Jeca tatu Monteiro Lobato Urupes

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Monteiro Lobato De sua obra Urupês

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Monteiro LobatoDe sua obraUrupês

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urupê = orelha de pau, fungo, pironga.

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O JECA TATU VELHA PRAGA

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A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o Argas o é aos galinheiros ou o Sarcoptes mutans à perna das aves domésticas. Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do Porrigo decalvans ...

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o parasita do couro cabeludo produtor da “pelada”, pois que onde ele assiste se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude, nua e descalvada. Em quatro anos, a mais ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos e das perobeiras milenárias ...

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Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças.

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A medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo a soma. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se.

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Chegam silenciosamente, ele e a “sarcopta” fêmea, esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos à ourela da saia - este já de pitinho na boca e faca à cinta.

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Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam ideia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza - se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias.Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte daquela paragem.

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Com a pica-pau, o caboclo limpa a floresta das aves incautas. Pólvora e chumbo adquire-os vendendo palmitos no povoado vizinho.

Depois ataca a floresta. Roça a derruba, não perdoando ao mais belo pau. Árvores diante de cuja majestosa beleza Ruskin choraria de comoção, ele as derriba, impassível, para extrair um mel-de-pau escondido num oco.

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Enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.

Eta fogo bonito!

Não há recurso legal contra ele. A única pena possível, e barata, fácil e já estabelecida como praxe, é “tocá-lo”.Curioso este preceito: “ao caboclo, toca-se”.Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala.

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Entrado setembro, começo das “águas”, o caboclo planta na terra em cinzas um bocado de milho, feijão e arroz; mas o valor da sua produção é nenhum diante dos males que para preparar uma quarta de chão ele semeou.

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O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cinquenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência às privações. Nem mais, nem menos.

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Caboclo

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Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígine de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia a soma, nada e põe de pé.

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Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se.

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Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie.

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Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo...

Seu grande cuidado é espremer todas as consequências da lei do menor esforço - e nisto vai longe.

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Quando a palha do teto, apodrecida, greta em fendas por onde pinga a chuva, Jeca, em vez de remendar a tortura, limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamelinha a água gotejante...Remendo... Para quê? se uma casa dura dez anos e faltam “apenas” nove para que ele abandone aquela?

Esta filosofia economiza reparos.

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“Por que não remenda essa parede, homem de Deus?”“Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?”Não obstante, “por via das dúvidas”, quando ronca a trovoada, Jeca abandona a toca e vai agachar-se no oco dum velho embiruçu do quintal - para se saborear de longe com a eficácia da escora santa.

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Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O mato o beira. Nem árvores frutíferas, nem horta, nem flores - nada revelador de permanência.Há mil razões para isso; porque não é sua a terra; porque se o “tocarem” não ficará nada que a outrem aproveite;porque para frutas há o mato; porque a “criação“ come;porque...

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“Não paga a pena.”Todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a pena. Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito se vive.

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O fato mais importante de sua vida é, sem dúvida, votar no governo...

Vota. Não sabe em quem, mas vota...

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... Aqui tratamos da regra e a regra é Jeca Tatu.O mobiliário cerebral de Jeca, à parte o suculento recheio de superstições, vale o do casebre. O banquinho de três pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamelas, tudo se reedita dentro de seus miolos sob a forma de ideias: são as noções práticas da vida, que recebeu do pai e sem mudança transmitirá aos filhos.

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O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção do país em que vive.

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Todos os volumes do Larousse não bastariam para catalogar-lhe as crendices, e como não há linhas divisórias entre estas e a religião, confundem-se ambas em maranhada teia, não havendo distinguir onde pára uma a começa outra.

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A ideia de Deus e dos santos torna-se jeco-cêntrica[... ] Uma torcedura de pé, um estrepe, o feijão entornado, o pote que rachou, o bicho que arruinou – tudo diabruras da corte celeste, para castigo de más intenções ou atos.Daí o fatalismo. Se tudo movem cordéis lá de cima, para que lutar, reagir? Deus quis...

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... o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.Só ele, no meio de tanta vida, não vive...

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JECA