Post on 06-Feb-2018
O QUE ANARQUISMO CRISTO? UMA LEITURA
DE TIAGO 4.4
por Diogo Alves da Conceio Santana1
Resumo: O que anarquismo e at que ponto seus princpios podem ser justificados como prticas legitimamente inseridas dentro da tradio crist? At que ponto o cristianismo pode ser considerado como compatvel ao pensamento libertrio, o mesmo que censura o poder do Estado, do militarismo, das hierarquias e das instituies? De que modo a relao entre cristianismo e anarquismo altera nossa maneira de pensar a tradio crist? Qual o papel e significado da igreja diante dessa perpectiva de interpretar todo o legado de Jesus Cristo? Questes que hoje, nos foram a repensar a identidade pela qual se formou o cristianismo, sua histria, tradio e pensamento. Palavras-chave: cristianismo; anarquismo; teologia; Novo Testamento Tiago; Kierkegaard. Abstract: What is anarchism and until where its principles can be justified as practices legitimate embedded within the Christian tradiction? To what extent Christianity can be considered compatible with the libertarian thought, the same that blames the power of state, the militarism, hierarchies and establishment? In wich way the relation between Christianity and Anarchism change our way of thinking about the Christian tradiction? What is the role and significance of the church before this whole perspective to interpret the legacy of Jesus Christ? Questions that today, force us to rethink the identity by which Christianity was formed, its history, tradition and thought. Keywords: Christianity; Anarchism; theology; New Testament James; Kierkegaard.
1 Diogo Alves da Conceio Santana filsofo e escritor cristo, autor dos livros: F e anarquia crist
(2007) e O Deus de carne: uma introduo cristologia (2009). Contato: deltavolare@yahoo.com.br.
SANTANA, D. O que anarquismo cristo?: uma leitura de Tiago 4.4.
A fora moral de um nico homem que insiste em ser livre maior do que a de uma multido de escravos silenciosos. (George Woodcock)
Para alguns, Jesus um anarquista, pois no tem nenhuma noo de governo civil. O governo lhe parece pura e simplesmente um abuso. Ele fala disso em termos vagos e como uma pessoa do povo, que no tem idia alguma de poltica. Todo magistrado lhe parece um inimigo natural dos homens de Deus; anuncia aos seus discpulos rixas com a polcia, sem imaginar sequer que isso fosse motivo para se envergonhar. Mas nunca se nota nele a intenso de tomar o lugar dos poderosos e ricos. Ele quer aniquilar a riqueza e o poder, e no se apoderar deles. Prediz a seus discpulos perseguies e suplcios, mas no deixa entrever uma nica vez o pensamento de uma resistncia armada (...). Os fundadores do reino de Deus sero simples. Nada de ricos, nada de doutores, nada de padres: apenas mulheres, homens do povo, humildes, crianas. O grande sinal do messias a boa nova anunciada aos pobres A natureza idlica e doce de Jesus chegava aqui ao seu auge. Uma imensa revoluo social, em que as classes sero alteradas, em que tudo quanto oficial neste mundo ser humilhado, eis seu sonho. O mundo no acreditar nele; o mundo o matar. (Renan, 2004)
Homo e plis
A existncia vista apenas por um ngulo jamais poder
experimentar integralmente a si mesma, sempre ser vtima de um
sentimento de ser apenas um fragmento cujo sentido apenas
reconhecido na sua relao com a plis. nessas circunstncias que
fazer poltica ganha importncia, exige antes de tudo que se
reconhea um sentimento de dependncia, onde o sentido de ser
homem est inevitavelmente ligada a natureza da sociedade
organizada politicamente. Entre homo e plis existe o sentido, que
justifica tanto a existncia de um como de outro, atravs de uma
Espiritualidade Libertria, So Paulo, n. 1, 1. sem. 2010, pp. 408-437.
histria que tem sua origem entre os filsofos gregos. Toda doutrina
social ou poltica, cujo propsito se estabelece em justificar a
existncia do homem em coletividade, precedida por uma
compreenso do homem que se adeqe a tal empreendimento. A
existncia de todo e qualquer governo poltico somente pode ser
justificada atravs da compreenso de um homem cuja natureza
destinada espontaneamente existncia numa coletividade
organizada politicamente.
O que ser homem? Pergunta que inquietava os maiores
crebros da Grcia antiga, os de hoje porm, nem tanto. Em outras
palavras: Onde est o sentido da nossa humanidade? O que nos torna
legitimamente humanos? Aristteles ao afirmar que o homem um
animal poltico, sustenta a tese de que exatamente a organizao
poltica das comunidades humanas que emerge o homem da
animalidade para a racionalidade. Estabelecendo assim a
superioridade da sociedade sobre o indivduo.
