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Sessão temática Imagens - 456
O ENQUADRAMENTO: um olhar sobre a cidade, a fotografia e sua
historia
Jussara Moreira de Azevedo1
Resumo:
Neste artigo proponho pensarmos sobre a cidade, o olhar fotográfico e suas
construções no contexto cultural, entendendo que este olhar constitui os objetos e os
sujeitos que, através dele, são representados. Proponho vermos a cidade como uma
construção cultural, constituída de várias faces. Para isso, retomo alguns aspecto
históricos sobre a fotografia de cidades, a produção e o uso da fotografia,e algumas
questões relativas ao olhar, que se modifica a cada contexto e tempos históricos. Este
trabalho é parte da pesquisa em que analiso a produção de fotografias da cidade de
Porto alegre pelos álbuns fotográficos contemporâneos (2010) e orientando-me
teoricamente em estudos de Nicholas Mirzoeff,Philippe Dubois, Sandra Pesavento e
Lucia Santaella.
Palavras-chave: Fotografia,historia ; Cidade e Cultura Visual.
Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. É
envolver-se numa certa relação com o mundo que se
assemelha com o conhecimento - e, por conseguinte
com o poder (Susan Sontag.).
A fotografia surge durante o conturbado e dinâmico século XIX, quando as
transformações sociais, urbanas e científicas fervilhavam e, com ela, transforma-se a
maneira de representarmos o mundo, bem como a nossa relação com a imagem.
Começava uma nova forma de visualidade, agora a mão do artista estava liberada da
responsabilidade da reprodução fidedigna da imagem. Embora sua invenção seja
atribuída aos artistas e litógrafos: Niépce, Daguerre, Talbot e Hercules Florence, seu
descobrimento foi o resultado da construção visual e do amadurecimento tecnológico
que levou a sociedade européia do século XIX a conseguir agregar, com sucesso, os
procedimentos químicos que possibilitaram a fixação da imagem em suporte coberto
por emulsão fotossensível2, assim como o mecanismo óptico da Câmara Escura
3, já
1 ULBRA/RS;Mestre Estudos Culturais:analise visual/ Educação;UCS/UFRGS;email:jussaraart2@gmail.com 2 Capacidade que algumas substâncias possuem de serem sensíveis à luz (escurecem).
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utilizada por vários artistas na pintura desde o século XVII.
Os referenciais visuais, construídos pela pintura, prepararam o olhar da
sociedade oitocentista para a fotografia. O uso da câmera escura, por vários pintores
do século XVII e XVIII, estabelecia novos parâmetros visuais. Por volta de 15584,
vários artistas europeus utilizavam aparelhos ópticos para mediar o olhar e auxiliar na
elaboração do desenho de paisagem e para o retrato, e estes, influenciaram as
fotografias de vistas urbanas. Entre eles, temos Leonardo Da Vinci, Leon Battista
Alberti, Dürer e Pietro Della Francesco, construindo toda uma nova estética
representacional para a pintura e o desenho.5 O olhar mono-ocular estabelecia o ponto
focal e criava um enquadramento, que melhorava a visão dos detalhes e revelava
reflexos sobre as superfícies Nas pinturas em que foram utilizados os equipamentos
ópticos, como os retratos ingleses e as paisagens holandesas do século XVII e XVIII,
vemos o olhar mediado por uma janela, na qual a atenção passa a ser objetivada e
centraliza pela lente, valorizando-se ainda o estudo da luz. Desse modo, o
enquadramento, a seleção visual das imagens e a luz refletida passaram a compor os
referenciais imagéticos, mesmo antes da primeira fotografia. As composições, arranjos e
temáticas das fotografias do século XIX continuaram seguindo os cânones da pintura,
como podemos observar na 1ª fotografia de
Daguerre, still live (1835). Com uma composição
clássica de “natureza morta” (foto 1), é utilizada a
luz lateral, proporcionando um jogo de luzes e
