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Omissões do Gargamel: os 17 Objetivos Globais de Desenvolvimento
Sustentável da ONU e os Smurfs
Gil Cardoso-Costa – Faculdade de Educação, UFRJ
Patricia Martins Gonçalves – Faculdade de Educação, UFRJ
Resumo: A nova política da ONU “17 Objetivos Globais de Desenvolvimento
Sustentável”, divulgada em 2017 pela campanha “Pequenos Smurfs, Grandes
Objetivos”, é apresentada brevemente. O presente trabalho analisa os quatro primeiros
objetivos apontando omissões pertinentes e contradições inerentes na identificação dos
problemas globais e propostas de ação. Observamos que a forma acrítica e ahistórica
com a qual os problemas globais são apresentados contribuem para a naturalização do
que é consequência do modelo de desenvolvimento hegemônico na organização.
Conclui-se que essa é mais uma política que potencialmente será usada pelo setor
privado na apropriação da esfera pública e expropriação de movimentos sociais de
resistência.
Palavras-chave: Políticas Públicas; Organização das Nações Unidas; Desenvolvimento
Sustentável.
Abstract: The new UN policy "17 Global Sustainable Development Goals", announced
in 2017 by the "Small Smurfs, Big Goals" campaign, is presented briefly. The present
paper analyzes the first four objectives pointing some pertinent omissions and inherent
contradictions in the identification of global problems and proposals for action. We
observe that the uncritical and ahistorical way in which global problems are presented
contributes to the naturalization of what is the consequence of the developmental model,
hegemonic in the UN. We conclude this is just another policy that will potentially be
used by the private sector in the appropriation of the public sphere and expropriation of
social movements of resistance.
Keywords: Public policy; United Nations; Sustainable development.
1. Introdução
Em 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM), que tinham oito objetivos para erradicação da
pobreza a serem alcançados até 2015. Reconhecendo o campo educacional como um
terreno fértil para fomento e manutenção de paradigmas, a ONU adapta os ODM e lança
em 2004 a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (DEDS). Ou seja,
para dar uma cara nova e se adaptar à, então, crescente “Greenwashing”, é adicionada a
palavra da moda aos ODM. A pasta responsável pela campanha é a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que lança um
manifesto e age internacionalmente.
Findada a DEDS, a ONU avalia que os ODM foram um sucesso, pois entende
que 2015 foi um ano “de oportunidade histórica sem precedentes”, pois, supostamente
“os países se adaptaram e adotaram uma nova agenda de desenvolvimento [baseada nos
ODM]”. Declara que a pobreza global “continua diminuindo”, “mais crianças que
nunca” frequentam a escola primária, houve uma “drástica queda” na mortalidade
infantil, o acesso à água potável se expandiu “significativamente” e que as “metas de
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investimento” para combater a malária, AIDS e tuberculose “salvaram milhões de
pessoas” 1.
Desta forma, tamanho sucesso precisava ter prosseguimento. É então que, em
2016, são lançados os Objetivos Globais de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que
apresenta uma agenda que reúne 17 objetivos a serem alcançados até 2030. Com frases
de efeito, os enunciados dos objetivos inspiram a sensação de consenso.
No entanto, é necessário observar até que ponto essas campanhas e projeções
internacionais, de fato, interferiram e podem vir a interferir nas causas dos problemas,
haja vista o tamanho do desafio das políticas internacionais e os limites impostos pelo
Capital.
2. Uma parceria inusitada
A “ONU e a UNICEF juntaram forças com os Smurfs”, anuncia o vídeo de
divulgação da campanha, a ação da humanidade e dos smurfs em prol do
desenvolvimento sustentável. Em reportagem na página das Nações Unidas2, a
organização justifica que os personagens ajudariam a se referir à diversidade e para se
aproximar dos adultos e das crianças. A união com os Smurfs se deu no dia 18 de março
de 2017, em Nova Iorque, com mais de 1,5 mil estudantes em uma conferência
internacional, na cerimônia para o Desenvolvimento Sustentável. Na ocasião, um dos
dubladores dos personagens do filme “Os smurfs e a vila perdida”, entregou chaves
simbólicas como homenagem a três jovens que promovem os objetivos globais em suas
comunidades.
