Post on 26-Aug-2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS
DISCIPLINA: MONOGRAFIA FINAL
ORIENTADORA: PROFª. DRª.CARLOTA IBERTIS
DISCENTE: KAYK OLIVEIRA
O empirismo de Condillac no Tratado das Sensações: origem e limites do
conhecimento
Salvador 2012.2
KAYK OLIVEIRA SANTOS
O empirismo de Condillac no Tratado das Sensações: origem e limites do
conhecimento
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em
Filosofia da Universidade Federal da Bahia como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Bacharel em Filosofia.
Orientador (a): Prof. Dra. Carlota Ibertis
Salvador
2012.2
Agradecimentos
Aproveito esse espaço para manifestar meus sinceros agradecimentos a todos (as) que
estiveram presentes nessa importante etapa da minha vida. Aos citados, minha profunda
gratidão.
Agradeço ao meu Pai, Aloísio Júnior, sempre parceiro, amigo, cuja força foi
fundamental para que eu pudesse tocar meus estudos. Obrigado por tudo, em especial pelo
Pai/trocínio, um pouco que foi muito, pagou minhas fotocópias, transporte e cafezinhos.
Agradeço a minha mãe, Sueli, pelo incentivo em relação as minhas escolhas. As
palavras de consolo nos momentos mais turvos desde que sai de casa. As lições de respeito e
valor aos estudos e a educação. Mãe, exemplo de persistência, obrigado por tudo!
Agradeço a Mai pela leitura sempre entusiasmada e correções ortográficas da
monografia. Por toda sua disponibilidade em receber meus livros durante o semestre e por
todo apoio, conversas e curiosidades que contribuíram para escrita desse trabalho
monográfico.
A minha irmã Kayena, amiga com quem dividi os momentos difíceis ao chegar a
Salvador. Irmã que eu amo e que contribuiu muito para que eu realizasse meus estudos. A
minha irmã Iana pelo carinho e apoio, um doce de pessoa, sempre torcendo e incentivando o
irmão.
Agradeço a Lana Mércia com que dividi o processo de escolha pela filosofia e
compartilhei as angustias dessa caminhada. Sempre cuidadosa, torcendo, apoiando de maneira
incondicional desde os tempos do colegial. Mel, obrigado por toda sua cumplicidade.
Agradeço a Universidade Federal da Bahia por ter proporcionado morar na residência
universitária III, condição impar para que eu conduzisse meus estudos. Aos amigos (as) da
Residência, especialmente a Laiane e Soneca (Antônio) pelas músicas e prosas filosóficas na
madrugada regradas ao velho macarrão (sobrevivemos). A Lucy, pela sua amizade e apoio. A
meu camarada Jorge Bahia pelos almoços e jantas filosóficas no RU da vitória. Aos amigos
Juliomar Marques, Rodrigo Gottschalk e Gilson Senna pelas conversas. A turma de seminário
de pesquisa em 2012.1 cujas previas nos seminários contribuíram para dar forma a esse
trabalho. A querida amiga, Mariana Moreira, colega de turma e de pesquisa com quem dividi
e discuti as dúvidas condillacianas que ajudaram a enriquecer esse trabalho.
Agradeço ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) que
possibilitou o desenvolvimento da minha pesquisa nos últimos três anos e permitiu dar início
ao curso de francês através do (PROFICI). Agradeço ainda ao (CNPq) e à bolsa de pesquisa
que permitiu organizar minha biblioteca básica de filosofia e muito mais.
Agradeço especialmente a professora Carlota Ibertis por ter sido uma orientadora
extremamente presente durante toda a graduação. Obrigado pela oportunidade de realizar
minha iniciação científica lendo Condillac cujo trabalho desenvolvido foi condição de
possibilidade para construção dessa monografia. Muito obrigado pela paciência e
compreensão com as minhas dificuldades relacionadas ao texto. Obrigado pela profunda
atenção com a leitura sempre cuidadosa do texto em horário de almoço, por e-mail, ao final
das aulas, finais de semana, feriados e férias. Obrigado pelas problematizações inquietantes
nos nossos encontros e pelas correções sempre atenciosas da monografia, dos relatórios
parciais e finais do (PIBIC) e das comunicações. Agradeço de coração pelo seu exemplo de
atenção, respeito, cuidado, e rigor com o trabalho filosófico, deixaram boas lições.
Por fim, agradeço a Profa. Dra. Cláudia Bacelar Batista e ao Prof. Dr. Marco Aurélio
Oliveira da Silva por terem aceitado o convite para fazer parte da banca de defesa da presente
monografia.
Caminhante não há caminho o caminho se faz ao caminhar.
Edgar Morin
Resumo
O objetivo da monografia é os limites do conhecimento no empirismo forjado por Condillac
no Tratado das Sensações. Na busca de resolver o problema do conhecimento no terreno da
experiência e renovar todo o entendimento humano, Condillac defende na obra mencionada a
tese de que todas as nossas ideias e faculdades mentais derivam das sensações. De maneira
mais específica, a tese proposta por Condillac implica o reconhecimento de que ideias
particulares e gerais de objeto bem como às diferentes capacidades operativas: atenção,
memória, imaginação, comparação, juízo, etc. nada mais são do que sensações transformadas.
Essa tese, assim formulada, caracteriza o seu empirismo radical marcando uma diferença
fundamental entre o seu empirismo e aquele construído por Locke – filósofo do qual sua obra
é credora. Para ilustrar a tese mencionada, Condillac utiliza-se da ficção metodológica de uma
estátua de mármore que ganha vida gradativamente na medida em que a experiência ocorre.
Através dessa ficção, o filósofo explicita a contribuição especifica de cada sentido no que
concerne ao desenvolvimento mental do sujeito. Na medida em que essa ficção vai sendo
explorada, observamos o caráter peculiar da posição empirista do autor. Por outro lado, vemos
se configurar os limites do conhecimento que revelam em última instância a concepção de
metafísica subjacente ao Tratado das Sensações.
Palavras-chave: Sensações, Empirismo, Conhecimento.
Sumário
Introdução___________________________________________________________________ 08
Capítulo I - Tornar-se humano_________________________________________________ 13
1.1 Ficção da Estátua ______________________________________________________ 13
1.2 Sensações e gênese das capacidades operativas ________________________________ 19
1.3 Olfato e gênese das capacidades operativas ___________________________________ 21
1.4 Tato e gênese da reflexão _________________________________________________ 26
Capítulo II - Sensações e Ideias________________________________________________ 29
2.1 Conceito de Ideia _______________________________________________________ 29
2.2 Sensação e ideias do Olfato_______________________________________________ 30
2.3 Sensação e ideias da audição e paladar_______________________________________ 34
2.4 Sensações e Ideias da Visão________________________________________________ 36
2.5 Sensação e ideias do Tato_________________________________________________ 38
2.5.1Tato e sentimento fundamental__________________________________________ 38
2.5.2 Tato e sensação de solidez ____________________________________________ 39
Capítulo III - Objeto e verdade_________________________________________________ 45
3.1Visão e Tato: O problema de Molineux ______________________________________ 45
3.2 Sensações e ideia particular de um objeto_____________________________________ 52
3.2.1 Ideias sensíveis e verdades_____________________________________________ 56
3.3 Ideias intelectuais: de como uma ideia particular de objeto origina ideias gerais e
abstratas______________________________________________________________
57
3.4 Ideias abstratas e verdades ________________________________________________ 61
Capítulo IV - Valor e alcance do conhecimento ____________________________________ 64
4.1 Objeto e realidade ______________________________________________________ 64
4.2 A função prática do conhecimento __________________________________________ 71
Considerações Finais_________________________________________________________ 73
Referências Bibliográficas______________________________________________________ 75
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Introdução
No Tratado das Sensações Condillac defende a tese de que todos os nossos
conhecimentos e faculdades mentais derivam das sensações. Essa tese assim formulada
caracteriza o seu empirismo radical. Para demonstrá-la o filósofo faz uso da célebre ficção
metodológica da estátua de mármore que ganha vida gradativamente na medida em que a
experiência ocorre. A luz dessa ficção, o filósofo põe em marcha o seu método genético
analítico de investigação com propósito de traçar de maneira precisa a gênese das ideias e
capacidades operativas do sujeito. Para evidenciar essa gênese do desenvolvimento natural do
sujeito, Condillac realiza uma decomposição analítica da experiência que consiste em
considerar cada sentido de maneira isolada com vistas a examinar a contribuição de cada um
desses quanto ao tipo de ideia e capacidade operativa específica derivada da sua atividade.
Após essa etapa, o filósofo busca evidenciar como os sentidos colaboram reciprocamente
fornecendo os conhecimentos necessários para sobrevivência da estátua. Dessa maneira,
Condillac demonstra sua tese explicitando assim a sua posição anti-inatista radical na
tentativa de renovar à sua maneira todo entendimento humano.
Renovar o entendimento humano como quer Condillac significa aprofundar a
investigação filosófica iniciada por Locke, filósofo do qual a sua obra é credora e que
representava – para os pensadores das Luzes – uma verdadeira autoridade em relação à teoria
do conhecimento1. Como indica Quarfood, para os pensadores das luzes, Locke representava
o filósofo responsável por eliminar problemas metafísicos (QUARFOOD, 2002, pg. 90). Os
méritos de Locke derivam do seu esforço em resolver o problema do conhecimento no âmbito
da experiência. Ao combater a teoria das ideias inatas de Descartes a investigação de Locke
opera um giro em teoria do conhecimento. Qualquer passo fora do âmbito da experiência
caracterizaria uma solução ilusória acerca do problema do conhecimento (CASSIRER, 1994,
III, pg. 140). O entendimento humano e seus poderes devem ser conhecidos e delimitados de
maneira precisa com base na experiência. O propósito da pesquisa filosófica é “investigar
qual é a origem, a veracidade e a extensão do conhecimento humano” (LOCKE, 1999, pg.
21). Nessa direção, o filósofo encontra nas associações entre ideias o princípio explicativo de
toda vida mental do sujeito. A arquitetônica do conhecimento se ergue e se desenvolve a
partir de sensações simples que se combinam entre si permitindo ao sujeito formar ideias
1 Como expressa Voltaire em suas Cartas filosóficas, “após tantos especuladores que escreveram o romance da
alma, veio um sábio que escreveu modestamente sua história. Locke expôs ao homem a razão humana, como um
excelente anatomista explica os mecanismos do corpo humano” (VOLTAIRE, 2007, XIII, pg. 54).
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complexas, ou seja, ideias de objetos. Nesse ponto, indica-se que Condillac segue um
caminho semelhante ao de Locke e com base nas sensações e ligações entre ideias busca
explicar o desenvolvimento das ideias particulares, gerais e abstratas.
Embora a filosofia de Condillac derive da filosofia de Locke, a sua pesquisa não se
contenta em repeti-lo, pelo contrário, como afirma Monzani, o filósofo desenvolve sua
filosofia “através de uma síntese própria e original” (MONZANI, pg. 166). A fim de
apresentar aspectos que indicam a diferenciação entre ambos os autores e demonstrar a
consequente singularidade da investigação de Condillac posta em marcha no Tratado das
Sensações, a nossa análise toma por ponto de partida o conceito de reflexão apresentado por
Locke e às críticas que faz Condillac a esse conceito.
No Ensaio sobre o Entendimento Humano, Locke estabelece a experiência enquanto
fundamento do conhecimento humano (LOCKE, 1999, § 2 pg. 106). Entretanto, a noção de
experiência postulada por Locke não pode ser tomada como indica Cassirer enquanto um
processo “unitário e uniforme”. A noção de experiência em Locke se desdobra em dois
momentos fundamentais e distintos que aparecem entrelaçados na estrutura do nosso mundo
dos fenômenos (CASSIRER, 1979, III, pg. 201). Esse desdobramento na noção de
experiência revela que para Locke existem duas fontes das quais derivam a totalidade das
ideias no sujeito. A primeira se refere às observações dos objetos exteriores; a segunda diz
respeito às observações acerca das operações internas da mente. Nesse sentido, Locke
defende a tese de que “essas duas fontes, isto é, as coisas externas materiais, como objetos de
sensação, e as operações internas da nossa mente, como objetos de reflexão, são para mim, os
únicos princípios de onde nossas ideias originalmente procedem” (LOCKE, 1999, I, pg. 108).
Nessa direção fica estabelecido que as ideias não derivam de um deus e sim da experiência
interna ou externa. Os sentidos permitem receber as impressões e qualidades das coisas, por
exemplo, “branco, amarelo, doce amargo, duro”. A reflexão permite perceber os diferentes
estados da alma, sentimentos, operações mentais formando ideias que não derivam das coisas
exteriores, por exemplo, “as ideias de percepção, pensar, duvidar, acreditar, racionar,
conhecer, querer” (LOCKE, § 4 pg. 107). Assim, pode-se considerar que para Locke o que se
processa em nossas mentes são ideias de sensibilidade assim como ideias de reflexão
(YOLTON, 1993, pg. 230).
Frente a essas observações, chamamos atenção para o fato de a capacidade reflexiva ser
tomada por Locke enquanto uma capacidade operativa inata. Essa autonomia do âmbito
intelectual enquanto algo independente da experiência como quer Locke, será contraposta por
Condillac em sua investigação no Tratado das Sensações. Na leitura de Cassirer acerca dessa
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questão, o comentador esclarece que a filosofia francesa do século XVIII incide sobre esse
único ponto. Ela busca eliminar o resto de autonomia que Locke tinha concedido à reflexão
(CASSIRER, 1994, III, pg. 143). Nesse sentido, o conceito de reflexão fornece a chave para
compreendermos a nova perspectiva de investigação que será inaugurada por Condillac. A
esse respeito, diz o filósofo “Locke distingue duas fontes de nossas ideias, os sentidos e a
reflexão. Seria mais exato reconhecer apenas uma, seja porque a reflexão em seu princípio,
não é senão a própria sensação” (CONDILLAC, pg. 35). Quanto a essa questão, é interessante
observarmos as considerações de Monzani que lançam luz sobre a distinção entre Locke e
Condillac:
(...) ambos concordam que o dado originário, a partir do qual deve-se
iniciar a análise, está na sensação tomada como dado primeiro e
irredutível a partir do qual erige-se todo o edifício do conhecimento
humano. Distância porque para Condillac ao contrário de Locke, trata-
se, não de colocar esse dado irredutível, mas sim de explicar como a
partir dele advém a totalidade do conhecimento que o sujeito pode
atingir. Trata-se de examinar a produção da vida mental como um
todo. O projeto de Condillac, portanto, consiste em desvendar a
geração das operações mentais através de sua derivação, efetivamente
assinalada, a partir da sensação. (MONZANI, 1995, IV, pg. 168).
Essa afirmação expõe os limites da investigação lockeana ao combater o inatismo. Por
outro lado, revelam a perspectiva a ser trilhada por Condillac em sua investigação genética
que recusa o inatismo das faculdades da alma e revindica sua origem empírica. Essa
perspectiva genética seria, portanto, o que faltava em Locke para combater o inatismo. Nesse
ponto, vemos emergir o aspecto radical do empirismo de Condillac que põe em evidência a
tarefa do filósofo de explicar a gênese das capacidades operativas e dos conhecimentos a
partir de uma única fonte, as sensações.
Posto isso, fica estabelecido que o empirismo de Condillac assume certa especificidade
quando propõe-se eliminar o aspecto dicotômico interno/externo da experiência aprofundando
a investigação em torno de problemas que derivam da mesma orientação de Locke.
(MONDOLFO, 1963, pg. 10). Ao caracterizar o empirismo presente no Tratado das
Sensações, podemos então indicar o horizonte da nossa investigação no presente trabalho
monográfico. O objetivo da monografia consiste em assinalar a origem e os limites do
conhecimento no empirismo forjado por Condillac no Tratado das Sensações. Para cumprir o
que proponho, organizo o texto da seguinte maneira: Introdução, Iº, IIº, IIIº e IVº capítulos e
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por fim as considerações finais. Abaixo, um breve resumo do que temos exposto nos capítulos
que compõem essa monografia.
No primeiro capítulo examino o valor heurístico da hipótese ficcional da estátua
utilizada por Condillac no Tratado das Sensações. Quanto a essa questão, destacamos a
especificidade do método de investigação adotado e a singularidade dos resultados alcançados
pelo filósofo em sua pesquisa. Por conseguinte, mostraremos que há em Condillac certa
hierarquização entre os sentidos em termos de relevância cognitiva. Posto isso, nossa
investigação analisa a gênese das diferentes capacidades operativas da estátua com base nas
sensações derivadas de cada sentido específico. Nesse ponto, veremos: a) que as sensações do
olfato, audição, paladar, e visão possibilitam o desenvolvimento na estátua das mesmas
capacidades operativas com exceção da reflexão; b) que o tipo de atenção proporcionada pelo
tato é condição de possibilidade para o desenvolvimento da reflexão e a partir dessa
capacidade dar-se a possibilidade de representar objetos. Por essa razão, fica evidente que no
Tratado das Sensações Condillac outorga ao tato certa relevância cognitiva em relação aos
demais sentidos.
No segundo capítulo exponho a definição do conceito de ideia para Condillac. Em
seguida, passo ao exame da contribuição específica de cada sentido quanto ao tipo de ideia
derivada da sua atividade buscando indicar os argumentos utilizados pelo filósofo na tentativa
de combater o idealismo de Berkeley.
No terceiro capítulo analiso a posição de Condillac em relação ao problema de
Molineux. Em seguida, apresento como a estátua forma a ideia particular de um objeto. Em
relação a essa questão, retomaremos algumas das considerações já realizadas nos capítulos
precedentes só que dessa vez em uma perspectiva integrada. Enquanto expectadores, veremos
todo o processo de construção da ideia particular de um objeto para Condillac. Por
conseguinte, busco indicar o tipo de verdade derivada das ideias sensíveis. Por fim, apresento
o desenvolvimento das ideias gerais e abstratas da estátua assinalando o tipo de verdade
originada dessa última. Posto isso, fica estabelecido o curso natural do desenvolvimento das
ideias e capacidades operativas como defende Condillac.
Por fim, no quarto capítulo, problematizo a nova realidade que se inaugura para estátua
a partir da atividade tátil. Por conseguinte, podemos então discutir os limites do conhecimento
no Tratado das Sensações e a concepção de metafísica subjacente a essa obra. Em seguida,
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contextualizo o desafio posto para Condillac em relação à denúncia do idealismo e discuto a
partir de interpretações distintas se de fato Condillac resolve a tarefa que lhe fôra proposta.
No final do capítulo examino a questão acerca dos conhecimentos práticos que sugerem uma
concepção pragmatista de sujeito nas teses de Condillac.
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Capítulo I
Tornar-se humano
1.1 Ficção da Estátua
No Tratado das Sensações, Condillac defende a tese de que todas as nossas ideias e
faculdades mentais2 derivam das sensações. Para evidenciá-la, o filósofo utiliza-se da ficção
metodológica de uma estátua de mármore que ganha vida gradativamente, na medida em que
a experiência ocorre. A ficção da estátua caracteriza um entre os mais variados experimentos
mentais utilizados em filosofia. De maneira geral, tais experimentos permitem que, através da
imaginação, se realize algo que na prática não seria possível executar. Assim, Condillac busca
através desse artifício demonstrar sua tese e apresentar novas perspectivas para pensar sua
questão. A saber, que as ideias particulares e gerais de objeto bem como as diferentes
capacidades operativas: atenção, memória, imaginação, comparação, juízo, etc. nada mais são
do que sensações transformadas.
A hipótese da estátua animada da qual se serve Condillac, tem sua autoria
extensamente discutida. A utilização dessa imagem possui precedentes na história que
encontram ecos na mitologia na fabula do Pigmalião, um escultor que se apaixona por uma
estátua esculpida por ele e que ganha vida. Por outro lado, na filosofia, Descartes compara o
corpo humano com as estátuas do parque real (QUARFOOD, 2002, pg. 119). Em Condillac, a
estátua está posta enquanto um ser que corresponde por analogia, ao homem. Nesse sentido, o
filósofo adota um recurso literário comum ao século das luzes onde diferentes pensadores
representavam o eu através de metáforas (QUARFOOD, 2002, pg.121). Dito isto, não
podemos perder de vista que para Condillac, a rigor, esse recurso metodológico quer dar conta
em última instância da vida mental do sujeito. Sendo essa a finalidade, questiona-se se tal
hipótese seria a mais adequada para explicar tal realidade. Nesse quesito, as críticas a
Condillac são tão duras quanto o mármore que compõe sua estátua.
Nessa direção, Quarfood, ao mencionar as diferentes objeções dirigidas a essa hipótese,
especifica aquela feita por Harivel que acusa Condillac de ter violentado a natureza com sua
análise; ou, como quer Boullier, para quem a hipótese de Condillac mutila a alma humana
(QUARFOOD, 2002). Nessa linha, Liébana acrescenta as críticas feitas por Grimm que
2 A expressão faculdade mental é utilizada por Condillac para se referir as diferentes capacidades operativas:
atenção, memória, imaginação, comparação, juízo, reflexão etc. Essas capacidades não são nada mais que modos
de operar com base nas sensações. Portanto, não podem ser entendidas enquanto locais espacializados no cérebro
ou recipientes nos quais as sensações encontram-se depositadas, nem como entidades espirituais autônomas.
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considera o procedimento de Condillac válido, porém não se trata da imagem mais adequada
do comportamento sensitivo em seu estado natural (LIÉBANA, 1996). Frente a essas críticas,
os (as) comentadores da obra de Condillac apresentam razões que valorizam a hipótese
ficcional e revindicam como de fato essa deve ser entendida.
De acordo com Liébana, tal hipótese possui um valor inegável não só pela originalidade
da investigação de Condillac, mas também por ilustrar uma tese que apresentada de outra
maneira seria difícil compreender. Essa hipótese caracteriza a expressão mais radical da
condição suposta pelo empirismo em relação à origem da vida mental (LIÉBANA, 1996, II).
Por sua vez, de acordo com Quarfood, o experimento não deve ser entendido ao pé da letra,
trata-se de uma experiência, um tipo de raciocínio hipotético, pedagógico, cuja finalidade é
expor o leitor às questões epistemológicas (QUARFOOD, 2002, pg. 123). No Tratado das
Sensações a estátua se converte na peça de labor/oratório fundamental que permite a
Condillac manipular através de uma experiência rigorosamente controlada, diferentes
variáveis que estabelecem as condições necessárias para explicitar a tese já mencionada. Dito
isto, tratemos de apresentar em que consiste essa ficção e quais os resultados obtidos por
Condillac com a exploração da mesma.
Para uma compreensão sem prejuízos da sua obra, alerta Condillac, é necessário seguir
cuidadosamente as observações propostas na advertência ao leitor apresentadas no início do
Tratado das Sensações. É preciso, diz ele, “começar a existir como ela, ter apenas um sentido
quando ela tem apenas um; contrair apenas as ideias que ela adquire; contrair apenas os
hábitos que ela contrai: numa palavra, é preciso ser apenas o que ela é” (CONDILLAC, 1993,
pg. 27). Cabe ao leitor suspender o juízo e colocar-se de maneira incondicional no lugar da
estátua que será observada. De modo prudente, cuidadoso, por vezes insistente, Condillac
explica em que consiste o experimento e nos alerta sobre o que esperar. Que o filósofo não
seja um bom anfitrião, não se pode acusá-lo. Não há espaço para surpresas abruptas, devemos
realizar uma observação tranquila sem intempéries, disso se faz questão. Condillac parece
otimista, certamente um otimismo que invejaria Cândido. Afinal, em matéria de filosofia, o
que propõe Condillac é no mínimo inusitado: deve-se aceitar de antemão suas teses sem
qualquer objeção e apenas ser a estátua. Aquele que seguir essas orientações, ao final do
Tratado das Sensações verá demonstrada uma nova concepção acerca do entendimento
humano.