sombras que valorizam e realçam os volumes e
detalhes, pondo em evidência duas características
3 A primeira ferramenta que se tem notícia é a Câmara Escura, que já era conhecida desde o ano 300 A.C., no
Oriente. Apesar de algumas divergências históricas, quanto à descoberta do prin
cípio óptico que propiciou o desenvolvimento da Câmera Escura, a maioria dos estudiosos da história da Fotografia,
entre eles Gernsheim (1966) e Amar (2007), atribuem a autoria ao filósofo e matemático grego Aristóteles. 4 Ao relatar esses fatos históricos, creio ser importante destacar que a cronologia não é unânime. Mirzoeff (2003)
argumenta, a imagem visual e também sua história não é estável e se transforma dependendo das relações que
estabelece com a realidade externa. Tanto sua situação como tecnologia, sua natureza como prática e suas funções
como modo de produção cultural variam de acordo com as relações de poder que a utilizam; as instituições e os
agentes que a definem, assim como suas significações e produtos são legíveis dentro de contextos específicos (apud
ETCHEVERY, 2007). 5 Ver estudos do pintor contemporâneo David Hockney (2001), que demonstrou, através da história da pintura, como
os aparelhos óticos contribuíram para a mudança e representação visual.
Foto 1: still live, de 1835 fonte: web
acesso:8/2010
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das fotografias do novo século; segundo Mauad (1997),
a nitidez e a distribuição de planos.
Nas fotografias de cidades encontramos as regras
da pintura de paisagens inglesas, compostas de grandes
planos, vistas distantes e locais rodeados de elementos
naturais; já as de vistas urbanas eram feitas nos moldes
das holandesas que narravam o cidadão em seu cotidiano
(foto 2).
Estas características também deixaram marcas nas imagens feitas sobre o
Brasil do II Império - como as de Marc Ferrez (RJ) e também nas dos irmãos Ferrari e
Calegari, de Porto Alegre –, no início do século XX,que mesmo com as rupturas visuais
do Impressionismo, ainda se mantiveram.
As primeiras vistas urbanas6 em fotografia foram produzidas por Joseph
Nicéphore Niépce em heliografia7, intitulada"telhados"(1826), cujas as sombras
percorrem todos os ângulos , fato este por ter sido produzida ao longo de oito horas e
Louis Mandé Daguerre8 com sua vista urbana Boulevard du Temple (1839) que
consegue uma panoramica da cidade com suas ruas e construções. Nos daguerriótipos
(fotos) e pinturas de Daguerre podemos ver registro de inúmeras cenas urbanas, nas
quais a vista das cidades e de suas construções recebem especial atenção enfatizada pelo
enquadramento. sito como exemplo as pinturas The Effect of Fog and Snow Seen
through a Ruined Gothic Colonnade, 1826 e a ; Ruins of Holyrood Chapel (1787-1851)
e fotografias de Daguerre de View from the Daguerres house,1839 utilizadas para o
teatro e que retratam a arquitetura de 1787 e 1826 e a foto do inglês Hery Talbot ,Nelson
Column under Construction, London, 1843. Calotype. Nas imagens , destaco dois
elementos compositivos que são importantes tanto para a fotografia como para
arquitetura : a luz e o ponto de vista. Dependendo da maneira com que as utilizamos,
6 “vistas urbanas”: este termo com a introdução da fotografia, passa a ser empregado em substituição ao termo
“paisagem”, utilizado na pintura, cuja origem vem provavelmente da palavra vedute, utilizada para designar a pintura
da cidade de Veneza por artistas do século XVII (ETCHEVERY, 2007). 7Técnica que utilizava como material fotossensível o betume da Judéia, sensibilizado diretamente pelo sol. 8 Daguerre passa a ser conhecido como o principal inventor da fotografia ao vender os direitos da invenção ao
governo francês, que a divulga oficialmente ao mundo, através da Academia de Ciências de Paris.