A campanha “Pequenos Smurfs, Grandes Objetivos” encoraja pessoas a
visitarem o site SmallSmurfsBigGoals.com para “aprender” como contribuir para atingir
os objetivos globais e compartilhar informações nas mídias sociais. Foi lançado também
selos postais com imagens dos smurfs e os logotipos dos ODS criados pela ONU,
lançados em 2015, os quais “pretendem acabar com a pobreza, reduzir as desigualdades
e proteger o planeta – três aspectos que levam ao bem-estar e à felicidade”, segundo a
reportagem do site das Nações Unidas.
Devido à extensão e amplitude dos temas abordados pelos 17 ODS, elegemos,
para o presente trabalho, apenas os quatro primeiros ODS para analisar, ainda que
apresentemos, brevemente, todos os 17 ODS. Como uma forma de demarcação de bases
de atenção sobre os próximos 13 anos, portanto, o objetivo principal do trabalho é
analisar as “omissões pertinentes” sobre o que a ONU identifica como problemas que
precisam ser superados, observando contradições inerentes ao projeto de mundo que a
entidade historicamente tem reafirmado.
3. Identificação de Categorias
Aqui desenvolvemos uma apresentação dos 17 ODS e uma análise que busca
organizá-los em categorias a fim de aprofundar reflexões críticas sobre as temáticas
apresentadas.
O ODS 1 trata da “pobreza”, uma questão que iremos tratar como
histórica/social/econômica/cultural, pois não pode ser reduzida em si, uma vez são
problemas que se constituíram ao longo da história e na consolidação de um modelo de
sociedade focado na acumulação de capital e não em satisfazer necessidades de todos.
O ODS 2 adiciona a questão da produção de alimentos e da sustentabilidade.
Esses dois primeiros princípios trazem temáticas bastante abrangentes que indicam a
1 https://nacoesunidas.org/pos2015/
2 https://nacoesunidas.org/no-dia-da-felicidade-onu-e-smurfs-unem-se-pelo-desenvolvimento-sustentavel Juiz de Fora - MG 13 a 16 de agosto de 2017 Universidadre Federal de Juiz de Fora
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identificação das primeiras categorias que, inicialmente, chamamos de
“histórica/social/econômica/cultural”, “produção (alimentos)” e “sustentabilidade”.
Os próximos objetivos trazem questões que adicionam informações às primeiras
temáticas já identificadas e lançam outras. O tema “saúde e bem-estar” se relaciona com
os dois primeiros ODS e adiciona o serviço de saúde à questão da produção, pois
perpassa os serviços e evoca a ideia de esfera pública, já que o serviço de saúde é
também um direito a ser garantido pelo Estado.
O ODS 4 também está incluso nas temáticas identificadas e adiciona
informação, o que torna a segunda temática o seguinte: “produção (alimento, saúde,
educação)”, porque o fenômeno da Educação é, também, uma produção, um trabalho. A
temática da esfera pública também contém o quarto ODS, porque o Estado tem um
papel preponderante na ação educativa das populações.
Tabela 1: Identificação de Categorias
ODS Temáticas e Identificação de Categorias
1. Erradicação da pobreza;
2. Fome zero e agricultura
sustentável;
1. História/sociedade/economia/cultura (C1);
2. Produção (alimentos) (C2);
3. Sustentabilidade (C3);
3. Saúde e bem-estar;
4. Educação de qualidade;
5. Igualdade de gênero;
4. Produção (alimentos, saúde, educação) (C2);
5. Esfera pública (políticas públicas, Estado,
democracia) (C4);
6. Igualdade/gênero (C5);
6. Água potável e
saneamento;
7. Energia acessível e limpa;
7. Sustentabilidade (água, energia, produção de
alimentos) (C3);
8. Produção (alimentos, saúde, educação, energia,
água, saneamento) (C2);
9. Esfera pública (políticas públicas, Estado,
democracia) (C4);
8. Trabalho decente e
crescimento econômico;
9. Indústria, inovação e
infraestrutura;
10. História/sociedade/economia/cultura (C1);
11. Produção e trabalho (alimentos, saúde,
educação, energia, água, saneamento, indústria,
infraestrutura, inovação) (C2);
12. Esfera pública (políticas públicas, Estado,
democracia) (C4);
10. Redução das
desigualdades;
11. Cidades e comunidades
sustentáveis;
13. História/sociedade/economia/cultura (C1);
14. Produção e trabalho (alimentos, saúde,
educação, energia, água, saneamento, indústria,
infraestrutura, inovação) (C2);
15. Sustentabilidade (C3)
16. Esfera pública (políticas públicas, Estado,
democracia) (C4);
12. Consumo e produção
responsáveis;
13. Ação contra a mudança
global do clima;
17. Produção e trabalho (alimentos, saúde,
educação, energia, água, saneamento, indústria,
infraestrutura, inovação) (C2);
18. Sustentabilidade (C3);
19. Esfera pública (políticas públicas, Estado,
democracia) (C4);
14. Vida na água;
15. Vida terrestre;
20. Sustentabilidade (C3);
21. Produção e trabalho (alimentos, saúde,
educação, energia, água, saneamento, indústria,
infraestrutura, inovação) (C2);
16. Paz, justiça e instituições
eficazes;
17. Parcerias e meios de
implementação.
