Post on 20-Mar-2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LÓGICA E METAFÍSICA
FELLIPE PINHEIRO DE OLIVEIRA
REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA
DA PERCEPÇÃO DE DESCARTES
RIO DE JANEIRO 2019
FELLIPE PINHEIRO DE OLIVEIRA
REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA
DA PERCEPÇÃO DE DESCARTES
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica, IFCS, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Filosofia.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª. Ethel Menezes Rocha
Rio de Janeiro 2019
CIP - Catalogação na Publicação
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
O48rOliveira, Fellipe Pinheiro de Representacionalismo ou realismo direto nateoria da percepção de Descartes / Fellipe Pinheirode Oliveira. -- Rio de Janeiro, 2019. 209 f.
Orientadora: Ethel Menezes Rocha. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Programa de Pós-Graduação em Lógica eMetafísica, 2019.
1. Filosofia. 2. Descartes. 3. Teoria dapercepção. 4. Representacionalismo. 5. Realismodireto. I. Rocha, Ethel Menezes, orient. II. Título.
REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA PERCEPÇÃO DE DESCARTES
Fellipe Pinheiro de Oliveira
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica, IFCS,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Filosofia.
Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 2019.
Aprovada por: ______________________________________ Prof.ª Dr.ª Ethel Menezes Rocha (Orientadora) Universidade Federal do Rio de Janeiro ______________________________________ Prof. Dr. Marcos André Gleizer Universidade do Estado do Rio de Janeiro ______________________________________ Prof. Dr. Edgar da Rocha Marques Universidade do Estado do Rio de Janeiro ______________________________________ Prof.ª Dr.ª Lia Levy Universidade Federal do Rio Grande do Sul ______________________________________ Prof.ª Dr.ª Mariana de Almeida Campos Universidade Federal da Bahia
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Jorge de Oliveira e Nanci de P. Pinheiro Oliveira, pela formação que me deram e por todo apoio durante a minha vida.
Ao meu irmão, Gustavo Pinheiro de Oliveira, pela amizade e carinho comigo. À Prof.ª Dr.ª Ethel Menezes Rocha, orientadora dessa tese, professora e pesquisadora por quem eu tenho imensa admiração, por ter me ensinado a ler, estudar e interpretar textos de filosofia. Aos mais que queridos Celio Fernandes S. Júnior, Camila Kushnir e Renata Moehlecke por todo suporte, apoio, conforto e incentivo que me deram ao acompanhar os bastidores da redação dessa tese. Aos meus amigos e amigas, Luana Cruz, Guilherme Nogueira, Davi de Oliveira, Karla Muzy, Joice Carvalho, Cecília Barbosa, Mário Souza, Hilda Gomes, Talita de Oliveira e Maria Cristina Giorgi pelo companheirismo de tantos anos. Aos meus amigos e colegas de graduação, Jorge Quintas, Diego Casais e Maria Clara Faria, pela amizade, apoio e auxílio no meu desenvolvimento intelectual. Aos amigos e colegas do Grupo Descartes do PPGLM-UFRJ, Juliana Martins, Maria Cecília Barbosa, Louis Blanchet, Andrea Abreu, Daniele Pacheco, Otávio Kajevski Junior e todos aqueles que participaram e participam do grupo, pelo interesse nos estudos e na pesquisa e pelo incentivo à troca e ao debate. Aos professores que tive ao longo de toda minha formação na educação básica por terem me conduzido até aqui. Em especial à Soraya (educação infantil), Joana Darke (francês), Ana Cristina Viegas (português e literatura brasileira), Eliane Trigo (ciências e biologia), Cátia Rocha (filosofia), Wolney Malafaia (história), Inês Rocha (educação musical), Fátima Ivone (sociologia), Isabel Vega (português e literatura brasileira) e Marília Robinson in memorian (matemática). Ao Colégio Pedro II por ter mudado minha história. Aos professores do Departamento de Filosofia da UFRJ, pela oportunidade de formação. Em especial a Raul Landim Filho, Ulysses Pinheiro, Maria das Graças de Moraes Augusto e Roberto Horácio de Sá Pereira. Au Monsieur Pierre Guenancia, professeur à l’Université de Bourgogne, pour m’avoir accueilli en France pour un stage de doctorat qui a définitivement influencé le développement de cette thèse. À Marc Prochasson, le propriétaire de l’appartement où j’ai vécu à Paris et qui est devenu un ami, pour son engagement en faveur de plusieurs étudiants et chercheurs brésiliens en France. Je considère Marc comme un mécène qui m’a très bien accueilli chez lui et m’a encouragé à poursuivre mes objectifs sans crainte. Ao CEFET-RJ pelo apoio institucional, acadêmico e financeiro. Às políticas públicas para a educação brasileira elaboradas e implementadas nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), em especial àquelas dos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem as quais eu provavelmente não teria chegado até aqui. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
RESUMO
OLIVEIRA, Fellipe Pinheiro. Representacionalismo ou Realismo Direto na Teoria da Percepção de Descartes. Rio de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
A presente tese tem como objetivo examinar a teoria cartesiana da percepção
relativamente ao debate entre o representacionalismo e o realismo direto. O referido debate diz
respeito à questão sobre qual é o objeto imediato da percepção, ou seja, o que se percebe
diretamente quando se percebe alguma coisa. Segundo a concepção realista direta, as coisas
mesmas atualmente existentes são percebidas de modo imediato independentemente de
qualquer intermediário. Contudo, a concepção representacionalista entende que o que é
diretamente percebido são as ideias das coisas, que as representam no pensamento, enquanto
que as coisas atuais são apenas indiretamente percebidas por intermédio das ideias, o que ocorre
porque as coisas são aquilo que é visado pelas ideias. Essa é uma questão importante para a
teoria da percepção de Descartes em função da sua definição ambígua de ideia, em que sob
determinado aspecto ideia pode ser tomada como uma certa operação mental, e sob outro ela
pode ser tomada como conteúdo mental representativo que consiste num modo de ser particular
no pensamento. Nesse contexto, é legítimo questionar se para Descartes a ideia consiste numa
operação mental de apreensão, ou percepção, de coisas; ou se ela, enquanto conteúdo
representativo, é o que é percebido pelo pensamento. A fim de melhor elaborar essa questão
recorre-se na tese a apenas uma parte do histórico debate entre Malebranche e Arnauld, que se
desenvolve na busca pela compreensão de diversos aspectos relativos à teoria da percepção, à
natureza das ideias e ao papel que elas ocupam no processo perceptivo. Esse debate é capaz de
fornecer subsídios para a interpretação de Descartes defendida nessa tese, que consiste em
mostrar que as ideias são determinados atos do pensamento cuja função é representar algum
conteúdo como objeto na consciência. Esse conteúdo exibido pela ideia é alguma coisa de real
no pensamento, isto é, possui um tipo de realidade a que Descartes chama de objetiva, à medida
que consiste num conjunto de propriedades necessárias que designam alguma coisa que não é
redutível às operações do pensamento. Nesse sentido, o processo perceptivo acessa
imediatamente a ideia enquanto um modo de ser objetivo que aponta para algo distinto do
pensamento. E, por esse motivo, pode-se interpretar a teoria cartesiana da percepção como uma
forma de representacionalismo.
Palavras-Chave: Ideia; Percepção; Representacionalismo; Realismo Direto.
RÉSUMÉ
OLIVEIRA, Fellipe Pinheiro. Représentationnalisme ou Réalisme Direct dans la Théorie de la Perception de Descartes. Rio de Janeiro, 2019. Thèse (Doctorat en Philosophie) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
Cette thèse porte sur la théorie cartésienne de la perception en ce qui concerne le débat
entre le représentationnalisme et le réalisme direct. Ce débat concerne la question de savoir quel
est l'objet immédiat de la perception, c'est-à-dire de savoir qu’est-ce qu’est perçu directement
quand quelque chose est perçue. Selon la perspective du réalisme direct les choses mêmes
actuellement existantes sont perçues d’une façon immédiate sans un intermédiaire. Cependant,
du point de vue du représentationnalisme ce qui est directement perçu sont les idées qui
représentent les choses dans la pensée tandis que ces choses (actuellement existantes) ne sont
qu’indirectement perçues à travers les idées parce que les choses sont ce qui est visé par les
idées. Cela est une importante question pour la théorie de la perception de Descartes en raison
de sa définition ambiguë de l’idée dans laquelle, sous un aspect, l’idée peut être considérée
comme une certaine opération mental et sous un autre elle peut être prise comme un contenu
mental représentatif qui est un mode particulier d’être dans la pensée. Dans ce contexte, on est
autorisé à se demander si, pour Descartes, l’idée consiste dans une opération mental de
perception des choses ; ou si l’idée, en tant que contenu représentatif, elle est la chose perçue
par la pensée. Pour mieux élaborer cette question on propose dans cette thèse discuter une partie
du débat historique entre Malebranche et Arnauld qui se développe en cherchant à comprendre
plusieurs aspects qui concernent à la théorie de la perception, à la nature des idées et au rôle
que les idées jouent dans le processus perceptif. Ce débat est capable de fournir du matériel
pour l’interprétation qui sera soutenue dans cette thèse qui consiste en affirmer que les idées
sont certains actes de la pensée dont la fonction est de représenter quelque contenu comme un
objet dans la conscience. Ce contenu présenté par l’idée est quelque chose de réel dans la
pensée, c’est-à-dire il a une sorte de réalité que Descartes appelle objective parce que ce contenu
est un ensemble de propriétés nécessaires qui désigne quelque chose qui n’est pas totalement
explicable par les opérations de la pensée. Dans ce sens, le processus perceptif accède
immédiatement l’idée en tant qu’elle est un mode d’être objectivement dans la pensée qui fait
référence à quelque chose de distinct de la pensée. Et, pour cette raison, on peut interpréter la
théorie cartésienne de la perception comme une forme de représentationnalisme.
Mots-Clés : Idée, Perception ; Représentationnalisme ; Réalisme Direct.
ABSTRACT
OLIVEIRA, Fellipe Pinheiro. Representationalism or Direct Realism in Descartes’ theory of perception. Rio de Janeiro, 2019. Thesis (PhD in Philosophy) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
This thesis aims to examine the Cartesian theory of perception regarding the debate
between a representationalist and a direct realist view about perception. This debate concerns
the question of what is the immediate object of perception, that is, what is perceived directly
when something is perceived. According to the direct realist conception, the existing things
themselves are immediately perceived independently of any intermediary. However, the
representationalist conception understands that what is directly perceived are the ideas of things
that represent them in thought, while the existent things are only indirectly perceived through
the ideas, because these things are what ideas refer to. This is an important issue for Descartes'
theory of perception because of its ambiguous definition of idea, where in one respect idea can
be taken as a certain mental operation, and in another it can be taken as representative mental
content that is a particular mode of being in thought. In this context, it is legitimate to question
whether for Descartes the idea consists in a mental operation of apprehension, or perception, of
things; or if it is, as representative content, what is perceived by thought. In order to better
elaborate this question, we focus in only a part of the historical debate between Malebranche
and Arnauld, which sets in the search for the understanding of several aspects related to the
theory of perception, the nature of ideas and the role they play in the perceptual process. This
debate can provide support for the interpretation about Descartes developed here in this work,
which consists in showing that ideas are certain acts of thought whose function is to represent
some content as an object in consciousness. This content displayed by the idea is something
real in thought, that is, it has a kind of reality that Descartes calls objective, as it consists of a
set of necessary properties that designate something that is not reducible to the operations of
thought. In this sense, the perceptual process immediately accesses the idea as this objective
mode of being that points to something other than thought. And for this reason, the Cartesian
theory of perception can be interpreted as a form of representationalism.
Keywords: Idea; Perception; Representationalism; Direct Realism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................11
1 PRELIMINARES DA TEORIA CARTESIANA DAS IDEIAS ...............................................24
1.1 A ideia e seu caráter representativo ................................................................................................24
1.2 Uma via tradicional de classificação das ideias ..............................................................................34
1.3 A via cartesiana: estrutura e natureza das ideias .............................................................................40
1.4 Considerações gerais sobre a noção de realidade objetiva da ideia ................................................44
2 MALEBRANCHE LEITOR DE DESCARTES: A NATUREZA DAS IDEIAS E SEU PAPEL
NA PERCEPÇÃO ..........................................................................................................................51
2.1 A concepção malebranchista de ideia em De la Recherche de la Vérité ........................................52
2.1.1 As ideias são os objetos imediatos da percepção .....................................................................52
2.1.2 O status ontológico das ideias: primeiros aspectos ..................................................................57
2.2 A visão das ideias em Deus: o caso da origem das ideias ...............................................................64
2.3 Status ontológico das ideias e o representacionalismo na teoria da percepção de Malebranche ....79
3 ARNAULD LEITOR DE DESCARTES: CRÍTICA À TEORIA DA PERCEPÇÃO DE
MALEBRANCHE .......................................................................................................................102
3.1 A leitura de Arnauld dos pressupostos malebranchistas da percepção .........................................102
3.2 As definições de percepção e ideia segundo Arnauld ...................................................................120
3.3 Argumentos contra os entes representativos de Malebranche ......................................................131
3.4 A crítica ao representacionalismo de Malebranche ......................................................................142
3.5 Arnauld: realismo direto? ..............................................................................................................148
4 DESCARTES: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA TEORIA DA
PERCEPÇÃO ..............................................................................................................................169
4.1 Os conceitos de ser objetivo e de realidade objetiva da ideia .......................................................170
4.2 Teoria cartesiana da percepção: um representacionalismo moderado ..........................................187
CONCLUSÃO ....................................................................................................................................198
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................205
ABREVIAÇÕES
AT [volume, página] DESCARTES, R. Œuvres de Descartes. Charles
Adam & Paul Tannery (org.), 11 vol. Paris: Vrin, 1957-
1996.
CP [página, parágrafo (quando se aplica)] DESCARTES, R. Coleção Os Pensadores: Descartes.
Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São
Paulo: Abril Cultural, 1973.
DE [página] DESCARTES, R. Discurso do método & Ensaios.
Tradução de César Augusto Battisti, Érico Andrade,
Guilherme Rodrigues Neto, Marisa Carneiro de
Oliveira Franco Donatelli, Pablo Rubén Mariconda,
Paulo Tadeu da Silva. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
FA [volume, página] DESCARTES, R. Descartes, Œuvres philosophiques.
Ferdinand Alquié (org.), 3 vol. Paris : Classiques
Garnier, 1996-98.
ABV [página] MALEBRANCHE, N. A busca da verdade. Tradução
Plínio J. Smith. Discurso Editorial, Paulus, 2004.
OCM [volume, página] MALEBRANCHE, N. Œuvres complètes de
Malebranche. Paris: Vrin, 1958-70.
VFI [capítulo, página] ARNAULD, A. Des vraies et des fausses idées. Denis
Moreau (editor). Paris: Vrin, 2011.
11
INTRODUÇÃO
A filosofia se dá como um saber próprio que se desenvolve numa história de embates,
debates, consensos e dissensos em torno da investigação de temas e problemas concernentes à
experiência humana na sua relação consigo, com os outros e com o mundo, segundo os critérios
da justificação racional. Esse interesse investigativo consiste num esforço e num trabalho
intelectual que se realiza por meio de, e no entorno de, uma tradição que elabora e leva a cabo
o desenrolar da busca pela compreensão tanto dos elementos envolvidos no que se apresenta
como interrogação, como da estrutura de suas relações, seus encadeamentos, seus pressupostos
e suas consequências. Denomina-se isso de a tradição filosófica, que, possuindo uma história,
é sempre capaz de recolocar suas interrogações e atualizá-las como legado permanente de seu
exame (seja ele compreendido como o exame da história da própria tradição, ou como exame
da recondução perene de suas questões).
A tradição filosófica é aquela que disputa conceitualmente o esclarecimento de temas e
problemas por meio da fala pública, da aula, do debate e, sobretudo, do texto escrito – meio
pelo qual a tradição filosófica historicamente espalha-se para domínios mais amplos e distantes.
O texto permite-lhe ser lida, examinada, (re)elaborada e atualizada pela referida disputa
conceitual – que se preocupa fundamentalmente com propor soluções para as questões
levantadas – que não pode, porque esse é seu sentido, deixar de operar segundo a assimilação
do que já foi produzido pela própria tradição.
Nesse sentido, se pode-se conceber que a filosofia é a história dessa tradição, fazer
filosofia é, de certa maneira, fazer história da filosofia: tanto porque o enfrentamento de
interrogações inaugura uma tradição, quanto porque a própria tradição se desenvolve e se
atualiza a partir de sua própria história. Tomado isso, considerando a importância que os textos
filosóficos têm para a tradição filosófica, é a partir deles, de sua leitura atenta, do trabalho de
análise de conceitos, teses e argumentos que ele disponibiliza, da tentativa de explicação e de
compreensão de sua estrutura e sentido que se faz, ou pelo menos se começa a fazer, filosofia.
Os textos da tradição filosófica que chegaram até os dias de hoje permitem, aos diversos
leitores que os consideram, uma variada gama de formas de aproveitamento. Há aqueles que os
encaram com a curiosidade típica dos eruditos interessados no passado; há aqueles que os
tomam como registro de condições culturais, sociais e históricas de um tempo e de um lugar;
há aqueles que se preocupam em descortinar sua estrutura interna; e há aqueles que,
12
interessados no encadeamento interno das questões, dos conceitos, das teses e dos
procedimentos teóricos constantes dos textos, não deixam de reconhecer que o confronto deles
com outros textos da tradição que os cerca (precedente ou posterior) é elucidativo para o
entendimento desses textos filosóficos em questão. Considera-se aqui que esse diálogo, ou esse
confronto com a tradição no processo de investigação de um texto filosófico é a via fundamental
para se embrenhar na história da filosofia, não como quem faz um relato terceirizado de algo
fechado e acabado. Mas sim como alguém que, ao assumir como tarefa a busca pelo
esclarecimento de alguma questão, recorre à história da tradição filosófica como um caminho
para recolocar para si, para os outros, num outro tempo e num outro lugar, a investigação de
um problema em aberto. E isso, segundo se compreende aqui, é parte fundamental de se fazer
filosofia.
Tendo isso em vista, é preciso tornar explícito que na tese que se segue investigar-se-á
a filosofia de Descartes no que concerne a uma entre as várias questões sobre as quais essa
filosofia pode ser interrogada. Trata-se da questão em torno da teoria cartesiana da percepção
que pretende elucidar se ela consiste numa teoria representacionalista da percepção, ou se ela
constitui uma teoria da percepção de cunho realista direto. Em linhas gerais, por
representacionalismo compreende-se a noção de que o processo perceptivo realizado pelo
sujeito é intermediado por algum elemento (seja ele uma terceira entidade no pensamento ou
fora do pensamento, ou uma representação mental) que se coloca entre a operação mental de
perceber e a coisa percebida. Já por realismo direto, toma-se a perspectiva segundo a qual entre
a mente que percebe e a coisa percebida não há nenhuma mediação, tratando-se, portanto, de
uma percepção imediata realizada pela apreensão que o sujeito faz da coisa percebida. Enquanto
no realismo direto supõe-se que o objeto imediato da percepção é a coisa mesma que é
percebida; no representacionalismo, o que é diretamente percebido são as representações do
sujeito, ou determinados objetos representativos, mas não as coisas mesmas, que, a princípio,
só são percebidas indiretamente. Tendo isso em vista, o procedimento que se pretende adotar
para o enfrentamento dessa questão é aquele que promove uma análise conceitual do texto
cartesiano, tendo em vista uma proposta de exposição explicativa dos elementos em torno da
questão que emerja e esteja em acordo com o que a argumentação escrita por Descartes parece
propor.
O debate acerca da interpretação de que a teoria cartesiana das ideias pode ser ou
representacionalista, ou realista direta diz respeito ao modo mesmo de elaboração da teoria da
percepção de Descartes. Sua raiz, pode-se assim entender, encontra-se na maneira como ele
13
elabora suas concepções sobre o que é a ideia e como se dá o processo de percepção das coisas
que não são meras modificações do pensamento. Na Terceira Meditação das Meditações
Metafísicas, Descartes apresenta a noção de ideia como sendo um gênero de pensamento, entre
outros, que é “como imagem das coisas” (AT VII, 37; AT IX, 29; CP, 109, §6)1. Nesse sentido,
enquanto gênero do pensamento humano, as ideias são concebidas por Descartes como um
determinado tipo de modificação mental cujo caráter próprio é o de ser representação de coisas
para o sujeito. Essas coisas são apreendidas conscientemente como objetos, isto é, como algo
diante do sujeito que não é uma mera afecção dele, mas é sim um conteúdo determinado e
distinto do próprio sujeito. Dessa forma, segundo Descartes, se tomadas como um certo tipo de
modificação mental, as ideias constituem todas elas uma mesma coisa, isto é, podem ser
consideradas como um tipo específico de modo da mente que tem por função apresentar um
conteúdo como objeto no pensamento. Mas se são tomadas a partir do conteúdo que
disponibilizam na consciência, as ideias diferenciam-se entre si, pois cada uma é representação
de uma coisa diferente. De acordo com o primeiro enfoque, é possível entender que as ideias
possuem todas uma mesma realidade formal à medida que são o mesmo tipo específico de
modificação do seu substrato ontológico, que é a substância pensante. Porém, sob o segundo
enfoque, parece legítimo compreender que as ideias são realidades distintas umas das outras.
Pois, como sugere Descartes, por exibirem objetos distintos no pensamento, que não são (pelo
menos integralmente) meras afecções do sujeito pensante, as ideias necessitam de explicação
de por que são representações determinadas de uma coisa e não de outra; explicação essa que a
mera modificação mental não é capaz de oferecer. E nesse caso, parece que as ideias constituem
um tipo de realidade específica, atribuível às coisas enquanto elas são pensadas, enquanto elas
são objetos determinados na consciência. Tratar-se-ia de um tipo específico de realidade à
medida que ela seria constitutiva do modo de ser particular que os objetos têm na mente
conforme são irredutíveis apenas às modificações mentais do sujeito pensante. Tomados em si
mesmos como objetos no intelecto, isto é, como aquilo que está diante da consciência, e nesse
sentido é alguma coisa de distinta do sujeito, os objetos seriam, por isso, algo de real e, sendo
assim, possuiriam o que Descartes chama de realidade objetiva – conceito esse que pode ser
compreendido como o tipo de realidade que a coisa exibida no intelecto como um objeto possui.
De acordo com isso, é notório que a noção de ideia desenvolvida por Descartes guarda
uma ambiguidade. Ela apresenta como sendo o mesmo fenômeno dois aspectos muito distintos,
a saber, [a] o fato de ser uma modificação da mente que consiste num ato mental com uma
1 “[...] tanquam rerum imagines [...]” (AT VII, 37).
14
função específica; e [b] o fato de ser a determinação de um objeto no pensamento, resultado do
ato mental anteriormente referido. Dito de outra maneira, Descartes sugere na Exposição
Geométrica presente nas Respostas às Segundas Objeções que a ideia, além de ser a exibição
de um conteúdo como objeto na consciência2, é simultaneamente a isso o ato da mente que
torna o sujeito consciente de alguma coisa: “Pelo nome de ideia, entendo esta forma de cada
um de nossos pensamentos por cuja percepção imediata temos conhecimento desses mesmos
pensamentos” (AT VII, 160; AT IX, 124; CP, 179)3. Dessa forma, a ideia é um gênero de
pensamento que encerra ambiguamente em seu modo de ser dois aspectos, a saber, é ao mesmo
tempo o ato da mente que exibe um objeto na consciência, isto é, o ato pelo qual o sujeito
percebe alguma coisa como objeto no pensamento; e é também um conteúdo determinado
apresentado na consciência que é visado pela operação mental perceptiva como algo de
diferente e irredutível a ela: um objeto no pensamento. Por ser representação de alguma coisa
determinada, o objeto representado consiste, ao que parece, numa realidade particular no
pensamento que é irredutível à (porém não totalmente independente da) simples operação
mental que a apresenta na consciência. Como visto, a essa realidade particular que os objetos
têm no pensamento, Descartes dá o nome de realidade objetiva. É válido considerar, então, que
a ideia é pensada por Descartes tanto como ato mental, quanto como conteúdo mental que
possui uma realidade distinta daquela do ato porque, pelo menos ao que tudo indica, não se
reduz a ele.
Com isso em vista, é legítimo questionar qual seria exatamente o status desse objeto
exibido na consciência, bem como sua relação com o ato mental que o apresenta no intelecto.
A referida irredutibilidade do objeto ao ato que o disponibiliza no pensamento possibilita
diferentes interpretações acerca do que é isso o conteúdo das ideias: trata-se de uma entidade
representativa (independente), ou do término do ato mental como um rótulo designador de
alguma coisa? Levando-se isso em consideração, é legítimo investigar o que Descartes quer
defender quando define a ideia como o ato da mente que apresenta um objeto para a consciência;
objeto esse que é alguma coisa de real. Por real, Descartes sugere que se trata de algo de certa
2 Cf. Exposição Geométrica, definição III: AT VII, 161; AT IX, 124; CP, 179. 3 É preciso notar que no original em latim, a palavra ‘conhecimento’ empregada nesse trecho significa mais diretamente ‘consciência’ em português. A versão francesa e a tradução brasileira (realizada a partir do francês e citada acima) é que a traduzem por conhecimento. Desse modo, acredita-se ser legítimo afirmar que é sugerido por Descartes que a ideia é o ato, ou a forma, do pensamento que torna o sujeito consciente de alguma coisa. Eis a passagem original: “Ideae nomine intelligo cujuflibet cogitationis formam illam, per cujus immediatam perceptionem ipsius ejusdem cogitationis conseium sum [...]” (AT VII, 160 – grifo meu).
15
maneira autônomo com relação ao ato. Mas se é o ato que disponibiliza o conteúdo para o
pensamento como um objeto, então parece que ele depende do ato para ser exibido. O que
significa ser real, ou conter alguma realidade no pensamento, nesse caso, e ser simultaneamente
o resultado de uma operação do entendimento? As respostas para essas indagações implicam
concepções distintas no que concerne à percepção das coisas. Dependendo de como se
interpreta o que foi colocado, esse conteúdo mental apresentado na ideia e a realidade a ele
atribuída tomam dimensões ontológicas distintas que conduzem aos questionamentos,
anteriormente já postos, sobre se ele constitui um intermediário mental através do qual o sujeito
percebe, ou conhece as coisas exteriores (ou distintas) a ele, ou não. Eis aí por que é possível
reconhecer na base da compreensão cartesiana do que é a ideia a origem da problemática acerca
do representacionalismo ou do realismo direto da percepção das coisas exteriores ou
independentes do pensamento.
Reconhece-se nessa tese que o trabalho de análise conceitual de textos de um autor da
história da filosofia, a fim de elucidar alguma questão, pode ser melhor realizado quando
confrontado, ou pelo menos analisado em conjunto, com um debate que lhe diz respeito. Isso
significa que examinar algum problema constante da filosofia de um autor sob a lógica da
discussão que o engendra ou que ele suscita é uma maneira de melhor destrinchá-lo e explicitá-
lo. E faz-se isso tendo em vista a formulação de hipóteses de solução que possam ser mais
consistentes à medida que, dessa forma, diferentes aspectos da questão são trabalhados segundo
um desenvolvimento mais amplo.
Em consonância com essa perspectiva pretende-se discutir a referida questão acerca do
representacionalismo ou do realismo direto na teoria da percepção de Descartes a partir do
exame de parte da polêmica entre Malebranche e Arnauld (que são dois importantes filósofos
da tradição cartesiana). Polêmica acerca de aspectos concernentes à teoria da percepção, à
natureza das ideias e ao papel que elas ocupam no processo perceptivo. É preciso que se situe
e se justifique a escolha da polêmica Malebranche-Arnauld como elucidativa de um problema
referente à filosofia cartesiana. Considera-se nessa tese que a base da mencionada polêmica
seja a interpretação feita por Malebranche em De la Recherche de la Vérité (livro III, parte II,
capítulos 1-6) acerca de concepções cartesianas relativas às ideias, sua natureza e seu papel na
percepção que o permite elaborar uma teoria aparentemente muito distinta daquela de
Descartes. Diz-se aqui aparentemente muito distinta, pois essa é a leitura que motiva Arnauld
em Des Vraies et des Fausses Idées a inaugurar a polêmica com Malebranche. Arnauld,
colocando-se como representante e detentor da verdadeira leitura de Descartes, reage ao
16
trabalho de Malebranche como sendo resultado de uma má compreensão acerca do que a teoria
cartesiana diz sobre percepção e ideia.
Segundo a interpretação que se seguirá, ocorre que Malebranche, na referida obra,
estabelece uma compreensão acerca da natureza das ideias que dá a elas o status ontológico de
uma entidade representativa que é realmente distinta da mente à medida que não depende de
nenhuma operação do pensamento para se constituir como tal. Trata-se, nesse sentido, de uma
terceira entidade e não do que poderia ser o término de um ato mental justamente porque ela é
representativa de coisas distintas da própria mente. Segundo Malebranche, como se verá no
capítulo 2, as representações de coisas, ou seja, o que ele entende por ideias, não podem ser
dependentes da mente, não podem constituir-se em operações mentais porque essas operações,
enquanto modificações da mente, apenas são capazes de disponibilizar o que é a própria mente,
mas nada de distinto dela. Nesse sentido, as ideias – como representações de coisas externas,
coisas que não são as próprias operações da mente (coisas que não se reduzem a afecções
mentais), mas ao contrário, são objetos para essa mente – não podem ser reduzidas a atos da
mente e, por esse motivo, vão ser consideradas por Malebranche como entidades abstratas
independentes da mente. As ideias assim concebidas constituem-se em entidades abstratas que,
como se verá, estão em Deus e são por ele disponibilizadas às mentes finitas no processo
perceptivo, consistindo, dessa maneira, naquilo que é imediatamente percebido pelo sujeito. E,
em sendo assim, a teoria malebranchista da percepção conta com uma terceira coisa entre a
mente e a coisa externa percebida que é um objeto que intermedeia a percepção dessas coisas à
medida que ele é uma entidade representativa espiritual que, diferentemente das coisas
materiais, pode afetar a mente dando a ela algo a perceber. Note-se que, por isso, o acesso que
o sujeito tem às coisas externas, segundo Malebranche, nunca é direto, mas é dado por uma
entidade abstrata representativa. Desse modo, é legítimo falar que a teoria da percepção
malebranchista é de cunho representacionalista.
O que está em jogo no interesse de se examinar a teoria malebranchista da percepção
frente a de Descartes é reconhecer que é possível interpretá-la como uma resposta de
Malebranche ao caráter ambíguo da definição que Descartes concebe para a noção de ideia.
Nesse sentido, diante de uma concepção de ideia que parece envolver uma noção de objeto
representativo que é, de alguma maneira, irredutível às operações da mente, Malebranche
ressalta esse caráter independente e autônomo. E, assim, dá a ele o status de uma entidade, com
realidade e existência próprias, distinta da mente (e de suas operações) cuja função é ser o
substituto representativo capaz de tornar o sujeito consciente de alguma coisa de distinta dele
17
mesmo. Como se pode ver, Malebranche ensaia a superação da ambiguidade verificada no
pensamento de Descartes frisando um dos aspectos relacionados às ideias, a saber, aquele que
se pode chamar de a realidade objetiva das ideias, isto é, aquele que é propriamente seu
conteúdo representativo. E a partir desse realce, ele propõe que as ideias, propriamente falando,
como já dito, tratam-se de seres representativos realmente distintos e independentes da mente.
De modo que as ideias não são, segundo ele, resultantes da operação mental perceptiva, mas
elas são, em realidade, como ficará claro ao longo do capítulo 2, enquanto entidades abstratas,
modelos ou arquétipos em Deus que representam as coisas criadas e que são disponibilizadas
pela vontade divina para a percepção e conhecimento das mentes finitas.
Assim, para reforçar o dito mais acima, a teoria da percepção de Malebranche admite
que a percepção imediata realizada pela mente finita é sempre das ideias, mas não das coisas
representadas por essas ideias. Dessa forma, o acesso às coisas é sempre mediado por ideias e
as coisas mesmas não são diretamente percebidas. Com isso, a teoria de Malebranche formula
uma concepção representacionalista da percepção a partir do entendimento e da elaboração
particular de uma noção de objeto representativo que é herdada da teoria cartesiana das ideias.
E é por esse motivo que ela é fonte importante para a discussão da questão da percepção na
filosofia de Descartes.
Porém, como sabido, Arnauld é um grande crítico da interpretação realizada por
Malebranche e na sua referida obra dedica-se a atacá-la como estando assentada em princípios
falsos que conduzem Malebranche à defesa de absurdos acerca da percepção. Esses absurdos
encontram-se na elaboração malebranchista de uma noção de ideia como entidade
representativa realmente distinta e independente da mente, o que geraria, segundo Arnauld, uma
consequência disparatada para a teoria da percepção. Essa consequência seria a admissão de
um tipo de representacionalismo como o de Malebranche, que é entendido por Arnauld como
radical.
Nesse sentido, é legítimo considerar que Arnauld realiza sua crítica à teoria
malebranchista tendo como foco a destruição dos pressupostos que o levam a conceber as ideias
como entidades representativas distintas das operações da mente. Isso porque, segundo se pode
compreender, eliminado esse entendimento acerca das ideias, seria possível evitar sua
consequência representacionalista radical, que seria, segundo Arnauld, a total cisão entre a
mente finita e o mundo externo criado por Deus. A leitura que Arnauld faz de Malebranche
entende que as formulações malebranchistas admitiriam que Deus cria as mentes finitas, une-
as aos corpos e, no entanto, não habilita esses compostos de corpo e mente a experimentarem
18
diretamente o ambiente que os circundam, pois eles estariam presos à necessidade de entidades
representativas como intermediárias da percepção que teriam das coisas criadas. Segundo
Arnauld, isso repugna um certo princípio de economia da ação, ou princípio da simplicidade
das vias de Deus, de modo que deve ser combatido como um mau raciocínio .
A questão relativa ao pensamento de Arnauld que interessa diretamente ao seguimento
argumentativo dessa tese diz respeito a duas coisas: [a] uma é saber se a crítica de Arnauld ao
representacionalismo de Malebranche consiste numa crítica a toda e qualquer forma de
representacionalismo da percepção, ou se refere-se apenas àquele de Malebranche; [b] a outra
é pensar sobre os procedimentos argumentativos de Arnauld, contra Malebranche, o quanto eles
implicam uma leitura da teoria cartesiana da percepção que enviesa, ou pende, a concepção de
ideia mais para o que seria um ato representativo do pensamento. E, em sendo assim, isso
promoveria um esvaziamento do conceito cartesiano de realidade objetiva que poderia permitir
a interpretação de Arnauld como um defensor do realismo direto na percepção.
Procura-se mostrar nessa tese que a defesa do realismo direto na filosofia de Arnauld
não é uma consequência óbvia da sua crítica ao representacionalismo de Malebranche, pois, ao
que tudo indica, o foco da crítica arnaldiana é a concepção de ideia como entidade
representativa independente da mente. Desse modo, é possível encontrar em Arnauld uma
defesa de um representacionalismo, isto é, a defesa de que entre a mente que percebe e a coisa
percebida há uma representação, dada numa ideia, que poderia ser um modo da própria mente,
através do qual as coisas externas são indiretamente percebidas. Entretanto, diante da análise
de alguns defensores do realismo direto na filosofia de Arnauld, em função de sua defesa de
que percepção e ideia consistem no mesmo fenômeno mental, considerar que a ideia é um meio
segundo o qual se percebe alguma coisa seria nada mais que afirmar que é pela percepção que
se percebe as coisas. Isso mostraria um grau de trivialidade nas formulações potencialmente
representacionalistas de Arnauld que sugeriria, então, apenas a admissão do vocabulário
representacionalista disponível entre seus interlocutores, mas não implicaria propriamente uma
concepção representacionalista da percepção. Desse modo, ainda que não se apresente uma
posição definitiva acerca dessas questões, fica insinuado o seguinte: Arnauld, interessado em
criticar as elaborações de Malebranche acerca das ideias e da percepção, procura valorizar o
aspecto da operação mental presente na concepção cartesiana de ideia, isto é, a ideia tomada
como um certo tipo de ato da mente. A sugestão que se leva a cabo compreende que Arnauld
valoriza a noção de ideia como ato mental e, de certa maneira, ignora a complexidade do
conceito cartesiano de realidade objetiva ao sinalizar que a noção de conteúdo apresentado na
19
consciência deve, ou pode, ser reduzida, ou explicada, pela operação mental da percepção. É
legítimo compreender que Arnauld, ao fazer isso, procura dirimir a ambiguidade da noção
cartesiana de ideia a partir da qual Malebranche retira suas consequências. Mas isso abre um
espaço interpretativo que conduz muitos comentadores a uma leitura realista direta da
interpretação de Arnauld acerca da percepção. Tendo isso em vista, diante da dificuldade acerca
da interpretação de Arnauld sobre um dos fundamentos da teoria da percepção de Descartes, a
saber, a noção de realidade objetiva, se anuncia a necessidade de um aprofundamento de sua
investigação no próprio pensamento de Descartes.
Com esse debate em vista, retoma-se como centro dos interesses a teoria cartesiana da
percepção para propor sobre ela uma leitura mais elaborada a partir, fundamentalmente, da
análise da discussão com Caterus nas Respostas às Primeiras Objeções. Procura-se demonstrar,
então, a partir da análise dos conceitos de ser objetivo e de realidade objetiva, que a
ambiguidade da definição cartesiana de ideia não deve ser escamoteada, como se sugere que
foi feito por Malebranche, por um lado, e Arnauld, por outro lado. Isso não deve ocorrer porque
faz parte da estratégia argumentativa de Descartes, ao explicar o que é a percepção, concebê-la
como um fenômeno mental que se processa a partir de uma operação do pensamento de um tipo
particular cuja função é apresentar à consciência alguma coisa como objeto, isto é, como
distinto do próprio pensamento, apesar de esse objeto ocorrer no próprio pensamento. Nesse
sentido, reforçar a ambiguidade da definição de ideia, apesar das dificuldades que isso
engendra, é retomar a busca por uma explicação do que é a percepção que parece evitar posições
possivelmente extremadas. Diz-se isso porque se ideia é um ato mental que exibe alguma coisa
como objeto na consciência, pode-se tanto recusar uma interpretação semelhante a de
Malebranche, isto é, do tipo que reifica a noção de conteúdo mental e o posiciona no intelecto
divino – o que parece muito anti-intuitivo; quanto evitar que se conceba a ideia como um mero
ato mental de apreensão direta das coisas externas – o que parece muito problemático
considerando determinados aspectos da filosofia de Descartes, como a distinção real entre a
mente e o corpo, por exemplo.
Segundo essa perspectiva, procura-se elaborar acerca da filosofia de Descartes que sua
concepção de ideia envolve um conceito de realidade objetiva que se aplica ao tipo de ser ou
de realidade que os objetos possuem no pensamento enquanto eles estão lá como representação
de coisas. Em favor disso, propõe-se uma interpretação de que o ser objetivo exibido pelas
ideias é um conteúdo no pensamento, um conjunto de propriedades determinadas que designam
um objeto, que, por isso, tem grau de realidade e, portanto, não é um “puro nada” (AT VII, 103;
20
AT IX, 82)4: é algo que está na mente, mas não depende da mente. Isso significa que o conceito
de realidade objetiva é compreendido como a realidade que o objeto, ou o ser objetivo
apresentado pela ideia, tem no pensamento, que é irredutível à mera modificação mental, ou
seja, guarda alguma independência com relação à operação da mente que o exibe, mas que
depende da mesma operação para constituir-se como tal.
Tomado dessa maneira, o conceito de realidade objetiva dota de consistência ontológica
o ser objetivo apresentado pela ideia à consciência. Desse modo, em oposição ao “puro nada”
de um ser objetivo entendido como o fim de um ato de percepção (que pode ser compreendido
como uma designação extrínseca à coisa mesma designada, tal qual uma espécie de ser de razão,
como supõe Caterus), o ser objetivo para Descartes, como se pode compreender, é alguma coisa
de real e possui um modo de ser no intelecto realmente distinto daquele modo de ser das coisas
em sua realidade formal. Nesse ponto, ser objetivo diferencia-se tanto da própria realidade
formal do pensamento (apesar de constitui-se a partir dela), quanto da realidade formal das
coisas que representam. E é nesse sentido que se quer defender, em última análise, que a teoria
cartesiana da percepção envolve um tipo de representacionalismo à medida que compreende
que todo processo perceptivo envolve necessariamente a exibição de um ser objetivo, de um
objeto, no pensamento que possui grau de realidade e que se diferencia em natureza tanto do
puro ato perceptivo, quanto da própria coisa percebida.
Entretanto, não se trata aqui de uma defesa de um tipo de representacionalismo como o
de Malebranche, que pressupõe que esse ser objetivo, por assim dizer, são entidades
independentes e realmente distintas da mente que estão, por isso, fora da mente (mais
precisamente em Deus). Considera-se nessa tese que o modelo representacionalista de
Malebranche encerra uma radicalidade da qual Descartes não comunga. Essa radicalidade
estaria no fato de, pelas ideias estarem em Deus, a percepção que as mentes finitas possuem
delas permitiria apenas a percepção direta do que em Deus representa as coisas criadas. A
percepção do mundo, então, seria apenas inferencial, isto é, uma conclusão de que o que se
passa no mundo é o caso porque é assim que Deus, perfeito e veraz, disponibiliza as ideias para
serem pensadas pelas mentes finitas. Trata-se aí de uma relação íntima entre o intelecto finito
e Deus na qual as coisas criadas parecem ocupar um lugar secundário. Ora, o
representacionalismo cartesiano, à medida que compreende que as ideias são um fenômeno da
substância pensante, situa no sujeito todo o processo perceptivo.
4 « […] pur rien […] » (AT IX, 82).
21
É razoável apontar que o alcance dessa compreensão acerca de Descartes está
relacionado com o desenvolvimento argumentativo proposto por Arnauld na sua crítica a
Malebranche. O raciocínio arnaldiano evidencia aspectos e consequências teóricas ligadas à
tese de que as ideias são terceiras entidades que são capazes de esclarecer, de certa forma, os
objetivos de Descartes na formulação de uma teoria da percepção. Nesse sentido, acredita-se
plausível pensar que a concepção cartesiana de percepção consiste num representacionalismo
moderado, diferente do de Malebranche. Isso porque, ainda que o acesso às coisas dependa da
maneira pela qual elas são exibidas na consciência (via um ser objetivo com grau de realidade
objetiva, ou seja, via um conjunto de propriedades determinadas que designam um objeto), o
sujeito estabelece uma relação perceptiva não com entidades representativas em Deus, mas com
as coisas criadas no mundo, mesmo que indiretamente.
Sendo assim, expor, elaborar e avaliar quais são os elementos da teoria cartesiana da
percepção; perguntar como e baseado em que supostos problemas Malebranche empreende uma
releitura de concepções de Descartes; e indagar quais são os pontos centrais do ataque realizado
por Arnauld à teoria malebranchista são o foco dos estudos e das análises que se pretende
desenvolver nessa tese. Tudo isso, pelas razões que se seguirão, tem por finalidade apresentar
como hipótese de solução para a questão do representacionalismo ou do realismo direto
referente à teoria cartesiana uma interpretação representacionalista (de tipo moderado) da
percepção.
Por fim, é interessante que se detalhe que a tese é dividida em quatro capítulos. No
primeiro procura-se expor as preliminares de uma teoria cartesiana da percepção em que
apresenta-se, de modo geral, as concepções de Descartes sobre a natureza e a estrutura das
ideias contextualizadas no sistema cartesiano. As principais preocupações desse capítulo estão
em definir adequadamente o que significa ser a ideia representação de coisas e em que medida
isso não constitui nenhum tipo de reprodutibilidade imagética, bem como apresentar a via
cartesiana de análise das ideias como ela aparece exposta na Terceira Meditação.
O segundo capítulo dedica-se ao exame da teoria da percepção de Malebranche, isto é,
dedica-se à exposição e à explicação dos principais conceitos e teses dessa teoria, bem como
sua construção e coerência argumentativa. Estuda-se nele as razões que conduzem Malebranche
à defesa tanto de que as ideias são entidades representativas independentes e realmente distintas
da mente, quanto de que essas ideias estão em Deus. Realiza-se também um esforço de
compreensão do tipo de representacionalismo que decorre das teses malebranchistas e avança
22
-se a leitura de que é um representacionalismo radical no qual a relação perceptiva das mentes
finitas se dá exclusivamente com Deus.
O terceiro capítulo volta-se para a análise da crítica de Arnauld à teoria da percepção de
Malebranche. Notadamente a crítica dele à concepção de que as ideias são entidades
representativas distintas e independentes das operações mentais. Para isso explicita-se a
interpretação de Arnauld segundo a qual os pressupostos malebranchistas estão baseados em
princípios espúrios herdados dos preconceitos da infância. Além disso, analisa-se as definições
de Arnauld acerca dos elementos concernentes à teoria da percepção que, segundo ele, precisam
ser esclarecidos, uma vez que aqueles de Malebranche são falhos em função da base em que se
assentam. Examina-se também alguns argumentos contrários à razoabilidade da tese de que há
entidades representativas. E, por fim, tematiza-se as consequências das críticas à Malebranche
no que diz respeito ao representacionalismo e ao realismo direto da percepção. Como já dito
anteriormente, apesar de não se determinar nesse capítulo qual seria a posição defendida por
Arnauld, sugere-se que, em nome da oposição à teoria malebranchista, Arnauld acaba por
esvaziar o conceito cartesiano de realidade objetiva, o que mostra que Arnauld não detém uma
interpretação definitiva e sem problemas sobre Descartes, o que pode dar margem para uma
interpretação realista direta tanto de sua filosofia, quanto da filosofia de Descartes.