Foto 2: Pieter de Hooch, Festa Musical
em um Pátio, 1677.holandês fonte: web
acesso:8/2010
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podemos construir imagens e formas e provocar sensações em seus espaços. Entretanto
a relação entre estas duas produções culturais, vai além do uso em comum da luz, ela
nasce junto com a invenção fotográfica.
Desde o início da fotografia, a temática da arquitetura foi uma das mais
produzidas. Esse fato é justificado pelas dificuldades técnicas iniciais do processo,
como a lentidão das emulsões que exigiam temas que se adequassem à imobilidade, a
grandes períodos de exposição à luz. Através das várias publicações fotográficas de
cidade, sejam em álbuns temáticos, livros ou em cartões postais, o mundo e sua
arquitetura se tornavam mais próximos. As fotos serviam não só de registro documental
dos espaços edificados que estavam sendo transformados, mas também forneciam uma
referência ao estudo das construções mais antigas, assunto este, de grande interesse no
século XIX. Com uma sociedade em transformação, os arquitetos buscavam novos
padrões arquitetônicos que representassem a nova sociedade industrializada e
tecnológica. Nesse contexto, as imagens mais solicitadas eram as de fachadas, de
monumentos e de detalhes. Segundo Carvalho e Wolff (apud Fabris, 1998), os
referenciais imagéticos, dos arquitetos do século XIX, coincidiram com seus interesses
pelo conhecimento da arquitetura do passado e a curiosidade própria do homem deste
século. Dessa forma, as explorações científicas, os “estudos de monumentos antigos e
de culturas distantes, e as renovações e modernizações das cidades pertenciam, por
excelência, ao campo da fotografia e também ao
domínio da arquitetura” (p.152).
Foto 3 Câmara Municipal Velha, 1657
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Assim, nesse período inicial, as fotografias
de cidades privilegiavam vistas urbanas, com suas
principais ruas, seus monumentos e seus detalhes
arquitetônicos, utilizando geralmente um
enquadramento central e uma perspectiva sem
distorções9. Com o aprimoramento da técnica, abre-
se espaço para discussões estéticas e
experimentações visuais e, desta forma, o século
XX se torna palco de intensa produção fotográfica, iniciando com o Pictorialismo
(1854-1910), que explora as relações da fotografia com a pintura, seguido do
Movimento Modernista (1922), que se expressa, por exemplo, em tendências como o
Impressionismo, o Futurismo e o Cubismo, além de uma série de outros movimentos
que exploravam o estudo da luz, cor e do movimento. Durante esse período, houve
uma intensa integração entre fotógrafos e artistas, interferindo na maneira de compor as
imagens e abrindo espaço para experimentações visuais das vanguardas artísticas
européias e da fotografia, como é o caso do Surrealismo e do Cubismo10
(1907). Outro
movimento fotográfico importante, já na década de 30, foi o Straight Photography ou
Fotografia Pura11
, que trazia a rigidez da qualidade fotográfica, entre outros aspectos.
Todos estes movimentos artísticos produziram mudanças na forma de representar as
cidades, modificando pontos de vista, enquadramentos e temáticas e abriam para as
novas experimentações na fotografia de arquitetura da era digital . Destaco, as pinturas
desses movimentos, cujo foco é a cidade como a Cafe Terrace, 1888 de Vincent Van
9 Cabe destacar que, encontramos também as fotografias de Arget, considerado por alguns como o
precursor do Surrealismo9. Suas fotos urbanas se diferenciavam das demais por eleger locais "não
turísticos" de Paris e em horários de pouco movimento, o que as conferia uma aura de mistério. 10
O movimento Cubista recusava a idéia de arte como imitação da natureza, abandonando as noções de
perspectiva e de profundidade. Ele procurava, através da forma cúbica - volumes e planos geométricos
entrecortados -, apresentar todas as dimensões - de um objeto.Veja sobre este movimento em
http://www.itaucultural.org.br. 11
O conceito de straight photography (fotografia direta, pura) caracteriza uma vertente da fotografia
moderna nos Estados Unidos por volta de 1910, cujos fotógrafos mais conhecidos são Alfred Stieglitz
(1864 - 1946), Paul Strand (1890 - 1976), Edward Weston (1886 - 1958) e Anselm Adams (1902 - 1984).