22. História/sociedade/economia/cultura (C1);
23. Esfera pública (políticas públicas, Estado,
democracia, relações internacionais) (C4);
24. Produção e trabalho (alimentos, saúde,
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educação, energia, água, saneamento, indústria,
infraestrutura, inovação) (C2).
É possível perceber que as temáticas foram se aperfeiçoando e se completando
ao serem relacionadas com cada objetivo, a partir desse movimento analítico de
identificação das temáticas chegamos às seguintes categorias, por meio das quais iremos
refletir sobre os ODS: C1. História/sociedade/economia/cultura; C2. Produção e
trabalho (alimentos, saúde, educação, energia, água, saneamento, indústria,
infraestrutura, inovação); C3. Sustentabilidade; C4. Esfera pública (políticas públicas,
Estado, democracia, relações internacionais); C5. Igualdade/gênero.
Dada à amplitude de temas e correlações existentes entre os 17 ODS, vimos a
necessidade de, primeiramente, identificar categorias que nos permitam refletir de forma
situada diante dos contextos históricos e das diversas conexões que as temáticas têm
entre si. O esforço de identificar categorias pretende facilitar a reflexão e buscar
perceber como a ONU se posiciona diante da conjuntura mundial através desses
objetivos. Apesar de analisarmos aqui somente os quatro primeiros objetivos, o esforço
de identificação de categorias abrangeu todos os 17 ODS, assim, pretendemos que as
categorias partam do todo e nos ofereçam um contexto amplo para a análise.
4. Breves análises por categoria
Diante desta delimitação, teceremos agora análise a partir das quatro primeiras
categorias – C1, C2, C3 e C4. Destacamos, portanto, que os temas que trazem as
categorias bem como, as categorias evocadas pelos temas, não serão esgotados nesse
trabalho.
Antes de analisar os ODS, cumpre chamar atenção para como a ONU apresenta
os problemas de forma naturalizada, ou seja, não indica as formações históricas e
sociais implicadas nesses processos, deixando de apontar, assim, sua origem sendo,
portanto, ineficaz em impedir sua reprodução. Vejamos, pois, em que medida se
apresenta essa aparente “superficialidade” nos ODS na página das Nações Unidas3.
4.1 C1 - História/sociedade/economia/cultura
O ODS 1 traz comentários que falam que o número de pessoas em extrema
pobreza vem diminuindo. Porém, o ODS não pondera que a desigualdade vem
crescendo no mundo. Um estudo apresentado pela agência Oxfam na última reunião do
Fórum Econômico Mundial demonstrou que 62 indivíduos detinham, já em 2015, a
mesma riqueza global que 3,6 bilhões de pessoas4 e a tendência é que a desigualdade
prossiga em crescimento.
O ODS cita o Sul da Ásia e a África Subsaariana como região de maior pobreza.
Afirma que estes índices são encontrados em países pequenos, frágeis e afetados por
conflitos.
Vemos aí uma visão naturalizada e estigmatizada da pobreza que não aponta as
suas causas. As duas regiões citadas foram alvo de ações sucessivas de exploração
desde o século XV e ainda hoje vemos o ciclo se repetindo através da continuidade da
exploração de recursos naturais, trabalho análogo à escravidão e pressões econômico-
políticas na manutenção do modo de vida capitalista. “A fragilidade” e os “conflitos”
que existem nessas regiões são consequência do suprimento das necessidades da
dinâmica da divisão internacional do trabalho.
