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O jogo de Xadrez como ferramenta de emancipação do indivíduo 1
LIMA, Sidineiva Gonçalves de 2
RESUMO O presente artigo integra o Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) da
Secretaria Estadual de Educação do Paraná (SEED) e tem como objetivo utilizar o Jogo
de Xadrez como ferramenta que contribua para a formação de indivíduos emancipados. A
Educação Física deve proporcionar ao aluno momentos onde desenvolva a imaginação, o
raciocínio, a solidariedade, a disciplina, e a interação social; elementos tão importantes
para a formação dos sujeitos históricos. Na intervenção proposta neste trabalho, o aluno
contextualizou a origem do Xadrez, bem como suas regras e partidas de forma crítica,
elencando as correlações de forças existentes no jogo e possibilidades de elaboração de
novas regras, numa perspectiva de interpretação da sociedade em que vive. A perspectiva
de interpretar sua própria realidade, seu cotidiano e poder inferir, modificando de forma
significativa no meio onde vive, contribuindo assim para a construção de uma sociedade
mais justa e com oportunidade para todos e todas. Observou-se que após as atividades
desenvolvidas nas aulas de Educação Física, foi possível perceber a mudança de
pensamento do aluno com relação à sociedade e suas relações de força; e a partir disso
poder modificar suas ações. Os alunos demonstraram, após responder um questionário
investigativo, as interpretações que se fazem necessárias, para compreenderem a
sociedade na sua totalidade, podendo intervir neste processo.
Palavras chaves: Educação Física. Xadrez. Emancipação
1. IntroduçãoO xadrez é considerado um jogo milenar, os primeiros registros encontrados
datam de aproximadamente 2.000 anos a.C.(MACENA; LEITE, 2010). Durante sua
evolução é possível identificar a influência que a sociedade exercia sobre a construção
das regras do jogo. O caráter nômade dos povos, por exemplo, fica evidente quando são 1 Artigo científico apresentado ao Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) ofertado pela secretaria de Estado da educação do Paraná, sob a orientação do professor Mestre Raphael Gonçalves Oliveira (Universidade Estadual do Norte do Paraná/Campus de Jacarezinho/ Centro de Ciências e Saúde/ Colegiado de Educação Físi -ca).
2 Pós-graduação: Metodologia e Didática de Ensino/1996 e Fisiologia do Exercício/2007, Graduação Educação Fí-sica / 1993/ Universidade Estadual de Londrina; professora da rede estadual de educação desde 1995, lotação Colégio Estadual Zulmira Marchesi da Silva/ Cornélio Procópio – PR.
constatadas as várias divergências existentes na origem exata do xadrez. Sendo assim, é
impossível afirmar com clareza onde e quando se iniciou. De acordo com registros de
povos antigos, observamos que várias lendas o tornaram fascinantes, despertando assim
o interesse sobre o conhecimento prático e científico. Para alguns estudiosos como
Dâmaso (2011), é forma de expressão de vários aspectos culturais relacionando a
diferentes sociedades.
O Xadrez apresenta, portanto diversos elementos que possibilitam ao aluno
fazer análise crítica da sociedade, sendo que
[...] é um jogo que representa a sociedade humana em suas contradições. Nele, os poderosos podem ser destruídos, eliminados: e os plebeus (peões) podem ascender socialmente até a nobreza. É um jogo da vida real, democrático, pois todos têm os seus direitos e deveres perante os demais e perante o todo. (FERRACINI, 1998. p.23)
Historicamente, este jogo sofreu intervenções significativas em suas regras,
refletindo o contexto social de diferentes épocas, até chegar às estruturas e regras dos
dias de hoje. Isto nos permite identificar através das simbologias presentes no jogo, a luta
de classes como algo que sempre existiu. O tabuleiro de xadrez é o espaço onde ocorrem
correlações de forças, forças estas definidas pelos movimentos das peças, que nada mais
são do que as ações do jogador, em busca do controle do espaço do adversário, mas
principalmente, sobre si mesmas “[...] o tabuleiro de xadrez simboliza a tomada de
controle, não só sobre adversários e sobre território, mas também sobre si mesmo, sobre
o próprio eu”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, s/p)
É possível demonstrar, que os sujeitos do jogo são capazes, através de suas
ações, de transformarem a realidade em que vivem. Para isso devem compreender o
contexto em que se encontram, pois “[...] um sujeito é fruto do seu tempo histórico, das
relações sociais em que está inserido, mas é também, um ser singular, que atua no
mundo a partir do modo como o compreende e como ele lhe é possível participar”.