Refere-se a imagens feitas, sem intervenções no laboratório ou na cópia. Apesar de apresentar diversos
pontos em comum com as vanguardas européias, como a nova objetividade fotográfica e a nova visão, o
movimento norte-americano distingue-se por enfatizar a noção de fotografia como expressão subjetiva.
Disponível: http://www.itaucultural.org.br acesso: 28/12/2009.
Foto 4:Intendência Municipal de Porto
Alegre1898 e 1901autor:desconhecido
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Gogh; O Ruído da Rua Entra em Casa, 1911; Umberto Boccioni e as fotografias de
Boris Ignatovich, 1930 e Radio Tower Berlin, 1928 de László Moholy-Nagy12
.
Observando essas imagens podemos ver que guardam certa relação com as que
vemos atualmente, quando se trata de fotografias urbanas - planos que se confundem
com a cor, imagens que informam sobre a vida na cidade. Pode-se dizer que a cidade
não constitui apenas o cenário ao fundo. Ela é o espaço que se constitui o estilo de vida,
o sujeito, o seu modo de ser e de estar. A cidade é um produto cultural – além de ser um
produto artístico, ela é a consolidação dos processos sociais, econômicos, e políticos
vividos e envolvidos em teor simbólico. Desde a antiguidade, a pintura, a gravura, a
fotografia e o cinema retrataram as mudanças urbanas e transformações tecnológicas,
espaciais, sociais e artísticas ao longo de vários períodos significativos da história13
.
Hoje apesar das mudanças incorporadas pela fotografia digital,como a fluidez, rapidez
e manipulação da imagem que nos permitem outras formas de composições visuais ,
encontramos ainda muitas das fotos contemporâneas da cidade de Porto Alegre que
mantém as características compositivas e referencias visuais do inicio do século. Em
inúmeras imagens vemos fotos com as principais ruas, os prédios representativos e os
monumentos, centralizados ou em perspectivas, construções que significaram a
modernidade da capital ao lado de outras de uma cidade inventada ou não turística14
próprias do século XXI. Ao observarmos fotos de edifícios ou cidades, podemos,
através de suas características visuais, identificar suas funções simbólicas e objetivas.
As várias imagens produzidas de arquiteturas distintas orientam e carregam uma idéia
"identitária" para os locais. Ao vermos uma fotografia da Catedral Metropolitana de
Porto Alegre, mais especificamente as que destacam sua cúpula central, logo
percebemos que se trata de um templo imponente e que, para a sociedade em que está
inserido, determinada forma religiosa é importante.
12
devido a limitações de publicação as imagens foram supridas,constando apenas a referencia. 13
segundo Carvalho e Wolff (apud FABRIS, 1998) a fotografia de arquitetura é uma peça importante na
percepção do espaço arquitetônico e urbano, argumentando que, através dela, a arquitetura é atualmente
divulgada e “interpretada através de imagens fotográficas. 14
Fotos dos álbuns virtuais em contratas no site flickr e analisadas na Dissertação de Mestrado da
Autora.