Por fim, o quarto capítulo, o último dessa tese, é aquele que, de posse da discussão
alargada pela polêmica Malebranche-Arnauld na qual os termos do debate sobre a percepção
são melhor elaborados, vem apresentar, a partir de uma análise da natureza do ser objetivo
exibido pela ideia no ato representativo, uma leitura da teoria cartesiana da percepção. Segundo
ela, a percepção consiste numa ocorrência mental que congrega simultaneamente tanto um ato
mental, quanto um conteúdo mental que, apesar de dependente, de certa forma, desse ato,
consiste em alguma coisa de real à medida que é a exibição de um conjunto de propriedades
determinadas que não é nem dependente, nem redutível à mente. O sentido dessa análise da
teoria cartesiana é mostrar que a ambiguidade na definição de ideia não é propriamente uma
imprecisão, ou impasse, de Descartes, mas é a forma que ele encontra, ao tratar de ideias como
um fenômeno perceptivo concernente, pelo menos, às mentes finitas dos homens, de evitar
posições extremas que pudessem comprometer a compreensão do que é a percepção. Nesse
sentido, por um lado, Malebranche e Arnauld aparecem como possíveis representantes dessas
posições extremadas que Descartes quereria evitar; e, por outro lado, eles aparecem como
aqueles que, tendo esgarçado os limites de compreensões possíveis acerca da percepção a partir
da teoria de Descartes, contribuem para o esclarecimento de um sentido mais próprio dessa
23
teoria. Por essas, entre outras, razões é que no último capítulo acredita-se ser possível admitir
um representacionalismo na teoria da percepção de Descartes. Não do tipo malebranchista, mas
um tipo mais moderado, que mantém o processo perceptivo como um processo mental, mas
que não esquece, como poderia ocorrer segundo uma certa interpretação de Arnauld, que se
trata de um processo mental que envolve algo de autônomo e que é o meio pelo qual o sujeito
pode acessar as coisas externas a si mesmo.
24
1 PRELIMINARES DA TEORIA CARTESIANA DAS IDEIAS
1.1 A ideia e seu caráter representativo
A teoria cartesiana das ideias aparece nas Meditações Metafísicas no bojo da sequência da
ordem do processo meditativo que leva Descartes a dividir e classificar seus pensamentos em
algumas categorias com o propósito de desvendar entre essas a quais se aplicam valores de
verdade: “...cumpre aqui que eu divida todos os meus pensamentos em certos gêneros e
considere em quais destes gêneros há propriamente verdade ou erro.” (AT VII 36-37; CP 109,
§5)5.
Entre os pensamentos, Descartes reconhece que “[...] alguns são como imagens das
coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de ideia [...]” (AT VII 37; CP 109, §6)6,
alguns outros possuem outros tipos expressos como vontades ou afecções, que acompanham as
ideias como atitudes mentais adicionais, como, por exemplo, quando diante da ideia de um
objeto determinado o sujeito a ela se dirige para querer, não querer, temer, amar etc.; e, por fim,
há aqueles pensamentos que estabelecem relações de aplicação entre as ideias e o mundo
externo7 ao afirmar ou negar que se trata do caso, e esses são os chamados juízos. Dessa forma,
os pensamentos são divididos por Descartes no que parecem compor três gêneros: ideias,
metaforicamente apresentadas no texto como imagem; atitudes mentais (vontades ou afecções)
e juízos, que são ambos atos que o sujeito acrescenta às ideias. É importante ressaltar aqui que
os juízos também são atitudes mentais (de afirmar ou negar), visto que são atos adicionados
pelo sujeito às ideias, embora a divisão apresentada pareça inclui-los numa categoria distinta.
Isso significa que, de fato, existem apenas dois gêneros de pensamento, que são as ideias e as
atitudes mentais; e que os juízos são destacados na apresentação dessas últimas porque
constituem um tipo de ato mental distinto dos outros à medida que ele envolve a possibilidade
de ser enganoso.
Com essa explanação, Descartes cumpre a tarefa de classificação das distintas formas
de pensamento do eu e identifica entre elas a que precisamente admite verdade ou falsidade
5 « […] il faut ici que je divise toutes mes pensées en certains genres, et que je considère dans lesquels de ces genres il y a proprement de la vérité ou de l’erreur » (AT IX, 29). 6 « […] quelques-unes sont comme les images des choses, et c’est à celles-là seuls que convient proprement le nom d’idée […] » (AT IX, 29). 7 O juízo é o ato de pensamento que, ao afirmar ou negar o conteúdo de uma ideia, lança-a para algo de exterior ou independente do pensamento de modo que quando é conforme a isto, o juízo é verdadeiro, e quando não é, o juízo é falso. Daqui por diante esta noção de projeção para algo que é independente do pensamento será sintetizada em fórmulas como “o juízo concorda (ou discorda) com algo de externo, ou independente, ou com o mundo etc”.
25
formal: o juízo. Entretanto, o bom desenvolvimento da exposição exige o aprofundamento da
analogia com as imagens que está na base da definição de ideia para que, por um lado, não se
incorra em erros grosseiros acerca da definição de ideia e, por outro lado, seja possível
compreender as especificidades e inovações de Descartes no que concerne à teoria das ideias e
sua influência em contextos fundamentais do sistema cartesiano.
Afirmar que as ideias são como imagens remete imediatamente à noção de imagem
pictórica, que são as imagens compostas por características das coisas corporais sensíveis que
guardam semelhança com o mundo externo sensível. Contudo, parece que o objetivo de
Descartes não é o de identificar ideia a imagens pictóricas, mas de meramente trazer à baila o
aspecto relevante do conceito de imagem para a construção da concepção de ideia, a saber, o
fato de o objeto de uma imagem estar ali visando o original ou a outros do mesmo tipo: esses
aspectos podem ser resumidos ao que se entende por representação. Dessa forma, ao dizer que
a ideia é como imagem, Descartes não quereria assumir os componentes sensíveis e particulares
presentes numa pintura como correlatos aos conteúdos das ideias, mas apenas estaria
estabelecendo com a imagem pictórica uma analogia para a função intencional da ideia. Em
favor dessa interpretação, segue a citação de parte das Respostas às Terceiras Objeções (a
Thomas Hobbes) em que Descartes, além de contestar a identificação entre imagem pictórica e
ideia proposta pelo objetor, oferece um argumento que será explorado logo em seguida:
[...] [meu crítico] deseja que o termo ‘ideia’ seja tomado como se referindo
simplesmente às imagens das coisas materiais pintadas na imaginação corpórea; e,
caso isso seja concedido, torna-se fácil para ele provar que não pode haver de um anjo
ou de Deus nenhuma ideia apropriada. Entretanto, eu deixo bem claro em diversos
lugares do livro, e nessa passagem em particular, que eu estou tomando a palavra
‘ideia’ como se referindo ao que quer que seja imediatamente percebido pela mente.
[...] Eu empreguei a palavra ‘ideia’ por se tratar de um termo filosófico padrão
utilizado para se referir às formas da percepção pertencentes à mente divina, ainda
que reconheçamos que Deus não possua nenhuma imaginação corpórea [...] (AT VII
181)8.
8 « Par le no d’idée, il veut seulement qu’on entende ici les images des choses matérielles dépeintes en la fantaisie corporelle ; et cela étant supposé, il lui est aisé de montrer qu’on ne peut avoir aucune propre et véritable idée de Dieu ni d’un ange ; mais j’ai souvent averti, et principalement en ce lieu-là même, que je prends le nom d’idée pour tout ce qui est conçu immédiatement par l’esprit. […] et je me suis servi de ce nom [idée], parce qu’il était déjà communément reçu par les philosophes, pour signifier les formes des conceptions de l’entendement divin, encore que nous ne reconnaissions en Dieu aucune fantaisie ou imagination corporelle […] » (AT IX, 141).
26
Como se pode notar, Descartes recusa a identificação entre imagem corpórea e ideia ao
aludir à definição dessa última como aquilo que é imediatamente percebido pela mente, o que
superficialmente admite ser lido como menção à variedade de conteúdos pensados que
extrapola a forma da imagem pictórica. Em suma, esse argumento de Descartes poderia ser
reconstruído da seguinte maneira: 1) tudo aquilo que é imediatamente percebido pela mente é
uma ideia; 2) algumas coisas que são imediatamente percebidas pela mente não são figurativas,
como, por exemplo as ideias de coisas imateriais; 3) se há ideias de coisas que não são
figurativas, então a natureza da ideia não pode ser reduzida à exibição de conteúdos pictóricos.
Todavia, essa argumentação ainda não seria suficiente para esclarecer o entendimento de
Hobbes do termo ideia porque não resolve justamente o que aparece como crítica nessa parte
das Terceiras Objeções, a saber, que a possibilidade de as ideias serem estritamente figurativas
constitui um problema grave para o andamento da ordem das razões que leva à prova da
existência de um Deus veraz a partir de uma ideia clara e distinta. O raciocínio de Hobbes parte
da analogia com a imagem para a concepção de ideia como figurativa e toma essa compreensão
como uma dificuldade aniquiladora para a prova da existência de Deus.
Em função disso, Descartes necessita oferecer um argumento mais forte para descontruir
a associação hobbesiana entre ideia e imagem corpórea. Esse argumento é o que recorre à ideia
como termo filosófico padrão para se referir aos conteúdos presentes no intelecto divino. A
partir desse recurso, Descartes é capaz de mostrar que o termo ideia possui uma história a partir
da qual está sendo realizado seu emprego moderno, o que significa que o uso do termo não é
aleatório e, mais importante, conserva alguma relação com o emprego original. Indicar que a
aplicação do termo ideia não é aleatória tem a função de deixar claro para Hobbes que não se
pretende nenhuma reinvenção do significado do termo, mas apenas a atualização (ou
modernização) do seu significado tradicional. De acordo com Alanen (2003, p.118-119), o
interesse de Descartes no uso do termo ideia remonta ao uso desse na tradição agostiniana, que
o restringe ao divino: ideias são as formas puras e inteligíveis presentes no intelecto divino
através das quais Deus conhece todas as coisas. É justamente esse caráter puramente inteligível
das ideias do intelecto divino que interessa Descartes no momento em que decide aplicar esse
termo aos conteúdos do intelecto humano9, já que esses conteúdos não são abstraídos da
experiência sensível, e são apenas representações de objetos (materiais ou imateriais) possíveis
tais quais as formas do intelecto divino são modelos das coisas atualmente existentes. Com isso,
9 Além de Lilli Alanen (2003), Michael Ayers (1998), Nicholas Jolley (1990) e Anthony Kenny (1968) destacam a mudança de sentido no uso do termo ideia realizado por Descartes e que se verifica no emprego do termo para tratar daquilo que é pensado pela mente humana.
27
Descartes pode descontruir a concepção de Hobbes sobre o caráter necessariamente figurativo
das ideias ao mostrar que o termo carrega uma atualização do seu significado tradicional
responsável por garantir-lhe a marca do que é inteligível e universal. Ainda que para Descartes
aparentemente nem toda ideia seja do inteligível ou do universal, o que se considera aqui é que
ele, ao referir-se ao termo tradicional ideia, admite que nem todas as ideias são figurativas.
Ainda no propósito de esclarecimento do sentido em que a analogia com a imagem não
trata de nenhuma dependência entre ideia e imagem corpórea, é preciso considerar os estudos
de Descartes sobre a visão na Dióptrica. O principal argumento aí presente contra a tese de que
a ideia depende de uma imagem pictórica como meio de exibição de conteúdos, ou seja, a tese
de que a ideia é figurativa, está calcado na distinção real entre a mente e o copo. A imagem
corpórea formada no cérebro através da ação dos sentidos não é responsável por causar a
produção das ideias de sensação percebidas pela mente como que por transmissão de suas
características imagéticas ao espírito. O processo de causalidade mecânica que explica a
formação da imagem no fundo do olho e sua posterior transmissão ao cérebro não pode ser o
mesmo que explica a produção de sensações numa substância de natureza completamente
distinta da natureza corpórea e sobre a qual as leis da mecânica não possuem qualquer efeito. É
nesse sentido que Descartes afirma que não é a imagem presente no nosso cérebro a causa da
ideia de sensação de visão exibida na alma como se esta possuísse olhos com os quais pudesse
ver e apreender a imagem pintada no cérebro:
Ora, ainda que essa pintura, passando assim até o interior de nossa cabeça, retenha
sempre alguma coisa da semelhança dos objetos dos quais ela procede, não se deve,
todavia, como eu já vos fiz muito suficientemente entender, deixar-se persuadir que
seja por meio dessa semelhança que ela faça que nós o sintamos, como se existisse,
novamente, outros olhos em nosso cérebro, com os quais nós pudéssemos perceber
[…] (AT VI, 130; DE, 164)10.
Por meio dessa analogia com a visão, Descartes pode mostrar que o processo de produção das
ideias de sensação difere do processo de formação das imagens, pois tratam-se de processos de
naturezas distintas. E isso fica ainda mais claro logo em seguida quando Descartes atribui a
constituição das ideias de sensação a uma instituição natural, tornando, segundo essa
10 « Or, encore que cette peinture, en passant ainsi jusques au dedans de notre tête, retienne toujours quelque chose de la ressemblance des objets dont elle procède, il ne se faut point toutefois persuader, ainsi que je vous ai déjà tantôt assez fait entendre, que ce soit par le moyen de cette ressemblance qu’elle fasse que nous le sentons, comme s’il y avait derechef d’autres yeux en notre cerveau, avec lesquels nous la pussions apercevoir » (AT VI, 130 ; FA, I, 699)
28
perspectiva, mais patente sua rejeição à tese hobbesiana: “[...] são os movimentos pelos quais
a pintura é composta que, agindo imediatamente contra nossa alma, uma vez que ela está unida
a nosso corpo, são instituídos pela natureza para fazer a alma ter tais sensações” (AT VI, 130;
DE, 164)11. A perspectiva da instituição natural trazida por Descartes tem por função explicar
a relação existente entre o conteúdo das ideias de sensação e a ação dos objetos externos sobre
os órgãos dos sentidos sem justamente apelar para o modelo de transmissão mecânica, do corpo
para a mente, das características físicas da sensação produzida no corpo. As ideias de sensação
guardam sim alguma relação com o que ocorre no corpo, entretanto seu conteúdo não pode ser
explicado a partir da causalidade mecânica que explica a formação da imagem no cérebro, por
exemplo. Uma ideia de sensação exprime, então, em última instância, o que se passa no corpo
porque se trata de uma instituição natural que determinados movimentos nos órgãos dos
sentidos provoquem tais e tais ideias na mente. Descartes trata claramente dessa irredutibilidade
do conteúdo das ideias às imagens corpóreas numa passagem de suas Notae in programma em
que explica o sentido da natureza inata das ideias:
[...] nada pode vir dos objetos exteriores até nossa alma, por meio dos sentidos, que
não alguns movimentos corporais; mas nem esses movimentos mesmos, nem as
figuras que deles provêm são concebidos por nós tais como eles o são pelos órgãos
dos sentidos, como eu expliquei amplamente na Dióptrica. De onde se segue que
mesmo as ideias do movimento e das figuras estão naturalmente em nós; e por uma
razão mais forte as ideias da dor, das cores, dos sons e de todas as coisas semelhantes
[a elas] devem-nos ser naturais a fim de que nosso espírito, por ocasião de certos
movimentos corporais com os quais elas não possuem nenhuma semelhança, possa
representá-las (AT VIIIB, 358-359; FA, III, 808-809)12.
Ora, como visto, a constituição da imagem pintada no cérebro se dá segundo um
processo que não é o mesmo daquele da formação da ideia percebida pela mente. Se são
processos distintos, é preciso concluir que a tese de que as ideias dependem de imagens
11 « ce sont les mouvements par lesquels elle [la peinture] est composée, qui, agissant immédiatement contre notre âme, d’autant qu’elle est unie à notre corps, sont institués de la Nature pour lui faire avoir de tels sentiments » (AT VI, 130, FA, I, 699) 12 [...] rien ne peut venir des objets extérieures, jusqu’à notre âme, par l’entremise de sens que quelques mouvements corporels; mais ni ces mouvements mêmes, ni les figures qui en proviennent, ne sont point conçues par nous tels qu’ils sont dans les organes des sens, comme j’ai amplement expliqué dans la Dioptrique. D’où il suit que même les idées du mouvement et des figures sont naturellement en nous: et à plus forte raison les idées de la douleur, des couleurs, des sons, et des toutes les choses semblables, nous doivent-elles être naturelles, afin que notre esprit, à l’occasion de certains mouvements corporels avec lesquels elles n’ont aucune ressamblance, se les puisse représenter (AT VIIIB, 358-359; FA, III, 808-809).
29
pictóricas para exibir algum conteúdo ao intelecto não se sustenta, como acredita Hobbes,
porque o conteúdo de uma ideia, seja ele qual for, não pode ser explicado, a princípio por,
nenhum processo de produção mecânica de imagens corpóreas. Dessa maneira, e isso é muito
significativo, é possível mostrar que para Descartes nenhuma ideia depende de nenhum dado
material para ser formada pelo intelecto e não que apenas algumas delas não dependam. A
analogia com a imagem não implica de maneira alguma a noção de imagem corpórea como
constituinte básico das ideias. E é como consequência dessa análise que se pode sustentar de
modo mais seguro que, para Descartes, as ideias são análogas às imagens apenas no que
concerne ao seu caráter intencional, isto é, a qualidade de ser um ato do pensamento que aponta
ou tem em vista algo que não é ele mesmo. Ideias são conteúdos que representam objetos
possíveis ou existentes sem a exigência de qualquer conteúdo figurativo.
Até aqui tratou-se do significado da analogia estabelecida por Descartes entre a ideia e
a imagem. Três argumentos foram explorados a fim de demonstrar a tese de que essa analogia
visa reter o caráter intencional da imagem como definidor da função da ideia, mas não seu
caráter figurativo. A menção à variedade de conteúdos pensados, a escolha do termo tradicional
ideia para designar a forma do pensamento e a noção de instituição natural dos conteúdos das
ideias de sensação foram as razões analisadas para sustentar a recusa cartesiana à identificação
entre ideia e imagem pictórica. Com o propósito de aprofundar ainda mais o sentido dessa
recusa, é necessário esclarecer que ao não depender de uma imagem pictórica, o ato de
representar exercido pela ideia também escapa à noção de reprodução imagética da semelhança.
Isso significa que é preciso tornar mais claro o que significa, nesse contexto, em linhas gerais,
representar13.
O ato de representar, como já visto, é o ato de exibir no intelecto determinado conteúdo
intencional. É a intencionalidade do conteúdo das ideias, a saber, o fato de ser na mente um ato
que visa, que aponta para uma outra coisa que não ele mesmo, aquilo que mais propriamente
define a noção de representação. Segundo toda a análise feita acerca da analogia com a imagem,
é autorizado, portanto, afirmar que o conteúdo intencional exibido pelas ideias não apenas não
é redutível a (ou explicado por) imagens pictóricas, como também não apresenta ao espírito
uma reprodução imagética de semelhança. Recusa-se nessa interpretação o caráter figurativo
da ideia tanto no contexto de sua formação na mente, quanto, no que diz respeito ao conteúdo
13 O tema da representação será debatido e desenvolvido ao longo dessa tese.
30
exibido no intelecto: as ideias não são duplicatas mentais de seus objetos, como é o caso das
representações de imagens numa pintura. A seguir, pretende-se fundamentar essa compreensão.
Acompanhando a análise de André Robinet em seu livro La lumière naturelle: intuition,
disposition, complexion (ROBINET, 1999, p.189-190), a compreensão de representação que se
quer avançar nesse momento, a saber, representação sem reprodução de semelhança, encontra
explicações na ciência cartesiana, nesse caso nas explicações óticas da Dióptrica. Nessa obra,
Descartes, baseando seus estudos acerca da luz – sua propagação, refração, os aspectos óticos
de formação das imagens etc. – na geometria perspectiva, recusa a existência, ou pelo menos
insinua a inexistência, de semelhança mesmo entre a imagem e seu objeto original. Toda a
passagem da analogia entre os raios de luz e o bastão do cego (AT VI, 83-86; DE, 128-132),
logo no início da Dióptrica, permite defender essa interpretação:
[...] não é necessário supor que passe alguma coisa de material, desde os objetos até
nossos olhos, para fazer-nos ver as cores e a luz, nem mesmo que haja algo nesses
objetos que seja semelhante às ideias ou às sensações que temos deles, do mesmo
modo que nada sai dos corpos, os quais são sentidos por um cego, que deve passar ao
longo de seu bastão até a sua mão, e que a resistência ou o movimento desses corpos,
que é a única causa das sensações que ele tem, em nada é semelhante às ideias que ele
concebe desses corpos (AT VI, 85; DE, 131)14.
É preciso comentar que, por mais que a citação fale principalmente da ausência de semelhança
entre as coisas e as ideias, a analogia entre os raios de luz e o bastão é suficiente para dar o tom
da sugestão de que nem mesmo a imagem é semelhante à coisa, visto que ela é formada por
intermédio dos mecanismos de projeção da luz, assim como a percepção do cego é dada pelo
movimento dos corpos que tocam e fazem vibrar o seu bastão. Raios de luz e bastão nessa
analogia constituem os mecanismos de impressão sensível que os corpos exteriores podem
provocar no corpo, sendo a semelhança, portanto, uma suposição sem respaldo científico,
Pois, enquanto eles [os filósofos] não consideram nelas [nas imagens] outra coisa a
não ser que elas devem ter semelhança com os objetos que representam, é impossível
que eles nos mostrem como elas podem ser formadas por esses objetos e recebidas
pelos órgãos dos sentidos externos e transmitidas pelos nervos até o cérebro. E a única
14 « [...] il n’est pas besoin de supposer qu’il passe quelque chose de matériel depuis les objets jusques à nos yeux, pour nous faire voir les couleurs et la lumière, ni même qu’il y ait rien en ces objets, qui soit semblable aux idées ou aux sentiments que nous en avons: tout de même qu’il ne sort rien des corps, que sent un aveugle, et que la résistance ou le mouvement de ces corps, qui est la seule cause des sentiments qu’il en a, n’est rien de semblable aux idées qu’il en conçoit » (AT VI, 85; FA, I, 655).
31
razão que tiveram para supô-las é que, ao ver que nosso pensamento pode ser
facilmente estimulado por um quadro a conceber o objeto que nele está pintado,
pareceu-lhes que ele devia ser, do mesmo modo, estimulado a conceber aqueles
objetos que tocam nossos sentidos por meio de alguns pequenos quadros que se
formariam em nossa cabeça [...] (AT VI, 112; DE, 151)15.
Ora, é a partir desse entendimento que Robinet compreende que a crítica à semelhança
realizada por Descartes na Terceira Meditação possui como suporte razões científicas que
explicam o sentido da representação que não envolve semelhança. A fim de explicitar esse
sentido, o autor em questão (ROBINET, 1999, p. 189-190) recolhe as seguintes passagens da
Dióptrica: 1) “[...] existem muitas outras coisas, além das imagens, que podem estimular nosso
pensamento, como os sinais e as palavras, os quais de modo algum se parecem com as coisas
que significam” (AT VI, 112; DE, 151)16; 2) “[...] não existem quaisquer imagens que devem
assemelhar-se em tudo aos objetos que elas representam, pois de outro modo, não haveria
distinção entre o objeto e sua imagem [...]” (AT VI, 113; DE, 152)17; 3) “[…] quase sempre,
mesmo sua perfeição [das imagens] dependa de que elas não se lhes assemelhem [aos objetos]
tanto quanto poderiam fazer (AT VI, 113; DE, 152)18; e 4) “[...] comumente, para serem mais
perfeitas na qualidade de imagens e representarem melhor um objeto, elas não lhe devem
assemelhar-se (AT VI, 113; DE, 152)19. Na primeira passagem, Descartes fala sobre como os
signos e as palavras, embora não se assemelhem em nada às coisas que eles significam, também
provocam o pensamento, ou, em outras palavras, representam algo no intelecto sem, entretanto,
reproduzir qualquer semelhança no pensamento. A segunda passagem trata de como a imagem
percebida não deve se assemelhar completamente à coisa, pois é essa dessemelhança que
garante que a imagem seja o que é e se diferencie da própria coisa. Deve-se notar que Descartes
admite nessa passagem que pode haver alguma semelhança entre a imagem e a coisa quando
15 « Car, d’autant qu’ils [les philosophes] ne considèrent en elles [les images] autre chose, sinon qu’elles doivent avoir de la ressemblance avec les objets qu’elles représentent, il leur est impossible de nous montrer comment elles peuvent être formées par ces objets, et reçues pas les organes des sens extérieures, et transmises par les nerfs jusques au cerveau. Et ils n’ont eu aucune raison de les supposer, sinon que, voyant que notre pensée peut facilement être excitée, par un tableau, à concevoir l’objet qui y est peint, il leur a semblé qu’elle devait l’être, en même façon, à concevoir ceux qui touchent nos sens, par quelques petits tableau qui s’en formassent en notre tête [...] » (AT VI, 112; FA, I, 684). 16 « […] il y a plusieurs autres choses que des images, qui peuvent exciter notre pensée; comme, par exemple, les signes et les paroles, qui ne ressemblent en aucune façon aux choses qu’elles signifient » (AT VI, 112; FA, I, 684). 17 « […] il n’y a aucunes images qui doivent en tout ressembler aux objets qu’elles représentent: car autrement il n’y aurait point de distinction entre l’objet e son image […] » (AT VI, 113; FA, I, 685). 18 « […] et souvent même, que leur perfection dépend de ce qu’elles ne leur ressemblent pas tant qu’elles pourraient faire » (AT VI, 113; FA, I, 685). 19 « […] souvent, pour être plus parfaites en qualité d’images, et représenter mieux un objet, elles doivent ne lui pas ressembler » (AT VI, 113; FA, I, 685).
32
afirma que a primeira não deve se assemelhar “em tudo” à última sob o risco de tornar-se
indistinguível. Ainda que à primeira vista isso possa parecer problemático para a defesa de que
a inexistência de semelhança entre a imagem e os objetos existentes no mundo é a base
científica da crítica à semelhança feita por Descartes na Terceira Meditação, na verdade, não o
é. Visto que aquilo que se destaca nessa passagem é, propriamente falando, a dessemelhança
entre imagem e objeto como o aspecto que garante a não confusão entre eles, entende-se aqui
que fundamentalmente estão mantidas por Descartes as bases da defesa supracitada, a saber, a
imagem é sempre o produto de processos mecânicos de projeção e absorção de luz tão
complexos e cheios de condicionantes que nos impossibilita falar em semelhança. A terceira
passagem tem um sentido próximo ao da segunda à medida que afirma que a perfeição das
imagens é maior quanto mais dessemelhante for, assumindo assim que possam haver
similaridades, mas que a dessemelhança é um aspecto de extrema importância na configuração
das imagens. E sob um ponto de vista científico, a explicação vem logo em seguida com a
quarta passagem, que trata da representação em perspectiva, o que exige, para que a
representação seja mais perfeita, que ela seja dessemelhante. Uma representação em
perspectiva, em função de suas regras, representa melhor determinadas figuras à medida que
são menos semelhantes a elas, como é o caso dos círculos que são melhores representados por
ovais que por outros círculos, segundo Descartes:
[…] segundo as regras da perspectiva, elas geralmente representam melhor os círculos
por ovais do que por outros círculos, e os quadrados por losangos do que por outros
quadrados, e assim para todas as outras figuras [...] Ora, devemos pensar o mesmo das
imagens que se formam em nosso cérebro [...] (AT VI, 113; DE, 152)20.
É notadamente a noção de representação em perspectiva que explica o sentido em que
uma representação pode ser dessemelhante. Descartes afirma que é óbvio que a imagem
[...] é julgada pelo conhecimento, ou opinião, que se tem da posição das diversas
partes dos objetos, e não pela semelhança das pinturas que estão no olho, pois essas
pinturas contêm apenas ovais e losangos, enquanto nos fazem ver círculos e quadrados
(AT VI, 140-14; DE, 171)21.
20 « […] suivant les règles de la perspective, souvent elles représentent mieux des cercles par des ovales que par d’autres cercles ; et des carrés par des losanges que par d’autre carrés ; et ainsi de toutes les autres figures […] Or il faut que nous pensions tout de même des images qui se forment en notre cerveau […] » (AT VI, 113 ; FA, I, 685). 21 « [...] se juge par la connaissance, ou opinion, qu’on a de la situation des diverses parties des objets, et non par la ressemblance des peintures qui sont dans l’oeil: car ces peintures ne contiennent ordinairement que des ovales et des losanges, lorsqu’elles nous font voir des cercles et des carrés » (AT VI, 140-141 ; FA, I, 710).
33
Por fim, o embasamento da crítica à semelhança na ciência da ótica, com suas
explicações da formação da imagem em perspectiva, permite uma compreensão por analogia
da noção de representação sem semelhança realizada pela ideia: assim como não se pode falar
em semelhança nem mesmo entre a imagem pictórica e o objeto original, pois essa imagem
formada já o é em perspectiva, isto é, já é representação dessemelhante (e isso diz respeito à
qualidade da imagem, que representa algo melhor quanto mais lhe é dessemelhante), a ideia é
representação de objetos sem envolver nenhuma dependência de conteúdos imagéticos, ou seja,
o conteúdo representativo das ideias exerce sua função intencional independentemente de
figuração e segundo as leis próprias do funcionamento da mente. Isso significa que o conteúdo
das ideias, mesmo o das ideias da imaginação, é sempre um conteúdo formado pelo
pensamento, segundo as leis e regras próprias de sua natureza. Ainda que a imaginação dependa
dos corpos, pois trata-se de um modo de pensar (não necessário à essência do pensamento) que
“[...] se volta para o corpo [...]”, ela não o faz senão “[...] conforme a ideia que [o espírito]
formou de si mesmo ou que recebeu pelos sentidos” (AT VII, 73; CP, 139, §4)22. É importante
frisar que diante do exposto anteriormente acerca da instituição natural das ideias de sensação,
considera-se aqui que o sentido dessa última citação está de pleno acordo com a interpretação
proposta sobre o caráter independente do conteúdo das ideias no que diz respeito às imagens
corpóreas, já que tanto a ideia que o espírito faz de si mesmo quanto aquelas que ele recebe dos
sentidos são ideias cujo conteúdo depende única e exclusivamente das operações mentais –
ainda que no último caso haja para Descartes uma relação clara com os corpos, mas que se dá
via instituição natural e não via reprodução de semelhança:
E, conquanto, ao me aproximar do fogo, sinta calor e, mesmo, sofra dor, aproximando-
me perto demais, não há, todavia, nenhuma razão que me possa persuadir de que haja
no fogo alguma coisa de semelhante a esse calor, assim como a essa dor; mas tenho
somente razão para acreditar que há alguma coisa nele, qualquer que seja, que provoca
em mim estes sentimentos de calor ou dor (AT VII, 83; CP 145, §28)23.
22 « […] se tourne vers le corps […] » « […] conforme à l’idée qu’il a formée de soi-même ou qu’il a reçue par les sens » (AT IX, 58). 23 « Et quoiqu’en approchant du feu je sente de la chaleur, et même que m’en approchant un peu trop près je ressente de la douleur, il n’y a toutefois aucune raison qui me puisse persuader qu’il y a dans le feu quelque chose de semblable à cette chaleur, non plus qu’à cette douleur ; mais seulement j’ai raison de croire qu’il y a quelque chose en lui, quelle qu’elle puisse être, qui excite en moi ces sentiments de chaleur ou de douleur » (AT IX, 66)
34
Todas essas passagens da Dióptrica acerca da inexistência de semelhança entre as
imagens e seus objetos têm por função colocar um argumento que visa esclarecer o sentido em
que se pode falar em representação sem semelhança como sendo a característica mais
significativa, pelo menos até esse momento, da noção de ideia que está sendo empregada por
Descartes. Ora, se como visto não se pode falar cientificamente sobre semelhança nem mesmo
entre a imagem pictórica e seu objeto, não é razoável supor que o conteúdo das ideias seja a
exibição no intelecto de qualquer semelhança. Pois, independentemente dos argumentos já
analisados acerca da irredutibilidade do conteúdo das ideias às imagens pictóricas, ainda que
se pudesse realizar uma explicação desse conteúdo via imagem, não se poderia, contudo,
segundo as concepções óticas de Descartes, falar em reprodução de semelhança entre ideia e
objeto: se a imagem pintada no cérebro não se assemelha ao objeto original, a ideia do objeto
não poderia envolver semelhança alguma para com ele, mesmo que houvesse semelhança entre
a ideia e a imagem corpórea. De modo que é preciso compreender e admitir que o emprego da
noção cartesiana de representação está definitivamente ligado apenas ao seu caráter intencional
e nunca à condição de reprodutibilidade imagética, como pensa Hobbes.
1.2 – Uma via tradicional de classificação das ideias
Tendo frisado o caráter intencional das ideias expresso pela analogia com a imagem e
exposto quais, dentre os gêneros de pensamento, são passíveis de erro ou engano – a saber, os
juízos, que são atitudes mentais que projetam no mundo o conteúdo de uma ideia ao afirmá-lo
ou negá-lo – deve-se dar seguimento à exposição da teoria cartesiana das ideias.
Para compreender as passagens que se seguem na Terceira Meditação é preciso ter em
mente que o projeto, nesse momento da meditação, trata de descobrir se há atualmente algum
Deus e se ele é enganador. Em razão disso, Descartes propõe, em seguida à definição das formas
de pensamento vista no início da primeira seção, um método de classificação das ideias, que
mais tarde será rejeitado, cuja base é a preocupação com a origem de seus conteúdos. Segundo
essa classificação, as ideias são inatas quando sua origem remonta ao surgimento (criação) da
própria mente; são adventícias quando vêm de fora da mente; ou são fictícias quando são
inventadas pela mente: “ora, destas ideias umas me parecem ter nascido comigo, outras ser
estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo.” (AT VII, 37-38;
35
CP, 109-110, §10)24. A exploração dessa classificação traz para a discussão a tese tradicional
segundo a qual a origem das ideias nas coisas corpóreas explica a semelhança das ideias com
as coisas; tese essa que estaria na base da teoria do conhecimento de uma tradição e que sustenta
que é possível conhecer verdadeiramente as coisas existentes e Deus porque a origem das ideias
nas coisas externas explica e garante a semelhança entre elas. Nessas passagens, está contida a
já referenciada crítica cartesiana à semelhança entre ideia e objeto. Como ficará claro em
seguida, Descartes rejeita esse método de classificação das ideias porque ele é baseado no
pressuposto de que as ideias, em especial as ideias verdadeiras, exibem no intelecto a
semelhança de seus objetos; e é essa semelhança que é explicada a partir da origem adventícia
de algumas ideias, o que garantiria sua veracidade. Dessa forma, ao recusar o pressuposto da
semelhança, o próprio método de classificação das ideias perde o sentido, o que leva Descartes
a introduzir uma outra via de classificação das ideias.
Eis a exposição da argumentação cartesiana. Descartes impõe-se o exame da tese: “e o
que devo fazer principalmente neste ponto é considerar, no tocante àquelas que me parecem vir
de alguns objetos localizados fora de mim, quais as razões que me obrigam a acreditá-las
semelhantes a esses objetos" (AT VII, 38; CP, 110, §10)25. O exame inicia-se pela apuração das
razões que levam a crer que algumas ideias (as adventícias) têm origem nos objetos externos.
Sob escrutínio aqui, estão as razões de uma tradição para justificar o modelo que parte da
experiência sensível como pressuposto para o conhecimento do mundo e de Deus. Descartes
afirma que:
A primeira dessas razões é que me parece que isso me é ensinado pela natureza; e a
segunda, que experimento em mim próprio que essas ideias não dependem, de modo
algum, de minha vontade; pois amiúde se apresentam a mim mau grado meu, como
agora, quer queira quer não, eu sinto calor, e por esta razão persuado-me de que este
sentimento ou esta ideia de calor é produzido em mim por algo diferente de mim
mesmo, ou seja, pelo calor do fogo ao pé do qual me encontro. E nada vejo que pareça
mais razoável do que julgar que essa coisa estranha envia-me e imprime em mim sua
semelhança, mais do que qualquer outra coisa. (AT VII, 38; CP 110, §11)26.
24 « Or de ces idées les unes me semblent être nées avec moi, les autres être étrangères et venir de dehors, et les autres être faites et inventées par moi-même » (AT IX, 29). 25 « Et ce que j’ai principalement à faire en ce endroit, est de considérer, touchant celles qui me semblent venir de quelques objets qui sont hors de moi, quelles sont les raisons qui m’obligent à les croire semblables à ces objets » (AT IX, 30). 26 « La première de ces raisons est qu’il me semble que cela m’est enseigné pas la nature ; et la seconde, que j’expérimente en moi-même que ces idées ne dépendent point de ma volonté ; car souvent elles se présentent à moi malgré moi, comme maintenant, soit que je le veuille, soit que je ne le veuille pas, je sens de la chaleur, et pour cette cause je me persuade que ce sentiment ou bien cette idée de la chaleur est produite en moi par une chose différente de moi, à savoir par la chaleur du feu auprès duquel je me rencontre. Et je ne vois rien qui me semples
36
As razões dessa tradição para sustentar que a origem de algumas ideias está em objetos externos
ao pensamento são o ensinamento natural e a invonluntariedade das percepções. Isso significa
que costumeiramente se julga que a origem das ideias está nas coisas externas porque
naturalmente se aprendeu a associar a involuntariedade de certas percepções às coisas externas
ao sujeito: um instinto natural conduz o sujeito à crença de que suas percepções involuntárias,
ou seja, aquelas que não têm sua origem explicada pelo próprio sujeito, são explicadas pelas
coisas externas.
Todavia, Descartes apresenta dois argumentos cujo propósito é refutar as razões da
tradição para crer que a origem das ideias são as coisas e que isso explica a semelhança entre
elas. O primeiro argumento aplica-se à justificativa do ensinamento da natureza, que, diante
daqueles da luz natural, significam apenas uma inclinação para crer e não um ensinamento que
obriga a reconhecer algo como verdadeiro: “[...] entendo somente por essa palavra natureza
uma certa inclinação que me leva a acreditar nessa coisa, e não uma luz natural que me faça
conhecer que ela é verdadeira.” (AT VII, 38; CP, 110, §12)27. A luz natural compele de tal
maneira o assentimento do sujeito que seria impossível que ele duvidasse de seus ensinamentos,
tal como “[...] ela me fez ver, há pouco, que do fato de eu duvidar, podia concluir que existia.”
(AT VII 38; CP 110, §12)28. Isso significa que a inclinação para crer que as ideias vêm das
coisas não contém em si a força do ensinamento inquestionável capaz de tornar alguma coisa
evidente e irrecusável para o sujeito pensante. Por fim, para além de não ser como a luz natural,
Descartes aponta para que também não há nada de especial nas (outras) inclinações naturais
que garanta sua confiabilidade: frequentemente, é através de tais inclinações que se justifica
toda sorte de comportamentos viciosos. Se é assim, então, no que diz respeito a crenças, elas
não seriam particularmente confiáveis:
Mas, no que se refere a inclinações que também me parecem ser para mim naturais,
notei frequentemente, quando se tratava de escolher entre as virtudes e os vícios,
que elas não me levaram menos ao mal do que ao bem; eis porque não tenho motivos
plus raisonnable, que de juger que cette chose étrangère envoie et imprime en moi sa ressemblance plutôt qu’aucune autre chose » (AT IX, 30). 27 « […] j’entends seulement par ce mot de nature une certaine inclination qui me porte à croire cette chose, et non pas une lumière naturelle qui me fasse connaître qu’elle est vraie » (AT IX, 30). 28 « […] elle m’a tantôt fait voir que, de ce que je doutais, je pouvais conclure que j’étais » (AT IX, 30).
37
de segui-las tampouco no referente ao verdadeiro e ao falso. (AT VII, 39; CP 110,
§12)29.
O segundo argumento de Descartes incide sobre a involuntariedade das ideias e afirma
que assim como há inclinações que estão no sujeito independentemente de sua vontade, pode
ser que exista alguma faculdade própria do sujeito pensante capaz de produzir essas ideias que
parecem vir de fora, embora ela não seja ainda conhecida. Se no sonho é possível ter tais
percepções involuntárias sem a presença das coisas a que a tradição parece atribuir sua origem,
então é razoável conceber que essas percepções tenham origem numa faculdade oculta do
sujeito e não nos objetos do mundo:
[...] assim talvez haja em mim alguma faculdade ou poder próprio para produzir essas
ideias sem auxílio de quaisquer coisas exteriores, embora ela não me seja ainda
conhecida; como, com efeito, sempre me pareceu até aqui que, quando durmo, elas se
formam em mim sem a ajuda dos objetos que representam. (AT VII, 39; CP 110-111,
§13)30.
A argumentação de Descartes mostra até aqui que as razões da tradição para crer na tese
de que a origem das ideias está nas coisas externas são fracas e mal fundadas. Isso porque as
inclinações naturais, por se tratarem mais de um impulso do que da razão (ou razões), não
garantem especialmente nenhuma confiabilidade de sua correção; e a involuntariedade de certas
percepções pode ser explicada por uma faculdade oculta do sujeito que seja produtora dessas
percepções. Entretanto, segundo Descartes, ainda que esses argumentos não fossem suficientes
para minar a crença na origem externa das ideias, de modo que se aceitasse que as ideias têm
origem nas coisas, não haveria, ainda assim, motivo para sustentar a tese da semelhança quando
o que se observa, na verdade, é a diferença entre ideia e a coisa representada:
(...) encontro em meu espírito duas ideias de sol inteiramente diversas: uma toma sua
origem nos sentidos e deve ser colocada no gênero daquelas que disse acima provirem
de fora, e pela qual o sol me parece extremamente pequeno; a outra é tomada nas
razões da Astronomia, isto é, em certas noções nascidas comigo, ou, enfim, é formada
29 « Mais pour ce qui est des inclinations qui me semblent aussi m’être naturelles, j’ai souvent remarqué, lorsqu’il a été question de faire choix entre les vertus et les vices, qu’elles ne m’ont pas moins porté au mal qu’au bien ; c’est pourquoi je n’ai pas sujet de les suivre non plus en ce qui regarde le vrai et le faux » (AT IX, 30). 30 « […] ainsi peut-être qu’il y a en moi quelque faculté ou puissance propre à produire ces idées sans l’aide d’aucune chose extérieure, bien qu’elle ne me soit pas encore connue ; comme en effet il m’a toujours semblé jusques ici que, lorsque je dors, elles se forment ainsi en moi sans l’aide des objets qu’elles représentent » (AT IX, 31)
38
por mim mesmo, de qualquer modo que seja, e pela qual o sol me parece muitas vezes
maior do que a terra inteira. Por certo, essas duas ideias que concebo do sol não podem
ser ambas semelhantes ao mesmo sol; e a razão me faz crer que aquela que vem
imediatamente de sua aparência é a que lhe é mais dessemelhante. (AT VII, 39; CP,
111, §13)31.
O exemplo da percepção divergente do sol contesta a tese de que a semelhança ou
verdade das ideias é explicada pela origem externa ao salientar que diante de duas ideias do sol,
uma provinda dos sentidos, e outra provinda das razões da astronomia, que, segundo Descartes,
seria inata, aquela que o sujeito crê ser a mais dessemelhante é a que vem dos sentidos. Assim,
a ideia do sol que parece ser a mais verdadeira, a inata, não tem nenhuma relação com as
propriedades sensíveis expressas pela ideia adventícia do sol. Isso significa que, ainda que seja
verdade que a origem das ideias está nas coisas, o sujeito é inclinado a crer que a ideia mais
verdadeira, mais semelhante ao sol é a inata e não a adventícia, de modo que a tese de que a
origem externa explica a semelhança entre as ideias e as coisas perde sustentação.
Dessa forma, o exame realizado por Descartes mostra que a compreensão tradicional
das ideias é inadequada para levar a cabo o projeto de saber se existe um Deus e se ele é
enganador à medida que põe por terra a tese de que a verdade das ideias é explicada por sua
origem no mundo. Além disso, com a crítica à semelhança, explicitada no argumento do sol,
termina-se por destruir o pressuposto de que as ideias sejam a exibição de semelhanças no
intelecto. E segundo a leitura apresentada na seção anterior, não é por acaso que essa crítica
venha a partir do exemplo da ideia que se forma a partir de razões científicas, pois é em função
do conhecimento científico exposto na Dióptrica que Descartes pode explicar mais longamente
a recusa da semelhança como elemento básico da representação, seja ela imagem corpórea ou
ideia.
Robinet (1999, p.186-193) apresenta uma interpretação acerca dessas passagens da
Terceira Meditação que ressalta, na crítica da via tradicional de classificação das ideias, a
reprovação do pressuposto da semelhança entre ideia e objeto. O autor identifica a via
31 « […] je trouve dans mon esprit deux idées du soleil toutes diverses : l’une tire son origine de sens, et doit être placée dans le genre de celles que j’ai di ci-dessus venir de dehors, par laquelle il me paraît extrêmement petit ; l’autre est prise des raisons de l’astronomie, c’est-à-dire de certaines notions nées avec moi, ou enfin est transformé par moi-même de quelque sorte que ce puisse être, par laquelle il me paraît plusieurs fois plus grand que toute la terre. Certes, ce deux idées que je conçoit du soleil, ne peuvent pas être toutes deux semblables au même soleil ; et la raison me fait croire que celle qui vient immédiatement de son apparence, est celle qui lui est le plus dissemblable » (AT IX, 31).
39
tradicional como a via da similitude, ou seja, aquela que está baseada na concepção de ideia
como imagem-reprodução, como semelhança; e identifica a via cartesiana como aquela que
apresenta uma outra concepção de ideia, a saber, a ideia-quadro, aquela cuja função
representacional não envolve semelhança. Segundo Robinet, é através da luz natural que
Descartes pode recusar a via da similitude e seguir autorizadamente a via cartesiana, pois
enquanto são apresentadas razões para rejeitar a via da similitude, a via cartesiana se estabelece
a partir de “dados mais imediatos da luz natural” (ROBINET, 1999, p.192). Essa passagem de
Robinet pode ser entendida como afirmação de que o processo de introdução da via cartesiana
se dá a partir da atenção do meditador, através de uma análise introspectiva, aos dados mais
simples concernentes às ideias, a saber, como será mais detalhadamente exposto, que elas são
formas de pensar que exibem um determinado conteúdo no pensamento, conteúdos esses que
são representações de coisas e que, entretanto, ao que tudo indica, não envolvem semelhança.