(PARANÁ, 2008, p. 14).
A contemporaneidade nos apresenta uma sociedade fragmentada, ou seja, com
divisões e exclusão social, cultural e econômica, onde se valoriza mais o “ter” do que o
“ser”. Isto se reflete diretamente nas escolas, trazendo para o cotidiano escolar todas as
formas de exclusão existentes no mundo lá fora, até porque a escola não é local de e
para isolamento. Assim, é possível ver claramente os resultados que esta forma estrutural
da sociedade produziu através dos séculos.
Faz-se necessário oportunizar momentos que levem o aluno a refletir e
questionar, de forma crítica, a sociedade contemporânea, produtora de diferentes formas
de exclusão e desigualdades sociais, que colocam mercadoria e lucro acima do valor da
vida humana. A escola é concebida como o espaço onde é possível contribuir para a
emancipação deste sujeito
Segundo Adorno o papel da educação neste processo, não é [...] a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. (itálico pelo próprio autor) (1995, p.141)
Adorno (1995) afirma ainda que, para vivermos em uma sociedade democrática é
necessário indivíduos emancipados. Entende-se aqui emancipação como processo de
conscientização, ou seja, preparado para superação do estado de alienação em que se
encontra, estado este que a ideologia dominante exerce sobre os indivíduos. Ao sair desta
situação alienante possa se contrapor de forma crítica, transformando a sociedade e
construindo um novo modelo social, sem perder suas qualidades pessoais.
O ensino do Xadrez sob a reflexão dos lances efetuados propicia ao aluno
reproduzir as situações da sua realidade e construir situações que demonstrem a busca
por superar as forças do adversário, levando o jogador a refletir também sobre a
competitividade existente, mas onde o que importa não é vencer, mas aprender com as
diferentes possibilidades de ações na direção de soluções para situações-problema de
forma lúdica e prazerosa, porém, crítica. Nas Diretrizes Curriculares da Educação Básica
DCEs temos que:A experiência lúdica constitui-se numa referência significativa que pode contribuir para construção de possibilidades emancipatórias justamente pela sua característica fundamental de resistência à produção de algo que remete para além de si mesma, ou seja, o lúdico não satisfaz nada qual não ele próprio, é compreendido não como meio, mas, necessariamente, como fim. (PARANÁ, 2008, p.35)
Assim é possível ao aluno refletir sobre suas ações em busca de cidadania
através da interação com o outro e com as diversas possibilidades, como cita Piaget em
As formas elementares da dialética.
Na interação social, a criança constrói esquemas que determinarão seu funcionamento diante das circunstâncias e a partir das mudanças nos esquemas, modifica-se também o seu modo de agir nas situações sociais nas quais se envolve. (Apud OLIVEIRA, 2010, p.2)
Nesta perspectiva, o Xadrez tem sido usado em vários países como conteúdo
de disciplina curricular, por ser entendido como possível à contribuição para a formação
do indivíduo. O jogo proporciona benefícios educacionais, sociológicos e intelectuais,
desenvolvendo o raciocínio lógico, a concentração, o pensamento estratégico, a
autoestima, entre outros. Estas ações possibilitam múltiplas intervenções para a melhoria
da relação ensino aprendizagem. Tal relação caminha para a formação do indivíduo, que
vê na escola, muitas vezes, a única oportunidade para depreensão de conhecimentos
necessários à transformação de sua história de vida. O aluno das camadas populares é
assim levado a um processo de desconstrução do sistema de sociedade estruturalmente
incoerente em que vive, ele torna-se capaz de intervir neste contexto, pois entende que
suas ações produzem mudanças. Gentili lembra a importância da educação para
avançarmos neste sentido;
A educação constitui nossa oportunidade de aprender juntos a interpretar o mundo, compreendê-lo e interrogá-lo; nossa possibilidade de compartilhar uma experiência de aprendizagem, onde convivam e se enriqueçam múltiplos olhares, múltiplos sentidos, e intermináveis respostam sempre inconclusos; nossa oportunidade de lutar pela socialização do acesso ao saber historicamente acumulado e socialmente produzido [...] (2008, p.17)
Devemos lembrar ainda “[...] que a luta democrática é o caminho mais seguro
em direção à igualdade. E o antídoto mais eficaz contra o desencanto.” (GENTILI, p. 19).