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Podemos pensar no número de vezes que vemos a imagem de uma edificação
fotografada ou desenhada passar a ser um símbolo da instituição que ela abriga. E, nesse
caso, a fotografia contribui para ampliar esse potencial (CARVALHO e WOLFF, idem,
1998). A identidade que atribuímos ao espaço não vem apenas de nosso conhecimento
físico, mas também de nossos repertórios visuais anteriores. O turista pode não
conhecê-la pessoalmente, mas certamente poderá identificá-la por suas várias
fotografias ou, simplesmente, identificar sua importância por conhecer, através de
fotografias, outras de mesmo estilo arquitetônico. Sua cúpula, outro elemento muito
fotografado, carrega uma função simbólica de poder, réplica do mais importante templo
religioso para os católicos, a Basílica de São Pedro, no Vaticano, que atribui (junto a
outros elementos) imponência ao templo, mostrando que é a principal edificação da
cidade. As fotografias ajudaram a multiplicar uma das funções da arquitetura que seria a
de comunicar e divulgar mensagens através de seus espaços. Philippe Dubois (1994)
argumenta, seguindo as teorias de Charles Pierce, que a fotografia seria um signo dentro
de um sistema de significados. Ela seria um indício, uma referência – contrariando
assim as idéias de objetividade, imitação ou interpretação da realidade. A fotografia
expressa e constitui certas maneiras de ver e de pensar.
Mais recentemente, podemos ver mudanças de intenções e explorações visuais
dialogando com as formas arquitetônicas, que não põem em destaque apenas edifícios,
como também idéias do que seja o urbano. No campo das Artes Visuais, no qual a
fotografia se inclui, o exercício do olhar não se refere apenas ao ato de ver as coisas,
identificando forma, movimento, mas também constitui e produz significados,
atribuindo lugares e funções para o que é visto. Na análise de Achutti (1998), a
experiência de olhar é particular e depende de cada sujeito e das inter-relações sociais,
culturais, emocionais e psicológicas. É na cultura que aprendemos a olhar para tudo que
nos rodeia: aprendemos a reconhecer o que vemos e certos modos, desenvolvemos
maneiras de olhar. O olhar é aprendido e importa indagar, então, quando, com quem (ou
pelo olhar mediado de quem) e, ao mesmo tempo, através de quais referencias cada um
de nós vai produzindo maneiras de ver. Neste sentido, o olhar é cultural e contextual.
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Em cada época, constituem-se muitas e variadas maneiras de olhar, mas algumas
adquirem visibilidade e indicam as preferências, os tipos de imagem valorizados e as
maneiras como um grupo de pessoas se relaciona com elas. Ao fotografarmos estamos
fazendo escolhas, colocando em evidência alguns aspectos, mas também mantendo
outros na invisibilidade. Aprendemos assim não só com o que esta visível, mas também
com o que esta invisível, com aquilo que foi escolhido para não aparecer, o que não era
importante, no contexto para aquele grupo ou sociedade.
Cunha (2007), ao falar sobre a importância das imagens na construção de nossas
memórias e referências visuais, argumenta que “nossas coleções de imagens, sejam pela
insistência de seus significados inscritos culturalmente e outros que atribuímos a elas,
ou por vínculos afetivos que criamos com estas figurinhas, ficam preservadas
cuidadosamente em nosso imaginário e passam a compor nossos repertórios visuais”
(p.3). Yudice (1990)15
afirma que as produções da arte pós-moderna, imersas na
contemporânea cultura visual, também instituem significados para as transformações
vividas em nosso cotidiano, que também educam o nosso olhar. Passamos a ter uma
pluralidade de estilos, matérias e meios expressivos, a partir dos anos 80,
potencializada pelo caráter multimídia da arte “ o ecletismo pós-moderno resultava do
questionamento da postura do artista como alguém que se acreditava “adiante do seu
tempo” (p.51). Os vários trabalhos visuais que foram produzidos, tais como os dos
brasileiros Amilcar de Castro e Vera Chaves Barcellos, carregam um ecletismo, com a
fotografia, a pintura, o vídeo, etc e apresentam as cidades e o urbano de maneira
