão de Scott. Monteiro Lobato,
amigo de Cândido, criou então a imagem do Jeca Tatuzinho transformado pelo medicamento.
Trabalharam juntos, divulgando um almanaque sobre este personagem, que acompanhava o
medicamento. As crianças adoravam esta história em quadrinhos, e o Biotônico.
Amácio Mazzaropi
Mazzaropi (1912-1981) nasceu de famílias migrantes, portuguesa da parte de pai e
italiana da parte de mãe, chegadas ao Brasil em 1900. Seu pai, Bernardo Mazzaropi se casou
com Clara Ferreira e foram viver em São Paulo, onde nasceu Amácio Mazzaropi (1912-1981),
na Rua Vitorino Carmilo, 61, no Bairro Santa Cecília. Em crise financeira, seus pais vieram
morar em Taubaté, onde Bernardo e Clara trabalharam na CTI, Companhia Taubaté Industrial,
antiga indústria desta cidade, propriedade de Felix Guisard. Amácio, com 4 anos, começou a
conviver com seu avô materno que gostava muito de tocar viola e dançar. Com o falecimento
do avô, foi morar uns anos com um tio em Curitiba, trabalhando numa loja de tecidos. Voltou
depois para São Paulo. Trabalhou um tempo na CTI, acima citada, em Taubaté. Desenvolveu
práticas teatrais, poéticas, musicais, e atividades cômicas. Enquanto Lobato era filho e neto de
famílias de fazendeiros, com carreira intelectual e política, e grandes condições financeiras para
criar suas empresas, que trouxeram contribuições culturais para nossa cidade, Mazzaropi era
filho de trabalhadores migrantes, com grandes dificuldades de sobrevivência. Tornou-se, enfim,
um reconhecido comediante na TV, e um bem sucedido cineasta que produziu 33 filmes, sendo
ator protagonista em todos eles, e dirigindo a maioria deles. Estes filmes têm traços comuns da
vida caipira que atraíram milhões de brasileiros e colaboram ainda hoje na consciência cultural
da população de Taubaté, e de muitos lugares do Brasil.
O Jeca de Mazzaropi
Ao vermos estes filmes, constatamos que o Jeca de Mazzaropi é vencedor e vitorioso.
É uma pessoa que tem suas contradições onde vive, mas é seu líder e amigo de todos, como
mostram principalmente os filmes Jecão... um Fofoqueiro no Céu (JECÃO..., 1977), Jeca e Seu
Filho Preto (JECA e seu..., 1978), Jeca Tatu (JECA Tatu, 1959). Vez ou outra, Mazzaropi
assume nestes filmes o papel de bom cowboy, que parecia se inspirar em filmes norte-
americanos, com belos cavalos, cavalgadas, tiros, bandidos, botecos, cachaça e muita briga.
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Os vizinhos de Jeca também são Jecas. É gente simples, que vive da produção de
subsistência, curtindo a natureza, com algumas criações. Embora sempre vivam como Jecas,
confiam na sorte grande do dinheiro, mas também veem o dinheiro como causa de intrigas,
roubos e outras violências. A comunidade conhece o que é fome, doença, dificuldades, mas a
solidariedade aparece a todo momento, e Jeca nunca fica sozinho. Ele gosta muito de dormir,
porque fez a escolha de trabalhar para sobreviver, e não para ficar rico. É um sujeito muito
esperto, e não aceita ser escravo no trabalho. Em tempos eleitorais, ele passa das mãos de um a
outro coronel, dependendo das vantagens que recebe, e seu o voto é um negócio sempre seguido
pela sua comunidade. Enfrenta todo tipo de gente: políticos, candidatos eleitorais, padres,
freiras, pais ou mães de santo, advogados, fazendeiros, coronéis, intelectuais, gente bonita,
cheirosa, e demais que nada pensam no povo, a não ser em períodos eleitorais. A figura
prepotente, corrupta e enganadora dos coronéis, aparece em Jeca Tatu (JECA Tatu, 1959),
Tristeza do Jeca (TRISTEZA..., 1960), O Jeca e a Freira (O JECA e a..., 1967); Uma Pistola
para Djeca (UMA PISTOLA..., 1969), O Jeca Macumbeiro (O JECA Macumbeiro..., 1974),
Jecão... um Fofoqueiro no Céu (JECÃO..., 1977), Jeca e Seu Filho Preto (JECA e seu..., 1978).