Dessa forma, é possível interpretar, apoiado numa leitura de Robinet, que o foco de Descartes
em toda essa passagem da Terceira Meditação é ainda o de tornar mais claro o sentido da
analogia com a imagem, mostrando por fim que o método de classificação das ideias baseado
na noção de semelhança deve ser rejeitado porque a compreensão da ideia como exibição de
semelhança é um equívoco. E é um equívoco porque a luz natural mostra
[...] que até esse momento não foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas
por um cego e temerário impulso, que acreditei haver coisas fora de mim, e diferentes
do meu ser, as quais, pelos órgãos dos meus sentidos ou por qualquer outro meio que
seja, enviam-me suas ideias ou imagens e imprimem em mim suas semelhanças (AT
VII, 39-40, CP, 111, §14)32.
O principal elemento dessa discussão não é, portanto, qual é a via mais adequada de
classificação das ideias, mas sim a própria concepção de ideia. É preciso que sejam oferecidas
razões para se recusar a noção de ideia baseada no pressuposto da semelhança, ou seja, para se
rejeitar a compreensão de que ideia é reprodução imagética da semelhança de seus objetos para,
enfim, apresentar o adequado entendimento do que é ideia. Isso significa que é a partir das
conclusões provindas da luz natural acerca do que é a ideia que se pode introduzir a via
cartesiana, que por meio da análise introspectiva da natureza dessa forma de pensar
representativa, estabelece uma outra classificação a fim de saber se algum dos objetos pensados
32 « […] jusques à cette heure ce n’a point été par un jugement certain et prémédité, mais seulement par une aveugle et téméraire impulsion, que j’ai cru qu’il y avait des choses hors de moi, et différentes de mon être, qui, par les organes de mes sens, ou par quelque autre moyen que se puisse être, envoyaient en moi leurs idées ou images, et y imprimaient leurs ressemblances » (AT IX, 31).
40
existe fora do intelecto. Essa nova via apresentada por Descartes, liberada do pressuposto da
semelhança e das concepções tradicionais, é a apresentação da teoria cartesiana das ideias
propriamente dita, sem a qual o projeto cartesiano não teria condições de ser levado a cabo.
1.3 – A via cartesiana: estrutura e natureza das ideias
A fim de avançar no propósito de compreender a teoria cartesiana das ideias, é
necessário que se ensaie responder, mesmo que de maneira ainda insuficiente, qual é essa
concepção de ideia que é introduzida na Terceira Meditação a partir de sua definição por
analogia com a imagem. O que se sabe até aqui é que a ideia é uma forma de pensamento
representativa, ou seja, que possui função intencional, o que significa dizer que se trata de uma
forma de pensamento que visa, que aponta, que reenvia sempre a um outro que não ela mesma:
a ideia é sempre representação de alguma coisa. Entretanto, essa representação não é uma
duplicata intelectual das coisas que representa como uma reprodução imagética de semelhança
em uma pintura o é. Ao contrário, Descartes recusa que a ideia seja como tal espécie de
reprodução e pretende mostrar que não há razões sólidas para considerá-la dessa maneira. A
ideia é, então, uma operação mental representativa que não envolve semelhança porque não
depende das imagens corpóreas para exibir seu conteúdo e ainda que dependesse, a própria
mecânica sensível de formação das imagens corpóreas mostra que não se pode falar em
semelhança nem mesmo entre a imagem e o objeto original, de modo que em última instância
o pressuposto da semelhança é aquele que menos importa para a constituição das ideias. Nesse
sentido, a concepção de ideia posta em marcha por Descartes é a de representação de objetos
que se forma e se efetiva segundo as exigências e propriedades ontológicas do pensamento. Na
Exposição Geométrica que consta nas Respostas às Segundas Objeções, a definição de ideia
sintetiza esses elementos debatidos até agora:
Pelo nome de ideia, entendo esta forma de cada um de nossos pensamentos por cuja
percepção imediata temos conhecimento desses mesmos pensamentos [...] E assim
não dou o nome de ideia às simples imagens que são pintadas na fantasia; ao contrário,
não lhes dou aqui esse nome, na medida em que se encontram na fantasia corporal,
isto é, na medida em que são pintadas em algumas partes do cérebro, mas somente na
medida em que enformam o próprio espírito, que se aplica a esta parte do cérebro (AT
VII, 217-218; CP, 179)33.
33 « Par le nom d’idée, j’entends cette forme de chacune de nos pensées, par la perception immédiate de laquelle nous avons connaissance de ces mêmes pensées [...] Et ainsi je n’appelle pas du nom d’idée les seules images qui sont dépeintes en la fantaisie; au contraire, je ne les appelle point ici de ce nom, en tant qu’elles sont en la fantaisie
41
Como se pode observar, a ideia é a forma de pensamento que apresenta imediatamente
para o sujeito os conteúdos do seu próprio pensamento, o que significa dizer, por um lado, que
todo ato de pensamento é acompanhado de uma ideia que torna o sujeito consciente do seu
próprio ato, isto é, a ideia é o elemento básico sem o qual não se pode falar nem em consciência,
nem em conhecimento; e, por outro lado, que a ideia informa o espírito de alguma coisa, isto é,
que exibe um conteúdo no intelecto como uma imagem exibe um conteúdo onde quer que esteja
projetada. Entretanto, como já visto, essa informação, essa exibição não depende realmente da
formação de uma imagem na mente, não é isso que traduz a função representativa da ideia, mas
sim o fato de, enquanto representação, a ideia exibir no intelecto um conteúdo intencional.
Assim, enquanto forma de cada um dos pensamentos através da qual o sujeito apercebe-se
imediatamente do conteúdo deles, a ideia é a forma do pensamento que se apresenta como
pensamento de objetos, ou seja, como intencional. É pela percepção imediata dessa forma
intencional de pensar que o sujeito conhece os objetos do seu pensamento. Desse modo, a ideia
é aquilo de que se tem percepção imediata como constituindo um determinado tipo de
pensamento, que é o intencional.
Ora, é perceptível que as colocações de Descartes acerca das ideias remetem-se sempre
a dois aspectos notoriamente fundamentais para seu entendimento, a saber, a ideia é forma de
pensamento e a ideia é exibição de conteúdos no pensamento. Forma e conteúdo são os
elementos mais fundamentais da estrutura das ideias e são assim reconhecidos em função da
análise introspectiva realizada sobre elas que se segue à rejeição do modo tradicional de
classificá-las.
Passa-se, então, nesse instante, à argumentação mais detalhada acerca da introdução da
via cartesiana. Diante da grande problematização da via tradicional de classificação das ideias,
Descartes propõe um outro caminho de investigação para descobrir se entre as ideias do sujeito
há alguma que aponta para algo que existe externamente. Nesse momento, é estabelecida uma
distinção de extrema importância para a teoria cartesiana das ideias, que diz respeito a dois
modos de se levar em consideração a natureza de uma ideia, a saber, como formas de pensar e
como conteúdo pensado. Descartes escreve:
[...] caso essas ideias sejam tomadas somente na medida em que são certas formas de
pensar, não reconheço entre elas nenhuma diferença ou desigualdade, e todas parecem
corporelle, c’est-à-dire en tant qu’elles sont dépeintes en quelques parties du cerveau, mais seulement en tant qu’elles informent l’esprit même, qui s’applique à cette partie du cerveau » (AT IX, 124).
42
provir de mim de uma mesma maneira; mas, considerando-as como imagens, dentre
as quais algumas representam uma coisa e as outras uma outra, é evidente que elas
são bastante diferentes entre si (AT VII 40; CP 111, §15)34.
Como já dito, é através de uma apreciação acerca da natureza e da estrutura das ideias e não
sobre sua origem que Descartes indica, como via de investigação alternativa, a análise das ideias
enquanto maneiras de pensar, por um lado, e conteúdos de pensar (imagem), por outro. Nesse
sentido, Descartes entende que as ideias tomadas nelas mesmas dão ocasião para que se possa
discriminar dois aspectos com relação ao seu modo de ser. Enquanto concebidas como certos
atos de pensamento, as ideias não comportam entre si nenhuma diferença porque são todas,
neste contexto, a realização de um mesmo tipo de ato mental, que é o ato de exibir determinado
conteúdo à mente: a esse modo de consideração das ideias, Descartes chamou de realidade
formal da ideia:
[...] sendo toda ideia uma obra do espírito, sua natureza é tal que não exige de si
nenhuma outra realidade formal além da que recebe e toma de empréstimo do
pensamento ou do espírito, do qual ela é apenas um modo, isto é, uma maneira ou
forma de pensar (AT VII 41; CP 112, §17)35.
Agora, concebidas na qualidade de conteúdos mentais análogos a imagens que representam
objetos diferentes na mente, as ideias são distintas umas das outras. E no que se refere a esse
modo de consideração das ideias, para tratar do seu conteúdo representativo, Descartes faz uso
da noção de realidade objetiva da ideia:
[...] aquelas [ideias] que me representam substâncias são, sem dúvida, algo mais e
contêm em si (por assim falar) mais realidade objetiva, isto é, participam, por
representação, num maior número de graus de ser ou de perfeição do que aquelas que
representam apenas modos ou acidentes (AT VII 40; CP 111, §15)36.
34 « […] si ces idées sont prises en tant seulement que ce sont de certaines façons de penser, je ne reconnais entre elles aucune différence ou inégalité, et toutes semblent procéder de moi d’une même sorte ; mais, le considérant comme des images, dont les unes représentent une chose et les autres une autre, il est évident qu’elles sont fort différentes les unes des autres » (AT IX, 31). 35 « […] toute idée étant un ouvrage de l’esprit, sa nature est telle qu’elle ne demande de soi aucune autre réalité formelle, que celle qu’elle reçoit et emprunte de le pensée ou de l’esprit, dont elle est seulement un mode, c’est-à-dire une manière ou façon de penser » (AT IX, 32). 36 « […] celles qui me représentent des substances sont sans doute quelque chose de plus et contiennent en soi (pour ainsi parler) plus de réalité objective, c’est-à-dire participent par représentation à plus de degrés d’être ou de perfection, que celles qui me représentent seulement des modes ou accidents » (AT IX, 31-32).
43
É importante comentar que Descartes, em pelo menos duas passagens, a saber, no
Prefácio das Meditações e nas Respostas às Quartas Objeções (a Antoine Arnauld), trata da
ideia enquanto tomada materialmente. Na primeira, afirma que “[...] [a ideia] pode ser tomada
materialmente como uma operação do intelecto e nesse caso não se pode dizer que ela é mais
perfeita que eu [...]” (AT VII, 8; FA, II, 391)37. Na segunda passagem, declara que “[...] se
estivéssemos considerando [as ideias] não como representando isto ou aquilo, mas
simplesmente como operações do intelecto, então se poderia dizer que estaríamos tomando-as
materialmente [...]” (AT VII, 232)38. Segundo se entende aqui, a compreensão do que significa
tomar uma ideia materialmente é fundamental para distingui-la da realidade formal da ideia. É
legítimo interpretar que a expressão ‘tomar materialmente’ diz respeito às operações do
intelecto, isto é, faz referência às ideias enquanto operações da mente sem especificar qual o
tipo de operação constitui propriamente uma ideia. Nesse sentido, resumidamente, é apropriado
dizer que uma ideia, tomada materialmente, consiste numa atitude mental, numa modificação
do intelecto que, enquanto tal, é sempre verdadeira à medida que sua natureza se dá
inegavelmente como um ato do intelecto. Essa maneira de encarar as ideias distingue-se da
realidade formal porque essa última, como visto, concerne à ideia enquanto certo tipo de atitude
mental, a saber, o ato de exibir um conteúdo no intelecto, isto é, o ato de representar conteúdos
e que tem função intencional: “[...] todas e quantas vezes que elas [as ideias] são consideradas
enquanto representam alguma coisa, elas não são tomadas materialmente, mas formalmente”
(AT VII, 232)39. Apesar da aparente ambiguidade dessa passagem, em que é dito que, tomada
formalmente, a ideia é representação de alguma coisa, é importante frisar que não há qualquer
meio de confusão entre a realidade formal e a realidade objetiva. Quando Descartes afirma que
a realidade formal da ideia diz respeito ao fato de ser representação de algum objeto, ele
intenciona frisar o aspecto do ato representativo e não o do conteúdo representado (esse sendo
propriamente a realidade objetiva da ideia). A diferença, portanto, entre os modos material e
formal de se considerar uma ideia está em que materialmente falando as ideias, assim como
qualquer outra atitude mental, são essencialmente modos do pensamento; enquanto que
tomadas formalmente, elas são um certo tipo específico de modo, que se diferencia dos outros
por sua natureza, que é representar.
37 « […] [l’idée] peut être pris matériellement pour une opération de mon entendement , et en ce sens on ne peut pas dire qu’elle soit plus parfaite que moi […] » (AT VII, 8; FA, II, 391). 38 « […] si on considérait [les idées], non pas en tant qu’elles représentent une chose ou une autre, mais seulement comme étant des opérations de l’entendement, on pourrait bien à la vérité dire qu’elles serait prises matériellement […] » (AT IX, 180). 39 « […] toutes et quantes fois qu’elles [les idées] sont considerées en tant qu’elles représentent quelque chose, elles ne sont pas prises matériellement, mais formellement [...] » (AT IX, 180).
44
É possível considerar, nesse sentido, que ao analisar as ideias sob os aspectos de suas
realidades material, formal e objetiva, Descartes, enfim, consolida a introdução de uma outra
via de análise das ideias cuja preocupação central volta-se para a explicitação de sua natureza
e estrutura. A tríade de aspectos segundo a qual se pode analisar uma ideia diz respeito a essa
elucidação: a natureza de uma ideia é dada pela sua realidade material, que é o pensamento –
ideia é sempre e somente uma operação intelectual; assim como a natureza dessa operação
intelectual, que é a ideia, é restringida e especificada de forma estrutural pelas suas realidades
formal e objetiva, que designam a ideia como uma determinada forma de pensamento, um ato
mental específico, que se realiza na exibição de determinados conteúdos ao intelecto que visam
sempre um objeto que não se reduz ao próprio pensamento.
Por fim, num resumo didático, é razoável dizer que a realidade formal da ideia consiste
no fato de que ela é um certo tipo de ato mental, que é o ato de exibir um certo conteúdo no
pensamento. Já a realidade objetiva da ideia é o conteúdo exibido no intelecto através do ato de
representar. E o que se poderia chamar de realidade material da ideia é sua condição de modo
da mente, o que a assemelha na base a toda e qualquer outra modificação mental: são todas
pensamento.
Com base nisso, vê-se com mais clareza que a nova via de investigação oferecida por
Descartes enfatiza a natureza das ideias por oposição àquela que levava em consideração sua
origem. Dessa forma, torna-se explícito que a investigação sobre uma eventual existência
externa do objeto representado por alguma delas só pode ser efetuada segundo uma análise
introspectiva das ideias, já que a via tradicional, contestada, perdeu seu suporte teórico. Assim,
uma vez que a nova via é capaz de mostrar que enquanto certos atos da mente as ideias são
todas iguais, resta para ser perscrutado o caminho da realidade objetiva, que será melhor
explorado na seção seguinte.
1.4 – Considerações gerais sobre a noção de realidade objetiva da ideia
A fim de melhor explorar o conceito de realidade objetiva pretende-se aqui, de maneira
preliminar, considerar sua definição presente na Exposição Geométrica constante das Respostas
às Segundas Objeções conjuntamente à discussão com Johannes Caterus nas Primeiras
Objeções. O objetivo consiste em elucidar o que significa, para Descartes, afirmar que uma
ideia apresenta um conteúdo mental que possui um tipo de realidade classificada como objetiva.
Desta forma, o intento é esclarecer por que é possível falar que os conteúdos das ideias são reais
45
e não meramente conceituais, e explicar o que significa esse modo de ser objetivo frente à
concepção tradicional de ser atual.
Descartes define realidade objetiva como “[...] a entidade ou o ser da coisa representada
pela ideia, na medida em que tal entidade está na ideia [...]” (AT VII, 161; CP 179)40. À primeira
vista, o que é dito nessa passagem é que a realidade objetiva de uma ideia é a coisa pensada
existindo por representação na ideia, isto é, a realidade objetiva seria uma espécie de
ser/entidade que possui realidade no pensamento, ou enquanto é pensada. É importante frisar
que objetiva é a maneira pela qual uma coisa existe no pensamento. Isso quer dizer que a
principal característica definidora da realidade objetiva de uma ideia é ser uma realidade no
pensamento, uma entidade que existe por representação no intelecto; diferentemente dos seres
que existem de maneira independente do pensamento e que, por isso, possuem o que Descartes
chama de realidade atual ou formal (e não realidade objetiva).
Essa definição, como já aventado, traz uma série de elementos que precisam ser
clarificados para que possa ser adequadamente compreendida, visto que o entendimento do
conteúdo representado pela ideia como sendo uma realidade no pensamento e sua forma
específica de existência – objetiva – são objeto de críticas, por parte de Caterus, que precisam
ser respondidas com argumentos robustos em nome da consistência da teoria das ideias e
coerência do sistema cartesiano.
Preocupado em questionar a necessidade ou adequação da aplicação do princípio de
causalidade às ideias, que é proposta por Descartes na Terceira Meditação, Caterus apresenta
uma interrogação sobre a concepção de realidade objetiva da ideia elaborada por Descartes, que
o obrigará a oferecer melhores argumentos (dos que os encontrados nas Meditações) para
defender sua posição acerca dessa noção a fim de esclarecer a aplicação às ideias do referido
princípio. Caterus indaga:
(...) de que tipo de causa uma ideia precisa? Aliás, o que é uma ideia? É a coisa que é
pensada à medida que ela tem ser objetivo no entendimento. Mas o que é [o que
significa] ser objetivo no entendimento? De acordo com o que me foi ensinado, é
terminar à maneira de um objeto um ato do entendimento. E isso é meramente uma
denominação extrínseca que nada acrescenta de real à coisa. Tal como ser visto nada
significa além de um ato de visão atribuível a mim mesmo, ser pensado ou ter ser
objetivo no entendimento, significa simplesmente um pensamento da mente que cessa
e se encerra na mente. E isso pode ocorrer sem nenhum movimento ou mudança na
40 « […] l’entité ou l’être de la chose représentée par l’idée, en tant que cette entité est dans l’idée […] » (AT IX, 124).
46
coisa mesma, e, aliás, sem nem mesmo a coisa em questão existir. Então, por que
deveria eu buscar a causa de uma coisa que não é atual, e que é simplesmente uma
denominação vazia, um puro nada? [...]; a realidade objetiva é tão somente uma
denominação, não é nada atual. Ora, a influência que uma causa transmite é real e
atual; mas o que não existe atualmente não pode recebê-la, e, assim, não pode nem
depender, nem proceder de nenhuma causa verdadeira [...] Dessa forma, embora eu
tenha ideias, não há causas para elas [...]. (AT VII, 92-93)41.
A reflexão de Caterus carrega consigo uma forte crítica à concepção cartesiana de
realidade objetiva. É contra a perspectiva de que o ser objetivo no intelecto é uma realidade que
requer causas explicativas de sua natureza que a passagem citada foi escrita. A argumentação
pode ser reconstruída da seguinte maneira: com o propósito de defender a tese de que as ideias
não carecem de, e não estão submetidas à, causalidade, Caterus necessita evidenciar que elas
são apenas conceitos no intelecto, seres de razão que não comportam nenhum tipo de realidade
(atual) suficiente para estarem submetidas a relações causais, que são especificadas pelo autor,
na citação acima, como aquelas que envolvem transmissão atual ou real de influência.
Causalidade sendo explicada como transmissão atual de influência pode ser compreendida
como a relação em que a produção do efeito pela causa sempre envolve criação da, ou
transformação na, realidade de um objeto que existe atualmente. O objetor, ao questionar-se
sobre o que é o ser objetivo no intelecto, recorre à tradição de sua formação para responder que
se trata da realização “à maneira de um objeto o ato do entendimento”, isto é, trata-se da
delimitação, da finalização de um ato da mente como um objeto. Isso significa que o ser objetivo
concerne exclusivamente a uma ação intelectual, que, como uma “denominação extrínseca”,
nem agrega, nem depende da coisa em si mesma. Caterus, ainda mais explicitamente, afirma
que ser pensado refere-se a uma ação mental que se realiza e se encerra completamente na
mente sem qualquer influência na e da coisa mesma, posto que sequer há a necessidade de uma
coisa atualmente existente como condição para algo ser pensado. Ora, se o ser objetivo das
41 « […] quelle cause requiert une idée ? Ou dites-moi ce que c’est qu’idée ? C’est donc la chose pensée, en tant qu’elle est objectivement dans l’entendement. Mais qu’est-ce qu’être objectivement dans l’entendement ? Si je l’ai bien appris, c’est terminer à la façon d’un objet l’acte de l’entendement, ce qui en effet n’est qu’une dénomination extérieure, et qui n’ajoute rien de réel à la chose. Car, tout ainsi qu’être vu n’est en moi autre chose sinon que l’acte que la vision tend vers moi, de même être pensé, ou être objectivement dans l’entendement, c’est terminer at arrêter en soi la pensée de l’esprit ; ce qui se peut faire sans aucun mouvement et changement en la chose, voire même sans que la chose soit. Pourquoi donc recherché-je la cause d’une chose, qui actuellement n’est point, qui n’est qu’une simple dénomination et un pur néant ? […] ; la réalité objective est une pure dénomination ; actuellement elle n’est rien. Or, l’influence que donne une cause est réelle et actuelle ; ce qui actuellement n’est point, ne la peut pas recevoir, e partant ne peut pas dépendre ni procéder d’aucune véritable cause […] Donc j’ai des idées, mais il n’y a point de causes de ces idées […] » (AT IX, 74).
47
ideias é apenas uma denominação extrínseca, um ato que acontece e cessa no intelecto, Caterus
tem condições de compreendê-lo como um ser de razão puramente intelectual, de natureza
lógico-conceitual; e não como uma entidade que contenha em si qualquer modo de existência
atual. Assim, se não se trata de algo real ou atual, não há necessidade de que as ideias sejam
causadas, pois, segundo o próprio Caterus, só uma realidade atual pode requerer causa.
Tendo em vista a importância basilar que o conceito de realidade objetiva detém na
definição da natureza e da função das ideias e para a consistência do sistema cartesiano,
Descartes, nas Respostas às Primeiras Objeções, pretende sustentar a noção de realidade
objetiva. Em nome disso, ele pretende mostrar que sua preocupação dirige-se à natureza do
conteúdo das ideias que, ao serem concebidos, são realidades na mente que precisam ser
explicadas causalmente. Descartes diz:
Eu escrevi que uma ideia é a coisa pensada à medida que tem ser objetivo no intelecto.
Porém, para dar-me uma oportunidade de explicar mais claramente essas palavras, o
objetor finge entendê-las de modo bem diferente daquele no qual as utilizei. Ser
objetivamente no intelecto, diz ele, é terminar à maneira de um objeto o ato do
entendimento, e isso é meramente uma denominação extrínseca que nada acrescenta
de real à coisa em si mesma, etc. Note que ele refere-se à coisa em si mesma como se
ela estivesse localizada fora do entendimento, e nesse sentido ser objetivamente no
intelecto certamente é uma denominação exterior; contudo, eu falo da ideia, que nunca
existe fora do intelecto, e nesse sentido ser objetivamente não significa outra coisa
além de ser no entendimento da maneira como os objetos habitualmente são lá. Assim,
por exemplo, se alguém pergunta o que ocorre com o sol do fato de que ele está
objetivamente no meu entendimento, responde-se muito bem que nada ocorre com ele
além de uma denominação exterior, a saber, que ele termina como um objeto a
operação do meu entendimento. (AT VII, 102)42.
Nessa passagem, Descartes considera, talvez ironicamente, que Caterus propositalmente
teria mal interpretado sua posição sobre o que é a realidade objetiva da ideia para dá-lo a chance
42 « Or j’ai écrit en quelque part, que l’idée est la chose même conçue, ou pensée, en tant qu’elle est objectivement dans l’entendement, lesquelles paroles il feint d’entendre tout autrement que je ne les ai dites, afin de me donner occasion de les expliquer plus clairement. Être, dit- il, objectivement dans l’entendement, c’est terminer à la façon d’un objet l’acte de l’entendement, ce qui n’est qu’une dénomination extérieure, et qui n’ajoute rien de réel à la chose, etc. Où il faut remarquer qu’il a égard à la chose même, comme étant hors de l’entendement, au respect de laquelle c’est de vrai une dénomination extérieure, qu’elle soit objectivement dans l’entendement ; mais que je parle de l’idée, qui n’est jamais hors de l’entendement, et au respect de laquelle être objectivement ne signifie autre chose, qu’être dans l’entendement en la manière que les objets on coutume d’y être. Ainsi, par exemple, si quelqu’un demande, qu’est-ce qu’il arrive au soleil de ce qu’il est objectivement dans mon entendement , on répond for bien qu’il ne lui arrive rien qu’une dénomination extérieure, à savoir qu’il termine à la façon d’un objet l’opération de mon entendement […] » (AT IX, 81-82).
48
de melhor explicá-la. Segundo ele, Caterus, quando afirma que “ser objetivamente no intelecto
é terminar à maneira de um objeto o ato do entendimento” e que isso seria, portanto, apenas
uma denominação extrínseca da coisa mesma, tem como referência a coisa mesma como
existindo fora do pensamento. Nesse sentido, com relação à coisa existindo fora do intelecto,
de fato, conclui Descartes, o ser objetivo no intelecto é uma denominação extrínseca, o que
significa sua independência de qualquer determinação ou influência necessária de objetos
externos ao pensamento.
Ao fim desta passagem, Descartes ressalta que sua fala tratava-se da ideia, que nunca
existe fora do intelecto, e não de qualquer relação entre a ideia e um objeto existente fora do
pensamento, que seria sempre uma relação de designação externa, estranha à natureza do objeto
atual, já que a ideia, como ato do intelecto, não modifica ou influencia a existência dos objetos,
e nem sequer a pressupõe. Neste sentido, o enfoque a ser privilegiado consiste na forma como
o ser objetivo existe na mente. A forma de ser peculiar aos objetos existentes na mente é o
centro da noção de realidade objetiva que Caterus ignorou, segundo Descartes. E é em nome da
precisão dessa visão que ele segue a argumentação:
[...] mas se pergunta-se sobre a ideia do sol o que ela é, e responde-se que se trata da
coisa pensada enquanto ela está objetivamente no entendimento, ninguém
compreenderá que se trata do sol mesmo enquanto essa denominação exterior está
nele. E aqui ser objetivamente no intelecto não significará o término de uma operação
do entendimento à maneira de um objeto, mas sim estar no entendimento da maneira
como seus objetos estão normalmente lá; de tal maneira que a ideia do sol é o sol
mesmo existindo no entendimento; é certo que não existindo formalmente, como ele
está nos céus, mas existindo objetivamente, isto é, da maneira como os objetos
costumam existir no entendimento. Esse modo de ser é claramente muito menos
perfeito que aquele possuído pelas coisas existentes fora do entendimento; mas que,
como eu expliquei, não se trata, no entanto, de um puro nada. (AT VII, 102-103)43.
43 « […] mais si on demande de l’idée du soleil ce que c’est, et qu’on réponde que c’est la chose pensée, en tant qu’elle est objectivement dans l’entendement, personne n’entendra que c’est le soleil même, en tant que cette extérieure dénomination est en lui. Et là être objectivement dans l’entendement ne signifiera pas terminer son opération à la façon d’un objet, mais bien être dans l’entendement en la manière que ses objets ont coutume d’y être ; en telle sorte que l’idée du soleil est le soleil même existant dans l’entendement, non pas à la vérité formellement, comme il est au ciel, mais objectivement, c’est-à-dire en la manière que les objets ont coutume d’exister dans l’entendement : laquelle façon d’être est de vrai bien plus imparfaite que celle par laquelle les choses existent hors de l’entendement ; mais pourtant ce n’est pas un pur rien, comme j’ai déjà dit ci-devant » (AT IX, 82).
49
Mediante à concepção de que a ideia é a coisa pensada, ninguém poderia supor
razoavelmente, segundo Descartes, que isso significasse (ou que fosse tomado como central
para a questão) a coisa em si mesma com uma denominação extrínseca aplicada a si. O que está
em jogo e é essencial para o conceito de ideia é a existência do objeto no intelecto à maneira
como os objetos lá existem. E a fim de esclarecer esses pontos, Descartes propõe um exemplo
para elucidar as noções de realidade e de ser objetivos. Segundo ele, a ideia do sol é o próprio
sol existindo na mente da forma como as coisas existem lá, a saber, objetivamente, por oposição
à formalmente, que se diz da existência do sol como objeto externo ao pensamento,
independentemente de ser concebido. Isso significa que o sol enquanto pensado possui um tipo
de realidade que é própria das coisas enquanto são pensadas. Por quê? As ideias, porque exibem
na mente conteúdos que são objetos do pensamento e que, à medida que sua delimitação como
objetos os coloca para o pensamento como um outro que não se reduz às operações do próprio
pensamento, possuem realidade objetiva e, portanto, exibem seres reais e não meramente
conceituais. Comparativamente com as coisas que possuem realidade formal – isto é, existem
formalmente e não porque são concebidas – esse modo de ser objetivo é menos perfeito.
Entretanto, porque são realidades no pensamento, não podem ser considerados um puro nada.
Logo, a partir do princípio cartesiano de que “o nada não poderia produzir coisa alguma” (AT
VII, 40; CP 112, §17) e que enseja a interpretação de que tudo aquilo que é (tem ser, tem
realidade) requer uma causa, pode-se concluir que as ideias, porque possuem realidade objetiva,
necessitam de causas que, em última instância, as expliquem.
Dessa forma, pode-se considerar, pelo menos preliminarmente (já que se retornará a isso
em mais detalhes no último capítulo dessa tese) que o argumento cartesiano em favor de que o
conteúdo exibido pelas ideias possuam realidade objetiva é o seguinte: porque as ideias exibem
objetos na mente que são irredutíveis às suas próprias operações, isto é, apresentam conteúdos
determinados que como tal estão diante da mente, mas não são ela, que se pode falar
precisamente nesses objetos como reais. Reais porque não podem ser entendidos como seres de
razão, meramente conceituais, dado que não se reduzem às operações da mente. Esta concepção
vai de encontro àquela sustentada por Caterus ao passo que legitima a tese de que a ideia é uma
entidade real, por oposição à tese de que a ideia é uma entidade meramente lógico-conceitual.
Por se tratar de uma entidade real, de um objeto na mente, Descartes conclui que a realidade
objetiva das ideias necessita de explicação causal que é, em última instância, responsável por
tornar inteligível o porquê o sujeito pensa a variedade de ideias que possui em seu intelecto.
50
Para finalizar esse exame inicial acerca da teoria cartesiana das ideias, é preciso apontar
que é com apoio na noção de realidade objetiva da ideia que, na Terceira Meditação, Descartes
pode dar sequência ao seu intento de saber se entre as ideias das coisas a que se tem acesso
introspectivo há alguma que seja de algo que existe para fora do pensamento. A via cartesiana
de análise das ideias, ao considerar que os objetos apresentados na consciência pelo ato mental
representativo possuem um tipo de realidade, própria das coisas enquanto elas são pensadas,
permite demonstrar que pelo menos uma ideia é de algo que existe fora do pensamento. Trata-
se, nesse caso, da primeira prova da existência de Deus44, que parte do reconhecimento de que
o conteúdo da ideia de Deus exibe como objeto um ser perfeito, infinito, eterno, imutável etc.
Na sequência, para o fechamento da seção, propõe-se apenas mencionar genericamente o
procedimento da referida prova, sem analisar adequadamente seus passos, para mostrar como,
em função do conceito cartesiano de realidade objetiva da ideia, Descartes argumenta em favor
da existência de um realidade formal distinta do pensamento, que é Deus. Nesse sentido, tome-
se a ideia de Deus como a ideia de alguma coisa perfeita e infinita. Pelo que foi visto, pode-se
dizer que a ideia exibe um conteúdo que é real, porque se trata de um objeto para a consciência
e não de uma afecção do sujeito. Enquanto alguma coisa de real no pensamento, o conteúdo da
ideia de Deus precisa ser explicado causalmente a fim de que se possa compreender porque é
ideia de Deus e não de outra coisa. A ideia de Deus, por ser a ideia de alguma coisa perfeita e
infinita, deve ter como causa alguma coisa ao menos tão perfeita e infinita quanto ela, pois,
segundo o princípio de causalidade em operação nas Meditações, o menos perfeito não pode
ser causa do mais perfeito. Desse modo, se a ideia de Deus possui um grau de realidade objetiva
maior que aquele que a mente possui, já que a mente é finita e imperfeita, a causa da ideia de
Deus não pode ser o sujeito. Tem de ser, então, algo externo a ele. E isso que é externo ao
sujeito e que pode ser causa da ideia que o sujeito tem de Deus, deve ser Deus mesmo existente
fora da mente como uma realidade formal, uma coisa, eterna, perfeita e infinita.
44 Cf. AT VII, 40-45; CP, 113-115, §§16-22.
51
2 MALEBRANCHE LEITOR DE DESCARTES: A NATUREZA DAS IDEIAS E SEU
PAPEL NA PERCEPÇÃO
A noção de realidade objetiva proposta por Descartes apresenta para a teoria cartesiana
das ideias uma complexidade ligada ao fato de trazer para a ideia uma ambiguidade que se pode
descrever da seguinte maneira: trata-se de um ato da mente que tem por função exibir um
conteúdo como objeto para a consciência. Dessa forma, a ideia é simultaneamente uma
operação mental específica de representação de alguma coisa como objeto e um conteúdo
determinado exibido no intelecto. Enquanto operação mental, as ideias possuem a mesma
realidade formal, pois são o mesmo tipo de ato representativo do pensamento. Mas enquanto
representativas de objetos, as ideias contêm realidade objetiva e não são um “puro nada” (AT
VII, 103; AT IX, 82), um não-ente no intelecto e, por esse motivo, de acordo com Descartes,
ela pode estar submetidas a relações causais, que, então, são capazes de explicar por que as
ideias diferenciam-se umas das outras no que diz respeito ao conteúdo que apresentam na
mente.
O fato de Descartes ter pensado as ideias da maneira como pensa, a saber, como um
evento mental capaz de representar objetos que não se reduzem à mera operação da mente,
como objetos que são, enquanto pensados, alguma coisa de real, possuem realidade no
pensamento, pode ser lido como o estopim de um grande debate acerca do que é uma ideia e
como funciona a percepção. Isso porque ele pode ser tomado como o centro de uma polêmica
que motivará um intenso debate entre Malebranche e Arnauld acerca do que é propriamente
uma ideia, que desemboca numa querela acerca do objeto imediato da percepção. O caráter
ambíguo da teoria cartesiana é interpretado por Malebranche, como se verá, a partir do que se
considera aqui uma radicalização da noção de realidade objetiva empregada por Descartes, isto
é, a partir de uma consideração de que a ideia refere-se, diz respeito, ao conteúdo representativo
percebido pelo sujeito e não propriamente a um ato, ou modificação da mente. Essa
radicalização é frontalmente criticada por Arnauld, que, em nome do resgate da interpretação
correta de Descartes, procura combatê-la.
Tendo isso em vista, nesse capítulo, discutir-se-á a teoria malebranchista da percepção
com o objetivo de elucidar em que medida trata-se de uma teoria diferente da de Descartes, por
que Malebranche propõe o que ele supõe ser uma reinterpretação da teoria cartesiana e quais
são os aspectos próprios da teoria desenvolvida por Malebranche.
52
2.1 A concepção malebranchista de ideia em De la Recherche de la Vérité
2.1.1 As ideias são os objetos imediatos da percepção
No livro III, parte II, capítulo 1 de seu livro De la Recherche de la Vérité, doravante
Recherche, Malebranche apresenta sua concepção de ideia no contexto da introdução da tese
de que a percepção dos objetos externos a nós não se dá diretamente. Malebranche afirma:
Eu penso que todos concordam com que nós não percebemos os objetos externos a
nós por eles mesmos. Nós vemos o sol, as estrelas e uma infinidade de objetos
externos a nós; e é improvável que a alma deixe o corpo para passear pelos céus, por
assim dizer, a fim de contemplar todos esses objetos. (OCM, I, 413)45.
Segundo a citação acima, a alma percebe diversos objetos, em diversas condições
espaciais distintas. Entretanto, é inverossímil supor que ela se afaste do corpo para perambular
por entre os diversos objetos que percebe em diferentes condições a fim de observá-los. Nessa
afirmação, Malebranche reconhece como um dado o fato de a alma perceber uma infinidade de
objetos externos a si mesma. Mas, trata como problemática a suposição de que essa percepção
ocorra diretamente, pois, segundo ele, não seria razoável pensar que a alma pudesse abandonar
o corpo em direção aos objetos externos que ela percebe.
É preciso aqui compreender o porquê de Malebranche tomar essa última afirmação
como argumento em favor da tese de que os objetos externos não são percebidos diretamente.
Numa primeira análise, pode-se observar que ainda que não esteja explícita nessa citação a sua
justificativa, o que a torna aparentemente arbitrária, Malebranche pode afirmá-la como
consequência do que nela está implícito como um pressuposto muito importante para sua teoria
da percepção. Esse pressuposto admite que é necessário que haja a presença imediata do objeto
percebido para aquele que o percebe. Sem um pressuposto como esse, não se poderia defender
tão categoricamente a noção explícita na citação de que a percepção que a alma tem da
diversidade de objetos que ela percebe não pode ser explicada senão pela presença, pela
proximidade da alma com cada um dos objetos, isto é, de que não há percepção à distância.
Entretanto, no contexto dessa primeira análise, ainda que aparentemente o texto dê a entender
45 «Je croi que tout le monde tombe d’accord, que nous n’appercevons point les objets qui sont hors de nous par eux-mêmes. Nous voyons le Soleil, les Étoiles, & une infinité d’objets hors de nous ; & il n’est pas vraisemblable que l’âme sort du corps, & qu’elle aille, pour ainsi dire, se promener dans les cieux, pour y contempler tous ces objets» (OCM, I, 413).
53
que a necessidade da presença imediata do objeto no ato perceptivo envolva a noção de
distância e proximidade física, pretende-se frisar a interpretação de que o texto trata
propriamente da “distância” ontológica existente entre as coisas materiais e as espirituais, que
possuem naturezas distintas. Essa leitura apoia-se na compreensão de que o pressuposto da
necessidade da presença real do objeto no momento da percepção é especificado pela passagem
em seguida:
Ela [a alma] não os vê [os objetos] por eles mesmos, e o objeto imediato da nossa
mente quando ela vê o sol, por exemplo, não é o sol, mas algo que está intimamente
ligado à nossa alma [...] Eu me refiro aqui a nada além do objeto imediato, ou do
objeto mais próximo da mente quando ela percebe alguma coisa, isto é, aquele que
afeta e modifica a mente com a percepção que ela tem de um objeto (OCM, I, 413-
414)46.
A passagem do texto vista acima traz um complemento ao pressuposto de que não é
possível haver percepção sem que o objeto esteja imediatamente presente para a alma que
percebe. Esse complemento consiste na ideia de que essa proximidade, essa presença imediata,
significa algo a mais que a mera relação espacial entre o objeto da percepção e a alma. Esse
algo a mais acrescentado concerne à tese de que é necessário haver uma espécie de comunidade
de tipo ontológico entre a alma e o objeto percebido. Assim sendo, o pressuposto da presença
do objeto para a alma que percebe é especificado por esse adendo, dando um acabamento mais
preciso, até o momento, à teoria da percepção de Malebranche. Para que haja percepção é
necessária a presença imediata do objeto, entretanto essa presença não se resume à proximidade
espacial, mas significa a ligação íntima entre a alma e o objeto percebido; ligação essa que se
dá entre coisas da mesma natureza, a saber, entre uma alma espiritual e um objeto espiritual
capaz de afetá-la, modificá-la etc., e que explica a ocorrência da própria percepção. Em razão
disso, a improbabilidade da suposição de que a alma abandone o corpo para contemplar
diferentes objetos externos a ela não se restringe à impossibilidade da percepção à distância,
mas envolve fundamentalmente a impossibilidade de que as coisas externas (materiais, nesse
caso), por possuírem uma natureza distinta a da alma, jamais possam estar realmente presentes
para ela a fim de que sejam percebidas por si mesmas: “mas falo aqui principalmente sobre as
coisas materiais, que certamente não podem estar ligadas a nossa alma da maneira necessária
46 « Elle ne les voit donc point par eux-mêmes, & l’objet immédiat de nôtre esprit, lorsqu’il voit le Soleil par exemple, n’est pas le Soleil, mais quelque chose qui est intimement unie à nôtre ame […], je n’entends ici autre chose, que ce qui est l’objet immédiat, ou le plus proche de l’esprit, quand il apperçoit quelque objet, c’est- à -dire ce qui touche & modifie l’esprit de la perception qu’il a d’un objet » (OCM, I, 413-414).
54
para que ela as perceba, pois como as coisas materiais são extensas e a alma é inextensa, não
há relação entre elas.” 47 (OCM, I, 417)
Desse modo, nessa primeira leitura, o texto de Malebranche, apesar de aparentemente
arbitrário quando apresenta a tese de que as coisas externas não podem ser percebidas por elas
mesmas, deixa transparecer a seguinte estrutura argumentativa:
- Por que as coisas externas não podem ser percebidas por elas mesmas?
. Porque a alma só percebe diretamente o que está realmente presente para ela. Essa
afirmação consiste num pressuposto que consta na passagem do texto da Recherche no
qual Malebranche afirma, como visto acima, que a alma não pode abandonar o corpo para
ir ao encontro dos objetos externos a ela a fim de contemplá-los. Dessa maneira, é em
função da “distância” existente entre a alma e os objetos externos que ela não os pode
perceber diretamente. E por isso o pressuposto da necessidade da presença real do objeto
no momento da percepção revela-se no texto.
- E o que significa estar realmente presente para a alma? Trata-se meramente de uma
proximidade espacial?
. Estar realmente ou imediatamente presente para a alma vai além de proximidade espacial
e diz respeito fundamentalmente à capacidade de afecção, ou modificação, que o objeto
é capaz de operar na alma. Em sendo assim, é necessário que, entre a alma e o objeto
percebido, haja uma comunidade de tipo ontológico que autorize a relação de afecção, o
que significa, por fim, que apenas objetos espirituais podem ser diretamente percebidos
pela alma. É importante relembrar que, como visto acima, a interpretação do pressuposto
da presença real a partir da necessidade de compartilhamento da mesma natureza entre a
alma e o objeto percebido é corroborada por passagens textuais em que Malebranche frisa
que o objeto imediato da percepção é aquele mais próximo da alma no sentido não de
proximidade física e sim no sentido de ser capaz de afetá-la no momento da percepção.
. Por tudo isso, é preciso concluir que a alma não pode perceber diretamente as coisas
externas, notadamente as coisas materiais (que são o foco do interesse de Malebranche
47 « Mais je parle principalement ici des choses matérielles qui certainement ne peuvent s’unir à nôtre ame, de la façon qui est nécessaire afin qu’elle les apperçoive : parce qu’étant étenduës, & l’ame ne l’étant pas, il n’y a point de rapport entr’elles » (OCM, I, 417).
55
no capítulo em análise), pois, por sua natureza, elas não podem jamais estar realmente
presentes para a alma no momento da percepção.
A reconstrução dos argumentos acerca da impossibilidade de que a alma perceba
diretamente os objetos externos feita até aqui priorizou o pressuposto implícito no texto da
necessidade da presença real do objeto no momento da percepção. É importante fazer referência
aqui à análise argumentativa de Gueroult (1955, p. 83-88) acerca desse tema, que se desenvolve
em torno das teses da invisibilidade e da ininteligibilidade dos corpos por si mesmos. Essa
análise também está fundada na distância ontológica entre a alma e os objetos externos, ou seja,
na impossibilidade da ocorrência de relações entre substâncias de naturezas distintas, como a
alma espiritual e os corpos extensos. Em resumo, pode-se compreender a argumentação de
Gueroult, em favor da tese de que as coisas externas não são percebidas diretamente, a partir
da seguinte estrutura: 1) partindo da distinção ontológica das substâncias espiritual e extensa,
de onde se depreendem a incapacidade do estabelecimento de ações dos objetos externos sobre
a alma, bem como a impenetrabilidade dos corpos pela alma, isto é, de onde se depreende a
interdição de relações mútuas entre substâncias distintas; é preciso deduzir que os corpos não
atingem diretamente a alma 2) nem através das sensações, 3) nem através do intelecto; pois,
como exposto no início, não há relação direta possível entre coisas de naturezas diferentes. A
seguir, passa-se à exposição dos argumentos.
A tese da invisibilidade dos corpos (GUEROULT, 1955, p.87), que se verifica, na
verdade, como sendo uma tese acerca da insensibilidade dos corpos, resulta do argumento da
subjetividade das sensações que, por um lado, torna-se claro diante do fenômeno da alucinação
e do erro dos sentidos. Essas situações demonstram o caráter puramente interno à alma e
independente da existência de qualquer correspondente externo que as sensações possuem. É
sabidamente possível experimentar como que sensivelmente, por exemplo, a existência de
objetos dispostos numa determinada circunstância, inclusive coerente, e que, no entanto, não
passam de meras ilusões oníricas, isto é, independentes de qualquer relação com as coisas
materiais externas. E isso constitui, para Gueroult, a prova de Malebranche acerca do caráter
subjetivo das sensações. Por outro lado, o comentador também afirma que o aspecto subjetivo
das sensações resulta indiscutivelmente da distinção48 de natureza entre as substâncias
espiritual e extensa. As sensações não podem ser modificações da substância extensa, uma vez
48 Gueroult fala propriamente em separação das substâncias: “Ce caractère subjective [des sensations] résulte d’autre part inéluctablement de la séparation des substances” (GUEROULT, 1955, p.87).