distintas dos seus antepassados. Tudo isso se relaciona ao caráter fragmentário e fluido
das sociedades pós-modernas e alia-se à rapidez com que os sujeitos podem se
comunicar e se deslocar, estando em vários locais e participando de diversas
atividades ao mesmo tempo. Podemos ver um exemplo disso no trabalho denominado
CASAUBU (2006) da artista multimídia Vera Chaves Barcellos16
, construída com 86
imagens produzidas a partir de fotografias de uma viajem a praia de Ubu, no Espírito
Santo, em 2006. A mistura de materiais na construção das fachadas das casas lhe
15
Entrevista de George Yudice concedida à Eneida Maria de Souza e publicada com o título “O pós-
moderno em debate”, na revista Ciência Hoje Vol.11 nº 62, Ano 1990. 16
CASAUBU: ver em: www.associacaochicolisboa.blogspot.com
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chamou atenção por seus resultados esteticamente discutíveis. E partir disso ocorreu-lhe
criar novas imagens manipuladas digitalmente. Neste trabalho a artista coloca em
discussão a noção de realidades, fragmentação e fluidez contemporânea. Segundo,
Beatriz Sarlo (2006) a produção imagética em função da rapidez e da multiplicidade
imagens, perde a intensidade num mundo repleto de visualidades. A autora defende que
a arte - e eu acrescentaria a fotografia - é fator que vai na contramão dessa diluição de
valores imagéticos, pois seria uma atividade que pode nos colocar, de maneira mais
detida, diante de uma imagem.
Identidades como produções da cultura
Entre os muitos teóricos que problematizam os impactos da globalização na vida
cotidiana, destaco Stuart Hall (1997), através da atenção que ele dedica aos processos de
constituição das identidades. Para ele, a fragmentação e a transitoriedade das
identidades é uma característica que se acentua na vida contemporânea, pois a
identidade emerge “do diálogo entre os conceitos e definições que são representados
para nós pelos discursos de uma cultura e pelo nosso desejo (consciente ou
inconsciente) de responder aos apelos feitos por estes significados” (p. 8). Dessa forma,
as identidades são o resultado de um conjunto amplo de práticas e de posicionamentos
que assumimos e isso mostra que elas são construídas culturalmente.
As identidades estão relacionadas aos vários lugares sociais que assumimos ao
longo de nossa vida – assim como as pessoas, os lugares também adquirem identidades
que lhes são atribuídas dependendo do grupo social que os utiliza, a função a qual se
destina numa determinada época histórica, etc. Tomemos, por exemplo, o prédio do
Museu de Artes do Rio Grande do Sul – MARGS. Este prédio, que hoje abriga um
museu de artes, foi construído para ser a sede da Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional,
entre 1912 e 1922, em Porto Alegre. Sua localização era privilegiada, ao seu lado
estavam a Alfândega, a Secretaria da Fazenda e os Correios e Telégrafos.
Nesse período, Porto Alegre - em especial sua área central - passava por
transformações urbanas e arquitetônicas. Inspiradas nas reformas de Paris, o governo
vigente, positivista, queria fazer com que Porto Alegre fosse “uma espécie de cartão de
visita de sua administração, pretensamente pautada na ciência, no progresso, e no
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consórcio da técnica com a arte” (Doberstein, 2001, s/p.). O estilo adotado foi o
ecletismo 17
.Nesse período, sua função, entre outras, era identificar-se com os valores
econômicos, através de sua rica ornamentação. Já, atualmente, essa estética passou a ser
valorizada e identificada por seu aspecto artístico, fazendo com que este local seja
identificado não como um local de poder econômico, mas do poder artístico e histórico.
Encontramos varias imagens distintas da mesma edificação as de 1922, quando ainda a
sede da Delegacia Fiscal e a praça se configuravam de uso administrativo e econômico
e cujas fotos destacam sua importância colocando as em evidencia no contexto
urbano,e, outras, mais contemporâneas cuja identidade do prédio como espaço de arte
é representada por enquadramentos inusitados e com vistas parciais18
.
