Post on 25-Jul-2015
1
O PAPEL DOS SOFISTAS NO DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E RETÓRICO DA PERSUASÃO.
José Lourenço Torres Neto1
1 Os sofistas: interlocutores originais da arte e da técnica com palavras e discursos persuasivos.
A retórica na vida ateniense foi praticamente o único meio para se empreender
uma atividade política. Entenda-se aqui que a política, na acepção de Aristóteles,
determinara-se a estimular alguém a fazer ou não fazer algo, como um conselho, que
busca estabelecer um determinado curso a uma ação futura, aceitando-a ou rejeitando-a
(ARISTÓTELES, 2007, p. 30). Assim, se alguém não estivesse capacitado a falar em
público com a possibilidade de convencer, não poderia se dedicar à política. Este era um
aspecto da vida pública.
No campo jurídico mais ainda. Para agir diante dos tribunais, seja como acusado
ou como acusador, era necessário se dirigir em pessoa aos juízes, embora a peça de
defesa ou acusação que era exposta oralmente pudesse ter sido escrita por pessoas
profissionalmente dedicadas a essa tarefa retórica. Numa cidade como Atenas, o
conhecimento e o domínio da retórica não eram um simples adestramento em exercícios
ornamentais da linguagem. Era um desiderato, um desejo amplamente aspirado como
uma necessidade vital por todos aqueles que tivessem o projeto de vida de exercer a
política, fato importante e comum a todos os cidadãos, e não restrito a uns poucos
representantes, como ocorre na atualidade chamada democrática.
Além disso, naquele tipo de democracia, o povo, formado por seus cidadãos e
não apenas pelos juízes que ouviam as argumentações, decidia. Tal decisão se inclinava
à proposta que o orador mais eloquente introduzisse. Portanto, um orador hábil era um
1 Advogado, Bacharel em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau campus Recife/PE; Especialista em Direito Processual; membro pesquisador do GP sobre História da Retórica das Idéias Jurídicas no Brasil da PPGD da UFPE coordenado pelo Prof. Dr. João Maurício Adeodato.
2
político poderoso, que podia influenciar não só os conhecedores das leis e dos costumes,
mas exercia seu domínio sobre os cidadãos comuns. Colocando de outra forma, era a
retórica que, quase exclusivamente, propiciava que um cidadão chegasse a ser, de fato,
influente e bem-sucedido (IGLÉSIAS, 2004, p. 37). Facilmente a oratória se confundia
com a política. O termo grego rhetor (ρήτωρ) era utilizado ao mesmo tempo para
designar um orador, um político e às vezes até um advogado (PETTER, 1976, p. 508).
Portanto, não deve ser motivo para admiração que Platão tenha atacado genericamente a
retórica juntamente com a política ateniense em seu clássico Górgias: Ou a oratória, e
sendo mais preciso, que tenha atacado a política ao atacar a retórica.
Aos que têm preconceito contra a retórica deve ser perturbador ouvir a frase de
Aristóteles: “a retórica é útil [Retórica, 1355a20]” e não o poderia deixar de ser já que,
“[...] na oratória jurídica [...] deve-se conquistar o ouvinte, pois a decisão recai sobre os
negócios dos outros, tanto que os juízes decidem com base em suas próprias satisfações
e ouvem com parcialidade, rendendo-se aos contendores em vez de julgá-los. [Retórica,
1354b29]” (ARISTÓTELES, 2007, p. 21).