56
que elas são percebidas diretamente pela alma e, por isso, expressam a experiência de uma
imediaticidade inexprimível na relação da alma com os corpos. Dessa forma, as relações de
distância ontológica entre a alma e os corpos implicam na compreensão das sensações
(imediatamente percebidas pela alma) como modificações da própria alma, irredutíveis e
independentes dos corpos. Sendo assim, os corpos são invisíveis (ou insensíveis) por si
mesmos, isto é, não atingem diretamente a alma por meio da sensibilidade.
Gueroult (1955, p.87-88) também apresenta, na sequência, uma reconstrução dos
argumentos de Malebranche para defender a tese de que os corpos não atingem diretamente a
alma pela inteligibilidade (ou pelo entendimento) à medida que em si mesmos eles são
ininteligíveis. Isso porque só é inteligível aquilo que é capaz de iluminar, esclarecer, elucidar a
alma. Nesse sentido, para Gueroult, apenas ilustra a alma aquilo que é capaz de agir sobre ela.
Ora, em função da já citada distância ontológica, os corpos não podem agir sobre a alma, pois
apenas coisas espirituais, bem como coisas superiores à alma podem fazê-lo. Por esse motivo,
as coisas externas não podem esclarecer a alma, de modo que elas permanecem em si mesmas
ininteligíveis e incapazes, portanto, de atingir diretamente a alma.
Em resumo, pretendeu-se aqui demonstrar argumentativamente por que Malebranche
admite que as coisas externas não podem ser percebidas por elas mesmas. A distância
ontológica entre a alma espiritual e as coisas externas extensas é o que funda a tese
malebranchista e o que permitiu o desenvolvimento das apresentações argumentativas
realizadas até aqui.
A consequência dessa argumentação aparece logo em seguida no texto em questão,
quando Malebranche propõe-se a explicar de que maneira, então, a alma percebe uma variedade
de objetos externos, independentemente de eles estarem realmente presentes para ela.
Retomando a tese central de que os objetos não são percebidos por eles mesmos, ou seja,
diretamente, Malebranche conclui que o que é percebido pela alma mediante à variedade dos
objetos em inúmeras condições diferentes não é nem o sol, nem as estrelas etc., mas sim, como
visto acima, algo que está “intimamente ligado” à alma, próximo a ela e que é capaz de afetá-
la. Isso que afeta a alma no contexto da percepção são as ideias: “[...] o objeto imediato da
nossa mente quando ela vê o sol, por exemplo, não é o sol, mas algo que está intimamente
ligado à nossa alma, e isso é o que eu chamo de ideia.”49 (OCM, I, 413-414).
49 « […] l’objet immédiat de nôtre esprit, lorsqu’il voit le Soleil par exemple, n’est pas le Soleil, mais quelque chose qui est intimement unie à nôtre ame ; & c’est ce que j’appelle idée » (OCM, I, 413-414).
57
A ideia é o objeto que está estreitamente ligado à alma; é para ela que a alma se dirige
no momento da percepção dos objetos externos, de modo que é ela que constitui o objeto
imediato da percepção que a alma tem desses objetos externos a si mesma. Nesse sentido, a
ideia, segundo Malebranche, não apenas é o objeto mais próximo da alma no momento da
percepção, mas é o que, pela alma, é efetivamente percebido. Numa fórmula pouco precisa,
mas que funciona bem como elucidação, pode-se afirmar que numa tal compreensão a causa da
percepção que se tem dos objetos externos são as ideias e não as coisas: “ assim, com a palavra
ideia, eu quero aqui dizer apenas que se trata do objeto imediato, ou o objeto mais próximo da
mente, quando ela percebe alguma coisa, isto é, aquilo que afeta e modifica a mente com a
percepção que ela tem de um objeto”50 (OCM, I, 414).
Ao considerar-se essas passagens, é possível compreender que Malebranche introduz
uma certa noção de ideia (que será explorada adiante) como objeto da percepção para elucidar
a capacidade perceptiva que a alma tem das coisas materiais externas num quadro em que o
pressuposto de que não há percepção sem a presença real de um objeto capaz de afetar a alma
fornece os contornos da teoria da percepção em voga. É com o intuito de explicar o quê, então,
é percebido pela alma quando ela pensa o sol, as estrelas, entre outras coisas materiais (que não
podem, por constituírem objetos de uma natureza distinta, afetar a alma no momento da
percepção) que as ideias, como os objetos mais próximos da alma e capazes de afetá-la,
aparecem. E aparecem na teoria malebranchista da percepção como aquilo que é
verdadeiramente percebido.
2.1.2 O status ontológico das ideias: primeiros aspectos
Cabe nesse momento observar a seguinte passagem: “Deve-se notar com atenção que
para a mente perceber um objeto, é absolutamente necessário que a ideia desse objeto esteja
atualmente presente para ela...”51 (OCM, I, 414). Nela é afirmado apenas, ao menos
aparentemente, que a percepção de um objeto se dá em virtude de uma ideia que o representa
como tal para a mente. Ora, nesse sentido não se poderia dizer tranquilamente que a concepção
malebranchista de ideia diverge fundamentalmente da concepção cartesiana. Afinal, ideia é para
50 « Ainsi par ce mot idée, je n’entends ici autre chose, que ce qui est l’objet immédiat, ou le plus proche de l’esprit, quand il apperçoit quelque objet, c’est-à-dire ce qui touche & modifie l’esprit de la perception qu’il a d’un objet » (OCM, I, 414). 51 « Il faut bien remarquer qu’afin que l’esprit apperçoive quelque objet, il est absolument nécessaire que l’idée de cet objet lui soit actuellement présent […] » (OCM, I, 414).
58
Descartes52, de modo geral (visto que isso é melhor desenvolvido em outros momentos dessa
tese), a forma pela qual a mente concebe conteúdos determinados, isto é, a maneira como a
percepção de objetos se dá53. Malebranche segue a passagem com uma defesa também muito
próxima da que leva Descartes a sustentar, contra Caterus54, que a realidade objetiva das ideias,
não é um puro nada55. Ele diz:
Quando, por exemplo, um homem imagina uma montanha dourada, é absolutamente
necessário que a ideia dessa montanha esteja realmente presente para sua mente.
Quando um louco, ou alguém dormindo, ou alguém com febre alta vê um animal
diante de seus olhos, é certo que aquilo que ele vê não é um [puro] nada e que, então,
a ideia desse animal verdadeiramente existe: embora a montanha dourada e o animal
jamais tenham existido.56 (OCM, I, 414).
Nesse momento do texto, aparentemente, Malebranche está sustentando a tese de que
porque se pode perceber objetos que de fato não existem, ou seja, considerando a experiência
da percepção que envolve um erro existencial, as ideias desses objetos não podem ser um puro
nada. Tendo em vista o pressuposto da necessidade da presença real do objeto para que a
percepção ocorra, o caso do erro existencial explica-se apenas, para Malebranche, em função
do fato de que a ideia que representa determinado objeto possua realidade. É porque a ideia não
se resume a um puro nada que se pode entender como ocorre a percepção de objetos que na
verdade não existem: as ideias, independentemente da existência ou não dos objetos que
representam, são reais, e são elas aquilo que é diretamente percebido.
No entanto, se a aparência aqui aponta para a semelhança da compreensão
malebranchista com a cartesiana, apresentada no capítulo 1, mas que será melhor elaborada no
capítulo 4, é prudente levar-se em consideração um aspecto dessa passagem que pode demarcar
a diferença entre elas. Note-se bem que Malebranche é preciso na afirmação de que a ideia
desse animal, independentemente de a percepção consistir num devaneio ou não, “realmente
52 “Par le nom d’idée j’entends cette forme de chacune des nos pensées, par la perception immédiate de laquelle nous avons connaissance de ces mêmes pensées...” (Exposição Geométrica: AT, IX, 124). 53 Cf. capítulos 1 e 4. 54 Cf. Respostas às Primeiras Objeções: AT VII, 101-105; AT IX, 81-84. 55 “…être objectivement ne signifie autre chose, qu’être dans l’entendement en la manière que les objets ont coutume d’y être […] laquelle façon d’être est de vrai bien plus imparfaite que celle par laquelle les choses existent hors de l’entendement; mais pourtant ce n’est pas un pur rien…” (Primeiras Respostas: AT IX, 82) 56 « Lorsqu’un homme, par exemple, imagine une montagne d’or, il est absolument nécessaire que l’idée de cette montagne soit réellement présent à son esprit. Lorsqu’un foû, ou un homme qui a la fièvre chaude ou qui dort, voit comme devant ses yeux quelque animal, il est constant que ce qu’il voit n’est pas rien, & qu’ainsi l’idée de cet animal existe véritablement : mais cette montagne d’or & cet animal ne furent jamais » (OCM, I, 414).
59
existe”. É segundo essa afirmação, aliada a outra mais à frente que diz que “é indubitável,
portanto, que ideias tenham uma existência muito real.”57 (OCM, I, 415), que se delimita a
distinção entre a concepção de realidade objetiva na teoria cartesiana das ideias58 e a noção de
ideia empregada por Malebranche. Para Descartes, como será adequadamente visto, a realidade
objetiva diz respeito, a princípio, ao conteúdo representativo das ideias, ou seja, trata-se do
aspecto representativo do ato mental de se ter uma ideia, que por sua natureza representa
determinados conteúdos como coisas – coisas essas dispostas como objetos determinados para
o intelecto e que por esse motivo não podem ser reduzidas ao puro nada. Não consistirem em
um puro nada significa apenas que o conteúdo das ideias possui alguma realidade no
pensamento enquanto expresso por um ato perceptivo; realidade essa que é por representação
no entendimento e é muito imperfeita em comparação com a realidade dos objetos existentes:
[...] estar objetivamente no entendimento não significará terminar sua operação à
maneira de um objeto, mas sim estar no entendimento da maneira que seus objetos
têm o costume de nele estar; de tal forma que a ideia do sol é o sol mesmo existindo
no entendimento, na verdade, não formalmente como ele está no céu, mas
objetivamente, isto é, da maneira como os objetos têm o costume de existir no
entendimento: maneira de ser que é muito mais imperfeita que aquela pela qual as
coisas existem fora do entendimento; mas, no entanto, isso não é um puro nada, como
eu já disse [...] (Resposta às Primeiras Objeções: AT, VII, 102-103)59
As afirmações categóricas de Malebranche acerca da existência das ideias apontam para
a interpretação de que elas constituem objetos à maneira dos objetos atualmente existentes
(como esses são compreendidos por Descartes). Nesse sentido, ideia para Malebranche parece
não dizer respeito ao conteúdo representativo expresso num ato mental (o ato perceptivo), ou
seja, parece não ser uma modificação da mente; mas sim uma existência real que consiste em
um objeto representativo que é distinto do próprio ato de perceber.
57 « Il est donc indubitable que les idées ont une existence tres-réelle » (OCM, I, 415). 58 “Par la réalité objective d’une idée, j’entends l’entité ou l’être de la chose représentée par l ídée, en tant que cette entité est dans l’idée; et de la même façon, on peut dire une perfection objective, ou un artifice objective, etc. Car tout ce que nous concevons comme étant dans les objets des idées, tout cela est objectivement, ou par représentation, dans les idées mêmes.” (Exposição Geométrica: AT, IX, 124) 59 “[…] être objectivement dans l’entendement ne signifiera pas terminer son opération à la façon d’un objet, mais bien être dans l’entendement dans la manière que ses objets ont coutume d’y être ; en telle sorte que l’idée du soleil est le soleil même existant dans l’entendement, non pas à la vérité formellement, comme il est au ciel, mais objectivement, c’est-à-dire en la manière que les objets ont coutume d’exister dans l’entendement : laquelle façon d’être est de vrai bien plus imparfaite que celle par laquelle les choses existent hors de l’entendement ; mais pourtant ce n’est pas un pur rien, comme j’ai déjà dit […] (Réponses aux Premières Objections : AT, IX, 82)
60
Entende-se aqui o reforço da noção de ideia como um objeto existente, uma terceira
entidade, como o primeiro argumento em favor do status ontológico peculiar da ideia no
pensamento de Malebranche. Diz-se peculiar porque a concepção malebranchista de ideia,
como se quer sugerir, difere radicalmente da cartesiana à medida que distingue ontologicamente
o ato perceptivo e o conteúdo representativo. Enquanto o ato perceptivo constitui um dos
diversos atos constantes das modificações da alma (tal como o é para Descartes), o conteúdo
representativo, ou a ideia, é concebido como um objeto, uma entidade ontologicamente distinta
e irredutível a esse ato. Em função de sua natureza representativa, como será visto à frente, a
ideia não se reduz às modificações da alma. Por esse motivo, ela não se constitui, como para
Descartes, segundo a leitura que se pretende sugerir, apenas como o término, ou resultado do
ato perceptivo. Para Malebranche, a ideia é o objeto espiritual representativo, independente das
modificações mentais, que é diretamente percebido pela alma.
Um segundo argumento que pretende corroborar a interpretação em favor do caráter
ontológico especial das ideias (comparativamente à tradição cartesiana) encontra-se no fato de
Malebranche considerar que as ideias independem da existência atual das coisas. Ele diz que
“[...] não é necessário que haja qualquer coisa externa de semelhante a essa ideia.”60 (OCM, I,
414). Como é considerado no capítulo 1, é certo que para Descartes, o conteúdo das ideias não
é necessariamente explicado por nenhuma realidade formal semelhante a ele, isto é, a realidade
objetiva das ideias não envolve uma conexão direta entre o conteúdo que apresenta à mente e
uma realidade formal que lhe corresponda. Entretanto, ao fim da exposição do sistema
cartesiano, após as provas existenciais, verifica-se que a realidade objetiva de algumas ideias
depende de Deus como sua causa formal, por um lado (como no caso das naturezas verdadeiras
e imutáveis, que são essências criadas por Deus), e dos objetos externos como, pelo menos,
causa ocasional das ideias de sensação, por outro lado (ainda que esses objetos apenas
sinalizem, segundo sua variação mecânica, o que se constituirá como conteúdo representacional
das ideias de sensação). Dessa maneira, é ao menos superficial supor que, para Descartes, a não
necessidade de uma causa formal semelhante ao conteúdo das ideias indique o mesmo grau de
independência61 entre ideia e coisa existente que aquele sugerido pelo texto de Malebranche.
Repare que a construção do conceito de ideia como objeto representativo distinto das operações
da mente para Malebranche cumpre também (como visto) a função de explicar a percepção real
de objetos inexistentes, ou fictícios. Só há percepção mediante a presença real dos objetos
60 « […] il n’est pas nécessaire qu’il y ait au-dehors quelque chose de semblable à cette idée (OCM, I, 414). 61 Essa forte independência tornar-se-á mais clara adiante quando a exposição der conta de que as ideias não possuem qualquer relação com o mundo externo.
61
percebidos. Logo, o conteúdo representativo das ideias para Malebranche, se ele é capaz de
apresentar de forma real para a alma um objeto inexistente como objeto, é porque ele em si
mesmo é o objeto diretamente percebido. E, em sendo assim, é completamente independente
dos objetos realmente existentes. O ponto aqui é frisar a concepção de que o conteúdo
representativo das ideias não se explica, não tem relação causal com as coisas e isso ficará mais
claro na próxima seção em que a tese da visão das ideias em Deus será tematizada.
Um terceiro argumento62 em favor do entendimento de que ideias são objetos, entidades
representativas distintas do ato perceptivo, diz respeito à definição do seu status ontológico
tendo em vista a alma. O pressuposto que embasa esse argumento é o da necessidade de
comunidade de tipo ontológico entre a alma que percebe e o objeto percebido. Assim, esse é o
argumento que desenvolve e torna mais precisa a tese da irredutibilidade do conteúdo
representativo ao ato perceptivo anunciada no primeiro argumento exposto anteriormente. É o
argumento que sustenta que a percepção do objeto não pode ser explicada como a mera
modificação mental do ato de perceber, já que ela envolve um conteúdo representativo que é
distinto da própria mente à medida que introduz um elemento necessariamente externo a ela.
Diferentemente da concepção cartesiana que afirma ideias como atos mentais representativos,
Malebranche não as considera como sendo modificações da mente, e, nesse sentido, as ideias
não estão na/não são a alma. Isso porque, segundo o autor, tudo o que pode ser percebido recai
unicamente nas duas possibilidades seguintes: ou está na alma, ou está fora da alma. Aquilo
que está na alma, a saber, os modos de pensamento – tais como as sensações, imaginações,
intelecções puras etc. – pode ser percebido diretamente porque é a própria alma enquanto se
modifica, ou seja, é de alguma maneira transparente para ela mesma. É bom lembrar que por
modos do pensamento, Malebranche entende aquilo de que a alma é imediatamente consciente
enquanto ela experimenta sua própria interioridade. Em resumo, os modos de pensamento, que
se resumem às operações da alma, são imediatamente percebidos pela alma sem a necessidade
de mediação de qualquer conteúdo representativo intermediário (sem a necessidade de ideias,
portanto) porque são a própria alma:
As coisas que estão na alma são seus próprios pensamentos, isto é, todas as suas várias
modificações [...] nossa alma não necessita de ideias para perceber essas coisas do
62 Esse mesmo argumento aqui reconstruído a partir do texto da Recherche aparece no volume I da clássica obra de Martial Gueroult sobre a filosofia de Malebranche sob o título de “Argumento da incapacidade da alma de fundar por si mesma um conhecimento do objeto” (GUEROULT, 1955, p.93-94).
62
modo como percebe, pois elas estão na alma, ou melhor, porque elas não são nada
além da alma em si mesma existindo dessa ou daquela maneira [...]63 (OCM, I, 415).
Entretanto, aquilo que está fora da alma não pode ser por ela diretamente percebido.
Isso porque, como já visto acima, à medida que é algo externo (não é a própria alma), não se
encontra intimamente ligado à alma do modo necessário para que haja percepção. E é por isso
que aquilo que é externo só pode ser percebido através de ideias, que são os objetos
intermediários entre o ato perceptivo da alma e a coisa externa existente: “Mas quanto às coisas
externas à alma, nós podemos percebê-las somente por meio de ideias, já que essas coisas não
podem estar intimamente unidas a nossa alma” (OCM, I, 415)64.
Sendo assim, ideias possuem um status ontológico distinto do de modificação do
pensamento, pois elas consistem em representações de coisas no pensamento, isto é, a ideia é o
objeto do pensamento quando ele pensa coisas que não se reduzem aos atos da mente, ou seja,
coisas externas, distintas das meras operações mentais. Ideias são, nesse sentido, entendidas por
Malebranche como objetos intermediários entre as operações do pensamento e as coisas
externas porque elas se distinguem ontologicamente tanto de um, quanto de outro. Isso é assim
porque enquanto objeto representativo de coisas que não são o próprio pensamento, uma ideia,
segundo Malebranche, não pode ser constituída pelas operações do pensamento. Visto que são
conteúdos representativos diferentes e irredutíveis ao ato de perceber (são distintos,
propriamente falando, das afecções da mente), as ideias distinguem-se ontologicamente das
meras operações mentais, pois essas operações, por serem modificações da alma, apenas podem
exibir os modos de ser da própria alma, enquanto as ideias exibem conteúdos distintos da alma.
Porque são ontologicamente distintas das operações da alma, as ideias são, então, entidades
representativas independentes dela que, por seu caráter espiritual e representativo, constituem
os objetos diretamente percebidos pela alma no lugar das coisas materiais externas.
É importante retomar e frisar aqui que essa externalidade do objeto representativo se dá
em função do entendimento malebranchista de que na alma só há operações, atos; de modo que,
todo conteúdo representativo percebido é externo à alma e irredutível ao ato perceptivo. Como
63 « Celles [les choses] qui sont dans l’ame sont ses propres pensées, c’est-à-dire, toutes ses différentes modifications […] nôtre ame n’a pas besoin d’idées pour appercevoir toutes ces choses de la manière dont elle les apperçoit, parce qu’elle sont au-dedans de l’ame, ou plûtôt parce qu’elle ne sont que l’ame même d’une telle ou telle façon […] » (OCM, I, 415)
64 « Mais pour les choses qui sont hors de l’ame, nous ne pouvons les appercevoir que par le moyen des idées, supposé que ces choses ne puissent pas lui être intimement unies » (OCM, I, 415).
63
dito anteriormente, as coisas externas são percebidas pela alma através das ideias, mas essas
ideias não são modificações do próprio pensamento, e isso se explica pela sua função de
apresentar para a alma aquilo que não é ela mesma (apresentar conteúdos e não apenas os atos),
de forma que as ideias não podem configurar modos de ser da própria alma justamente porque
elas são representações de coisas distintas dela. Desse modo, ideias têm um status ontológico
distinto tanto das modificações do pensamento, quanto da realidade atual das coisas existentes:
ideias são uma espécie de terceira entidade intermediária cuja função é representar. Em suma,
pode-se afirmar que ideias são entidades representativas no pensamento malebranchista porque
elas, pela função que ocupam de representar coisas externas à alma, não podem ser
compreendidas como meras modificações mentais. Enquanto as modificações do pensamento
são diretamente percebidas pela alma porque consistem apenas na própria alma sendo de um
jeito ou de outro, as ideias apresentam à alma aquilo que é distinto dela, não podendo
configurar, portanto, um modo de ser da própria alma.
Assim, em resumo, se as ideias não são a própria alma, pois na alma só há atos, enquanto
as ideias são conteúdos; então, elas são outra coisa. Isso que elas são também não pode ser
confundido com os objetos atualmente existentes, já que esses não possuem a capacidade de
afetar a alma como é necessário para que ocorra a percepção. Então, se as ideias não são nem a
própria alma, nem as coisas mesmas existentes, elas só podem ser entidades representativas
intermediárias entre a alma e as coisas existentes.
* * *
Com o intuito de expor a concepção malebranchista de ideia na Recherche, esse texto
dedica-se a interpretar passagens significativas correlacionadas ao tema a fim de reconstruir a
argumentação por trás da tese que abre o capítulo 1 do livro III: os objetos externos não são
percebidos diretamente. É para dar conta de uma teoria da percepção que tem como pressuposto
a tese de que apenas um certo tipo de objeto, a saber, um objeto espiritual pode ser diretamente
percebido pela mente que Malebranche cunha sua noção de ideia. Ideia, portanto, na teoria da
percepção malebranchista é o objeto imediato da percepção das coisas externas à mente,
notadamente das coisas materiais. Como objetos, as ideias são entidades representativas
capazes de afetar e modificar a mente no processo perceptivo das coisas externas. São entidades
representativas porque se distinguem do ato de perceber, isto é, não podem ser compreendidas
(por sua função representativa daquilo que é externo à mente) como modificações mentais.
Tampouco podem ser identificadas às coisas materiais que representam, sob pena de infringir
o pressuposto que delimita as condições da percepção. Por tudo isso, as ideias ocupam um lugar
64
central tanto na teoria da percepção malebranchista, quanto no debate acerca da consistência
das teses que a sustentam. Algumas das consequências dessas teses no pensamento de
Malebranche serão discutidas a seguir, a saber, a visão das ideias em Deus (que é a explicação
malebranchista para a origem das ideias) e, principalmente, o representacionalismo na teoria da
percepção.
2.2 A visão das ideias em Deus: o caso da origem das ideias
Ao final do capítulo 1 da segunda parte do livro III da Recherche65, Malebranche aponta
para uma discussão sobre as diferentes hipóteses segundo as quais os objetos externos podem
ser vistos. Essas hipóteses não dizem respeito ao debate sobre a possibilidade da percepção
direta ou não das coisas externas, que ele pretende ter resolvido na primeira seção do capítulo
ao defender que as coisas externas são percebidas através das ideias. Mas elas tratam
efetivamente de como as ideias estão disponíveis para a percepção da alma, ou seja, elas tratam
do tema da origem das ideias. Já nessa referida passagem final do capítulo66, são elencadas as
cinco hipóteses abordadas nos capítulos seguintes, as quais são disponibilizadas a seguir: 1- as
ideias que se tem dos objetos que não são percebidos por si mesmos diretamente provêm dos
próprios objetos; 2- as ideias que se tem dos objetos que não são percebidos por si mesmos
diretamente provêm da alma, que tem o poder de produzi-las; 3- as ideias que se tem dos objetos
que não são percebidos por si mesmos diretamente provêm de Deus, ou porque ele as produziu
no momento de criação da alma (inatismo), ou porque ele as produz a cada momento em que a
alma pensa em alguma coisa (ocasionalismo); 4- as ideias que se tem dos objetos que não são
percebidos por si mesmos diretamente provêm da própria alma, pois ela possui todas as
perfeições que vê nos corpos; e 5- as ideias que se tem dos objetos que não são percebidos por
si mesmos diretamente são vistas em Deus, porque estão em Deus, que contém em si todas as
ideias das coisas criadas. Malebranche apresenta entre os capítulos 2 e 5 subsequentes
argumentos que desconstroem a razoabilidade da adoção das hipóteses 1 à 4 e encontra na
hipótese 5, defendida no capítulo 6, sua explicação para a origem das ideias: elas estão em Deus
como perfeições inteligíveis que são por ele disponibilizadas, de acordo com sua vontade, para
a percepção da alma finita. Busca-se nesse momento apenas compreender o que significa e
quais são as razões que sustentam essa última hipótese, segundo Malebranche. Por esse motivo,
65 As traduções das citações da Recherche presentes nessa seção são da edição de A busca da verdade: textos escolhidos. Plínio Junqueira Smith, trad. Discurso Editorial, 2004 e serão designadas pelas iniciais ABV seguidas pelo número da página. 66 Cf. OCM, I, 417.
65
os argumentos eliminativos que descontroem a razoabilidade das outras hipóteses não serão
aqui analisados.
No início do capítulo 6, a hipótese de que os objetos externos são vistos em Deus é
tratada segundo sua maior razoabilidade perante as outras hipóteses, em função de dois aspectos
marcantes, a saber, a concepção de que Deus tem as ideias de todos os seres criados e a
expressão da dependência da alma com relação a Deus no que concerne aos seus pensamentos.
Segundo Malebranche a visão em Deus é a hipótese que melhor demonstra a relação, cara a seu
pensamento, de dependência e união íntima da alma para com Deus:
Examinamos, nos capítulos precedentes, quatro diferentes maneiras pelas quais o
espírito pode ver os objetos de fora, as quais não nos parecem verossímeis. Resta
somente a quinta, que parece a única conforme à razão e a mais própria para exibir a
dependência que os espíritos, em todos os seus pensamentos, têm de Deus (ABV,
190)67.
Malebranche afirma que para que a hipótese em questão possa ser bem compreendida é
preciso ter em mente duas teses, que são a precondição para seu entendimento e aceitação. A
primeira tese alega que Deus possui em si mesmo todas as ideias dos seres criados e a segunda
anuncia que há uma relação íntima e estreita entre as almas criadas e Deus, uma união tal que
possibilita que as almas finitas possam perceber em Deus o que lá representa coisas externas.
Essas teses derivam-se de aspectos significativos da natureza divina à medida que só podem ser
alcançadas a partir da análise da natureza de Deus. Isso quer dizer que é a perfeição de Deus o
que permite concluir pela presença nele das ideias de todas as coisas, bem como admitir que há
uma relação especial de união entre Deus e as almas criadas, visto que ele é, por excelência, “o
lugar dos espíritos”. Assim, é importante ressaltar que a estrutura dos argumentos da Recherche,
III, II, 6, pretende, em primeiro lugar justificar, em função da natureza de Deus, que é legítimo
que as almas vejam nele as ideias das coisas; e, em segundo lugar, sustentar que, para além de
ser possível perceber as coisas em Deus, ele quer que as ideias sejam nele vistas. É em
observação a essa estrutura argumentativa que Gueroult (1955, p. 112-118) expõe em seu livro
o que ele chama de forma sintética da argumentação positiva (referindo-se à defesa
malebranchista da visão em Deus), que é aquela que se funda no conceito de Deus.
67 « Nous avons éxaminé dans les Chapitres précedens quatre différentes manières, dont l’esprit peut voir les objets de dehors, lesquelles ne nous paroissent pas vrai-semblables. Il ne reste plus que la cinquiéme, qui paroît seule conforme à la raison, & la plus propre pour faire connoître la dépendance que les esprits ont de Dieu dans toutes leurs pensées » (OCM, I, 437).
66
Isso dito, retorna-se à exposição mais detalhada das teses que justificam a legitimidade
de que as almas vejam as ideias em Deus. Segundo a primeira tese, Deus, ao considerar suas
infinitas perfeições, observa em si mesmo toda a criação, pois é de si mesmo, e não de qualquer
outro, à medida que apenas Deus existe antes de sua ação criadora, que ele retira tudo o que
entra na composição dos seres criados:
É indubitável que havia somente Deus antes que o mundo fosse criado, e que ele não
o pôde produzir sem conhecimento e sem ideia; que, consequentemente, essas ideias
que Deus tinha desse mundo não são diferentes de si mesmo; e que, assim, todas as
criaturas, mesmo as mais materiais e as mais terrestres, estão em Deus, ainda que de
uma maneira inteiramente espiritual e que nós não podemos compreender. Deus vê,
portanto, dentro de si mesmo, todos os seres, considerando suas próprias perfeições,
que os representam para ele. Ele conhece perfeitamente, ainda, sua existência, porque,
dependendo todos de sua vontade para existir e não podendo ignorar suas próprias
vontades, segue-se que ele não pode ignorar a existência deles; e, por consequência,
Deus vê em si mesmo não somente a essência das coisas, mas também a existência
delas (ABV, 189)68.
De acordo com a segunda tese, a união entre Deus e as almas finitas implica um modelo
de relação análogo ao existente entre os corpos e seus espaços. Deus é, por assim dizer, o lugar
das almas, tal qual o espaço é o lugar dos corpos. Com essa analogia, Malebranche busca
mostrar que entre as almas e Deus há uma relação especial de união íntima na qual as almas só
existem nessa presença infinita que é Deus, de modo que se pode compreender disso que entre
eles há uma ligação direta expressa pela própria natureza espiritual de ambos (almas e Deus).
Entende-se a partir disso que essa noção de união íntima entre as almas criadas e Deus expressa,
afinal, que as almas participam da ordem e da disposição da racionalidade universal constitutiva
da natureza inteligível de Deus : “[...] Deus está muito intimamente unido a nossas almas por
sua presença, de modo que se pode dizer que ele é o lugar dos espíritos, assim como os espaços
são, em um sentido, o lugar dos corpos.” (ABV, 191)69. A conclusão que se segue da junção
68 « Il est indubitable qu’il n’y avoit que Dieu seul avant que le monde fût créé, & qu’il n’a pû le produire sans connoissance & sans idée : que par conséquent ces idée que Dieu en a euës ne sont point différentes de lui-même & qu’ainsi toutes les créatures, même les plus materielles & les plus terrestres, sont en Dieu, quoi que d’une manière toute spirituelle & que nous ne pouvons comprendre. Dieu voit donc au dedans de lui-même tous les êtres, en considérant ses propres perfections qui les lui représentent. Il connoît encore parfaitement leur éxistence, parce que dépendant tous de sa volonté pour exister, & ne pouvant ignorer ses propres volontez, il s’ensuit qu’il ne peut ignorer leur existence : & par conséquent Dieu voit en lui-même non seulement l’essence des choses, mais aussi leur existence » (OCM, I, 434-435). 69 « […] Dieu est tres-étroitement uni à nos ames par sa présence, de sorte qu’on peut dire qu’il est le lieu des esprits, de même que les espaces sont en un sens le lieu des corps » (OCM, I, 437).
67
dessas duas teses é que, se Deus contém em si as ideias de todas as coisas e a alma está
intimamente unida a Deus, isto é, ela compartilha dessa mesma razão universal de Deus, então
é razoável concluir que não há nenhum impedimento para que a alma veja em Deus as ideias
que ele tem das coisas criadas:
Supondo essas duas coisas, é certo que o espírito pode ver aquilo que, dentro de Deus,
representa seres criados, visto que isso é muito espiritual, muito inteligível, e muito
presente ao espírito. Assim, o espírito pode ver, em Deus, as obras de Deus, supondo
que Deus queira revelar-lhe o que nele as representa (ABV, 191)70
Essas duas teses derivadas da análise do conceito de Deus, que tornam, segundo
Malebranche, a hipótese da visão das ideias em Deus plausível, explicam em que medida as
ideias que a alma finita percebe estão em Deus, ele mesmo, e não num suposto ato divino de
criação das ideias na alma71. É preciso considerar aqui que a referida relação íntima entre as
almas criadas e Deus, que torna possível que elas possam compreender o inteligível em Deus
não significa que as almas tenham acesso irrestrito e ilimitado a todas as ideias que estão em
Deus. Isso porque, em função de sua finitude, ainda que as almas sejam consonantes com a
racionalidade universal, elas são limitadas no seu poder de conhecer, de modo que supor que
elas conheçam todas as ideias de Deus, ou mesmo que elas conheçam como Deus, seria admitir
um poder incompatível com sua condição finita.
Dito isso, é preciso apresentar as razões que fundamentam o porquê Deus prefere revelar
à alma o que em si mesmo representa as coisas externas a criar as ideias na alma. Como dito
acima, a estrutura argumentativa não se limita a justificar a possibilidade da visão em Deus,
pois procura fundamentar, para além dessa possibilidade, a efetividade da visão em Deus.
Malebranche quer, nesse sentido, não apenas mostrar que pode ser assim, mas que de fato é
assim, isto é, é em Deus, que a alma percebe as ideias. Dessa forma, a preocupação nesse
momento é com expor passo-a-passo essas razões, desenvolvidas por Malebranche na
Recherche, que sustentam, por fim, a maior plausibilidade da hipótese de que as ideias estão
em Deus e são por ele disponibilizadas para a percepção da alma. Essas razões permitirão que
a maior plausibilidade da hipótese frente às outras seja justificada.
70 « Ces deux choses étant supposées, il est certain que l’esprit peut voir ce qu’il y a dans Dieu qui represente les êtres créez, puisque cela est tres-spirituel, tres-intelligible, & tres-presente à l’esprit. Ainsi l’esprit peut voir en Dieu les ouvrages de Dieu, supposé que Dieu veüille bien lui découvrir ce qu’il y a dans lui qui les represente » (OCM, I, 437). 71 Hipótese rejeitada por Malebranche na Recherche, III, II, 4.
68
A primeira delas corresponde ao que se pode chamar de princípio da economia da ação,
ou simplicidade das vias72. Segundo esse princípio, Deus não faz de maneira complexa aquilo
que poderia ser feito de maneira mais simples, isto é, Deus age segundo um princípio de
economia da ação. A justificativa para isso está na racionalidade implícita nesse princípio. Agir
por meios mais simples e econômicos demonstra um maior poder que o contrário quando se
trata de um mesmo efeito:
Não somente é muito conforme à razão, mas ainda parece, pela economia de toda a
natureza, que Deus jamais faz por vias muito difíceis o que pode ser feito por vias
muito simples e muito fáceis, pois Deus não faz nada inutilmente e sem razão (ABV,
191)73.
Ainda que não se esteja fazendo aqui uma exegese desse princípio da economia da ação,
é indispensável comentar sua aparente filiação a um caro princípio da tradição filosófica
conhecido como “a navalha de Ockham”, que propõe que diante de hipóteses de solução
formuladas acerca de uma mesma questão, a mais simples tende a ser a mais verdadeira, isto é,
a proposta de solução mais simples, que dispensa a utilização de recursos acessórios (que
complexificam a solução) para a solução de um problema, é a mais verdadeira. Malebranche
aparentemente retoma esse princípio tradicional ao considerar que há mais racionalidade (e, por
isso, maior poder) na efetuação de coisas complexas por vias mais simples que o contrário. E
por isso defende que Deus quando age, escolhe as vias mais fáceis de execução de seus
propósitos, pois isso condiz com sua natureza perfeita:
O que caracteriza sua sabedoria e sua potência [de Deus] não é fazer pequenas coisas
por grandes meios; isso é contra a razão e caracteriza uma inteligência limitada. Mas,
ao contrário, é fazer grandes coisas por meios muito simples e muito fáceis. É assim
que, somente com a extensão, ele produz tudo o que vemos de admirável na natureza
e, mesmo, o que dá a vida e o movimento aos animais, pois aqueles que querem
absolutamente formas substanciais, faculdades e almas nos animais, diferentes de seu
sangue e dos órgãos de seu corpo para fazer todas as funções, querem ao mesmo
tempo que falte inteligência a Deus [...] (ABV, 191-192)74.
72 É bom lembrar que Malebranche não classifica nesses termos a primeira razão que desenvolve como argumento em favor da hipótese da visão em Deus. 73 « Non seulement il est tres-conforme à la raison, mais encore il paroît par l’oeconomie de toute la nature, que Dieu ne fait jamais par des voyes tres-difficiles, ce qui se peut faire par des voyes tres-simples & tres-faciles : Car Dieu ne fairt rien inutilement & sans raison » (OCM, I, 438). 74 « Ce qui marque sa sagesse & sa puissance n’est pas de faire de petites choses par de grands moyens ; cela est contre la raison, & marque une intelligence bornée. Mais au contraire, c’est de faire de grades choses par des moyens tres-simples & tres-faciles. C’est ainsi qu’avec l’étenduë toute seule, il produit tout ce que nous voyons
69
Baseado nessa primeira razão, disposta no princípio da economia da ação, Malebranche
está autorizado a defender a admissibilidade da hipótese da visão das ideias em Deus em
detrimento das outras hipóteses. Em especial, aquela que supõe que Deus cria as ideias na alma.
Considerando que as ideias que representam as coisas externas estão presentes nas próprias
perfeições de Deus (como visto acima), é mais fácil e mais simples que Deus permita que a
alma, que é intimamente unida a ele, perceba nele mesmo as ideias do que ele criar na alma,
isto é, fora de si mesmo, e como duplicatas das ideias que ele já possui, um sem número de
ideias (seja tudo de uma só vez (inatismo), ou a cada nova vez que a alma percebe uma ideia
(ocasionalismo)). Assim, Malebranche conclui:
Visto, portanto, que Deus pode mostrar aos espíritos todas as coisas, ao querer
simplesmente que eles vejam o que está no meio dele mesmo, isto é, o que há dentro
dele mesmo que tem relação com essas coisas e que as representa, não há indício de
que ele faça de outro modo e produza, para isso, tantas infinidades de números
infinitos de ideias quantos espíritos criados há (ABV, 192)75.
Isso não significa, entretanto, que os espíritos vejam a essência de Deus. Malebranche
chama a atenção explicitamente para o fato de que o que é percebido pela alma em Deus é muito
imperfeito e limitado uma vez comparado à natureza una, indivisa e absoluta de Deus. Nesse
sentido, a alma vê em Deus apenas o que concerne às capacidades das criaturas finitas, apenas
aquilo que compete a sua natureza limitada, sendo incapaz de abarcar a natureza plena e simples
de Deus, que encerra em si mesmo (que é integralmente ser) de maneira homogênea, indistinta,
indivisível e não particular a totalidade dos seres que a alma percebe como distintos, separados
e particulares. Assim, é em função da definição da natureza de Deus como ser absoluto, simples
e sem partes que se justifica a incapacidade da alma de percebê-lo na integralidade de sua
essência quando percebe nele as ideias. Essas ideias disponibilizadas para as almas por Deus
restringem-se apenas à forma particularizada de representação das coisas própria da capacidade
perceptiva do ser finito e limitado que é a alma:
d’admirable dans la nature, & même ce qui donne la vie, & le mouvement aux animaux. Car ceux qui veulent absolument des formes substantielles, des facultez, & des ames dans les animaux, différentes de leur sang & des organes de leurs corps, pour faire toutes leurs fonctions, veulent en même-tems que Dieu manque d’intelligence (OCM, I, 438). 75 « Puis donc que Dieu peut faire voir aux esprits toutes choses, en voulant simplement qu’ils voient ce qui est au milieu d’eux-mêmes, c’est- à-dire ce qu’il y a dans lui-même qui a rapport à ces choses & qui les représente, il n’y a pas d’apparence qu’il le fasse autrement ; & qu’il produise pour cela autant d’infinitez de nombres infinis d’idées, qu’il y a d’esprits créez » (OCM, I, 438).
70
Mas é preciso observar cuidadosamente que não podemos concluir que os espíritos
veem a essência de Deus do fato de que eles veem, dessa maneira, todas coisas em
Deus. A essência de Deus é seu ser absoluto, e os espíritos não veem a substância
divina tomada absolutamente, mas somente enquanto relativa às criaturas ou
participável por elas. O que eles veem, em Deus, é muito imperfeito, e Deus é muito
perfeito. Eles veem a matéria divisível, figurada etc., e, em Deus, não há nada que
seja divisível ou figurado, pois Deus é inteiramente ser, porque ele é infinito e
compreende tudo, mas ele não é nenhum ser em particular. O que nós vemos, contudo,
é somente um ou vários seres em particular; e não compreendemos essa simplicidade
perfeita de Deus que contém todos o seres (ABV, 192)76.
A segunda razão que procura demonstrar por que Deus prefere permitir que as almas
percebam as ideias representativas das coisas externas nele mesmo, e que busca garantir a
legitimidade superior dessa hipótese frente à hipótese da criação na alma de “uma infinidade
de infinitas ideias”, diz respeito à completa dependência da alma para com Deus. Essa razão
manifesta a condição hierarquicamente inferior da alma finita na sua relação com Deus.
Condição essa que exprime uma dependência não apenas no que concerne a sua manutenção
no ser, mas que expressa especialmente o estado passivo da alma no âmbito do conhecimento
das coisas externas:
A segunda razão para pensar que vemos todos os seres porque Deus quer que o que
nele os representa nos seja descoberto [...] é que isso coloca os espíritos criados em
uma inteira dependência dele e a maior que possa ser, pois, isso sendo assim, não
somente não saberíamos ver nada que Deus não quisesse que víssemos, mas não
saberíamos ver nada que Deus mesmo não nos [mostrasse] (ABV, 193, grifo nosso)77.
Esse estado passivo da alma refere-se, de início, à incapacidade que ela tem de produzir
suas próprias ideias. Considerando que as ideias são seres reais à medida que possuem
76 « Mais il faut bien remarquer qu’on ne peut pas conclure que les esprits voyent l’essence de Dieu, de ce qu’ils voyent toutes choses en Dieu de cette maniére. L’essence de Dieu c’est sont être absolu, & les esprits ne voyent point la substance divine prise absolument, mais seulement en-tant que relative aux créatures ou participable par elles. Ce qu’ils voyent en Dieu est tres-imparfait, & Dieu est tres-parfait. Ils voyent de la matiére divisible, figurée, &c. & en Dieu il n’y a rien qui soit divisible ou figuré : car Dieu est tout être, parce qu’il est infini & qu’il comprend tout : mais il n’est aucun être en particulier. Cependant ce que nous voyons n’est qu’un ou plusieurs êtres en particulier ; & nous ne comprenons point cette simplicité parfaite de Dieu qui renferme tous les êtres » (OCM, I, 438-439). 77 « La seconde raison qui peut faire penser, que nous voyons tous les êtres à cause que Dieu veut, que ce qui est en lui qui les représente nous soit découvert […] c’est que cela met les esprits créez dans une entiére dépendance de Dieu, & la plus grande qui puisse être. Car cela étant ainsi, non seulement nous ne sçaurions rien voir, que Dieu ne veüille bien que nous le voyons, mais nous ne sçaurions rien voir, que Dieu même ne nous le fasse voir (OCM, I, 439).
71
propriedades que as diferenciam umas das outras, de modo que não podem ser tomadas como
um puro nada, é adequado concluir que elas necessitam de uma causa criadora de seu ser. Essa
causa criadora não pode ser a alma, que não possui capacidade para isso à medida que na
filosofia de Malebranche as coisas finitas não se constituem em causas verdadeiras, sendo
apenas causas ocasionais:
Mas, mesmo que fosse verdade que as ideias seriam somente seres bem pequenos e
bem desprezíveis, são ainda seres, e seres espirituais, e, uma vez que os homens não
têm a potência de criar, segue-se que eles não as podem produzir, pois a produção de
ideias, da maneira em que é explicada, é uma verdadeira criação [...] (ABV, 177)78.
À pergunta por que as coisas finitas não podem ser as verdadeiras causas das coisas,
Malebranche responde:
Entendo que uma causa é verdadeira se o espírito percebe uma ligação necessária
entre essa causa e seu efeito. Ora, o espírito percebe uma ligação necessária somente
entre a vontade do ser infinitamente perfeito e os efeitos. Portanto, somente Deus é a
verdadeira causa [...] (ABV, 250)79.
Note-se bem que, para Malebranche, os elementos exigidos por uma verdadeira relação
causal não são satisfeitos pelas coisas finitas, entre elas as almas. E não o são porque a
causalidade, segundo ele, exige uma conexão necessária entre a causa e o efeito que só é
cumprida por Deus, pois somente de sua vontade se pode retirar a conexão necessária
explicativa para todos os efeitos. É impossível conceber que Deus, pela sua infinitude e
perfeição, queira qualquer coisa que não se cumpra do modo como ele quis. Isso significa que
entre a vontade de Deus e sua realização há uma necessidade intrínseca que é explicativa da
ocorrência dos fenômenos. Ora, no que diz respeito aos eventos que têm lugar no mundo físico
entre objetos particulares, bem como aqueles que envolvem supostas relações entre o mundo
espiritual e o material, não se pode depreender deles nenhuma conexão necessária explicativa,
de modo que é preciso concluir que não constituem verdadeiras relações causais, mas apenas
78 « Mais quand même il seroit vrai que les idées ne seroient que des êtres bien petits & bien meprisables, ce sont poutant des êtres & des êtres spirituels ; & les hommes n’ayant pas la puissance de créer, il s’ensuit qu’ils ne peuvent pas les produire. Car la production des idées de la maniere qu’on l’explique, est une véritable création » (OCM, I, 423). 79 « Cause véritable est une cause entre laquelle & son effet l’esprit apperçoit une liaison nécessaire, c’est ainsi que je l’entends. Or il n’y a que l’être infiniment parfait entre la volonté duquel & les effets l’esprit apperçoive une liaison nécessaire. Il n’y a donc que Dieu qui soit véritable cause […] » (OCM, II, 316).