3 https://nacoesunidas.org/conheca-os-novos-17-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-da-onu
4 https://www.oxfam.org.br/noticias/relatorio_davos_2016 Juiz de Fora - MG 13 a 16 de agosto de 2017 Universidadre Federal de Juiz de Fora
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Há acordos sugeridos aos Estados: proteção contra o desemprego, que todos
tenham acesso a serviços de saúde, o que chama de “proteção social”, que serve
especialmente para os mais pobres e vulneráveis. Fala-se ainda, como se fosse uma
possibilidade real, da implementação de “políticas sociais para garantir que aqueles que
tenham menos dinheiro tenham o mesmo acesso aos serviços básicos, ao trabalho, à
terra, à tecnologia e possam criar empresas para crescer economicamente”5. A própria
proposta já identifica a desigualdade inerente ao sistema. Como seria possível se ter
menos e obter o mesmo? A política social tem um caráter assistencialista e em nenhum
momento questiona os privilégios e responsabilizações das classes altas.
O Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) realizou estudo que
exemplifica os privilégios das classes mais altas6. Analisando os rendimentos isentos e
não tributáveis entre 2006 e 2013 sobre Imposto de Renda, o estudo verificou que
quanto mais elevada for a renda, maior será a proporção de rendimentos isentos e não
tributáveis. Os declarantes com renda mensal maior que 160 salários mínimos possuem
65,80% de sua renda em rendimentos isentos e não tributáveis, enquanto os declarantes
com renda de 2 a 3 salários mínimos tinham 90,26% da sua renda em rendimentos
tributáveis. O estudo mostrou ainda que, desde alterações nas leis tributárias do Brasil
em 1995, o desequilíbrio fiscal só tem aumentado.
4.2 - C2. Produção e trabalho (alimentos, saúde, educação, energia, água,
saneamento, indústria, infraestrutura, inovação) O ODS 2: “Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da
nutrição e promover a agricultura sustentável” – os comentários acerca desse objetivo
apresentam dados afirmando que a proporção de pessoas subnutridas em regiões em
desenvolvimento caiu quase pela metade entre 1990 a 2016, contudo, que ainda há um
vasto número de pessoas que passam fome no mundo, a maioria está em países em
desenvolvimento, onde 12,9% da população é subnutrida. Apresenta ainda outros dados
quantitativos da fome em regiões como a Ásia e África subsaariana e informa que a má
nutrição é a causa 45% das mortes de crianças abaixo de cinco anos de idade – 3,1
milhões anualmente.
Fato curioso é que não há dados sobre a Europa e os Estados Unidos da
América, criando um imaginário de que esse tipo de problema foi superado nesses
lugares. No entanto, Accioly (2015), chamando a atenção a este fato, alerta que, mesmo
nos EUA, o ministério da agricultura apontou que 15,9 milhões de crianças estavam em
situação de insegurança alimentar em 2012, demonstrando como essa ideia é falaciosa.
Por fim, os comentários em tópicos trazem a agricultura como a maior
empregadora do mundo, fonte de renda e trabalho para famílias pobres rurais, 500
milhões de pequenas fazendas, ainda dependentes da chuva, fornecem até 80% da
comida de parte dos países em desenvolvimento. Investir em pequenos agricultores é
um modo importante de aumentar a segurança alimentar e a nutrição para os mais
pobres e a produção de alimentos para mercados locais e globais.
Fala-se no investimento no pequeno agricultor, mas se omite os conflitos na
demarcação de terras indígenas, grilagem de terras, a precariedade da reforma agrária, o
desmatamento e o avanço da pecuária de larga escala para exportação, e o agronegócio
com suas gigantescas monoculturas de soja e milho transgênicos. Não aponta os
desafios a serem enfrentados para que seja realmente possível respeitar os recursos de
5 http://worldslargestlesson.globalgoals.org/pt/global-goals/no-poverty/
6 http://www.inesc.org.br/noticias/biblioteca/publicacoes/livros/2016/perfil-da-desigualdade-e-da-
injustica-tributaria Juiz de Fora - MG 13 a 16 de agosto de 2017 Universidadre Federal de Juiz de Fora
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cada região e a biodiversidade, não fala da ameaça do monopólio dos transgênicos e
seus danos à natureza e à agricultura familiar, omite o poder das empresas e das grandes
corporações que estão por trás disso.