O experimento proposto por Condillac consiste em imaginarmos uma estátua isolada de
todo contexto social e organizada interiormente como nós, porém com seus canais sensíveis
cobertos por uma camada de mármore. Sendo assim, a estátua encontra-se privada de
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qualquer ideia ou capacidade operativa. A aptidão de sentir, passiva, é a única estrutura que
possui inicialmente. Na medida em que esses canais vão sendo abertos, progressivamente, um
de cada vez, Condillac busca demonstrar quais ideias derivam especificamente de cada um
dos sentidos e como esses se educam e se instruem mutuamente. A rigor, a análise
condillaciana explora de maneira exaustiva as consequências cognitivas de cada um dos
sentidos em particular e, em seguida, associados uns aos outros. De tal modo, a vida
intelectual vai sendo enriquecida na medida em que a experiência vai se tornando complexa
com a abertura dos diferentes canais sensíveis.
Essa estratégia de investigação evidencia aspectos do método analítico de Condillac que
consiste em decompor a experiência em diferentes partes, estudá-las de maneira separada a
fim de formar acerca de cada uma dessas uma ideia clara. Feito isso, ele volta a ordenar a
experiência com vistas a estabelecer um conhecimento seguro. Para o filósofo essa seria a
única maneira de traçar a ordem natural3 de aquisição e desenvolvimento dos nossos
conhecimentos e capacidades operativas. Embora estejamos falando de um empirista, o
método de pesquisa de Condillac revela uma clara influência do método analítico cartesiano.
Nesse sentido, Mondolfo reconhece que Condillac conserva o essencial do método cartesiano:
a evidência, a análise e a síntese. Entretanto, a análise de Condillac não identifica elementos
simples, gerais, abstratos inatos como quer Descartes (MONDOLFO, 1963, pg. 07). Os
conhecimentos que adquirimos não derivam de deduções que fazemos acerca dos princípios
gerais e inatos que deus gravou em nossa alma. Uma ideia abstrata defende Condillac, “requer
explicação por uma ideia menos abstrata e assim sucessivamente até que se chegue a uma
ideia particular e sensível” (CONDILLAC, 1979, pg. 07). Portanto, a verdadeira análise
compreende uma investigação genética acerca da origem empírica das nossas ideias. Por essa
razão, Mondolfo defende que a pesquisa condillaciana transita do método analítico cartesiano
a uma investigação genética acerca das nossas ideias (MONDOLFO, 1963, pg. 08).
A investigação genética se refere ao esforço de Condillac para demonstrar como as
nossas ideias derivam uma das outras. Como assinalado em sua Lógica, Condillac admite que
se buscarmos observar a origem e geração das nossas ideias, veremos que elas nascem
sucessivamente umas das outras; e se essa sucessão está de acordo a forma em que as temos
adquirido, teremos realizado bem a análise. Por essa razão, defende Condillac, a ordem da
análise é a única ordem de formação das nossas ideias (CONDILLAC, 1964, pg. 49). Feitas
essas observações, fica estabelecido que para Condillac, existe uma ordem natural de
3 Condillac defende que as nossas ideias e faculdades mentais possuem uma ordem natural de aquisição e
desenvolvimento. A sua investigação pretende revelar tal ordem.
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aquisição e desenvolvimento das nossas ideias. Entretanto, no Tratado das Sensações não
basta pressupô-la, é preciso mais, é necessário demonstrá-la. Nesse ponto, salienta-se que para
Condillac devemos tomar como nossa a ordem natural do desenvolvimento das ideias e
capacidades mentais que veremos com a estátua. Mas, poderíamos objetar e até considerar
arbitrária essa correlação, afinal, a condição existencial da estátua contrasta com a
complexidade da experiência humana em seu estado natural. Frente a essa consideração,
devemos indicar como a hipótese da estátua deve ser entendida no Tratado das Sensações.
Obviamente que a decomposição analítica da experiência posta em marcha por
Condillac é algo artificial. A análise isolada dos diferentes sentidos só é possível mediante
abstração da realidade humana. Embora a finalidade dessa hipótese seja dar conta da realidade
mental do sujeito, é certo que para Condillac a aquisição de nossas ideias não deriva primeiro
de um dos sentidos, depois do outro e assim sucessivamente como vemos ocorrer com a
estátua. O que temos em nosso estado natural é afecção simultânea dos diferentes órgãos
sensíveis, ou seja, uma experiência complexa. Quanto a isso não estamos dizendo nada
diferente de Condillac e facilmente nos poríamos de acordo. O que nos interessa aqui são os
resultados alcançados por ele a partir dessa abstração e o que eles revelam segundo Condillac,
acerca do sujeito. Nesse sentido, chamamos atenção para aquele que parece ser de longe o
objetivo de Condillac ao fazer uso dessa hipótese. Em primeiro lugar o filósofo quer fazer ver
que todas as nossas ideias e capacidades operativas derivam das sensações; em segundo, que
para fazermos uso dos nossos sentidos é necessário um aprendizado; em terceiro, que os
sentidos ao se reunirem nos fornecem os conhecimentos necessários à sobrevivência.
Feitas essas observações, cabe ainda considerar que a decomposição analítica da
experiência realizada por Condillac assemelha-se, salvaguardadas as diferenças, à estratégia
adotada por Diderot em sua Carta sobre os surdos e mudos sob o nome de anatomia
metafísica4· Quanto a essa questão, é relevante tecer dois comentários que visam estabelecer a
distinção entre ambas as estratégias. O primeiro comentário, diz respeito às críticas5 dirigidas
a Condillac de que a sua pesquisa no Tratado das Sensações caracterizaria um plágio do
projeto de Diderot em sua Carta sobre os surdos e mudos. O segundo comentário, é que a
partir das considerações entre ambas as pesquisas, salta aos olhos a especificidade da
4 Essa expressão foi usada por Diderot para se referir ao tipo de experimento utilizado em sua Carta Sobre os
Surdos e Mudos que consiste em imaginarmos uma sociedade composta por cinco homens cada um possuindo
um único sentido. Assim, o filósofo, investiga quais ideias derivam de cada sentido específico e como os homens
haveriam de se entender com base nas ideias formadas por cada um dos sentidos – só haveriam de se entender
em relação à geometria, concluí Diderot (DIDEROT, 2006). 5 A semelhança entre as estratégias levaram Grimm a acusar Condillac de ter plagiado no Tratado das
Sensações, o projeto de Diderot em sua Carta sobre os cegos (LIÉBANA, 1996) e (QUARFOOD, 2002).
17
investigação de Condillac. Tal especificidade crava uma diferença fundamental com a
pesquisa de Diderot e revela em última instância, uma nota característica do empirismo
radical de Condillac enfraquecendo, portanto, as críticas de plágio. Nesse sentido, podemos
considerar como reconhece Aranda, que a explicação de Condillac é desenvolvida de maneira
mais vigorosa do aquela realizada por Diderot (ARANDA, 1964, pg. 14). Por outro lado,
Liébana observa que a utilização dessa hipótese por Condillac assume uma originalidade
única e uma operação metodológica inédita (LIÉBANA, 1996, II).
Quanto ao primeiro comentário anteriormente mencionado, tanto Liébana (1996),
quanto Quarfood (2002) citam as críticas de Grimm, que acusam Condillac de ter plagiado no
Tratado das Sensações uma estratégia de investigação já executada por Diderot na Carta
sobre os surdos e mudos. Essa foi à única crítica que Condillac respondeu ao fim do Tratado
das Sensações6. Ao considerar separadamente os sentidos, os resultados da pesquisa de
Diderot terminam por evidenciar a contribuição especifica de cada um dos sentidos quanto ao
tipo de ideia derivada da sua atividade (DIDEROT, 2006). Resultado semelhante, observamos
em Condillac. Entretanto, como veremos a seguir, tal consequência não é a única extraída por
Condillac da sua análise.
Quanto ao segundo comentário mencionado, salienta-se que a distinção entre ambos os
autores se dá com base na especificidade da estratégia de Condillac que consiste em
decompor e recompor a experiência apresentando a gênese das ideias e capacidades
operativas da estátua. Nesse ínterim, o filósofo conclui que cada sentido configura um campo
sensorial distinto e ao se reunirem fornecem os conhecimentos necessários para preservação
da vida da estátua. Para o filósofo o uso dos sentidos depende de um aprendizado que deriva
da experiência. Os sentidos se educam e se instruem de maneira recíproca, evidenciando dessa
maneira, aspectos do seu empirismo radical, marcando assim sua diferença em relação a
Diderot. Frente a essas considerações, destaca-se que Condillac e Diderot possuem estratégias
que se assemelham, mas alcançam resultados diferentes. Nessa direção, defende-se Condillac
“(...) se tomamos quase o mesmo objeto, não coincidimos nas observações que fizemos”
(CONDILLAC, 1993, pg. 257).
Com precisão cirúrgica, possível apenas pelo tipo de experimento adotado, Condillac
des/monta a experiência. Dessa maneira, ao fim de uma extensa jornada intelectual, na qual “o
leitor é convidado a fazer um exercício de introspecção, uma experiência de descoberta de si
6 No fim do seu Tratado das Sensações, responde Condillac: “Concordo que o autor dessa carta propõe
decompor um homem; mas já de longa data Mlle. Ferrand havia-me comunicado tal ideia. Várias pessoas
sabiam, inclusive, que era este o objeto de um tratado em que eu trabalhava, e o autor das Cartas sobre os
Surdos e Mudos não o ignorava” (CONDILLAC, 1993, pg. 257).
18
mesmo” (QUARFOOD, 2002, pg. 125) observamos gradativamente a estátua ganhar vida,
passando a existir como nós. Vemos então saltar aos olhos, como quer Monzani, uma espécie
de “Adão epistemológico” (MONZANI, 1995, pg. 16). Um Adão que não conhece pecados ou
leis morais, não pela ausência de uma Eva no Tratado das Sensações e sim pela estratégia
adotada por Condillac que imagina sua estátua livre de toda relação com os homens. A estátua
não cai do céu nem é fruto de um artífice superior. Ela representa o homem em seu estado
natural. A estátua vive na natureza em meio aos diversos animais. Por essa razão, ela é a única
responsável pelas suas escolhas e, em última instância, pela sua sobrevivência.
Os prazeres e dores que sofre com a experiência são seus únicos mestres. Com base
nesses orientadores naturais da experiência – prazer e dor – ela aprende quais objetos
contribuem para sua felicidade e quais lhe causam sofrimento. A estátua ao fim da história é
resultado das experiências que teve. Logo, ela nada mais é do que os conhecimentos que
adquiriu. As considerações de Condillac acerca da estátua apresentam uma concepção
antropológica do homem em seu estado natural, anterior à cultura. A passagem do estado da
natureza para o estado da cultura pressupõe linguagem teórica7, uma variável que não
encontramos no Tratado das Sensações. No Tratado encontramos a estátua restrita aos
conhecimentos práticos caracterizados pelos hábitos adquiridos com a experiência que
contribuem de maneira decisiva para preservação da sua vida.
Por fim, a análise dessa hipótese ficcional expõe um predomínio dos conhecimentos
práticos e sua utilidade em detrimento dos conhecimentos teóricos. Essa especificidade do
pensamento de Condillac no Tratado das Sensações faz notar, defende Cassirer, um fundo
biológico nas teses do filósofo. De acordo com Cassirer, no Tratado das Sensações a ordem
lógica das nossas ideias deriva de uma espécie de espelho ou de reflexo de ordem biológica.
Sendo assim, “aquilo que nos parece importante se dá menos em função da “essência” das
coisas e mais em função do nosso interesse, da sua utilidade que contribui para nossa
conservação” (CASSIRER, 1997, pg. 149). Em síntese, cabe considerar que com a exploração
dessa ficção metodológica no Tratado das Sensações Condillac explicita a sua posição anti-
inatista radical e realiza simultaneamente uma longa montagem de dois conceitos
fundamentais na filosofia moderna: os de sujeito e de objeto.
7 As questões relacionadas à linguagem são apresentadas por Condillac em sua obra: Ensaio sobre a origem dos
conhecimentos humanos (1746), não traduzida para o português.
19
1.2 Sensações e gênese das capacidades operativas
Como mencionado na introdução, diferentemente de Locke, para quem as ideias
derivam tanto dos sentidos quanto da reflexão, Condillac busca explicar a gênese das ideias e
capacidades operativas com base em uma única fonte, as sensações. Dessa maneira, o filósofo
defende que a alma8, modificada pelas sensações, “extrai todos os seus conhecimentos e
faculdades” (CONDILLAC, 1993, pg. 31). Nesse sentido, refletir, duvidar, recordar,
comparar, pensar, etc. não são consideradas capacidades inatas e sim adquiridas. “Toda
complexidade mental se constrói gradualmente a partir de um simples fato inicial segundo
uma ordem determinada” (QUARFOOD, 2002, pg. 14-15). As capacidades operativas, nada
mais são do que sensações que vão adquirindo gradativamente formas mais complexas e
acabadas, ou seja, são sensações transformadas. O conceito de sensação transformada
fornece a chave explicativa para compreendermos como através das sensações se constitui
toda realidade mental da estátua. Para Condillac, as sensações seguem transformando-se
através de um processo contínuo e sem rupturas no qual as ligações entre ideias, orientadas
pelo prazer, cumprem um papel decisivo na organização e desenvolvimento tanto das
capacidades operativas quanto das ideias. Assim, as ligações entre ideias são, como defende
Quarfood, “o princípio fundamental da vida do espírito” (QUARFOOD, 2002, pg. 157). Posto
isso, indicamos que no presente capítulo, apresentaremos a gênese das capacidades
operativas derivadas do uso específico de cada sentido. Somente no segundo capítulo, nossa
investigação incidirá sobre as ideias específicas derivadas da atividade de cada um dos
sentidos.
No que concerne ao desenvolvimento das capacidades operativas da estátua
examinaremos os efeitos cognitivos das sensações simples derivadas do uso do olfato,
audição, paladar e visão separadamente. Quanto a esses sentidos, veremos que as sensações
derivadas da sua atividade permitem a estátua desenvolver as mesmas capacidades operativas:
atenção, memória, imaginação, comparação, juízo, vontade, desejo e etc. De maneira geral, o
que se diz de um desses sentidos se aplica ao outro. Concluída essa etapa, passaremos então a
8 Condillac dota a alma de sensibilidade, os órgãos sensíveis não passam de meras causas ocasionais, eles não
sentem. Nesse aspecto, Condillac é taxativo: “só a alma sente”, o sentir é, portanto, um fenômeno mental
(CONDILLAC, pg. 31). Para o filósofo “a vida do espírito não começa com a inteligência, mas com as
sensações” (QUARFOOD, 2002, pg. 105). As sensações são espirituais, tudo que se passa na consciência é de
ordem imaterial. “A perspectiva condillaciana vai de encontro a toda tentativa de reduzir a sensorialidade a um
epifenômeno material” (QUARFOOD, 2002, pg. 106). A fisiologia não pode dar conta dos fenômenos mentais.
Assim, Condillac dota o âmbito mental de certa exclusividade que não permite reduzir a sua atividade as
justificativas fisiológicas, já que essas não podem explicar as sensações de cheiro, cor, sabor, som, solidez,
vivências exclusivas da alma.
20
examinar os efeitos cognitivos das sensações derivadas do tato. Em relação ao tato,
mostraremos que diferentemente dos demais sentidos, ele é o único que permite a estátua
desenvolver a capacidade de reflexão, condição de possibilidade para representar objetos.
Antes de passarmos a analise dos efeitos cognitivos produzidos por cada sentido, um
detalhe deve ser mencionado. Ele diz respeito à própria estratégia condillaciana de começar
sua investigação pelo olfato. Porque começar a investigação necessariamente pelo olfato e não
por qualquer um dos demais sentidos? Essa peculiaridade da investigação de Condillac
permite considerar que para o filósofo existe certa hierarquização entre os sentidos em termos
de relevância cognitiva. Nesse ínterim, podemos considerar que a análise de Condillac parte
do sentido mais limitado (o olfato) até o mais objetivo (o tato) que é para ele o sentido da
realidade.
De acordo com Lefèvre, Condillac começa sua análise pelo olfato porque esse é o
sentido mais subjetivo, pobre e limitado e ainda assim o filósofo extrai dele toda vida mental
da estátua (LEFÈVRE, 1966, pg. 34). Restrita ao olfato a estátua só pode experienciar uma
sensação simples, uniforme de cheiro. Se a estátua fosse exposta simultaneamente a diferentes
odores, esses se mesclariam uns aos outros e ela não poderia notar que um não é o outro. Por
sua vez, Quarfood identifica uma superioridade da audição em relação ao olfato, pois a
audição permite a estátua experienciar dois tipos de sensação, som e ruído enquanto o olfato
apenas cheiro (QUARFOOD, 2002, pg. 134). Nessa direção, acrescentamos ainda certa
superioridade do paladar em relação aos odores e aos sons, pois, como reconhece o próprio
Condillac, o paladar contribui de maneira mais intensa para felicidade ou infelicidade da
estátua já que os sabores afetam com mais força que os odores; os sabores contribuem mais
que os sons para felicidade da estátua já que a necessidade dos alimentos os torna mais
significativos (CONDILLAC, 1993, I, pg. 98). Em vista dessa hierarquização, nota-se em
relação às sensações visuais que essas proporcionam certa vivacidade e ocasionam para
estátua um sentimento vago de extensão – para Mondolfo, a vista parece possuir uma posição
intermediaria entre os sentidos já que ela pode dar-nos – de modo indeterminado, latente a
extensão9 (MONDOLFO, 1963, 37). Por fim, com o tato à estátua encontra-se mais exposta às
dores do que com os demais sentidos. Por outro lado, é com base nesse sentido que a estátua
desenvolve a reflexão, condição de possibilidade para representar objetos. Em síntese,
salienta-se que Condillac na medida em que considera as diferenças entre os sentidos, outorga
ao tato certa relevância cognitiva. Ele desempenha uma função representacional que indica
9 Voltaremos a essa questão quando tratarmos no segundo capítulo das ideias derivadas da visão e do problema
de Molineux.
21
para estátua uma realidade diferente de si10
. Dito isto, passemos a análise dos efeitos
cognitivos de cada um dos sentidos, a partir do mais elementar, o olfato.
1.3 Olfato e gênese das capacidades operativas
A vida da estátua começa exatamente no momento em que Condillac retira a camada de
mármore que encobre o olfato. Nessa fase do experimento, ela encontra-se limitada ao uso
desse sentido. Por essa razão, os conhecimentos adquiridos devem restringir-se aos odores.
Em seguida, Condillac apresenta uma rosa para estátua, diz ele “se nós lhe apresentarmos uma
rosa, ela será para nós uma estátua que cheira uma rosa; mas para si, ela não será senão o
próprio odor dessa flor”. (CONDILLAC, I, 1993, § 2, pg. 63). Com base nesse odor inicial,
veremos o processo contínuo de transformação das sensações que redunda na construção das
diferentes capacidades operativas da estátua.
Logo que a estátua sente o odor de rosa ela é capaz de atenção e começa
necessariamente a gozar ou a sofrer. Para Condillac toda sensação apresenta um conteúdo
específico, cheiro, som, sabor, cor e solidez e todo conteúdo afeta de maneira agradável ou
desagradável. Não existem sensações neutras ou indiferentes a não ser por comparação. Só é
possível falar em sensações neutras ou indiferentes, por comparação. Quando a estátua tiver
experienciado sensações de prazer e dor mais vivas ou intensas, ela poderá julgar indiferente,
ou deixará de considerar agradáveis ou desagradáveis aquelas sensações mais débeis que tiver
comparado com as mais fortes (CONDILLAC, 1993, pg. 38). Nesse ponto, cabe considerar
que para o filósofo a capacidade de sentir prazer e dor é uma condição dada pela própria
natureza. “A natureza nos deu órgãos sensíveis e através deles ela nos adverte pelo prazer
sobre aquilo que devemos buscar, e pela dor, ela nos adverte sobre aquilo que devemos nos
distanciar” (CONDILLAC, 1993, pg.56). Portanto, somos naturalmente organizados para
sentir dor e prazer. Quanto a essa questão, podemos considerar que para Condillac o prazer e
a dor são orientadores naturais da experiência. Nesse ponto, compete assinalar que somente a
partir das primeiras experiências da estátua prazer e dor passam a operar enquanto princípio
da seleção e determinação da atenção11
.
10
Aprofundaremos esse ponto no segundo capítulo quando tratarmos da gênese das ideias derivadas do tato. 11
Condillac estabelece o prazer e a dor enquanto princípio que determina o desenvolvimento e a atividade de
todas as operações da alma. Assim, salienta-se que todos os nossos atos mentais atentar, recordar, imaginar,
comparar, julgar, etc. funcionam com base nesse princípio.
22
As consequências cognitivas desse tipo de atenção revelam à consciência em um nível
elementar12
que, no interior da perspectiva genética adotada por Condillac, ainda não permite
a estátua diferenciar o eu do não eu. A estátua não sabe que possui um corpo muito menos
que os odores que vivencia derivam de um objeto específico. Como salientado por Condillac
os odores percebidos “não passam de suas próprias modificações ou maneiras de ser”
(CONDILLAC, I, 1993, § 2, pg. 63). Nessa direção, Liébana acrescenta que “a sensação não
é, pois para a estátua efeito cognitivo de causas transcendentais, senão revelação existencial
do próprio ser” (LIÉBANA, 1996, II), as sensações até aqui nada mais são do que qualidades
específicas que modificam os sentimentos da estátua de maneira agradável ou desagradável.
Se o odor afeta de modo agradável, é gozo, caso afete de modo desagradável, a estátua sofre.
Nesse momento da nossa análise, a atenção deve ser entendida, a rigor, enquanto
atenção passiva derivada da receptividade passiva própria dos órgãos sensíveis. Esse tipo de
atenção indica uma primeira etapa de transformação da sensação que estabelece as condições
de possibilidade para o desenvolvimento da memória. Nesse sentido, Condillac supõe na
atenção, como apresenta Quarfood, uma força de retenção das impressões sensíveis
(QUARFOOD, 2002, pg. 128). A atenção que foi dada ao odor contribui para retenção dessas
impressões. As sensações não escapam inteiramente tão logo o corpo odorífero deixa de agir
sobre o olfato, a atenção que lhe foi dada retém esse odor; e resta uma impressão mais ou
menos forte, conforme a própria atenção tenha sido mais ou menos viva. Temos assim a
origem da memória enquanto capacidade de retenção (CONDILLAC, 1993, I, § 22 pg. 65-
66).
A memória é caracterizada por Condillac como uma “sequência de ideias que se
conectam entre si respeitando a ordem e sucessão da experiência. As sequências de ideias
formam cadeias e essa ligação fornece os meios de passar de uma ideia à outra”
(CONDILLAC, 1993, I, § 20, p.69). Sendo assim, indica-se que é próprio dessa capacidade, o
poder de conservar e evocar sensações. O ato de lembrar caracteriza uma atividade específica
da memória. Em relação à atividade da memória, Condillac chama atenção para dois
princípios responsáveis por pô-la em atividade. O primeiro, “a vivacidade de um bem que a
estátua não possui mais”; o segundo, “o parco prazer da sensação atual, ou a dor que a
acompanha” (CONDILLAC, 1993, I, § 27, pg.72). Nesse sentido, podemos assinalar que a
memória entra em atividade a partir de uma vivência que lhe impõe certo grau de desconforto
ou sofrimento. Frente a essas condições, o ato de lembrar põe em evidência para estátua uma
12
Consciência e atenção são nomes diferentes para se referir a um mesmo fenômeno
23
sensação passada vivenciada enquanto agradável. Nesse ponto vemos o prazer operar
enquanto princípio que determina a atividade da memória, pois, frente a uma lembrança
desagradável, compete a ela enviar noticias para estátua de um sentimento agradável já
experienciado. Com a memória a capacidade de atenção se especializa. Ela assume de
maneira estrita uma dimensão seletiva cujo fim é o prazer. Posto isso, salienta-se que é com
base no ato de evocar uma sensação que Condillac expõe a distinção entre memória e
imaginação. Nesse quesito, diz ele:
Ora, ela conserva o nome de memória quando lembra as coisas apenas como
passado; e toma o nome de imaginação quando as relembra com tal força que
parecem presentes. A imaginação assim existe em nossa estátua da mesma
maneira que a memória; e essas duas faculdades diferem apenas em grau.