72
ocasiões que remontam, em última instância, à vontade divina como causa verdadeira. Por esse
motivo, pode-se concluir que Deus, e não as almas, é a causa criadora das ideias.
Entretanto, esse estado passivo da alma não é por si só suficiente para legitimar a
superioridade da hipótese da visão em Deus, visto que na hipótese inatista, a saber, a de que
Deus cria uma infinidade de ideias na alma, também se pode observar a inépcia da alma no que
diz respeito à criação das ideias. Por esse motivo, entende-se que a segunda razão em questão
defende, no que concerne a dependência que a alma tem de Deus, um ponto além da passividade
da alma com relação à percepção de ideias. Ela afirma que para além da dependência da criação
divina das ideias, a alma subordina-se a Deus como guia daquilo que deve ou não deve, pode
ou não pode ser percebido. No sentido próprio da segunda razão, não é apenas porque Deus é
a potência criadora por oposição à condição passiva da alma que se pode observar sua
submissão hierárquica, mas sobretudo porque Deus é condutor da própria capacidade
perceptiva da alma, que não veria nada a não ser que ele assim o permitisse. É por isso que:
É Deus mesmo que ilumina os filósofos nos conhecimentos que os homens ingratos
chamam de naturais [...] Pois, afinal, é bastante difícil compreender distintamente a
dependência que nossos espíritos têm de Deus em todas as suas ações particulares,
supondo que eles tenham tudo o que conhecemos distintamente ser necessário para
agir ou todas as ideias das coisas presentes em seu espírito (ABV, 193-194)80.
Por esse motivo, as ideias que a alma percebe dependem da condição de subordinação
total da alma à vontade de Deus, que, mais que a colocar no ser como uma criatura finita,
determina e guia todas as suas ações particulares, aí incluídas as diversas percepções que possui.
A terceira razão, considerada por Malebranche a mais forte entre todas, diz respeito ao
modo segundo o qual a alma é capaz de acessar determinada ideia particular quando de sua
escolha. Malebranche afirma categoricamente como coisa sabida e experimentada por todos
que, a fim de que se volte a atenção para um conteúdo representativo em particular, é necessário
que se tenha disponível todo o acervo de ideias para, enfim, destacar uma em particular dentre
elas. Conforme ele, não se poderia pretender eleger um conteúdo particular se antes ele já não
estivesse de alguma forma presente, ou disponível para a alma:
80 « C’est Dieu même qui éclaire les Philosophes dans les connoissances que les hommes ingrats appellent naturelles […] Car enfin il est assez difficile de comprendre distinctement la dépendance que nos esprits ont de Dieu dans toutes leurs actions particuliéres, supposé qu’ils ayent toute ce que nous connoissons distinctement leur être nécessaire pour agir, ou toutes les idées des choses présentes à leurs esprit » (OCM, I, 440).
73
É certo, e todo mundo o sabe por experiência, que, quando queremos pensar em
alguma coisa em particular, deitamos a vista, em primeiro lugar, sobre todos os seres
e nos aplicamos, em seguida, na consideração do objeto no qual desejamos pensar.
Ora, é indubitável que não saberíamos desejar ver um objeto particular, se não o
víssemos já, ainda que confusamente e em geral; de modo que, podendo desejar ver
todos os seres, ora um, ora outro, é certo que todos eles estão presentes em nosso
espírito [...] (ABV, 194, grifo nosso)81.
Entende-se aqui que a justificativa para essa tese consiste em que, do contrário, isto é,
se a alma não tivesse disponível para a percepção um rol infinito de ideias, ela não poderia
escolher uma em particular. Não haveria, portanto, escolha e o ato de voltar a atenção, entendido
como fruto de uma decisão, não seria consistente, pois não haveria entre o que escolher. Desse
modo, a atenção aos objetos percebidos seria sempre fruto do instante da percepção e não faria
sentido falar em ‘voltar a atenção’ no sentido de vontade de ressaltar uma ideia em meio a
outras. E essa ausência da capacidade de voltar a atenção contradiz a experiência intelectual a
qual Malebranche faz referência no seu texto. Como dito no início, é sabido por todos, de acordo
com Malebranche, que quando se quer pensar em algo em particular, é em meio a um repertório
variado de objetos que se encontra e se escolhe esse algo. Ora, esse ato corriqueiro de se voltar
a atenção para um objeto (que são ideias porque, como visto, a alma só pode perceber o que é
de sua natureza imaterial) particular depende, em última instância, da presença para a alma,
ainda que de maneira confusa e em geral, de uma diversidade de objetos disponíveis para o ato
perceptivo. Na ausência dessa disponibilidade de objetos, não se poderia escolher um particular,
pois não haveria nem de onde, nem do que destacar um determinado objeto.
Se a capacidade de voltar a atenção para objetos/ideias particulares é um dado da
experiência intelectual, então é preciso concluir, seguindo Malebranche, que é necessário que
todo um elenco infinito de ideias esteja presente para a alma, como já visto. Mas o que significa
propriamente a tese de que a alma, que é finita, tem disponível para si uma infinidade de ideias?
Significa que essa disponibilidade só pode ser explicada a partir de Deus, que é o único ser que
contém em si as ideias de todas as coisas: “[...] e parece que todos os seres podem estar presentes
em nosso espírito somente porque Deus lhe é presente, isto é, aquele que contém todas as coisas
81 « Il est constant, & tout le monde le sçait par expérience, que lors que nous voulons penser à quelque chose en particulierm nous jettons d’abord la vûë sur tous les êtres, & nous nous applicons ensuite à la consideration de l’objet auquel nous souhaitons de penser. Or il est indubitable que nous ne sçaurions desirer de voir un objet particulier, que nous ne le voyions déjà, quoi que confusément & en géneral : de sorte que pouvant desirer de voir tous les êtres, tantôt l’un & tantôt l’autre, il est certain que tous les êtres sont presens à nôtre esprit […] » (OCM, I, 440).
74
na simplicidade de seu ser.” (ABV, 194)82. Como a alma por si só, em função de sua finitude,
não poderia se representar por si mesma todos os seres, a presença de Deus para a alma,
decorrente da união íntima entre o criador absoluto e a criatura espiritual, é oferecida como
explicação do acesso que ela tem a uma infinidade de ideias.
Até aqui, constata-se que a argumentação proposta como a mais forte apenas permite
concluir que é em função de Deus que a alma tem acesso às ideias. E, nesse sentido, como se
sabe, Deus poderia ser criador dessa infinidade de ideias na própria alma finita. Entretanto,
apesar de essa última hipótese ser verossimilhante, ela não é verdadeira, segundo Malebranche,
e vem sendo questionada desde o momento de sua apresentação Recherche83, quando
Malebranche afirma que há outra maneira mais simples, fácil e razoável (ou seja, com base no
princípio da simplicidade das vias) de se explicar a origem das ideias percebidas pela alma84,
que se trata da hipótese da visão em Deus.
Para além desse questionamento, Malebranche apresenta então o que se considera ser
um argumento importante, consecutivo à terceira razão em discussão. Numa espécie de adendo
ao raciocínio exposto sobre como apenas a presença de Deus explica o acesso da alma a uma
infinidade de ideias, Malebranche traz para a discussão o caso das ideias de universais e o caso
da ideia de infinito cuja percepção é mais adequadamente explicada pela hipótese da visão em
Deus. Isso se justifica porque no que diz respeito à percepção de universais e do infinito, é
cabível destacar o seguinte raciocínio: como todas as coisas criadas por Deus são particulares,
não se pode conceber que as ideias de universais e a ideia de infinito percebidas pela alma sejam
criaturas de Deus85, visto que, contraditoriamente, elas seriam, ao mesmo tempo, particulares e
universais. É preciso comentar que, ainda que a ideia de infinito não recaia propriamente na
definição de um universal, pois diz respeito apenas a um objeto, que é Deus, ela tampouco pode
ser compreendida como uma ideia particular, já que se aplica justamente aquilo que não é
limitado por nada. A ideia de infinito expressa efetivamente o ser pleno e absoluto e por isso é
em si mesma infinita, pois não é possível que se perceba alguma coisa finita como infinita sob
pena de a percepção captar o que não estava no objeto percebido, o que infringe o princípio
malebranchista de que o nada não pode ser percebido (princípio esse que fundamenta, como já
visto, a intencionalidade da percepção e que é reelaborado na terceira seção desse capítulo no
82 « […] & il semble que tous les êtres ne puissent être presens à nôtre esprit ; que parce que Dieu lui est presens, c’est-à-dire, celui qui renferme toutes choses dans la simplicité de son être » (OCM, I, 440-441). 83 Trata-se da hipótese discutida na Recherche, III, II, 4. 84 Essa afirmação aparece como uma referência preliminar à hipótese da visão em Deus, discutida na Recherche, III, II, 6. 85 Referência à hipótese de que Deus cria na alma uma infinidade de ideias. Cf.: Recherche, III, II, 4.
75
desenvolvimento da discussão sobre o status ontológico das ideias). Sendo assim, essas ideias
não podem ter sido criadas na alma como objetos particulares, mas são sim perfeições da
própria natureza divina enquanto ela é tomada como representativa, tais quais todas as outras
ideias percebidas pela alma em função da presença íntima, da união da alma com Deus, como
expõe a hipótese em defesa:
Parece mesmo que o espírito não seria capaz de se representar ideias universais de
gênero, espécie etc., se não visse todos os seres contidos em um. Pois, sendo toda
criatura um ser particular, não podemos dizer que vemos alguma coisa de criada
quando vemos, por exemplo, um triângulo em geral. Finalmente, creio que possamos
dar razão da maneira pela qual o espírito conhece várias verdades abstratas e gerais
somente pela presença daquele que pode iluminar o espírito em uma infinidade de
maneiras diferentes (ABV, 194)86.
[...] Pois é certo que o espírito percebe o infinito, ainda que não o compreenda, e que
tem uma ideia muito distinta de Deus, que pode ter somente pela união que tem com
Deus, visto que não podemos conceber que a ideia de um ser infinitamente perfeito,
que é aquela que temos de Deus, seja alguma coisa criada (ABV, 194-195)87.
Procura-se apontar aqui que esse raciocínio, que consiste na explicação de como a alma
percebe as ideias gerais e como ela possui a ideia do infinito, encaixa-se perfeitamente como
um fechamento bastante apropriado para a terceira razão em favor de que Deus revela para a
alma as ideias das coisas que possui, ou seja, em favor de que a visão em Deus é a hipótese
mais razoável de explicação para a percepção das ideias. Isso porque, por si só, a exigência
explicativa de Deus para dar conta da infinidade de ideias disponíveis para a alma não é capaz
de implicar a conclusão de que ela vê todas as ideias em Deus. Era preciso mostrar, para além
disso, que tomar Deus como criador das ideias (tais como objetos) é inconsistente com o
conteúdo representativo percebido pelas almas (como no caso das ideias de coisas gerais, ou a
ideia do infinito), a fim de que a visão em Deus auferisse seu status de interpretação mais
plausível para o caso da origem das ideias.
86 « Il semble même que l’esprit ne seroit pas capable de se representer des idées universelles de genre, d’espéce, &c. s’il ne voyoit tous les êtres renfermez en un. Car toute créature étant un être particulier, on ne peut pas dire qu’on voye quelque chose de créé lors qu’on voit, par exemple, un triangle en général. Enfin je ne croi pas qu’on puisse bien rendre raison de la manière dont l’esprit connoît plusieurs véritez abstraites & générales, que par la présence de celui qui peut éclairer l’esprit en une infinité de façons différentes » (OCM, I, 441). 87 « […] car il est constant que l’esprit apperçoit l’infini, quoi qu’il ne le comprenne pas ; & qu’il a une idée tres-distincte de Dieu , qu’il ne peut avoir que par l’union qu’il a avec lui ; puisqu’on ne peut pas concevoir , que l’idée d’un être infiniment parfait, qui est celle que nous avons de Dieu, soit quelque chose de créé » (OCM, I, 441).
76
Malebranche, após a apresentação das três razões, ainda dedica-se a expor mais dois
argumentos que corroboram a concepção de que Deus quer que a alma conheça as coisas,
através das ideias, nele mesmo, isto é, argumentos que procuram evidenciar que o que se vê é
de fato em Deus. Esses dois argumentos parecem sintetizar a estrutura da demonstração
malebranchista feita até então ao serem introduzidos da seguinte maneira: “Eis uma prova que
será talvez uma demonstração para aqueles que estão acostumados aos raciocínios abstratos”
(ABV, 195)88, numa referência à reformulação da exposição da demonstração realizada até
então. Como se verá, ele apresenta de uma outra maneira a prova de que as ideias estão em
Deus (argumento 1 a seguir) e a prova de que Deus quer que as almas finitas vejam tudo nele
mesmo (argumento 2 a seguir).
O primeiro argumento não procura se estabelecer a partir da análise da natureza de Deus,
mas sim resulta de uma análise acerca de um aspecto da natureza das ideias, a saber, a sua
eficácia sobre a alma e pretende concluir, a partir disso, que todas as ideias devem estar na
substância infinita de Deus. Trata-se, portanto, de um argumento que parte das ideias para
sustentar que elas estão em Deus, o que é distinto do movimento argumentativo exposto
anteriormente cujo ponto de partida é a análise de Deus. Esse argumento da eficácia das ideias
basicamente afirma que são as ideias que afetam de diferentes maneiras a alma, produzindo
nela diferentes modificações de seus estados, esclarecendo-a e iluminando-a com as percepções
com as quais atingem-na. Entretanto, como nada pode agir imediatamente sobre a alma que não
lhe seja de natureza superior, visto que, segundo Malebranche, as coisas finitas não possuem
eficácia, somente Deus pode ser concebido como o autor dessas modificações nas almas que se
observam quando as ideias afetam-na, pois apenas ele é efetivamente causa de qualquer
modificação. Assim, se as ideias são eficazes, é forçoso concluir que elas estão na substância
de Deus, a única que é verdadeiramente eficaz:
[...] nada pode agir imediatamente no espírito se não lhe é superior, nada o pode senão
somente Deus, pois somente o autor de nosso ser pode mudar suas modificações.
Portanto, é necessário que todas as nossas ideias encontrem-se na substância eficaz da
divindade, a única que é inteligível ou capaz de nos iluminar, porque somente ela pode
afetar as inteligências (ABV, 195)89.
88 « Voici une preuve, qui fera peut-être une demonstration pour ceux qui sont accoutûmez aux raisonnements abstrait » (OCM, I, 442). 89 « […] rien ne peut agir immediatement dans l’esprit, s’il ne lui est supérieur : rien ne le peut que Dieu seul. Car il n’y a que l’Auteur de nôtre être que en puisse changer les modifications. Donc il est necessaire que toutes nos idées se trouvent dans la substance efficace de la Divinité, qui seule n’est intelligible ou capable de nous éclairer, que parce qu’elle seule peut affecter les intelligences » (OCM, I, 442).
77
Já o segundo argumento diz respeito à concepção apresentada por Malebranche de que
Deus tem a si mesmo como finalidade última de suas ações, pois ele faz tudo para si. Nesse
sentido, segundo Malebranche, assim como o amor natural (amor do bem em geral impresso
por Deus na alma) volta-se em sua direção, é legítimo pensar que também a iluminação e o
conhecimento dado por Deus às criaturas sirva para, enfim, conhecer de alguma maneira Deus,
pois ele faz tudo para si mesmo. Deus não criaria a alma para conhecer as obras divinas se nesse
movimento ela não conhecesse ele mesmo ao conhecer suas obras, pois do contrário ele teria
criado a alma para conhecer uma ou outra obra e não para si mesmo, para contemplá-lo. Nesse
sentido, em última instância, tudo o que a alma conhece está em Deus e é ele que é de alguma
maneira percebido quando a alma percebe as ideias: “Deus não pode, portanto, fazer um espírito
para conhecer suas obras, a não ser que esse espírito veja, de alguma maneira, Deus, ao ver suas
obras. De modo que podemos dizer que, se não víssemos Deus de alguma maneira, não
veríamos nenhuma coisa [...]” (ABV, 196)90.
Esse último argumento é, segundo Malebranche, fortemente inspirado em Santo
Agostinho, que concebia que os homens veem em Deus tanto as regras dos costumes quanto as
verdades eternas. Entretanto, ainda que Santo Agostinho restrinja a visão em Deus apenas às
verdades eternas, Malebranche procura sustentar que o que é de fato visto em Deus são as ideias
eternas e perfeitas das coisas, cujas relações entre si podem constituir verdades eternas: “[...]
segundo nossa opinião, vemos Deus quando vemos as verdades eternas; não que essas verdades
sejam Deus, mas que as ideias das quais essas verdades dependem estão em Deus [...]” (ABV,
198)91. Segundo Malebranche, uma outra inovação importante nesse aspecto é que ele,
diferentemente de Santo Agostinho, aceita que se conhece em Deus também as coisas mutáveis
e corruptíveis, o que não constituiria nenhum problema de incompatibilidade com a natureza
perfeita e imutável de Deus à medida que as ideias que nele a alma tem acesso não exprimem
a sua natureza, mas apenas constituem o que nele tem relação com as coisas, a saber, nesse
caso, a verdade das coisas materiais sensíveis:
Cremos, também, que conhecemos em Deus as coisas mutáveis e corruptíveis, ainda
que santo Agostinho fale apenas das coisas imutáveis e incorruptíveis, porque não é
necessário, para isso, pôr alguma imperfeição em Deus, visto que basta, como já
90 « Dieu ne peut donc faire un esprit pour connoître ses ouvrages, si ce n’est que cet esprit voie en quelque façon Dieu en voyant ses ouvrages. De sorte que l’on peut dire, que si nous ne voyions Dieu en quelque maniére, nous ne verrions aucune chose […] » (OCM, I, 442-443). 91 « Ainsi selon nôtre sentiment nous voyons Dieu, lorsque nous voyons des véritez éternelles, non que ces véritez soient Dieu, mais parce que les idées dont ces véritez dépendent sont en Dieu […] » (OCM, I, 444).
78
dissemos, que Deus nos mostre o que nele tem relação com essas coisas (ABV, 198-
199)92.
Vê-se, portanto, que a hipótese da visão das ideias em Deus é defendida na Recherche,
III, II, 6 fundamentalmente, mas não exclusivamente, a partir de uma análise malebranchista da
natureza de Deus. Pode-se aqui sintetizar a construção argumentativa dessa seção como tendo
se desenvolvido em dois momentos. O primeiro dedicado à prova de que do ponto de vista
teórico a visão em Deus é uma hipótese coerente e funcional para a explicação da origem das
ideias à medida que da análise da natureza de Deus depreende-se que: 1) nele estão as ideias de
todas as coisas; 2) e que, em sendo assim, em função da união íntima entre a alma e Deus, isto
é, a participação da alma na mesma racionalidade universal que é constitutiva da inteligibilidade
divina, não há impedimento lógico para que ela veja nele as ideias de todas as coisas. E o
segundo dedicado a provar que Deus quer que a alma perceba nele todas as coisas. Com o
intuito de realizar a segunda demonstração, Malebranche apresenta três razões, a saber, 1) o
princípio da economia da ação ou da simplicidade das vias; 2) o reforço da questão da
dependência que a alma tem com relação a Deus em todos os seus aspectos; e 3) a experiência
intelectual da escolha, em um rol de ideias, da percepção de uma em particular. A essas três
razões são adicionados dois outros argumentos, que parecem reproduzir a ordem da
demonstração já feita, que são: 1) o argumento da eficácia das ideias, que procura demonstrar,
a partir do conceito de ideia como inteligível e não criada, que elas se encontram em Deus
(primeiro momento da demonstração); e 2) o argumento de que Deus faz todas as coisas para
si, inclusive dota as almas de capacidade cognitiva para que, ao exercê-la, as almas possam, em
última instância, conhecer Deus, isto é, a demonstração de que as almas veem tudo em Deus
(segundo momento da demonstração). Assim, a formulação desses dois argumentos (que
parecem ter a função de sintetizar as demonstrações anteriores) encerra a defesa de que Deus
quer que a alma veja todas as coisas em seu ser.
Como se pode perceber, com exceção da terceira razão e do argumento da eficácia das
ideias, todos os outros raciocínios buscam derivar da natureza de Deus a justificativa para
sustentar que ele quer que as ideias sejam vistas nele mesmo. Ainda que se possa comentar o
caráter majoritariamente teológico dessas demonstrações e suas implicações para o que se
92 « Nous croyons aussi que l’on connoît en Dieu les choses changeantes & corruptibles, quoique S. Augustin ne parle que des choses immuables & incorruptibles : parce qu’il n’est pas nécessaire pour cela, de mettre quelque imperfection en Dieu ; puisqu’il suffit, comme nous avons déjà dit, que Dieu nous fasse voir ce qu’il y a dans lui qui a rapport à ces choses » (OCM, I, 444-445).
79
pretende um tratado de filosofia, isso não constitui objeto de investigação nesse trabalho, de
modo que se supõe ter-se aqui explicitado, da maneira mais fiel, a argumentação malebranchista
para a aposta na hipótese da visão das ideias em Deus como a mais razoável para dar conta da
questão da origem das ideias.
2.3 Status ontológico das ideias e o representacionalismo na teoria da percepção de
Malebranche
O tema do representacionalismo na teoria malebranchista da percepção tem sido
amplamente discutido na literatura secundária93 sobre a filosofia de Malebranche, com especial
interesse na famosa disputa sobre o tema com Arnauld. Nessa seção, procurar-se-á, a partir das
discussões feitas anteriormente, elucidar no que consiste esse representacionalismo de
Malebranche. Dessa forma, discussões sobre o status ontológico das ideias, segundo
Malebranche, serão retomadas a fim de que se possa retirar delas sua conclusão
representacionalista com o intuito de tornar claro o que é e quais são as peculiaridades do
representacionalismo malebranchista.
De acordo com Malebranche, como já visto, as coisas externas materiais não são
diretamente percebidas pela alma porque, por sua natureza material, elas não podem estar
intimamente ligadas a ela a ponto de afetá-la, coisa que é exigência fundamental para que haja
percepção. Uma vez que a percepção é intencional, isto é, sempre envolve um objeto percebido
– posto que “[...] ver o nada, ver nada, é não ver [...]”94 (OCM VI, 202; OCM VIII, 910), ou
seja, a visada de um objeto é intrínseca ao fenômeno da percepção – é preciso concluir que
alguma coisa é visada no momento em que a alma percebe coisas externas materiais; e isso que
a alma percebe, que não pode ser as coisas materiais, Malebranche chama de ideias. As ideias,
então, por força da necessidade inerente à própria intencionalidade da percepção, que exige que
um objeto esteja presente para a alma no momento da percepção e, somado a isso, que esse
objeto seja capaz de modificá-la, constituem aquilo que é imediatamente percebido pela alma,
segundo Malebranche.
Entretanto, diferentemente do que pensa Malebranche sobre a tradição cartesiana, essas
ideias não são modificações da alma que visam a um conteúdo representativo capaz de torná-
la consciente da presença de um objeto, mas são elas mesmas a coisa, o objeto, distinto e
93 Cf.: LOVEJOY, 1923; YOLTON, 1984; NADLER, 1989; NADLER, 1992; COOK, 1998; MOREAU, 1999; PYLE, 2003; DERENNE, 2017; entre outros. 94 “[...] voir le néant, voir rien, c’est ne point voir […]” (OCM VI, 202; OCM VIII, 910).
80
independente das modificações do pensamento, diretamente percebido pelo ato perceptivo da
alma. É importante ressaltar, como visto na primeira seção desse capítulo, que Malebranche
considera que ao admitir que as ideias sejam modificações do pensamento, Descartes incorreria
na dificuldade de admitir que as ideias apenas exibem no intelecto modificações do próprio
pensamento, não sendo capazes de apresentar, dessa forma, conteúdos como objetos distintos
do próprio pensamento. Isso significa que, a princípio, para ele, perceber envolve, no contexto
malebranchista, apenas o ato perceptivo, que é uma operação intencional da alma (quando se
percebe, há sempre algo que é percebido); o objeto diretamente percebido, que são os objetos
espirituais apreendidos pela alma no ato da percepção (as ideias) e que são distintos e não
redutíveis às modificações do pensamento; e os objetos indiretamente percebidos, que são as
coisas externas realmente existentes.
Chama-se atenção para que o caráter representativo das ideias não se impõe como uma
conclusão necessária do argumento baseado na intencionalidade da percepção (discutido na
primeira seção), que exige a presença imediata de um objeto para a mente. Considerações mais
significativas sobre a natureza representativa das ideias se dão no âmbito da discussão sobre a
origem das ideias e a hipótese da visão em Deus, como já visto. Deve-se lembrar, no entanto,
que segundo uma certa tradição, o termo “ideia” carrega consigo o sentido de intencional. Seja
na tradição agostiniana em que é utilizado para tratar dos arquétipos no intelecto divino,
segundo os quais Deus cria todas as coisas, seja na tradição cartesiana, em que o uso do termo
passa a designar os conteúdos representativos envolvidos no ato mental de representar da
substância pensante finita95. Malebranche certamente conhece esse sentido que o termo ideia
possui e faz uso adequado dele quando afirma que aquilo que é percebido diretamente são as
ideias. Isso significa que desde o princípio de suas considerações sobre o tema, ele compreende
ideias como representativas. Entretanto, o que se quer reforçar aqui é que a compreensão
devidamente realizada do papel representativo das ideias na percepção apenas se completa com
a hipótese de que as ideias estão em Deus, já que, segundo essa leitura, é nele que as ideias
adquirem consistência ontológica, pois apenas com a consideração das ideias em Deus pode-se
completar a compreensão acerca do status ontológico das ideias, como se verá adiante.
Em direção a uma melhor compreensão de aspectos envolvidos na teoria da percepção
de Malebranche (percepção direta e indireta, ideia, Deus e coisas materiais), é preciso retomar
algumas considerações sobre o sentido em que as ideias não constituem modificações da alma,
mas sim são realidades em Deus, a fim de avaliar sinteticamente o seu papel na percepção e,
95 Cf. Respostas às Terceiras Objeções: AT VII, 181-182; AT, IX, 141. Cf. ALANEN (2003, p.118-119).
81
mais importante de tudo, frisar o seu caráter representativo, que foi já apontado na primeira
seção desse capítulo, porém sem o protagonismo adequado. Nesse contexto, serão recuperados
aqui os elementos constitutivos da teoria da percepção de Malebranche com foco no papel
representativo que as ideias ocupam nela. E com essa finalidade, sabendo que o status
ontológico das ideias como entidades representativas só se consolida na consideração da
hipótese da visão em Deus, pretende-se abordar a questão sobre qual é a natureza das ideias no
que diz respeito ao princípio – que remonta, ao menos, à tradição cartesiana – de que tudo o
que é, ou é substância, ou é modificação de substância. Assim, examinar-se-á qual o status
ontológico das ideias, isto é, se elas são modos na mente de Deus, se são substâncias, ou nem
uma coisa, nem outra à medida que não são seres criados, a fim de melhor explicitar sua
natureza representativa dos objetos externos, de forma que se possa desenhar com mais clareza
o representacionalismo da teoria da percepção de Malebranche.
Um dos elementos fundamentais da teoria da percepção de Malebranche é que ela
envolve uma teoria das ideias significativamente diferente da cartesiana à medida que procura
evitar, como afirma Jolley (1990, p.55), o suposto psicologismo da teoria das ideias de
Descartes a fim de esquivar-se dos problemas que, segundo Malebranche, são engendrados por
ela:
Vemos claramente […] que sustentar que as ideias que são eternas, imutáveis, comuns
a todas as inteligências, sejam somente percepções ou modificações passageiras e
particulares do espírito é estabelecer o pirronismo e dar lugar à crença de que o justo e
o injusto não são necessariamente tais, o que é, de todos nos erros, o mais perigoso
(ABV, 297)96.
Por psicologismo, Jolley entende a concepção de que as ideias, enquanto conteúdos
representativos, são de alguma maneira redutíveis à, ou dependentes da, condição de
modificação da mente, isto é, constituem um certo tipo de ato mental, que é aquele que
apresenta determinado conteúdo como objeto para a mente. Contra essa perspectiva, fruto da
interpretação de Malebranche sobre Descartes, Malebranche procura desenvolver uma teoria
das ideias que escapa à redutibilidade delas às operações mentais, dando às ideias um status
independente e irredutível a essas operações. Isso porque um tal reducionismo engendraria, por
96 On voit clairement […] que soûtenir que les idées qui sont éternelles, immuables, communes à toutes les intelligences, ne sont que des perceptions ou des modifications passageres & particulieres de l’esprit ; c’est établir le pyrrhonisme & donner lieu de croire que le juste & l’injuste ne sont point necessairement tels, ce qui est de toutes les erreurs la plus dangereuse (OCM, III, 140).
82
um lado, um ceticismo nas questões epistemológicas e, por outro lado, um relativismo moral
(considerado o pior dos erros). Esses riscos proporcionados pela concepção de que as ideias são
modificações da mente resultam, segundo Malebranche, da redução dos aspectos eterno,
imutável e geral das ideias à realidade momentânea e particular das modificações mentais.
Porque se poderia admitir, de acordo com a leitura dele, que o conteúdo visado nas percepções
privadas das mentes finitas não são nada além dessas próprias percepções privadas, como já foi
discutido, então se poderia reconhecer a limitação, a mutabilidade e a particularidade daquilo
que se percebe. Sendo assim, nada poderia garantir qualquer consistência, ou confiabilidade na
validade objetiva das ideias, o que legaria, como dito no princípio, um ceticismo epistemológico
e um relativismo moral incompatíveis com as perspectivas da tradição na qual Malebranche se
insere.
Ainda que esse seja um prisma interpretativo interessante acerca do raciocínio que leva
Malebranche a recusar a identificação entre percepção, como ato mental, e ideia, como objeto
percebido, não se pretende aqui desenvolver a compreensão malebranchista de que as ideias
não se reduzem às modificações da mente nessa direção. Busca-se aqui privilegiar um outro
viés (que é consoante a esse anteriormente mencionado) da argumentação de Malebranche
contra essa compreensão a partir dos argumentos discutidos na primeira seção desse capítulo.
Isso porque eles detêm-se na tentativa de explicar as seguintes dificuldades relacionadas ao
referenciado psicologismo, a saber, como se pode reduzir o objeto percebido a uma modalidade
da mente (que consiste no ato de perceber), isto é, como uma modalidade da mente pode ser
representativa de alguma coisa que não é a própria mente? E colocado de uma maneira mais
complexa: como uma modalidade da mente, de natureza puramente espiritual, pode, por si
mesma, ser representativa de coisas materiais, que são de natureza radicalmente distinta a da
mente? Estados mentais subjetivos podem ser representativos de coisas externas e materiais?97
No que diz respeito à dificuldade, o que está em jogo para Malebranche é o que significa
admitir, como Descartes parece fazê-lo, que há modalidades do pensamento que, por si mesmas,
exibem na mente conteúdos como objetos distintos da própria mente, ou seja, que há
modificações da mente que são representativas de objetos. Segundo Malebranche, não há nada
que a alma possa representar para si mesma além de suas próprias operações. Com efeito, se as
modificações mentais não são nada além da mente sendo ora de uma forma, ora de outra, isto
é, a mente sendo o que ela é nas suas diversas formas possíveis, não parece ser possível assumir
que dentre essas modificações haja alguma que se expresse como uma coisa diferente da própria
97 LOVEJOY (1923, p. 451-453) coloca a questão nesses termos.
83
mente, isto é, como um outro, que não a mente. O que está na mente, segundo Malebranche,
são suas operações e essas não podem ser essencialmente representativas de objetos distintos
da mente porque essas operações são apenas a mente sendo o que ela é de maneiras diferentes,
isto é, sem envolver nenhum outro que ela mesma. Em função disso, em razão daquilo que é
próprio da mente e de suas modalidades, é que conceber as ideias como modificações mentais
é considerado um equívoco da teoria da percepção cartesiana, segundo Malebranche.
Contudo, há ainda uma progressão na dificuldade acima exposta que chama a atenção
para a gravidade do problema levantado por Malebranche acerca da compreensão da ideia como
um ato, uma modificação mental: o que significa para uma modalidade representativa da mente
se exprimir como um objeto material? Diz-se aqui ‘se exprimir’ a partir da crítica
malebranchista a Descartes, que entende que na mente só há operações mentais, de modo que
suas modificações são sempre, nessa compreensão, expressões da própria mente. Mora aí a
verdadeira motivação da problematização e da crítica da teoria cartesiana da percepção
realizada por Malebranche. Como a principal preocupação dele no contexto da Recherche III,
II, 1 é com explicar como se dá a percepção das coisas externas materiais que não podem ser
diretamente percebidas e que, por isso, são percebidas através das ideias, é fundamental, para
ele, pensar a razoabilidade de se atribuir a uma certa operação exclusivamente mental a
percepção das coisas externas materiais. E, como visto, para Malebranche essa atribuição é
ilegítima, não apenas porque não haveria nada que a alma pudesse representar para si mesma
além de suas próprias operações, mas também porque se a natureza dessas operações é de ordem
espiritual, em nenhum sentido poder-se-ia cogitar, como ocorre na perspectiva cartesiana, que
a alma percebe coisas materiais.
Dessa maneira, se as ideias não são redutíveis à condição de modificações da mente, e
elas também não podem ser confundidas com as coisas atualmente existentes no mundo, elas
devem ser consideradas nelas mesmas, então, como objetos realmente existentes e que são os
objetos imediatos da percepção. Em favor dessa tese, encontram-se os argumentos discutidos
na primeira seção que fazem a defesa das ideias como objetos realmente existentes e
independentes da existência atual das coisas externas que elas representam.
Essa condição singular das ideias como objetos representativos distintos tanto do ato
perceptivo mental, quanto da coisa por ela representada (além de distinta, a ideia é independente
da coisa que representa – mais à frente, esse tema será melhor discutido) tem seu lugar em
Deus, segundo Malebranche. De acordo com o que foi exposto na segunda seção desse capítulo,
a realidade das ideias depende de Deus. Entretanto, essa dependência se dá não porque Deus
84
seja seu criador na mente, seja de uma vez aos montes infinitos, seja a cada vez que a mente
pensa alguma coisa, mas porque, como é sugerido por Malebranche, as ideias são vistas em
Deus. Como mencionado, a exposição argumentativa da defesa da hipótese da visão em Deus
foi realizada na segunda seção desse capítulo. Todavia, é imprescindível que se discuta aqui de
maneira mais precisa qual é o modo de existência que essas ideias-objeto possuem na ontologia
malebranchista. A questão sobre o status ontológico das ideias pretende elucidar mais
completamente qual é o modo de ser que elas possuem: elas são modos da mente de Deus?;
elas são substâncias na mente de Deus?; são substâncias diferentes de Deus?;ou elas não são
nem modos, nem substâncias, pois sua forma de existência é especial e escapa ao princípio
ontológico de que tudo o que é, ou é substância, ou é modo de substância? Tendo isso em vista,
propõe-se aqui que a resposta para essa questão seja elaborada a partir do artigo de Monte Cook
(1998) intitulado “The ontological status of malebranchean ideas”, cuja tese acerca dessa
temática afirma que, em seu modo de ser, as ideias não são nem modalidades, nem substâncias
diferentes de Deus, e, contudo, também não possuem um status ontológico diferenciado dos já
mencionados. Para Cook, as ideias são idênticas à substância de Deus. A ênfase dada à leitura
de Cook acerca do tema do status ontológico das ideias no pensamento de Malebranche deve-
se à sua consonância com a interpretação que se quer fazer aqui do texto da Recherche III, II,
6 acerca desse tema, como se procurará apresentar ao longo da exposição em seguida.
É importante ressaltar aqui que Cook, em seu artigo, toma como central a questão
ontológica relativa às ideias e tem por objetivo defender, em oposição a outros comentadores,
que há sim em Malebranche uma preocupação com o status ontológico das ideias que merece
ser esclarecida. Se as ideias são objetos percebidos pela mente finita em Deus, que tipo de
objetos elas são, qual é a natureza das ideias? Esse é o tipo de questão a respeito das ideias que
Malebranche está interessado em resolver, segundo Cook. Como já mencionado, o autor
pretende sustentar que as ideias são a substância de Deus e, desse modo não consistem nem em
modificações divinas, nem em substâncias distintas de Deus. Essa leitura de Cook (1998, p.
530) se contrapõe à sugestão interpretativa (referenciada por ele a Steven Nadler) que considera
que Malebranche trata das ideias apenas no seu aspecto epistemológico, sem se preocupar com
seu aspecto ontológico. Nesse sentido, segundo essa sugestão, a defesa de que as ideias estão
em Deus não envolve a preocupação com uma explicação acerca da natureza das ideias, mas
apenas é a alegação de que o conhecimento está em Deus e é nele visto pelas mentes: a ideia de
85
x é apenas o conhecimento de Deus sobre x, que é por ele disponibilizado para a alma98. No
entanto, Cook (1998, p. 530, nota 10), além de considerar problemático para essa sugestão o
número de passagens em que, segundo ele, Malebranche frisa sua preocupação ontológica com
as ideias, ele não vê em que medida assumir apenas uma tal preocupação epistemológica é
capaz de resolver os problemas em questão. Segundo ele, tomar a preocupação de Malebranche
com as ideias como sendo epistemológica não elimina e nem isenta a preocupação com a
questão ontológica, mas apenas denuncia a dificuldade que se tem em lidar com ela, pois a
pergunta pela natureza das ideias permanece no cenário.
Diante dessa ressalva acerca da preocupação malebranchista com o problema ontológico
acerca da natureza das ideias, expõe-se em seguida a argumentação de Cook que visa a sustentar
que as ideias são idênticas à substância de Deus, como parece explícito no texto da Recherche
III, II, 6.
Segundo Cook (1998, p.526-527), Malebranche assume três princípios aparentemente
inconsistentes entre si: 1) tudo o que é, ou é substância, ou é modo de substância; 2) as ideias
não são substâncias, isto é, a primeira vista, as ideias não são substâncias criadas ou finitas ou
distintas de Deus; e 3) as ideias não são modos de substâncias. Como Malebranche concorda
com os princípios 2 e 3, alguns comentadores consideram que a única saída de Malebranche,
para escapar de inconsistências, é admitir que entre eles não há conflito no que diz respeito às
ideias porque o princípio de que tudo ou é substância, ou é modo de substância aplica-se apenas
às coisas criadas, excluindo, dessa maneira, as ideias do escopo dos objetos que recaem sobre
o princípio. Nesse sentido, como Jolley (1990, p.79-80) sugere como possibilidade
interpretativa, as ideias poderiam ser entidades abstratas, entidades lógicas não pertencentes à
estrutura ontológica da realidade, dividida entre substâncias e modificações de substâncias,
compondo assim o que seria um terceiro domínio de coisas, a saber, a esfera das entidades
lógicas.
Entretanto, o principal problema com relação a essa sugestão interpretativa é que
Malebranche parece defender o primeiro princípio como a base da sua ontologia aplicável de
fato a tudo aquilo que é, inclusive às coisas não criadas (como, por exemplo, entidades lógicas,
ou o próprio Deus etc.), o que impede a concepção de que haveria um terceiro domínio de coisas
que não são nem substância, nem modos. Cook (1998, p.527) aponta algumas passagens
textuais que reforçam a aplicação do primeiro princípio a tudo aquilo que é: “[...] tudo aquilo
98 PESSIN (2004) também considera que não há efetivamente uma questão ontológica acerca das ideias em Malebranche.
86
que é, caso exista atualmente ou não, e consequentemente todas as coisas inteligíveis, são
redutíveis ao ser e ao modo do ser” (OCM, III, 174)99; “[...] todo ser é necessariamente ou uma
substância, ou um modo de ser. Pois, finalmente, tudo o que é pode ou ser concebido por si só,
ou não; não há meio termo em proposições contraditórias [...]” (OCM, II, 425)100. Além de
apontá-las, o autor considera que é em função da maneira pela qual Malebranche entende o
princípio em questão, que ele não poderia meramente restringi-lo às coisas criadas por Deus,
ou simplesmente rejeitá-lo. Essa maneira segundo a qual o princípio é compreendido envolve
a forma pela qual a mente é capaz de conceber a natureza daquilo que é. Nesse sentido, aquilo
que pode ser concebido por si mesmo constitui uma substância, enquanto que aquilo que só
pode ser concebido como dependente de outra coisa constitui um modo de uma substância. Essa
relação de independência e de dependência / inerência no que concerne ao ser, segundo a qual
é possível pensar a natureza de todas as coisas, é fortemente sugestiva, para Cook, de que
Malebranche admite o princípio em questão como aplicável a tudo o que é porque ela é tratada
por Malebranche como uma condição lógica para a concepção das coisas. Em favor dessa
leitura, ele apresenta a seguinte passagem de Entretiens sur la métaphysique et sur la religion:
O que quer que exista ou pode ser concebido por si só, ou não pode. Não há meio
termo, visto que as duas proposições são contraditórias. Dado isso, o que quer que
seja concebido por si só e sem pensar em um outro ser – digo, o que quer que possa
ser concebido por si só como existindo independentemente de qualquer outra coisa ou
que possa ser concebido sem a ideia que temos dele representando alguma outra coisa
– trata-se certamente de um ser ou substância; e o que quer que seja que não possa ser
concebido por si ou sem pensar em alguma outra coisa, isto é um estado [manière
d’être], ou uma modificação de substância (OCM, XII-XIII, 33-34)101.
Então, se a interpretação de que Malebranche poderia restringir o primeiro princípio
apenas às coisas criadas não parece se sustentar, é preciso oferecer uma outra interpretação que
permita a conjugação dos três princípios aparentemente contraditórios citados anteriormente.
99 « […] tout ce qui est, soit qu’il existe actuellement ou non, & par consequent tout ce qui est intelligible, se reduit à l’être & à la maniere de l’être » (OCM, III, 174). 100 « […] tout être est nécessairement ou une substance, ou bien une maniere d’être. Car enfin tout ce qui est se peut concevoir seul, ou ne le peut pas : il n’y a pas de milieu dans les propositions contradictoires […] » (OCM, II, 425). 101 « Tout ce qui est on le peut concevoir seul, ou on ne le peut pas. Il n’y a point de milieu, car ces deux propositions sont contradictoires. Or tout ce qu’on peut concevoir seul, & sans penser à autre chose, qu’on peut, dis-je, concevoir seul comme existant indépendemment de quelqu’autre chose, ou sans que l’idée qu’on en a represente quelqu’autre chose, c’est assurément un être ou une substance : & tout ce qu’on ne peut concevoir seul, ou sans penser à quelqu’autre chose, c’est une maniere d’être, ou une modification de substance » (OCM, XII-XIII, 33-34).
87
A questão é, portanto, sobre como se pode entender que as ideias não sejam nem substâncias e
nem modos de substâncias no contexto de uma ontologia onde tudo o que é ou é substância, ou
é modo de substância. Cook vai defender que não há contradição entre essas três perspectivas
porque o que as ideias são é idêntico à substância de Deus, ou seja, elas não são nem
modificações de alguma substância, nem são substâncias independentes, mas são a própria
substância de Deus. Entende-se aqui que essa hipótese delineada por ele pode ser corroborada
pela seguinte passagem da Recherche:
[...] é absolutamente necessário que Deus tenha em si mesmo as ideias de todos os
seres que criou, visto que, de outro modo, não teria podido produzi-los, e que, assim,
ele vê todos esses seres considerando as perfeições que ele contém, com as quais eles
têm relação (ABV, 191)102.
Isso pode ser assim compreendido à medida que a noção de que Deus contém as ideias,
como expresso na citação acima, parece pressupor que de alguma forma elas são o próprio
Deus, uma vez que a natureza absoluta dele não poderia, por definição, envolver no seu ser
alguma externalidade. Nesse sentido, se Deus contém em si mesmo as ideias das criaturas,
parece razoável defender que essas ideias são a natureza divina. E isso parece tornar-se mais
evidente na passagem final da citação em que Malebranche sugere que Deus tem ideias dos
seres criados a partir das perfeições contidas na própria natureza divina, isto é, ao considerar
suas próprias perfeições, sua própria natureza, enquanto essas possuem alguma relação com as
coisas criadas. A relação entre as perfeições de Deus, as ideias e as coisas criadas será
desenvolvida mais a frente nessa seção.
Mas, antes de seguir esse debate, é preciso apresentar argumentos que corroboram a
aceitação malebranchista dos princípios 2 e 3, ou seja, de que as ideias não são nem
modificações de Deus103, nem substâncias diferentes, ou independentes, de Deus. Cook (1998,
p. 527-529), a partir da afirmação de Malebranche de que “o ser infinito é incapaz de
modificações” (ABV, 303 – Esclarecimento X)104, reconhece que uma natureza infinitamente
perfeita e imutável, como é Deus, não está sujeita a nenhum tipo de limitação ou de imperfeição
na sua constituição. Nesse sentido, como toda modificação envolve uma limitação no ser,
102 « [...] il est absolument nécessaire que Dieu ait en lui-même les idées de tous les êtres qu’il a créés, puisqu’autrement il n’auroit pas pû les produire, & qu’ainsi il voit tous ces êtres en considérant les perfections qu’il renferme auxquelles ils ont rapport » (OCM, I, 437) 103 Que as ideias não são modificações da mente finita já foi anteriormente defendido nesse capítulo. 104 « […] l’être infini est incapable de modifications » (OCM, III, 149).