Mazzaropi denuncia estes coronéis, mas, em Jeca Tatu (JECA Tatu, 1959), torna-se também
um deles, embora não desenvolva, no roteiro, que tipo de coronel ele era. Parece antes indicar
que o Jeca também teria capacidade de ter mais poder e ser um tipo de autoridade diferente.
Em Jeca e a Freira (O JECA e a..., 1967), O Jeca Macumbeiro (O JECA Macumbeiro...,
1974), Jeca Contra o Capeta (JECA contra..., 1975), Jecão... um Fofoqueiro no Céu (JECÃO...,
1977), Jeca e Seu Filho Preto (JECA e seu..., 1978), Jeca não aceita algumas ideias de religião.
Critica religiosos católicos, espíritas, protestantes, macumbeiros e candomblecistas. Discute até
com Deus, com Jesus Cristo, com os santos, em Jecão... um Fofoqueiro no Céu (JECÃO...,
1977), nunca perdendo sua confiança na justiça lá de cima, que nunca falha. Seu Deus não é
tão divertido, pois não gosta de futebol e arrasta pé, mas o Diabo também não é tão feio, pois
lá ele tem muitas mulheres bonitas. Mazzaropi tem argumentos, muita calma, bom humor, e
não perde nenhum embate. Tudo se reveste de muitos causos, ditados populares, e aquela
malícia discreta de piadas indiretas que diverte os adultos, mas respeita ingênuos ou infantis,
como é o caso do Sr. Pinto, em O Jeca e a Égua Milagrosa (O JECA e a..., 1980).
Nestes filmes, os assuntos referentes à mulher e ao casamento mereceriam um tratado à
parte. Ele apresenta todo tipo de mulher: bonita, feia, inteligente, ignorante, atrasada, avançada,
moderna, maliciosa, interesseira, namoradeira, e fiel até o fim. Sempre há uma moça bonita em
disputa, e atrás de cada casamento, um interesse político, ou de heranças. Nada impede misturar
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pobre com rico, preto com branco, e muito menos religiões, em caso de casamento. Jeca mexe
inclusive na questão do divórcio. Casamento era um bom negócio, mas negócio com rico nunca
dá certo. Os Jecas acabam valorizando sempre mais sua própria gente. Casamento não é algo
tão puro, como se costuma pensar. Os pobres também têm suas crises e traições. Sempre é
tempo de recomeçar, pois o importante é ser feliz. As regras e normas de religião são muito
relativizadas. Há uma moral mais simples que a moral discriminatória das religiões. A relação
hierárquica e piramidal da família, com o chefe da família no alto, nem sempre é a referência
principal. Embora as mulheres desses filmes sejam normalmente tratadas duramente pela
tradicional cultura machista, há personagens femininas que reagem e exigem seus direitos. É
uma cultura em transição para a modernidade, com intenso êxodo rural.
Mazzaropi insiste em Jeca e Seu Filho Preto (JECA e seu..., 1978), que a sociedade foi
estruturada, colocando cada pessoa em seu lugar. Mas deixa claro que o mundo está mudando
os costumes. A moral dos padres mostra muita contradição com a nova realidade de mundo,
como mostra a conversa que tem com o vigário em Jeca contra o Capeta (JECA contra...,
1975). O lugar de cada um, muito próprio de uma sociedade hierárquica, vai mudando. As
pessoas começam a transitar entre as classes sociais, alterando as relações na família, nas
religiões, na política, nos lugares de lazer, na roça e na cidade. A situação muda, mas sempre
levamos algo de nossa cultura de raiz, como o mostra o projeto Projeto Sertões de Taubaté,
acima referido. Mas, apesar das mudanças da cidade que espanta o Jeca, como em sua passagem
por São Paulo onde vê lindas mulheres numa piscina, em Jeca Tatu (JECA Tatu, 1959), ele
representa a resistência com resiliência. Suas críticas ao chamado desenvolvimento são diretas.
Na cidade ou na roça, o Jeca sempre continuará disputando seus valores, despertando em nós
raízes culturais diferentes, mas não inferiores. Uma destas culturas, explorada por Mazzaropi,
é a paixão pelo futebol. Nisso, Jeca tem muito a ver com o Burro de Taubaté, mas nada a ver
com ignorância.
O Burro da Central
Ao entrevistar Jefferson da Silva Lindegger Ribeiro2, ele fez sua narrativa contando a
história interessante do time de futebol da cidade:
2 JSLR casou-se com Ana Clara Silva Lindegger Ribeiro. Está concluindo seu curso de História, uma de suas
paixões de conhecimento. Era, até o início da pandemia atual, um dos responsáveis pela loja e pelo museu do
Esporte Clube Taubaté, num shopping da cidade. Levado por seu pai que faz trabalhos sociais em benefício do
esporte, tornou-se torcedor fanático do time. E, junto à Ana Clara, foi membro fundador e, por três anos, tornou-
se presidente de uma torcida organizada do time, conhecida como Movimento Caipira Os Jecas.
