Realismo grotesco e carnavalização no contexto de Hermilo Borba Filho

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Realismo grotesco e carnavalização no contexto de Hermilo Borba Filho

Adriana Bertolucci Reis de Souza

Bakhtin denomina realismo grotesco a herança modificada da cultura cômica popular. Nele, o princípio da vida material e corporal surge como forma universal, festiva e utópica em que há a ligação indivisível do cósmico, do social e do corporal. O agente desse princípio é, então o povo, e não um ser isolado. O princípio material e corporal se opõe à separação das raízes materiais e corporais do mundo, do isolamento, fazendo com que o corpo tenha eterna ligação com a terra.Um traço marcante do realismo grotesco, portanto, é a transferência de tudo que é elevado, espiritual e abstrato, para o plano material e corporal (terra com o corpo). Tal traço caracteriza o rebaixamento: a aproximação da terra e a corporificação. O ponto central dessa característica é a fertilização e o crescimento. Estas premissas carnavalescas permitem ver o mundo de uma forma dialógica:

O corpo grotesco em suas formas carnvalescas [...] é uma metáfora válida, que podemos utilizar para compreender o contraste entre duas visões de mundo em uma mesma cultura. Por um lado, Bakhtin concebe o corpo como individual e fechado, auto-suficiente e isento de qualquer relação com outros corpos; por outro lado o coloca em uma relação intercorporal. Trata-se de um corpo aberto, com protuberâncias e furo, visto em todos os comportamentos que inevitavelmente o relacionam com o exterior. Encontramos assim o fechamento para a identidade e a abertura para a alteridade (PONZIO, 2010, p. 25).

Todas essas características do realismo grotesco, assim como o princípio da vida material e corporal são encontradas na obra de Rabelais. Nelas, há imagens do corpo, da bebida, da satisfação de necessidades naturais, da vida sexual, conservando sua natureza original e diferenciando-se das imagens da vida cotidiana, preestabelecidas e perfeitas. Ocorre uma nova construção das imagens clássicas que as trespassa, dando a elas um sentido diferente: “São imagens que se opõe às imagens

clássicas do corpo humano acabado, perfeito e em plena maturidade, depurado das escórias do nascimento e do desenvolvimento” (BAKHTIN, 1996, p. 22).Hermilo Borba Filho, dramaturgo pernambucano do século XX, escreveu textos de grande importância para a literatura moderna brasileira. Ajudou a construir e disseminar por todo o país a cultura nordestina. Dentre suas várias obras destacam-se História do Teatro (1953); Os caminhos da solidão (romance 1957), Os ambulantes de Deus (novela de 1976) e O general está pintando (Contos, 1973) – obra que será tratada aqui.O general está pintando é a primeira coletânea de Hermilo Borba Filho. O título da obra é retirado de um conto. Nessas narrativas, o mágico, o fantástico e o maravilhoso andam de mãos dadas com a realidade nordestina e nela se encontram. O livro, contém doze novelas [como o autor chama cada texto] que, em uma leitura completa, percebe-se que são ligadas entre si. Alguns personagens principais são citados como personagens secundários em outras, assim como algum espaço físico da cidade também reaparece. Portanto, é a narrativa de uma mesma cidade nordestina que presencia a existência do fantástico e do real ao mesmo tempo.Em suas obras, Borba Filho faz constante ligação com a cultura popular. De acordo com Bakhtin, Rabelais também tem uma ligação profunda com fontes populares, determinando seu conjunto artístico. De alguma maneira, é possível entender a obra de Borba Filho integrada à tradição rabelaisiana de representação do realismo grotesco. As manifestações culturais, como festas públicas e carnavalescas, compõem parcelas da cultura popular cômica, fazendo-se presente nas obras de ambos os autores. Além disso, o riso, o humor literário que aproxima-se da carnavalização também estão muito presentes. De acordo com Bakhtin, há três divisões das múltiplas manifestações dessa cultura carnavalesca que, apesar de separadas pelo crítico, são estreitamente inter-relacionadas. Elas tratam da forma dos ritos e dos espetáculos, das obras cômicas verbais e também dos diferentes gêneros do vocabulário grotesco (cf. Introdução de Cultura popular na Idade Média e no Renascimento).Os festejos de carnaval são manifestações constantes nas obras de Hermilo Borba Filho. A teatralização da vida pernambucana é feita por espectadores que vivem e compõe o carnaval. Para Bakhtin, esse tipo de carnavalização é em sua natureza feita para todo o povo:

Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo. (…). Durante a realização da festa só se pode viver de acordo com as suas (do carnaval) leis, isto é, as leis da liberdade (BAKHTIN, 1996, p. 06,).

