Post on 25-Nov-2015
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
ONISKA
A potica da morte e do mundo
entre os Marubo da Amaznia ocidental
Pedro de Niemeyer Cesarino
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro 2008
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La vraie vie est absente.
Nous ne sommes pas au monde.
(Arthur Rimbaud, Une Saison en Enfer)
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ONISKA
A potica da morte e do mundo
entre os Marubo da Amaznia ocidental
Pedro de Niemeyer Cesarino
Tese submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como
parte dos requisitos necessrios obteno do grau de doutor.
Aprovada por
Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro Orientador PPGAS/MN/Universidade Federal do Rio de Janeiro Profa. Dra. Bruna Franchetto Co-Orientadora PPGAS/MN/Universidade Federal do Rio de Janeiro Profa. Dra. Aparecida Vilaa PPGAS/MN/Universidade Federal do Rio de Janeiro Profa. Dra Manuela Carneiro da Cunha Departamento de Antropologia/ Universidade de Chicago Prof. Dr. Srgio Medeiros DLLV/ Universidade Federal de Santa Catarina Profa. Dra. Tania Stolze Lima PPGA/Universidade Federal Fluminense
Rio de Janeiro 2008
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FICHA CATALOGRFICA Cesarino, Pedro de Niemeyer Oniska: A potica da morte e do mundo entre os Marubo da Amaznia ocidental/ Pedro de Niemeyer Cesarino, Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2008. 469 pp., xii pp. Tese de doutorado Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGAS Museu Nacional. 1. Antropologia Social. 2. Etnologia Indgena. 3. Potica e Traduo. 4. Tese. I. Ttulo
Rio de Janeiro
2008
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RESUMO Esta tese um trabalho de estudo e traduo de exemplares das artes verbais marubo
(falantes de lngua pano da Amaznia ocidental). A potica marubo se desenvolve em
torno do emprego especial do paralelismo, do uso de metforas rituais e de um sistema
de classificao, cujo sentido extrapola os domnios das artes verbais e se articula em
um amplo sistema de pensamento. O estudo de tal sistema parte de uma etnografia da
noo de pessoa, das concepes de doena e morte, do xamanismo e da mitologia. Tal
investigao etnogrfica permite constatar que a reiterao veiculada pelo paralelismo,
bem como a variao desencadeada pelo sistema de classificao, constituem
propriamente uma maneira de pensar o mundo e a alteridade. O pensamento subjacente
potica ritual marubo , portanto, um pensamento sobre a multiplicidade, definidora
da cosmologia (concebida em diversos estratos celestes e subterrneos) e da pessoa
(dividida entre o suporte corporal e diversas almas ou duplos). A condio mltipla da
pessoa determina o regime de enunciao de tal potica xamanstica, cuja compreenso
essencial para o trabalho de traduo de seus cantos. A traduo acaba aqui por se
tornar, no apenas uma tarefa de recriao de cantos na escrita, mas tambm um
problema geral de reflexo etnogrfica. A potica xamanstica marubo desenvolve um
pensamento e uma atuao sobre o estado geral de desolao, desagregao e doena
que caracteriza esta poca, cujo sentido perseguido ao longo desta tese.
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ABSTRACT This thesis is a study and a translation of pieces of Marubo verbal arts (a Panoan-
speaking people of Western Amazonia). Marubo poetics is grounded in a special use of
parallelism and ritual metaphors and in a system of classification whose meaning goes
beyond the domains of verbal arts. The study of marubo poetics departs from an
ethnography of the conceptions of person, death and diseases, shamanism and
mythology. The ethnographical investigation proves that both parallel reiteration and
the variation generated by the classificatory system create a way of conceiving the
world and difference. Underlying Marubo ritual poetics is, therefore, a system of
thought about multiplicity, which determines cosmology (conceived as a superposition
of celestial and underworld layers) and the concept of person (the body and the different
souls or doubles). The multiple condition of the person establishes the status of
enunciation of this shamanistic poetics, whose comprehension is essential for the work
of translating its songs. Therefore, translation is this context is not only a task of
creative transposition of songs in writing form, but also an ethnographic problem.
Marubo shamanistic poetics develops a line of thought and of action on the general state
of desolation, desegregation and illness of the present time, whose meaning is
investigated throughout this thesis.
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A Lauro Brasil Panpapa, in memoriam
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NDICE
9 Agradecimentos 10 Introduo PARTE I - A Pessoa Mltipla (xamanismo, replicao e parentesco) 24 1. Limites e conexes 53 2. Pessoa, pessoas 94 3. Diplomatas e tradutores (os dois xamanismos)
PARTE II - A Tarefa do Tradutor (xamanismo e mitologia) 120 4. Rdios e araras (a iniciao dos pajs) 140 5. As palavras dos outros (os cantos iniki e o problema da traduo) 197 6. Cosmos e espritos PARTE III - A Potica da Duplicao (duplicao, classificao e os cantos de cura) 224 7. Yoch e a duplicao 249 8. A potica da duplicao 275 9. A batalha da cura (os cantos shki) PARTE IV - A Era-Morte (escatologia e alteridade: o estilhaamento da pessoa) 302 10. Adoecer, enfeitiar 332 11. Caminhos Possveis (as imagens da escatologia) 357 12. Vei Vai: O Caminho-Morte 395 13. Mitologia da Morte (os cantos saiti e a multiplicidade) 432 Consideraes Finais 445 Bibliografia 465 Anexos
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Agradecimentos
Esta tese no existiria sem a generosidade e o saber de Eduardo Viveiros de Castro,
Bruna Franchetto, Manuela Carneiro da Cunha, Elena Welper, Maria Elisa Ladeira,
Gilberto Azanha, Ana Maria de Niemeyer, Antonio Carlos Cesarino, Sergio Cohn,
Lauro Brasil Panpapa, Manuel Sebastio Kanpa, Antonio Brasil Tekpapa, Armando
Cherpapa Txano, Robson Doles Venpa, Jos Paiva Vanpa, Matheus Txano Marubo,
Paulino Joaquim Mempa, Benedito Keninawa, Nazar Rosewa e Aldeney Mrio da
Silva Vpa.
Agradeo especialmente tambm aos funcionrios do PPGAS e a Aparecida Vilaa,
Carlos Fausto, Marcio Goldman, Lygia Sigaud, Marlia Fac Soares, Luiz Antnio
Costa, Anne-Marie Colpron, Marcela Coelho de Souza, Pierre Dlage, Jean-Pierre
Chaumeil e Bonnie Chaumeil, David Fleck, Pilar Valenzuela, Delvair Montagner, Beto
Ricardo e Fany, Renato Sztutman, Guilherme Werlang, Ana Luiza Martins Costa,
Idinilda Obando, Beatriz Matos, Hilton Nascimento (Kiko), Conrado Brixen, Maya Da-
Rin, Fernando e Mariana Niemeyer, Elisabeth e Luiz Flvio Niemeyer, Josefa Bispo dos
Santos, Luiz Antonio Bulco, Dr. Guido Levy, Gabriela Cesarino e Tim Kerner, Renato
Rezende, Luiza Leite, Tatiana Podlubny, Daniel Bueno Guimares, Paula Cesarino
Costa, Cibele Forjaz e aos amigos e amigas que ajudaram a esfriar a cabea nas horas
difceis, evo!
Agradeo a Funai e ao CIVAJA pelo apoio a este trabalho. Agradeo especialmente ao
Centro de Trabalho Indigenista (C.T.I.), CNPq e FAPERJ (PRONEX/ NuTI), Wenner-
Gren Foundation e C.N.R.S. (Legs Lelong/ EREA) pelos financiamentos e apoios
concedidos a essa pesquisa.
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INTRODUO
Esta uma investigao sobre o pensamento potico marubo e sua relao com a
pessoa, o mundo, a morte e o xamanismo. A idia de potico vai ser aqui reconfigurada
pela etnografia, uma vez que se trata de perguntar pelos termos a partir dos quais o
pensamento marubo constri uma potica, e em qual tempo e circunstncia o faz, ao
invs de consider-la como uma noo pressuposta. A potica ritual marubo aqui
compreendida como um pensamento sobre a diferena, a replicao e a variao. As
reiteraes, os paralelismos e o sistema de classificao a partir dos quais se estruturam
cantos e narrativas extrapolam o domnio verbal e repercutem em outras expresses
estticas (msica, desenho, coreografia), bem como na cosmologia, na pessoa e na
mitologia. A opo pelo estudo de tal potica certamente um recorte arbitrrio, como
so alis todos, e no pretende circunscrever um domnio pretensamente substantivo tal
como a economia ou a poltica: trata-se apenas de uma maneira ou um ngulo
estratgico pelo qual o pensamento marubo pode ser investigado. Para este, uma certa
apreenso potica algo central. Tal apreenso pode ser compreendida como uma
maneira de lidar com e refletir sobre a proliferao indefinida de pessoas, duplos e
espritos que constituem a tessitura de seu cosmos.
O problema central desta tese, portanto, um problema de traduo. O
antroplogo apreende tal potica no exerccio da traduo de cantos. Traduo um
problema conceitual, alm de uma operao que atravessa e conjuga formas, conceitos e
matrias de duas lnguas; o pensamento marubo, por sua vez, elabora para si mesmo
uma apreenso potica e uma reflexo tradutiva. Estes nveis estaro interligados ao
longo da tese: uma investigao calcada nos detalhes da lngua acaba por gerar uma
reflexo sobre as condies gerais do problema da traduo, que deve por sua vez se
debruar sobre os critrios internos do pensamento tradutivo e potico do xamanismo
marubo. O pensamento xamanstico marubo evidentemente uma inveno minha,
ainda que etnograficamente fundamentada. No pretende, portanto, oferecer uma
descrio objetiva (mas sim reflexiva) sobre o que os xams realmente pensam, muito
menos sobre a maneira como se manifesta entre os Marubo alguma teoria explicativa
com pretenses universais.
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Todo esforo de compreenso de uma outra cultura dizia Roy Wagner, deve
ao menos comear com um ato de inveno (...), tal como aquele pintor chins apcrifo
que, perseguido por seus credores, pintou um ganso na parede, montou nele e saiu
voando. (1981: 9). No h objetividade absoluta em matria de traduo, mas
investigao pelo limite. A reflexo etnogrfica que ser desenvolvida aqui no
portanto uma explicao, mas um exerccio de pensamento. Para tanto, necessrio
realizar um trabalho de crtica terminolgica: o leitor vai perceber que um certo
desconforto ou suspeio diante de termos analticos usuais (tais como alma, corpo,
esprito, mito, sociedade, sagrado, imaterial, entre outros) atravessa o presente
estudo, que pretende colocar a etnografia em uma espcie de estado de suspenso, algo
afim epoch dos cticos. As sugestes ou alternativas que acabo oferecendo ao
traduzir os termos e noes do pensamento marubo bem como seus cantos que aqui
esto quase transformados em poemas so portanto provisrias. Partindo da
conceitualidade marubo, trata-se, enfim, de utilizar a linguagem que nos pertence para
criar um contraste interno a ela mesma, como dizia Marilyn Strathern (1988: 16).