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O Esporte Clube Taubaté (ECT), nascido em 1º de Novembro de 1914, é um dos mais
velhos do Brasil. Seu primeiro diretor foi João Rachou. Seu primeiro jogo foi no dia
25 de Dezembro deste mesmo ano, contra a Associação Atlética dos Palmeiras, no
antigo campo de futebol de Taubaté, conhecido como Campo do Bosque, local hoje
perto do centro da cidade. Ali passava antigamente o Córrego Saguirú, usado por
mulheres para lavar roupas. O Palmeiras já era um dos melhores times da América do
Sul. Taubaté perdeu de 5x1, mas saiu satisfeito, pois o futebol era importante para a
cultura local. O diretor do ECT escolhia jogadores nos times de várzea das periferias.
Descobriu José Ludguero, vulgo Jajá, um dos primeiros jogadores negros a integrar
um time profissional no Brasil. Foi um excelente jogador que ajudou o time a se
projetar na região. De 1914 a 1947, Taubaté foi três vezes campeão do interior o
Estado de São Paulo. Neste ano de 1947, o ECT se profissionalizou juntamente com
os demais grandes times brasileiros, que antes eram todos amadores.
Jefferson continua contando que, em 1954, jogando contra o time Comercial de Ribeirão
Preto, o ECT ganhava de 6x3, no Campo do Bosque. Por descuido da diretoria, havia um
jogador em campo que não estava devidamente registrado na Federação. Por esta razão, Taubaté
perdeu os pontos deste jogo. A partir daí, o time ficou conhecido como Burro da (Ferrovia)
Central (do Brasil). O fato veio à tona, por vingança do editor chefe da Gazeta Esportiva. Num
jogo anterior, o jornalista foi atingido por laranjas da torcida contra um juiz que prejudicara o
time. Na manchete do jornal, o time foi chamado de Burro da Central. De início, a torcida ficou
ofendida, mas logo resolveu adotar o burro como seu mascote. Até hoje, quando há jogo no
novo campo, ao lado das arquibancadas é possível, às vezes, ver e ouvir o trem da Central do
Brasil, passando bem pertinho. Sempre apita generosamente em homenagem ao time. As
torcidas dizem que, quando isto acontece, o time ganha o jogo. Na campanha financeira da
construção deste novo campo, no início dos anos 60, Horton Cunha e Abraão Alfredo Ortiz
contam que Mazzaropi fez uma filmagem aérea sobre a área do futuro campo, convocando a
torcida a colaborar na construção do hoje chamado Joaquinzão, homenagem a Joaquim de
Morais Filho, presidente do ECT na época da inauguração do estádio (1968).
O Movimento Caipira Os Jecas, torcida criada por Jefferson, sua esposa, amigos e
amigas, gostam muito de Mazzaropi e reconhecem seu interesse pelo futebol em seus filmes,
principalmente no “O Corintiano” (O CORINTIANO, 1966), que traz cenas reais de jogos do
Corinthians, do Esporte Clube Taubaté e do Paulista de Jundiaí. Neste filme, o barbeiro
corintiano (Mazzaropi) entrou em encrencas com um são-paulino e um palmeirense. O barbeiro
arrumou o apoio de um burro preto e branco, aumentando a disputa, amenizada porém pela
canção de Elpídio dos Santos, Meu Burrinho, uma canção de ninar onde o corintiano diz ao seu
burrinho preto e branco que durma tranquilo, pois o italiano (palmeirense), não vem.
Jefferson acrescenta ainda que o conhecido Burro da Central foi jogar uma temporada
pelos estados nordestinos no ano de 1959. Na época, foi uma proeza de viagem, acompanhada
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de longe pelos rádios da população de Taubaté. Enfrentou os melhores times da região. Foram
11 jogos, ganhando 7, empatando 3 e perdendo apenas um. A imprensa explorou bastante o
nome do time, bastante simpático para a cultura local de seus jegues: Burro da Central.