A definição comum descreve a retórica como a arte de falar bem e de forma
convincente. Atual, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, além de defini-la como
“eloquência”, também a designa como “o estudo do uso persuasivo da linguagem, em
especial para o treinamento de oradores” (FERREIRA, 2004, p. 1751). A retórica, para
os gregos, consistia em uma techné (τέχνη) para se falar bem, para se encantar e seduzir
um auditório. Entre outras acepções: o instrumento que torna possível a persuasão. Por
isso é que tanto se diz que a retórica é a arte de persuadir. Embora isto não esteja fora
de lugar, é necessário ter em mente que, ao se conferir uma maior precisão ao termo,
este significado de arte para os gregos designava também uma técnica, ou seja, uma
capacidade que surge como o produto da aplicação de um saber, e não de um dom ou
3
talento inexplicável, como costumeiramente se entende a palavra arte. Ainda, cabe aqui
o conceito da “virada retórica” dos dias atuais, nos quais a retórica assume a função de
“um sistema de análise” que “tem muito a ver com seus resultados práticos,
especialmente no que concerne ao direito e ao estudo das decisões judiciais”
(ADEODATO, 2009a, p. 332). Também a retórica se assemelha, por um lado, à
dialética, por outro, aos argumentos sofísticos. Quer dizer, a retórica não se ocupa
apenas do que é persuasivo, mas também do que parece sê-lo [Retórica, 1355a17]
(ARISTÓTELES, 2007, p. 21). O que significa que, para Aristóteles, a retórica é mais
uma faculdade de considerar teoreticamente os meios possíveis de persuadir ou de
atribuir verossimilhança a qualquer tema ou assunto de que esta venha tratar. Portanto,
o cerne aqui é perceber que o objeto da retórica não são as verdades, mas as palavras e
os discursos proferidos. O domínio prático de certas técnicas para que se consiga uma
linguagem persuasiva.
Tomando como fundamento o conceito atual do que poderia ser a retórica que se
desenvolveu entre os mestres gregos e seus discentes naquele período, percebemos a
originalidade dessa arte que posteriormente se firmou como técnica dos discursos em
geral. Parece não haver dúvidas de que havia prestígio na prática. Nada que com sua
relevância não produzisse uma possível disputa de interesses gigantescos. Tal momento
privilegiado se instalou em Atenas, ao trazerem-se interlocutores muito competentes na
retórica para dialogar com Sócrates, conforme está nos diálogos de Platão. Este grupo
de intelectuais se designava genericamente de sofistas, embora não pudessem formar
uma categoria única. Tal designação usual naquela época, a partir desse momento
adquiriu um sentido diferente. Originalmente, a palavra sofista era usada para designar
alguém especialista em alguma atividade intelectual, fosse ela a filosofia, a poética, a
música ou até mesmo a adivinhação. Podia designar um sábio ou um mago. Um sofista
4
era um mestre de sabedoria, alguém que poderia ensinar qualquer pessoa que desejasse
também ser sábio (FERREIRA, 2004, p. 1867). Com o passar do tempo, e sob a
influência de Platão e Xenofonte, essa designação tomou um sentido infamante,
relacionado a um comércio de aparências, designando impostores.
Não é fácil desentranhar essa teia. A maior parte das informações disponíveis
sobre e dos sofistas é indireta e parcial. Das possivelmente muito numerosas obras
apenas restaram alguns fragmentos, enquanto que a obra de seu maior adversário,
Platão, pode ser encontrada em sua presumida totalidade. Contudo, é plausível que se
dê uma nova interpretação ao papel dos sofistas, principalmente se considerarmos o
resgate feito por Hegel (1985, p. 13).
2 A sofística consolida o fundamento retórico da educação grega.
A educação que os jovens gregos recebiam era focalizada em habilidades
fundamentais tais como ler, fazer cálculos e escrever. Além disso, também era ensinada
a ginástica, a poesia e a música. Contudo, como visto, pouco a pouco, esse tipo de
educação começou a ser insuficiente em face da habilidade requerida para aqueles que
desejavam participar dos assuntos públicos, da formação cidadã, e que almejavam uma
atividade intelectual mais profunda.
No século V a.C., Atenas tinha um sistema educacional que permitia a qualquer
cidadão assegurar que seus filhos estudassem com grandes sábios, para que, quando
fossem homens livres, pudessem cumprir adequadamente seus direitos e deveres de
cidadãos. Note-se que a educação formal era exclusividade de castas ou classes sociais
privilegiadas. Além disso, na Grécia, era o Estado quem organizava periodicamente
torneios abertos aos cidadãos onde se praticava também o canto, a poesia e o atletismo.
5
Ainda não fora fundada a Academia de Platão. Foram os sofistas que tomaram a
iniciativa e introduziram uma nova forma de educação independente daquela fomentada
pelo Estado. Criaram os honorários, garantindo assim, uma relação sustentável entre os
mestres e seus discípulos. Pela primeira vez na história, passaram a utilizar
sistematicamente o livro.
Os sofistas formaram um grupo de homens cultos, criativos e empreendedores.
