Post on 18-Jul-2015
description
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
O EXÍLIO ATRAVÉS DA CULTURA DA MÍDIA: PERSÉPOLIS E A
REVOLUÇÃO IRANIANA
David Marinho de Lima Junior
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
I. Introdução
A relação entre o Ocidente e a República Islâmica do Irã é marcada pelos
estereótipos e pelas definições reducionistas reproduzidos por discursos oficiais e
através da mídia ocidental. Principalmente após a revolução iraniana em 1979, o
fundamentalismo religioso e o radicalismo político foram colocados como
características intrínsecas ao país. Conseqüentemente à eleição de MahmoudAhmadinejad para o cargo de presidente em 2005, com seu discurso antiimperialista,
anti-sionista e, notavelmente, antiamericano, o Irã voltou a ocupar lugar de destaque nos
noticiários e a ser assiduamente abordado nos discursos dos especialistas1.
Para uma melhor compreensão dos acontecimentos atuais é fundamental retomar
o inicio deste processo histórico. A revolução iraniana derrubou, em fevereiro de 1979,
o Xá Mohammed Reza Pahlavi, um governante conduzido ao poder e apoiado pelos
norte-americanos2. O governo pró-Ocidente do Xá deu lugar à República Islâmica do
Irã, construída sob a liderança do Aiatolá Ruhollah Khomeini.
O Xá havia se tornado muito impopular em seu país por seu projeto de
ocidentalização acelerada3, assim como pela violência com a qual perseguia seus
opositores através de sua polícia secreta, a temida Savak. Pahlavi era também uma
figura facilmente identificável com a defesa dos interesses norte-americanos dentro do
Irã. Em oposição, Khomeini lançou algumas diretrizes ideológicas que foram seguidas
pelos governos seguintes, tais como a independência em relação às duas superpotências
1 O especialista seria a pessoa que estuda um determinado assunto e tem o poder de legitimar determinadodiscurso. A produção acadêmica não está desligada das circunstâncias políticas em que são escritas,portanto, o saber do especialista é freqüentemente usado como uma forma de dominação legítima. Estadefinição está presente na obra SAID, Edward. Orientalismo – O Oriente como Invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.2 KINZER, Stephen. Todos os homens do Xá: o golpe norte-americano no Irã e as raízes do terror noOriente Médio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.3 Uma das atitudes do Xá que mais provocou descontentamento entre o povo do Irã foi a proibição do usodo véu pelas mulheres.
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
2
da época, a resistência à ocidentalização e a identificação dos Estados Unidos e Israel
como os principais inimigos dos iranianos4.
Os Estados Unidos passaram a ser considerados pelos revolucionários como o
“Grande Satã”. Para a cristandade, Satã representaria o mal supremo, mas esse
maniqueísmo não se aplica da mesma forma no Islã. Segundo Karen Armstrong, noxiismo o Satã representa o tentador, uma criatura ridícula, cronicamente incapaz de
apreciar os valores espirituais do mundo invisível e que, necessariamente, se submeteria
à vontade de Alá5. Desta forma, antes de demonizar o inimigo de forma cristã, o intuito
seria de ridicularizá-lo.
Desde a deposição de Reza Pahlavi, o Irã se tornou uma fonte de preocupação
constante para os norte-americanos, que buscavam manter sua influência político-
econômica na região. Porém, era o inverso que acontecia, ao menos na esfera política.
Após enfrentar, sem qualquer sucesso, a crise dos reféns6, Jimmy Carter sofreu umaderrota expressiva para Ronald Reagan nas urnas, e foi no exato momento de sua posse
que os reféns foram libertados em Teerã. Um incômodo recado havia sido deixado, o Irã
deixava a condição de aliado norte-americano, logo ocidental, para demonstrar que
tinha o poder de influenciar diretamente a política interna da maior potência do
Ocidente capitalista.