Este trabalho pretende retirar as tradues de cantos e narrativas do lugar
perifrico a que so destinados nas teses de etnologia, seja pelo espao normalmente
reservado a elas (apndices, exemplificaes, resumos), seja pelo baixo grau de
elaborao em seu tratamento e de conhecimento das lnguas nativas. Se os Marubo
cantam e vertiginosamente porque cantos so importantes, porque uma estetizao
generalizada da vida e do pensamento, centrado nas idias do belo/bom (roaka), um
trao essencial e distintivo desta e de tantas outras sociedades amerndias, e no um
fenmeno lateral a ser preterido em funo de outros supostamente mais complexos (cf.,
Overing 1996: 263)1. Potica tambm informao; os dilemas de terminologia
conceitual encontrados nos textos de etnologia esto tambm presentes nas solues
adotadas (ou no) ao se traduzir um canto. Ao articular cantos e narrativas deste modo
preciso e no de outro; ao perseguir ao limite a perfeio e a adequao de uma dada
composio em detrimento do mal-feito ou mal-executado (ichnaka), ao reconhecer
determinado canto como belo/bom ou mesmo exemplar (ko), o que est em jogo? A
1Veja por exemplo essa passagem de Miller sobre os Mamaind (Nambikwara): Segundo Pereira, aps a morte, a alma segue, conduzida pela alma de um parente morto h mais tempo, para a cabeceira de cima do rio Juruena. L ela bebe a gua da lagoa e entregue a Dawazunusu, que lhe d um nome, um novo corpo e uma nova viso para que ela possa ver a beleza das coisas. Assim, a alma ganha uma alegria sem fim. da alegria e da beleza das coisas que a alma se alimenta na cabeceira de cima e no precisa nem de gua, nem de comida. (2007: 93)
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partir do estudo da noo de pessoa entre os Marubo, de sua insero e reflexo sobre o
cosmos, do xamanismo como um trabalho de mediao e transporte, da mitologia como
um processo reflexivo sobre o tempo e as transformaes, como compreender a
condio do enunciador e da palavra ritual?
Uma indagao lanada por Viveiros de Castro sobre o estatuto da palavra
xamanstica norteia os propsitos desta tese: a figura do xam amerndio
essencialmente semelhante do mestre da verdade da Grcia pr-poltica, como
intimam os trabalhos clssicos de Detienne e Vernant2? Tratar-se-ia, l como c, da
mesma enunciao monolgica, do mesmo logos (ou muthos) monrquico que afirma a
mesma velha participao primitiva, o mesmo embutimento indicial, mgico, da
linguagem no Ser? (Viveiros de Castro et alii 2003). O caso marubo, exemplar de
outras tantas situaes amerndias, mostra que no. Aqui, trata-se de abord-lo em uma
dimenso extra-filosfica, isto , de no consider-lo como mais uma negatividade
frente ao pensamento greco-ocidental: A questo do sentido inteiramente diverso que
assume a enunciao mtica quando samos do mundo pr-filosfico dos Mestres da
Verdade e seu regime monrquico de enunciao, mundo clssico do helenista, do
historiador da filosofia, para entrar no mundo extra-filosfico das sociedades contra o
Estado, mundo do pensamento selvagem, da alteridade antropolgica radical bem,
essa questo ainda no recebeu um desenvolvimento altura. (Viveiros de Castro
2007: 111-112). O estudo do xamanismo marubo particularmente estratgico para o
desenvolvimento de tal questo, no apenas porque todo e qualquer sistema xamanstico
oferece por si s desafios ao pensamento, mas porque o caso marubo especialmente
calcado no discurso e na elaborao ritual da linguagem3. O caso Marubo mostra que a
palavra xamanstica no se preocupa em seqestrar o tempo atravs da autoridade de um
rei-sacerdote e de seu acesso exclusivo memria e ao desvelamento, mas em produzir
o prprio tempo e encadear tempos sobrepostos no fluxo dos surgimentos e das
transformaes. No se trata de influenciar magicamente o mundo, mas de variar o
2Cornford (1952) vai numa direo similar. 3No por acaso que a ateno aos regimes xamansticos de enunciao conduziu Viveiros de Castro a um trao essencial das cosmologias amerndias, a saber, o perspectivismo. As intuies iniciais para a formulao de tal teoria etnogrfica partiram da anlise dos cantos de guerra e xamansticos Arawet (cf., Viveiros de Castro 1986, 1996; 1996b; 2002: 462). O perspectivmo amerndio, tal como elaborado por Viveiros de Castro (1996, 1998, 2002) e Lima (1996), tambm uma base para o pensamento marubo, como veremos ao longo desta tese.
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mundo e o sujeito que canta. Menos os dilemas da verticalidade e da disjuno, mais os
da horizontalidade, da transformao e da traduo4.
Se esta tese tm por objetivo trazer para o centro de ateno o estudo de cantos e
narrativas geralmente tratado de modo lateral pela etnologia, ela pretende tambm
oferecer ao leitor interessado em literatura e traduo um contato mais aprofundado com
poticas amerndias. O estudo de tais poticas sofre, no apenas de pouca ateno pelo
americanismo, mas tambm da escassez de referenciais tericos autnomos para se
desenvolver, uma vez que exige recursos provenientes de outras reas (as teorias da
traduo, a crtica literria, as teorias da metfora, a retrica e a filosofia) raramente
mobilizados pela etnologia. Por outro lado e o ponto particularmente verdadeiro para
o Brasil os estudos literrios praticamente ignoram as complexidades inerentes ao
estudo de poticas e estticas amerndias, bem como o dilogo com a novssima
produo etnolgica, e acabam por se reduzir a alguns poucos e obsoletos pressupostos
romntico-modernistas quando pretendem tratar do assunto (Risrio 1993 faz um bom
estudo sobre os motivos de tal negligncia sistemtica). Se o foco conceitual e o mtodo
desta tese so antropolgicos, os dilemas tericos levantados e o tratamento das
tradues acabam por constituir um campo multidisciplinar, para o qual a relao com a
literatura de essencial importncia. Como um todo, o trabalho pretende encaminhar as
condies para uma reflexo crtica ou literria possvel sobre uma potica amaznica, e
estas condies so necessariamente antropolgicas e originrias de uma
problematizao conceitual da etnografia. A idia, entretanto, fazer com que o texto
final seja de interesse para a cultura literria, e no apenas para o crculo especializado
da etnologia, uma vez que h lacunas a serem preenchidas. Na concluso da tese, tento
indicar alguns parmetros possveis para tal reflexo.
Ao ser construda no papel e na experincia de campo, esta tese se deparou aos
poucos com seu eixo conceitual central: o pensamento potico marubo desenvolve um
complexo sistema de classificao que visa lidar com os problemas da diferena, da
replicao e da variao. Tal sistema pretende dar conta da variao posicional
desencadeada pela personificao generalizada, isto , pela replicao indefinida do
humano para alm dos humanos viventes, isto , os Marubo. O sistema potico inteiro,
seja na agncia xamanstica, seja no registro mtico e em suas interpenetraes,
4Ver Viveiros de Castro (2002).
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apresenta uma reflexo sobre a variao dos pontos de vista, seus riscos e dilemas. Na
morfologia social marubo, nomes provenientes de antigos grupos tribais transformaram-
se em modos de classificar unidades matrilineares5, tais como Povo-Azulo
(Shanenawavo), Povo-Sol (Varinawavo), Povo-Jaguar (Inonawavo), Povo-Jap
(Rovonawavo), Povo-Arara (Shawnawavo), e assim por diante. Ora, os nomes que
antecedem nawavo (povo), acabam por constituir um sistema prprio; o processo de
classificao ultrapassa o socius, ou transforma talvez o socius no idioma privilegiado
para pensar a variao indefinida de pessoas e sociedades que constituem o cosmos: no
estrato celeste Morada do Cu-Nvoa (Ko Na Shavaya), por exemplo, vive o Povo-
Nvoa (Ko Na Nawavo) e todos os seus elementos-nvoa (antas-nvoa, adornos-
nvoa, ayahuasca-nvoa, e assim por diante). como se nenhum nome pudesse existir
sozinho, sem que esteja acompanhado do devido classificador capaz de indicar o quadro
de referncia a que est vinculado6. O estudo das complexidades geradas a partir deste
esquema bsico atravessa todos os captulos desta tese, j que o fenmeno da
classificao se envolve na constituio da pessoa e do parentesco, nas duas
modalidades de xamanismo (o xamanismo de cura e o de transporte), na cosmologia,
nas especulaes sobre o destino pstumo, na configurao geral do discurso e do
pensamento em questo.
Este estudo realiza-se entretanto em um tempo e um lugar: o pensamento
propriamente uma reflexo ativa sobre tempo e lugar; no poderia ser considerado em
abstrato e no foi investigado por mim em condies puras. Donde os temas narrativos
da morte e da pessoa. Ambos os temas, alm de essenciais na constituio da etnologia
americanista nas ltimas dcadas, so tambm o ponto essencial de preocupao dos
Marubo e de seu xamanismo: pensa-se e atua-se intensamente sobre o atual estado
desolador e sombrio deste mundo; reflete-se sobre esta era-morte (vei shav) em que
todos vivemos. O regime discursivo e potico do xamanismo marubo, veremos, est
particularmente voltado para isso. Sua reflexo no apenas um fruto das
transformaes histricas recentes, mas est em continuidade com o pano de fundo
desenvolvido pela mitologia, atualizada e alterada pela atividade do xamanismo.
5O texto de Melatti (1977) sobre a estrutura social Marubo continua sendo a referncia. 6A relao deste sistema de classificao com a lgica categorizante da nominao pano, como diz Erikson (1996: 165), certamente forte e merece ser estudada mais a fundo.