Ribeiro (2009) comenta sobre o contexto das crises econômicas, onde há
concentração do poder corporativo, apropriação de recursos naturais e benefícios
legislativos a empresas e especuladores financeiros. O autor chama atenção sobre como,
mesmo em tempos de crise, a indústria do agronegócio bateu recorde de lucro com o
aumento do preço de alimentos e insumos agropecuários, auge de agrocombustíveis.
Para falar em números brasileiros, os produtos agrícolas que ocuparam a maior
área da safra da produção brasileira neste setor em 2016 são a soja, milho e cana de
açúcar – nesta ordem, aproximadamente 46%, 21% e 13% da área total7. Produtos cujos
principais usos são a conversão em ração animal e produção de biocombustível, e não a
alimentação da população.
O ODS 3, “Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em
todas as idades” 8 – os tópicos de comentários trazem dados sobre saúde infantil, saúde
materna, HIV/AIDS, partindo de estatísticas que mostram uma redução dos problemas e
depois trazendo os dados que mostram que, apesar da redução, o problema ainda existe
em grande escala. Como recomendações aos Estados a segunda página9 analisada traz:
reduzir as mortes de mães no parto, prevenir a mortalidade infantil, acabar com
epidemias, educar sobre o uso de drogas e álcool e sobre saúde mental, fornecer
informações sobre planejamento familiar, educação sexual e saúde reprodutiva. O texto
fala de redução em âmbito global das mortes de trânsito e traz mais dois pontos:
“garantir que todos possam gozar do direito à saúde, o que inclui atenção médica de alta
qualidade e medicamentos e vacinas acessíveis e econômicas”; e reduzir as mortes
causadas por produtos químicos e por poluição do ar, água e solo e contaminação.
É bom que se observe que neste ponto não são apontados caminhos possíveis,
mas apenas uma listagem de problemas. Não são apontados desafios, como o conflito
com o setor farmacêutico que precisa de um contingente de doentes crescente e que,
segundo a revista Forbes obteve um lucro de U$ 3 trilhões só em 201510
, o agronegócio
que é um grande gerador de doenças por efeito de agrotóxicos e doença adquirida no
trabalho, e muitos outro setores fundamentais do capital, omissão que dá um caráter
superficial, ingênuo e acrítico.
O ODS 4 traz uma ideia vaga que sugere uma interpretação omissa quanto ao
direito à escola, à cultura, à natureza, não fala dos desafios que devem ser enfrentados
para que seja possível garantir esses direitos. O objetivo fala em “promover
oportunidades”, mas esquece de falar do acesso e da permanência. O texto diz ainda que
tais oportunidades são de “aprendizagem ao longo da vida para todos”, mas o que isso
realmente quer dizer? Não será uma visão superficial do problema da precariedade da
Educação?
Na página da ONU que propõe orientações aos Estados traz um texto do quarto
ODS um pouco diferente: “Garantir educação inclusiva, equitativa e de qualidade e
promover oportunidades vitalícias de aprendizagem para todos”. O texto fala ainda de
melhorar as instalações das escolas para oferecer um ambiente seguro e positivo para
todos, de aumentar o número das bolsas de estudos para formação profissional e técnica.
7 http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/agropecuaria/lspa/lspa_201703_4.shtm
8 https://nacoesunidas.org/no-dia-da-felicidade-onu-e-smurfs-unem-se-pelo-desenvolvimento-
sustentavel 9 worldslargetlesson.globalgoals.org
10 http://www.forbes.com.br/listas/2015/07/15-maiores-empresas-farmaceuticas-do-mundo/
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Fala de aumento do número de professores mais capacitados e qualificados e, por fim,
“Promover a educação para o desenvolvimento sustentável”.
É clara a ênfase que o texto dá à educação técnica e profissional, estimulando as
bolsas de estudo e o aumento de oportunidades nessa área para gerar bons empregos. É
fácil perceber também o caráter bancário da educação que o texto propõe, pois reproduz
um padrão patriarcal de “dar”, “outorgar”, mas nunca de construção coletiva,
participativa. Inspirado na obra de Paulo Freire, Loureiro (2015) nos lembra de que
Educação é, inerentemente, um ato político cuja finalidade é a supressão das formas de
dominação e expropriação que determinam as injustiças sociais e ambientais. Também
reduz o fazer educativo à ideia de capital humano, ou seja, a formação e a Educação
apenas como um investimento que o trabalhador faz para conseguir empregos e salários
melhores, retirando a sua participação na construção da sociedade e na conquista de
direitos. Fala da contratação de professores mais capacitados, mas não menciona que
sejam bem pagos, valorizados e reconhecidos.