Em 1980 tem inicio a guerra Irã – Iraque (1980-1988), na qual os norte-
americanos apoiaram abertamente o Iraque de Saddam Hussein, eleito à época o mais
novo aliado da superpotência no Oriente Médio. O principal interesse dos Estados
Unidos em apoiar o Iraque era impedir a expansão dos ideais revolucionários de
Khomeini pela região7, atentando para o fato de que o próprio Iraque poderia se tornar
um foco de expansão da revolução, uma vez que a população iraquiana é
majoritariamente xiita8. Para tanto, Saddam obteve total apoio da Casa Branca. Esse
4 ZACCARA, Luciano. Los enigmas de Iran: sociedad y política em la República Islámica. 1ª ed.,
Buenos Aires: Capital Intelectual, 20065 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e noislamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.6 A crise dos reféns teve inicio em 1979, quando um grupo de estudantes ocupou a embaixada norte-americana em Teerã reivindicando, dentre outras coisas, a extradição do Xá. A crise só terminou com aliberação de todos os reféns, em 1981.7 A expansão da revolução para todo o mundo islâmico, e a libertação de todos os muçulmanos do jugoocidental eram, dentre as propostas de Khomeini, as que mais afligiam os norte-americanos.8 Apesar de possuir uma população predominantemente xiita, o Iraque era governado por SaddamHussein, um líder sunita. Para uma exposição mais detalhada da oposição entre xiitas e sunitas, verARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
3
apoio incluía a não oposição ao uso indiscriminado de armas químicas 9 por parte dos
iraquianos, mesmo com todas as denúncias de organismo internacionais e do próprio
Irã.
O fim da guerra Irã – Iraque ocorreu próximo ao fim da Guerra Fria, e nesse
momento o imaginário ocidental começava a substituir o inimigo comunista peloinimigo árabe. Essa transição é sensível no cinema produzido em Hollywood, filmes
como Rambo (1985) e Top Gun (1986) que ajudavam a difundir o militarismo e o
conservadorismo, foram seguidos por filmes como Águia de aço I (1985) e II (1988) e
Comando Delta (1986), que profetizam a troca do inimigo comunista pelo arquiinimigo
árabe. A cultura da mídia10 cumpre um papel fundamental na construção da imagem que
o Ocidente tem hoje da Republica islâmica do Irã, assim como do mundo islâmico como
um todo.
Segundo Douglas Kellner, a cultura veiculada pela mídia tem o poder de seduziro público e levá-lo a identificar-se com os padrões ideológicos vigentes11. Para Noam
Chomsky, além de ser fundamental na fabricação de consenso, a mídia ocidental seria
também responsável por criar os inimigos necessários para legitimar ações militares
pelo mundo, elegendo os monstros a serem combatidos após o suposto fim do
comunismo12. Uma vez que o comunismo não mais representa o mal maior a ser
destruído, um novo inimigo prioritário é eleito: o Islã13.
O presente trabalho utiliza a obra de animação Persepolis para analisar a forma
como a revolução iraniana ainda é representada em pleno século XXI. Persepolis é uma
produção francesa e norte-americana de 2007 que narra a história de uma menina
durante o processo revolucionário no Irã e seus desdobramentos. O filme baseia-se nos
relatos da própria menina, Marjane Satrapi, publicados em quatro volumes entre 2000 e
2003, e editados originalmente na França em forma de HQ.
Através desta contextualização, analisaremos como o cinema, uma das formas de
mídia de maior alcance no mundo, ainda contribui para a disseminação de um discurso
9 A utilização de armas químicas havia sido proibida desde 1925, segundo o protocolo de Genebra.10 Entende-se por cultura da mídia o conjunto de informações veiculadas através da televisão, cinema,radio, jornais e revistas, que ajudam a modelar opiniões políticas e comportamentos sociais, fornecendomaterial com que as pessoas forjam sua identidade. Para uma explicação mais detalhada do conceito, verKELLNER, Douglas. A Cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o modernoe o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001.11 KELLNER, Op. cit. 12 CHOMSKY, Noam. Controle da mídia: os espetaculares feitos da propaganda. Rio de Janeiro:Graphia, 2003.13 HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio deJaneiro: Objetiva, 1997.