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* * *
Marubo uma inveno, uma denominao atribuda a um conjunto de
remanescentes de diversos povos falantes de lnguas Pano. No pode ser compreendido
como uma totalidade. Num determinado momento da passagem dos sculos XIX e
XX, tais remanescentes se reuniram na regio das cabeceiras dos rios Itu e Curu
(extremo da Amaznia ocidental brasileira, atualmente situado dentro da Terra Indgena
Vale do Javari, Amazonas), pressionados pela explorao violenta do caucho e por
diversos conflitos internos. Os remanescentes ali reunidos eram denominados atravs do
esquema comum Pano, constitudo pela anteposio de um termo especfico ao termo
povo: Shane-nawavo, Povo (nawa) Azulo (shane), Chai-Nawavo, Povo-Pssaro,
Iskonawavo, Povo-Jap, Inonawavo, Povo-Jaguar, Satanawavo, Povo-Lontra, entre
outros. Dotados, dizem os atuais Marubo, de lnguas e culturas distintas, tais fragmentos
de sociedades, que at ento estabeleciam intensas relaes belicosas, teriam se
constitudo em torno de um sistema de aliana e parentesco e passado a adotar a lngua
de apenas um dos grupos que os constitua e que est agora extinto: os Chainawavo, ou
Povo-Pssaro. As denominaes de tais grupos tribais acabaram por constituir os
segmentos de uma mesma sociedade (cf., Melatti 1977) que, segundo outro especialista
(cf., Ruedas 2001, 2002, 2004), teria sido praticamente criada ou inventada na primeira
metade do sculo XX atravs da atividade de um importante xam-chefe, Joo Tuxua,
o aglutinador, junto com seus parentes mais velhos, dos grupos dispersos. Se verdade
que os povos falantes de lnguas da famlia Pano possuem uma relativa homogeneidade
cultural e lingstica, bem como uma continuidade territorial, a despeito de sua
marcantes diferenas internas (cf., Erikson 1998), verdade tambm que os Marubo so
estratgicos para o estudo de tais sociedades, justamente na medida em que a
multiplicidade faz-se constitutiva de seu pensamento xamanstico. A adoo
(involuntria) de uma s lngua, a lngua dos Chainawavo, no levou ao
desaparecimento de tal multiplicidade no sistema que se formava. Ela se torna
justamente a marca de um sistema de parentesco e de uma organizao social
estruturada em torno da variao entre distintos povos ou naes. A multiplicidade
constitui propriamente um sistema de relao (algo similar foi notado por Calavia
(2006) para os Yaminawa: menos uma etnia, mais uma relao7) estendido
7Erikson (1996: 45 e segs) atesta tambm esse ponto, assim como Townsley (1988).
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configurao da pessoa, classificao da fauna e da flora e ao cosmos. O caso similar
quele pensado por Deshayes e Keifenheim para os Huni Kuin (Kaxinaw), cujo
parentesco se integra a um sistema relacional mais vasto (1991: 120, 123).
Os Marubo situam-se naquele conjunto que Erikson (1998: 242) chamou de
Pano medianos, entre os quais figuram os Katukina, Poyanawa, Kapanawa, Yawanawa
e Remo. De fato, a lngua marubo guarda muitas semelhanas com o kapanawa e o
katukina (mas tambm com o kaxinaw e o shipibo-conibo) e muitas diferenas com o
matss e matis, povos que, entretanto, so territorialmente bastante prximos dos
Marubo. Seu xamanismo possui muitas semelhanas com o dos Shipibo-Conibo e dos
Kaxinaw, ainda que o emprego exclusivo do cip da ayahuasca (Banisteriopsis caapi),
sem o uso combinado com a folha chacrona (Psychotria viridis), acabe por tornar este
xamanismo um tanto quanto singular8. Se o sistema xamanstico e as artes verbais
marubo so comparveis aos dos Shipibo-Conibo, seu ethos geral entretanto diverso,
uma vez que os Marubo se formam a partir de remanescentes de povos dos interflvios,
e no da beira de grandes rios, como o Ucayali dos Shipibo. Para isso, basta observar
que a tecnologia de confeco de canoas no muito desenvolvida, muito embora
digam se tratar de uma tcnica j conhecida por seus antigos. Sua mitologia se orienta
toda em funo de uma grande viagem (em deslocamento por terra) no eixo
jusante/montante, partindo das guas de um grande rio (noa), identificado regio de
Manaus, at as cabeceiras. Os relatos referentes ao Inca so residuais e perifricos; a
base da alimentao a caa, e no a pesca. Intrigantemente, os Marubo possuem
diversas caractersticas em comum com os Matis e os Mayoruna, cujas lnguas so
porm as mais distintas do marubo dentro do conjunto Pano: habitam ainda nos dias de
hoje em grandes malocas (shovo), possuam outrora tatuagens faciais com padres
similares (cf., Erikson 1996: 59), utilizavam-se de zarabatanas nas caadas (hoje em
desuso), ocupam h tempos um territrio prximo. Ainda assim, os Marubo so
8O xamanismo Marubo, ver-se-, no corresponde ao xamanismo de ayahuasca descrito com perspiccia por Gow (1994), para uma regio territorialmente prxima ocupada pelos Marubo. O caso deste povo corresponderia aos sistemas xamansticos preexistentes s reconfiguraes populacionais e culturais originrias das primeiras cidades amaznicas e das misses crists. por isso que o sistema marubo pode manter a incorporao de espritos (veremos, entretanto, que possesso no o termo adequado para descrever o processo em questo). Mantm tambm uma complexa cosmologia baseada em eixos verticais (celestes e subterrneos) e horizontais, imune s re-tradues da cosmologia crist que, entretanto, vai aparecer por ali na poca da borracha e, posteriormente, com o estabelecimento da Misso Novas Tribos no alto Itu. Na realidade, o xamanismo dual marubo tambm um hibridismo, no das situaes ayahuasqueiras desenvolvidas nas cidades e posteriormente introduzidas na floresta, mas de remanescentes dos tais sistemas preexistentes referidos pelo autor. como se, ao reunir as populaes Pano dispersas, Joo Tuxua tivesse sistematizado um xamanismo hbrido pano e arcaico.
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marcados pela influncia quechua de um modo que os Matis no o so: o contato com
os caucheiros peruanos Txamikoro ocorrido a partir do final do sculo XIX trouxe o
hbito de consumo da caiuma fermentada de mandioca (atsa waka), do uso de flautas e
tambores e, sobretudo, da realizao peridica de uma festa de traos andinos dedicada
ao estrangeiro, a festa do estrangeiro (nawa saiki). Parecem estar, pois, a meio
caminho entre dois modos extremos das sociedades Pano: aquele isolacionista, das
sociedades dos interflvios e da caa, tipificado pelos Matis, e o outro, multicultural e
tradutivo, tipificado pelos Shipibo-Conibo.
Com relao ao povos do Acre (especificamente do alto Juru), os Marubo se
distinguem justamente por terem conservado o uso de malocas (e toda a relao
simblica que elas implicam), talvez por ocuparem um territrio mais afastado do
epicentro de explorao da borracha no Vale do Juru, o que permitia uma certa
proteo com relao s reconfiguraes radicais sofridas por povos como os Kaxinaw,
Yaminawa e Yawanawa (cf., Melatti 1985b; Almeida & Carneiro da Cunha 2002;
Calavia 2006). Com relao a estes povos pano e outros tantos, os Marubo mantiveram
tambm um duplo xamanismo, comparvel ao dos Shipibo-Conibo em sua diviso entre
os onnya e os merya, e distinto do xamanismo de metades dos Kaxinaw. O duplo
xamanismo marubo, que vigora at hoje, pode ser uma das razes para a conservao de
sua complexidade, uma vez que no se reduziu s atividades de cura (tal como entre os
Sharanawa e os Katukina) e pde manter as tarefas de traduo e transporte
caractersticas de sistemas complexos tais como os dos povos do alto Rio Negro (Hugh-
Jones 1994) ou os Bororo (Crocker 1985).
Esta breve apresentao da sociedade marubo e seus contrastes no tm como
objetivo balizar o estudo de seu pensamento potico, como se este fosse decorrente das
particularidades de sua morfologia social, dos movimentos demogrficos ou de razes
etnohistricas, muito embora ele certamente se inspire em tudo isso e muito mais. A
esttica xamanstica marubo sua peculiar capacidade de expandir o pensamento da
classificao e da variao em direo a uma apreenso generalizada da diferena e da
multiplicidade certamente tm a ver com as redes de circulao dos conhecimentos
xamnicos que caracterizam a Amaznia ocidental (cf., Chaumeil 1991). Ainda assim,
pretendo investigar as concepes internas ou as imagens essenciais a partir das quais
este pensamento se constitui, e sem os quais toda tarefa de traduo de cantos e
narrativas se torna incompleta.
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* * *
Esta tese no pretende estabelecer verses definitivas dos cantos marubo pois,
naturalmente, nenhuma traduo definitiva. As tradues que compem esta tese so
portanto experimentais, a meio caminho entre a transcriao literria e a traduo literal.
A inventividade potica precisa aqui estar atrelada exposio etnogrfica; a
transcrio em marubo e as glosas intralineares, essenciais para os presentes propsitos,
impedem uma transcriao potica radical em portugus. Ainda assim, o leitor
perceber que minhas verses so bastante poetizadas, uma vez que encaminham as
possibilidades de perturbao que um texto amerndio realiza no campo do portugus,
tendo em vista sua cadncia encantatria (Guimares 2002), sua visualidade e
metaforicidade, sua intensidade paralelstica (Cesarino 2006a), sua sonoridade circular e
reiterativa (Werlang 2001), sua extrema condensao e preciso imagticas. A idia
fazer com que essas qualidades possam ser percebidas nos textos traduzidos, e
percebidas como informao, uma vez que so traos centrais das poticas amerndias.
Na segunda parte da tese, desenvolvo consideraes mais aprofundadas sobre o
processo de traduo. Vale porm apresentar algumas consideraes gerais. Nas
tradues dos cantos, procuro sempre manter a conciso dos versos no original, muito
embora a mtrica que os caracteriza (entre quatro e cinco slabas mtricas por verso)
no esteja vertida em minhas solues para o portugus. Elimino tambm as
vocalizaes que muito frequentemente seguem-se s linhas e que so, evidentemente,
traos essenciais dos cantos originais. Isso porque no encontrei uma boa soluo para
recri-las nas tradues, ao menos no presente estgio das verses que apresento,
sujeitas a novas interpretaes. Procuro colocar o menor nmero possvel de palavras
em cada verso, suprimo ao mximo artigos, pronomes e preposies, a fim de preservar
o efeito de conteno que possuem as frmulas poticas marubo e, de um modo geral, o
carter aglutinante das lnguas da famlia Pano (cf., Loos 1999). Procuro tambm
sempre manter os verbos na posio final de cada linha, a fim de tentar recompor o
efeito rtmico da lngua cantada, cuja ordem padro de constituintes SOV (sujeito,
objeto, verbo). Tomo liberdade de utilizar a pontuao apenas na medida em que ela se
faz fundamental para eliminar ambigidades no interior das linhas ou para sinalizar
interrogaes e exclamaes, a fim de no sobrecarregar as tradues. Com a exceo
19
da traduo do Canto do Caminho-Morte (parte IV), no ofereo aqui solues muito
criativas de disposio visual das tradues na pgina escrita e sigo por ora um padro
fixo (a quebra de versos corresponde s unidades rtmicas do original).