Uma cidade não possui uma, mas várias identidades ao longo de sua história e,
ao mesmo tempo. Como é o caso de Porto Alegre, temos um amplo leque de bairros,
com diferentes identidades e características. O bairro Azenha, tradicional ponto
comercial, é identificado através de sua arquitetura simples de casas baixas, com alta
densidade comercial, cujo comércio se especializou em calçados e peças automotivas.
As fachadas de seus prédios estão repletas de anúncios que corroboram sua imagem.
Outro bairro de forte referência é a Cidade Baixa, junto ao Parque da Redenção.
Conhecido por seus bares e vida boêmia19
, traz um misto de nostalgia e juventude com
seus casarios antigos revitalizados, utilizados por bares, botecos e pequenos
restaurantes, de agitada vida noturna.
Já o Centro Histórico é valorizado por suas edificações representativas dos
poderes econômicos, religiosos, sociais e culturais, entre tantos outros que corroboram
com uma imagem ou uma identificação de Porto Alegre cultural e artística que valoriza
sua história e arte.
Pensando especificamente na temática das cidades, vejo que as representações
produzidas são sempre cambiantes. Por exemplo, através de certas construções e
edificações, estes locais são apresentados como dinâmicos e progressistas; pela
17
muito em voga na Europa, que se caracterizava por um misto de vários outros estilos estéticos, cujo
interior e exterior eram ricos em detalhes, visando simbolizar a prosperidade e riqueza das classes
dominantes da época. 18
podem ser encontradas vários exemplos nos álbuns virtuais: flicker: ou ver na dissertação de mestrado
da autora. 19
Ver em flicker: Cidade Baixa, Rua João Alfredo Álbum:porto alegre grupo Autor: boonphoto
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valorização do patrimônio histórico, das praças, dos bares ou das orlas, elas são
constituídas como cidades culturais e propícias ao lazer; pela exaltação de aspectos
arquitetônicos, elas adquirem um perfil de cidade histórica, parte de um patrimônio
mais amplo da humanidade - e ainda assim, ao olharmos estas imagens, construímos de
maneira sempre provisória e fluida uma imensidão de outros sentidos. Destaco, a seguir,
uma fotografia20
que pode nos fazer pensar sobre a cidade – neste caso, Porto Alegre.
Nessa fotografia, destaca-se uma representação de cidade monumental, através
de três importantes edificações situadas na área central: em primeiro plano, apresenta-
se o prédio do Ministério Público Federal, em segundo, a Secretaria do Planejamento do
Estado do RS e, em terceiro, a cúpula da Catedral Metropolitana de Porto Alegre. Essas
edificações representam um poder político e religioso e, deste modo, são significadas
como monumentais. A catedral, considerada referência histórica, é apresentada ao
fundo, como exemplo de arquitetura Renascentista da capital. Sua posição nessa
fotografia valoriza os prédios situados em primeiro plano, contudo, nesta mesma
imagem, ela também adquire relevância pelo contraste. Ao escolher uma iluminação de
fim de tarde, o fotógrafo obtém uma luz solar que incide diretamente sobre os vidros do
prédio, na fachada principal, produzindo, como efeito, a intensificação do brilho e o
aspecto dourado e criando com isso, uma idéia de monumentalidade através da luz.
20
Fotografia retirada de um dos álbuns analisados durante o projeto de dissertação de mestrado da autora.
Foto 5: Prédio da Justiça Federal; secretaria do planejamento do Estado - autor: Ander Vaz
http://www skyscrapercity.com
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Os fotógrafos contemporâneos – amadores ou profissionais – colaboram para
inventar as cidades habitadas ou visitadas. Assim como a fotografia, as cidades e sua
arquitetura estão em constante transformação, seus espaços ordenados e as imagens
fotográficas que deles se fazem tanto podem sugerir comportamentos e formas de olhar
aos que neles transitam, como também podem sofrer transformações e reordenamentos
neste trânsito. As fotografias urbanas, são construções visuais, recortes interessados
de uma intrincada malha que são as cidades. O que vemos são fragmentos de cidades
imaginadas, desejadas ou não, cujas imagens constroem e instituem significados.