Outras opiniões de torcedores do ECT
Outros dois torcedores e uma torcedora3, membros desta torcida, também colaboraram
com este nosso trabalho, respondendo a 4 questões:
1 - Vou falar três palavras e você faz o comentário que desejar. As palavras são: Caipira, Jeca
e Burro:
MJDMC: Caipira: Para mim, esta palavra já perdeu o estereótipo de um
indivíduo sem conhecimento, bruto, etc. Caipira me remete à história do nosso
povo, seja ela de contribuição ao que conquistamos ou de tradição ao que
temos até hoje [...] Jeca é uma verdadeira representação de como um homem
rural têm seus valores, estilo de vida e visão de mundo [...]. Burro gerou um
novo conceito para mim. A mesma palavra usada para definir alguém como
tolo, me faz colocá-la em um sentido de boa exibição de algo, podendo ser o
meu querido time Taubaté, ou o asno (popularmente chamado de Burro) com
suas próprias qualidades e características.
GGS: Caipira é o homem rural, agricultor, ligado ao campo, homem simples com fé,
conhecedor da natureza e da sabedoria que vem dela. O Jeca é uma personalização do
homem caipira, personagem criado com o intuito de maldizer esse homem brasileiro,
ideia do Jeca ser um homem preguiçoso, aquele que não tem etiqueta, a mentalidade
de o homem do campo ser um homem atrasado, aquele que não se enquadra no
ambiente urbano modernizado. O Burro vejo como uma figura histórica do
companheiro, seja do homem caipira, sertanejo e até de Jesus (ref. Ao burro do
Evangelho). [...] na história do Brasil teve papel fundamental [...] é comum ouvir
histórias dos antigos e retratarem o animal como importante ferramenta para o
trabalho.
HSC: Caipira, Jeca são vocábulos aparentemente quase iguais [...] simbolizam uma
característica do ser humano, com seu comportamento peculiar, isto é, simples e
matreiro dentro do convívio de uma comunidade social. O Caipira, apelido carinhoso
atribuído a um cidadão comum, ordeiro, trabalhador, com pouca instrução, mas a vida
lhe dá experiência necessária para superar as adversidades, passando de uma
simplicidade a uma esperteza peculiar de todo homem do campo. Burro, o animal,
denominação dada a um ser inteligente, não sei até que ponto, consta a história
cristã, que ele carregando em seu lombo, descansou Jesus!
2- Como você vê o Esporte Clube Taubaté (ECT) na história desta nossa cidade? Que
contribuição traz à cultura da cidade?
3 MJDMC: MARIA JÚLIA DOLCINOTTI MOURA CAMPOS, 23 anos – Autônoma e estudante de
História/Geografia; GSS: GUILHERME GAUDINO DA SILVA, 27 anos – Coordenador Pedagógico de História
na rede pública, torcedor do ECT e diretor de bandeira da Torcida os Jecas; HSC: HORTON SIDNEY CUNHA,
80 anos – Aposentado, ex-presidente do conselho deliberativo do ECT, atualmente é um dos membros do
Conselho. Profissão - Coordenador Pedagógico de História na rede pública. Torcedor do Esporte Clube Taubaté e
diretor de bandeira do Movimento Caipira Os Jecas.
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MJDMC: Vejo o Esporte Clube Taubaté como a essência da cidade, pois nos trouxe
e ainda traz, momentos de alegria (ou tristeza), efervescência, apoio, comunidade etc.
Juntando pessoas com o mesmo desejo de ver um bom jogo de futebol, que vai muito
além de noventa minutos. E.C.T. é uma tradição que conseguiu unir diversas coisas
em uma só causa.
GGS: O ECT é um importante personagem histórico para a cidade de Taubaté, passa
por um período importante no desenvolvimento da cidade, acompanhando um
processo de industrialização nacional pelo qual o Brasil iniciava, e mais tarde, com o
seu desenvolvimento e caracterização da região vale paraibana, com a criação da
rodovia Presidente Dutra e a consolidação de uma região de grande concentração de
indústrias e importante eixo econômico brasileiro. O ECT acompanha todo esse
movimento, desde sua criação, dos jogos no Campo do Bosque, desempenha papel
importante na geografia da cidade e na criação de uma herança futebolista na cidade
[...] acredito que hoje tenha perdido espaço entre os corações taubateanos por conta
da popularização dos times "grandes" da capital, porém, mesmo com uma queda de
popularidade, ainda sobrevive firme e forte. Não há um dia que você dê uma volta
pelo centro da cidade e aviste pelo menos umas três pessoas vestindo o manto alvi-
azul [...] acredito que até aqueles que se dizem torcedores de outros times, guardam
carinho pelo Burro da Central, por ser o time da cidade etc.