A democracia começa, portanto, com a oportunidade de se oferecer conhecimentos a
todos para construir um espaço mais digno e solidário. Para isso é necessário educar
indivíduos emancipados, capazes de dirimir e se contrapor às diferenças historicamente
construídas e solidificadas, pois “hoje, mais do que nunca, há razões de sobra para
afirmar que um outro mundo é necessário, urgente e possível”. (GENTILI, 2008, p.21).
Para que possamos atingir o objetivo proposto é necessário, através deste
trabalho, tirar algumas impressões ou até mesmo mitos que permeiam o Jogo de Xadrez,
como por exemplo: jogo difícil, para gênios, complicados, ou seja, tarefa para poucos. Isto
comprova a visão eurocêntrica que paira sobre este conteúdo de Educação Física. Povo
colonizado por europeus que somos, ensinamos na escola conteúdos fora da nossa
tradição cultural e não temos um universo de ensino que os tenha, através dos séculos,
inserido em nosso próprio contexto social.
Esta proposta tem como principal justificativa o ensino deste jogo para os alunos
das camadas populares como conteúdo a que têm direito a acesso. Não menos
importante, será apresentado de maneira contextualizada, ou seja, de acordo com a
estrutura hierárquica em que a sociedade se apresenta. Com suas características de
negação de acesso e contato entre classes sociais, por exemplo.
A concretização do trabalho levará o aluno a entender a lógica de organização
da sociedade e qual o seu próprio papel nesta. Como afirma Barbosa “[...] temos o direito
e o dever de impor o conteúdo mais propício para nosso objetivo de formar verdadeiros
cidadãos” (2001, p. 25).
Estruturas sociais nem sempre são fixas e a compreensão subjetiva do Jogo de
Xadrez poderá levar o aluno a um repensar. Posteriormente reorganizar-se-á o papel de
cada peça e seus possíveis lances numa perspectiva de atualização dos papéis sociais e
posterior superação de processos de preconceito e exclusão vivenciados por este
educando, proporcionando ao aluno questionamento e ampliação dos horizontes
contextuais propõem-se formas de intervenção.
É possível compreender o Jogo de Xadrez para além do “jogo pelo jogo”, ou
seja, compreendê-lo pelo viés das estruturas sociais?
É preciso levar o aluno a compreender o jogo de xadrez na sua totalidade,
desvelando questões de racismo, gênero, preconceito, lutas de classes entre outras, de
forma contextualizada contribuindo para a elaboração de novas regras, numa perspectiva
de superação em busca de mudanças sociais. A atividade lúdica tem papel fundamental
neste sentido, pois leva o indivíduo a vivenciar sensações em um mundo imaginário, tão
importante para a sua formação do mesmo. Neste momento é possível identificar as
sensações e sentimentos que envolvem toda disputa, onde o que prevalece é a lógica do
mais forte e o mais preparado para desenvolver aquela tarefa. Sem levar em conta que a
trajetória deste indivíduo é fruto das oportunidades que teve com sua individualidade e
história de vida e estrutura familiar.O lúdico privilegia a criatividade, a inventabilidade e a imaginação, por sua própria ligação com os fundamentos do prazer. Não importa regras preestabelecidas, nem velhos caminhos já trilhados; abre novos caminhos, vislumbra outras possibilidades. (OLIVIER. 2003, p. 22)
Quando se muda a regra do jogo se faz com intenção de contrapor a já
existente mudando a lógica imposta pela sociedade capitalista, buscando eliminar as
exclusões. Proporciona ao aluno a possibilidade de desenvolver valores humanos tão
importantes para uma sociedade com oportunidades para todos e não apenas como
privilégio para uma minoria. Assim é possível refletir sobre a lógica da própria sociedade
e poder atuar de forma transformadora. Ao vivenciar os aspectos lúdicos que emergem das e nas brincadeiras, o aluno torna-se capaz de estabelecer conexões entre o imaginário e o real, e de refletir sobre os papéis assumidos nas relações em grupo. Reconhece e valoriza, também, as formas particulares que os brinquedos e as brincadeiras tomam em distintos contextos e diferentes momentos históricos, nas variadas comunidades e grupos sociais. (PARANÁ, 2008, p. 55)
A atividade lúdica torna-se parte da formação do indivíduo, contribuindo para
que o ser humano tenha consciência das suas ações na “vida real” e aja de forma
emancipada, pois “A apropriação ativa e consciente do conhecimento é uma das formas
de emancipação humana” (COLETIVOS DE AUTORES, 1993, p. 17). O jogo é uma forma
de expressão do aluno, durante a realização reproduz aquilo que tem de mais marcante
em sua personalidade,
“[...] quando a criança joga, ela opera com o significado das suas ações, o que a faz desenvolver sua vontade e ao mesmo tempo torna-se consciente das suas escolhas e decisões”. Por isso, o jogo apresenta-se como elemento básico para a mudança das necessidades e da consciência. (COLETIVOS DE AUTORES, 1993, p. 17).