Num panorama sobre a DEDS, Loureiro (2015) aponta o aumento das inserções
da iniciativa privada no interior da escola pública e a descontinuidade e desfiguração de
políticas públicas locais que dialogam melhor com a realidade particular das regiões
onde esse tipo de política global se foca.
Ainda no contexto de análise da DEDS, o autor observa que “educar para” é uma
forma dar à educação fins instrumentais não emancipatórios e que, o argumento de
utilizar esta expressão para chamar a atenção, conceitualmente, não tem sentido, na
medida em que documentos internacionais e nacionais já englobam a totalidade. Além
disso, a perspectiva da ONU sobre desenvolvimento é de um movimento linear e
inexorável que gera o crescimento econômico – este como componente essencial para
felicidade humana. Essa visão encontra problemas quando se observa a realidade, pois o
que se vê, ainda segundo o autor, é um movimento de descontinuidade, não-linear e não
etapista, que não gera necessariamente melhorias sociais.
De forma geral, o texto reduz o fenômeno da Educação - que é, antes de tudo, o
crescimento e o amadurecimento humanos e, portanto, individual e coletivo, enquanto
parte do Ser Social e da democracia – a apenas um meio de alcance de posições no
mercado, na sociedade competitiva e estratificada. Além disso, ao incumbir a Educação
de discussões amplas de maneira rasa, contribui com uma alienação sobre a realidade
local, sobretudo ao fomentar a entrada da iniciativa privada na educação pública
utilizando este tipo de política como justificativa.
4.3 C3 - Sustentabilidade
O ponto crítico do ODS 2 é o fato de ser apontado apenas o conceito de
segurança alimentar, sem se falar na soberania alimentar. O texto fala em investir nos
pequenos agricultores, mas estes estarão plantando que tipo de sementes? Em terras
próprias ou de grandes corporações? Usando sementes crioulas ou transgênicas? Estarão
poluindo as águas e os lençóis freáticos com pesticidas e agrotóxicos ou estarão
protegendo as nascentes e as florestas? Vão produzir alimentos orgânicos através da
agroecologia e dos sistemas agroflorestais ou provocar erosões e esgotamento do solo
com extensas monoculturas de transgênicos com agrotóxicos?
Vigna e Mineiro (2009) afirmam que os conceitos de soberania e segurança
alimentar e nutricional foram utilizados pelas lideranças sociais como norteadoras de
um novo discurso e uma nova proposta de organização de modelo agrícola de produção.
Já estava evidente que o modelo da revolução verde causou impactos negativos para a
vida humana, aos recursos naturais e provocou desequilíbrios nos ecossistemas.
Segundo os autores, tais conceitos foram e são ferramentas necessárias para proteção
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dos segmentos familiares e camponeses da produção agrícola, estruturam a construção
de um modelo alternativo de desenvolvimento. Os governos demoraram para sinalizar
ao corpo técnico a construção de programas norteados pelos conceitos de segurança e
soberania alimentar. Os autores chamam a atenção ao fato desses novos programas
terem sido fruto de pressão popular, como o caso do programa de crédito e apoio à
agricultura familiar (BRASIL, 2006) e não de políticas internacionais como os ODS.
Mesmo comprovada a relevância desses conceitos e dessas ações o modelo
predominante ainda é o agroquímico, graças aos favorecimentos políticos e econômicos
por parte dos mercados voltados para exportação de commodities:
[...] Os pacotes químicos destinados aos produtos de exportação se
renovam, os agrotóxicos continuam avançando sobre as culturas de
alimentos básicos e as monoculturas se diversificam. A postura
oficial, que se pauta por favorecer a agricultura de exportação, está
degradando as terras mais férteis e os ecossistemas mais delicados do
país. O regramento desses territórios ameaçados deveria estar na
preocupação dos legisladores, a fim de desenvolver políticas públicas
que recomponham a situação de soberania e segurança alimentar e
nutricional do país. Isso porque as invasões, por parte dos interesses
do agronegócio e das transnacionais, dos espaços de proposição
legislativa, exigem correspondência no orçamento da União,
desviando para seus interesses os recursos que poderiam ser
destinados para programas sociais. Dessa forma, os segmentos
familiares e camponeses da produção agrícola perdem duplamente:
recursos públicos na disputa com o agronegócio e, com a agressão ao
meio ambiente, aprofundando a crise ambiental, contaminam terras e
águas, subterrâneas e de superfície (VIGNA & MINEIRO, 2009).