Tal liberdade transforma-se, portanto, em festa de uma vida secundária do povo. É a fuga do cotidiano opressivo da cidade, do trabalho, da ordem, do contexto oficial. É a representação da desordem, a eliminação provisória das divisões hierárquicas, inversões, aterrissagens etc. Dessa forma, cria-se uma nova rede de comunicação entre toda a população, impossível de ocorrer na vida ordinária da sociedade: “Os heróis dissolvidos no corpo do povo, o discurso ainda fervilhante na luta social e os conflitos e energias carnavalizadas que caminham conjuntamente permitiram essa construção e percepção de uma poética dialógica no gênero” (RODRIGUES, 2009).Na obra de Borba Filho, há personagens que têm nos festejos a própria vida representada. É o caso do Almirante Siri, da novela “O Almirante”. Ele é capitão-geral do fandango de sua cidade e nos momentos de folga de almirante, dedica o tempo para os ensaios de sua banda. Não há nada mais importante e de maior valor do que seu encontro com o fandango. É uma brincadeira levada à sério e com alto grau de responsabilidade, onde o jogo se transforma em vida, e a realidade passa a ser o ambiente fantástico.Entende-se que as novelas de Hermilo Borba Filho são, portanto, um texto de narrativa carnavalesca. Nelas, são narradas a vida fantástica a partir de uma linguagem específica popular. A própria forma do texto, que apresenta um escasso uso de pontuação, contribui para proporcionar ao leitor sequências de imagens difusas e oníricas que se confundem na passagem de uma para outra. São constantes referências à ações extra-cotidianas e à liberdade que estende-se ao próprio estilo. Há, também, o uso de apelidos e epítetos injuriosos que adquirem tom afetuoso, uma linguagem familiar de praça pública. De acordo com Bakhtin, essas formas de comunicação verbal, na modernidade, “[...] não necessitam polir a linguagem nem observar os tabus, podem usar, portanto, palavras e expressões inconvenientes, etc.” (BAKHTIN, p.14, 1996).É essa linguagem carnavalizada de Borba Filho, que faz com que

obras como as novelas reunidas em “O general está pintando” dê um caráter universal, um clima de festa e um ar fantástico para suas histórias. Ocorre um acúmulo de expressões verbais ditas 'proibidas' que são eliminadas da comunicação politizada e usadas especificamente nos dias de festejo – desdobramentos dos discursos da praça pública, da feira, da rua, do discurso humorístico etc.: “Esse bom humor é algo precioso e positivo em Hermilo e, estranhamente, se mantém até quando ele aborda o trágico e se equilibra ali sem perder o sentimento de tragédia, o que, finalmente, resulta no patético, como nas histórias de “O palhaço” e “O general está pintando” [...] (OLIVEIRA, 1993, p. 11). Esse humor é carnalizado e as imagens do povo compõem a visão prosaica de Borba Filho.A partir da linguagem não-oficial e da composição de imagens extra-cotidianas, Hermilo Borba Filho compõe o que Bakhtin chama de realismo grotesco. Para o crítico, essa expressão é o que caracteriza a concepção estética da vida prática existente na obra de Rabelais.  Em ambas obras literárias, encontra-se o desejo pela carne, pelas satisfações das necessidades naturais, o princípio da vida material e corporal. Em “O general está pintando”, há personagens que constantemente caem na perdição do desejo pela ação carnal, pelo sexo, pela bebida e pela gula. Tais desejos fazem parte de um conjunto de ações que compõem o dia dessa sociedade.Para Bakhtin, o “cósmico, o social, e o corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível.” (BAKHTIN, p. 17. 1996). É a eterna ligação do corpo com a terra e que em ações como o coito, a fertilidade e a morte, ocorre o rebaixamento.O realismo grotesco bakhtiniano, portanto, está presente na atmosfera de necessidades naturais do homem de Borba Filho. A abundância e universalidade são compostas não individualmente, mas por todo o povo. Por isso há em suas imagens um caráter de exagero das ações que acabam determinando o tom alegre e festivo. É possível encontrar tais características em novelas como “O Almirante”e “A gravata”. Na primeira, o Almirante Siri sacia todo seu desejo de gula em um banquete que não era destinado a ele. E depois de comer tamanha fartura, ele se rende aos efeitos do álcool. Todas as imagens dessa cena fazem referência ao exagero do mundo material: a bebida, a comida a digestão:

O Almirante atrapalhou-se um pouco com a salada de maionese

onde havia, de mistura, salmão e arenque, mas o vinho branco lhe foi dando ânimo e calor, ouvia um zumzum da conversa, ora se voltava para a anfitrioa, ora para uma senhora mais gorda que uma porca bem cevada, balançava a cabeça, sorria. Quando teve de servir-se do peixe o bicho escapuliu, dançou na beira da travessa, a senhora gorda deu um gritinho, o peixe aprumou-se, toda a mesa caiu na gargalhada, o Almirante é formidável!, mas o Almirante estava a essa altura suando mesmo, de agonia, dele já se exalava o cheiro do bodum, discretamente a anfitrioa levava o guardanapo no nariz. (BORBA FILHO, p. 11, 1917).

Percebe-se claramente nesse trecho o grotesco na mesa de jantar. Primeiro há a imagem do personagem que não têm o costume de se sentar numa mesa com diversos tipos de comida que ele, aparentemente, jamais tivera algum tipo de contato anteriormente. Uma experiência que está fora do seu cotidiano. Depois o efeito do álcool começa a mudar a percepção e a visão desse personagem. O narrador compara uma mulher que está sentada na mesa com um porco que, entretanto, está sorrindo. E após a descrição da falta de costume para manusear a comida, o narrador fala do mau cheiro que o Almirante já começa a exalar no meio do jantar. Tais ações não são ordinárias, comuns no dia a dia do leitor.Já na segunda novela citada, os desejos realizados são os desejos sexuais de Antão Locerpa com Maria-dá-de-Graça. A linguagem usada por Hermilo compõe a atmosfera suja da relação carnal dos dois:[...] não demorou nada e Maria-dá-de-Graça já se chegou, eu disse, com aquele mesmo gesto seu de arregaçar o vestido, foi só ver a bela rosa-escura Antão Locerpa nem sequer se deu ao trabalho de se virar para o melhor, só fez desembainhar e ela, Maria-dá-de-Graça, se acomodou, as ancas sobrando para os lados, tudo no mais profundo, ele cruzou as mãos por baixo da cabeça e ela, sustentando a saia nos dentes, era só um tal de subir e descer, até sentir que primeiro o dele chegou, pela inundação, e logo depois o dela, se desvaneceu, se curvou, parecia uma preguiça montada num cavalo [...] (BORBA FILHO, p. 75, 1917).

Há o uso de várias ações ligadas umas às outras. Os gestos de Maria-dá-de-Graça são contínuos, terminando o gesto anterior e ao mesmo tempo iniciando o próximo. Neste trecho, a

personagem entra no quarto ao mesmo tempo que Antão Locerpa fala e em seguida, sem pausa alguma, ela já arregaça o vestido. E dessa forma, todas as outras ações da cena continuam: sem uma pausa para separar uma da outra.E para salientar ainda mais o grotesco dessa relação, o narrador compara os dois personagens com animais: 'uma preguiça montada num cavalo'. E novamente percebe-se o não uso de imagens cotidianas compondo na obra o realismo grotesco.Nas novelas de Hermilo Borba Filho, pode-se encontrar o realismo grotesco e fantástico. Representadas com uma linguagem popular, as ações criam imagens da carnavalização da sociedade e oscilam entre o mundo de concretizações impossíveis e a dura realidade do homem do sertão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento. O contexto de François Rabelais. Ed. Universidade de Brasília, 1996. São Paulo- Brasília.

BORBA FILHO, Hermilo. O general está pintando. Ed. Globo, 1973, Porto Alegre.

OLIVEIRA, Sílvio R. Hermilo: um palco em suas mãos. In: Os melhores contos de Hermilo Borba Filho. São Paulo: Global, 1994.

PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Editora Contexto, 2010.

RODRIGUES, Augusto. Bakhtin: Leitor de Romances. In: Conversas Escritas para o Círculo 2009. Disponível em: <http://conversasbakhtinianas.blogspot.com/search/label/Augusto%20Rodrigues>. Acesso em: 30 ago. 2010.

*              Aluna do Curso de Letras – UnB. Pesquisadora do Grupo: Literatura e Cultura – CAPES. Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Junior (TEL/UnB). E-mail: dricaber@hotmail.com

http://textosgege.blogspot.com.br/2010/09/realismo-grotesco-e-carnavalizacao-no.html