Desta forma, pretende-se levar o educando a refletir sobre o cotidiano e suas
ações, contextualizando-as ao momento histórico em que vive, de forma que faça
interferências, consciente, no meio em que se encontra e o modifique significativamente e
positivamente.
2. PROJETO DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA: APRESENTANDO RESULTADOS
O estudo realizado teve uma abordagem preponderantemente qualitativa para
análise e discussão dos dados, tendo como objeto de pesquisa os alunos da 7ª série do
Colégio Estadual Zulmira Marchesi da Silva, do município de Cornélio Procópio, Estado
do Paraná, num total de 26 alunos, sendo 15 meninas e 11 meninos.
Ao iniciar o segundo semestre de 2011, durante a semana pedagógica, foi
realizada a explanação a equipe pedagógica, aos professores e funcionários da escola do
projeto como forma de divulgação do trabalho a ser realizado, como conclusão do PDE.
O mesmo procedimento foi feito no primeiro contato com os alunos para que
todos ficassem cientes do trabalho que iríamos realizar, como forma de socializar os
objetivos e justificativas relevantes a serem abordados durante os próximos encontros.
Em seguida abrimos para uma breve discussão e relatos dos alunos com relação aos
temas abordados, para que juntos pudéssemos avaliar e acrescentar sugestões. Os
alunos tiveram uma boa recepção do projeto. Demonstraram interesse em participar e
colaborar para o bom desenvolvimento do mesmo.
Em um segundo momento realizou-se a exposição do “tabuleiro mural”, como
forma de provocar a observação do posicionamento das peças, fazendo uma relação com
a sociedade atual. Os alunos responderam alguns questionamentos com relação ao
objetivo proposto a partir da observação feita da imagem do tabuleiro, na tentativa de
observar as interpretações que os alunos tinham do jogo de xadrez fazendo um
comparativo com a sociedade. Em seguida os alunos realizaram uma pesquisa, em três
fontes, no laboratório de informática, sobre a origem do xadrez. Após este levantamento,
os dados foram esquematizados, em um quadro comparativo, onde os alunos puderam
acompanhar a evolução do jogo e consequentemente a evolução da sociedade. O
material foi utilizado como instrumento para construir, de forma coletiva, quadro
demonstrativo, da evolução do xadrez e contextualizando as regras com os
acontecimentos históricos e como estes influenciaram determinadas regras. Levando os
alunos e refletir criticamente como os contextos históricos influenciaram nas tomadas de
decisões das leis da sociedade e das regras do jogo. Foram observados diversos
aspectos, como por exemplo:
O aspecto religioso, através do bispo, que significa a Igreja e toda estrutura de
poder, aliando a crença da representação “divina” na terra, tanto que o Rei era coroado
por um bispo. Portanto, se opor ao Rei era se opor a Deus. Este tema foi abordado para
fomentar a discussão sobre a influência da igreja, principalmente a católica, como
também as protestantes, muçulmanas entre outras, ao longo da história, interferindo nas
decisões políticas e econômicas da sociedade. Esta influência está explicita no jogo de
Xadrez ao verificar o posicionamento do Bispo, que fica ao lado da Rainha e do Rei
demonstrando a força que exercia sobre a nobreza. Abordando a igreja nos dias de hoje,
poderíamos questionar se houve mudança na sua postura ao longo deste período? Qual a
relação Igreja/Estado? Como têm sido conduzidos os apelos religiosos, já que somos um
Estado Laico, como define a Constituição Federal de 1988 no seu Artigo 19, inciso I e III.
Os alunos participaram do debate, contribuindo para uma análise crítica deste tema.