Nas tradues de conversas e depoimentos, procuro manter a diviso das linhas
segundo os critrios para quebras de sentenas visveis no marubo, tais como no
emprego de reportativos (iki, -ki, disse que), de conectivos (-vaiki, e ento..., -man,
portanto, -veise e tambm), entre outras diversas configuraes gramaticais dispostas
de modo paralelstico e reiterativo. De fato, a disposio da gramtica, da respirao e
do silncio no discurso narrativo acaba por conferir a este uma qualidade potica e
dramtica, frequentemente eclipsada quando tal discurso reduzido a verses em prosa
corrida escrita, como bem mostraram Hymes (1992) e Tedlock (1983) em seus estudos
clssicos. Do ponto de vista da disposio espacial dos versos nas pginas e da
indicao das quebras entre cenas e estrofes, minhas solues provisrias no seguem
todos os detalhes tcnicos oferecidos por estes autores, uma vez que o espao reduzido
e o material, enorme. Dispor efetivamente o jogo de ritmos e imagens do original nas
tradues escritas aumentaria esta tese talvez em uma centena de pgina, exigindo
tambm um trabalho minucioso de transposio que escapa s minhas presentes
possibilidades.
Nos cantos, nos depoimentos e na etnografia, tomo a liberdade de criar
neologismos para traduzir algumas palavras e noes do marubo que no possuem
equivalente em portugus. O recurso usado pontualmente e no pretende resolver o
problema de termos analticos mais carregados tais como corpo, alma, duplo,
esprito, etc. Termos como estes, embora no sejam descartados, estaro sempre sob
suspeita e viro acompanhados de aspas simples; as aspas duplas, por sua vez,
referem-se a citaes diretas de outrem. Uma observao de Viveiros de Castro sobre a
consanginidade, a afinidade e o problema do parentesco no pensamento amerndio
pode ser transportada para os dilemas de traduo envolvidos nesta tese: A deciso de
dar o mesmo nome a dois conceitos ou multiplicidades diferentes no se justifica, ento,
por causa de suas semelhanas, e apesar de suas diferenas, mas o contrrio: a
homonmia visa ressaltar as diferenas, a despeito das semelhanas. A inteno,
justamente, fazer parentesco querer dizer outra coisa. (2002: 407) .
As tradues aqui apresentadas so frutos de um trabalho coletivo com jovens
professores e velhos cantadores marubo, realizado ao longo dos cerca de quatorze meses
20
de pesquisa de campo que desenvolvi nas aldeias do alto rio Itu (principalmente nas
aldeias Paran e Alegria), na Terra Indgena Vale do Javari, entre 2004 e 2007. A
pesquisa que origina esta tese se situa na confluncia das atividades de etnografia e de
assessoria ao programa de educao do Centro de Trabalho Indigenista (C.T.I.), atravs
do qual adquiri o compromisso de produzir alguns exemplares de livros com tradues
de cantos e narrativas para as escolas das comunidades marubo. O trabalho nas escolas
oferecia uma porta de entrada privilegiada para o frequentemente interdito
conhecimento tradicional, fornecendo inmeras e gratificantes oportunidades de
documentao e interlocuo com professores e cantadores mais velhos que, talvez, no
poderiam ter sido to constantes, generosas e sistemticas para uma pessoa que se
apresentasse apenas como pesquisador. a partir disso que muitos dos sentidos velados
da linguagem ritual puderam ser deslindados, uma vez contornada a desconfiana e
desconforto iniciais dos velhos cantadores.
Trabalhei intensamente em revises e interpretaes nas aldeias e em
aproximadamente dois meses de trabalho final nas cidades de Cruzeiro do Sul e
Tabatinga, aos quais se somaram as tarefas cotidianas de etnografia, ou seja, a
participao efetiva no cotidiano e nos rituais do povo anfitrio. De um modo geral, os
jovens professores com os quais trabalhei no tm acesso aos sentidos velados da lngua
ritual e sempre necessrio trabalhar lado a lado com (ao menos) um velho cantador.
Tal mtodo incontornvel, pois os cantos Marubo so altamente metafricos e os
conflitos de gerao que atualmente comprometem o fluxo de transmisso dos
conhecimentos tradicionais impem srias limitaes de interpretao aos jovens e
homens bilnges. Se a base deste trabalho coletiva, o resultado final das tradues
evidentemente de minha responsabilidade, no tocante anlise lingstica e s decises
de interpretao, estilo e composio das verses em portugus. Para as informaes e
descries lingsticas aqui utilizadas, parti dos trabalhos de Raquel Costa (1992, 1998,
2000) e de Kennel Jr (1978) que, em nveis de complexidade distintos, apresentam
pesquisas iniciais razoveis sobre a lngua marubo. Completei as lacunas com dados de
minha prpria pesquisa de campo e com um estudo comparativo sobre outras lnguas da
famlia Pano, para o qual os trabalhos de Valenzuela (2003, 2000) para o shipibo-
conibo, Fleck (2003) para o matss, Camargo (diversos) para o kaxinaw e Dlage
(2006) para o sharanawa foram as referncias principais, entre diversas outras
provenientes, em sua maioria, da produo dos lingistas missionrios vinculados ao
S.I.L. (Summer Institute of Linguistics). A ortografia utilizada nesta tese a
21
estabelecida pelos missionrios entre os Marubo, utilizada tambm pelos professores na
escrita de sua lngua. Os quadros e legendas encontram-se nos anexos. As identificaes
provisrias de espcies da fauna e da flora foram feitas a partir de pranchas de manuais
diversos e esto, portanto, sujeitas a reviso9. Cabe ainda observar que so minhas as
tradues de todas as citaes de textos alheios que estejam referidos em lngua
estrangeira na bibliografia.
Os Marubo j foram estudados por Montagner e Melatti na dcada de 1970 e,
posteriormente, por Werlang (2001) e Ruedas (2001)10. Voltado para uma direo
pouco explorada por tais autores, este estudo oferece tambm uma reviso etnogrfica
do xamanismo e da cosmologia marubo realizada, sobretudo, por Delvair Montagner.
Muitas das informaes apresentadas por mim confirmam os dados anteriormente
coletados pela autora e pelos outros pesquisadores. Esta tese se beneficia porm do
avano significativo que a pesquisa etnogrfica e lingstica sobre os Pano sofreu nos
ltimos anos, ao qual vale adicionar tambm a extensa produo da etnologia
americanista recente. As tradues aqui apresentadas no vo acompanhadas de um
estudo sobre suas implicaes musicais (para o qual no tenho competncia tcnica), o
que representa evidentemente uma perda. Meu objetivo no entretanto oferecer uma
descrio exaustiva de todos os aspectos dos cantos saiti, iniki e shki, mas de elaborar
um exerccio etnogrfico que articule o pensamento potico a um estudo detalhado do
xamanismo marubo, das noes de pessoa, doena e escatologia. O leitor deve consultar
o trabalho de Werlang para uma anlise musicolgica dos cantos saiti, complementar
aos dados apresentados aqui.
Assumo aqui o risco de trabalhar com uma quantidade ampla de materiais, ao
invs de me concentrar apenas em um exemplar de um canto ou depoimento narrativo,
de forma a poder assim monitorar com mais cuidado as possibilidades de traduo e os
perigos envolvidos no transporte entre as duas lnguas e referenciais conceituais. Tal
opo, certamente mais segura, levaria porm a um recorte em demasia restrito do
enorme campo em que avanam o xamanismo, a mitologia e a cosmologia. A fim de
perseguir o movimento de fundo estabelecido pelo pensamento potico e sua articulao
com a etnografia, decidi lanar mo da anlise de materiais variados e de um exame
9Para mamferos, utilizei Emmons (1990); para aves, Frisch (1981); para palmeiras, Lorenzi (2004). 10Elena Welper est atualmente conduzindo tambm uma pesquisa de doutorado sobre a etnohistria e a morfologia social Marubo.
22
geral de trs das modalidades das artes verbais marubo (os cantos-mito saiti, os cantos
de cura shki, os cantos xamansticos iniki, mais os depoimentos narrativos). As
tradues esto, entretanto, selecionadas de acordo com suas afinidades temticas, como
o leitor perceber. As quatro partes em que se divide a tese se referem, em linhas gerais,
(I) noo de pessoa, (II) anlise do xamanismo, dos rituais de iniciao, dos cantos
dos espritos e da cosmologia, (III) ao problema da duplicao e dos cantos de cura e,
por fim, (IV) morte, doena e escatologia. O primeiro captulo pode parecer
demasiado denso para uma abertura de trabalhos, mas assim o porque precisamos
definir de antemo alguns problemas de traduo e terminologia, que se distribuem
depois ao longo da tese. A diviso dos temas pelas quatro partes no rgida: h
recorrncias, retomadas e sobreposies. O leitor perceber que os cantos e narrativas
apresentados podem ser relidos luz dos temas desenvolvidos em captulos distintos
daqueles em que se encontram, a fim de que se enriqueam pelas idias desenvolvidas
ao longo da tese.
23
I
A PESSOA MLTIPLA
xamanismo, replicao e parentesco
24
1.
A PESSOA MLTIPLA
Interior, exterior
O cosmos marubo pode ser descrito como uma mirade infinitista personificada:
decidiu se constituir de pessoas; tomou-as como matria ou tessitura de sua composio,
por assim dizer. Pessoas implicam socialidades, deslocamentos, trajetos e posies.
Cosmos j se torna ento um termo impreciso, pois a questo aqui no a univocidade
ou totalidade, mas a multiplicidade e multiposicionalidade. No vamos porm jog-lo
fora: basta lembrar que o cosmos de que trataremos aqui uma configurao posicional,
uma srie infinita de replicaes personificadas, e no uma redoma perfeita surgida ab
ovo. H ao menos quatro variantes destas pessoas que o habitam e sobre as quais
falaremos nas prximas pginas. Variantes ou, como diz Viveiros de Castro (com.
pessoal), pontos de estabilizao de uma variao contnua da propriedade intensiva
pessoa ou personitude. Estas poderiam ser distinguidas da seguinte maneira:
pessoas humanas (os Marubo, que chamarei ocasionalmente de viventes nas pginas a
seguir), hiper-humanas (os espritos yove), infra-humanas (os espectros yoch) e extra-
humanas (as pessoas-animais).