88
envolve um sentido de imperfeição dado pela ausência da totalidade e da completude, é
contraditório pensar em Deus como limitado por tais ou quais formas de ser. É sob esse prisma
que é preciso considerar que as propriedades de Deus, como sua infinita perfeição e
imutabilidade, não são modos da natureza de Deus, mas são idênticos à substância de Deus,
que é sempre completa, ilimitada e simples, ainda que as mentes finitas sejam incapazes de
compreendê-lo efetivamente. Pode-se recorrer aqui a uma passagem da Recherche, III, II, 6 que
motiva essa interpretação: “[...] e, em Deus, não há nada que seja divisível ou figurado, pois
Deus é inteiramente ser, porque ele é infinito e compreende tudo, mas ele não é nenhum ser em
particular” (ABV, 192)105.
Agora, se as ideias não são modificações nem da mente finita, nem de Deus, tampouco
elas são substâncias diferentes de Deus. Mesmo que as ideias tenham propriedades, como
exposto na Recherche III, II, 3, o que as habilitaria como substâncias diferentes, Malebranche
recusa que elas o sejam:
Caso se diga que uma ideia não é uma substância, eu estou de acordo; mas é sempre
uma coisa espiritual e, como não é possível fazer um quadrado de um espírito, ainda
que um quadrado não seja uma substância, não é possível também formar, de uma
substância material, uma ideia espiritual, ainda que uma ideia não seja uma
substância. (ABV, 178)106.
Malebranche não considera as ideias como substâncias diferentes de Deus pois elas
estão em Deus, ou seja, porque Deus é o “lugar” das ideias, como Malebranche se esforça em
demonstrar no raciocínio em favor da hipótese da visão em Deus. Ora, como visto, tudo o que
está em Deus, é Deus por completo, já que em Deus não há partes. Seguindo esse raciocínio, é
preciso concluir que as ideias não são substâncias diferentes de Deus. Além disso, numa outra
perspectiva, Deus não perceberia as ideias como objetos diferentes e externos a si mesmo, pois
elas são, como já mencionado, absolutamente necessárias para a própria criação. Como nada,
além de Deus, existe antes da criação, é inevitável concluir que as ideias são a substância de
Deus. E é por meio delas que Deus concebe todas as coisas, já que as próprias coisas criadas
foram instanciadas segundo as ideias que Deus tem delas. O sentido próprio em que se pode
105 “[...] & en Dieu il n’y a rien qui soit divisible ou figuré: car Dieu est tout être, parce qu’il est infini & qu’il comprend tout; mais il n’est aucun être en particulier” (OCM, I, 439). 106 “Que si on dit, qu’une idée n’est pas une substance, je le veux: mais c’est toujours une chose spirituelle: & comme il n’est pas possible de faire un quarré d’un esprit, quoi qu’un quarré ne soit pas une substance: il n’est pas possible aussi de former d’une substance metérielle une idée spirituelle , quand même une idée ne feroit pas une substance” (OCM, I, 424).
89
afirmar que, para Malebranche, Deus possui ideia de todos os seres criados será explicitado
mais à frente.
Assim, em resumo, o que Cook, em seu artigo, empenha-se em mostrar, e com o que se
concorda aqui, é que o que as ideias são é idêntico à substância de Deus, elas são Deus mesmo,
são a própria natureza de Deus e nada de distinto ou diverso de sua essência. Desse modo ele
pretende fornecer uma interpretação que, por um lado, salva Malebranche de uma flagrante
inconsistência e, por outro, tenta munir o debate acerca do status ontológico das ideias em
Malebranche com maior densidade.
Entretanto, Cook vai se perguntar, o que significa afirmar que Deus é ao mesmo tempo
de natureza simples e diversa à medida que ele é uno na perfeição absoluta que rejeita qualquer
modificação ou particularização, e diverso na infinidade de ideias que representa e que
“compõem” sua substância? Em que medida as ideias são Deus, portanto? Adianta-se aqui que
a resposta completa para essa questão esbarra na tese da incompreensibilidade de Deus, não
como o que seria uma artimanha malebranchista para burlar inconsistências teóricas de suas
posições, mas como parte do projeto filosófico de Malebranche, segundo Cook (1998, 530-531;
538-539), que compreende a mente finita como limitada e incapaz de apreender de forma total
o que é Deus. Entretanto, aquilo até onde a mente finita pode alcançar, no que diz respeito ao
status ontológico das ideias, é objeto de investigação de Malebranche e é sobre isso que incide
a argumentação.
Cook (1998, p. 531), apresenta algumas passagens em se pode considerar que
Malebranche afirma a identificação das ideias com a substância ou essência de Deus. Ei-las em
seguida:
As ideias que Deus tem das criaturas são, como diz são Tomás, somente sua essência,
enquanto esta é participável ou imperfeitamente imitável, pois Deus contém, mas
divinamente, infinitamente, tudo o que há de perfeição nas criaturas [...] (ABV, 303 –
Esclarecimento X)107.
[…] as ideias são a substância mesma de Deus, não segundo seu ser absoluto, mas
enquanto representativas das criaturas e participável por elas (OCM,VIII-IX, 1002)108.
107 « Les idées que Dieu a des créatures, ne sont, comme dit saint Thomas, que son essence, entant qu’elle en est participable, ou imparfaitement imitable, car Dieu renferme, mais divinement, mais infiniment tout ce qu’il y a de perfection dans les créatures […] » (OCM, III, 149). 108 « […] les idées sont la substance même de Dieu, non selon son être absolu, mais entant que representative de créatures, & participable par elles […] » (OCM, VIII-IX, 1002).
90
Mas a extensão inteligível é apenas a substância de Deus enquanto representativa dos
corpos e participável por eles com as limitações ou as imperfeições que lhes dizem
respeito, e que representa essa mesma extensão inteligível, que é sua ideia ou seu
arquétipo (OCM, XII-XIII, 184)109.
Essas passagens, que exprimem a identificação das ideias ora com a essência, ora com
a substância de Deus, ou seja, com a natureza de Deus, contêm uma importante ressalva: as
ideias são identificadas com Deus apenas enquanto ele é entendido de uma certa maneira. Além
dessas passagens citadas por Cook, considera-se que isso também é sugerido na passagem da
Recherche, III, II, 6, reproduzida aqui anteriormente, que afirma que “[Deus] vê todos esses
seres considerando as perfeições que ele contém, com as quais eles [os seres criados] têm
relação” (ABV, 191)110. Isso porque interpreta-se que ao afirmar que Deus vê todos os seres na
consideração que faz das perfeições que ele possui, Malebranche está dizendo que Deus possui
ideias das coisas criadas a partir da sua própria natureza. E como já dito anteriormente, isso
significa que as ideias podem ser entendidas como idênticas à natureza de Deus à medida que
tudo o que nele está é, em sentido largo, constitutivo da substância divina.
É preciso apontar que essas passagens citadas, que exprimem a identificação das ideias
ora com a essência, ora com a substância de Deus, ou seja, com a natureza de Deus, contêm
uma importante ressalva: as ideias são identificadas com Deus apenas enquanto ele é entendido
de uma certa maneira. Tendo isso em vista, pode-se observar nessas passagens citadas que elas
restringem as ideias apenas ao que na natureza de Deus tem relação com as criaturas; e isso
parece indicar que, ao tratar das ideias, Malebranche não pretende que sua natureza seja idêntica
à substância de Deus tomada absolutamente, mas sim apenas enquanto elas dizem respeito às
coisas criadas.
Desse modo, está-se de acordo com Cook (1998, p. 532), para quem essa ressalva é
fonte de algumas questões acerca da interpretação do sentido dessa identificação – notadamente
aquela que afirma, como apontado acima e retomado aqui, que “ideias são a substância de Deus
em si, não no que diz respeito a seu ser absoluto, mas à medida que ele é representativo das
criaturas e participável por elas” (OCM, VIII-IX, 1002). Em primeiro lugar, essa passagem
109 Mais l’étenduë intelligible n’est que la substance de Dieu, entant que représentative des corps, & participable par eux avec les limitations ou les imperfections qui leur conviennent, & que représente cette même étenduë intelligible, qui est leur idée ou leur archetype (OCM, XII-XIII, 184). 110 « [Dieu] voit tous ces êtres en considérant les perfections qu’il renferme auxquelles ils ont rapport » (OCM, I, 437).
91
parece ao mesmo tempo indicar, por um lado, que as ideias são a substância de Deus; e, por
outro lado, em função da restrição imposta pela afirmação de que as ideias são a substância de
Deus apenas enquanto ele é representativo das, e participável pelas, criaturas, essa passagem
parece indicar o modo como as ideias estão em Deus. E isso sugere que as ideias sejam como
que aspectos de Deus ao invés da simples identificação delas com a substância divina. Assim,
segue Cook (1998, p.532), quando Malebranche afirma que as ideias são a substância de Deus
não tomada absolutamente, mas apenas enquanto ela representa as criaturas, é preciso que se
entenda se ele está dizendo que as ideias não são a substância de Deus, mas alguma parte ou
aspecto de Deus; ou se as ideias são a substância de Deus apenas enquanto considerada, tomada,
percebida de uma certa maneira. A diferença entre a substância de Deus tomada absolutamente
e a substância de Deus tomada de uma certa maneira é uma diferença de objetos? Isto é, a
substância absoluta de Deus é uma coisa e a substância de Deus tomada de certo modo é outra
coisa? Ou trata-se de uma diferença de consideração do mesmo objeto? Isto é, Deus tomado
absolutamente é o mesmo que Deus tomado de uma certa maneira, mudando apenas nesse caso
o modo de consideração? No primeiro caso, parece que as ideias (a substância de Deus tomada
enquanto é representativa das criaturas) seriam em certa medida distintas da substância de Deus
tomada absolutamente, ainda que intimamente relacionadas. Enquanto no segundo caso, as
ideias seriam apenas um modo de consideração da natureza absoluta de Deus, não havendo
entre elas uma distinção de objeto. No primeiro caso, as ideias seriam como que partes ou
aspectos de Deus; e no segundo caso, as ideias seriam idênticas à substância de Deus, só que
tomadas de uma certa maneira. Em resumo, a diferença entre essas duas hipóteses consiste em
que tomar as ideias como sendo aspectos da natureza de Deus em si mesma permite tratar as
ideias como objetos diferentes de Deus, ao passo que tomar as ideias como modos de
consideração da natureza de Deus permite tratá-las como a mesma coisa. Por fim, colocado de
outra maneira, quando Malebranche defende, como o faz na Recherche, III, II, 6, que ao se ver
as ideias, vê-se a substância de Deus, não tomada em si mesma, mas de uma certa maneira –
“Mas é preciso observar cuidadosamente que não podemos concluir que os espíritos vejam a
essência de Deus do fato de que eles veem, dessa maneira, todas as coisas em Deus. A essência
de Deus é seu ser absoluto, e os espíritos não veem a substância divina tomada absolutamente,
mas somente enquanto relativa às criaturas ou participável por elas” (ABV, 192)111 – ele quer
111 « Mais il faut bien remarquer qu’on ne peut pas conclure que les esprits voyent l’essence de Dieu, de ce qu’ils voyent toutes choses en Dieu de cette manière. L’essence de Dieu c’est son être absolu , & les esprits ne voyent point la substance divine prise absolument, mais seulement en tant que relative aux créatures ou participable par elles » (OCM, I, 439)
92
dizer que não é Deus que é visto ao se ver as ideias, ou que Deus é sim visto, mas de uma certa
maneira? Qual é a diferença entre ver a substância de Deus como ela é em si mesma e ver a
substância de Deus como ela é de uma certa maneira? Trata-se de uma diferença nos objetos
vistos ou nos modos de ver o mesmo objeto?
Para responder a essas questões, Cook (1998, p. 532-538) propõe expor, segundo
Malebranche, algumas características de Deus e sua relação com as criaturas, a fim de
compreender como ele identifica as ideias com a substância de Deus. Essa argumentação
pretende esclarecer o motivo pelo qual, para Malebranche, Deus possui ideias das criaturas à
medida que contém em si eminentemente suas perfeições, isto é, em que medida Deus é
representativo das criaturas porque possui em sua natureza as perfeições delas. Essa é a chave
interpretativa para dar conta do sentido preciso em que as ideias são a natureza de Deus.
Segundo Malebranche, afirma Cook (1998, p.532), Deus possui todas as perfeições
espirituais, materiais, perfeições de todas as criaturas, e também as perfeições de seres
meramente possíveis. E ele as contém sem as limitações presentes nas coisas criadas, pois Deus
é infinitamente perfeito. Deus contém todas as perfeições eminentemente e, para Malebranche,
isso é muito importante para que se entenda por que Deus possui ideias das coisas criadas.
Entende-se aqui que essa interpretação de Cook pode ser reforçada pela passagem da
Recherche, III, II, 5 que afirma que “[...] todas as criaturas, mesmo as mais materiais e as mais
terrestres, estão em Deus, ainda que de uma maneira inteiramente espiritual e que nós não
podemos compreender” (ABV, 189)112. Isso porque interpreta-se aqui que a afirmação de que
todos os seres criados estão em Deus de uma maneira espiritual sobre a qual não se pode ter
clareza significa exatamente a concepção de que é Deus a fonte de todas as perfeições das quais
todas as coisas criadas são constituídas. E a maneira como essas perfeições estão contidas em
Deus é, em função de sua natureza, a mais perfeita e elevada possível. Nesse sentido, a restrição
malebranchista à contenção eminente das perfeições em Deus, de acordo com o que Cook diz
na mesma página, se deve ao fato de que Deus não poderia conter formalmente as perfeições
de nenhuma criatura sob pena de ser limitado pelas perfeições, o que é incompatível com sua
natureza perfeita e infinita. A fim de reforçar o que diz Cook, é importante lembrar que quando
algo contém formalmente determinada perfeição, ele possui em si instanciada e atualizada a
forma real daquela perfeição: possuir formalmente uma perfeição é possuir a forma exata da
realidade expressa pela perfeição. Em sendo assim, ao possuir formalmente uma perfeição em
112 « […] toutes les créatures , même les plus materielles & les plus terrestres, sont en Dieu, quoi que d’une manière toute spirituelle & que nous ne pouvons comprendre » (OCM, I, 435)
93
particular, Deus tornar-se-ia efetivamente particularizado e limitado na forma daquela
perfeição, de acordo com Malebranche113.
Se, então, Deus possui todas as perfeições das criaturas eminentemente, ou seja, se de
uma forma mais perfeita e elevada as perfeições de todas as coisas criadas estão em Deus,
Malebranche conclui a partir disso que Deus possui em si mesmo as ideias das criaturas. E ele
tem ideias das coisas criadas porque considera em si mesmo as perfeições das coisas criadas,
que estão eminentemente nele, e representam essas criaturas para ele. Nesse sentido, como
Cook (1998, p.532) aponta, Malebranche afirma que “[a substância de Deus] encerra
divinamente tudo o que há de perfeição ou de realidade em todos os seres, criados ou possíveis,
e nesse sentido ela contém todas as ideias deles” (OCM, IX, 933)114. E, consequentemente,
“Deus vê, […] dentro de si mesmo, todos o seres, considerando suas próprias perfeições, que
os representam para ele” (ABV, 189)115. Dessa maneira, vê-se que são as perfeições divinas (a
natureza de Deus), à medida que englobam de maneira infinitamente elevada e superior tudo
aquilo que entra na composição de toda a criação, que são representativas dos seres criados. É
esse o sentido que se pode atribuir à tese malebranchista de que Deus possui as ideias dos seres
criados, ideias essas disponibilizadas para que as mentes finitas possam perceber todas as
coisas, como se vê bastante claramente na seguinte passagem: “É preciso lembrar-nos de que,
quando vemos uma criatura, não a vemos em si mesma, nem por si mesma, pois nós a vemos,
como provei no terceiro livro, somente pela visão de certas perfeições que estão em Deus, as
quais a representam” (ABV, 225)116
É preciso ainda que se esclareça aqui o motivo pelo qual Malebranche defende que Deus
tem ideias das coisas criadas, isto é, representa essas coisas ao possuir nele mesmo todas as
perfeições. Com esse objetivo, Cook (1998, p.234) propõe que se discuta um dos argumentos
de Malebranche em favor da existência das ideias, que é o argumento da intencionalidade da
percepção (visto mais detalhadamente na primeira seção desse capítulo). Segundo Cook,
quando examinado estritamente no que diz respeito à intencionalidade da percepção, esse
argumento não envolve nenhuma necessidade de se pronunciar sobre o caráter representativo
das ideias. Isso porque o que esse argumento permite concluir, à primeira vista, restringe-se
113 Cf. OCM, XIII, 403 e OCM, XV, 4. 114 « [la substance de Dieu] renferme divinement tout ce qu’il y a de perfection ou de réalité dans tous les êtres, & créées & possibles, & par là comme […] elle en contient toutes les idées » (OCM, IX, 933). 115 « Dieu voit […] au-dedans de lui-même tous les êtres, en considérant les propres perfections qui les lui représentent » (OCM, I, 435). 116 « Il faut se souvenir que lorsque on voit une créature, on ne la voit point en elle- même, ni par elle-même : car on ne la voit, comme on l’a prouvé dans le troisième Livre , que par la vûë de certaines perfections qui sont en Dieu, lesquelles la représentent » (OCM, II, 96)
94
apenas à existência das ideias como os objetos imediatos da percepção, já que não é possível
que exista percepção do nada, e é sempre necessário, portanto, que haja um objeto percebido
no momento da percepção. Entretanto, ainda que o caráter representativo das ideias não pareça
ocupar um lugar central no argumento da intencionalidade da percepção, é certo que
Malebranche reconhece sua função, tanto no raciocínio que culmina na visão em Deus, quanto
numa versão mais desenvolvida, segundo Cook (1998, p.536), do argumento da
intencionalidade da percepção (que será discutida mais à frente). Para elucidar o que é esse
caráter representativo das ideias, o autor faz alusão ao que Descartes chama de realidade
objetiva das ideias e que significa, para ele, o conteúdo do ato de pensamento essencialmente
representativo que é a ideia. Segundo a leitura que Cook faz da interpretação de Malebranche
sobre Descartes (sobre a qual não se pronunciará nesse momento), a ideia é o pensamento
mesmo enquanto representativo de objetos para a consciência, a ideia é exclusivamente uma
operação mental supostamente representativa. Contudo, para Malebranche, como visto
anteriormente, não é o pensamento, enquanto operação da mente, que é representativo, mas sim
seus objetos: são as ideias, que só existem fora da mente finita, portanto, que possuem conteúdo
representativo (realidade objetiva).
Assim, segundo Cook (1998, p.536), e de acordo com o que foi explicitado nas seções
anteriores desse capítulo, as ideias (que são objetos independentes da mente, segundo
Malebranche), tomadas no seu caráter representativo, possuem características incompatíveis
com a de seres que são criados e finitos. Isso significa que a partir da realidade ou das perfeições
das ideias, que são infinitas, imutáveis, eternas, é preciso concluir que elas estão em Deus.
Melhor dizendo, pela consideração das perfeições desses objetos, que são as ideias, é necessário
concluir que eles não são coisas particulares e criadas e que, por esse motivo, só podem estar
em Deus, pois só Deus é eterno, infinito e ilimitado, como visto anteriormente. Com isso em
vista, Cook pensa que esse raciocínio (anteriormente apresentado), que conduz à conclusão de
que as ideias estão em Deus, repercute, de alguma maneira, aquele que leva à prova da
existência de Deus na Terceira Meditação de Descartes conforme ele chega a Deus a partir das
perfeições das ideias. Sendo que a diferença entre eles é dada nas concepções distintas sobre o
que é ideia, o que faz com que eles possuam diferentes conclusões. Por um lado, no argumento
cartesiano prova-se a existência de Deus porque o conteúdo da ideia que o representa, ideia que
além de ter essa realidade objetiva (o conteúdo exibido) tem também a realidade formal de ser
um modo do pensamento, não se explica pela natureza finita do próprio pensamento, exigindo
Deus como seu causador. Por outro lado, o argumento malebranchista, ao considerar as ideias,
95
conclui delas que só podem estar em Deus, pois elas não podem ser nem modificações da
mente117, já que na mente só há operações, nem tampouco podem ser as coisas materiais, que
são por si mesmas insensíveis e ininteligíveis, além de não poderem constituir substâncias
independentes, já que, por sua infinitude e imutabilidade, dependem de Deus como explicação.
Mas é preciso explicar como Malebranche chega à conclusão de que as ideias (que, já
se sabe, estão em Deus) têm tais perfeições. Nesse momento, Cook (1998, p. 536-537) propõe
uma leitura, segundo ele, mais elaborada do argumento da intencionalidade da percepção. Dessa
forma, tomado o princípio que fundamenta a intencionalidade da percepção, a saber, aquele que
diz que o nada não pode ser pensado, ou percebido, já que toda percepção é percepção de
alguma coisa. É possível concluir dele que aquilo que se percebe deve conter as perfeições que
são lá percebidas, pois do contrário haveria a percepção do nada. E com isso se pode afirmar
que as ideias possuem perfeições. Nesse sentido, parece que se segue o princípio de que tudo
aquilo que é percebido como estando no objeto das ideias, deve estar de fato nele (pelo menos
eminentemente). Dessa forma, as ideias das coisas sobre as quais se pensa devem conter os
mesmos tipos de perfeição que essas coisas possuem. Por isso, como se pensa na extensão como
não possuindo limites, é preciso concluir que a infinitude é uma perfeição da ideia de extensão.
Da mesma forma, se se pensa triângulos em geral e não em particular, a ideia de triângulo tem
de ser geral. Se é possível pensar no infinito, não se pode pensar que ele não seja infinito . E
isso é assim porque de acordo com o princípio da intencionalidade da percepção (toda
percepção é percepção de um objeto) e o que se segue dele (tudo o que se percebe como estando
num objeto deve estar no objeto percebido) não é possível que percebamos alguma coisa finita
como infinita, visto que essa percepção infringiria o princípio de que o que não é não pode ser
percebido. Perceber algo infinito no finito é extrapolar os limites do que é diretamente
percebido, pois o percebido, nesse caso, seria aquilo que não é. Como referência, Cook (1998,
537) cita Malebranche: “como o nada não é visível, só se pode perceber no finito apenas o que
ele contém” (OCM, IV, 74)118. Além dessa referência, pode-se citar passagens da Recherche,
III, II, 6 e IV, 11, §3 em favor dessa leitura do argumento da intencionalidade:
117 É interessante reforçar aqui que Malebranche parece admitir que o problema com a concepção cartesiana está no fato de distinguir dois tipos de realidade da ideia, a saber, a realidade formal da ideia (de ser um ato, modo, do pensamento) e realidade objetiva da ideia (conteúdo exibido na mente e que é objeto da ideia, mesmo para Descartes). Segundo Malebranche, admitir que a ideia tem uma realidade formal de ser uma modificação da mente tornaria o objeto da ideia (o conteúdo da ideia) dependente da mente no sentido de se tornar ele próprio, o conteúdo, uma modificação da mente. 118 « Or comme le neant n’est pas visible, on ne peut appercevoir dans le fini que ce qu’il contient » (OCM, IV, 74)
96
[...] a prova da existência de Deus mais bela, mais elevada, mais sólida e a primeira,
ou aquela que supõe menos coisas, é a ideia que temos do infinito. Pois é certo que o
espírito percebe o infinito [...] e que tem uma ideia muito distinta de Deus [...] visto
que não podemos conceber que a ideia de um ser infinitamente perfeito, que é aquela
que temos de Deus, seja uma coisa criada [a saber, finita] (ABV, 195)119.
[...] não há nada de finito que possa representar o infinito. Portanto, só podemos ver
Deus se ele existe; não podemos ver a essência de um ser infinitamente perfeito sem
ver sua existência; não podemos vê-lo simplesmente como um ser possível [...] (ABV,
226)120.
Tendo isso em vista, segundo Cook (1998, p.537), Deus possui ideias das coisas criadas
porque:
1) Como o nada é invisível, toda percepção é percepção de um objeto, que Malebranche
chama de ideia;
2) E como tudo o que se percebe como tendo determinadas perfeições deve possuir essas
mesmas perfeições percebidas, sob pena de que se perceba o que não está lá para ser
percebido;
3) A natureza das percepções exige que as ideias possuam as diversas perfeições que elas
exprimem, entre elas a da infinitude, a da generalidade etc.;
4) Entretanto, as ideias só podem ter as perfeições que elas têm se elas estão em Deus, pois
só Deus é infinito, só Deus não é particular etc.
5) Por essa razão, Malebranche acredita, segundo Cook, que Deus, ao possuir em si mesmo
essas perfeições que compõem as ideias, é capaz de representar as coisas criadas.
Até esse momento, pretende-se ter explicitado, juntamente com Cook (1998, 537), como
a realidade das ideias está em Deus à medida que ele possui em si eminentemente as perfeições
das criaturas. Como as ideias são objetos representativos que carregam consigo inúmeras
perfeições e, entre elas, algumas que são incompatíveis com a de seres finitos, é preciso concluir
que elas são (objetos representativos) em Deus, pois só ele pode explicar sua realidade. Por esse
119 « […] la preuve de l’existence de Dieu la plus belle , la plus relevée, la plus solide, & la première, ou celle qui suppose le moins de choses, c’est l’idée que nous avons de l’infini. Car il est constant que l’esprit apperçoit l’infinit […] & qu’il a une idée très distincte de Dieu […] puisqu’on ne peut pas concevoir, que l’idée d’un être infiniment parfait, qui est celle que nous avons de Dieu, soit quelque chose de créé » (OCM, I, 441). 120 « […] il n’y a rien de fini qui puisse représenter l’infini. L’on ne peut donc voir Dieu, qu’il n’existe : on ne peut voir l’essence d’un être infiniment parfait, sans en voir l’existence : on ne le peut vois simplement comme un être possible […] » (OCM, II, 96)
97
motivo, Deus, porque possui em si as perfeições contidas nas ideias das criaturas é em si mesmo
representativo dessas criaturas. É preciso agora esclarecer mais o que significa que Deus seja
representativo das criaturas: como a natureza de Deus representa as coisas criadas?
Ainda acompanhando Cook (1998, p.537-539), ele afirma que Malebranche caracteriza
de diferentes maneiras a relação entre Deus e as criaturas de modo a esclarecer como é possível
para ele representar as coisas criadas. Para Malebranche, todas as criaturas são imagens de, ou
semelhantes, a Deus121. Ele também afirma que as criaturas são imitações ou “participações”
de Deus, a saber, “[todos os seres] são apenas participações (eu não digo partes), apenas
imitações infinitamente imperfeitas de sua essência [de Deus]” (OCM, XV, 10)122.
Malebranche ainda diz, segundo Cook, que a natureza própria de cada coisa consiste na sua
participação de alguma forma na natureza divina123. Essa interpretação encontra apoio também,
como se pode observar, no trecho da Recherche, III, II, 6 que diz que não se percebe Deus em
seu ser absoluto, mas apenas no âmbito específico da natureza de Deus que diz respeito às
criaturas, que guarda alguma relação com elas, ou que é dado à participação delas: “A essência
de Deus é seu ser absoluto, e os espíritos não veem a substância divina tomada absolutamente,
mas somente enquanto relativa às criaturas ou participável por elas” (ABV, 192)124. Essas
citações e apontamentos visam a mostrar em que sentido Malebranche concebe a relação
existente entre Deus e as coisas criadas que possa dar conta do que significa que Deus seja
representativo das criaturas. Ora, as coisas criadas são imagens, são semelhantes de maneira
infinitamente imperfeita a Deus porque elas participam, de uma forma limitada, da essência de
Deus. E, nesse sentido, as criaturas participam da essência de Deus à medida que contêm de
maneira muito limitada as perfeições que Deus contém perfeita e infinitamente. Em razão disso,
as criaturas são representadas por Deus em função daquilo de que, nele, elas são imagens, ou
cópias imperfeitas. Isso significa que Deus representa as criaturas porque possui em sua
natureza perfeições das quais essas criaturas são imagens. Pode-se citar aqui como apoio a essa
concepção o seguinte trecho da Recherche, III, II, 5:
É indubitável que havia somente Deus antes que o mundo fosse criado, e que ele não
o pôde produzir sem conhecimento e sem ideia; que, consequentemente, essas ideias
que Deus tinha desse mundo não são diferentes de si mesmo; e que, assim, todas as
121 Cf. OCM, IV, 64. 122 « […] [tous les êtres] ne sont que de participations, (je ne dis pas des partie) infiniment limitées, que des imitations infiniment imparfaites de Son essence » (OCM, XV, 10). 123 Cf. OCM, IX, 950. 124 « L’essence de Dieu c’est son être absolu, & les esprits ne voient point la substance divine prise absolument, mais seulement en tant que relative aux créatures ou participable par elles » (OCM, I, 439).
98
criaturas [...] estão em Deus, ainda que de uma maneira inteiramente espiritual e que
nós não podemos compreender. Deus vê, portanto, dentro de si mesmo, todos os seres,
considerando suas próprias perfeições, que os representam para ele. (ABV, 189)125.
E nesse sentido, é legítimo conceber que as perfeições de Deus representam aquilo que
são suas imitações imperfeitas. Entretanto, como já visto, é forçoso lembrar que isso ocorre
apenas enquanto tais perfeições divinas são tomadas de uma determinada maneira, jamais
podendo ocorrer enquanto elas são tomadas absolutamente, como Deus é em si mesmo.
É lícito, nesse contexto, compreender as criaturas como instanciações de diversos
modos pelos quais Deus pode ser limitado. Assim, pode-se entendê-las num certo sentido como
reflexos imperfeitos das perfeições divinas. E as perfeições de Deus, tomadas dessa forma
limitada, como representativas de diferentes criaturas. Por fim, as ideias expressam as formas
em que as perfeições de Deus podem ser imitadas, ou copiadas, ou limitadas imperfeitamente
como (na forma de) criaturas. A conclusão que se retira disso em seguida não está presente em
Cook e consiste na minha interpretação acerca do que se pode depreender da tese do autor sobre
a identificação das ideias com a substância divina: as ideias são idênticas a Deus à medida que
ele é, em última instância, o modelo para tudo aquilo que é. Dessa maneira, se as ideias são a
substância de Deus enquanto ela representa as coisas criadas, e Deus as representa porque
possui em si eminentemente as perfeições dessas coisas, pode-se afirmar que as ideias são a
natureza de Deus tomada nas suas possibilidades arquetípicas como modelos para a criação do
mundo. Afirma-se isso porque quando as perfeições de Deus são consideradas como
exemplares possíveis de serem instanciados numa realidade externa a Deus segundo um
conjunto de propriedades e condições determinados, então temos a noção de ideia como
modelos ou arquétipos segundo os quais Deus cria todas as coisas. E, reforçando, é nesse
sentido que se pode dizer que as ideias são idênticas à natureza de Deus, pois elas são a própria
substância de Deus, que contém em si todas as perfeições eminentemente, considerada sob o
aspecto arquetípico a partir do qual todas as coisas criadas são como que imagens, ou cópias
imperfeitas das perfeições infinitamente perfeitas de Deus.
125 « Il est indubitable qu’il n’y avoit que Dieu seul avant que le monde fût créé, & qu’il n’a pû le produire sans connaissance & sans idée : que par conséquent ces idées que Dieu en a euës ne sont point différentes de lui-même & qu’ainsi toutes les créatures […] sont en Dieu, quoi que d’une manière toute spirituelle & que nous ne pouvons comprendre. Dieu voit donc au-dedans de lui-même tous les êtres, en considérant les propres perfections qui les lui représentent » (OCM, I, 434-435).
99
É preciso ressaltar nesse momento que a noção de representação como exibição na
consciência de um conteúdo determinado como objeto da percepção, empregada até então, é,
nesse contexto da representação divina, substituída por uma compreensão da representação
como modelo, ou padrão, segundo o qual todas as coisas criadas são constituídas. Emprega-se
aqui essa concepção modelar por se tratar da representação divina das coisas criadas, que é
distinta da percepção realizada pelas mentes finitas, para a qual mantém-se a compreensão de
representação como exibição de conteúdos na consciência. E elas são distintas porque Deus não
percebe as ideias como objetos representativos que visam a algum outro, mas sim as ideias são
a própria natureza divina enquanto modelo perfeito das criaturas.
Tendo exposto a argumentação de Cook (1998) acerca do status ontológico das ideias
na filosofia de Malebranche, faz-se necessário discutir algumas consequências das posições
apresentadas. Considera-se nesse texto que a mais importante delas é o representacionalismo
forte da teoria da percepção de Malebranche, que envolve elementos como a percepção direta
das ideias, enquanto as perfeições de Deus, quando elas são modelos para as coisas criadas; a
independência das ideias com relação aos objetos que elas representam; e o conhecimento
apenas inferencial do mundo criado. Todo esse conjunto de consequências coloca a teoria da
percepção de Malebranche num lugar muito peculiar e um tanto anti-intuitivo que é responsável
por provocar uma longa discussão com Arnauld acerca do que é perceber e qual é o objeto
imediato da percepção, como se discutirá proximamente. Todavia, sobre as características desse
representacionalismo é que se debruçará nesse momento.
A concepção de que a teoria da percepção de Malebranche implica um
representacionalismo forte processa-se fundamentalmente pela tese de que as ideias são objetos
representativos intermediários entre a percepção e as coisas representadas. Isso significa que,
como já visto, as ideias não se reduzem nem a um certo tipo de ato mental, nem às coisas
externas representadas, mas são como que terceiras entidades que intermedeiam o processo
perceptivo. A natureza dessas terceiras entidades, como elucidado anteriormente, é idêntica à
substância de Deus, não tomado absolutamente, mas enquanto ela é, em um sentido peculiar
como explicado acima, representativa das coisas criadas. Nesse sentido, as ideias são a
substância de Deus tomada nas suas possibilidades arquetípicas segundo as quais o mundo é
criado. Isso significa que é a substância de Deus sob determinado aspecto (conforme ela é
modelo ou exemplar das coisas externas) aquilo que é diretamente percebido no ato perceptivo,
de modo que o contato que a mente tem no âmbito da percepção se dá exclusivamente com
Deus, sem, portanto, nenhum acesso direto da mente finita ao mundo criado. Nesse contexto,
100
entende-se que o representacionalismo malebranchista expõe uma relação perceptiva tão
singular que nela o conhecimento do mundo ocorre apenas por inferência a partir da percepção
direta que a mente tem das ideias em Deus. O que se quer ressaltar aqui é que, como as ideias
são os exemplares inteligíveis segundo os quais Deus cria toda a realidade, a relação causal
tradicional entre ideia e coisa representada parece ter sido invertida pela filosofia de
Malebranche. Enquanto uma certa tradição cartesiana entende que os objetos são causas, pelo
menos ocasionais, dos conteúdos representativos das ideias, Malebranche defende que são os
conteúdos representativos das ideias, modelares em Deus, as causas, ou a explicação das coisas
representadas pelas ideias. Isso significa que os conteúdos das ideias definem um conjunto de
propriedades e de condições que as coisas no mundo instanciam após a criação divina126. Esse
modelo exposto exemplifica uma cisão intransponível entre a mente e o mundo que exige,
segundo Malebranche, as ideias como intermediários necessários para o estabelecimento de
relações perceptivas. De fato o que se tem é uma relação perceptiva totalmente voltada para a
percepção das entidades representativas como os verdadeiros objetos diretamente percebidos,
sendo a relação perceptiva com o mundo criado totalmente derivada da relação entre mente e
ideias em Deus: o mundo reflete as ideias e não o contrário e, nesse sentido, o que se conhece
em realidade são as ideias, a partir das quais se pode inferir o que é o mundo externo. Sendo
assim, novamente, porque são tão somente as ideias os objetos imediatamente vistos, é
imperioso concluir que todo e qualquer acesso ao mundo externo é dado apenas via
representação das coisas externas. É importante comentar, nesse ponto, que em Malebranche,
mas não necessariamente em Descartes, uma tal compreensão das ideias como a natureza de
Deus tomada no seu âmbito representativo das coisas externas criadas leva à caracterização das
ideias, no que concerne a sua realidade, como independentes das (e inclusive anterior às) coisas
que elas representam. Essa independência refere-se ao fato de que a teoria das ideias de
Malebranche assume, em função de suas teses acerca da natureza das ideias, que não somente
elas são objetos ontologicamente distintos daqueles que representa, isto é, objetos cuja realidade
não necessita da realidade dos objetos representados, mas também que seu conteúdo
representativo é independente desses objetos representados. E isso reforça o sentido em que a
relação perceptiva da mente com os objetos que ela percebe ocorre sempre no contexto da
relação da alma com Deus, no momento em que ele decide revelar para ela as ideias para sua
percepção.
126 Cf. NADLER, 1992, p.51.
101
Em resumo, o que se pretende enfatizar nesse momento é a caracterização da teoria da
percepção de Malebranche como um representacionalismo forte em que a mente finita só
percebe diretamente e de fato Deus (enquanto ele disponibiliza para ela as ideias) e nunca o
mundo. Não há, nessa concepção, percepção, pelo menos imediata, do mundo externo, mas
apenas uma inferência do que nele se passa, em função do valor representativo que as ideias
percebidas possuem, pois elas são a própria substância de Deus enquanto modelos
representativos das coisas externas. Como as ideias estão em Deus, ou seja, são representações
em Deus do mundo externo criado, é por meio da percepção imediata que a mente finita tem
delas que se pode constatar como é o mundo. Sendo assim, o que se percebe são ideias e não as
coisas. Nessa concepção representacionalista forte, o mundo externo nunca é diretamente
percebido; e talvez se possa dizer que num certo sentido ele não é nem mesmo indiretamente
percebido, já que a única relação perceptiva se dá com as ideias em Deus, cuja relação
representativa com as coisas criadas, pode-se dizer, é apenas inferida a partir da perfeição
divina: a mente pode saber como é o mundo porque infere das ideias que estão em Deus que as
coisas externas são como as ideias as representam.
102
3 ARNAULD LEITOR DE DESCARTES: CRÍTICA À TEORIA DA PERCEPÇÃO
DE MALEBRANCHE
O debate entre Arnauld e Malebranche acerca das ideias possui múltiplos matizes que
vão da questão a respeito do objeto imediato da percepção a preocupações de ordem teológica.
É possível considerar, como o faz Denis Moreau (1999, p. 140-144; 154-156), que a finalidade
principal das críticas de Arnauld a Malebranche é atacar as teses malebranchistas sobre a
teologia expostas no Traité de la nature et de la grâce, que teriam como base toda a teoria da
percepção de Malebranche. Nesse sentido, ao combater a concepção de ideia como entidade
representativa em Deus, Arnauld teria em vista a reprovação da suposta univocidade epistêmica
entre os homens e Deus127 que permitiria aos homens avaliar e julgar, a partir de uma posição
privilegiada, as obras e a conduta de Deus. No entanto, o foco e o escopo desse capítulo
encontram-se somente em expor os argumentos da crítica de Arnauld (2011), realizada na sua
conhecida obra publicada em 1683 e intitulada Des vraies et des fausses idées, ao que concerne
à teoria da percepção de Malebranche, notadamente às teses sobre a necessidade das ideias
como seres ou entidades representativas distintas e separadas tanto do ato perceptivo quanto
das coisas percebidas, bem como sobre o papel das ideias como objetos imediatos da percepção,
e também sobre a natureza dessas ideias e sobre a concepção de representacionalismo de
Malebranche. A fim de levar a cabo essa exposição, propõe-se aqui a análise dos capítulos 4 a
11 da obra de Arnauld em questão onde são discutidos os pressupostos que sustentam as
concepções de Malebranche na Recherche acerca da natureza das ideias; onde é oferecida uma
demonstração geométrica da falsidade das ideias tomadas como entidades representativas
separadas das operações da mente finita; e onde Arnauld pronuncia-se acerca de um tipo de
representacionalismo na percepção, que será debatido oportunamente.
3.1 A leitura de Arnauld dos pressupostos malebranchistas da percepção
127 Segundo a leitura apresentada no capítulo sobre Malebranche, as ideias são modelos arquetípicos em Deus representativos de todas as coisas criadas. Essas ideias são os objetos imediatos da percepção das mentes finitas e isso significa que essas mentes percebem, em última instância, a natureza de Deus, enquanto ela é representativa de seres criados, quando percebem alguma coisa.
103
No capítulo 4 de Des vraies et des fausses idées, doravante VFI128, Arnauld afirma no
título-resumo que encabeça o texto que as concepções de Malebranche sobre a natureza das
ideias expostas no livro III da Recherche são fantasias provindas dos preconceitos da infância.
Adianta-se que a leitura de todo o capítulo mostra que a atribuição das concepções
malebranchistas sobre a natureza das ideias aos preconceitos da infância diz respeito aos
fundamentos delas, isto é, aos pressupostos que embasam tais concepções ontológicas acerca
das ideias, segundo Arnauld. Ele não está preocupado, pelo menos nessa ocasião, em mostrar
que cada elemento das concepções de Malebranche acerca das ideias é preconceito infantil.
Mas, como se verá, está preocupado apenas com evidenciar, nesse primeiro momento, que a
base da teoria das ideias de Malebranche é resultado de determinados preconceitos da infância,
o que, segundo ele, parece ser suficiente para lançar suspeitas sobre as consequências da teoria
malebranchista. O que isso quer dizer propriamente e as razões que embasam essa leitura
procurar-se-á explicitar em seguida a partir da análise de VFI, 4, 58-66.
O tema dos preconceitos da infância é uma referência direta de Arnauld à compreensão
cartesiana, exposta nos Princípios da Filosofia, I, art. I, de que na infância, a ser entendido por
quando se é ainda muito jovem e não se alcançou o uso adequado da razão, os juízos a partir
das coisas que se apresentam aos sentidos estão comprometidos pelo uso impróprio e
insuficiente da razão. Descartes diz: “Visto que nascemos sem discernimento e fizemos vários
juízos acerca das coisas sensíveis antes de ter o uso pleno de nossa razão, vemo-nos desviados
por muitos prejuízos do conhecimento da verdade [...]” (Princípios, 23129; AT, VIIIA, 5)130.
Arnauld parece compreender do tema dos preconceitos da infância que eles dizem
respeito às experiências de todos os homens num certo estágio da vida (que seria a infância) em
que eles se encontram numa espécie de estado de imersão nos sentidos, de tal maneira que se
mantêm ligados somente às suas disposições corporais e ao que se apresenta a seus sentidos,
ou seja, quando se supõe que todo o conhecimento depende daquilo que se passa no corpo e é
dado pelos sentidos:
Como todos os homens inicialmente foram crianças e que, enquanto tal, estavam
ocupados quase que apenas com seus corpos e com o que atingia seus sentidos; eles
128 Todas as referências ao texto da obra Des vraies et des fausses idées serão acompanhadas da sigla VFI, seguidas pelo número do capítulo e também pelo número da página da edição da referida obra que foi estabelecida por Denis Moreau em 2011. 129As traduções para o português da primeira parte dos Princípios são da edição brasileira Princípios da Filosofia. Tradução de Guido Antonio de Almeida (coordenador), Raul Landim Filho, Ethel M. Rocha, Marcos Gleizer e Ulysses Pinheiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. 130 “Quoniam infantes nati sumus, & varia de rebus sensibilibus judicia prius tulimus, quam integrum nostrae rationis usum haberemus, multis praejudiciis a veri cognitione avertimur [...]” (AT, VIIIA, 5).
104
permaneceram por longo tempo sem conhecer outra coisa para além da visão corporal,
que eles atribuíam a seus olhos131 (VFI, 4, 58)132.
Na passagem acima citada, ao manifestar que a condição de imersão nos sentidos leva
os homens a pressuporem que o que é dado pelas sensações é a única via para o conhecimento,
Arnauld utiliza o exemplo da visão corporal como ilustração dos preconceitos da infância.
Dessa maneira, tudo o que é dado pelo sentido da visão é considerado, segundo Arnauld, como
uma referência segura no contexto em que os homens estão atrelados unicamente a seus
sentidos, isto é, na conjuntura em que se dão os preconceitos da infância. Entretanto, é
importante ressaltar que a visão não aparece no texto de Arnauld como mero exemplo aleatório
da formação de preconceitos, mas sim, como se verá, como a grande amostra de confusão
provocada pelos prejuízos da infância que estaria na base da teoria das ideias de Malebranche.
Com isso em vista, a partir do que pode ser considerada uma análise (infantil) da visão
corporal, Arnauld afirma que duas coisas eram imprescindivelmente notáveis (por esses
infantis, ou seja, do ponto de vista do vulgo) no sentido da visão, a saber, 1) que, para que ela
ocorresse, algum objeto devia estar diante dos olhos; e, 2) no caso da reflexão das imagens dos
objetos em superfícies refletoras, que o que se acreditava ver eram apenas as imagens desses
objetos e não os objetos eles mesmos. Compreende-se aqui que Arnauld quer ressaltar que da
observação, feita pelos homens comuns, do que se passa na visão corporal extraiu-se duas
coisas: que ela ocorre quando há objetos diante dos olhos, e que ela também ocorre quando o
que está diante dos olhos é apenas uma imagem refletida. Sendo assim, o exame infantil do
sentido da visão, segundo Arnauld, seria o responsável pela compreensão de que a presença de
um objeto diante dos olhos era um requisito para a visão, bem como que, no caso da reflexão
da imagem, aquilo que era visto eram representações de objetos e não os objetos por si mesmos:
[…] eles não puderam impedir-se de observar duas coisas nessa visão [corporal].
Uma, é que era preciso que o objeto estivesse diante de nossos olhos para que
pudéssemos vê-lo, o que eles chamaram de presença; e é isso que os fez considerar a
presença do objeto como uma condição necessária para ver. A outra, é que às vezes
as coisas visíveis também eram vistas nos espelhos, ou na água, ou outras coisas que
131 As traduções para o português de Des vraies e fausses idées são de minha autoria. 132 « Comme tous les hommes ont été d’abord enfants, et qu’alors ils n’étaient presque occupés que de leur corps, et de ce qui frappait leurs sens, ils ont été longtemps sans connaître d’autre vue que la vue corporelle, qu’ils attribuaient à leurs yeux » (VFI, 4, 58).