HSC: O E.C.Taubaté é um patrimônio histórico da nossa cidade, desde a sua fundação
tem contribuído para o desenvolvimento na área esportiva dentro de um contexto
cultural [...]. O nosso querido Alviazul para Taubaté trouxe a motivação e amor
aventurado no coração dos torcedores, sendo renovado em cada geração,
conquistando um espaço nas lides esportivas [...] traz o benefício de atrair jovens,
sonhadores em serem atletas profissionais, muita das vezes os retirando de caminhos
negativos e prejudiciais à sua formação pessoal.
3 - O que representa para Taubaté a figura do Mazzaropi?
MJDMC: [...] Nos trouxe anos de história e aprendizado com seus filmes, declarações,
jeito de viver e fazer o que desejava. Tornou-se inspiração e marcou gerações com
suas personagens.
GGS: O Mazzaropi é mais valorizado fora da cidade do que aqui mesmo [...] por meio
do meu vô que o conheci, ele por ser caipira se identifica com os personagens
representados pelo Mazzaropi, seja desde os filmes em que trata a vida na roça como
os filmes das cidades [...] pois ele ilustrou e popularizou a imagem da Jeca-Tatu,
colocou o caipira em evidência nacional, de uma maneira caricata mas que traz a
essência do caipira, homem simples, com fé na religião e que, por ser simples e
esperto, acaba que, no fim das contas, se dá bem e resolve os problemas, pelo menos
na maioria das vezes.
HSC: Mazzaropi para Taubaté representa mais uma contribuição à história da cidade
no decorrer do seu tempo. Artista completo, único, com ideia avançada, conseguiu,
ao longo de sua carreira, tornar-se o nosso Charles Chaplin tupiniquim e com méritos
[...]. Pelo que conquistou, se constitui um ícone do empreendedorismo
cinematográfico [...] a Câmara de Vereadores lhe conferiu o título de Cidadão
Taubateano. Em seus filmes sempre que possível salientou nossa cidade em toda parte
desse Brasil e até no exterior. Mazzaroppi é tudo isso e muito mais!
4 - O que representa para você a cultura caipira de Taubaté?
MJDMC: A cultura caipira em Taubaté me representa algo de extremamente
importante. Aqui, desde que nasci, conheço elementos culturais de algum de nossos
antepassados ou mesmo dos que estão presentes, pois Taubaté vem de seus moradores
caipiras, que deram vida ao que é hoje, tudo que se tornou típico dos Taubateanos.
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GGS: O contato que tenho com a cultura caipira se dá pelo meu avô, o conhecimento
da natureza, das músicas sertanejas, das histórias do campo, das brincadeiras e a vida
dura no trabalho na roça. Meu vô é de MG, veio para Taubaté para trabalhar na
indústria, acredito que grande parte dos caipiras daqui também fazem parte desse
processo. Pelo grande crescimento urbano, hábitos foram sendo substituídos,
maneiras de viver, trabalhar, enxergar o mundo também foram modificados. Taubaté
hoje é uma cidade praticamente urbana e industrial, isso gera um apagamento da
cultura caipira no nosso dia-a-dia, porém, quando se questiona qualquer pessoa logo
reconhece que o caipira é o personagem mais importante da história da cidade. Por
vezes pode não ser tão valorizado, mas é sempre lembrado. Mesmo com um
apagamento de sua cultura, é comum vermos as permanências que ainda resistem,
como características linguísticas, o olhar para o céu e deduzir como irá ficar o tempo,
a contemplação da natureza, mesmo que cada vez mais escassa, etc. São elementos
que, pelo menos, eu consigo perceber em praticamente todas as pessoas que fazem
parte do meu cotidiano
HSC: A cultura caipira de Taubaté, representa, para mim, a manifestação de uma gente
simples e humilde, bem simplório mesmo, que, ao longo do tempo, foi se
caracterizando de uma forma típica cabocla, isto é, própria daqueles que nasceram e
tem sua vida na roça. Esse povo sabe como viver, trabalhar para seu sustento familiar.
Diverte-se e é sempre solidário nos momentos difíceis. Dotado de princípios básicos
de amor ao seu semelhante e bem-estar comum. A cultura caipira é enraizada no
sentimento de amor, simplicidade e solidariedade. Concluindo, penso que, com o
passar do tempo, essa cultura não resistirá às consequências da vida urbana, muito
menos na suburbana onde o povo simples vive!
Base Teórica
Burke (2010:26), ao estudar realidades europeias, assinala que a passagem do século
XVIII para XIX, principalmente na Alemanha, levou ao desparecimento das culturas populares
na região. Diante deste fenômeno, estudiosos começaram a pesquisar essas culturas e sua
função social. A cultura parece cravar, na história, as raízes de um povo, e o que era considerado
pouco erudito, tornava-se importante para a construção de identidades.