A presença feminina, representada pela Rainha, que sempre foi excluída nos
momentos decisivos e no jogo ocupa uma posição de destaque, pois está ao lado do Rei
e tem grande influência no jogo possuindo um movimento extremamente estratégico. Aqui
cabe uma reflexão, como no período medieval, onde a mulher era totalmente submissa e
oprimida, onde seus deveres não passavam de atividades domésticas, além de serem
consideradas desprovidas de inteligência, incapaz de viverem sem a proteção do homem
e aquelas que se atreviam a lutar por direitos eram executadas em praça pública para
intimidar as demais, ocupou um lugar tão importante no Jogo de Xadrez? E ainda com
tanto poder e movimentação, justamente neste jogo, que foi criado pelo universo
masculino ela ocupa um lugar de grande influência, como uma articuladora e protetora do
Rei e de todo seu reinado? Foram elencados alguns acontecimentos históricos,
principalmente o que deu origem ao Dia Internacional das Mulheres, fazendo uma
comparação com as mudanças ocorridas até os dias atuais e o que temos ainda que
superar para diminuir a desvalorização da mulher. Porém, existe ainda, um longo caminho
a ser percorrido para que de fato a cidadania plena possa se tornar realidade.
O preconceito racial está explícito no jogo, pois fornece elemento para análise
crítica da sociedade, construída pela desigualdade, baseada na discriminação e
desvalorização do indivíduo a partir da cor da pele. Para justificar esta lógica, foram
criadas várias teorias para que os mesmos se conformassem ao tratamento desigual,
inclusive a escravidão, base sobre a qual se consolidou a sociedade colonial brasileira. O
Jogo de Xadrez reafirma esta condição no início do jogo, pois quem efetua o primeiro
lance são sempre as peças Brancas, ficando o segundo lance para as peças Negras,
essa regra dá às peças Brancas a vantagem do ataque, enquanto as Negras ficam na
defensiva, esperando qual o movimento realizado pelas Brancas para depois de proteger.
Isso demonstra a forma preconceituosa com que a sociedade reforça aquilo que foi
historicamente construído, onde o negro estará sempre na situação de submissão.
A relação de classe pode ser notada na posição inicial do jogo de Xadrez, onde as
peças de maior valor (Rei, Rainha, Bispo, Cavalo e Torre) estão protegidas pelos Peões.
Além destes, estarem a frente, como num campo de batalha, prontos para a guerra, onde
os primeiros a serem atingidos, em caso de ataque, serão os da linha de frente, eles tem
um movimento bem reduzido dificultando seu deslocamento e deixando-os vulneráveis a
ataques das peças inimigas. Mas, se chegar ao final do tabuleiro, ou seja, na oitava fileira
do lado adversário recebe uma promoção e será transformado em uma peça de maior
valor, podendo ser Rainha, Bispo, Cavalo ou Torre. Neste contexto, analisando a
sociedade capitalista, quem são os Peões? Na sociedade, como seria esta promoção? É
possível todos os Peões chegarem a oitava fileira, usufruindo da promoção? Neste
momento foi possível fazer uma reflexão sobre a divisão que existe, ainda nos dias de
hoje, entre o trabalho “braçal” e o “intelectual”, tendo o primeiro um menor valor diante da
sociedade.
Ao analisar estes elementos de exclusão, dominação e racismo, os alunos,
desenvolveram aulas práticas do jogo de xadrez para identificar as situações elencadas e
analisar a partida de forma crítica e reflexiva. Com o objetivo de contribuir com a análise
foi utilizado o filme “O xadrez das cores”, que deixa claro a forma elitizada e
preconceituosa que vem se apropriando deste jogo. Que sempre foi nos passado como
um esporte dos ricos e brancos, resquícios de uma formação europeia dita como o
exemplo de civilização. Após o término do filme foi realizado debate para contextualização
do tema.