105
no-las representavam; e, então, eles acreditaram, embora erradamente, que não eram
os corpos mesmos que se viam, mas suas imagens. (VFI, 4, 58-59)133
Ao considerar essas observações acerca do que se passa na visão corporal, Arnauld
estabelece duas premissas, condições ou princípios que estariam na base da compreensão do
que é ver para aqueles que permanecem imersos no campo das sensações: 1) no caso da visão
direta, a necessidade da presença do objeto visto; e 2) no caso da visão da reflexão da imagem,
a impossibilidade de se ver o objeto por si mesmo a não ser segundo sua imagem refletida.
Essas duas premissas derivadas da percepção sensível, segundo Arnauld, constituíram o modo
como aqueles absolutamente ocupados com as coisas sensíveis compreenderam o que é ver.
Tendo isso em vista, caracteriza-se aí uma forte associação, dada pelo costume, entre essas duas
condições e a própria noção de visão; de tal forma que essa noção do que é ver, dominada por
essas condições resultantes dos preconceitos da infância, foi tomada como a coisa mais certa e
inquestionável. Entretanto, o risco de se tomar por inquestionável aquilo que não passou por
uma análise rigorosa capaz de distinguir com clareza a composição das noções e dos juízos
presentes na alma é o que caracteriza propriamente os erros resultantes dos preconceitos em
questão:
Eis a única ideia que eles tiveram por muito tempo disso que eles chamaram de ver,
de onde ocorreu que eles se acostumaram, por um longo hábito, a juntar à ideia dessa
palavra [ver] uma ou outra dessas duas circunstâncias: a presença do objeto na visão
direta; ou ver somente o objeto por sua imagem na visão refletida por espelhos. Ora,
é suficientemente sabido que se tem de separar as ideias que têm o costume de se
encontrar juntas no nosso espírito e que isso é uma das causas das mais ordinárias dos
nossos erros. (VFI, 4, 59)134.
133 « [...] ils n’ont pu s’empêcher de remarquer deux choses dans cette vue. L’une, qu’il fallait que l’objet fût devant nos yeux, afin que nous les pussions voir, ce qu’ils ont appelé présence ; et c’est ce qui leur a fait regarder cette présence de l’objet comme une condition nécessaire pour voir. L’autre, qu’on voyait aussi quelquefois les choses visibles dans les miroirs, ou dans l’eau, ou d’autres choses qui nous le représentaient ; et alors ils ont cru, quoique par erreur, que ce n’était pas les corps même que l’on voyait mais leurs images. » (VFI, 4, 58-59). 134 « Voilà la seule idée qu’ils ont eue longtemps de ce qu’ils ont appelé voir, d’où il est arrivé qu’ils se sont accoutumés, par une longue habitude, à joindre à l’idée de ce mot l’une ou l’autre de ces deux circonstances : de la présence de l’objet dans la vue directe ; ou de voir seulement l’objet par son image, dans la vue réfléchie par des miroirs. Or on sait assez la peine qu’on a de séparer les idées qui ont accoutumé de se trouver ensemble dans notre esprit, et que c’est une des causes les plus ordinaires de nos erreurs. » (VFI, 4, 59)
106
Diante de um maior esclarecimento do que Arnauld entende como os preconceitos da
infância aos quais ele associa as concepções de Malebranche acerca das ideias, é necessário
expor as razões de Arnauld para sustentar que a teoria malebranchista das ideias está fundada
em tais preconceitos. Com esse intuito, identifica-se aqui que é a partir de uma extrapolação
inadequada da noção do que é ver, segundo a compreensão infantil do que seria a visão
corpórea, para situações diferentes (e até mesmo díspares) daquela baseada nessa sensação –
uma extrapolação presente na associação entre visão e conhecimento – que Arnauld pretende
mostrar em que medida a teoria de Malebranche estaria fundada em meros prejuízos. A análise
da passagem em seguida permitirá identificar a referida extrapolação:
Mas os homens com o tempo se deram conta de que conheciam diversas coisas que
eles não podiam ver pelos olhos, ou porque eram coisas muito pequenas, ou porque
não eram coisas visíveis [...] E isso os obrigou a crer que havia coisas que nós vemos
pelo espírito e não pelos olhos [...] E ainda assim, tendo imaginado que a vista do
espírito era praticamente semelhante àquela que eles atribuíram aos olhos, eles não
hesitaram, como é o comum, em transferir essa palavra [ver] ao espírito com as
mesmas condições que eles haviam imaginado que a acompanhavam quando eles
aplicavam-na aos olhos. (VFI, 4, 59)135.
Segundo Arnauld, quando os homens mergulhados nos preconceitos da infância se
aperceberam de que havia coisas que eles não conheciam por meio de seus olhos, eles
procuraram explicar o que se passava nesses casos a partir da atribuição do que entendiam como
visão ao que seria uma visão do espírito. Desse modo, compreendendo que nem tudo o que
viam dependia de seus olhos, pois havia coisas invisíveis a eles e que, no entanto, lhes eram
conhecidas, passaram a designar, para dar conta disso, um outro tipo de visão não dependente
dos olhos. E esse era o gênero de visão que eles consideraram como próprio do espírito. Mas,
embora tivessem identificado um tipo de “visão específica” do espírito, importaram da visão
corporal para a visão do espírito todas as condições anteriormente associadas à noção do que é
135 « Mais les hommes avec le temps se sont aperçus qu’ils connaissaient diverses choses, qu’ils ne pouvaient voir par leur yeux, ou parce qu’elles étaient trop petites, ou parce qu’elles n’étaient pas visibles [...] C’est ce qui les a obligés de croire qu’il y avait des choses que nous voyons par l’esprit, et non par les yeux [...] Quoi qu’il en soit, s’étant imaginé que la vue de l’esprit était à peu près semblable à celle qu’ils avaient attribuée aux yeux, ils n’ont pas manqué, comme c’est l’ordinaire, de transférer ce mot à l’esprit avec les mêmes conditions qu’ils s’étaient imaginé qui l’accompagnaient, quand ils l’appliquaient aux yeux. » (VFI, 4, 59).
107
ver pelos olhos, ao invés de considerarem o que seria próprio dessa visão espiritual a partir de
uma análise do que nela se passa.
A associação entre visão corporal e conhecimento intelectual como constituinte básico
de concepções filosóficas errôneas acerca da percepção está expressa, segundo Arnauld, na
atribuição equivocada (mal elaborada, confusa, incorreta) das condições da visão corporal ao
fenômeno do entendimento, isto é, da percepção intelectual ou mesmo do conhecimento. Note-
se aí a ampliação impertinente do sentido de ver, inicialmente restrito a condições dadas pelo
sentido corporal da visão, e que agora é estendido para eventos como perceber e conhecer. É
bom lembrar que Arnauld, nesse mesmo capítulo, chama atenção para o que é causa comum de
erros, a saber, a não avaliação criteriosa de ideias associadas por hábito136. Isso quer dizer que
a extensão do significado do que é ver, adquirido como costume dos preconceitos da infância,
a ocorrências do entendimento consiste num feito espúrio, privado de qualquer legitimidade
porque ela é realizada por uma associação, mal ponderada e pouco examinada, à percepção
intelectual daquilo que se acostumou a entender como visão. E isso que é mal ajuizado é a
importação para o entendimento das condições, anteriormente enumeradas, que o hábito infantil
acostumou-se a encontrar na visão corporal. É bom apontar aqui que, embora alguns filósofos
expliquem a visão corporal desse modo, essa explicação é considerada por Arnauld, como se
verá mais à frente, inadequada mesmo para a visão corpórea. Entretanto, é preciso agora
explicar de que maneira essas condições serviram a uma certa tradição filosófica, de acordo
com Arnauld, para explicar a visão espiritual.
Segundo Arnauld, esse transporte das condições da visão corporal (baseadas nos
preconceitos da infância) para a percepção intelectual consiste, em primeiro lugar, na
compreensão de que a percepção, ou visão espiritual, também exigiria a presença de um objeto
para que pudesse ocorrer. “Pois, eles não duvidaram e tomaram como um princípio certo, tanto
no que diz respeito ao espírito quanto no que diz respeito aos olhos, que era necessário que um
objeto estivesse presente para que fosse visto” (VFI, 4, 59)137. Sendo assim, tal como se
concebeu a visão corporal, a percepção intelectual demandaria que seu objeto estivesse “diante”
do espírito para que ele pudesse ser percebido. No entanto, segundo Arnauld, a condição da
presença do objeto no caso da percepção intelectual mostrou-se problemática perante o
escrutínio filosófico, visto que alguns filósofos logo se deram conta de que não poderiam
136 Cf. VFI, 4, 59. 137 « Car ils n’ont point douté, et ils ont pris pour un principe certain, aussi bien au regard de l’esprit que des yeux, qu’il fallait qu’un objet fût présent pour être vu » (VFI, 4, 59).
108
explicar a visão espiritual tão somente pelo pressuposto da necessidade da presença do objeto.
Arnauld diz “mas, quando os Filósofos [...] quiseram fazer uso [do princípio da presença] para
explicar a visão do espírito, eles se viram impedidos” (VFI, 4, 59)138. É importante comentar
que esses filósofos não são identificados por Arnauld, mas aparecem no texto139 como
representantes de uma certa concepção tradicional equivocada do tema da percepção à medida
que tomam os pressupostos da visão corporal como tão certos que se esquecem de avaliá-los
precisamente. Em resumo, o que Arnauld sugere em toda essa passagem é que há uma
associação imprecisa e inadequada do fenômeno da percepção, que envolve elementos
intelectuais, com o fenômeno da visão corpórea, que ocorre apenas no corpo. Esse equívoco
ocorre porque, em meio aos preconceitos da infância, a visão corpórea, a sensação da visão, foi
tomada como base para a explicação do fenômeno da percepção intelectual. Mas, como a visão
corpórea constitui apenas aquilo que ocorre no corpo quando ele experimenta visualmente, ou
vê alguma coisa; tratá-la como a referência para o que ocorre quando, conscientemente, se
percebe alguma coisa é um engano que precisa ser desfeito. Engano esse que, na avaliação de
Arnauld, ao invés de ter sido dirimido, foi insuflado por uma tradição de filósofos que
desenvolveram teorias da percepção tendo ele como base.
É nesse círculo que Arnauld pretende envolver Malebranche quando procura mostrar
que sua teoria da percepção está fundada em preconceitos. Desse modo, presos nas armadilhas
dos preconceitos, como visto mais acima, o que esses filósofos reconhecem em suas tentativas
de explicar a visão espiritual é apenas uma dificuldade de fazê-lo exclusivamente a partir da
condição da presença do objeto (e não um equívoco de base que é a atribuição das condições
da visão corporal à percepção intelectual). Isso porque eles se viram impedidos de determinar
como a presença do objeto efetivamente poderia dar-se para a alma, o que tem a ver com suas
concepções acerca da natureza da alma e sua relação com as coisas materiais. De maneira geral,
essas concepções são as seguintes: alguns entre esses filósofos concebem a alma como
imaterial, e outros, pensam que ela é algo de corpóreo e encerrado dentro do corpo. Nesse
sentido, de acordo com essas concepções, o problema apresenta-se porque, por um lado, um
objeto material jamais poderia estar presente para uma alma imaterial; e por outro lado, a alma
material não poderia abandonar o corpo onde está encerrada a fim de se encontrar na presença
138 « Mais, quand les Philosophes […] ont voulu s’en servir [se servir du principe de la présence] pour expliquer la vue de l’esprit, ils se sont trouvés bien empêchés » (VFI, 4, 59). 139 Cf. VFI, 4, 59.
109
dos objetos, bem como esses não poderiam juntar-se a ela dentro do corpo. A seguinte passagem
parece deixar isso claro:
Pois alguns [filósofos] reconheceram que a alma era imaterial, e outros, que
acreditaram que ela era corporal, tomavam-na como uma matéria sutil, encerrada no
corpo do qual ela não podia sair para encontrar os objetos de fora, nem esses objetos
de fora ir se juntar a ela (VFI, 4, 59)140.
Isso significa que esses filósofos tomaram consciência de que há percepções de objetos
que ou não estão, ou não podem estar, presentes para o espírito, o que aparentemente contraria
o pressuposto da necessidade da presença do objeto para a percepção. Em função disso, com o
intuito de resolver essa dificuldade, Arnauld afirma que eles aplicaram à percepção intelectual
a segunda condição da visão corporal, a saber, aquela que é própria da visão das imagens
refletidas. Com isso pretenderam explicar em que medida há percepção de objetos que não estão
presentes para a alma sem desrespeitar a condição da presença. Nesse caso, as imagens desses
objetos tomam seu lugar, de modo que eles conceberam que o que era efetivamente percebido
eram essas imagens e não as coisas mesmas. Dessa maneira, segundo Arnauld, esses filósofos
produziram uma concepção do que é a visão espiritual, ou percepção, totalmente imbuídos de
preconceitos da infância. Sem a devida consideração e sem a mínima suspeita de que pudessem
estar errados, entenderam que a percepção (a visão intelectual) dos objetos, porque exigiria a
presença do objeto percebido, é a percepção das imagens, das representações que exibem na
alma esses objetos (tal como uma imagem refletida no espelho está no lugar da coisa refletida),
já que a percepção direta dos objetos está impedida pela própria concepção das naturezas da
alma e das coisas corpóreas:
Como, então, [a alma] poderá ver [os objetos], se um objeto não pode ser visto a não
ser que esteja presente? Para escapar dessa dificuldade, eles recorreram à outra
maneira de ver, a qual eles também se acostumaram a aplicar a essa palavra [ver] no
tocante à visão corporal, que é ver as coisas não por elas mesmas, mas por suas
imagens, como quando os corpos são vistos nos espelhos. Pois, [...] quase todo mundo
crê ainda que não são os corpos que são vistos, mas somente suas imagens (VFI, 4,
59-60)141.
140 « Car quelques-uns [philosophes] avaient reconnu que l’âme était immatérielle, et les autres, qui la croyaient corporelle, la regardaient comme une matière subtile, enfermée dans le corps, dont elle ne pouvait pas sortir pour aller trouver les objets de dehors, ni les objets de dehors s’aller joindre à elle » (VFI, 4, 59). 141 « Comment donc les pourra-t-elle voir, puisqu’un objet ne peut être vu s’il n’est présent ? Pour sortir de cette difficulté, ils ont eu recours à l’autre manière de voir, qu’ils avaient aussi accoutumé d’appliquer à ce mot au regard de la vue corporelle, qui est de voir les choses, non par elles-mêmes, mais par leurs images, comme quand
110
Nesse sentido, a partir de uma compreensão fechada, tomada como incontestável, de
como a alma pode perceber os corpos, os filósofos teriam se dedicado, no que concerne a essa
matéria, a pesquisar somente em que consistiam e o que são propriamente essas imagens
representativas dos corpos para a alma: “[...] supondo-o como uma verdade certa e
incontestável, eles não se incomodaram mais do que procurar o que poderiam ser essas imagens
ou esses seres representativos de corpos, dos quais o espírito necessitava para ver os corpos”
(VFI, 4, 60)142. Dessa maneira, Arnauld pretende mostrar como a lógica por detrás das
concepções de alguns filósofos acerca da percepção intelectual dos objetos materiais é pautada
pelos preconceitos da infância, que, por não terem sido devidamente combatidos a partir de um
exame pormenorizado das atribuições feitas para explicar o fenômeno da percepção, tornaram-
se o princípio básico de interpretação dela. Interpretação essa que, para ser coerente dentro de
suas referências, inclinou, segundo Arnauld, o debate filosófico para a investigação da natureza
disso que seriam as imagens ou representações necessárias para a percepção intelectual de
coisas materiais.
Em síntese, toda essa passagem até aqui analisada parece sugerir que o foco da crítica
de Arnauld é mostrar que, aparentemente sem razões bem elaboradas, filósofos se autorizaram
a tomar a condição da presença do objeto como pressuposto fundamental para a ocorrência da
própria percepção intelectual. Diz-se aqui que o fizeram sem o devido cuidado porque, no
contexto do debate acerca da relação entre os domínios do corpóreo e do mental, em que um é
considerado irredutível ao outro, tomar a condição da presença física do objeto para a
ocorrência da visão como pressuposto para o evento da percepção (visão espiritual) é, no
mínimo, incorrer numa confusão acerca do que é próprio a cada um desses domínios. Afinal o
que poderia significar a presença para a alma, ou estar diante do espírito para que ocorra a
percepção? A leitura que se faz aqui da compreensão de Arnauld é que se a visão corporal exige
a presença do objeto, isso quer dizer somente, a princípio, que no domínio sensível o objeto
deve estar diante dos olhos para que possa ser visto. A atribuição dessa mesma condição ao
evento da visão espiritual, ou percepção, sem razão que a justifique, é apenas uma importação
infundada dela para o domínio do mental baseada numa analogia entre os eventos estabelecida
on voit les corps dans des miroirs. Car, […] presque tout le monde le croit encore, que ce n’est pas alors les corps que l’on voit, mais seulement leurs images » (VFI, 4, 59-60). 142 « […] le supposant comme une vérité certaine et incontestable, ils ne se sont plus mis en peine que de chercher quelles pouvaient être ces images ou ces être représentatives des corps, dont l’esprit avait besoin pour apercevoir les corps » (VFI, 4, 60).
111
apenas pelos preconceitos da infância. E é justamente isso que teria produzido toda a sorte de
confusões acerca da percepção que Arnauld pretende combater.
Que isso seja assim é mais uma vez indicado por Arnauld no seu texto quando ele afirma
que há em nós uma determinada propensão natural para explicar as coisas a partir de exemplos
e comparações. Em função disso, ao invés de os homens terem recorrido apenas à análise das
operações que ocorrem na alma quando ela percebe alguma coisa e ter daí retirado
esclarecimentos suficientes, eles recorreram à comparação e à busca por exemplos para
satisfazer tal propensão:
Então, quando os homens começaram a se dar conta de que nós vemos as coisas pelo
espírito, ao invés de se consultarem a si mesmos e de cuidar daquilo que eles viam se
passar em seu espírito quando eles conheciam as coisas, eles imaginaram que o
entenderiam melhor por meio de alguma comparação (VFI, 4, 60)143.
A visão corporal foi, então, tomada como a referência para o que ocorre na percepção
intelectual sem nenhuma razão filosófica efetivamente considerada, mas em virtude da
tendência a buscar exemplos ilustrativos para as explicações. Além desse motivo, o fato de esse
exemplo ter sido buscado naquilo que é corpóreo é justificado por Arnauld a partir da forte
ligação que os homens têm com seus corpos, que teria sido forjada a partir da mácula do pecado
original, e que faz com que eles pensem que as coisas corpóreas são mais fáceis de conhecer
que as coisas espirituais. Arnauld diz:
E porque, desde a ferida do pecado, o amor que nós temos pelo corpo faz com que
nos engajemos mais a ele, o que nos faz crer que nós conhecemos melhor e mais
facilmente as coisas corpóreas que as espirituais, é nos corpos que eles acreditaram
dever procurar alguma comparação própria a permiti-lhes compreender como nós
vemos pelo espírito tudo o que nós concebemos e, pincipalmente, as coisas materiais
(VFI, 4, 60)144.
143 « Lors donc les hommes ont commencés à s’apercevoir que nous voyons les choses par l’esprit, au lieux de se consulter eux-mêmes, et de prendre garde à ce qu’ils voyaient clairement se passer dans leur esprit, quand ils connaissaient les choses, ils se sont imaginé qu’ils l’entendraient mieux par quelque comparaison » (VFI, 4, 60) 144 « Et parce que, depuis la plaie du péché, l’amour que nous avons pour le corps nous y applique davantage, ce qui nous fait croire que nous connaissons beaucoup mieux et plus facilement les choses corporelles que les spirituelles, c’est dans les corps qu’ils ont cru devoir chercher quelque comparaison, propre à leur faire comprendre comment nous voyons par l’esprit tout ce que nous concevons, et principalement les choses matérielles » (VFI, 4, 60).
112
Essa tendência, então, resultou numa busca de comparação com o corpo para explicar como a
alma pode ver/perceber as coisas materiais. E não custou muito para os homens encontrarem
na visão corporal a fonte comparativa de explicação para a percepção intelectual. Segundo
Arnauld – que anteriormente já havia se dedicado a mostrar como os homens deram ao
fenômeno da percepção intelectual (ao tratá-la como uma visão espiritual) o mesmo nome
derivado do que ocorre na visão corporal – é da opinião comum que as coisas que têm o mesmo
nome guardam entre si uma semelhança. Em sendo assim, esses homens não tiveram
dificuldades em concluir que, por (supostamente) se tratarem de fenômenos semelhantes, a
percepção comparava-se à visão corporal ao exigir como condição de sua ocorrência os
pressupostos identificados para a ocorrência dessa última:
Ora, eles haviam dado, como eu já destaquei, o mesmo nome à visão corporal e à
visão espiritual e é isso que os fez raciocinar da seguinte maneira: é necessário que
ocorra alguma coisa de semelhante entre a visão do espírito e a visão do corpo; ora,
nessa última nós só podemos ver aquilo que está presente, isto é, aquilo que está diante
de nossos olhos; ou se às vezes vemos coisas que não estão diante dos nossos olhos,
isso ocorre apenas em função das imagens que representam essas coisas para nós; é
necessário, então, que isso também ocorra na visão do espírito (VFI, 4, 61).145
Dessa maneira, o que fizeram foi interpretar a percepção intelectual segundo o
paradigma da visão corporal, o que significou uma transposição para o âmbito mental daquilo
que se passa no âmbito corpóreo. Eles não se deram conta, no entanto, segundo Arnauld, de
que isso era muito mais causa de confusão que de esclarecimento à medida que, em se tratando
de naturezas distintas, o que são a alma e os corpos não serve para elucidar um ao outro, uma
vez que respeitam ontologicamente princípios e regras totalmente diferentes: “pois, sendo o
espírito e o corpo duas naturezas completamente distintas, e mesmo opostas, cujas
propriedades, por consequência, não devem possuir nada em comum, apenas se pode gerar
confusão ao querer explicar uma pela outra” (VFI, 4, 60)146.
145 « Or ils avaient donné, comme j’ai déjà remarqué, le même nom à la vue corporelle et à la vue spirituelle, et c’est ce qui les a fait raisonner ainsi : il faut qu’il se passe quelque chose d’à peu près semblable dans la vue de l’esprit que dans la vue du corps ; or dans cette dernière nous ne pouvons voir que ce qui est présent, c’est-à-dire, ce qui est devant nos yeux ; ou si nous voyons quelquefois les choses qui ne sont pas devant nos yeux, ce n’est que par des images qui nous les représentent ; il faut donc que c’en soit de même dans la vue de l’esprit » (VFI, 4, 61). 146 « Car l’esprit et le corps étant deux natures tout à fait distinctes, et comme opposées, et dont par conséquent les propriétés ne doivent rien avoir en commun, on ne peut que se brouiller en voulant expliquer l’une par l’autre […] » (VFI, 4, 60)
113
Em razão da interpretação da percepção intelectual a partir da visão corporal, eles
tomaram a necessidade da presença do objeto para a mente que o percebe exatamente como
uma presença prévia, que é primeira e anterior à própria percepção. Entende-se que essa
compreensão da necessidade da presença prévia do objeto para que ele pudesse ser percebido é
resultante de uma analogia com a presença física do objeto que está diante dos olhos quando é
visto, já que, nessa concepção, para que ocorra a visão é necessário que um objeto exista
previamente e se coloque diante dos olhos. Nesse sentido, se a presença do objeto percebido
pela mente também é tomada como anterioridade, o objeto assume uma posição de
independência com relação à operação mental da percepção. Isso porque se ele é anterior a ela
e é, de certa maneira, condição para que ela ocorra, sua constituição como objeto não pode
decorrer da percepção, de modo que o ato perceptivo e o objeto percebido assumem status
diferentes. Arnauld é claro quanto à interpretação da presença como anterioridade na passagem
que se segue:
[...] mas eles compreenderam-na [a presença] como uma presença prévia à percepção
do objeto, o que eles julgaram necessário a fim de que ele [o objeto] estivesse em
condições de poder ser percebido, como eles haviam pensado [...] que isso era
necessário para a visão (VFI, 4, 60).147
Encontra-se nesse entendimento de que é imprescindível que um objeto esteja “diante
da mente” para ser percebido por ela, o que tanto Malebranche quanto Arnauld interpretam
como significando que o objeto percebido precede a própria percepção, um importante foco de
crítica de Arnauld acerca do que se compreendeu sobre a percepção intelectual. Em referência
à condição da presença, Arnauld diz que “daí eles passaram rapidamente ao outro princípio:
que todos os corpos que nossa alma conhece, não podendo estar presentes por eles mesmos,
deveriam estar presentes pelas imagens que os representassem” (VFI, 4, 61)148. Esse teria sido
assim admitido como um princípio incontestável independentemente de razões asseguradas,
segundo Arnauld: “[...] que a alma apenas vê os corpos pelas imagens ou espécies que as
representam” (VFI, 4, 62)149. E é dessa interpretação, resultante do que significa a condição da
147 «[…] mais ils l’ont entendu [la présence] d’une présence préalable à la perception de l’objet, et qu’ils ont jugé nécessaire afin qu’il fût en état de pouvoir être aperçu, comme ils avaient trouvé […] que cela était nécessaire dans la vue » VFI, 4, 61). 148 « Et de là ils ont passé bien vite dans l’autre principe : que tous les corps, que notre âme connaît, ne pouvant pas lui être présent par eux-mêmes, il fallait qu’ils lui fussent présents par des images qui les représentassent » (VFI, 4, 61). 149 « […] que l’âme ne voit les corps que par des images ou espèces qui les représentent » (VFI, 4, 62.)
114
presença para a percepção intelectual, que Malebranche150 retira a consequência que é o
propósito central da crítica de Arnauld a sua teoria da percepção, a saber, a necessidade da
existência de entes representativos independentes para que haja percepção de coisas materiais.
Segundo Malebranche, como já visto no capítulo anterior, sendo a alma de natureza
espiritual, constitui-se algo impossível que qualquer coisa corpórea possa estar diante dela nas
condições necessárias para que possa ser percebida. O que explica essa interdição é o
entendimento, pelo menos por parte de Malebranche151, de que, no caso da percepção
intelectual, a presença do objeto ocorre quando há uma união íntima entre a alma e o objeto de
modo que ele possa afetá-la. Nesse sentido, as coisas materiais, por si mesmas, jamais podem
estar presentes para a alma a ponto de serem percebidas, pois suas naturezas totalmente distintas
impossibilitam a união íntima característica da presença necessária do objeto para a percepção.
Logo, no caso da percepção das coisas materiais, já que elas não podem ser por elas mesmas
percebidas, o que a explica é que determinadas imagens, ou representações espirituais tomam
seu lugar e são, nessa circunstância, o que é diretamente percebido pela mente.
Chega-se aqui à culminância do objetivo crítico do capítulo 4 de VFI, que é a
argumentação em favor da falsidade dos princípios que fundam a teoria da percepção
malebranchista. Para Arnauld, Malebranche se insere na tradição desses filósofos que teriam
entendido o que é a percepção a partir de meros preconceitos da infância e por isso todo o seu
raciocínio, no que diz respeito a essa matéria, estaria baseado na aceitação ilegítima dos dois
princípios que, segundo Arnauld, são derivados da visão corporal como explicação para o que
se passa na percepção intelectual. Com o intuito de explicitar a formulação desses dois
princípios como eles teriam sido assumidos por Malebranche, Arnauld parafraseia parte da
Recherche, III, II, 1152 ao dizer
[...] que a alma somente podia perceber os objetos que estavam presentes para ela; e
que os corpos só podiam estar presentes para ela por meio de certos seres
representativos, chamados de ideias ou espécies, que tomavam o lugar dos corpos,
150 Ainda que em VFI, 4, 61-62, Arnauld trate rapidamente de como outras tradições filosóficas teriam cometido o mesmo equívoco de compreender a percepção como condicionada à presença prévia do objeto ou de sua representação, concentrar-se-á aqui apenas na discussão proposta por Arnauld acerca da admissão do segundo princípio, ou condição, da visão corporal na explicação da percepção intelectual que diria respeito à filosofia de Malebranche. 151 Cf. capítulo 2, sobre Malebranche. 152 Cf. OCM, I, 417.
115
sendo a eles semelhantes e que no lugar deles estavam unidos intimamente à alma
(VFI, 4, 63)153.
Relembra-se aqui que, até esse momento, Arnauld já havia demonstrado que toda uma
tradição filosófica havia admitido como explicação para o que se passa na percepção dois
princípios, ou condições, produtos dos preconceitos da infância. Além de fazê-lo agora no que
diz respeito às concepções malebranchistas da percepção, Arnauld pretende principalmente
mostrar o quão inconvenientes e incompatíveis esses princípios são em relação à própria
filosofia de Malebranche. O que Arnauld sugere é que o trabalho intelectual de Malebranche
deveria tê-lo prevenido do equívoco de se apropriar desses princípios para sua teoria da
percepção. Malebranche deveria ter sido capaz de compreender que a comparação da percepção
intelectual com a visão corporal é viciada. Nesse sentido, a aceitação incontestável desses
princípios por parte de Malebranche seria não só ilegítima, mas também surpreendente porque,
por um lado, não vislumbra o defeito de uma explicação que mescla inapropriadamente
domínios ontológicos distintos; e, por outro lado, não se dá conta de que o desenvolvimento da
explicação do que é a percepção intelectual a partir da analogia com a visão corporal – pelo
princípio da presença – torna essa explicação incompatível com o que se passa na visão corporal
– o que demonstraria uma total fragilidade dos princípios da teoria da percepção
malebranchista.
Veja-se como Arnauld desenvolve sua crítica mais detidamente. Entende-se que sua
argumentação vai no sentido de mostrar que, dada a tradição filosófica a que Malebranche se
filia (o cartesianismo), certamente é do conhecimento dele que qualquer tentativa de se tomar
aquilo que é mental por aquilo que é corpóreo, seja como explicação, como comparação, ou
como tentativa de reduzir uma coisa à outra, não é senão uma grande confusão resultante da
incompreensão da distinção de natureza entre esses dois domínios: “pois ele [Malebranche]
sabe melhor que ninguém que a comparação da visão corporal com a espiritual, sobre a qual,
aparentemente, tudo isso está fundado154, é falsa de todas as maneiras [...]” (VFI, 4, 63)155. Ora,
segundo Arnauld, os princípios que fundam a compreensão malebranchista do que é percepção,
153 « […] que l’âme ne pouvait apercevoir que les objets qui lui étaient présents ; et que les corps ne lui pouvaient être présents que par de certains êtres représentatifs appelés idées ou espèces, qui tenaient leur place, leur étant semblable, et qui au lieu d’eux étaient unis intimement à l’âme » (VFI, 4, 63). Grifo do autor. 154 Arnauld refere-se aqui aos princípios da percepção importados da visão corporal que teriam sido aceitos sem exame por Malebranche. 155 « Car il sait mieux que personne que la comparaison de la vue corporelle avec la spirituelle, sur laquelle apparemment tout cela est fondé, est fausse en toute manière […] » (VFI, 4, 63).
116
como visto acima, são frutos dessa confusão entre o que é mental e o que é corpóreo à medida
que têm na sua origem a referência da visão corporal e só por isso já se trataria de algo falso.
Entretanto, eles não seriam falsos apenas em função da confusão imprópria entre a visão
espiritual e a visão corporal, que teria produzido uma compreensão errônea do que se passa na
percepção intelectual. Na tradição em que se insere a filosofia de Malebranche, esses princípios
seriam falsos também no que diz respeito à visão corporal à medida que eles não seriam
adequados nem mesmo para explicá-la: “[...] não se acharia nada nessa visão [realizada pelos
olhos] que pudesse servir a autorizar as duas coisas que os Filósofos da Escola pretendem que
se deve encontrar naquelas [nas visões] do espírito” (VFI, 4, 63)156. Segundo Arnauld, não há
nada na visão corporal que justifique esses dois princípios à maneira como os escolásticos e
também Malebranche157 os compreende, o que corrobora ainda mais sua inexatidão. Para
justificar essa tese, Arnauld encaminha a seguinte argumentação: o primeiro princípio, a
necessidade da presença, é entendido por Malebranche, entre outros, como sendo a necessidade
de uma união íntima entre o objeto e a mente, de modo que a visão do objeto só pode ocorrer
quando o primeiro encontra-se intimamente unido à mente (o que seria a maneira como
Malebranche entende a presença) a ponto de afetá-la. Essa união íntima não se verifica no caso
da visão corporal porque para que ela ocorra é necessário que haja uma distância entre os olhos
e o objeto para que ele possa ser visto, de modo que uma união entre eles impossibilitaria a
visão:
A primeira [das coisas, ou seja, dos princípios] é a presença do objeto, que eles dizem
que deve estar unida intimamente à alma. Ora, é totalmente ao contrário na visão
corporal. Pois, embora falando popularmente se diga que o objeto deve estar presente
para nossos olhos para que o vejamos, essa foi a causa do erro; no entanto, falando
exata e filosoficamente, é completamente ao contrário. Ele deve estar ausente, pois
ele deve estar afastado dos olhos; e aquilo que estaria no olho, ou muito próximo a
ele, não se poderia ver (VFI, 4, 63)158.
156 « […] on ne trouverait rien dans cette vue qui pût servir à autoriser les deux choses que les Philosophes de l’École prétendent se devoir trouver dans celles de l’esprit » (VFI, 4, 63). 157 O texto faz referência direta aos escolásticos, como visto na citação anterior, no contexto de debate sobre os princípios da teoria da percepção de Malebranche, o que sugere fortemente que Arnauld esteja atribuindo à Malebranche a recepção, em sua teoria, de princípios elaborados pelos escolásticos. 158 « La première est la présence de l’objet, qu’ils disent devoir être uni intimement à l’âme. Or c’est tout le contraire dans la vue du corps. Car, quoiqu’en parlant populairement on dise que l’objet doit être présent à nos yeux, afin que nous le voyions, ce qui a été la cause de l’erreur ; néanmoins, en parlant exactement et philosophiquement, c’est tout l’opposé. Il en doit être absent, puisqu’il en doit être éloigné, et que ce qui serait dans l’œil, ou trop près de l’œil, ne se pourrait voir » (VFI, 4, 63).
117
Assim, se estar presente toma o sentido de estar unido, esse princípio da presença não
pode se aplicar à visão corporal, para a qual, então, o objeto deve estar ausente, no sentido de
estar separado, distante, a fim de que possa ser visto. Entende-se aqui que o raciocínio de
Arnauld vai na direção de mostrar que a analogia admitida por Malebranche entre presença
física e união íntima do objeto percebido com aquilo que o percebe é espúria porque assume
um sentido para o que se passa na percepção intelectual diverso e incompatível com o que se
passa na visão corporal, a qual ela seria análoga.
Nesse mesmo contexto, o segundo princípio também é equivocado para dar conta da
percepção, pois é sabido que o que se percebe não são seres representativos. Arnauld apresenta
em que medida Malebranche saberia que não são seres representativos o objeto da percepção
quando ele afirma que:
ele sabe bem que nossos olhos não veem nada disso, nem nossa alma pelos nossos
olhos. Ele sabe que quando nos vemos num espelho, somos nós mesmos que nós
vemos e não nossa imagem. Ele sabe bem que esses pequenos seres flutuantes pelo
ar, e dos quais ele deveria estar completamente preenchido, que a Escola chama de
espécies intencionais não passam de quimeras. E enfim, ele sabe bem que embora os
objetos que nós vemos formem imagens suficientemente perfeitas no fundo de nossos
olhos, é certo, contudo, que nossos olhos não veem essas pequenas imagens pintadas
na retina e que não é nisso que elas servem à visão, mas de uma outra maneira, que
Sr. Descartes explicou na sua Dióptrica (VFI, 4, 63-64)159.
Entende-se aqui que Arnauld faz referência ao que seriam consensos no pensamento de
Malebranche fundamentalmente provindos de sua filiação a uma tradição crítica à filosofia
escolástica. Quando Arnauld diz que os olhos não veem qualquer coisa de parecido com seres
representativos no momento em que eles veem as coisas, ou que não é propriamente uma
imagem a coisa vista no espelho, ele parece reforçar o caráter fantasioso dos seres
representativos no que concerne à percepção no contexto da filosofia de Malebranche. E isso
se justifica em função da própria crítica às espécies intencionais dos escolásticos e à adesão à
filosofia cartesiana presentes no pensamento de Malebranche. São essas as referências
159 « Il sait bien que nos yeux ne voient rien de tel, ni notre âme par nos yeux. Il sait que quand on se voit dans un miroir c’est soi-même que l’on voit, et non point son image. Il sait bien que ces petits êtres voltigeant par l’air, et dont il devrait être tout rempli, que l’École appelle des espèces intentionnelles, ne sont que des chimères. Et enfin il sait bien que, quoique les objets que nous regardons forment des images assez parfaites dans le fond de nos yeux, il est certain néanmoins que nos yeux ne voient point ces petites images peintes dans la rétine, et que ce n’est point en cela qu’elles servent à la vision, mais d’une autre manière, que M. Descartes a expliquée dans sa Dioptrique » (VFI, 4, 63-64)
118
oferecidas por Arnauld para justificar que Malebranche não poderia admitir tais princípios para
a percepção (apesar de tê-lo feito), pois ele saberia, de acordo com constituintes do seu
pensamento, que se tratam de princípios não condizentes com a realidade.
Dessa maneira, Arnauld pretende mostrar que a adesão às condições da presença e da
existência de seres representativos seriam incompatíveis com a própria filosofia de
Malebranche, que, por um lado, não poderia consentir o recurso ao que é corpóreo como via de
explicação para um fenômeno mental; e, por outro lado, não poderia admitir nem mesmo para
o domínio da visão corporal o princípio da presença (entendida como união íntima), pois a
análise mais acurada mostra que a união entre o objeto e os olhos impede a ocorrência da visão.
Por fim, Malebranche também não poderia aceitar a existência e a necessidade de seres
representativos intermediários da percepção porque isso seria ignorar tanto suas críticas às
espécies intencionais dos escolásticos como coisas quiméricas, quanto sua adesão a princípios
cartesianos da ciência da ótica que explicariam que não são as imagens formadas na retina que
são as coisas efetivamente vistas.
Em suma, dito de outra maneira, a tentativa de importação dos princípios que
explicariam a visão corporal para a construção de uma teoria da percepção intelectual resulta
em algo fantasioso, isto é, resulta em uma teoria baseada em princípios falsos não apenas porque
se trata de uma confusão entre domínios ontológicos distintos, mas também porque, na teoria
malebranchista (de acordo com a leitura de Arnauld), os princípios que fundamentam a teoria
da percepção, cuja referência é supostamente a visão corporal, não servem nem mesmo de
explicação para o que se passa na visão corporal. E não servem porque os pressupostos da
presença, entendida como união íntima, e da necessidade da existência de seres representativos
como intermediários da percepção tomam um significado na teoria malebranchista que não
corresponde às descrições de caráter científico sobre o processo corpóreo da visão: para ser
visto um objeto não pode estar intimamente unido ao olho, pois é preciso que haja uma distância
para que o mecanismo da visão seja capaz de formar a imagem do objeto, que segundo a ciência
da ótica não é o que é propriamente visto pelos olhos, o que torna suspeita a necessidade da
existência de seres representativos intermediários para a percepção. Por essas razões, Arnauld
considera que esses princípios da teoria da percepção de Malebranche são invenções infundadas
frutos de uma admissão mal avaliada de certos pressupostos cuja base são os preconceitos da
infância.
Segundo Arnauld, apesar da flagrante falsidade desses princípios, toda a teoria da
percepção de Malebranche que aparece principalmente na Recherche, III, II, 1, seria posta em
119
marcha com base neles. Malebranche aceitá-los-ia em sua filosofia como inquestionáveis, sem
examiná-los e sem oferecer qualquer prova para eles, apenas porque “todo mundo concorda
que nós não percebemos os objetos que estão fora de nós por eles mesmos” (OCM, I, 413)160,
ou seja, apenas com base em noções preconcebidas e injustificadas – “ele não examina se isso
que ele supõe ser indubitável [...] deve ser admitido sem exame [...] Para ele, é suficiente dizer-
nos que ele acredita que todo mundo está de acordo” (VFI, 4, 64)161. Tendo em vista esse
procedimento intelectual descuidado atribuído a Malebranche, Arnauld destaca de sua leitura
da Recherche, III, II, 1 os seguintes elementos que ele considera embaraçosos para a teoria da
percepção de Malebranche:
Pois, não é mais a percepção dos corpos que ele chama de ideia, mas é um certo ser
representativo dos corpos, que ele pretende que seja necessário para substituir a
ausência dos corpos, que não podem unir-se intimamente à alma, como [pode] esse
ser representativo, que, por essa razão, é o objeto imediato e o mais próximo do
espírito quando ele percebe alguma coisa. Ele não diz que ele está no espírito nem
que ele é uma modificação do espírito como ele devia dizer, caso tivesse
compreendido por isso apenas a percepção do objeto, mas [diz] apenas que ele é o
mais próximo do espírito, pois ele toma esse ser representativo como realmente
distinto tanto do nosso espírito, quanto do objeto (VFI, 4, 64-65)162.
Pode-se analisar o que Arnauld diz na passagem anterior da seguinte maneira: 1) que
Malebranche passa a considerar, por ocasião da admissão desses princípios não avaliados, que
existem seres representativos, os quais ele chama de ideias, que são ontologicamente
independentes tanto das coisas que eles representam, quanto de qualquer modificação ou ato
mental; 2) que Malebranche compreende que a percepção dos corpos depende da existência
prévia desses seres representativos, as ideias, para que ela possa ocorrer; 3) que a ideia de uma
coisa não seria para Malebranche o resultado de um ato mental perceptivo, mas um objeto
realmente distinto da percepção, assim como o é da coisa percebida; 4) e que Malebranche, por
160 « […] tout le monde tombe d’accord que nous n’apercevons point les objets qui sont hors de nous par eux-mêmes » (OCM, I, 413). 161 « Il n’examine pas si ce qu’il suppose comme indubitable […] doit être reçu sans examen […] Il lui suffit de nous dire qu’il croit que tout le monde en tombe d’accord » (VFI, 4, 64). Grifo do autor. 162 « Car ce n’est plus la perception des corps qu’il en appelle l’idée ; mais c’est un certain être représentatif des corps, qu’il prétend être nécessaire pour suppléer à l’absence des corps, qui ne se peuvent unir intimement à l’âme, comme cet être représentatif, qui, pour cette raison, est l’objet immédiat et le plus proche de l’esprit, quand il aperçoit quelque chose. Il ne dit pas qu’il est dans l’esprit, et qu’il en est une modification comme il devait dire, s’il n’avait entendu par là que la perception de l’objet, mais seulement qu’il est le plus proche de l’esprit, parce qu’il regarde cet être représentatif, comme réellement distingué de notre esprit aussi bien que de l’objet » (VFI, 4, 64-65). Grifos do autor.
120
considerar as ideias como realmente distintas das coisas e do ato de percepção, entende que elas
são substitutivos das coisas materiais que, por sua materialidade, não podem ser diretamente
percebidas pela mente. Eis, enfim, os aspectos da teoria da percepção de Malebranche,
notadamente a noção de que existem seres representativos independentes e intermediários na
percepção, que Arnauld pretende combater. Ainda que ele já tenha argumentado em que medida
eles são o resultado de um equívoco de base, resta demonstrar mais detidamente sua falsidade.
3.2 As definições de percepção e ideia segundo Arnauld
Como se viu na seção anterior, Arnauld oferece uma análise detalhada da origem dos
pressupostos que embasam a teoria da percepção de Malebranche e identifica nela seus
problemas de base, que consistem fundamentalmente em uma interpretação confusa do que é a
percepção a partir do que seria a visão corporal baseada em preconceitos da infância. Embora
já se tenha analisado a construção argumentativa de Arnauld, considera-se necessário sintetizar
o percurso que, segundo ele, é feito por Malebranche até a defesa da existência de entes
representativos distintos do ato de percepção, com o objetivo de tornar bem claro que é contra
essa compreensão que Arnauld dirige seus esforços no recorte de VFI que se propõe aqui
analisar.
A fim de explicar como a alma é capaz de perceber as coisas materiais, já que “[...] todo
o mundo está de acordo em que nós não percebemos os objetos que estão fora de nós por eles
mesmos” (ABV, 165)163, Malebranche, segundo Arnauld, teria compartilhado de perspectivas
tradicionais tanto do senso comum, como escolásticas que cometeriam o erro crasso de explicar
toda e qualquer coisa a partir dos sentidos. Dessa forma, os pressupostos que embasariam a
teoria da percepção de Malebranche viriam dos preconceitos da infância à medida que, nela, se
está mais acostumado e ligado às sensações e às disposições corporais. Isso quer dizer que os
homens, mergulhados nas sensações e na corporeidade, primeiro teriam compreendido que,
quando veem as coisas, isso significa que elas estão diante de seus olhos, o que os teria
convencido de que as coisas, para serem vistas, devem estar presentes para os olhos no
momento em que são vistas. E, além disso, também teriam sido convencidos de que, quando
veem as coisas refletidas em superfícies diversas eles estariam vendo as imagens dessas coisas
no lugar das coisas mesmas, que não estariam propriamente presentes, nesse caso. Eis aqui a
163 « […] tout le monde tombe d’accord, que nous n’appercevons point les objets qui sont hors de nous par eux-mêmes » (OCM, I, 413).
121
origem dos princípios que, segundo Arnauld, estão na base da teoria da percepção de
Malebranche.
Nessa perspectiva, ao seguir imprudentemente a linha de pensamento que toma como
base de explicação da percepção aquilo que se passaria na visão corporal, Malebranche teria
admitido como certo e indubitável o referido pressuposto da presença do objeto como condição
para a ocorrência da percepção. Isso significa, de acordo com a perspectiva em destaque, que,
de forma geral, para ser percebido, um objeto deve estar presente no momento da percepção.