(CONDILLAC, 1993, I, § 29, pg. 73).
A partir do fragmento acima, nota-se que para Condillac a gênese da imaginação deriva
efetivamente da memória. Memória e imaginação se assemelham. A memória, ao evocar as
lembranças as atualiza de maneira fraca enquanto passadas, trata-se, portanto, de uma
sensação que resta uma ligeira lembrança (CONDILLAC, 1993, I, § 29, pg. 73). Entretanto,
quando se trata de uma evocação que ganha em intensidade, cujo resultado permite à estátua
relembrar algo como se fosse presente temos aí à imaginação. Quanto a essa distinção,
Condillac acrescenta que “a memória é o começo de uma imaginação que ainda tem pouca
força; a imaginação é a própria memória que atingiu toda a vivacidade de que é suscetível”
(CONDILLAC, 1993, I, § 29, pg. 73). Assim, notamos que memória e imaginação diferem
em relação ao grau de vivacidade. Resta-nos então, estabelecer outra distinção, a saber: que
memória e imaginação também diferem quando a ordem de organização das ideias já que as
ligações entre ideias ocorrem de maneira específica em cada uma dessas capacidades
operativas.
Como vimos anteriormente, a memória forma cadeias de ideias de acordo a ordem e
sucessão da experiência. A imaginação por sua vez, opera com as ideias que estão dispostas
nas cadeias formadas pela memória. A finalidade da imaginação é o prazer, tem essa
característica em comum à memória. No entanto se diferenciam pelo fato da imaginação, que
guiada pelo prazer não respeita a ordem das ideias estabelecidas pela memória. A imaginação,
ao evocar ideias busca aquelas mais agradáveis independentemente da sua localização na
cadeia. Dessa maneira, ela altera a ordem fixada pela memória formando novas cadeias de
ideias, dando a essas uma nova organização. Nesse aspecto, se evidencia uma dinâmica de
ligação entre ideias que ocorre na imaginação diferente daquela que ocorre na memória. A
24
distinção fundamental na ligação entre ideias nessas capacidades é definida pela liberdade
com que a imaginação opera. A singularidade da imaginação implica uma capacidade de
combinar ideias a sua maneira colocando em relevo seu potencial criativo. Por fim, cabe
assinalar que as ligações entre ideias cumprem um papel relevante na distinção condillaciana
entre memória e imaginação.
Com a memória e a imaginação instituídas instaura-se uma forma de atenção ativa, que
permite a estátua lembrar-se das sensações enquanto passadas. Esse tipo de atenção difere da
atenção passiva ocasionada pelos órgãos sensíveis que apresentam as sensações no presente.
Esses dois tipos de atenção permitem à estátua notar simultaneamente sensações passadas e
sensações presentes. Por ocasião de ambos os tipos de atenção, deriva a capacidade de
comparação, pois, para o filósofo comparar é conceder atenção a duas ideias simultaneamente
(CONDILLAC, 1993, I, § 14, pg. 67). A estátua compara sensações passadas (através da
memória) com sensações presentes (através dos órgãos sensíveis). A atividade comparativa
como veremos no capítulo III é condição de possibilidade do desenvolvimento dos
conhecimentos da estátua. Uma vez estabelecida a capacidade de comparar a estátua pode
então formar um juízo. Pois, para Condillac um juízo é a percepção de uma relação entre duas
ideias comparadas (CONDILLAC, 1993, I, § 15, pg. 68). Estabelecida à capacidade de
comparar sensações, podemos então falar do desenvolvimento das necessidades da estátua.
Em relação à necessidade, Quarfood salienta que Condillac não desconsidera o inatismo
das necessidades naturais da estátua. Esse tipo de necessidade têm suas raízes dentro da
constituição fisiológica do indivíduo. Essa consideração não contradiz a tese condillaciana
acerca da alma vazia. Somente a alma da estátua é uma tabula rasa. Mesmo com uma
dimensão inata, as necessidades constituem uma gênese (QUARFOOD, 2002, pg. 148). Nessa
direção, a chave para entendermos como as necessidades derivam da experiência é dada pela
capacidade de comparar sensações. A capacidade de comparar sensações nos permitem falar
das necessidades no âmbito psicológico. Nesse sentido, Condillac afirma “que todas as vezes
que está mal ou menos bem, ela lembrará suas sensações passadas; compara com o que ela é e
sente que é importante voltar a ser o que foi. Dai nasce a necessidade ou o conhecimento de
um bem que ela julga necessário” (CONDILLAC, 1993, I, § 25, pg. 71). Nesse ponto,
Quarfood nos faz ver que a necessidade é ligada à ideia de que qualquer coisa necessária lhe
falta, e essa ideia só é possível pela combinação do princípio do prazer e dor com a memória
(QUARFOOD, 2002, pg. 132). Após tratar do desenvolvimento das necessidades, Condillac
apresenta a gênese do desejo.
25
A necessidade como vimos, é uma espécie de desconforto que indica para estátua algo
que lhe falta. Posto isso, Condillac vai definir o desejo enquanto ação das faculdades em
direção daquilo que se sente falta (CONDILLAC, 1993, I, § 1, pg.79). O desejo de fruir algo
surge vinculado à necessidade de sair de um estado desagradável em direção a outro mais
agradável. Nesse processo a memória desempenha um papel fundamental. Cabe a ela o poder
de lembrar à estátua um estado anteriormente vivido enquanto agradável e por o organismo
em busca do apetecido. Diferente da necessidade, o desejo é uma atividade, uma tentativa de
gerir as necessidades (QUARFOOD, 2002, pg. 132). O desejo é condição de possibilidade da
paixão. Para o filósofo a paixão deve ser entendida enquanto um desejo que domina frente à
privação de um bem que se julga necessário. A paixão diz respeito a esse desejo que se impõe
e domina a estátua. Nesse sentido, diz Condillac “A paixão é um desejo que não permite ter
outros, ou que pelo menos é o mais dominante” (CONDILLAC, 1993, I, § 3, pg. 79). Domina
a tal ponto que todas as capacidades operativas da estátua se ocupam exclusivamente dele.
Posto isso, devemos acrescentar que as sensações agradáveis ou desagradáveis
configuram as capacidades de amar ou odiar da estátua. Para Condillac “amar é sinônimo de
gozar ou desejar, e que odiar é igualmente de sofrer mal-estar, descontentamento na presença
de um objeto” (CONDILLAC, 1993, I, § 5, pg. 80). Por fim o filósofo apresenta a gênese da
vontade. Diante das lembranças de ter satisfeito alguns de seus desejos, a estátua julga que
poderá satisfazer todos os outros “não conhecendo obstáculos que se impõe a isso, ela não vê
porque não teria em seu poder o que deseja (...) ela não se limita a desejar, ela quer, pois se
entende por vontade um desejo tão grande e absoluto que pensamos que uma coisa desejada
está em nosso poder” (CONDILLAC, 1993, I, § 9, pg. 81).
Em síntese, observamos que com base nas sensações simples de cheiro derivadas do
olfato Condillac expõe o desenvolvimento de todas as capacidades operativas da estátua, com
exceção da reflexão. Assim, nota-se que para o filósofo as capacidades operativas da estátua
não são nada mais que sensações transformadas. Após essa exploração mais extensa do olfato,
as considerações acerca dos efeitos cognitivos da audição, paladar e visão, serão apresentadas
de maneira breve, pois, no que tange aos efeitos cognitivos derivados dos demais sentidos,
não presenciamos nada que já não tenha sido exposto com a análise do olfato. Dessa maneira,
deve-se considerar que ocorre com os demais sentidos – com exceção do tato – o mesmo que
ocorre com o olfato, o que muda necessariamente é o tipo de sensação que põe em marcha
todo o processo.
Se tivéssemos começado nossa investigação com base em uma sensação simples de
som, sabor ou cor, os resultados obtidos seriam os mesmos que com o olfato. De maneira
26
geral, no que concerne ao desenvolvimento das capacidades operativas, essas sensações não
produzem nenhuma operação mental nova para estátua. Para nos convencermos disso basta
raciocinar com cada uma dessas sensações de modo análogo ao que fizemos com o olfato.
1.4 Tato e gênese da reflexão
Como vimos na seção anterior, restrita ao olfato, audição, paladar ou visão, a estátua
percebe sensações simples de cheiro, som, sabor ou cor. Essas sensações dão origem às
mesmas capacidades operativas na estátua. Sendo assim, devemos salientar que o tipo de
atenção derivada do tato difere do tipo de atenção ocasionada pelos demais sentidos. De
maneira mais específica, para Condillac, somente o tato pode captar simultaneamente
diferentes sensações como as de solidez, dureza, calor. Ou seja, é a partir do tato que a estátua
tem experiência de sensações compostas. No que concerne a tais sensações, salienta-se que
essas são as únicas que podem levar a estátua a representar objetos. Elas adquirem essa
possibilidade graças ao tato que introduz a noção de limite as sensações. Nesse processo as
mãos desempenham um papel fundamental graças ao tipo de contato que elas possibilitam
(BERTRAND, 2002, pg. 43). Por ocasião do tato e com base nas sensações de solidez e
dureza proporcionadas a estátua descobre limite nos corpos13
.
Estabelecida à ideia de limite dar-se origem a reflexão no modo como Condillac a
entende. A reflexão derivada da atividade tátil permite a estátua formar conjuntos estáveis de
diferentes qualidades sensíveis entendidos em sua unidade enquanto objeto. Nesse sentido,
diz Condillac, “esta atenção, que combina sensações, que forma conjuntos exteriores e que,
por assim, dizer, compara-os sob diferentes relações, é o que denomino reflexão. Deste modo,
vê-se porque nossa estátua, sem reflexão com os outros sentidos, começa a refletir com o tato”
(CONDILLAC, 1993, I, § 14, pg. 139). Esses conjuntos formados pelo tato passam a
representar objetos. Nessa direção, Quarfood reconhece que para Condillac a reflexão nada
mais é do que a capacidade de comparar diferentes complexos de ideias. Portanto, essa
capacidade não poderia ter início com os demais sentidos já que com esses não seria possível
para estátua remeter suas sensações ao mesmo objeto ou percebê-las como sendo de entidades
circunscritas (QUARFOOD, 2002, pg. 143). Ou seja, com os demais sentidos não percebemos
– segundo Condillac – conjuntos estáveis de sensações em um limite determinado. Essas
13
A descoberta de limite nos corpos redunda nas ideias de um eu corporal e um não eu. No segundo e terceiro
capítulo da monografia trataremos da gênese dessas ideias. Por hora, nos limitamos a apresentar a gênese da
reflexão para sermos coerentes com o propósito do presente capítulo que é apresentar a gênese das capacidades
operativas da estátua.
27
seriam condição de possibilidade para representar objetos. Assim, vemos porque o tato é o
único sentido que permite a estátua desenvolver essa capacidade.
Posto isso, salienta-se que a reflexão no modo como Condillac a entende não pode ser
tomada enquanto capacidade operativa inata – como defende Locke – e sim adquirida. Para
Locke a reflexão é uma fonte capaz de formar ideias que não poderiam derivar de coisas
exteriores. Essas ideias são formadas quando percebemos as operações da nossa própria
mente, por exemplo, perceber, pensar, duvidar, acreditar, raciocinar, conhecer, querer
(LOCKE, 1999, § 4 pg. 107). Se a reflexão não deriva das coisas exteriores, ela é suposta
previamente, ou seja, inata. Essa é uma tese que Condillac para ser coerente com sua pesquisa
não pode admitir. Renovar o entendimento humano como quer Condillac implica
necessariamente ultrapassar esse tipo de inatismo presente na filosofia de Locke. Nessa
direção, o filósofo busca marcar de maneira precisa como adquirimos e desenvolvemos nossas
capacidades operativas. A análise do tato fornece a chave para entendermos a gênese da
reflexão e a consequente representação de objetos marcando um aspecto fundamental da
distinção entre o empirismo de Locke e Condillac.
Dito isto, cabe ainda considerar que para Condillac a reflexão não é uma capacidade
específica do ser humano. Quanto a essa questão, Bertrand mostra que para o filósofo existe
uma diferença de grau na reflexão entre homens e animais, entre os animais e eles mesmos em
decorrência da sua conformação orgânica (BERTRAND, 2002, pg. 42). Em relação a esse
aspecto, podemos admitir que entre os animais, o homem é aquele que possui o tato mais
desenvolvido, condição que lhe permite sentir e adquirir conhecimentos em um grau diferente
dos animais. Por essa razão, estamos autorizados a revindicar nas teses de Condillac uma
concepção antropológica do homem enquanto animal sensível que possui um
desenvolvimento e uma história natural.
Concluímos assim nossa investigação acerca da gênese das capacidades operativas da
estátua. De maneira geral, vimos que com o olfato, audição, paladar ou visão a estátua forma
as mesmas capacidades operativas. Por outro lado, demonstramos porque somente com o tato
surge a reflexão, fundamental para representar objetos. Essa perspectiva genética adotada por
Condillac em sua investigação é duramente criticada por Liébana em sua obra Teoría de la
sensación transformada o el delirio del sensismo. Na obra mencionada, o comentador
considera que a tentativa de Condillac reduzir tudo que concerne ao espírito humano a meras
sensações carece inteiramente de sentido e viabilidade. O reducionismo operado por
Condillac com a teoria das sensações transformadas “manifesta uma impossibilidade lógica e
real”, pois, como julga Liébana, atentar, refletir, recordar, imaginar, comparar, abstrair seria
28
muito mais que um mero sentir. A explicação condillaciana seria “simplista e insuficiente”.
Para o comentador Condillac fracassa em sua tentativa de superar Locke.
Em oposição ao sensismo condillaciano, Liébana segue nos trilhos da fenomenologia e
revindica certa autonomia e irredutibilidade do fluxo interno da consciência enquanto algo
essencialmente diferente da apreensão cognitiva do externo. As capacidades operativas
derivadas da sensação como quer Condillac, não passam para Liébana de operações genuínas
da consciência, são, portanto, inatas. “Condillac delira quando acredita poder reduzir o
genuinamente intelectual (universal e necessário) ao sensível (meramente particular e
contingente). O intelectual – e suas leis – exibem caracteres próprios e irredutíveis ao
sensível”. Condillac ao professar seu empirismo não percebe que questionar a origem e o
fundamento do conhecimento com uma base psicológica seria diferente de questionar sobre
sua justificação ou validade. Nessa direção, Liébana recorre a Kant, cujas teses admitem que
todo conhecimento pode começar necessariamente na experiência sensível (interna ou
externa) mas não ser reduzido a ela. Essas seriam as estruturas a priori que são independentes
do contato empírico. Tais são em Kant as intuições puras da sensibilidade e categorias do
entendimento (LIÉBANA, 1998, VI).
Feitas essas considerações acerca da gênese e desenvolvimento das capacidades
operativas, podemos examinar, no capítulo a seguir, a contribuição específica de cada sentido
quanto ao tipo de ideia forjada a partir das qualidades notadas nas sensações.
29
Capítulo II
Sensações e Ideias
No capítulo anterior apresentamos o valor heurístico da ficção da estátua utilizada por
Condillac no Tratado das Sensações. Em seguida, com base nas sensações, examinamos o
desenvolvimento das diferentes capacidades operativas. Nesse aspecto, salientamos que as
sensações simples proporcionadas pelo olfato, audição, paladar ou visão engendram as
mesmas capacidades na estátua. Por outro lado, destacamos os efeitos cognitivos do tato no
que concerne à gênese da reflexão e sua capacidade de representar objetos com base nas
sensações compostas. Essa especificidade da atenção tátil marca uma diferença fundamental
em relação aos demais sentidos. No presente capítulo, examinaremos o conceito de ideia para
Condillac e em seguida a contribuição específica de cada sentido quanto ao tipo de ideia
derivada da sua atividade. Em seguida, veremos como essa estratégia de investigação adotada
por Condillac permite ao filósofo se opor ao idealismo de Berkeley14
e aportar uma solução
acerca do mundo exterior15
.
2.1 Conceito de Ideia
Para Condillac “uma ideia é toda impressão que dá um conhecimento” (CONDILLAC,
1993, II, § 28, pg.144). É através das sensações que a estátua toma conhecimento de
sentimentos que julga em si mesma e qualidades que julga no seu exterior. Definido o
conceito de ideia, o filósofo as diferencia em dois tipos: sensações e ideias intelectuais. As
primeiras, dizem respeito às sensações atuais no aqui/agora proporcionada pelos órgãos
sensíveis fonte de todo conhecimento; as segundas se referem à lembrança de uma sensação
enquanto passada. As sensações dividem-se ainda em simples e compostas. As sensações
simples se referem às consequências da afecção atual de um órgão sensível específico, as
ideias simples correspondem a lembranças dessas sensações. Nem sensações simples, nem
ideias simples, por si sós, são capazes de representar objetos. Por conseguinte, as sensações
compostas como mencionado no capítulo anterior, se referem a diferentes qualidades
sensíveis percebidas simultaneamente pela estátua e são as únicas que podem levá-la a
14
O argumento de Condillac será desdobrado em diferentes momentos. Primeiro desenvolveremos parte do
argumento ao tratar das ideias derivadas do olfato, audição, paladar e visão a ver qual dessas permite a estátua
formar ideia de exterioridade. Em seguida concluiremos a mencionada argumentação ao tratar do tato. 15
É consenso entre os comentadores de Condillac que a necessidade de demonstrar a existência de um mundo
exterior caracteriza uma das razões que levaram o filósofo a escrever o Tratado das Sensações.
30
representar objetos. Feitas essas observações acerca do conceito de ideia podemos então dar
início a nossa investigação.
2.2 Sensação e ideias do Olfato
Como mencionado, a experiência da estátua começa com as sensações ocasionadas pelo
olfato. Limitada a esse sentido, ela não pode conhecer nada além de odores. Nesse aspecto,
diz Condillac “que os filósofos a quem parece tão evidente que tudo é material coloquem-se
por um momento no lugar dela e imaginem como poderiam suspeitar que exista algo que se
assemelhe ao que denominamos matéria” (CONDILLAC, 1993, I, § 3, pg. 64). Trata-se,
portanto, segundo Lefèvre de uma posição subjetivista estritamente experimental, pois o
sensível é de início um sentimento (LEFÈVRE, 1966, pg. 34). Em outras palavras, as
sensações de cheiro não passam de meras modificações do ser ou maneiras de ser da estátua.
Nessa direção, Liébana acrescenta que no momento em que se identifica na estátua odor
percebido e o ser percipiente desaparece a relação sujeito-objeto, essencial em todo ato
cognitivo. Assim, a sensação esgotada em si mesma deixa de possuir valor intencional ela
nada mais é do que condição de possibilidade da tomada de consciência existencial do sujeito
sensciente (LIÉBANA, 1996, II).
As sensações de cheiro experienciadas pela estátua, como já mencionado, afetam de
maneira agradável ou desagradável. Desse modo, os sentimentos ou estados pelos quais a
estátua passa são de dois tipos: contentamento (gozo) ou descontentamento (sofrimento). A
memória da estátua conserva, portanto, as ideias de contentamento e descontentamento que
são comuns a várias maneiras de ser. Com base nessas, surgem as primeiras ideias abstratas e
gerais16
da estátua. Em relação a essa questão, Condillac afirma que:
Abstrair é separar duas ideias que parecem naturalmente unidas. Ora, considerando
que as ideias de contentamento e descontentamento são comuns a várias
modificações suas, ela contrai o hábito de separá-las de tal modificação particular,
da qual não as distinguiria inicialmente; formula, portanto, noções abstratas, e essas
noções se tornam gerais porque são comuns a varias de suas maneiras de ser
(CONDILLAC, 1993, I, § 2, pg. 81-82).
16
As ideias particulares e gerais fundam como aponta Lefèvre, dois tipos de verdades (LEFÈVRE, 1966, 37). As
ideias particulares fundam as verdades particulares. As ideias gerais fundam verdades gerais. Examinaremos tais
verdades no terceiro capitulo.
31
Com base no trecho destacado salientamos que as primeiras ideias gerais e abstratas
formadas pela estátua derivam das sensações de prazer e dor. Cabe reiterar que tais ideias
dizem respeito às modificações dos sentimentos da estátua, portanto, não são ideias de objetos
já que as sensações derivadas desse sentido não possuem caráter representativo. Acrescenta-se
ainda, que o modo agradável/desagradável com que as sensações afetam, dão origem aos
“sentimentos estéticos” da estátua (LEFÈVRE, 1966, pg. 51). Os cheiros agradáveis
estabelecem as condições de possibilidade para que a estátua forme ideia de bom
(CONDILLAC, 1993, IV, § 1, pg. 222). Quanto a essa, devemos considerar que para
Condillac a noção de bom não diz respeito a algo absoluto ou independente de qualquer
condição. Bom e belo são noções relativas ao caráter de quem julga (CONDILLAC, 1993, IV,
pg. 223). Por encontrar-se isolada de toda relação com os homens, as noções de bom e belo
são relativas as suas afecções e livres de qualquer convenção social. Em relação a essa
questão, Condillac considera que nem tudo que a estátua julga ser bom será moralmente bom,
assim como nem tudo o que é belo será realmente belo (CONDILLAC, 1993, IV, pg. 243).
Mesmo isolada, baseada em como ela é afetada pelas diversas sensações Condillac faz ver que
a estátua é capaz de desenvolver uma estética rudimentar. Essa expressão da cultura tem um
fundamento natural constatado desde o início em um nível individual (QUARFOOD, 2002,
pg. 147).
No que concerne aos efeitos cognitivos derivado das sensações exclusivas do olfato,
cabe ainda salientar que os cheiros não podem caracterizar para estátua uma ideia geral visto
que ela não sabe que existem objetos. Por desconhecer objetos, a estátua não pode considerar
que os odores que sente sejam comuns, por exemplo, a várias flores. Portanto, para ela um
odor nada mais é do que ideia particular de uma maneira de ser que lhe é própria
(CONDILLAC, 1993, I, § 3, pg. 82). Todas às vezes que sentir o cheiro de uma flor da
mesma espécie, a estátua experimentará uma mesma maneira de ser e terá acerca desse cheiro
uma ideia particular. “Os odores de cada espécie de flor, não passam para ela de ideias
particulares” (CONDILLAC, 1993, I, § 8, pg. 84).
Na medida em que a experiência ocorre e os cheiros sucedem uns aos outros, a estátua
conhece os diferentes estados pelos quais passa. Ao diferenciar tais estados, ela forma ideia de
número. Ela tem ideia de unidade sempre que tem ou recorda uma sensação assim como
possui ideias de dois e três por ocasião da memória que lembra duas ou três maneiras de ser
distintas (CONDILLAC, 1993, I, § 5, pg. 82). Em relação a esse aspecto, nota-se que sem o
auxílio dos signos os conhecimentos da estátua são bastante limitados. Sem ajuda dos signos a
memória não poderá determinar o número de suas ideias quando a sucessão dessas for mais
32
extensa. Para Condillac são apenas três as maneiras de ser que a estátua pode perceber de
maneira clara (CONDILLAC, 1993, I, § 7, pg. 83). Por poder perceber até três ideias ao
mesmo tempo, a estátua pode fracionar o tempo em passado, presente e futuro. Dessa
maneira, indica-se o papel fundamental que desempenha a memória enquanto base do
desenvolvimento psicológico, fundamento da consciência do eu e da percepção do tempo
(QUARFOOD, 2002, pg. 132).