Eles ofereceram uma alternativa que ocupava essa lacuna que a sociedade começava a
experimentar, sem depender do Estado. Eram sólidos oradores, verdadeiros teóricos da
interação entre o pensamento e a cultura. Foram mestres itinerantes que ofereciam seus
serviços e dispensavam seus ensinamentos em troca de honorários. Foram eles que
propiciaram as primeiras noções relativas às ciências positivas, adentraram nas teorias
dos filósofos naturalistas, interpretaram as grandes obras dos poetas gregos,
estabeleceram definições linguísticas dentro de uma gramática recém formada e se
pronunciaram acerca das sutilezas da metafísica.
Contudo, o centro de seus ensinamentos era o saber que se destinava à vida
pública, a retórica, e por isso, detiveram grande demanda, o que despertou alardeados
protestos de mestres como Platão que, na ótica de Maura Iglésias, os considerava “um
perigo para a cidade” por ser a retórica sofística “uma técnica puramente formal de
persuasão” (IGLESIAS, 2004, p. 39). Hegel, todavia, diria que eles foram “mestres da
eloqüência” (HEGEL, 1985, p. 14).
Assim, a retórica fez parte do ensino superior por um longo período de tempo,
até quase desaparecer no final do século XIX como elemento fundamental de estudo,
embora mesmo na época grega subjacente já tivesse perdido sua grande força
provocativa.
6
3 A proposta e a postura sofística do período clássico.
O que ainda hoje poucos percebem ou pelo menos, persistem em resistir, como
então, era a oposição à idéia trazida pela retórica de proposta não só de ornamento, mas
de técnica analítica. Insiste-se em que as proposições retóricas se inclinavam aos
embates pela mera polêmica. Esta polêmica não se baseia no modus operandi dos
sofistas, mas na epistemologia fundamental inserida em cada um de seus discursos. A
sofística grega tinha outra proposta. Os sofistas propunham que sobre cada tema
podiam sempre se fazer várias proposições, e não apenas uma. Nestas proposições
podiam ser encontradas teses contrárias convivendo lado a lado. Essa postura pode ser
vista em Protágoras, que junto com Górgias, expressa a melhor potência intelectual
daquela primeira época ao dizer: “o homem é a medida de todas as coisas, das que são
que elas são, das que não são que elas não são (Teeteto, 152a).” (PLATÃO, 2007, p.
57). Certamente, isto era algo inconcebível e inaceitável para quem desejasse manter
certo critério de objetividade. Os retóricos preferiam dispor disso e assim abrir um
espaço ilimitado para a comunicação, para a linguagem e para a liberdade de
pensamento. Uma de suas mais poderosas armas para a persuasão em seus discursos.
As coisas poderiam ser consideradas por dois ou mais lados, poderiam seguir duas
direções opostas simultaneamente.
O próprio Górgias em sua famosa proposição no Tratado do Não-Ser afirma
que: Nada existe. Mesmo que algo exista, não pode ser apreendido pelo homem. Mesmo
que alguma coisa pudesse ser apreendida, não poderia com toda a certeza ser expressa e
comunicada aos seus semelhantes. Texto interpretado, desde cedo pelo filósofo grego
Sextus Empiricus [Frag. B3. 979b20 – 980a1], como sendo a expressão da
impossibilidade de se dispor de uma verdade por meio de um critério único
7
(ROMEYER-DERBEY, 1986, p. 39). Conforme sua interpretação, o discurso é
composto por percepções, de forma que não é o discurso ou linguagem que comunica as
percepções, mas são as percepções que criam o discurso ou a linguagem (LLANOS,
1968, p. 274). Assim, se entende que, para Górgias, o discurso argumentativo não
depende de uma realidade objetiva, impossível de ser apreendida (ADEODATO, 2009a,
p. 382). E, como outros sofistas, veio romper a textura uniforme e coerente da ótica
ontológica, externando uma declaração favorável à diversidade, não totalmente
divorciado da ética e não pouco preocupado com a justiça, uma vez que a retórica era
largamente utilizada dentro dos limites do processo do convencimento jurídico
(PLATÃO, 1980b, p. 123).
Mais do que um elemento de polêmica no universo jurídico, a retórica, como
técnica vista posteriormente por Aristóteles, se propõe como método de análise
plurívoca do discurso argumentativo jurídico. Assim, a retórica, busca distinguir quais
os meios utilizados por oradores e detentores da decisão jurídica, bem como
compreender como estes juristas se utilizam destes meios para criar normas jurídicas,
que critérios predominam em suas decisões, quando as têm que tomar, e sob que
circunstâncias as aplicam praticamente. Vale ressaltar que, nesse sentido, o método
retórico assume em sua semântica uma acepção mais débil do que aquela comumente
usada entre os cientistas, “indicando apenas que existem caminhos intelectuais a serem
percorridos na elaboração do raciocínio jurídico” (LIMA, 2007, p. 12).