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
4
orientalista14, uma vez que apesar de a obra ser de autoria de uma iraniana, ela escreve
no Ocidente e para o Ocidente.
II. Persepolis e a Revolução
O filme retrata bem as primeiras movimentações pré-revolucionárias. Mostra
uma menina empolgada com a abertura cultural de seu país, declarando-se fã de ícones
do consumo ocidental, como o cinema e a marca Adidas. Mas ao mesmo tempo, mostra
uma menina que sonha em ser “a maior profeta das galáxias”. Essa dualidade só é
possível porque ela integra uma família abastada, que, ao contrário da maior parte da
população, tem acesso ao consumo e vê com bons olhos essa abertura. Para o grosso da
população, a influência externa, predominantemente norte-americana, era simplesmente
a razão de sua miséria.A menina é apresentada bem cedo às arbitrariedades do governo do Xá. Alguns
parentes e amigos da família estão presos e sob tortura. Em determinado momento, o pai
da menina vê-se obrigado a explicar-lhe que o Xá não era escolhido de Deus e mostra a
ela como se deu a condução da dinastia Pahlavi ao poder através da influência ocidental.
A menina descobre que seu avô havia sido assassinado pelo governo do pai do Xá por
ser integrante da família real deposta, e, por ser comunista, a figura do avô exerce certo
fascínio sobre a criança, mas o pai lembra a ela que mesmo sendo de caráter violento, o
governo do primeiro Xá foi responsável pela modernização do país.
A narrativa é permeada pelas intervenções das movimentações urbanas. Os
gritos de “morte ao Xá” ecoam na sala de estar da família de Marjane. Em uma das
seqüências mais belas do filme, um jovem desarmado é alvejado pelo exército em
repressão a uma manifestação contra o governo. Seus companheiros ao invés de se
dispersarem, erguem seu corpo simbolizando o martírio que estavam dispostos a
enfrentar. Os pais da menina participavam das manifestações, demonstrando a coalizão
que se desenhava nos primeiros momentos da revolução. Secularistas e Ulemás 15,
intelectuais e leigos, parcelas da elite e grande parte das massas lutavam lado a lado,
todos unidos pela deposição do Xá.
14 O conceito de Orientalismo, de Edward Said, parte do principio que o Oriente é uma invenção doOcidente. Toda categoria criada para definir o oriental passa necessariamente pelo filtro dos valoresocidentais, que normalmente se colocam em uma escala evolutiva superior ao objeto de sua análise. Parauma explicação mais detalhada do conceito, ver: SAID, Edward. Orientalismo – O Oriente comoInvenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
5
A violência passava a ser uma constante ainda mais explícita. Várias
manifestações acabaram com numeroso mortos. A insatisfação com o regime era
exponencialmente crescente. Mais do que qualquer orientação ideológica, o Islã gerava
o sentimento de unidade e impulsionava as camadas populares contra o regime. Nesse
clima ganhava força o discurso de uma das mais influentes figuras religiosas do país, oAiatolá Khomeini.
Perseguido por Reza Pahlavi, Khomeini foi exilado no Iraque e depois na
França. Suas mensagens eram assiduamente aguardadas no Irã e eram precariamente
transportadas através até de fitas K-7. A figura de Khomeini foi fundamental para a
disseminação do sentimento anti-Xá e anti-Ocidente. Apesar de sua importância no
processo revolucionário, ele não é representado no filme, talvez para evitar uma
centralização no aspecto religioso da revolução, ao qual sua figura se tornou
indissociável.Com a revolução vitoriosa e Reza Pahlavi deposto, a euforia deu lugar à
incerteza. Os setores revolucionários seculares não tardaram em perceber que rumos
bem distintos do que seria uma revolução liberal ou comunista estavam sendo tomados.