Graças à memória, a estátua pode formar ideia do possível e do impossível. Ela – a
estátua – tem o hábito17
de ser, deixar de ser e voltar a ser um mesmo odor. Por essa razão,
julga que é possível ou não existir de uma determinada maneira. Como conhece diferentes
maneiras der ser, ela nota que quando é uma deixa de ser outra e julga ser impossível que seja
das duas maneiras simultaneamente (CONDILLAC, 1993, I, §9-10, pg. 84-85). Se não
houvesse a memória enquanto capacidade de retenção das sensações, toda sensação pareceria
ser para estátua sempre a primeira sensação. Em relação a essa questão, é interessante
consideramos os comentários de Monzani quando afirma que “a constituição da memória é
uma condição essencial para que as operações intelectuais deslanchem, pois, sem ela, não lhes
restariam nenhum vestígio de suas sucessivas modificações” (MONZANI, 2011, III, pg. 231).
Por ocasião da memória é que a estátua pode diferenciar os diferentes odores que nela
se dá. Essa capacidade de discriminar odores estabelece as condições intelectuais que
permitem o desenvolvimento da ideia de sucessão. As diferenças entre sensações marcam
uma descontinuidade, um intervalo entre elas. Assim, a estátua não pode sentir que deixa de
ser o que era sem se representar nessa mudança uma duração de dois instantes
(CONDILLAC, 1993, I, § 11, pg. 85). Um instante passado, outro presente. Um instante nada
mais é do que a presença sem sucessão de uma ideia na alma. Ao deixar de ser o que era a
estátua representa uma duração passada – ela deixa de ser um determinado cheiro. Por outro
lado, ela representa uma duração futura, pois, devido ao hábito, ela julga que após uma
sensação deve-se seguir outra. A passagem de uma sensação a outra dá a ideia de passado. Por
conseguinte, a ideia de futuro pressupõe uma repetição. É preciso, diz Condillac, “que ela
tenha passado muitas vezes pela mesma sequência de sensações e tenha formado o hábito de
julgar que, após uma modificação deve seguir outra” (CONDILLAC, 1993, I, § 12, pg. 86).
A duração pode ser conhecida pela estátua com base na sucessão de suas ideias pela
memória ou através da afecção dos órgãos sensíveis. Nesse ponto, podemos observar o
esforço de Condillac para dar conta da noção de tempo de maneira empírica, a posteriori. A
17
Para Condillac, o hábito nada mais é do que a facilidade de fazer o que se fez (CONDILLAC, I, § 13, pg. 67).
33
noção de sucessão e duração configura uma noção de tempo rudimentar para estátua. Quanto
a essa questão, Bertrand salienta que primeiro ele é uma consciência rítmica – dada pela
sequência em que as sensações afetam os sentidos. Em seguida, a temporalidade é linear,
derivada da memória – que conserva as sensações na ordem em que a experiência ocorre
(BERTRAND, 2002, pg. 29). Em relação a essa questão, Quarfood acrescenta que o tempo
nada mais é do que a consequência da linearidade da recepção das sensações. Trata-se de um
tempo relativo à experiência já que as sensações se sucedem a um ritmo diferente segundo as
ocasiões (QUARFOOD, 2002, pg. 131).
Para ilustrar o papel que cumpre a memória na configuração da noção de tempo,
tomemos o seguinte exemplo: vejamos essa sequência em que os odores encontram-se
ligados: junquilho, rosa, violeta. Qualquer um desses odores, quando afetar o olfato, a
memória prontamente lembrará a estátua os outros dois – não podemos perder de vista que
para Condillac as ideias são registradas pela memória de acordo a ordem e sucessão da
experiência. Se o olfato for afetado pelo odor de violeta, os demais serão relembrados como
precedentes e a estátua se representará uma duração passada. Diferentemente, caso o olfato
seja afetado pelo odor de junquilho, os demais serão relembrados como subsequentes, e a
estátua representará uma duração vindoura (CONDILLAC, 1993, I, § 12, pg. 86). No que
concerne à noção de duração formada pela estátua cabe indicar que não se trata de uma
duração absoluta. A noção de duração é relativa à maneira de ver da estátua. A ideia de
duração deriva da sucessão de odores que são transmitidos pelos órgãos ou lembrados pela
memória – uma sensação após outra. A estátua não conheceria mais de um instante se a ação
do primeiro corpo odorífero sobre seu órgão tivesse agido sobre ela de maneira uniforme
(CONDILLAC, 1993, I, § 17, pg. 87-88). É necessário variação da intensidade ou do
conteúdo das sensações para marcar uma diferença entre as sensações configurando, assim, as
noções de instante e duração. Feitas essas considerações acerca da noção de tempo, podemos
passar às considerações acerca da noção do eu da estátua. Na constituição da noção do eu a
memória desempenha papel fundamental.
Para Condillac, o eu da estátua restrita ao olfato nada mais é do que um conjunto de
sensações que ela experimenta e a memória lembra. Ela é em um só momento a consciência
do que é e a lembrança do que foi (CONDILLAC, 1993, I, § 17, pg. 90-91). Quanto a essa
característica do eu Quarfood assinala que a estátua descobre sua identidade comparando as
diferentes impressões que vivencia. Embora essas impressões sejam diferentes umas das
outras, há um ponto fixo que permanece constante. Dentro dessa ideia de constância o eu é
delimitado em função das impressões que passam a ser percebidas como manifestações do
34
próprio eu (QUARFOOD, 2002, pg. 131). Essa é uma primeira definição do eu dada por
Condillac – eu enquanto modificações dos sentimentos. Em relação a essa questão, salienta-se
que a noção do eu no Tratado das Sensações se configura em dois momentos. Como destaca
Bertrand, em um primeiro momento ou eu da estátua nada mais é do que a coleção de
sensações atuais e lembranças das sensações passadas. Em um segundo momento, essa
coleção liga-se à consciência do corpo pela mediação do tato que permite a estátua julgar a
existência do corpo próprio18
(BERTRAND, 2002, pg. 29).
Em síntese, vimos que com base nas sensações proporcionadas pelo olfato, Condillac
expõe o desenvolvimento das ideias da estátua. De maneira mais específica, ela forma ideias
particulares acerca dos odores que vivencia e forma ideias gerais e abstratas de bom,
contentamento, descontentamento, número, do possível, do impossível e do eu. Posto isso,
salienta-se que as sensações olfativas consideradas em si mesmas possuem um caráter não
representativo, ou seja, não permitem a estátua formar ideia de nada que esteja fora dela.
Nesse sentido, Liébana acrescenta que nessas condições de limitação sensorial não pode dar-
se para estátua conhecimento de matéria; nem sequer sentimento de exterioridade, menos
ainda ideia de corpo (LIÉBANA, 1996, II). Com a análise do olfato, Condillac não tem os
elementos que lhe possibilitem contrapor o idealismo de Berkeley. Quanto a essa questão,
devemos examinar se as ideias ocasionadas pelos demais sentidos fornecem os componentes
necessários que permitem ao filósofo provar que existe um mundo exterior, independente do
sujeito, opondo-se assim ao idealismo de Berkeley.
Quanto à investigação acerca dos efeitos cognitivos das sensações derivadas dos demais
sentidos, devemos raciocinar com eles de modo semelhante ao que fizemos com olfato. O tipo
de sensação que põe todo o processo em marcha é o que muda entre um sentido e outro.
2.3 Sensação e ideias da audição e do paladar
Após uma análise mais extensa do olfato, vamos apresentar de modo breve quais ideias
específicas derivam da audição e do paladar. Em linhas gerais, devemos conduzir nossa
investigação de modo semelhante ao que fizemos com o olfato.
Limitada ao ouvido, a estátua percebe dois tipos de sensações som e ruído. “O ouvido é
organizado para captar uma relação determinada entre um som e outro som; mas entre um
18
Examinaremos essa outra noção de eu ao tratar das ideias derivadas do tato no terceiro capítulo.
35
ruído e outro ruído ela capta uma relação vaga19
” (CONDILLAC, 1993, I, § 2 pg. 93). Ou
seja, restrita ao uso desse sentido, a estátua não poderá se estender além dos sons e ruídos.
Tais sensações apenas ocasionam modificações nos sentimentos da estátua. Os sons
percebidos caracterizam suas ideias particulares e os diferentes estados de contentamento e
descontentamento comuns as suas diferentes maneiras de ser engendram as ideias abstratas da
estátua. Por outro lado, os sons podem originar os sentimentos estéticos de belo. Para
Condillac “um som isolado pode ser belo” (CONDILLAC, 1993, IV, § 7 pg. 223) desde que
seja percebido de modo agradável pelo ouvido. Por fim, acrescenta-se que com base nas
sensações do ouvido a estátua não pode formar ideia de nada que esteja fora dela. Feitas essas
considerações acerca da audição, passemos ao paladar com o intuito de verificar o que surge
de novo na vida cognitiva da estátua.
No que concerne ao paladar, Condillac dota o interior da boca da estátua de
sensibilidade. O experimento vai sendo manipulado de acordo às necessidades do filósofo.
Dessa maneira, a estátua não pode tomar os alimentos, mas Condillac supõe que o ar leve até
sua boca todas as espécies de sabores. Semelhante ao que observamos com odores e sons, os
sabores caracterizam ideias particulares acerca de uma maneira de ser da estátua. De maneira
geral, os sabores afetam a estátua de modo agradável ou desagradável ocasionando estados de
contentamento e descontentamento. Esses estados são comuns às diferentes maneiras de ser
da estátua e por ocasião desses, ela forma ideias abstratas. Com base nas sensações agradáveis
ocasionadas pelos sabores que vivencia a estátua forma ideia de bom (CONDILLAC, 1993,
IV, § 7 pg. 222).
Por fim, destaca-se que as sensações ocasionadas pela audição e paladar não permitem a
estátua formar ideia de objetos. Tais sensações não passam de modificações dos sentimentos
da estátua, tudo que ela pode conhecer são suas maneiras de ser. Portanto, os resultados
alcançados com análise desses sentidos são semelhantes àqueles obtidos com o olfato. Dessa
maneira, Condillac vai desenhando os limites daquilo que é possível conhecer com cada um
dos sentidos. Por outro lado, podemos concluir que a investigação de Condillac até o
momento não lhe permite dar conta da ideia de exterioridade ou de uma realidade
independente do sujeito cognoscente. Em relação a essa questão, passemos ao exame da visão
a fim de verificar se as consequências cognitivas originadas desse sentido fornecem novos
dados que permitem a Condillac confrontar o idealismo de Berkeley.
19
Para Condillac, o ouvido bem organizado apreende um harmônico (som coerente, congruente, proporcionado).
O ruído por sua vez é resultado de sons que não possuem harmônicos comuns, ele é, portanto, um som
inapreciável (CONDILLAC, 1993, pg. 112).
36
2.4 Sensações e Ideias da Visão
Com a visão a investigação deve suceder necessariamente como realizada com os
demais sentidos. Limitada a esse sentido a estátua não vê senão luz e cores. Ao abrir os olhos
pela primeira vez, a estátua percebe inúmeras cores e não nota nenhuma de modo particular.
Para Condillac, essa primeira atenção abarca todas as cores de uma maneira muito confusa
(CONDILLAC, 1993, I, § 2 pg. 102). Mas como poderá a estátua formar uma noção
particular de cor se as vê de modo confuso? A chave para essa resposta é dada pelo prazer que
atua enquanto critério de seleção e determinação da atenção.
A razão que leva a estátua a perceber uma cor em detrimento de outra, não tem qualquer
motivação teórica e sim prática (CASSIRER, 1993, III, pg. 148). Entre tantas cores, aquela
que for mais agradável, prazerosa, levará a estátua a conceder sua atenção. Nesse sentido, diz
Condillac, “a cor que ela distingue de maneira particular, que vê como que a parte: será
aquela para a qual o prazer irá determinar sua atenção com certo grau de vivacidade”
(CONDILLAC, 1993, I, § 3, pg. 103). Em síntese, o prazer estabelece as condições de
possibilidade para que a estátua diferencie as cores. Na medida em que seus olhos forem se
exercitando, a estátua notará cores diferentes. Ao conceder atenção durante algum tempo a
uma mesma cor, seus olhos se cansam. Podem cansar-se tanto pela vivacidade com que a cor
age sob os olhos quanto pelo fato dos olhos não conseguirem deter-se numa mesma posição.
Frente ao desconforto gerado por ambas as situações, seus olhos executam um movimento
maquinal e são atingidos por uma nova cor. Esse movimento que faz o olho, só se deterá
quando a estátua encontrar uma cor mais viva que seja mais agradável, diante dessa, seus
olhos repousam (CONDILLAC, 1993, § 2 pg. 102). Essa outra cor percebida apresentará para
estátua uma nova maneira de ser.
Nesse ponto, Mondolfo reconhece certa incerteza de Condillac com relação à visão. O
comentador defende a tese de que no Tratado das Sensações a visão ocuparia uma posição
intermediaria entre os dois grupos de sentidos. A posição intermediária da visão justifica-se
pelo fato desse sentido proporcionar à estátua, entre os atributos do mundo corpóreo, não a
solidez e sim a extensão – visto que as cores são extensas (MONDOLFO, 1963, pg. 37). No
entanto, cabe salientar, que essa extensão é percebida pela visão de maneira imprecisa, um
sentimento vago que não permite à estátua descobrir limite nos corpos ou discriminar
qualquer propriedade como as de comprimento, largura ou profundidade. A extensão latente
nas cores, não fornece a estátua nenhuma ideia de tamanho ou figura visto que essa extensão
não é captada por ela enquanto limite determinado. Nesse ponto, Madignier reconhece que em
37
relação a essa questão é necessário distinguir duas coisas: “a intuição de extensão e a
percepção de um objeto figurado. A vista proporciona a primeira, somente o tato sugere a
segunda” (MADIGNIER, 1967, pg.15 apud LIÉBANA20
, 1999, pg. 306). Quanto a essa
questão, Liébana acrescenta que a visão confere ao cognoscente uma extensão vaga, confusa,
uma espécie de matéria de extensão. A visão não aporta nenhuma noção de situação nem
movimento. Para que a estátua tenha uma noção de situação é fundamental que ela veja um
objeto fixado em um ponto ou local determinado, e para formar noção de movimento, ela
precisa perceber a mudança desse objeto de um local a outro (LIÉBANA, 1996, V).
Dessa maneira, a capacidade visual ainda não permite configurar objetos. O que a
estátua vê não passa de manchas de diferentes cores. O transito dos objetos face aos seus
olhos são captados de maneira desorganizada, confusa, enquanto realidade subjetiva. Para
formar uma ideia de extensão não basta ver, é necessário aprender a olhar. No Tratado das
Sensações Condillac defende a tese de que existe uma diferença entre ver e olhar21
. Ver é
algo passivo, o ato de ver é necessário, mas não suficiente para que a estátua forme ideia de
extensão. Dessa maneira, ela precisa aprender a olhar. Olhar é uma atitude ativa que envolve
análise das diferentes partes que compõem um conjunto de sensações. O sentimento vago de
extensão só se tornará uma ideia para estátua quando ela discriminar diferentes qualidades nas
sensações que afetam seus olhos. Nesse processo o tato desempenha um papel fundamental,
pois, a sensação de solidez, como veremos, é a única que poderá levar a estátua a descobrir
corpos e formar uma ideia precisa de extensão. Portanto, o fato das cores ocasionarem um
sentimento vago de extensão, não garante que a estátua tenha ou forme uma ideia de
exterioridade.
Sendo assim, podemos reconhecer que a estátua restrita a visão não possui
conhecimento de nenhum objeto exterior. As ideias particulares de cor forjadas pela estátua
não são nada mais que suas maneiras particulares de ser. As ideias de contentamento,
descontentamento e belo – pois tudo que agrada a visão é belo nos diz Condillac –
caracterizam noções gerais e abstratas formadas por ela com base nesse sentido. As ideias
derivadas da visão não proporcionam qualquer ideia de espaço, objeto, posição, movimento
ou figura. O sentido da vista, como indica Liébana, “não tem qualquer primazia na ostentação
do espaço; se converte, como o resto dos sentidos, a exceção do tato, em subjetivo e
20
LIÉBANA, Ismael, Condillac: Conocimiento y mundo externo; Éndoxa: Series Filosóficas, n." 11, 1999, pp.
297-320. UNED, Madrid. 21
Aqui apena mencionamos essa distinção. Ao tratar do problema de Molineux, examinaremos essa diferença de
maneira mais detalhada. Não a realizo aqui para não antecipar questões que envolvem a relação da visão com o
tato.
38
imanente” (LIÉBANA, 1996, II). As considerações de Condillac até aqui, não dizem nada
acerca da ideia de exterioridade muito menos fornecem qualquer prova acerca da existência
de uma realidade que seja absolutamente diferente da estátua. Todas as sensações que
examinamos até o momento não passam de meras modificações dos sentimentos.
2.5 Sensação e ideias do Tato
Privada dos demais sentidos, devemos imaginar a estátua limitada ao tato a fim de
examinar quais ideias derivam da sua atividade e se essas proporcionam algo de novo em
relação ao olfato, audição, paladar e visão. Nossa investigação acerca do tato reconhece, como
salientado por Bertrand, dois grupos de sensações táteis no Tratado das Sensações: o
primeiro, constituído pelo sentimento fundamental ligado ao movimento de respiração da
estátua e as sensações de calor, frio, frêmito nas entranhas. O segundo, diz respeito a sensação
de solidez ligada ao movimento próprio e ao contato dos objetos exteriores (BERTRAND,
2002, pg. 53). Sendo assim, dividiremos nosso exame acerca do tato em duas sessões: a
primeira, diz respeito ao tato e o sentimento fundamental; a segunda concerne o tato e a
sensação de solidez.
2.5.1Tato e sentimento fundamental
Restrita ao tato, a estátua existe a princípio por um sentimento uniforme derivado da
ação mútua das partes do seu corpo e principalmente pelo movimento da respiração. Segundo
Condillac esse seria o menor grau de sentimento a que se poderia reduzir a estátua. O filósofo
denomina esse menor grau de sentimento de sentimento fundamental (CONDILLAC, 1993,
II, § 1, pg. 117). Trata-se de uma condição extremamente passiva, a estátua existe em razão
desses sentimentos, digamos, orgânicos. Esse menor grau de sentimento comanda sua vida
animal. A estátua somente perceberá modificações no seu sentimento quando o ar quente ou
frio lhe afetar ou quando algo externo lhe causar algum impacto. Essas afecções modificam os
seus sentimentos percebidos por ela enquanto modificações do próprio eu (QUARFOOD,
2002, pg.140). Restrita a essas mudanças ela não forma uma ideia do corpo próprio ou de
corpos diferentes de si. Para que possa formá-las, é necessário um algo mais. Nesse sentido,
como é salientado por Mondolfo, o essencial não é o contato passivo senão o esforço ou
pressão ativa em que o tato sente a resistência, e opõe o que toca ao que é tocado; em outras
palavras, solidez (MONDOLFO, 1963, pg. 40).
39
Diante dessas observações, podemos perceber que até aqui Condillac não está dizendo
nada de novo com base no tato. O sentimento fundamental ocasionado pelo tato não
proporciona nada além de meras modificações dos sentimentos da estátua. O movimento da
respiração assim como as sensações de calor ou frio, ou os impactos externos ocasionados a
estátua, não permitem a ela formar ideia de extensão. Nesse sentido, Mondolfo reconhece que
o tato tomado em si mesmo não é menos subjetivo que os demais sentidos, as impressões
percebidas não lhe fornecem qualquer ideia de extensão (MONDOLFO, 1963, pg. 38). Além
disso, afirma Condillac, ela não forma qualquer ideia de movimento, visto que ela ainda não
sabe que tem braço, que ele ocupa um lugar e pode mudar de posição (CONDILLAC, 1993,
II, § 2, pg. 119).
Visto que as sensações são conteúdos mentais, como é possível passar das sensações ao
conhecimento dos corpos22
? Essa questão é no mínimo espinhosa. Para dar conta da ideia de
exterioridade assim como de um mundo exterior independente da estátua, Condillac precisa
solucioná-la. Nessa direção, devemos examinar o segundo grupo de sensações ocasionadas
pelo tato.
2.5.2 Tato e sensação de solidez
Nesse grupo, a sensação de solidez bem como a noção de movimento irá nos fornecer a
chave para entendermos como a estátua aprenderá a conduzir seus movimentos e formar ideia
de corpo. Como vimos anteriormente, a estátua começa existir com o sentimento fundamental,
por essa razão, os seus primeiros movimentos não são uma escolha, e sim, obra da natureza.
Na presente seção, devemos imaginar a estátua de posse de todos os seus membros. A
princípio, os seus movimentos são executados sem qualquer intencionalidade, pois, ela ainda
não tem consciência do corpo próprio e dos corpos diferentes de si. Portanto, não se
movimenta de acordo a sua vontade. Por essa razão, caberá à natureza produzir os primeiros
movimentos nos membros da estátua.
Se a natureza fornece a estátua uma sensação agradável, a estátua poderá usufruir dela
conservando as partes do seu corpo em uma mesma posição. Nesse sentido ela tende muito
mais ao repouso do que ao movimento. Portanto, é natural que a estátua vivencie suas
sensações agradáveis em repouso. Por outro lado, é natural também que ela recuse uma
22
Para que a estátua possa conhecer os corpos é fundamental que as sensações produzam o fenômeno da
extensão. Com os sentidos até aqui analisados, incluído o sentimento fundamental derivado do tato, nenhuma das
sensações ocasionadas permitiram à estátua representar ou formar uma ideia de corpo, contíguo e extenso.
40
sensação que lhe ocasione dor. Nesse caso, é consequência de sua organização que seus
músculos, contraídos pela dor, agitem seus membros, e que ela se mova sem ter essa intenção,
sem saber ainda que está se movendo (CONDILLAC, 1993, II, § 2, pg. 124).
Assim, fica estabelecido que os primeiros movimentos da estátua variam e, na medida
em que alternam, produzem sensações de prazer e de dor. Em meio a esses movimentos é por
acaso que ela toca seu corpo e toca os objetos diferentes de si. Esses primeiros toques, a
princípio fortuitos, conduzirão à estátua a descoberta dos corpos. Nesse ponto, vemos que o
tato aliado ao movimento já não pode ser considerado um tato passivo. O que a estátua tem
agora é um tato ativo que nada mais é do que o tato aliado ao movimento. Essa combinação é
condição de possibilidade para que a estátua descubra tanto o corpo próprio quanto os corpos
diferentes de si. Nessa direção, Mondolfo indica que “a sensação de esforço e de pressão ativa
do tato nasce do movimento. Do movimento Condillac faz nascer a sensação de solidez que
não aparece na estátua enquanto ela encontra-se imóvel e passiva” (MONDOLFO, 1963, pg.
38).