A primeira cidade foi uma criao de Caim (cf. Gn 4.17), enquanto que Sete e sua gerao vivia em tendas. A criao de cidades exigia antes de tudo, a demarcao de territrio frtil para cultivo renovvel do solo (exigindo com isso uma tcnica agrcola lembrando que Caim foi agricultor) e alimentao dos animais, tal demarcao exigia a construo de muralhas, exrcito, armas para a defesa do territrio. A guerra nasce com a origem das cidades, na defesa em que seus moradores fazem de seus territrios contra invases, nascendo da a noo de povo, lngua, religio e raa prpria, de uniformizao da cultura. Com o aumento da populao se diminui o espao por habitante, surge a necessidade de expandir territrios ocasio para uma nova guerra, dentro e fora do espao urbano, origem da criminalidade e das campanhas militares (que na poca era oriunda da posse
SANTANA, D. O que anarquismo cristo?: uma leitura de Tiago 4.4.
ilegal de terras, fonte de toda a riqueza). O bandido o soldado que luta contra o seu prprio pas ou ainda, o soldado o bandido que luta contra o pas dos outros, nesse aspecto, ambos so moralmente idnticos, e se condenamos a ao do bandido, devemos condenar tambm a ao do soldado. E tanto presentes com o bandido, quanto presentes com o soldado, esto as ferramentais indispensveis para a origem e o fim de conflitos visando sempre a conquista de novos territrios e a defesa do territrio atual as espadas de ao, as lanas, os cadafalsos... a cruz. (Santana, 2007)
Sendo assim, se torna evidente a origem centralizadora das
primeiras cidades. Como um poder centralizador, todo o poder era
restrito ao dono das terras e de suas famlias, que por causa disso,
galgava facilmente condio de divindades. Surge as primeiras
comunidades monrquicas, de carter religioso, como o caso dos
egpcios, babilnicos e etc. Com o crescimento das cidades, o
nomadismo se torna invivel, por outro lado, isso gera tantas
responsabilidades para os donos das terras que administr-las com
pouca mo de obra e recursos se torna impossvel. Nasce assim a
falncia do poder monrquico, o que significa a descentralizao do
poder poltico aos donos das terras e suas famlias. O Estado nasce
como Anrkhos.
Anrkhos
A palavra anarquismo originria da expresso grega
Anrkhos, que literalmente significa sem governo ou sem
governante. Sendo assim, nos oferece uma infinidade de
contribuies sobre a questo da autonomia entre homem e governos.
Anrkhos significa uma distncia entre o humano e o poltico: o ser
Espiritualidade Libertria, So Paulo, n. 1, 1. sem. 2010, pp. 408-437.
humano universal, o ser poltico limitado a condies geogrficas,
econmicas, culturais, lingusticas, etnolgicas e etc. Fruto de todo tipo
de preconceito e segregao: o racismo, o nazismo e todo tipo de
autoritarismo so bons exemplos disso. Enquanto distncia com o ser
poltico Anrkhos significa conceber a liberdade social como o
verdadeiro sentido de humanidade. Loucura, insanidade, inadequao
a normatizao da plis, inconformidade. Anrkhos significa que o
sentido do humano, sua identidade e verdade, no se encontra na
identificao de sua posio na plis, nem mesmo pode ser oriunda de
esforos coletivos na construo da identidade individual. Em suma, a
plis limita o humano a uma condio que somente pode ser vivida e
experimentada a certas condies especficas dentro do corpo poltico,
enquanto que anrkhos no determina restries especficas para a
manifestao do humano.
Anrkhos distingue homo de plis, sendo assim, no restringe
a identidade do indivduo e sua igualdade com o seu semelhante a um
conjunto de atributos culturais, lingusticos, tnicos, religiosos e etc.
Alienao? De maneira nenhuma! Oposio. Em outras palavras, que
a condio humana no construda pelo meio social organizado
politicamente. Esse um aspecto fundamental que evidencia uma
diferena entre anarquismo e comunismo: o comunismo no separa o
humano do poltico. Apoiado em Aristteles, Marx considera o poltico
como uma especificidade do ser do homem, estabelecendo uma
condio poltica, baseada na produo coletiva dos meios de
produo, para o estabelecimento de uma ontologia.
SANTANA, D. O que anarquismo cristo?: uma leitura de Tiago 4.4.
O anarquismo estabelece sua ontologia na afirmao de que a
condio humana, em si mesma ausente de referncias
artificialmente constitudas pelo corpo poltico. A ausncia de
referncias sociais que definem e situam o indivduo, estabelece sua
condio primria como naturalmente livre, ou seja, ontologicamente
indefinida. O humano no se trata de um atributo por onde se torna
possvel de definio. O humano em si mesmo uma condio
ausente de referncias. essa condio que chamamos liberdade.
Todo