Um plebiscito decidiu pela instituição de uma República Islâmica quase que por
unanimidade. Khomeini foi apontado como líder supremo da revolução e passou a
desenhar o que seriam as principais diretrizes revolucionárias. Tais diretrizes não
incluíam reformas liberais, e muito menos uma guinada à esquerda. O Islã passou a ser
a principal bandeira da revolução e a principal arma contra a presença ocidental.
Desencadeou-se uma nova onda de perseguições. As forças que agiam em
conjunto com os líderes religiosos passaram a ser consideradas inimigas da revolução.
Os tempos de medo e perseguição estavam de volta.
Nesse contexto, Marjane recebe com tristeza a noticia da prisão de seu tio, que
havia sido um influente comunista nos primeiros momentos daquele processo. Logo
após visitá-lo em uma prisão em estado deplorável, ele é morto. A repressão passou a
ser uma constante também no governo revolucionário, mas com uma diferença: algumas
vezes o Xá comprava seus opositores com dinheiro ou com exílio, já os clérigos
preferiam aplicar a humilhação pública16.
15 Guardiões das tradições legais e religiosas do Islã16 ALI, Tariq. Confronto de fundamentalismos – Cruzadas, jihads e modernidade. Rio de Janeiro:Record, 2005.
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
6
Da proibição do véu passa-se à obrigação do seu uso. Da euforia do consumo
experimentado pela elite, passa-se a demonização institucional de tudo que vem do
Ocidente. Essas são polarizações bem demonstradas no filme e que nos fazem pensar
que os iranianos saíram de um regime repressor para outro, como se houvessem pulado
da frigideira para o fogo. Ambos regimes eram repressores, mas com uma diferençaimportante: a República Islâmica contava com amplo apoio popular. Era inegável que a
maioria dos iranianos queriam o governo islâmico17.
Boa parte da população era religiosa e não tinha acesso ao consumo, logo, as
medidas tomadas pelo governo islâmico que mais saltavam aos olhos ocidentais não
afetavam da mesma forma o iraniano comum. Numa perspectiva orientalista é muito
difícil aceitar o “retrocesso” revolucionário.
Não faz parte dos objetivos deste trabalho definir se a revolução foi boa ou ruim
numa perspectiva maniqueísta. É importante manter em vista o sentimento anti-ocidental fomentado pelo colonialismo e em seqüência pelo imperialismo norte-
americano. A Revolução Iraniana devolveu um sentimento de nação ao povo, definiu
uma identidade e representou, antes de qualquer coisa, a ruptura com o modelo
ocidental.
III. Marjane e o exílio
Em meio ao terror da guerra Irã – Iraque, com seus bombardeios constantes, e a
repressão violenta por parte do regime, a família de Marjane decide enviá-la para fora
do País. No filme, o comportamento contestador da menina havia se tornado um perigo
para sua própria vida. Muitos iranianos deixaram seu país por correr risco de vida, seja
pela guerra ou pela violência repressora.
Em seu ensaio “Reflexões sobre o exílio”18, Edward Said apresenta algumas
distinções entre exilados, refugiados, expatriados e emigrados. Os primeiros seriam
aqueles que por algum motivo acabassem banidos de seu país. Os refugiados são os que
se apresentam como um fenômeno da modernidade, significando grandes grupos de
pessoas que se vêem obrigadas a sair do território onde costumam habitar. Expatriados
seriam os que voluntariamente vão morar em outro país por questões sociais ou
17 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e noislamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.18 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das letras, 2003.
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
7
pessoais. E por último, os emigrados seriam aqueles que saem do seu país por questões
estritamente pessoais, como trabalho, ou representando o seu Estado, como os
diplomatas.