O movimento aliado ao tato encontra os corpos que lhe oferecem resistência. Graças ao
movimento o tato pode transmitir à consciência sensação de solidez redundando na descoberta
do corpo próprio e dos corpos do entorno (LIÉBANA, 1999, pg. 311). É com base na
sensação de solidez que a estátua julga que os corpos são impenetráveis. Nesse sentido,
Condillac reconhece que a impenetrabilidade é uma propriedade inferida e atribuída a todos
os corpos. A impenetrabilidade revela que o mesmo lugar não pode ser ocupado por vários
corpos: cada qual exclui todos os outros do lugar que ocupa. Quanto à impenetrabilidade,
cabe observar que o filósofo não a considera uma sensação já que não sentimos os corpos
impenetráveis. O que a estátua faz é julgar que os corpos são impenetráveis em consequência
das sensações que eles exercem sobre ela. Essa conclusão acerca da impenetrabilidade deriva
da sensação de solidez, pois, é com base nessa sensação que a estátua percebe os corpos se
excluírem de maneira recíproca, ela os percebe de maneira distinta, logo, julga que são dois
(CONDILLAC, 1993, II, § 3, pg. 125).
Ao julgar que os corpos são diferentes, fica evidente que os resultados cognitivos
proporcionados pela sensação de solidez percebida pelo tato não se restringem, como ocorre
com as sensações ocasionadas pelos demais sentidos, a meras modificações dos sentimentos
da estátua. Dessa maneira, fica estabelecido que o tato movente e a sensação de solidez
estabelecem as condições cognitivas que vão resultar no descobrimento dos corpos, corpo
41
próprio e corpo diferente de si23
. Ao tocar o seu corpo a estátua começa a se reconhecer em
todas as partes que toca. Porque tão logo põe as mãos em uma delas, o mesmo ser sensciente
responde a si mesmo de uma parte a outra, sou eu, ainda sou eu (CONDILLAC, 1993, II, § 3,
pg. 125). Quanto a esse aspecto, Mondolfo expressa que essa noção de eu deriva dessa
espécie de diálogo entre as mãos e as outras partes do corpo tocado (MONDOLFO, 1963, pg.
39). Aqui o eu descobre-se circunscrito dentro de limites, e surge a consciência do corpo
próprio ou eu corporal.
Ainda em relação à descoberta dos corpos, Condillac considera que ao tocar os outros
corpos, o eu que sente as modificações em sua mão, não se sente modificado nesse corpo, se a
mão diz eu, ela não recebe a mesma resposta, o eu que antes respondia a si mesmo, cessa de
responder. Assim, a estátua julga esse corpo como algo externo a si (CONDILLAC, 1993, II,
§ 5, pg. 127). Aqui vemos, porque à sensação de solidez é única responsável pela origem da
ideia de exterioridade na estátua. Com ela as sensações deixam de ser meras modificações dos
sentimentos e passam a ser tomadas enquanto qualidades dos corpos externos. Cabe a
sensação de solidez conduzir à estátua a essa passagem de si para fora de si. É nesse momento
que vemos a estátua encontrar uma realidade diferente dela mesma. Nesse aspecto, Liébana
afirma que “essa oposição captada unicamente por via tátil revela a consciência a existência
de uma realidade, de uma ordem de entidades, que, opostas ao eu cognoscente, nada tem
haver com ele” (LIÉBANA, 1999, pg. 310). Esse é o trunfo de Condillac para dar conta da
ideia de exterioridade e sua contrapartida, isto é, a tese de que existe um mundo exterior24
independente do sujeito cognoscente. Dessa maneira pode-se pensar que Condillac cumpre25
a
exigência inicial de Diderot26
que considerava o idealismo um sistema absurdo, que deveria
ser denunciado. Aos olhos de Diderot, caberia a Condillac fazer tal denuncia.
No momento em que as sensações deixam de ser meras modificações do ser da estátua e
passam a representar objetos, ocorre que as próprias sensações percebidas pelo tato enquanto
23
Voltaremos a falar sobre essa distinção quando tratarmos nesse capítulo da ideia particular de objeto. 24
No quarto capítulo trataremos do valor e alcance dos conhecimentos sensíveis e de uma possível “prova” de
Condillac acerca da existência do mundo exterior. 25
No IV capítulo discutiremos essa questão a fim de examinar se de fato Condillac cumpre tal exigência. 26
São chamados idealistas esses filósofos que, não tendo consciência senão de sua existência e das sensações
que se sucedem dentro deles próprios, não admitem outra coisa: sistema extravagante que só podia ao que me
parece, dever seu surgimento aos cegos; sistema que, para vergonha do espírito humano e da filosofia, é o mais
difícil de combater, embora seja o mais absurdo de todos. Está exposto com tanta franqueza como clareza em
três Diálogos do doutor Berkeley. Seria conveniente chamar o autor do Ensaio sobre a origem dos
conhecimentos humanos para examinar essa obra: nela encontrará matéria para observações úteis, agradáveis,
finas e tais, como só ele sabe fazer. O idealismo merece ser denunciado; e essa hipótese tem como que incitá-lo
(DIDEROT, 2006, pg. 42-43).
42
agradáveis27
ou desagradáveis serão relacionadas a esses corpos. As primeiras lhe ensinam
quais os objetos ela deve buscar; as segundas lhe ensinam quais devem ser evitados. Nota-se
aqui, que uma vez constituída a ideia de objeto, o prazer continua orientando a experiência
levando a estátua a buscar aqueles objetos mais agradáveis em detrimento daqueles que lhe
causaram sofrimento. Salienta-se ainda, que os prazeres vinculam a estátua aos objetos
externos que passam ser a finalidade dos seus desejos. Quanto a isso, Condillac afirma que
“os desejos, ao invés de concentrar nossa estátua em suas maneiras de ser, como acontecia
com os outros sentidos, arrastam-na continuamente para fora de si” (CONDILLAC, 1993, II,
§ 6, pg. 130). Ora, agora são seus próprios desejos que indicam para estátua que para além
dela existe algo.
Nesse ínterim, Condillac reconhece que “seu amor pelos corpos é efeito do amor que
tem por si mesma: sua única intenção ao amá-los, é a busca do prazer ou a fuga da dor; e é
isso que vai lhe ensinar a se conduzir no espaço que a estátua está começando a descobrir”
(CONDILLAC, 1993, II, § 7, pg. 130). Aqui podemos notar uma dimensão pragmática nas
ações da estátua. Seu interesse, seus desejos agora possuem algo específico que deve,
portanto, orientar sua experiência, suas ações. Nesse ponto vemos emergir a intencionalidade
dos movimentos da estátua. Somente depois que aprendeu a tocar, ela tornou-se capaz de
regular seus movimentos de acordo a sua vontade. Além disso, acrescenta-se que com o tato a
estátua torna-se mais curiosa, ela se movimenta e persegue aquilo que deverá contribuir para a
sua felicidade. Essa curiosidade proporcionada pelo tato se converte em peça fundamental do
desenvolvimento dos conhecimentos da estátua. Para Condillac, a curiosidade é uma espécie
de desejo acerca de algo novo. A estátua ao se movimentar faz descobertas, o hábito lhe
ensina, portanto, que poderá fazer outras (CONDILLAC, 1993, II, § 7, pg. 132). Ao encontrar
corpos, os prazeres ocasionados por esses faz com que a estátua dedique a eles mais atenção.
Por essa razão, defende Condillac, “a estátua forma ideias mais exatas sobre eles”
(CONDILLAC, 1993, II, § 1, pg. 134).
Ao tocar os corpos, ela forma ideias acerca da solidez, dureza, calor, etc. Forma ainda,
ideia de extensão, já que, como defende Condillac, “a mão possui essa vantagem de não poder
manejar um objeto sem notar sua extensão e o conjunto das partes que o compõe, ela o
circunscreve” (CONDILLAC, 1993, II, § 7, pg. 136). Dessa maneira podemos observar
porque privada do tato a estátua não poderia formar ideia de extensão. A sensação de solidez
ocasionada pelo tato é condição de possibilidade para que a estátua julgue os corpos extensos
27
Aqui cabe considerar que para Condillac as sensações táteis podem dar origem a ideia de belo, pois, tudo que
agrada ao tato é belo. É no mínimo curiosa essa concepção estética vinculada ao tato.
43
e figurados. Um corpo, como define o filósofo, nada mais é do que “às percepções de
grandeza, solidez, dureza que a estátua julga reunidas, isso é algo que o tato revela e, para
formar tal juízo não é necessário dar a essas qualidades um sujeito, uma base, ou como dizem
os filósofos um substratum” (CONDILLAC, 1993, II, § 15, pg. 139). Nesse ponto, enfatiza-se
que Condillac evita tecer qualquer comentário que ultrapasse os limites da própria
sensibilidade. Aqui começa a se configurar as fronteiras e limites do conhecimento que se
adéquam a capacidade dos órgãos sensíveis. Essa nova realidade corpórea descoberta pela
estátua não revela a existência de uma substância. Nenhuma essência metafísica é captada,
somente as percepções que experimenta têm existência real. O conhecimento dos corpos se
reduz aos dados da sensibilidade (LIÉBANA, IV, 1996).
No que concerne ao desenvolvimento das ideias, devemos considerar ainda, que
concomitante a gênese da ideia de corpo, vai se desenhando uma espécie de geometria
rudimentar da estátua. Como vimos anteriormente, a estátua ao tocar os corpos os
circunscreve. Sendo assim, suas mãos assumem o formato do corpo que toca. Ora, é pela
comparação dos diferentes conjuntos formados pela reflexão que a estátua julga que nem
todas as figuras se assemelham e forma diferentes ideias acerca delas (CONDILLAC, 1993,
II, § 7, pg. 137). O tato dá origem à ideia de figura e consequentemente de grandeza. A ideia
de grandeza se estabelece a partir do momento em que o tato circunscreve às sensações dentro
de um limite. Ao estabelecer limite às sensações, temos a própria extensão percebida de
maneira determinada, o que permite a estátua formar ideia de corpo. Assim, a extensão deixa
de ser vaga e ilimitada como ocorre com a visão e passa a representar corpos e sua grandeza
específica, afinal, como mencionado, as mãos não podem tocar um corpo sem perceber sua
grandeza. Uma grandeza nada mais é do que um conjunto de sensações percebidas
simultaneamente pela estátua.
Uma vez fixada a ideia de grandeza, fundam-se as condições intelectuais que permitem
a estátua formar ideia de espaço. Para Condillac, a partir do momento em que a estátua
conhece uma grandeza específica ela tem um parâmetro que lhe permite medir outras; tem
como medir o intervalo que as separa, o intervalo que ocupam; numa palavra tem ideia de
espaço (CONDILLAC, 1993, II, § 24, pg. 143). Nesse ponto, vemos que Condillac não toma
o espaço com algo dado que se impõe e se estabelece por si. Muito menos o considera
estrutura universal ou forma a priori da sensibilidade. A sua explicação que dar conta da ideia
de espaço como algo derivado da experiência, ou seja, a posteriori.
Em síntese, com base nas considerações acima, podemos perceber as ideias específicas
derivadas do tipo de atenção proporcionada pelo tato. A estátua forma, por exemplo, ideias
44
abstratas de extensão, figura, porque considera que essas ideias são comuns a diferentes
corpos. Essas noções abstratas, como observa Condillac, não se elevam até as noções de ser,
substância, essência, natureza; essas espécies de fantasmas palpáveis ao tato dos filósofos
(CONDILLAC, 1993, II, § 21, pg. 142). Cabe ainda mencionar que diferentemente dos
demais sentidos, a sensação de solidez é a única capaz de revelar para estátua a existência de
uma realidade diferente e independente de si. É através dela que Condillac encontra a chave
que permite solucionar a sua maneira o problema acerca do mundo exterior e combater o
idealismo atribuído à Berkeley.
45
Capítulo III
Objeto e verdade
No capítulo anterior, com base nas sensações derivadas de cada sentido apresentamos o
desenvolvimento das diferentes ideias da estátua. Em relação a esse ponto, vimos que as
sensações proporcionadas pelo olfato, audição, paladar e visão engendram ideias particulares
e abstratas. Entretanto, tais ideias são incapazes quando consideradas isoladamente de
representar objetos. A possibilidade de representar objetos deriva da atividade. A partir da
análise do tipo de atenção derivada do tato, indicamos como Condillac explica a formação da
ideia de exterioridade e prova, a sua maneira, a existência de um mundo exterior independente
do sujeito. No presente capítulo, analisaremos em primeiro lugar a posição de Condillac frente
ao problema de Molineux. Em segundo lugar, investigaremos o desenvolvimento da ideia de
um objeto particular e o tipo de verdade derivada dessa. Em terceiro, examinaremos como a
ideia de um objeto origina ideias gerais e abstratas e que tipo de verdade deriva dessa última.
3.1Visão e Tato: O problema de Molineux
Em uma síntese que faz acerca dos problemas que tratam a psicologia e a teoria do
conhecimento do século XVIII, Cassirer defende que todas as pesquisas deságuam em um
problema teórico fundamental: o problema de Molineux28
(CASSIRER, 1993, III, pg. 153).
Na tentativa de resolvê-lo, tiveram início uma série de investigações cientificas e filosóficas
que duram até os nossos dias29
. As questões são variadas: as experiências que fizemos num
dos nossos setores sensoriais nos permitem constituir um setor de conteúdo qualitativamente
diferente e de outra estrutura especifica? Haverá uma conexão interna que nos permita passar
diretamente de um setor a outro, por exemplo, do mundo tátil ao mundo visível30
? A conexão
entre aquilo que percebemos com o tato e com a visão se da de maneira empiricamente
aprendida ou trata-se de algo inato, a priori?
28
Molineux escreveu uma carta a Locke, em que propunha o seguinte problema, apresentado por Locke na sua 2ª
edição do Ensaio sobre o entendimento humano. O problema consiste no seguinte: “Um cego de nascença que
tivesse adquirido, graças à experiência do tato, o conhecimento exato de certas formas corporais e que pudesse
apontar com segurança as diferenças entre elas, continuaria possuindo esse mesmo dom de distinção depois que
uma feliz operação lhe proporcionasse o sentido da visão e ele tivesse que passar a julgar essas mesmas formas
com base em dados puramente ópticos? Poderá ele distinguir de imediato, por meio da visão, um cubo de uma
esfera, ou terá que realizar um longo e difícil esforço de conciliação antes de chegar a estabelecer a ligação entre
as impressões táteis e a forma visível de um e de outro volume?” (CASSIRER, III, 1993, pg. 154). 29
Sobre essa consideração ver artigo: Liébana, I.M. El ciego de Molyneux: un problema metafísico sobre
interconexión sensorial. Contextos XVII-XIII/33-36, 1999-2000, pg. 153 a 173. 30
Ver Cassirer. A filosofia do ilumisimo. Campinas: Ed. Unicamp, 1994, pg. 153-187.
46
Feitas essas observações gerais acerca do problema de Molineux, podemos indicar que
entre as inquietações filosóficas de Condillac o problema mencionado tem seu lugar, afinal,
foi objeto de pesquisa em duas de suas obras: Ensaio sobre a origem dos conhecimentos
humanos (1747) e Tratado das Sensações (1754). Quanto a essa questão, chama atenção que
em cada um dos textos o filósofo apresenta uma posição diferente acerca do problema,
prevalecendo essa última exposta no Tratado das Sensações objeto de nossa investigação. Na
presente seção, examinaremos a posição de Condillac no Tratado das Sensações sem deixar
de tecer alguns comentários acerca da posição adotada pelo filósofo no seu Ensaio sobre a
origem dos conhecimentos humanos.
No Tratado das Sensações, ao começar a tratar do sentido da visão Condillac tece
algumas considerações preliminares dedicadas, segundo ele, a combater preconceitos acerca
desse sentido. Para o filósofo, afirmar que o olho não é capaz de ver um espaço fora de si
pareceria algo extraordinário aos leitores. Esse espanto teria uma razão, o hábito. Para o
filósofo temos o hábito de julgar com a visão os objetos a nossa volta que dificilmente
imaginaríamos como de fato teríamos julgado assim que nossos olhos se abriram à luz. Mas,
frente a preconceitos dessa natureza, a filosofia dá um novo passo. A novidade da filosofia diz
respeito à descoberta de que as nossas sensações não são qualidades próprias dos objetos, e,
pelo contrário, não passam de modificações da nossa alma (CONDILLAC, 1993, § 1 pg. 101
- 102). Diante disso, podemos admitir que os preconceitos a serem combatidos por Condillac
dizem respeito aos seus próprios. Afinal, a tese defendida por Condillac no Tratado das
Sensações acerca da visão difere daquela defendida no seu Ensaio sobre a origem dos
conhecimentos humanos. Nesta última, Condillac assegura que os olhos percebem
diretamente luz, cores, extensão, tamanhos, etc. (CONDILLAC, 2010, §, 13, pg. 127). Nesse
sentido, Bertrand observa que a tese de Condillac no Ensaio sobre a origem dos
conhecimentos humanos é a de que todas as nossas sensações são representativas nelas
mesmas (BERTRAND, 2002, pg. 31). Ou seja, as sensações visuais podem captar diretamente
o espaço, forma e extensão.
Diferentemente dessa, o Tratado das Sensações expõe o giro dado por Condillac no que
concerne à visão e em última instância, ao poder de representação das sensações. Nessa obra
as sensações deixam de ser representativas por si sós e passam a ser tomadas, quando
consideradas de maneira isolada, como não representativas. Dessa maneira, a própria
representação é resultado de uma construção, de um fazer. Como indica Charrak, a função
representativa no Tratado é conquistada a partir de certo momento da gênese. Ela requer certo
nível de complexificação da experiência: ela requer o dinamismo do tato (CHARRAK, 2003,
47
pg. 34). Portanto, reduzida à visão, a estátua encontra-se desprovida do sentimento de
exclusão entre o interior e o exterior que estabeleceria as condições de possibilidade para que
ela analisasse suas próprias sensações (BERTRAND, 2002, pg. 33). No Tratado das
Sensações, a total subjetividade31
do sentido da visão é demonstrada de maneira minuciosa
por Condillac. Entretanto, não basta admitir, como vimos, que a visão nota unicamente luz e
cores, é necessário demonstrar essa tese.
Nessa direção o filósofo começa antecipando possíveis objeções para em seguida
desenvolver seus argumentos. Mas bem sabemos, diz Condillac, que não é possível conceber
cor sem extensão. Por essa razão, poderíamos concluir que a estátua sente-se extensa. A
sensação de cor é uma sensação extensa logo “ela oferece extensão à alma que modifica,
porque ela mesma é extensa, é impossível conceber cor sem extensão. Mas essa extensão
acrescenta Condillac não é nem superfície nem grandeza determinada” (CONDILLAC, 1993,
I, § 8, pg. 106). Não poderia ser superfície, pois a estátua ainda não formou ideia de sólido
(CONDILLAC, 1993, I, § 8, pg. 107). Se não é superfície muito menos será uma grandeza
determinada, já que uma grandeza nada mais é do que uma extensão circunscrita dentro de
limites. Restrita à visão a estátua não pode formar ideia de limite. Sendo assim, o eu da
estátua limitada a esse sentido nada mais é do que meras modificações ocasionadas pelas
cores que vivencia. Quanto a esse aspecto, diz Condillac:
Ora, o eu da estátua não poderia se sentir circunscrito dentro de limites. Ele é
ao mesmo tempo todas as cores que o modificam simultaneamente; e como
ele não vê nada além, não poderia se perceber circunscrito; por ser
modificado ao mesmo tempo por várias cores e se encontrar igualmente em
cada uma delas, ele se sente extenso; e por não perceber nada que o
circunscreva, ela tem um sentimento vago de extensão: é para si uma
extensão sem limites. Parece-lhe repetir-se sem fim; e não conhecendo nada
para além das cores que julga ser ele é para si como se fosse imenso: é tudo e
está por toda parte (CONDILLAC, 1993, I, § 8, pg. 107).
Com base no trecho acima, fica estabelecido, primeiro, o caráter imanente do sentido
da vista no Tratado das Sensações logo, sua diferença com o Ensaio sobre a origem dos
conhecimentos humanos no qual as sensações visuais eram tomadas enquanto representativas
por si sós; segundo, que a ausência da ideia de limite, impede qualquer juízo acerca de algo
percebido como diferente de si. A ideia de limite é, portanto, condição de possibilidade da
representação de qualquer realidade extramental. Posto isto, temos montado o cenário que vai
nos dar a chave para compreender a posição de Condillac acerca do problema de Molineux.
31
Dizer que a visão é um sentido subjetivo diz respeito a sua impossibilidade de representar.
48
Antes, examinemos um pouco mais as considerações de Condillac que segue antecipando
objeções ao tratar da visão. Visto que com a visão a estátua percebe cores, logo percebe
extensão. A extensão que lhe parece imensa, desenha figuras. A estátua acreditará ser essas
figuras? Terá ideias de figuras tão logo tem as sensações de cor? (CONDILLAC, 1993, I, § 8,
pg. 107). Nesse sentido, diz Condillac:
Uma sensação encerra tal e tal ideia: portanto, temos essas ideias tão
logo temos essa sensação. Aí esta uma conclusão que os maus
metafísicos nunca deixam de tirar. No entanto, não temos todas as
ideias encerradas em nossas sensações; temos apenas as que sabemos
nelas notar (...). As figuras, supomos nós, estão encerradas nas
sensações que ela experimenta. Mas nossa experiência nos demonstra
suficientemente que não temos todas as ideias que nossas sensações
trazem consigo. Nossos conhecimentos se limitam exclusivamente às
ideias que aprendemos a notar. (CONDILLAC, 1993, I, § 8, pg. 107 -
108).
Aqui está posta uma distinção importante entre ver e notar. Ver não garante que a
estátua forme ideias. Ver é algo que se impõe, possui, portanto, uma dimensão passiva
caracterizada pela afecção sensível dos olhos. Portanto, ver não implica necessariamente ter
uma ideia disso que se vê. Por outro lado, notar algo nas sensações, formar uma ideia disso
que se vê requer uma atitude ativa, um aprendizado, resulta de um fazer. Dessa maneira,
Condillac defende, como mencionado anteriormente, a tese de que existe uma diferença entre
ver e olhar. Nesse sentido, diz ele “parece-se ignorar que existe diferença entre ver e olhar; e,
no entanto não formamos ideias tão logo vemos; formamo-las apenas quando olhamos com
ordem e método” (CONDILLAC, 1993, I, § 8, pg. 173). Para o filósofo a estátua vê tudo que
exerce impressão aos seus olhos, o que ela deve agora é aprender a olhar. Nesse ponto se
articulam necessariamente tato e visão. Aqui Condillac nos dá a chave para compreendermos
como se realiza esse aprendizado que permite conciliar a partir da experiência os dados da
visão com os dados do tato, ou seja, trata-se de uma conexão a posteriori.
Formar uma ideia disso que se vê requer uma cooperação entre os diferentes sentidos.
Nesse ponto, chamo atenção para o papel que desempenha o tato enquanto sentido
responsável por educar os demais sentidos. Compete ao tato a tarefa de ensinar os demais
sentidos a relacionar suas sensações aos corpos externos. Em relação à visão, o tato ensina os
olhos a regular seus movimentos – o movimento dos olhos como revindica Mondolfo põe em
jogo sensações de ordem tátil, cinestésica (MONDOLFO, 1963, pg. 39). Mondolfo
problematiza a própria natureza do movimento ocular enquanto elemento tátil cinestésico algo
não mencionado por Condillac ao tratar da visão. A coordenação do movimento dos olhos
49
requer um aprendizado, um condicionamento dado pelo movimento das mãos. O olho, como
defende Condillac, “precisa do auxílio do tato para formar o hábito dos movimentos próprios
à visão” (CONDILLAC, 1993, III, § 2, pg. 171). Dessa maneira a estátua relacionará suas
sensações visuais aos corpos entendidos enquanto conjunto de qualidades sensíveis. Assim
poderá analisar as diferentes sensações que compõe esse conjunto e formar um juízo acerca de
cada uma dessas. Nesse ponto salientamos o trânsito das sensações visuais que deixam de ser
não representativas e passam a ser representativas graças ao auxílio do tato32
. É por meio do
tato que as demais sensações ganham valor objetivo e referencial. Através da resistência que
se oferecem os corpos – resistência apreendida pelo tato – o tato remete as demais sensações
ao exterior. Assim, as sensações de cheiro, cor, som, sabor deixam de ser meras modificações
da alma e passam a ser qualidade dos objetos.