A relação entre cultura e política, conforme Burke (2008:136-137), mostra que as
classes subalternas (conceito de Gramsci) também constroem a História. Ele cita o exemplo do
indiano Ranajit Guha que tentou reescrever a história da Índia a partir dessas classes. É uma
forma de enfrentar a manipulação cultural da política antidemocrática como a usada pelos
militares no Golpe de 64, na Copa do Mundo de Futebol em 1970, ou as obras mestras de
Richard Wagner nos campos de concentração de Hitler.
Sharpe (BURKE, 2011:40-41) procura entender a visão cultural das camadas sociais
que são colocadas nas partes mais baixas da pirâmide social, citando também Edward
Thompson. Este dizia que o povo não é só um problema a ser resolvido pelas autoridades
políticas. Sharpe prefere entender o povo na interpretação de E. Thompson, como a classe
trabalhadora, interpretada pelas teorias marxistas consideradas no contexto do avanço do
capitalismo. E, citando E. Thompson, Sharpe continua dizendo: “Estou procurando resgatar o
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pobre descalço, o agricultor ultrapassado, o tecelão do tear manual ‘obsoleto’, o artesão
‘utopista’[...] eles viveram nesses períodos de extrema perturbação social, e nós, não.”
Sharpe (BURKE, 2011:60-61) diz ainda: “A história vista de baixo pode desempenhar
um papel importante neste processo... os membros das classes inferiores foram agentes, cujas
ações afetaram o mundo (às vezes limitado) em que eles viviam”.
Fressato (2011:185) analisa o contexto do Brasil da época de Mazzaropi, dizendo que
“em 1956, quando Juscelino Kubitschek, grande propulsor da ideologia nacional-
desenvolvimentista, assumiu a presidência, criou-se um clima de esperança, [...] promessa de
finalmente superar os problemas sociais advindos do atraso econômico e cultural [...]”. A autora
mostra que este presidente combatia a visão fechada da oligarquia rural, com seus produtos
voltados só para consumo externo. Mas o presidente Juscelino Kubistchek também não atendia
a população rural. Diz Fressato (2011:185) que “o grande êxodo rural distanciou ainda mais o
meio urbano do rural, pois à medida que os centros urbanos se desenvolviam, as características
da vida rural não se alteravam e as reformas não eram implementadas”.
Em seu governo, surgiram movimentos rurais e urbanos, com o recorte ideológico
trabalhista. JK pregou o desenvolvimento nacionalista que exigia de todos e todas muito
trabalho. O trabalho era o instrumento de independência do Brasil, contra a dependência
oligárquica rural. Fressato (2011:191) trouxe a memória de JK que pregava com seu próprio
exemplo: “Aprendi, desde cedo, que é ... trabalhando é que se honra a Deus e se dignifica a
vida”. Enquanto isso, JK criou enormes dívidas e dependência internacional pelos muitos
empréstimos que fez para implementar seu plano de metas.
No segundo período, pós JK, em que Mazzaropi trabalhou seus filmes, entramos na
Ditadura Militar do Golpe de 64. Segundo Fressato (2011:185), foi um tempo marcado por
novo desenvolvimentismo, com grandes projetos urbanos e industriais, mas alta carga de
impostos e arrocho salarial. O imperialismo norte-americano teve grande influência, com a
chegada de empresas internacionais que eliminaram as pequenas e médias empresas brasileiras,
assim como organizações trabalhistas tachadas como comunistas. Veio a forte repressão da
Ditadura Militar de 1964, muito explorada pelo Cinema Novo e pouco por Mazzaropi.
Os filmes do Mazzaropi se localizam na transição campo-cidade: êxodo rural,
urbanização, industrialização, consumismo, liberdade burguesa, novo entendimento da
organização do trabalho, mundo laico e muitas formas de exploração trabalhista. Ele inicia sua
produção em 1952, dentro do desenvolvimentismo brasileiro dos anos 50, e teve alta produção
durante a Ditadura Militar (1964-1985), falecendo em 1981. Mazzaropi expressa bem a cultura
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caipira do Vale do Paraíba, construída entre os séculos XVII e XVIII, tentando mostrar a
realidade de vida de populações rurais, suas culturas e desconfianças sobre o chamado
desenvolvimento e culturas urbanas emergentes. Em seus filmes, pessoas de cultura rural
rejeitam a pressão política e econômica dos coronéis, resistindo na boa preguiça e no trabalho
de subsistência, contra o progresso acelerado e consumista do desenvolvimento capitalista.