Foi exposto aos alunos o conceito de lúdico e suas contribuições para a formação
do indivíduo, mostrando aos mesmos a importância de trabalhar de forma lúdica, pois
proporciona momentos de descontração, onde é possível relacionar sua realidade com a
fantasia, levando-o a interagir com o outro de forma prazerosa. Em seguida, propôs-se à
turma que, de forma lúdica e criativa, reformulasse o jogo com o objetivo de superar as
regras já existentes, pois como afirma Vigotsky (1998), “o brinquedo cria uma zona de
desenvolvimento proximal na criança, aquilo que na vida real passa despercebido por ser
natural, torna-se regra quando trazido para a brincadeira”, levando o aluno a desconstruir
as regras já existentes que apenas reforça as problemáticas da sociedade capitalista, com
pessoas individualistas, competitivas, que só contribui para aumentar a desigualdade
social no mundo. Os alunos tiveram um pouco de dificuldade, para desenvolver a
atividade, isso demonstra que a lógica (regras, leis) enraizada, acaba impedindo o aluno
(cidadão) de modificá-la, tornando-se uma barreira que deve ser superada. Porém, neste
momento, ressaltamos as condições desfavoráveis que o indivíduo encontra para romper
com aquilo que historicamente foi construído, denominados hábitos vencedores,
“[...] hábitos ou costumes que alcançaram unanimidade, aceitação coletiva, que identificam determinados grupos ou ações. [...] objetos de um consenso, de uma aceitação geral – por meio do convencimento, da força, da violência, da tradição [...]. Os hábitos que venceram passaram a dominar.” (ALMEIDA, 2003, p. 18).
Por ser aceito por todos como “correto” e “verdadeiro” não deve ser contestado,
mas, sim, reproduzido e aceitos por todos, pois são tidos como imutável algo natural ao
homem e que não pode ser alterado, está arraigado na sociedade. Este discurso serve
apenas para manter a hegemonia da classe dominante, por isso devemos trabalhar essa
possibilidade no aluno, a de modificá-la, após análise da situação posta pela sociedade.
Estimulando a organização coletiva para mudar esta condição que estamos expostos.
Coletivamente, os alunos, elaboraram uma atividade, que fosse capaz de
desconstruir determinadas lógicas, principalmente a questão da competitividade, sendo
capaz de jogar “um com o outro” e não “um contra o outro”. Desta forma estimulou-se a
solidariedade e o companheirismo entre os indivíduos. Foi organizado um círculo de
carteiras e em cima um tabuleiro montado, na sala de aula. Em seguida os alunos se
posicionaram, sendo um dentro do círculo e outro fora, de maneira que um jogador
ficasse de frente para o outro. Ao iniciar a partida, os alunos teriam um minuto para
efetuar o lance e ao sinal terão que girar a sua esquerda, tanto os alunos de dentro como
os de fora do círculo. Assim, trocariam de tabuleiro e de jogador a cada momento. Caso
houvesse um “Mate”, o tabuleiro seria desativado. Desta forma, todos que passarem por
este tabuleiro não iria efetuar o lance, mas no próximo tabuleiro ele teria oportunidade de
jogar. A atividade termina quando todos os tabuleiros estiverem com as partidas
encerradas. Após o término da atividade, realizamos um debate para contextualizar as
ações de cada um e as sensações vivenciadas, foram levantadas algumas questões.
Quando foram questionados se haviam identificado algum adversário durante a
realização da atividade os alunos responderam que para desenvolver o jogo de xadrez
não é necessário ter um adversário declarado. Pelo fato de terem que mudar de tabuleiro
para realizar o lance e, com isso, mudava o jogador oponente. Assim, não conseguiram
ver no outro um adversário, mas sim um colega, na qual o que importava era o lance que
deveria efetuar em determinado tempo, forçando-o a desenvolver o raciocínio estratégico
sem extrapolar o tempo.
No segundo momento foi perguntado se era realmente necessário dar o “Mate”,
vencendo o Rei adversário, os alunos relataram que não pensavam em dar “Mate”,
queriam apenas efetuar o lance e ir para o outro tabuleiro, onde teriam um jogador
diferente, com outra disposição das peças no tabuleiro e diversas possibilidades de
jogadas, inclusive ficavam instigados, tentando imaginar o que o jogador anterior a ele
estava planejando para que pudesse dar continuidade, portanto o “Mate” não era a
prioridade, diferente de quando estão no jogo convencional. Todavia, era prazeroso estar
participando do Jogo de Xadrez e raciocinando para depois efetuar o lance.
Uma outra questão foi elencada, qual seria a experiência e o aprendizado de jogar
com as peças brancas e peças negras no mesmo jogo, pois no jogo institucionalizado não
há esta alteração. Os alunos concluíram que, por se tratar de um jogo com as regras
modificadas, não havia diferenças. Esta inferioridade inicial que as negras têm, pelo fato
de obrigar o jogador a estar sempre na defensiva é superada. Foi então que concluíram
que era apenas uma das formas de discriminação, como tantas outras existentes na
sociedade.