Portanto, aprender a olhar envolve um aprendizado, ele requer análise e síntese. A
reflexão proporcionada pelo tato forma conjuntos estáveis de diferentes qualidades sensíveis.
As mãos guiam os olhos. Com o auxílio do tato, a visão analisa as diferentes sensações que
compõe o conjunto figurado representado pelo tato. Ela analisa, forma um juízo de cada uma
dessas partes e passa a reconhecer por si aquilo que o tato representa. Nesse sentido, diz
Condillac, “é preciso que nossos olhos analisem: pois não captarão o conjunto da figura
menos composta possível a menos que tenha observado cada parte em separado, uma após
outra na ordem que mantêm entre si (CONDILLAC, 1993, III, § 6 pg. 173).
Nesse ponto, o que está em jogo é uma construção a posteriori da estrutura da
sensibilidade que redunda na configuração empírica da realidade mental e extramental da
estátua. Esse modo de apreensão dos dados sensíveis se consolida por ocasião dos hábitos que
se seguem a um juízo. Hábitos aprendidos que serão mantidos e repetidos com a experiência.
Nesse curso de estruturação da sensibilidade, explicita-se o papel que desempenha o juízo
enquanto operação mental, não discursiva, que permite à estátua organizar os dados da
sensibilidade. Nesse processo, destaca-se uma dimensão passiva que consiste na recepção dos
conteúdos derivados de cada sentido específico. Por outro lado, salienta-se um aspecto ativo,
que consiste nesse movimento de organização das ideias no âmbito mental com base na
análise e síntese no qual subjazem os juízos anti-predicativos. A representação do mundo é
resultado dessa combinação entre pensamento e percepção sensível.
Feitas essas considerações, temos os elementos teóricos necessários para explicitar a
posição de Condillac em relação ao problema de Molineux no Tratado das Sensações. Nossa
32
Aqui mostramos como que as diferentes sensações ao serem reunidas fornecem as condições necessárias para
que a estátua represente objetos, forme uma imagem desses.
50
estátua, por exemplo, só poderá diferenciar um globo de um cubo depois de ter aprendido com
o tato a julgar e relacionar suas sensações aos corpos. Ao ver um globo pela primeira vez esse
círculo que se vê não será para ela nada mais que sombra e luz. Podemos afirmar, portanto,
que ela não vê de maneira distinta um globo. É necessário aprender a julgar esse relevo. Nesse
sentido, diz Condillac “mas ela toca, e como aprendeu a ter com a visão os mesmos juízos que
tem com o tato, esse corpo assume sob seus olhos o relevo que tem sob suas mãos”
(CONDILLAC, 1993, III, § 11, pg. 175). Semelhante ao que ocorre no aprendizado do globo
se aplica ao cubo. Por conseguinte, diz Condillac:
A estátua aprenderá igualmente a ver um globo no momento em que tendo
seus olhos estudados as impressões que recebem no momento em que a mão
sente os ângulos e as faces dessa figura, ela contrai o hábito de notar contrai o
os mesmos ângulos e as mesmas faces nos diferentes graus de luz, e só então
discernirá um globo de um cubo (CONDILLAC, 1993, III, § 11, pg. 175).
Dito isto, reforçamos que para Condillac a possibilidade de formar uma ideia acerca de
objetos requer uma ligação entre ideias que implica uma colaboração recíproca entre os
diferentes sentidos. Fica evidente, portanto, que tato e visão caracterizam campos sensoriais
distintos cujos dados sensíveis se conectam entre si permitindo a estátua representar um globo
e um cubo a partir da experiência. Assim, podemos concluir, e essa é a posição de Condillac,
que o cego de Molineux, após uma bem sucedida operação, não distinguiria com os olhos
àquilo que antes diferenciava com o tato. A distinção entre um globo e um cubo implica um
aprendizado de conjuntos no qual o tato cumpre papel decisivo. Frente a essas considerações,
pode-se apontar que a resolução desse problema ganha no Tratado das Sensações uma
configuração diferente daquela que Condillac havia defendido no seu Ensaio sobre a origem
dos conhecimentos humanos.
No Ensaio, Condillac defende que o cego de nascença ao começar enxergar
“distinguiria, pois, a simples vista um globo de um cubo, porque reconheceria as mesmas
ideias que se haviam formado pelo tato” (CONDILLAC VI, 2010). Mesmo depois do
resultado da cirurgia de catarata bem sucedida em um cego de nascença feita por Cheselden
em 1729, na qual o cego passa a enxergar e não reconhece com os olhos aquilo que antes
diferenciava pelo tato, Condillac não vê aí motivos para mudar de posição. Para ele o cego só
não enxerga pelo fato da córnea e do cristalino estarem muito pouco exercitados já que não
eram utilizadas por pelo menos 14 anos – idade do paciente operado. Para o filósofo, bastava
que lhes desse algum tempo mais para que com base na reflexão ele conseguisse reconhecer
com os olhos aquilo que antes reconhecia com o tato (CONDILLAC, 2010). Nesse ponto, fica
51
evidente as diferentes soluções dadas para o mesmo problema teórico por Condillac. Em
relação a essa questão, Chottin33
lança luz ao marcar que a diferença entre esses dois textos se
baseia em duas concepções distintas acerca da aprendizagem sensorial (CHOTTIN, 2008, pg.
48).
No Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos, defende Chottin, a primeira
concepção de aprendizagem sensorial diz respeito a um aprender ver. A tese de Condillac no
Ensaio como já vimos, é que os olhos julgam naturalmente, figuras, grandezas, extensão.
Privado da visão, o cego de Molineux precisa aprender a servi-se dos seus olhos. Ao abrir os
olhos, é necessário aplicar sua reflexão, decompor seu entendimento em elementos simples a
fim de sentir as diferentes figuras que os objetos lhe ocasionam. A reflexão, portanto, faria
com que o cego reconhecesse com os olhos aquilo que já conhecia com o tato – com base
nesse argumento Condillac não admite que os resultados da cirurgia de Cheselden pudessem
infirmar sua tese sobre visão. O cego precisa aprender a ver mediante a reflexão que lhe
auxilia na atualização das sensações (CHOTTIN, 2008, pg. 52-53). Nessa obra podemos
salientar que Condillac recusa a possibilidade de qualquer juízo antipredicativo,
inconsciente34
, que se assemelhem aos hábitos.
Diferentemente dessa, no Tratado das Sensações, como aponta Chottin, temos outra
concepção de aprendizagem sensorial. Trata-se de um aprender a olhar e não mais, um
aprender a ver. O modelo de aprendizagem sensorial adotado no Tratado das Sensações se
opõe em sentido forte ao modelo de aprendizagem sensorial defendido por Condillac em sua
obra anterior. No Tratado das Sensações o sentir é algo instantâneo e passivo – as ideias não
nos são dadas a simples vista. Para formar uma ideia, como vimos, é necessário aprender a
olhar, processo no qual o tato desempenha papel relevante. O tato confere as sensações
visuais uma dimensão representativa (CHOTTIN, 2008, pg. 63). Como vimos, os sentidos
atuam concomitantemente para formar ideia de globo, cubo, figura etc. A tese de Condillac
aqui é a de que ocorre uma aprendizagem recíproca entre os sentidos no qual o tato
desempenha um papel fundamental na instrução dos olhos que com o auxílio do tato aprende
a olhar, revelando assim, uma especificidade do seu empirismo. Por fim, cabe salientar que os
juízos inconscientes que Condillac negava no seu Ensaio correspondem no Tratado das
33
Ver artigo Chottin, M. « Apprendre à voir, apprendre à regarder »Les deux conceptions de l’apprentissage
sensoriel chez Condillac. Philonsorbonne 48/169 n° 2/Année 2007-08, pg. 47-169. 34
A expressão inconsciente não possui conotação psicanalítica. O inconsciente aqui corresponde ao hábito que nada mais é do que a facilidade de se fazer o que se faz sem que tenhamos clareza dos juízos que lhes mantêm. Nesse sentido, Condillac recusava que pudessem existir juízos que regulassem nossas ações e não fossem percebidos por nós.
52
Sensações aos hábitos desenvolvidos, consolidados nos primórdios da experiência e que, por
essa razão são tão difíceis de serem percebidos.
3.2 Sensações e ideia particular de um objeto
Para examinar como a estátua forma ideias particulares de objeto, vamos retomar
algumas das considerações feitas até o momento. No segundo capítulo, salientamos que
Condillac diferencia as ideias em dois tipos: sensações e ideias intelectuais. As sensações
resultam da afecção dos órgãos sensíveis e distinguem-se em simples e compostas. As ideias
intelectuais, não são nada mais que lembrança dessas sensações. Semelhante ao que ocorre
com as sensações simples, as ideias intelectuais simples são incapazes de representar objetos.
De modo diverso, as sensações compostas adquirem essa possibilidade graças ao papel do tato
que introduz a noção de limite. Com base nessa, o sujeito desenvolve a capacidade de reflexão
e pode formar conjuntos estáveis dando unidade à multiplicidade de qualidades sensíveis
apresentadas anteriormente de maneira desordenada. Os conjuntos assim constituídos passam
a representar objetos.
Posto isto, estamos autorizados a afirmar que de maneira geral, ideias simples, tanto as
sensíveis quanto as intelectuais, não referem objetos. Essa tese, assim formulada, indica a
impossibilidade da visão, audição, paladar e olfato, considerados isoladamente, representarem
objetos já que, os tipos de atenção por eles ocasionados, não permitem a estátua formar
qualquer noção de exterioridade. Essa consideração pode ser sintetizada na seguinte
afirmação de Mondolfo “com os quatro sentidos subjetivos a estátua de Condillac não pode,
nem ao começo nem ao final de todo desenvolvimento da sensação transformada, sentir e
conhecer outra coisa, senão a si mesma e suas maneiras interiores de ser” (MONDOLFO,
1963, 6º, pg. 37). De maneira mais específica, as sensações simples não garantem qualquer
conhecimento de objetos, pois não permitem à estátua diferenciar o eu do não eu. O
conhecimento de uma realidade exterior a estátua, como vimos, deriva das sensações
compostas capazes de apresentar conjuntos de diferentes qualidades percebidas
simultaneamente pela estátua. Essas sensações são as únicas que podem levá-la a representar
objetos e exterioridade.
Como vimos, Condillac outorga papel cognitivo importante ao tato, cujo tipo de
atenção por ele proporcionada permite à estátua formar noção de exterioridade, e
consequentemente ideias de objetos, pois da sua atividade derivam as ideias de solidez,
grandeza, figura, condição de possibilidade para julgar objetos exteriores. “O trânsito do
53
interior para o exterior, do mundo subjetivo para o objetivo da extensão a solidez, não pode,
segundo Condillac, ser oferecido, senão pelo tato, que é, portanto, o sentido da realidade”
(MONDOLFO, 1963, 6º, pg. 37). Nesse ponto, salienta-se que, o tipo de atenção
proporcionada pelo tato se diferencia daquela proporcionada pelos demais sentidos. Nessa
perspectiva, Liébana afirma que:
Apenas o tato (pois só ele é capaz de resistência) pode apreender
originariamente o externo. Só ele, portanto, constitui perceptualmente
o mundo, dando-lhe sentido e significado cognitivo. Nem a vista, nem
os outros sentidos podem captar originariamente a ordem do material,
porque nenhum deles pode transmitir ao cognoscente a sensação de
solidez. (LIÉBANA, 1996, III).
Assim, nota-se que a atividade tátil se converte em via de acesso a uma realidade
independente do sujeito. Nesse sentido, como defende Liébana, “O eu, privado até agora de
toda relação extra-subjetiva, faz o salto para o objetivo, abrindo-se para uma ordem de
realidade insuspeitada até agora para ele” (LIÉBANA, 1996, V). Como examinamos, essa
passagem ao extra-subjetivo distingue o eu privado do objeto (eu /não eu), nessa
diferenciação, o tato é fundamental, pois, ao determinar limite aos corpos derivam tanto à
ideia de corpo próprio (ser sensciente) quanto à ideia de corpos exteriores (solidez, grandeza,
figura). Essa diferenciação decorre da sensação de solidez percebida através do tipo de
atenção proporcionada pelo tato. A impenetrabilidade – entendida como a impossibilidade de
dois corpos ocuparem o mesmo lugar – é uma propriedade inferida e atribuída a todos os
corpos. Assim, a impenetrabilidade não é uma sensação. A solidez é a sensação de onde
extraímos tal consequência, porque é devido aos corpos que se comprimem, da resistência que
se oferecem percebemo-los enquanto diferentes, distintos. “A impenetrabilidade não é uma
sensação, não sentimos propriamente os corpos impenetráveis, o que fazemos é julgar que o
são, e esse juízo é consequência das sensações que eles exercem sobre nós” (CONDILLAC,
1993, II, § 3, pg. 125).
Nesse sentido, destaca-se que a sensação de solidez consequência exclusiva do tipo de
atenção proporcionada pelo tato, contribui de maneira decisiva para formação da ideia de
corpo que permitem ao sujeito diferenciar o eu do não eu (através do movimento e
resistência). Nesse processo, Condillac afirma que “levando a mão a si ela não descobrirá que
tem corpo, exceto quando distinguir suas diferentes partes e se reconhecer em cada uma delas
como sendo o mesmo ser sensciente” (CONDILLAC, 1993, II, § 2, pg. 125). Formada a
noção de um eu sensciente – que responde a si mesmo ao tocar-se –, instauram-se as
54
condições cognitivas para que a estátua perceba a si como diferente dos objetos. Assim, ao
tocar “um corpo estranho o eu que se sente modificado na mão, não se sente modificado nesse
corpo (...). Com isso a estátua julga as maneiras de ser de tal corpo totalmente externas a si”
(CONDILLAC, 1993, II, § 5, pg. 127). Nesse ponto, destaca-se o movimento pelo qual a
estátua faz a passagem de si para fora de si, caracterizando assim, uma distinção entre sujeito
e objeto a partir dos limites estabelecidos a cada um desses – limite determinado, sob o qual
cada um responde. Nessa perspectiva, o filósofo afirma que:
Quando várias sensações distintas e coexistentes são circunscritas pelo
tato dentro de limites em que o eu responde a si mesmo, ela toma
conhecimento de seu corpo; quando várias sensações distintas e
coexistentes são circunscritas pelo tato dentro de limites em que o eu
não responde a si, ela tem a ideia de um corpo diferente do seu. No
primeiro caso, suas sensações continuam a ser qualidades suas; no
segundo, tornam-se as qualidades de um objeto totalmente diferente
(CONDILLAC, 1993 II, § 7, pg. 127).
Por conseguinte, uma vez constituída a ideia de limite – que deriva da atividade tátil –,
instaura-se as condições de possibilidade para o surgimento da reflexão – em seu sentido
específico no modo como Condillac a entende – capaz de representar objetos enquanto
conjuntos estáveis de diferentes qualidades sensíveis, aos quais se atribui objetividade. Dessa
maneira, salienta-se que tanto a noção de limite quanto à atenção proporcionada pela reflexão
fornecem a chave para entendermos como o sujeito forma ideia de objetos. A reflexão permite
comparar e discernir diversos conjuntos de qualidades sensíveis, sendo cada um pensado em
sua unidade como um objeto. O movimento das mãos permite uma forma de contato e de
autocontato muito particular que origina essa atividade comparativa (BERTRAND, 2002, pg.
43). Acerca das especificidades da atenção tátil e gênese da reflexão, o autor observa que:
A atenção tátil combina sensações, forma conjuntos exteriores,
compara um objeto a outro, compara-os sobre diferentes relações, é
com o tato que ocorre a reflexão. Assim, os efeitos da atenção tátil
diferem do tipo de atenção apresentada pelos demais sentidos; pois ao
combinar sensações constituem-se conjuntos exteriores, o sujeito faz
comparações de um objeto a outro caracterizando assim, a reflexão
(CONDILLAC, 1993, II, § 14, pg.139).
A análise da atenção tátil revela duas consequências cognitivas que se impõem a
estátua. A primeira, diz respeito a uma capacidade de compor objetos com base na
multiplicidade de sensações; a segunda dessas consequências aponta para a evidência de algo
exterior a ela. Posto isso, observa-se que na perspectiva genética acerca do desenvolvimento
55
das ideias como propõe Condillac, a primeira ideia de objeto forjada pela estátua diz respeito
a uma ideia particular de objeto que corresponde, a rigor, a um objeto externo individual.
Desse modo, devemos considerar que “a ideia particular, quando um objeto se faz presente
aos sentidos, é a coleção de varias qualidades que se mostram juntas. A ideia de certa laranja é
a cor, a forma, o sabor, o odor, a solidez, o peso etc.” (CONDILLAC, 1993, IV, § 2, pg. 227).
Essa ideia deriva da atividade reflexiva que proporciona uma atenção simultânea a diferentes
ideias simples, originadas dos diferentes sentidos julgadas em um limite determinado.
Nesse ponto, explicita-se que para Condillac é a partir da experiência que a estátua
desenvolve uma estrutura de percepção que permite a ela conhecer objetos. A ideia de objeto
só é formada quando diferentes qualidades sensíveis são captadas unificadas em um limite
determinado. Pode-se dizer que o tato guia os demais sentidos, permitindo a estátua julgar
diferentes qualidades sensíveis como partes de todos discerníveis entre si, relacionando,
assim, suas sensações a corpos exteriores. Quanto a essa questão, Monzani afirma “há,
portanto, um verdadeiro aprendizado dos sentidos, e, sobretudo, um aprendizado recíproco,
pelo qual se constitui e se constrói o objeto de percepção35
” (MONZANI, 2011, IV, pg. 223).
Em relação à noção de limite, podemos reconhecer que ela converte-se num padrão sob
o qual os objetos são determinados. Tal noção torna possível ordenar a multiplicidade de
qualidades sensíveis dotando a realidade externa à estátua de certa estabilidade e organização,
permitindo a ela notar diferenças entre objetos. Essas considerações indicam que para
Condillac não existe qualquer estrutura da sensibilidade a priori que determine a forma como
o sujeito percebe objetos. Esse ponto destaca aspectos do seu empirismo radical, ao
reconhecer que a percepção de objetos depende de uma capacidade e de um aprendizado que
se originam, em último caso, da experiência – ou seja, são capacidades adquiridas. A noção de
limite, portanto, se estabelece e se impõe como elemento determinante na estruturação e
organização da sensibilidade, eis o crivo a partir do qual um objeto é concebido.
Nesse sentido, podemos notar como se constrói a ideia de um objeto externo enquanto
realidade mental para estátua. De maneira geral, só é possível pensar em um objeto
subordinado necessariamente a um sujeito cognoscente. Na esteira do sujeito cognoscente, um
objeto só pode ser percebido ou concebido quando diferentes qualidades sensíveis são
reunidas, combinadas e julgadas em um limite circunscrito. Portanto, perceber um objeto
pressupõe por um lado a coordenação dos dados dos diferentes sentidos; por outro, pensar
35
Monzani revindica haver um tipo de construtivismo em Condillac que até hoje não foi dada atenção.
56
nesse objeto supõe conexão estável entre ideias simples unificadas pela reflexão, capaz de
formar unidades estáveis de diferentes qualidades sensíveis aos quais se atribui objetividade.
Em síntese, a partir dos aspectos mencionados, explicita-se a formação da ideia
particular de um objeto externo enquanto realidade mental. Por outro lado, pode-se afirmar
que as experiências de objeto proporcionadas pelas sensações correspondem na realidade à
experiência particular de objetos individuais. Embora Condillac não diga expressamente que
só podemos conhecer objetos particulares, não resta dúvidas que no Tratado das Sensações
subjaz a tese de que com base na sensibilidade somente conhecemos indivíduos.
3.2.1 Ideias sensíveis e verdades
Para Condillac as ideias particulares de objetos sensíveis são ideias confusas. Uma ideia
confusa deve ser entendida aqui como uma ideia que não representa de maneira distinta todas
as qualidades do objeto. A estátua se relaciona com os objetos por razões práticas que visam à
sobrevivência. Nesse sentido, as qualidades notadas nos objetos se relacionam diretamente
com as suas necessidades. Ou seja, ela nota, supervaloriza certas qualidades em detrimentos
de outras. E se por alguma razão a estátua considera que não existe diferença entre os objetos,
isso é consequência da maneira confusa com que ela vê (CONDILLAC, 1993, IV, § 11, pg.
230). As ideias sensíveis e confusas originam um tipo de verdade. Nessa direção, podemos
considerar, por exemplo, uma situação em que a estátua observa e forma um juízo acerca dos
corpos. Ora, se ao observar um corpo ela julga que esse corpo é quadrado, triangular,
redondo, etc. tal juízo poderá se tornar falso visto que os corpos mudam de figura. Por essa
razão Condillac defende que a estátua perceberá verdades que mudam ou podem mudar
(CONDILLAC, 1993, IV, § 13, pg. 231).
Nesse ponto, é possível observar que Condillac forja uma noção de verdade a posteriori
que não pressupõe linguagem teórica. Por essa razão, estamos autorizados a dizer que as
ideias sensíveis fundam verdades contingentes para estátua. Tais verdades não caracterizam
verdades absolutas já que ela percebe que seus juízos, como vimos, podem mudar por ocasião
da própria alteração dos corpos, ou melhor, dos fatos do mundo. No que concerne aos juízos,
cabe salientar que eles não se referem a definições da linguagem. Portanto, não dizem respeito
a uma racionalidade teórica e sim prática que esta a serviço em última instância da
preservação da vida. Os juízos formados pela estátua se dão com base na comparação entre
ideias nas quais ela julga semelhanças e diferenças e, por ocasião da comparação, percebe que
os corpos mudam. Nesse ponto, salienta-se que para Condillac uma ideia nada mais é do que
57
uma imagem. Como bem expressa em sua Lógica “as sensações, consideradas como
representando os objetos sensíveis, se chamam ideias; expressão figurada, que significa o
mesmo que imagens” (CONDILLAC, 1964, pg. 41). Posto isso, admitir que a estátua pode
comparar ideias em um nível pré-linguístico nada mais é do que reconhecer nela essa
capacidade de examinar conjuntos enquanto imagens. Um juízo falso indica para estátua que
as ideias de um corpo lembradas pela memória já não se assemelham as imagens que os
sentidos representam no aqui/agora.
Uma vez que examinamos a constituição das ideias particulares de objeto e
especificamos o tipo de verdade derivada, podemos então, explicitar na próxima seção em que
consiste uma ideia de objeto geral e o tipo de verdade correlata.
3.3 Ideias intelectuais: de como uma ideia particular de objeto origina ideias gerais
e abstratas.
Na seção anterior examinamos a constituição da ideia sensível de um objeto. Quanto a
essa questão, destacamos que compete as sensações representar os objetos no aqui/agora.
Vimos ainda que na ordem genética do desenvolvimento das ideias, a primeira ideia de objeto
formada pela estátua se refere a um objeto particular. Por conseguinte, observamos que essas
ideias fundam verdades contingentes. Na presente seção iremos tratar das ideias intelectuais
da estátua. Com base nessas, destacaremos que a ideia intelectual de um objeto particular é
condição necessária do desenvolvimento das ideias gerais e abstratas.
Como mencionamos anteriormente, o filósofo divide as ideias em sensações e ideias
intelectuais. Nesse sentido, salienta-se que diferentemente das sensações, compete as ideias
intelectuais o poder de representar objetos quando esses não se fazem presentes aos sentidos.