Soma-se a isso que, quando a análise retórica se aplica, vai além da simples
observação na criação e aplicação do direito. Ela permite que em sua contingência
sempre exista a possibilidade de construção do método em si, isto é, ao mesmo tempo
em que se emprega o método, este se molda ou se modifica na proporção da necessidade
8
que o momento jurídico específico exija (LIMA, 2007, p. 13). É o reconhecimento da
necessidade da retórica como método persuasivo efetivo na argumentação jurídica.
Assim, existe uma boa retórica simultaneamente a uma má retórica. A base
dessa diferença está na pretensão fundamental de se conhecer o limite que separa o
verdadeiro do falso. Nesse sentido, uma retórica será boa ou má dependendo da
direção mesma que se tome. Na verdade, quando se chega a definir algo como
desejável e reciprocamente se declara que o outro extremo é inadmissível, perde-se a
possibilidade de opção. Portanto, a postura defendida pelos sofistas, para que se chegue
a uma possibilidade de persuasão, é que se possa optar e escolher algo que se expresse
como uma possibilidade e não como uma imposição. Essa é outra constatação a que se
alcança também por meio da análise retórica.
Se há o consenso, não há necessidade de persuasão. São as diferenças entre as
pessoas que criam a necessidade da persuasão. Sem dúvida, se todos fossem iguais,
haveria uma harmonia garantida e não haveria necessidade de buscar alternativas
distintas para casos distintos. A persuasão da decisão jurídica, segundo o método
retórico, não deve posicionar o operador do Direito diante de uma alternativa fechada.
Se não existe liberdade, há um paradoxo retórico, porque há uma íntima relação entre o
desenvolvimento da retórica e a liberdade (ADEODATO, 2009a, p. 350). Não é daí que
advêm os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório? Onde não há
insatisfação se prescinde até do duplo grau de jurisdição. Assim, é imperioso que se
escolha se há a possibilidade de aceitar ou não a diferença, fato incontestemente acatado
pelo constituinte pátrio. A opção dos fanáticos e tiranos parece muito clara: só há um
mundo uniforme, no qual a diversidade é uma opção inexistente, a persuasão não é
necessária e a submissão é imposta sob a forma de penas. Contudo, se a opção é aceitar
as diferenças, então será necessário propor acordos, interpor diferentes realidades de
9
forma compartilhada, e isso com ajuda da persuasão retórica em seu formato mais usual
e aparentemente imperfeito.
A escolha por um único sentido de verdade (òντως) conduz à intolerância e ao
desprezo, quando não transborda em coação e extermínio ideológico ou pessoal. A
ausência de um critério único de verdade para a existência e realidade do ser, o que não
constitui fraqueza, se mostra superior, já que avança pelo caminho da escolha pessoal de
persuasão, afastando-se da imposição meramente autoritária.
REFERÊNCIAS
ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009a.
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Rideel, 2007.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba: 2004.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Tradução de Wenceslau Roces. Lecciones sobre la História de la Filosofia. Tomo II. México: Fondo de Cultura Economica, 1985.
IGLÉSIAS, Maura. O que é Filosofia e para que serve. In: REZENDE, Antonio. Curso de Filosofia: para professores e alunos dos cursos de segundo grau e de graduação. 12. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
LIMA, Pedro Parini Marques de. Retórica como Método no Direito: o entimema e o paradigma como bases de uma retórica judicial analítica, Dissertação de Mestrado. Recife: UFPE, 2007.
LLANOS, Alfredo. Los Presocráticos y Sus Fragmentos. Buenos Aires: Juáres, 1968.
PETTER, Hugo M. La Nueva Concordancia Greco-Española. Valencia: Mundo Hispano, 1976.
PLATÃO, Diálogos de Platão. v. IV. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1980b.
________, Diálogos I: Teeteto (ou do Conhecimento). Tradução, textos complementares e notas Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2007.
10
ROMEYER-DHERBEY, Gilbert. Os sofistas. Tradução João Amado. São Paulo: Edições 70, 1986.