Os filmes do Jeca de Mazzaropi provocavam muito riso e descarregavam tensões, num
período de muita ditadura e censura. Esses filmes iam além do cinema conhecido como
Chanchada, pois não parava na alienação útil ao sistema político dominante, mas revelava o
perfil caipira dos explorados. Não se identificava com os filmes do Cinema Novo que buscava
raízes mais profundas dos problemas brasileiros e incentivavam a revolta popular.
Mazzaropi considerava o Cinema Novo muito complicado. Mas um dos grandes nomes
deste cinema revolucionário, Glauber Rocha, admirava o talento de Mazzaropi e a qualidade de
sua produção (FRESSATO, 2011: 223-224). Em parte, talvez possamos considerar Mazzaropi
um predecessor do Cinema Novo, no sentido de mostrar realidades do trabalhador caipira,
vaidades e falsidades das classes oligárquicas rurais, e a corrupção das instituições que as
sustentavam. Ele conseguia fazer seu admiradores chorarem na hora certa, relaxarem diante de
pressões, e avançarem com suas espertezas. Os caipiras aprendiam a resistir, muitas vezes em
silêncio, mas sempre desconfiando e discordando das classes dominantes.
Hoje vemos os fracassos históricos do capitalismo neoliberal surgido nos anos 80.
Mazzaropi conseguiu desmascarar as contradições das estruturas sociais que dariam
sustentação a este projeto político e econômico, hoje falido. O capital, o latifúndio, o
consumismo, a corrupção, a manipulação religiosa, e a exploração trabalhista estão ali presentes
numa resistência cultural bem popular, sem moralismos, subterfúgios e ou falsos purismos.
Um dos maiores nomes da cultura brasileira, Gilberto Gil, bem expressou a importância
da Cultura Popular, no momento em que era empossado no cargo de Ministro da Cultura no
governo do Presidente Lula (GIL, 2020a). Disse que a Cultura tem o importante papel de
“contribuir objetivamente para a superação dos desníveis sociais, mas apostando sempre na
realização plena do humano [...] É um direito básico de cidadania, assim como o direito à
educação, à saúde, à vida num meio ambiente saudável”. E no lançamento da Programa Teia
Cultural (GIL, 2020b), continuava expressando sua visão da Cultura: “Queremos o centro do
palco, poder de decisão [...] e a criação de um circuito nacional que considerem o peso
econômico das economias criativas, o papel decisivo e fundamental da cultura...”.
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Qualquer outra visão de Cultura que não siga a lógica do Mercado, normalmente é
desprezada, como bem expressou Mazzaropi (WOLF, 2020) em uma entrevista:
Caipira é um homem comum, inteligente, sem preparo. Alguém muito vivo,
malicioso, bom chefe de família. A única coisa diferente é que ele não teve escola [...].
O problema é que as pessoas desprezam a verdade, preferindo correr atrás de ilusões,
das palavras bonitas, que é o caso de muitos discursos políticos. [...] O sujeito pode
ser preparado, mas pode também não ser inteligente. E tá cheio de burro diplomado
por aí. E tem caipira, sem diploma, muito inteligente, dizendo a verdade [...]. Eu
apenas mostro o problema, mas à minha maneira. Os inteligentes devem aproveitar,
transformar e dar a solução. Se são inteligentes, podem dar a solução. A mim, cabe
apenas apresentar o problema, não sou eu que vou dar a solução. Não sou político,
não tenho nada que solucionar problemas.
Mazzaropi, enfim, foi e é protagonista da comédia popular inteligente, que fala com seu
corpo todo, permanecendo sempre presente em nossa história. Mazzaropi não morre. Ele nos
ajudar a pensar a conjuntura em que vivemos, mesmo que nossos conhecimentos e nossa
consciência tenham hoje outros ingredientes e ferramentas mais estratégicas. Ele desmascara
as mentiras desta sociedade com simplicidade, e coloca o ser humano como fator preponderante
na construção de qualquer sistema social.
Considerações Finais
O ECT (Esporte Clube Taubaté) é uma das expressões taubateanas de resistência cultural.
Dificilmente, um grupo como este, tem vida tão longa, com tantos desafios. Ele é um sujeito
histórico que, como dizem nossos entrevistados, acompanhou a história da cidade e sua
população, com alegrias nas vitórias, e tristezas, nos momentos de derrota e dificuldades. Sua
resiliência transformou derrotas e deboches de uma imprensa mal intencionada, em troféu. O
Burro não só construiu nosso Brasil, como também levou no lombo o Filho de Deus.