A Associação dos Produtores de Soja do Brasil, por exemplo, demonstra em um
infográfico em seu portal11
que 66,5% de toda a produção da soja brasileira é exportada
(como grão, farelo ou óleo). Para além de toda a discussão social, que por si só já é
suficiente para demonstrar a falência do sistema, se pensar de maneira estritamente
técnica, não há como esse tipo de negócio ser sustentável pelo simples fato de
exportação de aporte energético das terras brasileiras para o resto do mundo (na maioria
das vezes outros continentes).
A segunda página das Nações Unidas traz orientações para os Estados no sentido
de “melhorar os programas sociais para crianças, adolescentes, mães e idosos; garantir
alimentos seguros, nutritivos, e suficientes o ano todo”. Prossegue ahistórica sobre a
pobreza e da soberania alimentar, até que o discurso quase chega numa abordagem mais
crítica, porém genérica, sem instrumentalidade e sem se posicionar contra os abusos do
agronegócio a respeito dos povos, da terra e da saúde do ambiente e da natureza. São
grandes as forças que, insistentemente, deturpam o conceito de sustentabilidade,
instrumentalizando-o para servir às estratégias do capital.
A sustentabilidade como conceito polissêmico tem sido um capital simbólico de
grande força discursiva e política (LOUREIRO, 2015). Assim, o conceito veio perdendo
o viés transformador e norteador de qualquer atividade humana, dando lugar ao sentido
de instrumento econômico e tecnológico que atende ao modelo neoliberal, favorecendo
a mercantilização da natureza (RAMIREZ, 2013).
11
http://aprosojabrasil.com.br/2014/sobre-a-soja/uso-da-soja/ Juiz de Fora - MG 13 a 16 de agosto de 2017 Universidadre Federal de Juiz de Fora
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4.4 C4 - Esfera pública (políticas públicas, Estado, democracia)
O que o texto chama de “acesso aos serviços básicos”, deve ser chamado, na
verdade, de “garantia de direitos”, pois trabalho, moradia, terra, saúde, educação, são
direitos humanos e fundamentais. O Estado não garante esses direitos porque não
questiona os privilégios das elites e, muitas vezes, se submete às manobras da política
econômica internacional e do mercado financeiro em detrimento da soberania e da
riqueza nacional. Na verdade, essas proposições tratam das obrigações do Estado, se ele
realmente fizesse o seu papel de representar os interesses do povo, contudo, no
fenômeno social não existe máquina estatal coerente, mas sim, o Estado Capitalista que,
ao invés de representar a população representa o Capital, ou seja, a relação de
exploração e expropriação do trabalho, do povo e da natureza. Isso deveria estar sendo
apontado nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para os próximos anos.
Harvey (2014) nos alerta sobre o saldo da contradição entre interesses privados e
liberdades individuais por um lado, e o poder estatal por outro. O autor aponta como
que, mesmo com mecanismos despóticos e antidemocráticos crescendo, não há prejuízo
para proprietários individuais, mas sim o desenvolvimento de mecanismos de proteção
ao capital de qualquer forma de oposição social, por exemplo, frente ao movimento
operário ou ambientalista. A exemplo disto, Ramirez (2013) chama atenção ao fato do campo ambiental, na
dimensão econômica, ser reduzido a questões de respeito e conservação da natureza, bem como
ter sido convertido em capital natural, sujeito às regras do livre mercado. O autor aponta que “a
mercantilização da natureza, e inclusive sua “financeirização”, se impuseram, e as políticas
ambientais tenderam a se converter em reguladoras e vigilantes de leis e lineamentos
consonantes com essas tendências”.
Ainda que não tenha sido possível fazer uma análise mais aprofundada aqui, cabe
mencionar o ODS 17, que trata de “Parcerias e meios de implementação”. Este é tomado como
um objetivo chave para toda a realização da política, o que significa nada mais que estímulos de
“parcerias” público-privadas – que, com frequência, convertem-se em formas do público
atender a demandas do privado.