Para concluir o debate foi questionado com os alunos as sensações identificadas
nesta atividade, o que tinha mais chamado sua atenção, comparando com o Jogo de
Xadrez tradicional. Os alunos relataram que é interessante jogar sem se preocupar com o
“Mate”, até mesmo, por que ao dar o “Mate” o tabuleiro fica inativo, ou seja, quem passa
por ele fica sem jogar. Ressaltaram que em certos momentos tinham a oportunidade de
dar o “Mate”, mas não o faziam, pois assim teriam mais tabuleiros disponíveis para
jogarem. O fato de não ter um adversário declarado dava uma condição mais tranquila
para desenvolver seu raciocínio e efetuar o lance. Pois sabiam que se caso realizasse um
lance ruim o outro jogador, que jogaria em seguida poderia contribuir para recuperar o
erro. E também o fato de ter um tempo estipulado para efetuar o lance fazia com que o
jogador se utilizasse do raciocínio lógico com maior rapidez, estimulando-o a pensar mais
rápido para realizar o lance. É importante salientar que os alunos sugeriram que fosse
feito essa mesma dinâmica com outras modalidades, que é muito importante jogar de
forma que todos tenham o prazer de participar, sem se preocupar se vai ganhar ou perder.
Baseado no debate foi possível identificar resultado satisfatório, pois a atividade
teve seu objetivo alcançado. Ficou visível, através dos depoimentos a alegria dos alunos
ao romper com as regras institucionalizadas e jogar numa perspectiva lúdica, onde todos
saíram vencedores, pois não houve confronto direto, mas sim, uma troca de experiências
entre os participantes. Para Soares
“Neste processo de (re) construção da sociedade, o homem, um ser que se humaniza pelas relações sociais que estabelece, passa a ocupar o centro de criação desta nova sociedade.” (2007, p. 7)
Como parte dos trabalhos, entregou-se para os alunos um questionário
investigativo para verificar os resultados das atividades realizadas. Em seguida foi feito o
registro para efeito comparativo e depois uma análise dos dados levantados.
Ao analisar as respostas apresentadas pelos alunos encontramos para o primeiro
questionamento: Ao observar o tabuleiro de xadrez, qual o significado do posicionamento
das peças, qual imagem que lhe transmite? A maioria (61,5%) disse que a era uma
batalha, onde as peças têm valores diferenciados pela sua forma de se movimentar, ou
seja, pelo seu poder, e outra parte (27%) dos alunos relacionam com uma batalha entre
dois exércitos, de uma parte da sociedade com a outra, enquanto uma minoria (11,5%)
dos alunos não conseguiram fazer esta relação. Destacamos algumas das respostas:
“[...] Uma sociedade, um monte de pessoas tentando vencer umas as outras, como se fosse uma batalha”. [...] Existe muitas diferenças nas peças e nas pessoas, uma pode mais que a outra, uma verdadeira guerra, sem limites.[...] Divisão de cores e de pessoas na sociedade, uma guerra onde apenas um vai vencer, assim as pessoa esquecem de ajudar a outra.”
Com relação ao segundo questionamento: “Após observação, você é capaz de
relacionar esta imagem com a sociedade atual? Justifique. A grande maioria (73,1%) dos
alunos, disseram que sim, como no jogo de xadrez as peças têm valores diferentes e na
sociedade as pessoas também, sendo que os peões são os trabalhadores, com poucas
possibilidades de mudança, enquanto que as peças de maior valor são os patrões os
ricos. Uma pequena parte (15%4) dos alunos disseram que sim, mas não expressaram
suas conclusões e outros (11,5%) alunos deram respostas negativas. Abaixo alguns
depoimentos que contribuíram para a conclusão:“[...] Sim, os mais fracos ficam na frente sem nenhuma proteção e pouca oportunidades de mudar esta condição.[...] Sim, principalmente com relação ao racismo com os negros e também com a dificuldade dos peões (pobre) ser uma peça de mais poder (ricos).[“...] Sim, os mais pobres ficam por baixo e os mais ricos ficam por cima, causando a desigualdade.”