Vamos nos dedicar longamente ao comentrio desta variao, que aqui est
esquematizada apenas por motivos heursticos e possui diversas limitaes: as pessoas
extra-humanas (os animais, as plantas), por exemplo, muitas vezes so consideradas
como espritos yove ou como espectros yochi . Uma pessoa pode ser compreendida como
um ente ou uma singularidade, mas no como um indivduo: um bicho, assim como
um humano ou uma rvore, a rigor uma configurao ou composio especfica de
elementos que o determinam e diferenciam. Animal e humano so entidades
multifacetadas e devem ser entendidas com cuidado tambm. O que chamamos de
animal11 compreendido pelo pensamento marubo como uma configurao composta,
11Os Marubo assim classificam o que compreendemos como animal: yoni peiya (bichos de pena), man yoni (bichos de terra), key yoni (bichos do alto ou das rvores, smios e quatipurus), yaparas (peixes), ronoras (serpentes) e yoni potochtaras (bichos pequenos, isto , insetos, aneldeos, aracndeos e outros). Uma pesquisa sistemtica neste domnio est para ser elaborada. No sei dizer, por exemplo, onde ficam as arraias, os poraqus, as ariranhas, os caramujos e as borboletas, entre diversos outros componentes da fauna. Embora compreenda outros bichos alm dos grandes mamferos terrestres, o termo yoni no possui o mesmo sentido genrico que animal tm em portugus e outras lnguas ocidentais, pois no compreensvel atravs da oposio entre natureza e cultura, humanidade e animalidade. O termo pode ser aplicado para um contraste genrico com os humanos viventes apenas
25
por um lado, de seu bicho (aw yoni), sua carcaa (aw shak) ou seu corpo (aw
kaya) e sua carne (aw nami) e, por outro, de sua gente/pessoa (aw yora), isto , o
seu duplo (aw vak), que o dono (ivo) de seu bicho/carcaa/corpo. O emprego do
possessivo (aw) portanto essencial: um corpo sempre de um determinado duplo.12
Com os pssaros (e tambm com alguns animais) ocorre uma disjuno espacial: seus
duplos/pessoas (cha vak) no esto dentro de suas carcaas (cha shak), mas fora,
vivendo em suas malocas (a vak shov shokorivi) que, de nosso ponto de vista, se
apresentam como rvores. De l, ficam a vigiar seus corpos/bichos por intermdio de
um longo canio de inalar rap, o rewe, um potente instrumento de mediao.
porque est assim enfocando o lado carcaa da singularidade a que se refere (o bicho/carcaa arara, por exemplo, mas no o seu duplo/pessoa). Por isso, a observao de Viveiros de Castro tambm vlida para o caso Marubo: as evidncias etnogrficas disponveis sugerem que as cosmologias amerndias no utilizam um conceito genrico de animal (no-humano) que funcione como complemento lgico de um conceito de humano (2007: 325). Donde a consequncia fundamental, que o autor explora tambm em outros trabalhos (2002, por exemplo): a natureza no um domnio definido pela animalidade em contraste com a cultura como provncia da humanidade (2007: 326). Descola (1998: 25) atesta o mesmo ponto. Natureza, alis, tambm no possui um termo (e um conceito) equivalente em marubo: kaniaras, as coisas crescidas ou nascidas, seria o termo aproximado, que mais lembra a physis do pensamento grego arcaico do que a noo moderna de natureza. No me ocorreu perguntar aos Marubo se a poderiam estar includos tambm os espritos. Para estudos mais aprofundados sobre sistemas de classificao da fauna e da flora em sociedades prximas aos Marubo, o leitor pode se reportar a Almeida & Carneiro da Cunha (2002), Valenzuela (2000) e Fleck (2000, 2002). 12O xamanismo warao tambm vincula o duplo de determinados animais a seus corpos atravs do emprego sistemtico dos possessivos (cf., Briggs 1994). No caso marubo, tal emprego est relacionado noo de dono ou mestre de animais, vegetais e outros entes comum aos xamanismos pano e outros tantos amerndios (ver por exemplo Gallois 1996 para os jar waypi; ver o trabalho recente de Miller (2007) sobre os Mamaind): ivo, o termo para dono ou mestre em marubo, equivalente a ibo em shipibo-konibo (ver por exemplo Leclerc 2003 ou Garca & Urquizo 2002), ifo em sharanawa (Siskind 1973, Dlage 2006), ibo em kaxinaw (Capistrano de Abreu 1911, Lagrou 1998), ibgo em matis (cf., Erikson 1996: 180 e segs), entre outros exemplos possveis. Nas cosmologias pano e especificamente na marubo, a noo de dono (ivo) inclui a noo pan-amerndia dos donos ou mestres dos animais e se expande em uma lgica recursiva. Os donos dos pssaros, por exemplo, replicam a mesma configurao que caracteriza os donos de maloca (shov ivo) Marubo: ambos so chefes de suas casas, nas quais habitam com suas famlias e seus costumes, e assim ao infinito para grande parte das singularidades existentes. Luiz Costa descreveu recentemente a noo de corpo/dono para os Kanamari atravs da recursividade, observando tambm o papel fundamental do emprego do possessivo: A palavra warah precisa ser prefixada por um sujeito, de modo que algum ou algo sempre ser chefe/corpo/dono de/para algo, de algum ou de algum povo (2007: 8). A relao suposta por corpo/dono/chefe acaba ento por se reproduzir em nveis distintos, tais como a relao entre o leito principal de um rio e seus tributrios ou ainda, mais fundamentalmente, da seguinte maneira: O corpo/dono/chefe estabiliza aquilo que potencialmente fluido, expressado em seu prefixo; coloca-se como o um com relao quilo que (potencialmente) mltiplo. Nas pessoas viventes, o corpo (-warah) feito por um longo processo de estabilizao da inconstante matria-alma da qual a maior parte dos seres vivos deriva. Xams se tornam o chefe/corpo/dono de seus espritos familiares, chamados dyohko, que, sem eles, perambulam na floresta. Mulheres so corpo/chefe/dono de seus xerimbabos e, em alguns casos, de suas crianas. Aldeias, um grupo de pessoas, configuram-se como unidade e grupo de parentesco atravs de um chefe, que estabiliza aqueles que (...), de outra maneira, no seriam capazes de viver juntos. (ibidem) O corpo da pessoa marubo no exatamente o dono de seus duplos/alma (os duplos/alma que para si mesmos so donos dissso que vem como uma maloca, isto , o nosso corpo), muito embora estabilize a disperso possvel dos aspectos que compem a pessoa, tal como na doena ou na morte.
26
Ao indicar um pssaro e dizer, como comum, que ele um Shanenawavo,
isto um membro do Povo Azulo, ou simplesmente que yora (gente), um xam
marubo no est se referindo a este animal visvel diante de nossos olhos, mas sua
coletividade personificada que vive em outra parte. Os conflitos derivados da relao
entre pessoas viventes (kayakavi, assim como um corpo13, a expresso utilizada
para se referir s pessoas humanas ou viventes) e animais derivam disso. Ao agredir um
determinado bicho, a pessoa no se d conta de sua gente, que vive em outra parte e, de
l, vigia atentamente seu bicho. Prontas a se vingar (kopa) dos viventes pelas ofensas
causadas s suas carcaas, as gentes/duplos dos diversos animais acabam por causar
doenas.14
Os espritos yove, por sua vez, no tm a mesma composio que os bichos e os
viventes. Surgidos (antes e a todo instante) de um princpio transformacional que se
espalha por diversos suportes, a seiva/nctar nko, mas tambm de folhas e flores cadas
no cho, da saliva (kemo) derramada por um paj, de restos de rap (rome poto), de
ayahuasca e de outras substncias, os infinitos e diversos espritos no possuem
propriamente um envlucro para que se esvaziem por dentro ou para que se projetem
para fora. Parecem ser algo como um puro duplo (a vakse), como me explicaram. E
a pessoa vivente? No vamos enfoc-la agora como se passssemos ao prximo
elemento de uma tipologia e nem, alis, vamos esgotar agora nestas primeiras pginas a
composio e compreenso de bichos, humanos, espritos e outras singularidades,
uma vez que o assunto se encontra intrinsecamente relacionado a diversos outros
tpicos que sero expostos detalhadamente mais adiante.
H muitas e complexas aproximaes entre bichos, gentes e espritos, ainda que
os termos gerais que os nomeiam (yove, yoni, yora) no sejam sempre permutveis
entre si. No se diz de um marubo/vivente que um bicho (yoni), a no ser talvez de
modo pejorativo, muito embora, em certos contextos, possa se dizer que um esprito
yove (o que poderia ser dito tambm, alis, de um animal). Pajs (ou xams) so
chamados de yove vake, filho de esprito, ou de yove romeya, paj-esprito, quando
so mais poderosos. Ademais, os trs elementos em considerao partilham de um 13kaya = corpo; kavi = assim como. 14Em sua tese de doutorado, Montagner Melatti diz que o esprito do animal encontra-se dentro deste, da mesma maneira como nos seres humanos (1985: 133), numa direo distinta do que me disseram sobre os pssaros. A autora nota ainda que no h distino entre diversas almas (do lado esquerdo e do lado direito) para os animais, ainda que tenha observado que um dos espritos do animal [seja] dado por seus genitores (idem: 134) imagino que se refira aos seus genitores animais. Montagner observa ainda que os espritos dos animais domsticos vo encontrar seus donos no destino pstumo, localizado na Morada do Cu-Descamar (cf., ibidem).
27
mesmo predicado: so todos gente (yora). As pessoas ou gentes (yora) da poca do
surgimento (wena yoraras), os antigos cujos feitos so relatados nos cantos-mito saiti,
possuam afinidades mais prximas com os espritos (ou hiper-pessoas) yove: tinham o
ouvido suficientemente aguado para escutar a fala da terra, da gua e do cu;
mantinham condutas socio-alimentcias que permitiam tal estado e, sobretudo, no
pareciam estar submetidos replicao espacial que caracteriza os viventes atuais,
como veremos. Deslocavam-se enquanto tais (yorase nirvi) pelo cosmos; no saam de
seus corpos/carcaa para tal.
A despeito dos diversos aspectos/duplos que compem a pessoa marubo, cabe
antes ressaltar uma de suas caractersticas mais marcantes: seu corpo, ainda que possa
ser chamado pela mesma expresso que a aplicada aos animais, sua carcaa (aw
shak, mas no seu bicho, aw yoni), conjuga ou antes replica o espao externo na
dimenso interna. Ao menos assim para os viventes que, ao longo dos anos,
estabelecem maior contato com o mundo xamnico (na falta de uma expresso
melhor...), isto , com a complexa teia tradutiva composta pelos diversos espritos,
duplos e mortos.
nok shak yove-kea a-ro shovo 1pGEN oco/ventre esprito-CMPL 3DEM-TP maloca Nosso oco espiritizado uma maloca. 15
Esta uma opo para traduzir o que me disseram certa vez sobre o caso de
algum que participava com afinco das pajelanas, alimentando-se de ayahuasca e rap,
dialogando frequentemente com as gentes outras (os duplos dos mortos e os espritos
yovevo). A maloca externa dos viventes vai ento ser replicada (e fielmente) para
dentro.
Nok shak, nosso oco, uma expresso to complexa quando a sua correlata, nok chin (nosso peito ou nosso pensamento): precedida do pronome de primeira
pessoa do plural no genitivo (nok), o termo shak designa o dentro/oco fsico e a
regio do ventre (posto o termo para a barriga do lado de fora, veyo) frequentemente
atacada por dores (shak iska) e doenas. Ainda assim, shak estende-se alm do corpo
humano para designar, de um modo geral, o interior. Txaitivo shakni, por exemplo, a
15O neologismo espiritizar quer se diferenciar de espiritualizar: como veremos, trata-se aqui de um processo de transformao ou de alterao da pessoa, e no de uma elevao (do material em direo ao espiritual, como costumam conceber as msticas ocidentais e as tores ontolgicas dos neo-xamanismos urbanos).
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metfora ritual ou especial para designar o terreiro interno da maloca (kaya naki, shovo)
e poderia ser traduzida literalmente como dentro do grande gavio; pachekiti shak
outra expresso da linguagem ritual para ouvido, ptxo kini na lngua ordinria, isto ,
buraco/oco da orelha, e assim por diante.