5. Considerações Finais No título pouco usual deste trabalho, ironizamos com o cinismo das Nações
Unidas em se apoiar em um ícone pretensamente transgeracional da cultura pop
ocidental. Os Smurfs são criaturas mágicas que vivem em uma floresta encantada em
uma sociedade harmônica social e ambientalmente. O inimigo das criaturinhas chama-
se Gargamel, que é um bruxo alquimista que quer produzir ouro usando os smurfs.
Apostando em uma ideologia global, o site próprio da campanha, há material para
professores dando orientações totais sobre como as atividades devem acontecer,
inclusive dando o tempo necessário para cada passo da atividade, como se fosse
possível prever a dinâmica de todas as salas de aula do mundo. Da mesma forma, a
política dos ODS das Nações Unidas pretende a aplicação de uma política global, ainda
que saiba das singularidades de cada nação.
É importante ainda, como um último esforço, chamar a atenção para o fato das
Nações Unidas planejarem ações de reafirmação dos ODS através de publicidade
variada como foi o caso da “Pequenos Smurfs, Grandes Objetivos”. É possível observar
este como um projeto que pretende perfazer um total de 25 anos de campanha da ONU
por um Desenvolvimento Sustentável. Apesar dos títulos de índole inquestionável,
frases que evocam conceitos popularmente bem aceitos pela população, se esvaziam de
quando confrontados com a materialidade. Esse esvaziamento não é casual, como
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pudemos ver nos desdobramentos da DEDS, pois é ele que permite a apropriação de
certos setores hegemônicos que os usam para mascarar práticas expropriatórias e
alienantes.
Não foi possível esgotar a discussão a respeito de todos os 17 Objetivos Globais
de Desenvolvimento Sustentável, mas esperamos ter contribuído para o campo da
Educação Ambiental ao ter chamado atenção para as omissões e contradições
utilizando, sim, análises epistemológicas por uma leitura mais crítica da realidade
social, mas também com dados numéricos quantitativos tal como as Nações Unidas.
6. Referências Bibliográficas
ACCIOLY, I. . Ideologia do desenvolvimento e do consumo sustentável na educação
ambiental: uma análise das políticas públicas na Década da Educação para o
Desenvolvimento Sustentável. In: LOUREIRO, Carlos F. B. & LAMOSA, Rodrigo
A.C. (orgs.) Educação Ambiental no Contexto Escolar: um balanço crítico da
Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro: Quartet:
CNPq, 2015.
BRASIL. Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006.
HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016.
LOUREIRO, Carlos F. B. Educação ambiental para o desenvolvimento sustentável:
polêmicas, aproximações e distanciamentos. In: LOUREIRO, Carlos F. B. &
LAMOSA, Rodrigo A.C. (orgs.) Educação Ambiental no Contexto Escolar: um
balanço crítico da Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. Rio
de Janeiro: Quartet: CNPq, 2015.
RAMIREZ, Hilda Salazar. RAMIREZ, Rebeca Salazar. Crise Ambiental e
Desigualdades de Gênero. In: As mulheres na Rio+20: diversas visões contribuindo
ao debate. Rio de janeiro: Instituto Equit, 2013. (p. 15 - 23).
RIBEIRO, Silvia. Transnacionais e novas tecnologias contra a soberania alimentar. In:
Natureza e alimentos: soberania e segurança alimentar e nutricional. Proposta –
Revista de Debate da Fase – Federação de Órgãos para Assistência Social e
Educacional, 2009. Ano 33, n. 119 (p. 36 – 41).
VIGNA, Eldécio. MINEIRO, Ademar. Soberania, Segurança Alimentar e Liberalização
Comercial. In: Natureza e alimentos: soberania e segurança alimentar e nutricional.
Proposta – Revista de Debate da Fase – Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional, 2009. Ano 33, n. 119 (p. 04 – 08).
7. Fontes de dados numéricos:
http://aprosojabrasil.com.br/2014/sobre-a-soja/uso-da-soja/
http://www.forbes.com.br/listas/2015/07/15-maiores-empresas-farmaceuticas-do-
mundo/
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/agropecuaria/lspa/lspa_201703_4.s
htm
http://www.inesc.org.br/noticias/biblioteca/publicacoes/livros/2016/perfil-da-
desigualdade-e-da-injustica-tributaria
https://www.oxfam.org.br/noticias/relatorio_davos_2016
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