As ideias intelectuais evidenciam uma relação mais específica entre sensações e memória, já
que tais ideias não são nada mais que sensações recordadas de experiências passadas. Quanto
às classes das ideias intelectuais, podemos diferenciá-las em simples e complexas. As ideias
intelectuais simples são a lembrança da contribuição específica de cada sentido quanto às
qualidades que foram notadas nas sensações, ou seja, são as lembranças daquilo que se
conheceu através de órgãos sensíveis específicos. De modo semelhante ao que acontecem
com as sensações simples, as ideias intelectuais simples, de cor, cheiro, sabor, som, são
incapazes de representarem por si sós objetos. Por sua vez, uma ideia intelectual complexa
nada mais é do que a lembrança daquilo que foi possível conhecer pelas contribuições do tato
e da reflexão. Dito de outra maneira, uma ideia intelectual complexa é produto das sensações
compostas.
58
Feitas essas considerações, fixamos as condições teóricas para apresentar o
desenvolvimento das ideias gerais e abstratas da estátua. Nessa direção, em respeito à ordem
genética do desenvolvimento das ideias como quer Condillac, não podemos perder de vista
que a primeira ideia de objeto formada pela estátua com base nas sensações diz respeito à
ideia de um objeto particular. A lembrança dessa ideia no âmbito da memória corresponde a
uma ideia intelectual particular complexa. Nesse sentido, Condillac define que a ideia
particular de um objeto, quando o mesmo já não se faz presente aos sentidos, “se refere a
lembrança que resta daquilo que se conheceu com a visão, com o paladar, com o olfato e etc”.
(CONDILLAC, 1993, IV, § 2, pg. 227). As ideias intelectuais formam a base do
desenvolvimento dos conhecimentos da estátua. Nessa perspectiva, Condillac postula que as
sensações atuais são a fonte dos conhecimentos da estátua, a lembrança das sensações
passadas, ou ideias intelectuais são à base desse conhecimento: é com auxílio dessas últimas
que as novas sensações se distinguem e se desenvolvem cada vez mais (CONDILLAC, 1993,
II, § 31, pg. 145). Nesse ponto, cabe salientar que para poder diferenciar sensações e
consequentemente ampliar seus conhecimentos é imprescindível que anteriormente a estátua
as tenha comparado.
O ato de comparar e consequentemente diferenciar sensações fornece a chave para
entendermos o desenvolvimento das ideias da estátua. Para poder comparar sensações é
necessário, como vimos no primeiro capítulo, dois tipos de atenção. Uma atenção ativa
proporcionada pela memória que lembra as sensações enquanto passadas; e uma sensação
passiva ocasionada pelos órgãos sensíveis que apresenta as sensações no aqui/agora. Ora, é
somente quando compara sensações passadas com sensações atuais e julga suas semelhanças
e diferenças que a estátua faz avanços em seu conhecimento. A atividade comparativa põe em
marcha um processo de abstração que vai dar origem ás ideias gerais e abstratas da estátua. A
fim de evidenciar esse processo, tomemos a seguinte afirmação de Condillac:
Substituamos sucessivamente, uma a uma, a primeira laranja por várias
outras, e que sejam todas iguais; nossa estátua julgará estar vendo sempre a
mesma, e terá apenas uma ideia particular a esse respeito. Esta vendo duas?
Logo reconhece em cada uma delas uma mesma ideia particular, e essa
ideia se torna um modelo ao qual ela as compara e vê que concordam. Da
mesma forma, descobrirá que essa ideia é comum a três, quatro laranjas, e
torná-la-á tão geral quanto lhe for possível (CONDILLAC, 1993, IV, § 4,
pg. 227).
Com base no trecho acima, podemos observar que a estátua não forma uma ideia
particular de cada objeto que vê. Ou seja, ela não cria diferentes ideias particulares para
59
reportar-se a indivíduos semelhantes. Se assim fosse, teríamos que conceber uma memória
capaz de reter a impressão sensível de todos os indivíduos e suas particularidades. Seria,
portanto, uma memória ilimitada, talvez confusa frente à multiplicidade de indivíduos. Por
outro lado, notamos que a estátua não possui um signo enquanto unidade linguística para se
referir as laranjas. Uma ideia intelectual particular de laranja nada mais é do que uma imagem
que corresponde a um conjunto específico de determinadas qualidades sensíveis. Assim,
quando a estátua compara diferentes laranjas e considera uma mesma ideia, é somente porque
nota semelhanças entre uma imagem que a memória lhe apresenta e outra que os órgãos
sensíveis representam. É com base na semelhança entre ideias que uma ideia particular torna-
se geral. As características de um indivíduo que são posteriormente comparadas com outros,
recebem o nome de ideias gerais por serem comuns a diversos indivíduos. Dito isto, cabe
assinalar que no curso do desenvolvimento das ideias gerais, subjaz um processo de abstração,
pois, para formar uma ideia geral foi necessário que a estátua considerasse diferentes
qualidades sensíveis comuns aos diferentes objetos.
A abstração é uma operação caracterizada por dois movimentos: o primeiro consiste em
considerar as qualidades sensíveis de um determinado objeto de maneira isolada; o segundo
consiste na generalização e aplicação dessas qualidades aos diferentes objetos. Quanto a
capacidade de abstração, Liébana destaca se tratar de uma operação que vem a simplificar e
abreviar a diversidade dos objetos suscetíveis de consideração. Por essa razão, a abstração
seria indispensável para entendimentos limitados, que só podem considerar ao mesmo tempo
um escasso número de ideias e através dessas são obrigados a referir várias a uma mesma
classe (LIÉBANA, 1998, V). No ato de abstrair, não são todas as qualidades do objeto que
são generalizadas. Dessa maneira, podemos considerar que a classe ou modelo geral
estabelecido a partir de um indivíduo, não representa, a rigor, todas as qualidades desse
indivíduo.
Por exemplo, na ideia geral de laranja, a estátua nota cor e forma enquanto qualidades
comuns as diferentes laranjas. Dessa maneira, outras qualidades próprias da ideia particular de
laranja deixam de ser consideradas. Portanto, ao pensar em laranja, a estátua representa uma
imagem, um modelo geral que diz respeito às características comuns entre essas. Nessa
direção, podemos considerar que para Condillac toda ideia geral de objeto é uma ideia
abstrata. Nesse ponto, vemos o desenvolvimento de uma lógica rudimentar que permite a
estátua organizar os seus conhecimentos sem que tenha formado previamente uma linguagem
teórica. Em um nível pré-linguístico, um modelo geral ou uma classe de objetos não é outra
coisa senão a consideração de que uma imagem específica, particular, corresponde a
60
diferentes indivíduos semelhantes. Nesse sentido, observamos que para falar de ideias gerais e
abstratas, Condillac não recorre a nenhum instrumento dramático. Não foi necessário um
Deus ex machina intervir no palco da experiência já que essas ideias podem ser explicadas
com base nas sensações, elas nada mais são do que sensações transformadas. Aqui
denunciam-se aspectos da posição empirista de Condillac, ao tornar manifesto que para ele
não existe ideia geral que não tenha sido primeiramente uma ideia particular.
Feitas essas considerações, fica manifesta a importância do ato de comparar e da relação
de semelhança no processo de desenvolvimento das ideias gerais e abstratas acerca de um
determinado objeto. Por conseguinte, destaca-se que uma vez estabelecido esse modelo geral
todos os objetos semelhantes serão relacionados a ele. Quanto a essa questão, salienta-se que
as noções gerais caracterizam uma maneira confusa com que inicialmente a estátua julga os
objetos. Distinguir os objetos requer um aprendizado. Em relação a essa questão destaca-se
que é com base na relação de diferença que a estátua amplia seus conhecimentos acerca dos
diversos objetos. Portanto, para que ela forme noções menos gerais de objetos ou classes
subordinadas, é fundamental que ela se relacione com esses de maneira mais viva, mais
próxima, que os tome, os estude e julgue suas qualidades a partir de diferentes relações.
Por exemplo, a uma primeira vista, todas as maças parecem iguais. A estátua julga-as
assim com base no tamanho e na cor. Mas a experiência lhe ensina que nem todas as maças
possuem o mesmo sabor. Umas podem lhe agradar o paladar, outras podem desagradá-lo. O
desejo de obter aquelas mais agradáveis e o temor do desprazer levam a estátua a comparar as
maçãs sob outras relações. Por essa razão, ela forma diferentes modelos capazes de guiar sua
escolha, e as distribui em tantas classes quantas são as diferenças que nelas observa
(CONDILLAC, 1993, IV, § 6, pg. 229). Portanto, diferenciar objetos, formar uma noção
menos geral acerca desses, somente é possível quando a estátua nota as diferenças entre os
objetos. Essas noções menos gerais nada mais são do que distinções que a estátua faz no
interior de uma classe, ou seja, são classes subordinadas que proporcionam um conhecimento
mais especializado acerca dos objetos. Marcar diferenças entre ideias subordinadas
determinam a espécie (LEFÈVRE, 1966, pg. 51). Na medida em que a experiência avança os
conhecimentos adquiridos são distribuídos em diferentes classes. “As classes menos gerais,
compreendem os indivíduos e as denominamos espécies com relação às classes mais gerais
que denominamos gêneros” (CONDILLAC, 1979, pg. 06). Assim, temos a ordem do
desenvolvimento natural das ideias da estátua que segundo Condillac não difere da ordem de
aquisição das nossas ideias. Nessa direção, diz ele “assim é que uma criança, depois de
61
chamar de ouro tudo que é amarelo, adquire a seguir as ideias de cobre, latão, e a partir de
uma ideia geral forma várias menos gerais” (CONDILLAC, 1993, IV, § 8, pg. 230).
Posto isso, temos estabelecido a ordem do desenvolvimento genético das ideias na
estátua. Primeiro ela forma noções particulares que logo são generalizadas. Por conseguinte,
forma noções menos gerais na medida em que diferencia os objetos com base em suas
qualidades. Essas noções subordinadas caracterizam classes menos gerais ou espécies36
. Tal
consideração sugere que no Tratado das Sensações estaria implícita a tese de que não existe
na realidade experiências que correspondam a objetos gerais, uma vez que as experiências são
exclusivamente de objetos individuais e derivam unicamente das sensações. Aqui, nota-se o
valor outorgado as sensações por Condillac enquanto a base de tudo aquilo que pode ser
conhecido pela estátua. Para o filósofo, toda ideia pode ser reconduzida em última instância as
sensações.
3.4 Ideias abstratas e verdades
Como vimos até aqui, a estátua forma diferentes ideias abstratas. Ela forma ideias
abstratas de contentamento, descontentamento, bom, belo, eu, quente, frio, sólido, duro,
extensão, figura, cor, sabor, cheiro, som, grandeza. Em síntese, a própria ideia de objeto
torna-se uma ideia abstrata porque ao comparar sensações a estátua nota que não há o que não
convenha a vários objetos, por exemplo, que todo objeto tem cor, sabor, cheiro, sabor,
grandeza, figura etc. Posto isso, podemos indicar que para Condillac as ideias abstratas
forjadas pela estátua são de dois tipos: umas confusas, outras distintas.
Em relação às confusas, Condillac considera, por exemplo, que diferentes cores podem
aparecer juntas e produzir o efeito de uma única cor. Consequentemente, a estátua não
consegue discriminar tudo aquilo que as sensações encerram. Por essa perspectiva, suas ideias
abstratas são confusas. Em relação às distintas, Condillac considera as ideias de grandezas e
figuras quando consideradas separadas dos objetos, essas seriam as ideias distintas e
invariáveis (LEFÈVRE, 1966, pg. 52). Para o filósofo, a estátua sabe que uma grandeza pode
ser o dobro ou a metade da outra, e conhece muito bem uma linha, um quadrado. Essas ideias
são caracterizadas enquanto distintas. Basta que a estátua considere as grandezas abstraindo
os objetos (CONDILLAC, 1993, IV, § 13, pg. 231). As ideias abstratas distintas fundam um
tipo de verdade. Nessa perspectiva, Condillac afirma que “ao observar que um triângulo tem
36
Uma espécie nada mais é do que uma classe subordinada que emerge depois da estátua notar diferenças entre
os objetos de uma mesma classe. Ou seja, trata-se de uma classe menos geral.
62
três lados, seu juízo é e sempre será verdadeiro, visto que três lados determinam a ideia de
triângulo (...) cada vez que se limitar a julgar suas ideias distintas e abstratas de grandeza,
percebera verdades que não mudam absolutamente” (CONDILLAC, 1993, IV, § 13, pg. 231).
Com base nessas considerações, torna-se manifesto o esforço de Condillac para
justificar a sua posição empirista. O problema do conhecimento, a rigor, deve ser resolvido e
justificado com base na experiência. Ao considerar que a estátua pode formar ideias que não
variam, o filósofo aponta para possibilidade de haver em um nível rudimentar verdades
necessárias que não pressupõem definições a priori. Trata-se, portanto, de uma
fundamentação empírica, a posteriori da verdade. Condillac aqui não está afirmando que
exista uma ciência universal em nível individual no Tratado das Sensações, afinal, para
falarmos em ciência de acordo com Condillac é necessário linguagem e relação entre os
homens. Para o filósofo uma ciência bem feita nada mais é do que uma linguagem bem feita.
Entretanto, devemos sublinhar que no Tratado das Sensações Condillac chama atenção
para o fato de que no plano individual a natureza já nos teria dado lições básicas que
estabelecem as condições de possibilidade para o desenvolvimento de uma ciência universal
sem que sejam necessárias postulações a priori. Em relação a essa questão Lefèvre observa o
fato de que anterior a toda linguagem e mesmo a toda sociedade, um conhecimento prático,
confuso mais utilitário, se desenvolve na experiência de onde a ciência vai surgir. A mola dos
conhecimentos da estátua é o prazer e a dor, felicidade e infelicidade sem o quais a estátua
nada seria. Portanto, defende Lefèvre, a afetividade em Condillac é o princípio da atividade e
da ciência (LEFÈVRE, 1966, pg. 50). Nessa perspectiva, podemos tomar as considerações de
Quarfood que fazem notar que para Condillac o processo de formação do homem nasce da
experiência sensorial concreta e se eleva gradualmente as abstrações da ciência
(QUARFOOD, 2002, pg. 15). O Tratado das Sensações, portanto, nos apresenta um momento
do desenvolvimento humano anterior ao desenvolvimento da ciência, cujas raízes já estão
desde o desenvolvimento individual do homem.
Nessa direção destaca-se que para Condillac a própria geometria e matemática tem seu
germe inicial na experiência individual, ou seja, em fatos. Além disso, trata-se de um
conhecimento rudimentar forjado em uma fase do desenvolvimento humano anterior à
cultura. Com base nessas observações, podemos afirmar que para o filósofo o caminho para
estabelecer um conhecimento seguro perpassa pela observação das primeiras lições dadas pela
natureza. O método analítico ensinado pela natureza é o único que possibilita explicar a
origem e a geração das ideias e capacidades operativas. Portanto, como indica Liébana, a
tarefa do filósofo não consiste na elaboração artificial de um conjunto de regras
63
metodológicas encaminhadas a aquisição da verdade e do conhecimento. O filósofo deve
observar, partindo dos fatos, como o conhecimento é adquirido pela primeira vez e a partir daí
extrair a norma de aquisição a fim de aplicá-las a obtenção de novos conhecimentos
(LIÉBANA, 1998, I). Nesse ponto, indica-se a concepção subjacente da metafísica no
Tratado das Sensações enquanto ciência primeira capaz de condicionar os princípios de toda
ciência posterior.
Nesse sentido, a metafísica no modo como Condillac a entende não tem um deus ou
suas características enquanto finalidade da investigação, ela nada mais é do que uma
investigação gnosiológica acerca das condições de possibilidade que permitem ao homem
conhecer, de maneira mais específica: como podemos conhecer e o que podemos conhecer.
Para o filósofo a metafísica se diferencia em dois tipos. “A primeira, ambiciosa, quer penetrar
a essência dos seres e por isso, constitui uma fonte de erro em filosofia. A segunda, mais
moderada, adéqua suas pesquisas às fraquezas do espírito humano e sabe conter-se em seus
limites” (CONDILLAC, 2010, pg. 13). A concepção de metafísica condillaciana assume de
maneira rigorosa uma perspectiva gnosiológica, ou seja, trata-se de uma teoria do
conhecimento que busca afastar-se das justificativas sobrenaturais acerca do conhecimento.
Assim, a concepção de metafísica condillaciana defende Monzani, é “uma teoria do
conhecimento cuja chave é dada pela análise psicológica” (MONZANI, IV, 1995, pg. 167).
Na medida em que Condillac avança em sua pesquisa podemos identificar traços da
metafísica moderada subjacente ao Tratado das Sensações.
64
Capítulo IV
Valor e alcance do conhecimento
No capítulo II, observamos quais ideias derivam do tato. Destacamos que o tato em
movimento e a sensação de solidez permitem a estátua descobrir uma nova realidade diferente
dela. Em seguida, apresentamos como a estátua forma ideia de objeto enfatizando que a
experiência sensível é sempre de indivíduos. No capítulo III, apresentamos como a estátua
forma ideias confusas e verdades contingentes. Por conseguinte, destacamos como uma ideia
particular de objeto torna-se geral e abstrata salientando que ideias abstratas distintas dão
origem a verdades necessárias. No presente capítulo, examinaremos a realidade descoberta
pelo tato com vistas a indicar o alcance dos conhecimentos adquiridos pela estátua. Por outro
lado, mostraremos os limites da metafísica no Tratado das Sensações.
4.1 Objeto e realidade
Como vimos no segundo capítulo, o tipo de atenção derivada do tato indica para estátua
que existe uma nova realidade que se impõe enquanto uma realidade diferente e independe
dela. Como mencionado anteriormente, graças ao tato as sensações deixam de ser meras
modificações dos sentimentos e passam a ser tomadas enquanto qualidades dos objetos
exteriores. Nesse ponto, destaca-se que na parte IV do Tratado das Sensações Condillac
coloca à realidade descoberta pelo tato sob suspeita. “Então existem sons, sabores, odores,
cores nos objetos? Quem pode garanti-lo? Se hoje ela sente tais qualidades nos corpos, é
porque contraio o hábito de julgar pelo testemunho do tato” (CONDILLAC, 1993, IV, § 1, pg.
226). Após essas considerações, o filósofo aprofunda ainda mais seu questionamento
colocando sub judice a própria extensão. “Existe extensão? Mas quando a estátua tem o
sentimento do tato, o que percebe ela, senão as suas próprias modificações? O tato, portanto,
não é mais confiável do que os outros sentidos” (CONDILLAC, 1993, IV, § 1, pg. 226). Se as
demais sensações como vimos, não são qualidades dos objetos, é possível que com a
extensão37
não seja diferente. Nesse sentido, Condillac afirma:
37
Nesse ponto podemos salientar a oposição de Condillac a Descartes em relação à noção de extensão. Para
Descartes a extensão é um atributo essencial do corpóreo. Ela não é objeto próprio da vista ou dos sentidos.
Somente o entendimento, a apreensão do espírito pode conceber de maneira clara e distinta a realidade material.
Em Condillac a extensão nada mais é do que um conjunto de qualidades sensíveis percebidas enquanto
fenômeno. Ou seja, Condillac não afirma que a extensão seja qualidade dos corpos muito menos que possamos
conhecê-la de maneira clara através do entendimento.
65
Se não existe extensão, poderá alguém dizer, não existem corpos, digo apenas
que nós percebemo-la apenas em nossas próprias sensações. Daí se segue que
não vemos os corpos neles mesmos. Talvez sejam extensos e até saborosos,
sonoros, coloridos, odoríferos; talvez não sejam nada disso. Não sustento
nem uma coisa nem outra, e fico a espera de que se prove serem o que nos
parecem, ou outra coisa totalmente diferente.
Assim, se não existe extensão, não seria uma razão para negar a existência
dos corpos. Tudo o que se poderia e se deveria inferir razoavelmente disso é
que os corpos são seres que nos ocasionam sensações, e tem propriedades
sobre as quais podemos não garantir nada (CONDILLAC, 1993, IV, pg. 243).
Com base no trecho acima, podemos observar que Condillac manifesta certo ceticismo38
em relação à essência do corpóreo. O filósofo não dúvida que existam corpos, pelo contrário,
Condillac afirma a existência desses. Entretanto, o que nem o tato nem os demais sentidos
podem revelar para estátua é a essência dos corpos. Para Condillac existe um conjunto de
propriedades inerentes aos corpos que não podem ser captadas pela sensibilidade. Em relação
a essa questão, destaca-se que no Tratado das Sensações o alcance do conhecimento sensível
é, pois, limitado, visto que a própria apreensão do material é limitada (LIÉBANA, V, 1996).
Embora a sensação de solidez e resistência oferecida pelo tato revele para estátua a
exterioridade, é a penetração essencial dos corpos que permanece inalcançável. Nessa direção,
podemos reconhecer, como expressa Quarfood, uma posição fenomenista em Condillac. “Não
percebemos as coisas nelas mesmas, somente seus fenômenos” (QUARFOOD, 2002, pg.
144). Os fenômenos são nada mais que sensações percebidas ocasionadas por corpos
externos.
Nessa perspectiva, Monzani apresenta que para Condillac o que denominamos corpo
nada mais é do que um “isso” desconhecido, ao qual os filósofos atrelam o nome pomposo de
substância. “O fato é que não sabemos nada sobre, a não ser que é sobre esse fundo
desconhecido que nos habituamos a reportar as qualidades pelos quais somos afetados.
Projetamos nossas sensações sobre algo de natureza absolutamente desconhecida”
(MONZANI, IV, 2011, pg. 225). Condillac não tece qualquer comentário acerca da realidade
dos corpos em si, evitando assim, trilhar os caminhos da metafísica ambiciosa, fonte de erros
em filosofia. Para o filósofo, os limites do conhecimento estão dados pela própria organização
dos órgãos sensíveis. Dessa maneira, o entendimento não pode conhecer sobre a realidade dos
fenômenos. Esse seria, portanto, o alcance do nosso conhecimento e consequentemente da
38
A expressão ceticismo é utilizada aqui para se referir a essa atitude do filósofo em não afirmar nada acerca da
natureza dos corpos. Não utilizo a expressão no sentido técnico como no ceticismo pirrônico. Afinal, Condillac
afirma que de fato existe uma realidade objetiva.
66
metafísica moderada subjacente ao Tratado das Sensações. De maneira mais específica, para
Condillac a existência do real se adéqua aos limites da própria sensibilidade.
Feitas essas observações acerca dos limites do conhecimento no Tratado das Sensações,
podemos problematizar se a resposta de Condillac realmente satisfaz as exigências de Diderot
no que concerne a denuncia do idealismo de Berkeley. Não é uma questão fácil, afinal, para
Condillac as sensações não passam de meras sensações subjetivas. O próprio tato como
mencionado anteriormente, não é mais digno de crédito do que os demais sentidos. As
interpretações da posição de Condillac apontam para ambas as direções. Antes de mencionar
tais posições, apresento alguns aspectos que nos permitem contextualizar toda essa polêmica –
denuncia do idealismo e prova do mundo exterior – que perpassa todo o Tratado das
Sensações. Nessa direção, devemos visitar a obra Ensaio sobre a origem dos conhecimentos
humanos (1747). Na obra mencionada Condillac afirma:
Seja que nos elevemos – para falar metaforicamente – até aos céus seja que
desçamos até aos abismos, não saímos de nós jamais, e somente o nosso
pensamento é o que conhecemos. (CONDILLAC, 2010, I § 1 pg.).