O sentido amplo do termo encontra paralelo em outras lnguas pano, tal como no
caso do kaxinaw e do sharanawa. Kaxinaw: A sucury o engoliu, da sucury bucho da
banda de dentro (...) / caxinau do bucho da banda de dentro sahiu, caxinau amolleceu,
de vagar gritando est (dunw xa, dun xki mran, (...) huni ku xki mrn ka
kaw...) (Capistrano de Abreu 1941: 348, linhas 4000 e 4001). Em sua anlise dos cantos
de ayahuasca rabi dos Sharanawa, Dlage faz uma observao precisa: O cantor
descreve-se a si mesmo no processo de ingerir a ayahuasca. Trata-se ento, em um
primeiro momento, de uma descrio bastante ordinria: o cip ayahuasca, as folhas da
chacrona assim como suas flores (das quais so uma metonmia) so incorporadas ao
cantador. Estas descries so sempre introduzidas por uma frmula do tipo uhuun shaqui
bura-, no interior de meu ventre. O termo shaqui significa de fato um pouco mais e um
pouco menos que ventre. Poderamos traduzi-lo por aquilo que h no interior do
ventre, sem que se refira a um rgo em particular. Fala-se da mesma maneira de shaqui
(por extenso?) para se referir ao buraco de uma rvore. Trata-se ento exatamente de um
interior que se ope ao exterior da pele e dos desenhos corporais. (Dlage 2006: 265)
Os versos do canto sharanawa analisado por Dlage trazem uma estrutura similar
encontrada no exemplo kaxinaw citado acima: uhuun shaqui burari, no interior de meu
ventre (idem: 266), comparvel ao dun xki mran (dentro da barriga da sucuri).
verdade que, nestes dois casos, dentro o que traduz bura (sharanawa) e
mra (kaxinawa), termo presente tambm em marubo (mera), mas com outro sentido
(aparecer, encontrar, surgir). De toda forma, como aponta com preciso Dlage, shak
extrapola a referncia fisiolgica para expressar algo como uma complexa dimenso
interna. No por acaso que, durante o ritual de consumo da ayahuasca, os mestres (da
ayahuasca) so ditos estarem dentro do cantador: no interior de meu ventre/ com seus
mestres/ eles preencheram meu ventre (ua shaki badushon/ da ifofoyamu/ ua shaqui
badushon) (idem: 268). Se parece possvel considerar tal expresso como uma frmula
potica pan-pano; se possvel tambm considerar a noo de shak como tal dimenso
interna de especial rendimento para o xamanismo, a recursividade que a noo de shak
(oco) adquire no caso marubo uma particularidade sua. No caso sharanawa, no ocorre a
mesma replicao do espao externo no espao interno (como entre os Marubo), muito
embora o ventre/oco (shaqui) seja o ambiente onde, por ocasio do ritual de ingesto de
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ayahuasca, a referncia mtica (a morada dos mestres da ayahuasca) pode coincidir com
a pessoa do cantador: (...) a morada dos mestres (mana, nai) torna-se o ventre do
cantador (shaqui). A cosmografia, condicionando a ontologia das entidades observveis,
encontra-se assimilada ao interior do corpo do cantador. no interior do corpo do
cantador que se situam os mestres. (idem: 271). justamente isso, observa na sequncia
Dlage, que configura o estatuto de enunciao dos cantos rabi: para os Sharanawa
como para os Marubo, mas com suas devidas idiossincrasias, o enunciador um outro. O
xamanismo marubo, embora seja um xamanismo de ayahuasca, se diferencia de outros
casos pano tais como o sharanawa, kaxinaw, shipibo-conibo e yaminawa pois seu
problema no , a rigor, o da transformao, da sobreposio da pessoa do xam ao
esprito da sucuri/ayahuasca, e sim da multiplicao fractal da pessoa na mirade
personificada. O oco/maloca , justamente, o ponto de confluncia disso, como
veremos. Uma investigao aprofundada de outros exemplos pano (e amerndios, alis)
certamente traria mais dados sobre a noo de interior/ventre,
Nok chin, nosso peitopensar ou, na primeira pessoa, chin-nam (1sGEN peitopensar-LOC, em meu peitopensar), designa por sua vez uma dimenso localizada
no peito que no porm o prprio peito (shotxi) ou o corao (oti) fsicos, mas algo
como um espaopensamento, dentro de meu peitopensar. Pensar , a rigor, uma
traduo insatisfatria para o amplo espectro da noo de chin, traduzvel tambm
como vida ou princpio vital e estranha maneira ocidental de conceber a relao
entre mente e mundo. A noo envolve uma referncia espacial, na qual reside a
coletividade de duplos habitantes da pessoa marubo, responsveis, em larga medida,
pela performance intelectual da pessoa que os abriga. Por vezes, chin princpio vital
ser indicado pela pulsao das artrias nos antebraos; noutras, desenhado nestes
mesmos locais como uma pessoa, portando suas lanas e cocares de pena. Ora, os
duplos tm para si o corpo como uma maloca, assim como, para ns, so casas ou
malocas estes lugares nos quais costumamos habitar. H estgios de expanso ou
desvelamento deste interior replicado ou, parece-me, de familiarizao da pessoa com a
sua maloca e habitantes internos.
Kaxinaw: pensar, lembrar-se (Capistrano de Abreu 1911: 618); pensar,
xinan neikiki (xinan ne-), desmaiar, desorientar-se por ser muito velho ou estar
inconsciente, perder o conhecimento, isin tenei xinan nemisbuki, mavakatsida, quando
um doente est muito mal, perde o conhecimento e morre, xinan tseikiki (xinan tese-),
30
morrer (lit. no pensar mais, ma xinan teseaki, nun imiski juni mavakenan, j no
pensa mais, dizemos quando uma pessoa morre (Montag 1981: 405-406). Kapanawa:
shinan, pensamento (Loos 2003: 326). Amahuaca: pensar; vir visitar (Hyde 1980:77-
78). Mayoruna/matses: n 1. alma de um xam. 2. habilidade de caa, pontaria, fora e
valor que pode ser passado de um homem para o outro soprando tabaco ou aplicando
veneno de sapo no brao ou no peito (Fleck 2005: 104). Sharanawa: shina: verbo modal
que caracteriza a apreenso cognitiva do cantador nos cantos rabi ahuun rabi shinahuui/
shina ohui idiquin, eu vim pensar os cantos rabi/ eu pensei as suas palavras (Dlage
2006: 223). A anlise mais detalhada sobre o termo , novamente, a de Dlage para o
sharanawa, que oferece os seguintes sentidos: lembrar-se, imaginar, perder ou
esquecer (shina-funo); lembrar-se exatamente ou visualizar (shina-pai); shina-butsa,
uma espcie de melancolia relacionada a lembranas agradveis de uma poca que no
voltar mais, ichapa shina- pensar com tristeza numa pessoa ausente (idem: 224). A
observao conclusiva do autor pertinente: Em todos os casos, esta raiz verbal evoca a
apreenso de uma realidade cujo status ontolgico sensivelmente distinto daquele da
percepo ordinria. Sem pretender esquematizar demais a sua significao, parece-nos
que este verbo particularmente bom para descrever o tipo especfico de apreenso
exigido pela categoria de yoshi a apreenso de uma imagem relativamente paradoxal
que no suscetvel de ser partilhada de maneira direta pela ostenso. (ibidem). O autor
observa ainda em outra passagem que xam em sharanawa se diz tambm shinaya, com
o shina (idem: 224 n), ou ainda que consome-se o corao das sucuris, porque ele a
sede do shina da anaconda, isto , de suas capacidades cognitivas (idem 320-321). Os
sentidos de shina, xinan, chin so razoavelmente constantes no conjunto pano e valem
tambm para o marubo, cujos pajs-rezadores tambm podem ser chamados de chinya,
de maneira semelhante ao caso sharanawa.
No caso marubo, os sentidos so diversos: um substantivo referente ao
princpio vital (chin, passvel de ser transmitido e transportado e, nesse sentido, talvez
prximo do sho matis (cf., Erikson 1996: 200 e segs)), provavelmente homnimo de um
dos duplos ou aspectos internos da pessoa (chin nat); um componente dos termos que
se referem a inspirao (chinvia) e expirao (chinvipa); um verbo que caracteriza um
processo de cognio e de visualizao (o que traduzimos como pensar, chin, e suas
derivaes tais como esquecer, chin venoa, preocupar-se, chin tsaka, lamentar-se,
chin ronaka, entre outros) e outro que designa deslocamento espacial (manari chinini,
indo a montante, por exemplo). Pensamento certo, mas um pensamento referente
distncia ou ausncia, como bem observa Dlage para o sharanawa, e um pensamento
visual ou uma imaginao, cuja sede, alis, o peito e no o crebro este mesmo peito
que abriga duplos (homnimos?), chin, responsveis pela inteligncia de uma pessoa
31
(isto , pelo seu pensamento, chin...) e passveis de se destacarem do corpo/casa,
causando a morte da pessoa. Os pajs, yora chinya, gente pensadora, so os
especialistas neste pensamento visual dos deslocamentos e distncias, caracterstico da
fala pensada ou chin vana que constitui os cantos de cura. Deslocam-se
intencionalmente atravs do cosmos, alis, via suas almas ou duplos chin nat, que
vivem dentro da maloca/corpo.
A recursividade espacial que caracteriza a noo de chin torna-se visvel no
trecho abaixo, onde o jovem professor Robson Venpa, de quem falaremos bastante
nesta tese, relata seu processo de transformao em paj romeya (um dos dois tipos de
xams ou pajs entre os Marubo):
De incio narrando algo que teria acontecido a seu vak (alma/duplo), o jovem
romeya Venpa disse que, certa feita, chegou numa maloca vazia. Havia macaxeira cozida
dentro dos paneiros, pendurados nas traves das sees familiares, e pessoa alguma. Ele
escutou cantos saiki vindos de longe. Do fundo do roado, viu gente chegando. Eram os
yove, que de pronto disseram: o que voc est fazendo aqui?. No sei, eu cheguei
aqui, ele respondeu. No, voc vai morrer, no venha para c!. No, eu estou bem,
no vou morrer, voc no est vendo?, disse Venpa. Voc vai morrer. Ns no
estamos te enganando no, venha ver!, falaram os espritos. Levaram-no ao hospital em
Tabatinga. Venpa viu lcool nas prateleiras. Viu a si mesmo deitado em uma maca,
moribundo. Ento entendeu. Vocs no estavam mesmo me enganando. , em dois
dias voc vai morrer, os yove disseram. Ele viu a enfermeira Solange e uma mulher
branca chorando, perto de seu corpo deitado na maca.
Foi a que ele conheceu Isko Osho [Jap Branco, seu duplo auxiliar], que veio
chegando junto com Kana Ina (Rabo de Arara) e os espritos do gavio coco16 (shpei
vakras). Trouxeram um fruto do tamanho de uma laranja e o quebraram em sua cabea.