O caso de Marjane deve ser encarado como um caso de exílio, uma vez que,
apesar de ter escolha, ficar poderia significar a morte. Ao contrario do governo do Xá,não havia mais a possibilidade do exílio para os opositores do regime. Na ausência de
tal possibilidade, a condição de expatriado perde o sentido. Sair do país em certos casos
era uma questão de sobrevivência, e isso vai além das questões sociais e pessoais, não
caracterizando, portanto, uma escolha necessariamente voluntária.
Marjane vai morar na Áustria e continua a estudar no Liceu francês do novo
país. Deslumbra-se com a fartura e com o consumo liberado, que contrastam com o
racionamento e com as restrições de seu país em guerra. Suas origens despertam a
curiosidade de seus primeiros amigos, afinal, ela já assistiu a uma guerra e a umarevolução, coisas que a juventude austríaca só conhecia através dos livros. Mesmo
diante de todas as novidades e possibilidades, seus primeiros momentos no exílio são
descritos com melancolia.
Com o tempo, Marjane se adapta melhor ao modo de vida ocidental. Passa a
freqüentar festas e a viver novas experiências que seriam fatalmente condenadas em seu
país, como o uso de álcool. Ela começa também sua vida amorosa, passa por situações
diversas, grandes amores e decepções.
Sofre também com o preconceito por ser iraniana, é rotulada como uma
selvagem por uma freira cristã, sempre reagindo energicamente. Em outro momento, em
uma conversa com um rapaz em uma festa, ela nega ser iraniana alegando ser francesa.
Por esse episódio ela vira motivo de deboche para um grupo de meninas, que afirmam
que ela jamais poderia passar por uma francesa. Já assombrada por sua consciência, que,
representada por sua avó, havia lhe feito lembrar suas origens e como ela não devia
negá-las, ela enfrenta o grupo reafirmando sua identidade nacional19.
Marjane não se identificava com o modelo de governo que foi instaurado em seu
país. O signo do Islã não era a referência que ela tinha de sua terra natal. As figuras
sisudas e as mulheres cobertas, como foram representadas no filme, não eram a imagem
que ela gostaria de guardar na memória ao lembrar do Irã. No momento em que negou
19 A identidade nacional para o não-ocidental estaria muito mais ligada à comunidade de nascimento e àsua cultura nativa do que às questões de identificação com o Estado Nacional. SMITH, Anthony.Identidade Nacional, Lisboa: Gradiva, 1997.
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
8
ser iraniana, na verdade era o Irã pós revolucionário que ela estava negando. Sentia
vergonha de ser associada aos estereótipos ocidentais sobre sua cultura. Sentia vergonha
principalmente por não concordar com as diretrizes lançadas pela revolução.
Esse é um dos propósitos do exílio, fazer o exilado sentir que não pertence mais
àquela comunidade nacional. Porém, a noção de identidade nacional vai além disso. Opróprio nome do filme, Persepolis, remete à antiga capital do império persa, indicando
uma identificação da autora, Marjane Satrapi, com uma outra noção de nacionalidade, à
parte das que foram delimitadas pela revolução. Ela não deixa de ser iraniana por não se
identificar com a República Islâmica, suas raízes seriam mais profundas que isso, ela
compartilha da mesma comunidade de nascimento e da mesma cultura nativa que todos
os outros iranianos, revolucionários ou não.
Ao final de um período conturbado, em que, após uma decepção amorosa,
Marjane passa a morar nas ruas e acaba ficando muito doente, ela resolve voltar ao Irã.Já curada, ela volta a Teerã e reencontra sua família. O exílio havia deixado marcas
profundas, a ponto de ela pedir aos pais que jamais perguntassem o que havia
acontecido em Viena.
IV. Conclusão
O filme faz uma abordagem pertinente do que foi a revolução de 1979. Da
euforia dos primeiros momentos ao recrudescimento da violência no regime. A
experiência vivida por Marjane Satrapi é um relato que contribui para a análise do
período, porém é apenas um ponto de vista dentre muitos. A experiência dela não parte
dos subúrbios de Teerã, mas sim de uma confortável sala de estar de uma família que
tinha acesso ao consumo, entre outros benefícios trazidos com a modernização.