Assim, o ECT cruzou a história do burro, sua força e inteligência, com a riqueza histórica
da cultura do Jeca, algo enraizado na população desta região do Vale do Paraíba. O Burro e o
Jeca foram ressignificados, alimentando nossa alma caipira que supera desprezos e
discriminações, e agrega moradores para enfrentarem desafios da cidade. As vitórias e derrotas
do Burro da Central refletem as boas e más memórias da história do povo taubateano.
Bem disse acima nossa entrevistada que futebol vai além dos 90 minutos. Penso também
que o campo é uma sala de aula onde se aprende a viver na sociedade. Futebol é como a vida
que precisa de muito treinamento, momentos fortes de jogo, e a busca constante de outras boas
jogadas, para atingir seus objetivos. Devemos saber montar bem o time das pessoas que fazem
conosco o jogo da vida, e ter muita clareza de nossos reais adversários. E também temos o direito
de definir as regras do jogo, como já dizia a velha democracia corintiana. Não somos mera
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torcida, ou jogadores passivos. Não vivemos só nas arquibancadas, pois também somos
jogadores e técnicos no jogo da vida.
O Burro da Central e o Jeca de querido Mazzaropi vão construindo assim nossas
identidades que fazem nosso ser caipira taubateano. Cada partida de futebol do ECT é um
capítulo de uma série, onde cada Jeca que somos, vai descobrindo seu caminho. Em 100 anos,
passaram gerações no ECT, assim como outras tantas gerações fizeram e fazem a história mais
que tricentenária de nossa querida cidade.
Como Caipiras, temos um DNA de convivência, solidariedade, trabalho, alegria, fé,
inteligência, força e uma boa preguiça pra relaxar. Os processos colonialistas e imperialistas de
hoje tentam apagar esta nossa história, menosprezando-a e deturpando seus valores. Mazzaropi,
por outro lado, por seus filmes sempre atuais e divertidos, desperta em nós o direito fundamental
de sermos cidadãos do jeito que somos, fazendo parte ativa do cenário de nossa cidade. E
torcemos, no grande jogo da vida, que ninguém seja deixado fora do campo, excluído por ser
simples, pobre, analfabeto de letras, trabalhador braçal, homem da roça ou de periferias.
Mazzaropi chama nossa atenção. Ele nos apontou muitos de nossos problemas em seus filmes.
Mas ele nos deixa o desafio de fazermos acontecer uma história mais bonita nesta cidade,
confiando a nós a busca de soluções.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/p_a5.pdf. Acesso em: 22
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_______. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 2010.
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FRESSATO, Soleni B. Caipira sim, Trouxa não: representações da cultural popular no cinema de
Mazzaropi. Salvador: EDUFBA, 2011.
GIL, Gilberto. Íntegra do discurso de posse do ministro da cultura Gilberto Gil, Folha de São Paulo,
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Acesso em: 20 out. 2020a.
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Ltda, 1975 (137 min), DVD 35mm.
JECA e seu filho preto. Direção: Berilo Faccio. São Paulo: PAM Filmes Ltda, 1978 (143 min),
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JECA Tatu. Direção: Milton Amaral. São Paulo: PAM Filmes Ltda, 1959. DVD (130 min), 35 min.
JECÃO, um fofoqueiro no céu. Direção Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner. São Paulo: PAM Filmes
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LOBATO, Monteiro. Uma Velha Praga. O Estado de São Paulo, São Paulo, ano XL, n. 13110, 12 nov.
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O JECA e a Égua Milagrosa. Direção: Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner. São Paulo: PAM Filmes Ltda,
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O JECA e a Freira. Direção: Amácio Mazzaropi. São Paulo: PAM Filmes, 1967. DVD (137min), 35mm.
O JECA Macumbeiro. Direção: Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner. São Paulo: PAM Filmes Ltda, 1974.
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TRISTEZA do Jeca. Direção: Amácio Mazzaropi. São Paulo: PAM Filmes Ltda, 1960. DVD (133 min),
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UM CAIPIRA em Bariloche. Direção de Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner. São Paulo: PAM Filmes
Ltda, 1971. 1 DVD (138 min), 35mm.
UMA PISTOLA para Djeca. Direção: Ary Fernandes. São Paulo: PAM Filmes, 1969. DVD (130 min),
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WOLF, José. O povo está preparadíssimo. Folha de São Paulo, 2 jul. 1978, nº 17987, Ano 57, Matéria
de capa do Folhetim. Disponível em:
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