O fruto entrou nele (naki erekoa). Ele no sabia, no entendia. Ficou com a carne dura
como pilastra de maloca, com o sangue novo. Mvia e Solange, as enfermeiras, estavam
l [Venpa diz apenas isso, mas provavelmente estavam no hospital, o evento
acontecendo em duas referncias simultneas]. Os yove enfiaram dardos mgicos rome
em seu plexo solar (takaperiti) e em suas costas (petsi). As enfermeiras brigaram porque
ele estava com soro na veia (soro txiria) [Venpa passa da narrativa do evento dentro da
maloca dos espritos para a narrativa do que ocorria no hospital, como se o processo fosse
o mesmo, mas em planos distintos]. As enfermeiras davam cachaa para ele em colheres;
16Daptrius americanus
32
parecia a substncia nko. Alguns nawa romeya (curandeiros/pajs peruanos) que
haviam trazido a cachaa. 17
A maloca em que Venpa encontrou os yove, explicou-me, era dentro de meu
peitopensar, que at ento eu no tinha/conhecia18. Alguns Marubo me diziam que
apenas os romeya tm malocas dentro de seu peito/oco/ventre (chin, shak), muito
embora a informao seja frequentemente desmentida em outros relatos e contextos,
quando fica claro que pessoas comuns tambm possuem (ou podem possuir) a mesma
composio espacial interna. De toda forma, o relato acima indica um dos processos
atravs dos quais o jovem Venpa se transformava em romeya: como se virar paj
implicasse, entre outras coisas, em adquirir ou tornar-se consciente desta dobra interna,
transformar-se pela replicao19. O episdio das enfermeiras, esclarece Venpa, deu-se
entretanto fora, no hospital, onde ele jazia enfermo. O que revela um paradoxo: fora de
onde, j que a descoberta toda ocorre dentro, isto , nesta regio a partir da qual Venpa
podia ver o que se passava alhures com ele prprio?
Uma maloca interna traz para dentro, no apenas uma dimenso espacial, mas
todas as dinmicas sociais que a constituem. E quem so as pessoas que habitam20 esse
espao? Quais relaes entretm? Seria necessrio que o leitor j tivesse em mente os
esquemas cosmolgicos e escatolgicos aos quais a noo de pessoa se encontra
atrelada, mas necessrio comear a escrever a partir de algum ponto arbitrrio, ou
antes estratgico, j que gente/pessoa o idioma que inspira o sistema marubo, suas
imagens-chave, as metforas-raiz21 pelas quais se constitui.
17Langdon (1992: 57) oferece um relato de iniciao xamanstica entre os Siona similar a este, no que concerne viso pelo nefito de si mesmo morto, um recorrente tema xamanstico, alis (ver Eliade 1998). 18 chin-nam, ati ea yama 1sGEN chin-LOC TEMP 1sABS NEG 19Algo similar ocorre entre os Mamaind e a possibilidade de visualizao de seus adornos-alma internos (cf., Miller 2007: 185). 20Tambm os Kaxinaw dizem que seus corpos so habitados (hiwe-a-ki) por espritos (Keifenheim 2002: 100). 21O termo utilizado por Marilyn Strathern em seu contraste entre o regime melansio do dom e o ocidental da mercadoria. o que escreve a autora: Assim, meu interesse neste debate sustenta-se no uso que quero de toda forma fazer do conceito de dom. uma de minhas fices a ser empregada em sua definio relacional vis--vis sua contrapartida, a mercadoria. O par de termos oferecem um eixo para considerar uma gama de contrastes entre as sociedades melansias e as sociedades do mundo ocidental, das quais os constructos analticos das cincias sociais inicialmente derivam. O eixo pode ser considerado como uma diferena entre metforas-raiz: se, numa economia de mercadoria, coisas e pessoas assumem a forma social de coisas, ento, numa economia do dom, elas assumem a forma de pessoas. (1988: 134). O ponto fundamental e em muito inspira esta tese, guardadas as devidas diferenas entre os contextos melansios e amerndios (cf., Descola 2001).
33
A diversidade dos duplos
Vamos ento partir de uma distino geral entre componentes/duplos de destino
terrestre e de destino diferenciado: de um lado, os duplos-morte (vei vak ou yama
vak), duplo solitrio (mo vak), duplos da urina e das fezes (is yoch e poi yoch),
sombra-morte ou sombra dos corpos (vei vakchi) e duplo do lado esquerdo (mechmiri
vak), todos de destino terrestre; de outro, os duplos do olho (ver yoch), o duplo do
lado direito (mekiri vak) e o duplo do peitopensar (chin nat), todos estes com destino
ps-morte diferenciado. O velho paj rezador (kchtxo) Paulino Mempa me explicou
(e a seu modo, pois h maneiras diversas de se considerar a questo) a composio da
pessoa nos seguintes termos, que esquematizei assim:
1. chin nat: ncleo do peitopensar
Tm por destino a Morada do Cu-Morte, onde vai viver com seus parentes dentro da
maloca-morte. Este o nosso duplo.
2. mechmiri vak: duplo do lado esquerdo
Tm por destino ficar numa parte qualquer da Morada da Terra-Morte (esta terra).
3. mekiri vak, duplo do lado direito
Tende a ir pelo Caminho-Morte, at o Cu-Morte
4. ver yoch, duplo do olho Vai embora da Morada da Terra-Morte, vai para o Cu-Morte, onde esto as nuvens.
H apenas um duplo do olho, e costuma ir para o Povo do Cu-Morte.
5. yama vak, duplo-morte
Vai ficar sentado em uma bananeira, em sua sombra.
6. mo vak, duplo solitrio/rfo
Vai ficar em um monte de terra qualquer e virar cupim.
7. vei vak, duplo-morte (sinnimo de yama vak)
a sombra, vai ficar dentro da maloca (externa) onde vivia a pessoa, causando
insnia e doena aos parentes. insensata e assustadora.
Mempa dizia: nok vak, nok yora, nosso duplo, nosso corpo . Outra
sentena paradoxal, uma vez que o termo yora designa tanto corpo (humano, animal,
mas tambm o tronco de uma rvore, por exemplo) quanto gente, sendo semanticamente
prximo a noke, o pronome de primeira pessoa inclusiva plural, ns, por contraste a
nawa, estrangeiro. O que traduzimos por duplo, vak, equiparado ao que
34
traduzimos por corpo, yora, termo que designa tambm a inclusividade, gente, ns,
yora. Creio que no se trata de uma simples homonmia, mas de uma noo complexa,
traduzvel talvez por corpogente ou algo assim. A questo est sujeita a revises.
Todavia, certo que, assim como as carcaas (shak), os duplos (vak) possuem
tambm corporeidade, justamente por serem gente e terem para si mesmos ossos e
carne, mesmo que, em certos casos, sejam mais leves e sabidos do que o continente que
os abriga. Todo corpo/gente tm dentro de si duplos que so eles prprios
gentes/corpos... Poderamos ir ao infinito, mas a recursividade se detm quando o vetor
est apontado para dentro: o ncleo do peitopensar (chin nat) no tm ele tambm um
corpo/maloca com duplos dentro de si. Benfazejo e sabido, o chin nat como um
esprito yove, ntegro, sem um interior que o [i]limite, como no caso dos viventes.
Integridade ou inteireza parece mesmo ser uma caracterstica dos espritos yove e dos
aspectos da pessoa que deles se aproximam. Como veremos, a unidade em questo para
o sistema marubo dois: o par yora/nawa (gente/estrangeiro, falaremos sobre isso na
parte IV) homlogo ao par yora/vak no que compete s suas lgicas recursivas e
reflexivas. Um duplo (vak) entende-se a si mesmo como um corpo/gente (ari tanro
yorarvi, 3-RFL 3ERG entender-TOP gente-ENF); ns (noke) somos gente/pessoas
(yora), muito embora divididas em diversos povos (nawavo) estrangeiros (nawa, yora
wetsa), consequentemente, para o ponto de vista de pessoas outras que no ns mesmos.
A dupla yora/vak complexifica ou dispe de outra maneira as idias do invisvel e do
incorpreo, e no pode ser reduzida aos nossos sentidos imediatos de termos como
alma (ou mesmo esprito, mas necessrio escrever de alguma maneira) isto ,
aquelas entidades que so por definio incorpreas e invisveis. O que distingue a
dupla yora/vak no uma oposio entre duas dimenses irredutveis (este mundo
verdadeiro das coisas l fora, o mundo real, e a dimenso imaginria e fugaz do
invisvel): no uma distino opositiva (s tenho A se no tiver B), mas uma distino
complementar.
Noes recorrentes nas culturas amerndias tais como o vak marubo, os
karon/garon j, a e o tao we dos Arawet, entre outras tantas, parecem orbitar em um
campo semntico distinto daquele que caracteriza as noes de alma de nossa herana
clssica, muito embora a etnografia se utilize frequentemente da mesma palavra. Aqui, a
idia menos a de descartar palavras como alma ou esprito e mais de aproxim-las ao
sentido adquirido na conceitualidade marubo, para a qual, de toda maneira, a noo de
35
duplo me parece mais produtiva (ou tradutiva), tendo em vista as oposies
tradicionalmente vinculadas ao par alma/corpo (acidente e essncia, contingncia e
necessidade, material e imaterial, etc). Pretendo com isso evitar interpretaes engessadas
como a de Townlsey (1993: 455), para quem a pessoa Yaminawa tm trs componentes,
um fsico (o corpo ou carne, yora) e outros dois no-fsicos (o diawaka e o
wroyoshi, sombra e alma). O caso marubo tambm no poderia ser traduzido pelas
consideraes deste mesmo autor, quando diz que o wroyoshi dos Yaminawa uma
entidade talvez muito prxima de uma idia europia de alma. a essncia vital de uma
pessoa, a coisa que anima e d vida. Sem o wroyoshi, explicou-me o mesmo
Yaminawa, esse corpo apenas carne (ibidem). Oposies incontornveis do tipo
material/imaterial e fsico/no-fsico, como veremos, no se adequam ao carter recursivo
da pessoa e da cosmologia marubo.