Seu olhar é fortemente influenciado pelo padrão ocidental. Ela quer consumir a
cultura do Ocidente, sua música, suas roupas e seu estilo de vida. Não que isso fosse
algo errado, mas de fato não era essa a realidade da grande maioria da população
iraniana. As profundas diferenças sociais e o Estado corroído pela corrupção foram
heranças do colonialismo e agravados com o imperialismo norte-americano.
Um grande sentimento anti-Ocidente era forte nas camadas mais populares, que
tendiam a concentrar sua indignação nos ícones que representavam a sociedade de
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
9
consumo. A rejeição à cultura ocidental não era apenas uma imposição de um regime
autoritário, era também uma demanda popular. Assim como a questão do véu, que havia
sido proibido no governo do Xá causando grande insatisfação, e que na revolução
ganhou um significado de resistência à influência ocidental.
É fato que o regime era opressor e violento, mas ele não deve ser analisadoapenas da perspectiva do Ocidente. Os aspectos particulares da cultura iraniana e do Islã
devem ser levados em consideração para propiciar uma compreensão mais completa do
processo revolucionário.
É importante mantermos em mente que não é possível desvincular a obra do
momento histórico em que é produzida. O fato de o filme ser uma produção de 2007,
não escapa à influência da eleição de Mahmoud Ahmadinejad em 2005. O novo
presidente do Irã é considerado um radical dentro de seu próprio país, não só para o
Ocidente, por ser um fiel seguidor das diretrizes revolucionárias propostas porKhomeini, o que lhe garante um grande apreço popular. Sua postura diplomática é
desafiadora e fonte de incômodo para as potências ocidentais.
Obviamente não é o caso de atribuir ao filme Persepolis uma ligação direta com
questões de Estado ou propaganda. Porém, o discurso presente no filme pode ser
analogamente associado à atual condição política do país, fomentando no imaginário
ocidental uma imagem deturpada e unilateral de uma República Islâmica intransigente e
violenta.
5/14/2018 O ex lio atrav s da cultura da m dia - Pers polis e a Revolu o Iraniana - slidepdf...
http://slidepdf.com/reader/full/o-exilio-atraves-da-cultura-da-midia-persepolis-e-a-revolucao
10
Referências bibliográficas
ALI, Tariq. Confronto de fundamentalismos – Cruzadas, jihads e modernidade. Riode Janeiro: Record, 2005.
ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989.
ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001
______. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e noislamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
CHOMSKY, Noam. Controle da mídia: os espetaculares feitos da propaganda. Riode Janeiro: Graphia, 2003
ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA. Iran – The Essential Guide to a Country on theBrink. New Jersey: John Wiley & Sons, 2006.
HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordemmundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
KARSH, Efraim. The Iran-Iraq War 1980-1988. New York: Osprey Publishing, 2002.
KELLNER, Douglas. A Cultura da mídia – estudos culturais: identidade e políticaentre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001.
KINZER, Stephen. Todos os homens do Xá: o golpe norte-americano no Irã e asraízes do terror no Oriente Médio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
MEIHY, Murilo Sebe Bon. Por Devoção à República: Nação e Revolução no Irãentre 1978 e 1988. 170 f. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica,Rio de Janeiro, RJ, 2007.
SAID, Edward. Orientalismo – O Oriente como Invenção do Ocidente. São Paulo:Companhia das Letras, 2001.
______. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das letras,2003.
SMITH, Anthony. Identidade Nacional, Lisboa: Gradiva, 1997
ZACCARA, Luciano. Los enigmas de Iran: sociedad y política em la RepúblicaIslámica. 1ª ed., Buenos Aires: Capital Intelectual, 2006