Na terceira pergunta: Como você relaciona o papel do jogador e do cidadão como
agente do processo? Menos que a metade (34,6%) dos alunos disseram que cabe ao
cidadão ou jogador refletir sobre qual ação deve tomar para ter sucesso, por isso deve
refletir muito sobre sua atitude antes de agir, devendo sempre ter um olhar coletivo e não
individualista. Mas a boa parte (46,2%) dos alunos responderam que tanto um quanto o
outro devem agir de acordo com suas vontades e depois arcar com as consequências dos
erros e a minoria (19,2%) dos alunos se distanciaram do objetivo da pergunta. Em
destaque os depoimentos relevantes:
“[...] Vencer as dificuldades sem quebras as regras que prejudique o colega e lembrar que nossas ações pode mudar a vida das pessoas para melhor ou para pior.[...] Antes de agir devemos analisar a situação, para entendermos bem as condições que estamos enfrentando.[...] Temos que pensar no outro, para tomarmos a decisão que seja melhor para a sociedade e não apenas para a pessoa.”
Na quarta pergunta: Defina qual é o seu papel na sociedade, como você se vê
como um cidadão? Exatamente a metade (50%) dos alunos disseram que devemos
analisar todo o contexto, devemos lutar para que as pessoas sejam mais solidárias e
pensar de forma crítica, lutando por nossos direitos e buscando melhorar a vida do outro.
Alguns (34,6%) alunos responderam que lutar para garantir seus direitos e se manifestar
quando houver injustiças e uma pequena minoria (15.4%) dos alunos não conseguiram
formular uma resposta coerente. Foram selecionados alguns depoimentos importantes:“[...] Que tenho que mudar minha situação através dos meus estudos e lutar pelos meus direitos, quando vejo alguma coisa que não concordo.[...] A partir do momento que mudamos nossas atitudes com relação as dificuldades vamos mudando o mundo também. Não adianta ver as coisas erradas e não fazer nada.[...] Tem algumas coisas que não concordo principalmente o preconceito com o pobre e o negro, mas posso mudar algumas coisas ao meu redor, procurando esclarecer as pessoas de seus direitos.”
Na quita e última pergunta: Identifique algumas situações evidentes de exclusão,
racismo ou preconceito no jogo de xadrez? Foram apresentados pela grande maioria
(73%) dos alunos disseram que o fato das peças brancas iniciarem as partidas demonstra
preconceito com os negros, o fato dos peões terem um movimento limitado, dando-lhe
pouco poder no jogo e só depois de atravessar todo o tabuleiro é que pode se transformar
em peça de maior valor transmite a luta de classe dos trabalhadores e patrões. E uma
minoria (15,3%) alunos citaram apenas a questão racial e outra minoria (11,5%) dos
alunos não responderam satisfatoriamente.“[...] Algumas situações são encontradas no xadrez, pois há separação de cores (brancas e pretas) e que as peças com menos funções fracas ficam na frente para dar mais proteção as mais fortes.[...] Que os peões têm menos possibilidades de se locomover e se tornar uma peça de maior valor, como na vida real, os pobres tem muita dificuldade de mudar sua condição.[...] Racismo, peça brancas sempre começa o jogo e preconceito com os trabalhadores que tem q lutar muito para ter mias oportunidade, o que causa muita desigualdade entre as pessoas. Sempre que vermos alguma coisa que não concordamos não podemos ficar em silêncio.”
Ao término da análise observou-se uma semelhança entre as respostas
encontradas, ou seja, o aluno que respondiam de acordo com o esperado, mantinha um
padrão nas demais. Isso ocorreu também com as respostas que se aproximavam do
esperado e com a que se distanciavam.
É possível afirmar, após esta observação, que a maioria dos alunos adquiriu
um determinado nível de pensamento crítico, fazendo reflexões a partir da sua realidade.
3. CONCLUSÃO
Ao término dos trabalhos desenvolvidos, analisando todo o processo que foi
percorrido, as ações dos alunos, bem como suas intervenções, juntamente com os
resultados após o questionário respondido pelo grupo, é possível afirmar que o jogo de
Xadrez, trabalhado de forma contextualizada e crítica, contribui para desenvolver a
emancipação do indivíduo. Sabemos que a emancipação é ampla e complexa, por se
tratar de tomada de consciência, assim como mudança de atitude. No entanto, ao verificar
as respostas do estudo, percebemos as diversas formas de manifestação por parte dos
alunos, que os temas abordados foram de relevância e contribuíram para a construção de
indivíduos capazes de fazer uma análise reflexiva da sociedade; bem como de suas
próprias atitudes, diante das diversas situações que exija uma tomada de decisão do
mesmo.
Sendo assim, capaz de detectar as lutas de classes existentes nas estruturas
sociais, as questões que envolvem discriminação e exclusão de intervir no meio em que
vive de forma significativa, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária.
REFERÊNCIAS
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