Em uma reviso recente da literatura etnolgica sobre os J, Coelho de Souza
(2002) notou por exemplo que os kar/karon/garon, as almas, no so encaradas como
uma questo de doutrina, mas como algo aberto inspeo emprica, j que denotam
no uma substncia, mas um modo de ao (:536). O karon estaria presente ali onde se
manifesta (:534) escreve a autora, ecoando as consideraes de Surralls sobre um grupo
Jvaro da Amaznia peruana. Para os Candoshi, vani no um atributo, como por
exemplo possuir um nariz, mas uma condio que se define em termos relacionais,
precisamente a partir da possibilidade de se estabelecer comunicao (2003: 46). No
substantivo, mas adjetivo que se refere a uma animao intensa (ibidem), vani
compartilha com os termos j acima mencionados ainda outra caracterstica: a de ser
dado, j que presente antes mesmo do nascimento, e por isso oposto aos corpos,
construdos ou humanizados por modos diversos tais como a alimentao, o convvio, a
ornamentao (idem: 43; Coelho de Souza 2002; Viveiros de Castro 2002b)1. Dadas,
decerto, mas nem por isso fixadas ao interior, mesmo que vinculadas individualidade da
pessoa: duplo, sombra, imagem, essas conotaes implicariam que a alma no tanto o
que est dentro quanto o que se projeta fora (Coelho de Souza 2002: 540). Para os
Wari, a alma s existe quando o corpo est de alguma maneira ausente: nos sonhos, em
doenas srias (...) e na morte (Vilaa 2002: 361). Ora, mas essa alma (jam) no
exatamente um elemento etreo e fugaz e possui uma caracterstica paradoxal: A alma
dos xams, as nicas pessoas que possuem uma alma onipresente, simplesmente um
corpo animal (ibidem), tornando assim possvel a interao social do xam com as
pessoas-animais, que tambm se definem como gente (wari) a partir de seus pontos de
vista (cf., Vilaa 1999: 245). Outro paradoxo perspectivo notvel entre os Mamaind:
Para os Mamaind, do ponto de vista dos outros, a alma (yauptidu, esprito) um corpo
enfeitado, ou o prprio enfeite corporal (wasaindu). (Miller 2007: 175-176).
36
Carneiro da Cunha (1978: 10-11) e Viveiros de Castro (1986: 498) propuseram uma
aproximao entre estes aspectos da pessoa amerndia e a noo de duplo utilizada por J-
P. Vernant em seu estudo sobre os kolossoi gregos (Vernant 1973: 267). Viveiros de
Castro escrevia que o tao we um corpo, mais que tm um corpo: puro em-si, corpo
reduzido afinal condio de objeto sem sujeito. um corpo vazio, o envoltrio de uma
sombra. O tao we gerado a partir da do vivente, sua sombra. A sombra tica do corpo,
, designada como tao we r, o que ser tao we. (...) sombra materializada, ele o
inverso radical do vivente, onde o corpo que projeta uma sombra que lhe servil; o tao
we uma sombra livre, projetada por um cadver imvel (1986: 498). A passagem
apresenta bem o problema da corporalidade dos aspectos da pessoa que caracteriza o caso
marubo e que pretendo enfocar aqui. Lima sobre os Juruna: Enquanto as peles so o
invlucro da pessoa, a alma um de seus rgos internos, podendo ser ejetada como um
duplo. Se viva (e sensata ou astuta, sbia), a pessoa contm outra similar dentro de si, a
alma que um outro, o outro que se tornar ao morrer. (2005: 337) Para o caso marubo,
traduzo por duplo os dois aspectos da pessoa que Viveiros de Castro e Lima decidem
traduzir por alma e duplo: ainda que os vak internos pessoa tambm possam ser
ejetados para fora da pessoa ou retirados por algum (passariam s a ento a ser
duplos, se segussemos Lima risca), o sociocosmos e a pessoa marubo so de tal
maneira auto-similares ou recursivos, que o emprego dos dois termos poderia tornar
confusa a exposio de sua etnografia. Crio neologismos para identificar cada um dos
aspectos componentes da pessoa, em seus distintos estados (pr ou ps-morte), mas
traduzo pelo mesmo termo (duplo) a noo de fundo que os engloba. A idia facilitar a
compreenso da dinmica replicante que caracteriza o pensamento marubo e sua
vertiginosa potica xamanstica, alm de evitar possveis projees semnticas
equivocadas.
Interpretar a oposio entre duplos e corpos nas cosmologias amerndias por meio
de cises tais como as de Townsley conduz a uma espcie de platonismo (cf., Viveiros de
Castro 2000, republicado em 2002: 444. Uma crtica a tal ponto est tambm em Lagrou
2002: 50): um suposto domnio verdadeiro e invisvel, dos duplos, se ope a um outro
ilusrio e visvel, dos corpos, ao modo da interpretao do xamanismo yekuana por
Guss (1990). curioso que, a despeito disso, o autor encontre ali uma reproduo de
estruturas nos nveis macro (cosmos) e micro (pessoa) homloga quela comentada
por S.Hugh-Jones (2002) para a casa dos Barasana (noroeste amaznico) e, em outros
termos, noo de corpo/dono/chefe recentemente estudada por Costa (2007) em sua
tese sobre os Kanamari (Vale do Javari). Parece que as cosmologias amerndias tm
mesmo uma queda, no sentido literal, pelas auto-similaridades escalares, das quais o
caso marubo mais um exemplo, entre outros tantos (ver por exemplo o intrigante artigo
37
de Rodgers (2002) sobre o xamanismo Ikpeng). A fractalidade coloca problemas distintos
dos derivados a partir de polaridades tais como parte/todo, em muito incompatveis com o
pensamento amerndio. A raiz do problema e sua formulao mais abrangente est em
Viveiros de Castro (2000, republicado em 2002), onde o autor prope um modelo
recursivo como alternativa hieraquizao dumontiana para a anlise do parentesco
amerndio.22
No tocante pessoa, Lima exps bem o ponto, a partir do trabalho de Wagner,
referncia tambm para Viveiros de Castro: A pessoa fractal no um todo, no um
princpio de totalizao, mas o que seccionamos e tratamos como ponto de referncia em
um certo campo relacional. Tampouco uma parte, pois no pode ser destacada de um
todo. Ela s se evidencia por sua relao com outras e, o principal, suas relaes externas
so suas prprias relaes internas, as mesmas que a constituem por dentro. (2005: 121-
122 grifo meu). O ponto inviabiliza a manuteno de relaes duais estanques tais como
corpo/alma, material/imaterial, invisvel/visvel, pelas quais costumam ser explicadas as
teorias amerndias da pessoa. Proponho aqui uma interpretao similar para o caso
marubo. Se uma teoria explcita ou implcita (Taylor 1999: 209-210) da pessoa
elaborada pelos xams marubo; se pessoa um centro de irradiao ou de inspirao para
todo o pensamento marubo e talvez constitua uma teoria autctone, esta parece poder
ser interpretada pela idia de fractalidade (mas no explicada assim, pois aqui no
estamos, tal como no estava Wagner, preocupados em generalizar ou particularizar a
relao entre o geral e o particular (1991: 163)). Guardadas as devidas diferenas entre o
caso marubo e o contexto melansio, a seguinte passagem de Wagner bastante til:
Uma pessoa fractal no jamais uma unidade colocada em relao a um agregado, ou
um agregado colocado em relao a uma unidade, mas sempre uma entidade com a
relao integralmente implicada (ibidem). A pessoa marubo no uma totalidade que
engloba seus duplos internos como partes, mas uma entidade que reproduz o exterior no
interior23, isto , que replica as dinmicas do parentesco para distintas posies.
Traduzindo cantos com trs pajs em um hotel de Cruzeiro do Sul, fechados em
um quarto cercado de quatro paredes de alvenaria, sentados diante de um computador,
Lauro Panpapa me explicou: quem pensa no o hotel, mas ns que estamos dentro
dele. Um corpo um corpo apenas para ns: na posio de quem o habita, trata-se de
22Luciani colocou bem o ponto recentemente: Tudo isso , basicamente, uma expresso do carter contextual das categorias ns/outros a que nos referimos antes,e uma outra expresso da fractalidade: a pessoa-como-grupo uma verso em escala ampliada da pessoa-como-indivduo e uma verso duas vezes ampliada da pessoa-como-parte. (...) a personitude fractal implica que relaes entre pessoas, em qualquer escala, so rplicas umas das outras, isto , so auto-similares. (2001: 102). 23Extrnseco no incio, o tubo se torna intrnseco, dizia Lvi-Strauss na Oleira Ciumenta (1986: 203).
38
uma maloca, entre outras tantas que estes habitantes internos vem para si, parte das
que vemos ns, aqui, nesta carcaa. Como uma tartatuga, completava Venpa no
mesmo quarto de hotel: a pessoa (yora) est dentro para me fazer falar. Quando saem de
casa, o fazem assim como ns, em carne e osso:
nami kayavaki kesk-se, kayakavi ka-rvi, nitxi-rivi carne vivente SML-EXT vivente ir-ENF em.p-ENF Tm carne igual de vivente, ficam de p como viventes, a-ri tan-ro aya nami 3DEM-RFL 3DEM.GEN entender-TP ter carne em seu entender eles tm mesmo carne.
Na fala de Venpa, o uso do sufixo reflexivo ri o detalhe essencial. O chin
nat (duplo do peitopensar), em prejuzo ou no da pessoa, pode ento se mudar,
assim como os marimbondos mudam-se de suas casas, ou como Felipe mudou de
maloca, exemplificam. Nisso se constituem, alis, as operaes xamnicas de
transporte: a ingesto de determinadas substncias psicoativas24 deve fazer com que a
pessoa se espiritize (an yove-a FIN esprito-VBLZ), isto , possa partir, sem
prejuzos pessoa-suporte. As pessoas da poca do surgimento, entretanto, mudavam-se
enquanto tais, ao passo que, hoje, quem se muda so os duplos, enquanto o corpo fica
deitado na rede vazio. Yora shak, carcaa de corpo, corpo vazio. O termo shak
tambm utilizado para designar qualquer contedo vazio de seu continente: tapo shak,
uma casa vazia, abandonada, a shakarvi, est mesmo vazio, sem utilidade. Mas a
questo pode ser recursiva: os duplos no se mudam justamente enquanto tais e, dentro,
no so eles o mesmo que fora, tudo dependendo apenas da posio que ocupam? A
ingesto de substncias psicoativas e outras visam alterar o chin da pessoa, tornando-o
apto para os transportes sociocsmicos (onricos ou no, importa pouco), entre outras
aptides de que trataremos mais adiante.
Retomemos a lista dos duplos de que tratvamos acima, que vai se
complexificando com novas informaes. Os yora yochi , duplos terrestres desprendidos
dos mortos, tambm habitam a maloca/pessoa: eles esto vivendo dentro de nossa
maloca, mas ns no sabemos25 pois, como dizia Tnia Lima sobre os Juruna o
24 Tratam-se, sobretudo, da ayahuasca (oni, Banisteriopsis caapi), do rap de tabaco (rome), do mata-pasto (kapi, Senna alata), do lrio ou trombeta (waka shpa, Brugmansia sp), das seivas adocicadas de diversas rvores (nko), e do vegetal tachi (no identificado), entre outros. 25 Noke shov-se ni-s-me ki noke tana-ma 1p maloca-EXT viver-EXT-conj 1p endender-NEG
39
sujeito e seu duplo se ignoram (Lima 1996: 36; ver tambm algo similar em Viveiros
de Castro 1986 sobre o tao we arawet). Surgidos das fezes e da urina, so duplos
(vak) tolos e mudos. Nossas sombras (yor yoch) transformar-se-o em distintas
espcies de batrquios (ach, tokore), e