Sem embargo, seja qual for a natureza dessas percepções e de qualquer modo
que se produzam, se nelas buscarmos a ideia de extensão, de uma linha, de
um ângulo ou de algumas figuras, é verdade que as encontraremos muito
claras e distintas. Se todavia buscarmos a que referirmos essa extensão e estas
figuras, nos damos conta de modo claro e distinto de que não se referem a
nós, em nós está, o sujeito de pensamento, senão a algo fora de nós
(CONDILLAC, 2010, I, § 11 pg).
Com base nos trechos destacados podemos indicar a posição idealista de Condillac
nessa obra. A posição adotada por Condillac deixa claro certo enclausuramento do sujeito no
âmbito da sua consciência e, portanto, como indica Liébana, sua impossibilidade de acender a
realidade mesma das coisas exteriores. Por outro lado, observamos que Condillac torna
patente a existência de uma realidade exterior ao sujeito. Os conteúdos da consciência, as
ideias do sujeito, nada mais são do que um produto, um reflexo desse mundo. Ou seja, as
ideias, os conteúdos da mente, dependem do mundo (LIÉBANA, 1996, I). No Ensaio a
demonstração de um mundo exterior não está posta para Condillac enquanto um problema que
precisa ser resolvido. O realismo de representação sustentado por Condillac nessa obra não
deixa dúvida que nossas sensações correspondem aos objetos externos. Como mencionamos
no segundo capítulo em relação a essa obra, compete às sensações consideradas em si mesmas
o poder de representar os objetos. Entretanto, as considerações tanto de Diderot em sua Carta
sobre os cegos quanto de D’Alembert no Discours Préliminaire da Enciclopédia, vão
67
apresentar para Condillac a exigência e necessidade de demonstrar a existência de um mundo
exterior.
Diderot reconhece que tanto em Berkeley quanto em Condillac os termos essência,
substância, matéria não trazem luz ao nosso espírito; além disso, observa Diderot, a tese
defendida por Condillac no Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos – seja que
nos elevemos até aos céus seja que desçamos até aos abismos, não saímos de nós jamais, e
somente o nosso pensamento é o que conhecemos – é resultado do primeiro Diálogo de
Berkeley e fundamento de todo seu sistema. “Não ficarias curiosa senhora em presenciar o
embate de dois inimigos cujas armas se assemelham tanto?” (DIDEROT, 2006, pg.43). Dessa
maneira, Diderot alerta Condillac para as semelhanças entre as teses de ambos e o
consequente risco de Condillac trilhar pelo imaterislimo de Berkeley. A partir dessas
considerações realizadas por Diderot, provar a existência do mundo material se apresenta para
Condillac enquanto desafio intelectual. Além de Diderot, as formulações de D’Alembert na
Enciclopédia vão contribuir de maneira decisiva para Condillac enfrentar o problema da
realidade exterior que vai redundar no Tratado das Sensações. Na Enciclopédia, D’Alembert
questiona “Como nossa alma se joga, por assim dizer, fora de si mesma para chegar até os
corpos? Como se explica esse trânsito?” (D’ALEMBERT, apud LIÉBANA, 1996, I). Todo o
esforço de Condillac consiste em demonstrar como isso é possível. As questões levantadas
por Diderot e D’Alembert nos mostram a espinha dorsal do Tratado das Sensações.
Graças à decomposição analítica da experiência posta em marcha através da estátua o
filósofo formula sua posição acerca das questões mencionadas. Como vimos no segundo
capítulo, Condillac encontra na sensação de solidez a chave para resolvê-las. É por ocasião da
sensação de solidez e resistência proporcionada pelo tato em movimento que a estátua faz a
passagem de si para fora de si permitindo ao filósofo justificar as exigências de Diderot e
consequentemente as questões levantadas por D’Alembert. Feitas essas observações, podemos
então retomar nossa problematização. Condillac cumpre as exigências de Diderot ao
denunciar o idealismo? Seria o filósofo um idealista solipsista a la Berkeley? Condillac prova
que existe um mundo exterior independente do sujeito? Como mencionado, temos posições
distintas que nos permitem pensar as questões levantadas.
Em seu artigo O solipsismo como forma extrema de ceticismo no Século das Luzes
Charles defende a tese de que alguns dos problemas metafísicos mais importantes da era
moderna (filosofia do século XVII) tenderam a se perpetuar no Século das Luzes (filosofia do
século XVIII). Dentre esses problemas metafísicos, talvez o mais importante seja esse que
concerne à demonstração da existência do mundo exterior e que estimulará tanto a
68
especulação dos filósofos das Luzes quanto à dos pensadores do século precedente. A partir
dessa consideração, o filósofo investiga o problema do mundo externo no século XVIII e
examina as diferentes respostas dadas ao problema nesse período. Entre essas, a de Condillac,
cuja chave para resolução do problema é dada pelo tato em movimento. Condillac acredita
escapar desse subjetivismo na medida em que a sensação de solidez e resistência garante a
presença de uma coisa ou um isso, que existiria independentemente da nossa percepção.
Como vimos, o juízo de impenetrabilidade garante para estátua que existem outros corpos
diferentes dela.
Diante disso, Charles busca mostrar que esse existente que resiste a mim é sempre
existente a título de ser percebido. Portanto, o problema da saída do eu subsiste integralmente
(CHARLES, 2007, pg. 28). Nessa direção, o problema do egoísmo, do solipsismo permanece
insolúvel. Para Charles, de maneira geral, os filósofos do século XVIII, confundiram duas
problemáticas. Um ceticismo epistemológico (a essência das coisas é incognoscível) e um
ceticismo ontológico (a existência dos corpos não pode ser provada). A conclusão dessa
disputa culmina no reconhecimento do idealismo enquanto sistema absurdo do qual os
filósofos precisam se afastar a fim de propor uma doutrina mais conforme ao senso comum
(CHARLES, 2007, pg. 31). Mas o que poderíamos esperar de uma metafísica moderada que
evita ir além dos limites da razão prescritos pela própria natureza? “O crepúsculo das Luzes
culmina numa constatação epistemológica pouco reluzente: o conhecimento da essência das
coisas está fora do alcance do entendimento humano, cujas fronteiras naturais assinalam
limites estritos a seu poder de conhecer” (CHARLES, 2007, pg. 32). Com base nessas
considerações, fica difícil sustentar que Condillac logrou êxito em sua tarefa de denunciar o
idealismo. Se tomarmos os juízos de Charles, podemos concordar que Condillac manifesta
certo ceticismo epistemológico em relação a essência das coisas. O próprio tato, que revela
uma nova realidade para estátua não é menos subjetivo do que os demais sentidos. Nesse
ponto, Quarfood, reconhece que à luz dessa consideração de Condillac fica difícil ver no
Tratado das Sensações uma tentativa de refutar o idealismo de Berkeley. “A questão
metafísica sobre a natureza real das coisas permanece intacta” (QUARFOOD, 2002, pg.144).
Diferentemente dessa interpretação, Liébana sustenta que Condillac obteve êxito em sua
investigação redundando na superação do idealismo berkeleyano. Para o comentador,
Condillac transpõe os limites da imanência e explica empírica e minuciosamente o
mecanismo psicológico que origina o sentimento de exterioridade. As exigências de Diderot e
D’Alembert foram cumpridas. Condillac justifica a realidade do externo e dá conta de uma
realidade alheia e por inteiro independente da sensação com a qual a estátua se identifica
69
(LIÉBANA, 1996, V). Esse caminho, já mencionamos, deriva da sensação tátil de solidez e
resistência única que transmite a estátua o sentimento de oposição, obstáculo, que redunda nas
noções de objeto e mundo externo. Essa é a chave para entendermos como a estátua passa de
si para fora de si. Liébana acredita que essa explicação dada por Condillac estabelece o
sistema completo do real. Sem essa justificação, a conclusão lógica, dados os pressupostos
idealistas de partida seria o solipsismo mais radical (LIÉBANA, 1996, I). Entretanto, cabe
salientar que todo processo em Condillac é psicológico. O procedimento de Condillac não
explica a apreensão de um exterior material em si mesmo considerado. Condillac explica bem
essa aparição do sentimento de exterioridade através da resistência. De acordo com Liébana, a
meta alcançada por Condillac seria mais modesta do que aquela inicialmente traçada
(LIÉBANA, 1996, V). Não há dúvidas de que o eu descobre os corpos e o mundo exterior,
porém, tal descoberta é mediada pelas suas próprias sensações. Dessa maneira, a estátua
apreende o objetivo e o corpóreo sem sair de si mesma. “O idealismo de Berkeley é superado,
mas ao custo de assumir dogmaticamente e sem uma prova demonstrativa autêntica da
existência independente de um mundo material” (LIÉBANA, 1996, V). Essa realidade
material revelada pelo tato permanecerá uma incógnita para Condillac, somente será
apreendida enquanto fenômeno subjetivo39
.
Liébana e Charles parecem concordar em relação ao ceticismo epistemológico – a
essência das coisas é incognoscível. Entretanto, Liébana não admite que haja em Condillac
um ceticismo ontológico – afirmação de que a existência dos corpos não pode ser provada.
Afinal, não restam dúvidas de que para Condillac existem corpos embora não possamos
39 Nesse ponto, salienta-se uma perspectiva contemporânea de interpretação das teses de Condillac revindicada
por Liébana que se vincula com o realismo volitivo enquanto resposta ao problema do conhecimento e
demonstração do mundo externo. No realismo volitivo a consciência não é concebida no âmbito de conteúdos
cognitivos passivamente recebidos, mas como um conjunto de impulsos e tendências, como vontade e esforço
originário ao que se opõe a realidade exterior em forma de obstáculo e resistência. Liébana defende a tese de um
realismo volitivotátil, pois, somente o tato pode revelar à consciência a coisa ou o objeto transcendente. A rigor,
o filósofo advoga que o ponto de partida da metafísica e da teoria do conhecimento deve ser fixado no encontro
do eu volitivo com o não eu resistente. É por ocasião do tato em movimento que se estabelece as condições para
constituição do mundo, do ser, e da realidade. O real material identifica-se, portanto, com o tato movente. Por
outro lado, Liébana acrescenta que “a história do desenvolvimento espiritual da humanidade em todas suas
expressões e manifestações tem sido a história de um determinado tipo desenvolvimento espiritual: o
desenvolvimento espiritual do vidente” (LIÉBANA, 2000, pg. 172). Para o filósofo, a metafísica tradicional (e
os seus conceitos, categorias, modelos etc.) de Tales de Mileto a Heidegger foi totalmente elaborada sobre uma
perspectiva sensorial: a perspectiva do olho – metafísica oculocéntrica. “Os conceitos de eidos, morphé, extensão
e pensamento, intuição pura e categoria; termos como “ideia”, “teoria”; metáforas de luz, iluminação, sol,
(comumente empregadas em ontologia e teoria do conhecimento) são uma boa prova do que dizemos”
(LIÉBANA, 2000, pg. 172). Frente a essa perspectiva predominante e em complemento a ela Liébana propõe
uma interpretação alternativa do ser concebendo-o como obstáculo e resistência e a consciência sendo pensada
enquanto esforço impulso e vontade. Essa ontologia volitivotátil encontra suas raízes nos caminhos abertos por
Condillac no seu Tratado das Sensações.
70
afirmar como eles são neles mesmos. Ao examinar as considerações tanto de Charles quanto
de Liébana acerca da posição filosófica de Condillac podemos considerar que ambos os
comentadores fornecem boas razões que nos permitem ler Condillac enquanto solipsista ou
não. Em relação a toda essa problemática, penso que Condillac oferece uma boa resposta
acerca da questão do mundo exterior. Entretanto, ao afirmar que existe uma realidade exterior,
Condillac o faz mediante o juízo de impenetrabilidade. Trata-se de uma justificativa
psicológica baseada na sensação de solidez condição de possibilidade para o juízo de
impenetrabilidade. Por essa perspectiva, não vejo em Condillac uma superação do idealismo
de Berkeley. Em síntese, Condillac fornece uma boa resposta para dar conta da existência do
mundo exterior. Por outro lado, as suas justificativas não resolvem o problema de maneira
definitiva visto que a realidade do objeto encontra-se condicionada a percepção do sujeito.
A realidade do objeto vinculada a percepção subjetiva aproxima a posição de Condillac
daquela defendida por Berkeley de que ser é ser percebido (BERKELEY, § 3 e 40). Para
Berkeley, é impossível afirmar que existam objetos independentes do sujeito – fora da mente
– já que os sentidos não podem conceber a existência de algo que não seja percebido pelos
próprios sentidos. Dessa maneira fica estabelecido que para o filósofo a realidade consiste
exclusivamente de mentes e suas ideias (DOWNING, 2004). Por essa perspectiva, fica difícil
salvar Condillac de uma posição solipsista embora a própria dependência que a estátua tem
dos objetos para satisfação das suas necessidades não permitam a ela duvidar que existam
seres fora e diferente dela (CONDILLAC, 1993, IV, § 2, pg. 226). Esse seria, em última
instância, o ponto a ser evidenciado na argumentação de Condillac para justificar a existência
de um mundo exterior. A estátua depende de algo para sobreviver e esse “isso” ao qual ela
depende, não é causado por ela, é algo externo que afeta de maneira decisiva sua
sobrevivência. Embora a dependência frente aos objetos indique para estátua que existe algo
além dela – o que garantiria a existência do mundo exterior – a realidade disso ao qual ela
depende permanece insondável. Por fim cabe ainda considerar um aspecto que me parece
relevante em toda essa disputa que diz respeito a um “como”. Como Condillac, a sua maneira,
elabora uma resposta acerca de um problema filosófico relevante na filosofia, de maneira
mais específica, na filosofia moderna.
Feitas essas considerações, podemos então analisar aquilo que parecer ser o que de fato
importa para Condillac em meio a toda essa polêmica: a função prática do conhecimento.
Pois, como considera o filósofo, essas dúvidas acerca da realidade não seriam questões com
as quais a estátua se ocuparia (CONDILLAC, 1993, IV, § 2, pg. 226). Ao fazer essa
afirmação, o problema acerca da realidade exterior – revindico essa hipótese de leitura –
71
parece tornar-se secundário para Condillac no Tratado das Sensações. Nesse sentido,
assinalamos uma perspectiva de interpretação das teses do filósofo que indicam uma
compreensão pragmática acerca do conhecimento, objeto da próxima seção.
4.2 A função prática do conhecimento
O debate acerca de uma realidade exterior é uma questão que, segundo Condillac, Deus
quis deixar ao debate dos filósofos (CONDILLAC, 1993, pg. 243). A estátua, não sendo
filósofa, não examinaria essas questões já que a relação que ela estabelece com os objetos
vincula-se diretamente com as suas necessidades e não com razões teóricas. O conhecimento,
a princípio, tem relação estrita com a ação e a sobrevivência, ele possui, a rigor, uma
finalidade prática. Desse modo, fica evidente que o que está posto no Tratado das Sensações
é o predomínio dos conhecimentos práticos em detrimento dos conhecimentos teóricos. A fim
de examinar essa perspectiva, tomemos a seguinte consideração de Condillac:
A estátua provavelmente não se deterá nessas dúvidas. Talvez os juízos a que
se habituou não lhe permitam alimentá-las. No entanto ela seria mais capaz
de duvidar do que nós, porque sabe melhor como aprendeu a ver, ouvir,
aspirar, saborear e tocar. Seja como for, é-lhe inútil ter mais certezas a esse
respeito. A aparência das qualidades sensíveis basta para lhe despertar
desejos de iluminar sua conduta e fazer sua felicidade ou desgraça, e sua
dependência frente aos objetos a que é obrigada a relacioná-las não lhe
permite duvidar que existem seres foras de si. Mas qual é a natureza desses
seres? Ela o ignora, e nós próprios ignoramos. Tudo o que sabemos é que
denominamo-los corpos (CONDILLAC, 1993, IV, § 2, pg. 226).
Com base no trecho acima, podemos indicar que para Condillac a dúvida tem limite. O
limite da dúvida está dado pela dependência vital da estátua em relação a algo diferente dela e
que, a rigor, não pode ser criado por ela. Dessa maneira a estátua não pode duvidar que exista
algo fora dela. A dependência de algo que não é ela, configura, como sugerimos, um dos
argumentos dados por Condillac para defender a existência de uma realidade extramental.
Cabe ainda considerar que, ao ignorar a natureza dos corpos fica evidente que o que está em
jogo para estátua não é de ordem teórica e sim prática. Pouco importa como as coisas são
nelas mesmas o que importa é como elas nos afetam e seus efeitos para sobrevivência. Essa
perspectiva indica o caráter pragmático do conhecimento para Condillac. Quanto a essa
questão, cabe assinalar que os comentadores de Condillac veem no filósofo uma espécie de
precursor do pragmatismo. Essa dimensão pragmática do conhecimento perpassa todo
Tratado das Sensações.
72
Nessa perspectiva, tomemos a seguinte consideração de Condillac, diz ele “vemos os
mesmos objetos; mas por não termos o mesmo interesse em observá-los, cada um de nós tem
ideias muito diferentes acerca deles” (CONDILLAC, 1993, 1, § 8, pg. 107). Nesse aspecto,
Liébana faz notar que o interesse do sujeito, motivado pela sua necessidade, é o que determina
a sua atenção e não o próprio objeto. “O conhecimento não é guiado por qualidades especiais
do objeto e sim pelo interesse do sujeito frente a ele”. Dessa maneira, os objetos não seriam
julgados em si mesmo senão pela relação que eles guardam conosco. Nesse ponto estaria
posto, de acordo com Liébana, um testemunho evidente do caráter pragmático do
conhecimento em detrimento da sua índole teórica (LIÉBANA, IV, 1998). Nessa direção,
Mondolfo acrescenta que a noção de interesse domina, orienta e modela todo nosso
conhecimento. Não poderia ser diferente, afinal, para Condillac o conhecimento tem valor
prático e se relaciona com a vida e a ação e não com a contemplação (MONDOLFO, 1964,
pg. 47). Assim fica estabelecido que para Condillac o conhecimento da estátua guia-se
exclusivamente pelo interesse. Esse, por sua vez, possui suas raízes nas necessidades
configuradas a partir das experiências agradáveis em oposição às experiências desagradáveis.
Desse modo, podemos indicar que o prazer estabelece em última instância uma orientação
geral da experiência da estátua levando-a buscar os objetos que melhor contribuem para sua
felicidade evitando aqueles que lhes causam sofrimento. O que está em jogo para estátua nada
mais é do que aquilo que lhe resulta vantajoso. Dessa maneira, com base no princípio do
prazer e dor podemos afirmar que ao longo do Tratado das Sensações na medida em que
Condillac explora sua hipótese da estátua salta aos olhos uma noção de sujeito com forte traço
pragmático.
73
Considerações Finais
No presente trabalho monográfico buscamos traçar a origem e os limites do
conhecimento no empirismo forjado por Condillac no seu Tratado das Sensações. Para
realizar essa tarefa foi necessário caracterizar, em primeiro lugar, o tipo de empirismo
presente nessa obra. Nessa direção, destacamos a tarefa da pesquisa de Condillac cujo
propósito seria renovar todo o entendimento humano a partir de uma tese fundamental: todas
as nossas ideias e faculdades mentais derivam das sensações. Essa perspectiva da investigação
condillaciana revela um aprofundamento em relação à pesquisa iniciada por Locke. Ao
contrapor-se a Locke, Condillac recusa de maneira vigorosa o inatismo das operações da alma
encontrando nas sensações transformadas a chave explicativa da gênese das ideias e
capacidades operativas do homem. A rigor, todo edifício intelectual encontra-se subordinado
ao sensível. Esse horizonte da investigação condillaciana revela em sentido forte a
especificidade do seu empirismo radical.
Na medida em que a investigação de Condillac avança, vemos configurar-se no Tratado
das Sensações o seu método genético analítico de investigação que nos revela aquilo que o
filósofo acredita ser a síntese do desenvolvimento natural das nossas ideias e capacidades
operativas. Além disso, Condillac assinala que no âmbito individual, em um estágio de
desenvolvimento anterior à cultura, seriamos capazes de desenvolver uma estética, uma
geometria, uma matemática rudimentar. Graças às lições dadas inicialmente pela natureza,
podemos formar, sem linguagem, verdades particulares e verdades gerais. A tese implícita no
Tratado das Sensações é de que o pensamento é anterior à linguagem. Dito de outra maneira é
possível pensamento sem linguagem.
Por outro lado, acrescenta-se que através da ficção da estátua o filósofo nos faz ver
quais ideias específicas devemos a cada sentido. Nessa direção Condillac circunscreve de
maneira precisa o que é possível conhecer por ocasião desses. Nesse ponto vemos se
configurar os limites do conhecimento no Tratado das Sensações. Em relação a essa questão,
devemos enfatizar que ao estabelecer o alcance daquilo que podemos conhecer com base nos
sentidos, Condillac indica os limites da metafísica moderada que evita tecer afirmações
acerca da essência ou verdadeira natureza das coisas – fonte de erros em filosofia. Portanto, o
que conhecemos e o que podemos conhecer vinculam-se de maneira estrita com a nossa
conformação orgânica incapaz de perceber como as coisas são em si mesmas. Sabemos
certamente que algo nos afeta e que dele dependemos para sobrevivência. Entretanto, a sua
verdadeira natureza não é apreendida pela nossa sensibilidade. Para Condillac as sensações
74
não são qualidades dos corpos e sim conteúdos mentais. Portanto, não conhecemos as coisas
nelas mesmas somente seus fenômenos. O que conhecemos se adéqua, a rigor, a nossa
capacidade orgânica, em última instância, aos limites da nossa sensibilidade.
Destacamos ainda que ao examinar a contribuição específica de cada um dos sentidos
no que concerne ao desenvolvimento mental da estátua, Condillac outorga evidente relevância
cognitiva ao tato em relação aos demais sentidos. Em Condillac o tato possui certa primazia
no que concerne à apreensão do real. Nesse ponto observamos que o filósofo vai na
contramão de toda uma tradição filosófica que atribui à visão um acesso privilegiado à
realidade. Esse é um dos pontos que merece atenção e que não foi suficientemente
desenvolvido no presente trabalho, tarefa para uma futura pesquisa. O mesmo pode ser dito
em relação a uma espécie de construtivismo presente no Tratado das Sensações que, embora
mencionado, não foi discutido em todos os seus aspectos. De maneira mais específica, parece
haver em Condillac uma espécie de construtivismo que subordina o desenvolvimento do
entendimento humano a uma relação ativa entre indivíduo e meio. Esse construtivismo
implica o reconhecimento de que não nascemos humanos completos ou com qualquer tipo de
inteligência ou estrutura da sensibilidade a priori. A nossa estrutura de percepção responsável
por organizar os dados da sensibilidade dotando o mundo de estabilidade bem como o
desenvolvimento dos conhecimentos práticos indispensáveis para sobrevivência derivam da
experiência. Ou melhor, dessa interação entre indivíduo e ambiente no qual subjaz um
processo contínuo de aprendizagem e educação recíproca entre os sentidos.
Por fim, gostaria de destacar que o problema acerca do mundo exterior, que
inicialmente desponta como problema teórico fundamental no Tratado das Sensações, parece
tornar-se secundário ao final da investigação de Condillac. Para o filósofo, pouco importa se
as coisas são ou não são de determinada maneira. O que realmente importa é como nos
relacionamos com isso e quais seus efeitos para sobrevivência. Por essa perspectiva, toda
polêmica relacionada à existência e prova de um mundo exterior colocado por Diderot parece
ser relegada a uma espécie de pano de fundo no Tratado das Sensações. Toda essa questão
parece perder sua relevância no momento em que Condillac enfatiza uma dimensão
pragmática acerca do conhecimento que vai redundar e caracterizar um tipo de racionalidade e
consequentemente uma noção de sujeito com forte traço pragmático na obra estudada.
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