Assim, vamos produzindo olhares sobre os lugares e, deste leque de representações,
alguns passam a constituir nossas próprias maneiras de narrar a cidade em que vivemos.
A fotografia é uma das formas pelas quais se narra os espaços urbanos e sua
arquitetura e, assim, ela ensina sobre a vida contemporânea, inventando, recompondo e
estabelecendo identidades para a cidade. Dentro dessa perspectiva, o conceito de
fotografia também passa por novos questionamentos e, com a fotografia digital, seu
caráter documental se reconfigura e surgem diversificadas formas de exibição e
circulação.
Vivemos em uma era, na qual a imagem é fator predominante e sua centralidade
nos meios de comunicação é marcante. A coexistência de diferentes formas de produzir
a imagem fotográfica e de convertê-la em informação eletrônica, bem como a
popularização das câmeras digitais transforma as relações e os olhares. Nossa inserção
nesses espaços de produção, circulação e consumo de imagens também nos constitui e
conforma nossos gostos, preferências, escolhas, enfim, nossas identidades. Nessa
direção, Silva (2005) argumenta que a fotografia não é somente um meio de registro de
imagens, mas tornou-se um hábito que hoje está inserido no cotidiano de milhões de
pessoas. Ao olharmos as fotografias contemporâneas de porto alegre, vejo cada vez
mais uma cidade imaginada. Em alguns desses, as fotografias são construídas de
maneira a vermos uma cidade brilhante, de cores intensas quase “irreais” e, em outros,
deparo-me com lugares tristes, cinzas, aspectos de uma cidade de contrastes. Ao
analisarmos as fotografias de cidades, podemos prestar atenção, por exemplo, no modo
como o fotógrafo registra uma determinada paisagem urbana, seus prédios e suas ruas.
Podemos ver o que foi destacado do espaço e das edificações, a relação entre os vários
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elementos que a compõem, como suas funções histórica e social, seu estilo
arquitetônico, os materiais utilizados, as dimensões e sua inserção no espaço, e como
ele usa os elementos compositivos e características próprias da técnica para valorizar e
construir significados. Também podemos buscar entender como o “operador” constrói a
relação entre as coisas fotografadas e a cidade como um todo. Como apresenta, por
exemplo, o edifício no seu entorno, os aspectos geográficos e climáticos, as construções
vizinhas e os acessos ,as aberturas e as praças. Isso mostra que cada um de nós olha de
maneira particular, buscando retratar um local, utilizando diferentes suportes e efeitos.
Segundo Canevacci (1990), “compreender uma cidade significa colher
fragmentos. E lançar entre eles estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível
encontrar uma pluralidade de significados. Ou de encruzilhadas herméticas” (p.35). Ao
olhar as fotos da cidade de Porto Alegre, eu junto fragmentos visuais, peças que para
mim, ora parecem-me complementares em seus significados ora parecem-me
completamente desconexas. Nelas, vejo lugares que reconheço: a Usina do Gasômetro,
o Parque da Redenção, a beira do Rio Guaíba, entre outros tantos que fazem parte do
meu repertório visual e, provavelmente, de quem vive ou visita essa cidade. Mas há
também lugares em que nunca passei, ou ambientes que poderiam ser de qualquer
grande cidade – grandes vias, becos, matas e labirintos urbanos, que também fazem
parte deste complexo tecido que é a urbe e que os fotógrafos nos convidam a conhecer
e a sentir.
REFERÊNCIAS
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AZEVEDO, Jussara Moreira.Cidade(s) na Janela Pós-Moderna : Um Olhar Sobre os
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