Contudo, é preciso salientar que, como lembra Arnauld (VFI, 4, 61), em função da inspiração
na visão corporal, essa condição da presença foi interpretada por Malebranche (e a tradição a
que ele pertence, segundo Arnauld) como a necessidade de que o objeto estivesse de antemão
diante da alma, tal como na visão corporal o objeto deve estar perante os olhos para ser visto.
Essa presença entendida como a disposição do objeto ante (diante, perante, em vista de, em face
de) a alma constitui uma presença prévia, anterior, uma disponibilidade do objeto que precede
o próprio ato perceptivo e que, por esse motivo, sugere uma independência da vigência do
objeto percebido com relação ao ato de percepção que o capta, ou o apreende. E, para Arnauld,
a noção de presença foi assim interpretada ao invés de o ser como uma presença na alma daquilo
que é, por ela, percebido, isto é, como a presença objetiva na alma do conteúdo de um ato
perceptivo, como se verá mais à frente tratar-se da compreensão própria de Arnauld. Visto esse
entendimento da presença como anterioridade, é indispensável dizer que, na sequência, Arnauld
(VFI, 4, 61) considera que os filósofos, entre eles Malebranche, sem razões melhor elaboradas,
também admitiram rapidamente o outro princípio acerca da percepção, a saber, que as coisas
materiais percebidas pela alma, e que não podem estar presentes para ela por si mesmas, são
percebidas em função das imagens que as representam.
Entende-se aqui que o recurso de Arnauld a essa genealogia dos fundamentos da teoria
da percepção de Malebranche pretende sustentar que a opção malebranchista pelo seguimento
de uma interpretação mal fundada da percepção implica contornos teóricos problemáticos para
a sua teoria. O que seria problemático, nesse caso, se anuncia a partir de uma interpretação da
presença que termina por atribuir ao objeto percebido uma realidade ontológica independente
do próprio ato mental perceptivo, uma entidade entendida por Arnauld como obscura e
supérflua para explicar a percepção. Ora, por que essa implicação é considerada problemática
por Arnauld no que diz respeito o pensamento de Malebranche? Porque, nesse contexto, como
já visto no capítulo 2, sobre Malebranche, entende-se que a presença prévia do objeto para alma,
a fim de que ele possa ser percebido, pressupõe que ele esteja intimamente unido à alma a ponto
122
de afetá-la, isto é, pressupõe que a percepção ocorra apenas se a alma puder ser afetada,
modificada pelo objeto “diante dela”, o que limita esses objetos a coisas de natureza espiritual.
Isso significa que a filosofia de Malebranche não admite a afecção entre um corpo e a alma em
função da diferença de tipo ontológico concernente a eles. Assim, esse objeto que, na concepção
de Malebranche, precisa estar previamente diante da alma para que ocorra a percepção (e que,
por essa anterioridade, deve ser algo de independente das operações mentais perceptivas) não
pode tratar-se das coisas materiais por si mesmas, mas apenas de coisas espirituais. Desse modo,
Malebranche depreende que o objeto previamente presente para a alma no momento da
percepção deve ser um conteúdo representativo capaz de apresentar para ela essas coisas
materiais como objeto. Trata-se, portanto, da admissão malebranchista do segundo princípio
acerca da percepção provindo dos preconceitos da infância, isto é, aquele que afirma que
mesmo diante da impossibilidade da presença do objeto, ele pode ser visto/percebido pela
imagem que o representa. Em outras palavras, se a percepção depende da presença antecedente
de um objeto que esteja diante da alma, onde estar presente significa estar intimamente unido,
encontra-se aí um problema acerca da percepção das coisas materiais, a saber, como é possível
que a alma perceba-as, se, por serem materiais, elas não poderiam estar efetivamente presentes
para a alma a fim de que fossem percebidas? É com o intuito de resolver esse problema que
Malebranche desenvolve sua concepção de ente representativo como um objeto espiritual que
representa para a alma as coisas materiais que não poderiam ser percebidas diretamente por ela
dado que sua presença para a alma, isto é, sua união íntima com a alma, é ontologicamente
impossível devido à distinção de suas naturezas. Isso significa, em suma, que, dado o
pressuposto da necessidade da presença entendido como disposição prévia do objeto e a
impossibilidade de que as coisas materiais efetivem-se como presentes para a alma,
Malebranche conclui que as coisas percebidas devem ser objetos representativos independentes
tanto do ato mental da percepção (porque são prévios a ele), quanto das coisas materiais que
eles representam. Elas são conteúdos representativos exibidos no intelecto via percepção, isto
é, são ideias cuja realidade constitui entidades intermediárias distintas e independentes.
Essa noção de ideia como objeto realmente distinto do modo perceptivo do pensamento,
isto é, que toma o conteúdo da percepção como um objeto distinto e independente da própria
percepção constitui o elemento central da teoria que é posta em questão por Arnauld, que a
considera absolutamente falsa e digna de combate. Isso porque o desenvolvimento
anteriormente apresentado do conceito malebranchista de ideia configura os contornos de um
tipo de teoria que fornece às ideias um status peculiar de entidade ontológica para o qual não
123
haveria justificativa razoável, o que é condenável, já que “quando se pretende saber as coisas
segundo a ciência, deve-se apenas receber como verdadeiro aquilo que se concebe de forma
clara” (VFI, 5, 70)164. Em vista disso, intenciona-se nesse momento expor algumas das críticas
de Arnauld contrárias a essa formulação teórica acerca das ideias. Para isso, inicialmente, é
preciso expor que esses argumentos da crítica dirigem-se essencialmente ao caráter quimérico
e desnecessário das ideias, tomadas como entidades distintas das modificações do pensamento.
Como se verá, o projeto de Arnauld leva em conta a demonstração não apenas da origem
falaciosa do raciocínio que leva à concepção dessas entidades representativas (como visto na
primeira seção desse capítulo), mas também leva em conta a demonstração da falsidade dessas
entidades a partir de uma argumentação em favor de que a percepção deve ser entendida e
explicada apenas segundo aquilo que é realmente notório e incontestável, como comanda os
princípios de uma boa explicação, evitando a utilização de entidades das quais não se tem
nenhuma clareza do que são:
Eu acredito, Senhor, poder demonstrar a nosso amigo a falsidade desses seres
representativos, contanto que ele queira fazer boa fé àquilo que ele mesmo disse um
tanto de vezes que se devia observar para achar a verdade na metafísica, assim como
nas outras ciências naturais, que é de apenas receber como verdadeiro aquilo que é
claro e evidente; e de não se servir de pretensas entidades sobre as quais nós não temos
ideias claras para explicar os efeitos da natureza, seja a corporal, seja a espiritual (VFI,
5, 67)165.
Com isso, evidencia-se aqui que, além da crítica genética à teoria da percepção de
Malebranche, Arnauld propõe uma crítica à consistência, adequação e razoabilidade da noção
de ideia como entidade representativa distinta da, porém necessária para, a percepção. Tendo
isso em vista, a proposta de Arnauld é a de combater os entes representativos seguindo apenas
princípios que sejam claros e evidentes e que dispensem o uso de recursos teóricos obscuros
que por ventura possam ser utilizados para solucionar problemas aparecidos na reflexão. Com
esse intuito, em VFI, 5, 66-72, o filósofo propõe a exposição de definições, axiomas e
postulados como base para demonstrações (à maneira dos geômetras) contra a validade das
164 « On ne doit recevoir pour vrai, quand on prétend savoir les choses par sciences, que ce que l’on conçoit clairement » (VFI, 5, 70). 165 « Je crois, Monsieur, pouvoir démontrer à notre ami la fausseté de ces êtres représentatifs, pourvu qu’il se veuille rendre de bonne foi à ce qu’il a lui-même dit tant de fois que l’on devait observer, pour trouver la vérité dans la métaphysique, aussi bien que dans les autres sciences naturelles, qui est de ne recevoir pour vrai que ce qui est clair et évident, et de ne se point servir de prétendues entités, dont nous n’avons point d’idées claires, pour expliquer les effets de la nature, soit corporelle, soit spirituelle » (VFI, 5, 67).
124
ideias tomadas como seres representativos distintos das percepções. E é nesse contexto que ele
apresenta, como uma definição, o modo como compreende o que é uma ideia e,
consequentemente, sua relação com a percepção enquanto ato mental. Trata-se, principalmente,
da definição de número 3:
Eu tomo também pela mesma coisa a ideia de um objeto e a percepção de um objeto.
Eu desconsidero se há outras coisas a que se possa dar o nome de ideia. Mas, é certo
que há ideias tomadas nesse sentido e que essas ideias são ou atributos, ou
modificações de nossa alma (VFI, 5, 67)166.
A passagem citada é muito clara na definição de ideia como sendo a mesma coisa que
percepção, ou seja, ela parte, desde o início, de uma compreensão completamente divergente
daquela de Malebranche. Entretanto, é preciso avançar para a matéria de algumas outras
definições a fim de que se possa formular de modo mais claro o quadro que está sendo
desenhado por Arnauld. Quadro esse que tem o objetivo de esclarecer o que é a percepção a
partir do que ele considera serem princípios mais claros e evidentes que os seguidos por
Malebranche.
A elucidação de que a ideia e a percepção constituem a mesma coisa, o mesmo
fenômeno de natureza intelectual, depende das definições de Arnauld que tratam, em particular,
do que é propriamente a percepção intelectual de um objeto, isto é, do que é para a mente ter a
ideia de um objeto. Tais definições apresentam um posicionamento diferente do de
Malebranche acerca do que é a presença do objeto para o espírito. Além disso, essas definições
pretendem dar conta do que é ser por representação, visam a esclarecer em que medida
percepção e ideia não configuram seres distintos, mas, ao contrário, são aspectos de uma e
mesma coisa e, por fim, defendem que essa coisa diz respeito a certo tipo de modificação mental
cuja natureza encerra uma ambiguidade na relação com a mente que percebe e a coisa que é
percebida. Assim, é possível notar que a identificação da ideia com a representação exige de
Arnauld uma reinterpretação dos pressupostos até agora vistos na teoria malebranchista a que
se passará agora a analisar.
166 « Je prends aussi pour la même chose l’idée d’un objet et la perception d’un objet. Je laisse à part s’il y a d’autres choses, à qui on puisse donner le nom d’idée. Mais il est certain qu’il y a des idées, prises en ce sens, et que ces idées sont ou des attributs, ou des modifications de notre âme » (VFI, 5, 67).
125
No que diz respeito ao tema da presença do objeto para o espírito, Arnauld afirma na
definição 4 que estar presente significa apenas ser pensado, ser concebido, isto é, que a presença
do objeto para a mente que o percebe dá-se no momento da exibição desse objeto no intelecto.
Nesse sentido, a presença do objeto para a mente também é pensada por Arnauld como se dando
por meio de uma ideia. Considerando isso, ele deixa à parte a investigação sobre a possibilidade
de um outro tipo de presença do objeto que seja anterior ao próprio ato de percepção. Ao propor
isso, ele sinaliza que é possível pesquisar se o objeto percebido tem alguma anterioridade ou
primazia com relação ao ato perceptivo, o que indica uma possibilidade de investigação acerca
da existência dos objetos percebidos. No entanto, segundo Arnauld, tal possibilidade de
precedência não seria incompatível com a definição de presença que se dá quando o pensamento
exibe determinada coisa como objeto, isto é, quando o pensamento produz uma ideia com um
conteúdo determinado. As considerações de Arnauld acerca do tema da presença sugerem o
reconhecimento de que há uma confusão no pensamento de Malebranche entre aquilo que
concerne ao fenômeno da percepção e aquilo que diz respeito à existência do que é percebido.
Nesse sentido, Arnauld, ao notar o equívoco, procura desfazê-lo ao precisar que a percepção,
inicialmente, trata apenas dos objetos enquanto eles são concebidos pelo espírito (enquanto
ideias) sem dar conta se eles existem ou não, visto que sobre isso incide um outro tipo de
investigação. Arnauld diz:
Eu digo que um objeto está presente para nosso espírito quando nosso espírito
percebe-o e conhece-o. Eu deixo ainda por examinar se há uma outra [um outro tipo
de] presença do objeto, prévia ao conhecimento, que seja necessária para que o objeto
esteja em condições de ser conhecido. Mas é certo que a maneira como eu digo que
um objeto está presente para o espírito quando ele é por ele conhecido é incontestável,
e é isso que permite dizer que uma pessoa que amamos está frequentemente presente
para nosso espírito, pois nós pensamos nela frequentemente (VFI, 5, 67)167.
Uma vez tendo considerado o que significa propriamente a presença do objeto para a
mente no contexto da percepção, Arnauld conceitua, em seguida, a forma própria dessa
presença do objeto no intelecto. Veja-se a definição de número 5: “eu digo que uma coisa está
167 « Je dis qu’un objet est présent à notre esprit, quand notre esprit l’aperçoit et le connaît. Je laisse encore à examiner s’il y a une autre présence de l’objet, préalable à la connaissance, et qui soit nécessaire afin qu’il soit en état d’être connu. Mais il est certain que la manière dont je dis qu’un objet est présent à l’esprit, quand il en est connu, est incontestable, et que c’est ce qui fait dire qu’une personne que nous aimons nous est souvent présente à l’esprit, parce que nous y pensons souvent » (VFI, 5, 67).
126
objetivamente no meu espírito quando eu a concebo. Quando eu concebo o sol, um quadrado,
um som; o sol, o quadrado, esse som estão objetivamente no meu espírito, quer eles estejam ou
não fora do meu espírito” (VFI, 5, 67)168. Segundo a passagem citada, Arnauld afirma que as
coisas quando são percebidas, isto é, quando estão presentes no intelecto como um objeto, elas
são/estão lá objetivamente. Isso significa que os objetos percebidos possuem uma forma de ser
no intelecto que ocorre quando eles são pensados – essa é a forma da ideia. Em desacordo com
Malebranche, essa forma de ser objetivamente no intelecto vem esclarecer em que medida o
tema da presença do objeto no ato da percepção independe de considerações acerca da
existência independente desse objeto percebido com relação ao ato mental que o exibe na
consciência. Assim, como se pode compreender o objeto da percepção como possuindo um
modo de ser na mente, que independe da existência de objetos distintos do próprio pensamento,
resta patente que a percepção envolve o objeto enquanto ele é um conteúdo expresso por uma
modificação mental, que é a ideia. Tome-se em suma os princípios de Arnauld até aqui: a
presença de um objeto para o espírito se dá quando ele é pensado, percebido ou conhecido. Ser
pensado concerne a um modo de ser no espírito do objeto pensado. Esse modo de ser no espírito
do objeto pensado é um modo de ser objetivo, isto é, por representação. Isso significa ser no
espírito uma ideia de alguma coisa. Se o objeto percebido é um modo de ser por representação
no espírito, então ele é uma modificação mental. E, dessa maneira, ao considerar que a
percepção envolve uma ideia que é ela mesma uma modificação do espírito, Arnauld confronta
a concepção malebranchista de que o objeto da percepção tem primazia e, por isso, é
independente das modificações mentais, pois para Malebranche essas modificações não podem
ser representativas de coisas distintas delas mesmas. Arnauld, portanto, assenta em outras bases
sua teoria da percepção.
Dado que o objeto da percepção é ele mesmo uma modificação mental à medida que
está objetivamente no intelecto, pode-se melhor entender agora em que medida Arnauld
expressa na definição de número 3 (reproduzida mais acima) que as ideias de um objeto são
modificações da alma. Entretanto, ainda é preciso esclarecer o sentido em que a percepção de
um objeto e a ideia de um objeto são identificadas por Arnauld, nessa mesma definição, como
a mesma coisa. Considera-se aqui que a razão para essa identificação encontra-se no fato de
que essa coisa, esse evento mental (que é a percepção e a ideia), envolve uma dupla relação que
168 « Je dis qu’une chose est objectivement dans mon esprit, quand je la conçois. Quand je conçois le soleil , un carré, un son, le soleil, le carré, ce son, sont objectivement dans mon esprit, soit qu’ils soient ou qu’ils ne soient pas hors de mon esprit » (VFI, 5, 67).
127
determina essencialmente o que ela é, a saber, uma que diz respeito ao modo de operar da
própria mente quando ela percebe alguma coisa; e outra que se refere ao objeto percebido
enquanto ele está objetivamente na mente. Dessa maneira, para Arnauld, a palavra percepção
refere-se mais adequadamente às modificações da mente quando ela assimila, ou percebe
alguma coisa; enquanto que a palavra ideia é mais adequada para tratar do objeto percebido
enquanto ele está objetivamente na mente, isto é, quando está na mente como um conteúdo que
exibe alguma coisa determinada para a mente. Percepção e ideia são, nesse sentido, duas faces
de uma mesma moeda, que se configura num certo tipo de ato mental de caráter representativo,
ou seja, aquele ato que envolve a exibição de um conteúdo como um objeto para a mente. Essa
dupla relação é caracterizada por Arnauld na definição de número 6 da seguinte maneira:
[...] a percepção de um quadrado marca mais diretamente minha alma como
percebendo um quadrado; e a ideia de um quadrado marca mais diretamente o
quadrado enquanto ele está objetivamente no meu espírito [...] essas não são duas
entidades diferentes, mas uma mesma modificação de nossa alma que encerra
essencialmente essas duas relações [...] (VFI, 5, 68)169.
Esse tipo de ato mental que envolve necessariamente um conteúdo é ambíguo porque
se trata de uma modificação mental essencialmente representativa cuja função é apresentar
alguma coisa como um objeto determinado para a mente, isto é, constitui ao mesmo tempo um
ato e um conteúdo mental. Eis aí mais claramente uma discordância, talvez a mais fundamental,
entre Arnauld e Malebranche, que se anuncia desde a definição de número 3: pois enquanto o
primeiro admite que as modificações mentais são essencialmente representativas (à medida que
o conteúdo representado por uma ideia está objetivamente na mente) e, por esse motivo,
percepção e ideia não precisam ser entendidas como duas entidades distintas; o segundo
compreende, como já visto, que as modificações mentais não podem exibir nada além das
próprias operações da mente, o que significa que um conteúdo representativo que apresenta um
objeto para a mente jamais pode ser reduzido a, ou explicado por, uma modificação mental, o
que leva Malebranche a pensar neles como sendo entidades independentes da mente que os
percebe. Arnauld pronuncia-se sobre esse tema na definição de número 7:
169 « […] la perception d’un carré marque plus directement mon âme comme apercevant un carré ; et l’idée d’un carré marque plus directement le carré en tant qu’il est objectivement dans mon esprit […] ce ne sont point deux entités différentes, mais une même modification de notre âme, qui enferme essentiellement ces deux rapports […] » (VFI, 5, 68).
128
Aquilo que eu compreendo por seres representativos enquanto eu os combato como
entidades supérfluas, diz respeito apenas àqueles que se imaginam ser realmente
distintos das ideias tomadas como percepções. Pois, eu não posso combater todo tipo
de seres ou de modalidades representativas; dado que eu sustento que é claro, para
quem quer que reflita sobre o que se passa em seu espírito, que todas as percepções
são modalidades essencialmente representativas (VFI, 5, 68)170.
Diante desse debate, é preciso apresentar a razão de Arnauld em favor da sua admissão
de que modificações mentais são sim representativas de objetos. A justificativa para isso
provém de uma concepção de base de Arnauld que entende todo e qualquer ato mental como
intencional, isto é, como envolvendo sempre um objeto, porque o pensamento é essencialmente
intencional – é sempre pensamento sobre alguma coisa:
Assim como é claro que eu penso, também é claro que eu penso em alguma coisa, isto
é, que eu conheço e que eu percebo alguma coisa. Pois, o pensamento é
essencialmente isso. E dessa maneira, não podendo haver pensamento ou
conhecimento sem objeto conhecido, eu não posso perguntar-me a mim mesmo mais
pela razão por que eu penso em alguma coisa, que por que eu penso, sendo impossível
pensar que não se pensa em alguma coisa (VFI, 2, 52)171.
Como a intencionalidade é a marca do pensamento, então faz parte da natureza desse
pensamento ser representativo porque, como visto, não é possível haver pensamento, seja ele
do tipo que for, que não seja sobre alguma coisa, inexistindo, portanto, para Arnauld, operações
mentais vazias de conteúdo.
É legítimo perguntar, como poderia fazer Malebranche, se atribuir a intencionalidade à
natureza do pensamento não seria escapar sorrateiramente da questão sobre em que medida
modificações de uma mente finita e particular podem dar a conhecer coisas distintas do próprio
pensamento, bem como coisas universais e Deus, que é infinito. Trata-se de um questionamento
170 « Ce que j’entends par les êtres représentatifs en tant que je les combats comme des entités superflues, ne sont que ceux que l’on s’imagine être réellement distingués des idées prises pour des perceptions. Car je n’ai garde de combattre toutes sortes d’êtres ou de modalités représentatives ; puisque je soutiens qu’il est clair, à quiconque fait réflexion sur ce qui se passe dans son esprit, que toutes nos perceptions sont de modalités essentiellement représentatives » (VFI, 5, 68 171 « Comme donc il est clair que je pense, il est clair aussi que je pense à quelque chose, c’est-à-dire, que je connais, et que j’aperçois, quelque chose. Car la pensée est essentiellement cela. Et ainsi, ne pouvant y avoir de pensée ou de connaissance sans objet connu, je ne puis non plus me demander à moi-même la raison pourquoi je pense à quelque chose, que pourquoi je pense, étant impossible de penser qu’on ne pense à quelque chose » (VFI, 2, 52).
129
legítimo porque seria possível admitir que o pensamento é essencialmente intencional ainda
que as ideias não fossem suas modificações, ou seja, ainda que as ideias para as quais as
operações do pensamento se voltam fossem objetos realmente distintos do pensamento, seria
lícito conceber o pensamento como sendo essencialmente intencional. Levanta-se aqui apenas
uma hipótese de que aparentemente o caráter essencialmente intencional do pensamento não
seja suficiente para determinar que as ideias, os conteúdos representativos pensados sejam
modos da mente. Entretanto, parece que Arnauld recorre, como justificativa para sua
compreensão, à estratégia de apontar que a suposição de que as ideias sejam entidades
realmente distintas das modificações do pensamento, como formula Malebranche, está baseada
em comparações espúrias com o fenômeno corporal da visão. Segundo a definição de número
8, a representação realizada pelas ideias ou percepções (que para Arnauld são a mesma coisa)
possuem um outro sentido se comparada à representação que as pinturas fazem do seu original,
pois, no tocante às ideias, representação diz apenas que as coisas pensadas estão objetivamente
no intelecto e isso consiste num fenômeno particular e exclusivo do intelecto, não podendo de
maneira nenhuma ser explicado por qualquer comparação com coisas distintas do próprio
pensamento:
[...] Pois, no que concerne às ideias, [representação] quer dizer que as coisas que nós
concebemos estão objetivamente no nosso espírito e no nosso pensamento. Ora, essa
maneira de ser objetivamente no espírito é tão particular ao espírito e ao pensamento,
como sendo aquilo que compõe sua natureza, que em vão procurar-se-á algo de
semelhante em tudo o que não é espírito e pensamento. E, como já notei, foi isso que
embaralhou todo esse tema das ideias: disso que se quis explicar, por comparações
feitas com as coisas corporais, a maneira pela qual os objetos são representados por
nossas ideias, ainda que não pudesse haver acerca disso nenhuma relação verdadeira
entre os corpos e os espíritos (VFI, 5, 68)172.
Ora, há aí a sugestão de que a interpretação da necessidade da presença de um objeto no
contexto da percepção – que, como já visto, teria sido retirada da experiência do que ocorreria
na visão corporal – é o que teria provocado o equívoco malebranchista de se tomar
172 « […] Car, au regard des idées, cela veut dire que les choses que nous concevons sont objectivement dans notre esprit et dans notre pensée. Or cette manière d’être objectivement dans l’esprit est si particulière à l’esprit et à la pensée, comme étant ce qui en fait la nature, qu’en vain on chercherait rien de semblable en tout ce qui n’est pas esprit et pensée. Et c’est, comme j’ai déjà remarqué, ce qui a brouillé toute cette matière des idées, de ce qu’on a voulu expliquer, par des comparaisons prises des choses corporelles, la manière dont les objets sont représentés par nos idées, quoiqu’il ne puisse y avoir sur cela aucun vrai rapport entre les corps et les esprits » (VFI, 5, 68).
130
necessariamente o conteúdo das percepções como realmente distintos delas. A comparação do
fenômeno da percepção com o da visão corporal teria resultado na compreensão malebranchista
de que o objeto percebido tem uma primazia com relação à percepção e, por isso, não depende
da mente. Mas como visto na citação de Arnauld, esse movimento argumentativo é apenas
matéria de confusão.
Considerando o dito até agora, pretende-se evidenciar resumidamente quais são os
princípios que embasam a interpretação de Arnauld sobre o que é a percepção. De acordo com
as definições trabalhadas, pôde-se perceber que Arnauld parte da noção de que percepção e
ideia são a mesma coisa, que consiste num certo tipo de modificação mental. Essa compreensão
é enriquecida e detalhada à medida que outras definições dão conta de esclarecer a posição de
Arnauld acerca dos elementos que estão em jogo no debate com Malebranche sobre o que são
percepção e ideia. Nesse seguimento, Arnauld procura elucidar a maneira como ele pensa que
deve ser compreendida a presença do objeto para a mente que percebe (lembra-se aqui que a
interpretação acerca do tema da presença é determinante, segundo Arnauld, para a elaboração
da teoria da percepção de Malebranche). E ele o faz ao dizer que essa presença não significa
mais que ser pensado ou ser concebido. Isso quer dizer, segundo Arnauld, que um objeto
pensado é um objeto que se faz presente para a mente enquanto pensado, ou seja, não se trata
da coisa mesma, mas da sua representação no pensamento, da sua ideia. Essa ideia constitui um
determinado modo de ser desse objeto na mente, que é ser objetivamente, isto é, ser por
representação, que é como as coisas pensadas costumam estar presentes no intelecto. Diante
disso, vê-se com mais nitidez em que medida a ideia constitui uma modificação do pensamento
para Arnauld, pois ela é alguma coisa enquanto pensada, é a representação mental de um objeto,
isto é, ela depende da atividade do pensamento para ser o que é, que é a exibição de um conteúdo
para a mente. E, por fim, se a ideia é conteúdo representativo que apresenta alguma coisa como
objeto para a mente que a percebe, se a ideia é um objeto enquanto pensado, é um modo objetivo
do pensamento, ideia e percepção constituem o mesmo ato de pensamento que é composto por
uma dupla referência, como duas faces indissociáveis de uma mesma moeda, a saber, uma que
diz respeito à modificação da mente quando ela percebe alguma coisa, e outra que diz respeito
ao objeto percebido por esse ato,
[...] já que eu não posso ter uma percepção que não seja conjuntamente a percepção
do meu espírito como percebendo e a percepção de alguma coisa como percebida; e
131
que também nada pode estar objetivamente no meu espírito (e é isso que eu chamo de
Ideia) que ele não o perceba (VFI, 5, 68)173.
3.3 Argumentos contra os entes representativos de Malebranche
Arnauld já havia mostrado anteriormente que os princípios que embasam a teoria da
percepção de Malebranche são falsos porque são baseados em princípios equivocados. Nesse
sentido, entende-se que o que ele está propondo a partir das definições que foram discutidas é
que elas servem como fundamentos supostamente mais racionais e evidentes para a
compreensão do que é ideia. Como os princípios malebranchistas estão em xeque, Arnauld
autoriza-se a proceder seu raciocínio a partir de outras definições que concebem as noções de
presença, representação, percepção e ideia de uma maneira diferente da de Malebranche e cuja
principal vantagem é formular uma noção de ideia que prescinde da concepção de entes
representativos realmente distintos da percepção. Contudo, Arnauld não se limita simplesmente
a expor em novas bases uma outra maneira de se conceber o que é uma ideia. Embora ele já
esteja convencido desde o início de que suas definições implicam uma concepção de ideia mais
verdadeira que a de Malebranche, a partir dessas definições é que ele pretende realizar
demonstrações da falsidade das ideias como concebidas por Malebranche. Trata-se, por isso,
de um esforço argumentativo de fundamentação de uma teoria da percepção que passa pela
rejeição, como falsa, da teoria malebranchista da necessidade da existência de entes
representativos realmente distintos da mente para a ocorrência da percepção. Passa-se agora a
discutir alguns dos argumentos contidos nessas demonstrações.
Sinteticamente, entende-se que os argumentos de Arnauld, dos quais se tratará nessa
seção, perfazem a seguinte estrutura. Em primeiro lugar, reconhecem a ocorrência de uma
petição de princípio na consideração da existência dos entes representativos em questão. Essa
petição de princípio indica a cunhagem arbitrária de um tipo de entidade que visa a explicar um
determinado fenômeno. No contexto da cunhagem arbitrária de entidades explicativas, é
razoável, então, pensar sobre sua prescindibilidade. E isso pode ser feito a partir de algumas
referências previamente aceitas que orientam, por fim, o reconhecimento da falsidade de uma
concepção fundada nesse tipo de entidade – que é forjada propositalmente para responder a um
173 « […] puisque je ne puis avoir de perception, qui ne soit tout ensemble la perception de mon esprit comme apercevant, et la perception de quelque chose comme aperçue, et que rien aussi ne peut être objectivement dans mon esprit (qui est ce que j’appelle Idée) que mon esprit ne l’aperçoive » (VFI, 5, 68).
132
problema específico. Essas referências são trazidas ao debate por Arnauld na elaboração, como
se verá mais à frente, do argumento das intenções de Deus ao criar uma alma capaz de perceber;
e do argumento da simplicidade das vias de Deus na criação – argumentos que procuram
mostrar de maneira positiva a falsidade dos entes representativos de Malebranche, isto é,
oferecendo razões que minam sua consistência diretamente.
Nesse seguimento, a primeira demonstração da proposição
nosso espírito não necessita, para conhecer as coisas materiais, de certos seres
representativos, distintos das percepções, que se pretende serem necessários como
substitutivos mediante a ausência de tudo aquilo que não pode por si mesmo estar
unido intimamente à alma (VFI, 7, 80)174
fornece o argumento da petição de princípio citado acima, que consiste no estabelecimento da
noção de ente representativo como pressuposto para a conclusão do raciocínio que leva
Malebranche a defender a existência de tais entes na percepção das coisas externas. Diante do
exposto por Malebranche “[...] que nós não percebemos os objetos que estão fora de nós por
eles mesmos” (OCM, I, 413)”175, Arnauld (VFI, 7, 80) identifica dois possíveis sentidos para a
referida colocação de Malebranche que seriam dados por uma equivocidade na expressão “por
eles mesmos”. No primeiro sentido, a expressão daria conta de que não são os objetos, por eles
mesmos, isto é, segundo seu poder, que produzem as percepções que se tem deles. Assim, a
expressão apenas afirmaria que os objetos não são a causa do conhecimento que a alma tem
deles, isto é, que aquilo que é externo à alma não é o que engendra na alma suas percepções
sobre ele: “o primeiro [sentido exprime] que eles [os objetos] não se fazem conhecer a nosso
espírito por eles mesmos, isto é, que eles não são a causa da percepção que temos deles; e que
eles não produzem no nosso espírito as percepções que nós temos deles” (VFI, 7, 80)176.
Segundo Arnauld, esse sentido, que para ele é verdadeiro, não é o empregado por Malebranche
na segunda parte do livro III da Recherche porque ele refere-se ao tema da origem das ideias,
que seria, para Arnauld, diferente do tema da natureza das ideias, essa sim a preocupação de
Melebranche. Isso fica mais claro na sequência do argumento arnaldiano: ao defender que Deus
174 « Notre esprit n’a point besoin pour connaître les choses matérielles de certains êtres représentatifs, distingués des perceptions, qu’on prétend être nécessaires pour suppléer à l’absence de tout ce qui ne peut être par soi-même uni intimement à notre âme » (VFI, 7, 80). 175 « […] que nous n’apercevons point les objets qui sont hors de nous par eux-mêmes » (OCM, I, 413). 176 « Le premier [sens exprime] qu’ils ne se font point connaître à notre esprit par eux-mêmes, c’est-à-dire, qu’ils ne se sont point la cause que nous les apercevons ; et qu’ils ne produisent point dans notre esprit les perceptions que nous avons d’eux […] » (VFI, 7, 80).
133
é a causa de todas as percepções, Malebranche deveria admitir que, em certa medida, há uma
externalidade em tudo o que é percebido, que envolveria inclusive a própria percepção que a
alma tem de si mesma. E sendo assim, tomar o sentido de “por eles mesmos” como expressando
que os objetos não são a causa da percepção que se tem deles porque sua percepção envolve
uma causa externa, Deus, implicaria que também a alma não poderia conhecer-se por si mesma,
o que é incompatível com o propósito de Malebranche, para quem a percepção da alma se dá
pela própria alma que se percebe imediatamente quando realiza suas operações:
Esse primeiro sentido é verdadeiro, mas ele não diz nada à questão que é sobre a
Natureza das ideias, e não sobre sua origem. É claro também que esse não é o sentido
pelo qual ele tomou essas palavras. Pois, sustentando, como ele faz, que Deus é o
autor de todas as nossas percepções, ele deveria ter colocado a alma, assim como todas
as coisas materiais, entre as coisas que nós não percebemos por elas mesmas, já que,
segundo ele, é Deus, e não nossa alma, quem causa em nosso espírito a percepção
pela qual nós a percebemos (VFI, 7, 80-81)177.
Portanto, segundo Arnauld, o que está em jogo para Malebranche no que diz respeito ao
sentido da expressão “por eles mesmos” não pode propriamente ter a ver com questões acerca
da causa das percepções, que expressem que os objetos não são responsáveis pelas percepções
que se tem deles, pois isso levaria Malebranche a uma incompatibilidade entre a concepção de
que a alma conhece-se por si mesma e a autoria divina de todas as percepções. Em síntese, o
argumento de Arnauld diz que a expressão em questão não pode ser interpretada como dizendo
algo a respeito da origem da percepção. Isso porque quando Malebranche diz que os objetos
não são percebidos por eles mesmos, ele não poderia, de maneira própria, querer dizer que os
objetos não são a causa das percepções sob pena de ter de aceitar que a própria percepção que
a alma tem de si não seria conhecida por si mesma, já que todas as percepções dependem de
Deus, o que incute uma externalidade a todas elas.
O que compõe mais adequadamente o sentido da expressão “por eles mesmos” na
passagem em discussão tem a ver, segundo Arnauld, com o segundo sentido nela implícito, que
é o da percepção direta, ou imediata, ou seja, não ser percebido por si mesmo significa não ser
percebido diretamente. Entretanto, Malebranche teria admitido que essa percepção imediata dá-
177 « Ce premier sens est vrai, mais il ne fait rien à la question qui est de la Nature des idées, et non pas leur origine. Il est clair aussi que ce n’est pas en ce sens qu’il a pris ces mots. Car, soutenant comme il fait que Dieu est l’auteur de toutes nos perceptions, il aurait dû mettre l’âme aussi bien que toutes les choses matérielles entre les choses que nous n’apercevons point par elles-mêmes, puisque selon lui c’est Dieu, et non pas notre âme, qui cause en notre esprit la perception par laquelle nous l’apercevons » (VFI, 7, 80-81).
134
se por oposição a ser percebido por meio de alguma entidade realmente distinta da percepção:
a oposição entre “[...] ser conhecido por si mesmo (como [Malebranche] acredita que o é nossa
alma quando ela se conhece) a ser conhecido por esses seres representativos dos objetos
distintos das percepções [...]” (VFI, 7, 81)178. Nessa perspectiva, Arnauld identifica que
Malebranche assume claramente como dado aquilo que, na verdade, está em questão, a saber,
a existência de tais entidades. Para Arnauld, ao dizer que os objetos não são conhecidos por
eles mesmos, não são conhecidos diretamente, Malebranche assume como um dado, sem a
apresentação de razões adequadas, que eles são conhecidos por meio de certos entes
representativos realmente distintos da percepção que tomam o lugar das coisas mesmas – e ele
assume isso, ao invés de cuidadosamente avaliar o significado mais próximo que ‘não ser
percebido por si mesmo’ pode ter, que é o da percepção indireta, mediada pelo próprio conteúdo
determinado presente objetivamente na mente. Tendo isso em vista, segundo Arnauld,
Malebranche estaria arbitrariamente postulando, tomando como ponto de partida para entender
a oposição entre percepção direta e indireta, a existência de certas entidades que ele deveria
provar ao final do seu raciocínio, já que não há uma implicação necessária entre não poder ser
conhecido imediatamente e ser conhecido através de entes representativos.
Segundo Arnauld, seria suficiente o exame atento e criterioso do que se passa na própria
mente quando ela percebe alguma coisa para compreender que é na mente, e não em alguma
outra coisa além da mente, que se encontram determinados conteúdos representativos, ali
presentes objetivamente, que apresentam para a mente, como objetos, as coisas externas à
própria mente. Essa avaliação do que se passa na própria mente durante a percepção é
claramente derivada das definições de Arnauld discutidas em seção anterior, que concebem na
mente a percepção como a presença objetiva, por representação, dos objetos percebidos, isto é,
definições que apresentam novas bases para a compreensão do processo perceptivo. Como se
pode perceber, Arnauld recorre nesse ponto à proposição de uma análise introspectiva, a partir
de seus fundamentos, aparentemente mais simples e racionais, como argumento para mostrar o
caráter quimérico dos entes representativos de Malebranche. Pois, para ele, essa análise feita
rigorosamente, e de acordo com princípios não comprometidos com determinados preconceitos,
é capaz de evidenciar que não há indícios da existência de entidades representativas distintas
da própria percepção que ocupariam, como objetos independentes, o lugar das coisas externas
percebidas:
178 « […] être connu par soi-même (comme il croit que l’est notre âme quand elle se connaît) à être connu par ces être représentatifs des objets distingués des perceptions […] » (VFI, 7, 81).
135
Pois, se [...] ele tivesse consultado a si mesmo e tivesse considerado atentamente o
que se passa em seu espírito [...] teria sido impossível para ele ver em seu espírito
outra coisa que não fosse a percepção do cubo, ou o cubo objetivamente presente para
o espírito, que não fosse a percepção do sol, ou o sol objetivamente presente para o
espírito; e ele jamais teria encontrado no seu espírito o menor traço desse ser
representativo do cubo ou do sol, distinto da percepção, que seria o substituto de um
ou de outro quando de suas ausências. Mas, que, para o encontrar no espírito, teria
sido necessário que ele mesmo o tivesse colocado no espírito [...] (VFI, 7, 81)179.
Com essa argumentação, Arnauld pretende assinalar o que ele considera não apenas um
equívoco, mas sim uma arbitrariedade no raciocínio de Malebranche, que consiste na tomada,
como premissa, de certos seres representativos, quando eles são justamente o que está em
questão. Uma conclusão patente acerca disso, de certa maneira já anunciada na proposta de
análise introspectiva anteriormente mencionada, é que esses seres representativos não
consistem apenas numa falha na condução do raciocínio, mas sim na invenção de um tipo de
entidade explicativa que é, na verdade, prescindível para a explicação, visto que se trata de uma
entidade supérflua, tais quais as formas substanciais dos escolásticos, como diz Arnauld a
seguir:
[...] ele apenas teria encontrado [esses seres representativos em seu espírito] como os
defensores das formas substanciais encontram-nas em todos os corpos do Universo,
pois eles imaginaram que elas são próprias para explicar aquilo que se observa nesses
corpos, e que não se poderia fazê-lo sem isso (VFI, 7, 81)180.
Dessa maneira, defende-se aqui que Arnauld quer mostrar com sua argumentação que para
resolver o problema da percepção dos objetos externos à mente, caro a sua teoria, Malebranche
cunha arbitrariamente essa noção de seres representativos, que passam a ser os objetos
percebidos pela mente no lugar daqueles que, por sua exterioridade, não poderiam estar
presentes para a mente no momento da percepção (segundo Malebranche). Ora, como já visto,
179 « Car si […] il s’était consulté soi-même, et avait considéré attentivement ce qui se passe dans son esprit […] il lui aurait été impossible d’y voir autre chose que la perception du cube, ou le cube objectivement présent à l’esprit, que la perception du soleil, ou le soleil objectivement présent à l’esprit, et qu’il n’y aurait jamais trouvé la moindre trace de cet être représentatif du cube ou du soleil, distingué de la perception, et qui aurait dû suppléer à l’absence de l’un et de l’autre. Mais que pour s’y trouver il aurait fallu qu’il l’y eût mis lui-même […] » (VFI, 7, 81). 180 « […] il n’aurait trouvé [ces êtres représentatifs dans son esprit] que comme les défenseurs des formes substantielles les trouvent dans tous les corps de l’Univers, parce qu’ils se sont imaginés qu’elles sont propres à expliquer ce que l’on remarque dans ce corps, et qu’on ne le pourrait pas faire sans cela » (VFI, 7, 81).
136
Arnauld recusa as bases que sustentam a compreensão malebranchista do que é a presença e,
assim, abre caminho para a crítica que se adensa, agora, na indicação da arbitrariedade na
formulação de um tal tipo de entidade como a dos seres representativos.
Diante, então, da conclusão de que esses seres representativos são uma construção
injustificada com vistas a resolver a questão da percepção das coisas externas, entende-se que
Arnauld passa a discutir a prescindibilidade dos seres representativos para a percepção a fim de
demonstrar sua falsidade. Com esse intuito, ele apresenta dois argumentos que sugerem que seu
projeto é demonstrar a incompatibilidade de tais entidades com aspectos importantes que ou
são constantes da filosofia de Malebranche, ou podem ser pensados a partir dela, a saber, a
inadequação entre as intenções de Deus ao criar uma alma capaz de percepção e a existência de
seres representativos; e a questão da simplicidade e racionalidade de Deus na criação e sua
relação com os seres representativos181. Compreende-se que a estratégia argumentativa de
Arnauld, nesse caso, é recorrer a referências sobre as quais se pode entrar em acordo a fim de
realizar a demonstração da falsidade dos seres representativos a partir de um chão comum, o
que lhe garante maior legitimidade. Isso significa que Arnauld busca, nessa etapa, demonstrar
a falsidade das referidas entidades apoiado numa discussão acerca de determinadas implicações
que a admissão delas possui – implicações essas que dizem respeito a consequências teóricas
que indicam, para Arnauld, no mínimo, alguma inconsistência, o que o leva a interpretar os
seres representativos como um elemento falso no que concerne à teoria da percepção.
O argumento que discute as intenções de Deus ao criar a alma capaz de percepção
considera o contexto em que isso é realizado. Deus faz a alma unida a um corpo que é
circundado por inúmeros outros corpos que afetam de diversas maneiras essa alma encarnada.
Essas afecções ocorrem numa dinâmica que atinge diretamente a existência do homem, o que
significa que a percepção do que se passa em torno da alma unida ao corpo é importante para a
preservação de sua vida, pois é segundo essa percepção que o homem, esse que tem a alma
unida a um corpo, consegue fugir daquilo que o prejudica. Nesse sentido, pode-se dizer, com
alguma segurança, que a percepção dos corpos tem a função de garantir para o homem os meios
181 NADLER (1989, p.97-98) e DERENNE (2017, p.87-89) discutem o argumento arnaldiano das intenções de Deus associado ao da simplicidade das vias, como se eles fossem aspectos de um mesmo argumento. No entanto, aqui se propõe interpretá-los como argumentos distintos que cumprem a função de demonstrar a falsidade dos seres representativos de Malebranche, no primeiro caso, porque eles são incompatíveis com a noção de um Deus perfeito capaz de realizar sua vontade sem hesitação (Deus faz o que ele quer); e, no segundo caso, porque eles são incompatíveis com a simplicidade e a racionalidade divinas, que não faz pela via complexa o que pode ser feito por via mais simples (Deus faz o que é mais racional). Tratam-se de dois argumentos distintos, pois recorrem a aspectos de Deus que concernem a dimensões distintas segundo as quais os seres representativos podem ser tomados como falsos.
137
de sua própria sobrevivência num mundo que é material ao dar-lhe condições para o resguardo
do próprio corpo de riscos a sua integridade:
[...] considera-se que Deus, por um lado, criou o homem para ser o espectador e o
admirador de suas obras; e que, por outro lado, tendo unido a alma a um corpo, é bem
necessário que ele tenha dado à alma a faculdade, isto é, o poder de ver, de perceber,
conhecer, não apenas o corpo a que ela é unida, mas também todos os outros que a
rodeiam, que podiam nutri-la ou ajudá-la em sua própria conservação. Ora, ele não
podia fazer com que todos os outros corpos não estivessem distantes da alma. Então,
foi preciso necessariamente que ele tenha dado à alma o poder de conhecer os corpos
distantes do lugar onde ela estaria, isto é, do corpo ao qual ela estaria unida (VFI, 8,
84)182.
Levando esse contexto em consideração, parece razoável que se possa pensar acerca dos
propósitos de Deus no seguinte sentido: ao criar a alma com a habilidade de perceber, Deus dá
ao homem os meios para sua sobrevivência, pois é segundo essa capacidade perceptiva da alma
que ele pode perseguir o bem estar e fugir da dor, do sofrimento e do perigo em meio à realidade
material em que vive; assim, se se pode dizer que Deus dá à alma um poder de perceber que é
o elemento diferencial que garante a preservação da existência dela enquanto está unida a um
corpo, isto é, enquanto homem; é coerente concluir que faz parte das intenções de Deus que o
homem seja capaz de perceber de fato os corpos que o circundam, pois, afinal, por que Deus
daria a qualquer coisa uma capacidade, ou um poder ineficaz, isto é, que não realiza sua
potência? Por que razão, Deus criaria almas com o poder de perceber como objetos as afetam e
impedi-las-ia de efetivamente percebê-los num contexto em que tal percepção é fundamental
para sua preservação?
Essas questões estão implícitas na última passagem de Arnauld citada, em que ele
conclui que, diante do exposto sobre a criação da alma unida a um corpo e circundada por
inúmeros outros, Deus dá à alma o poder de conhecer esses corpos. Pois, independentemente
da distância dos corpos com relação à alma – o que não poderia deixar de ocorrer, seja no que
182 « […] on considère que Dieu d’une part a créé l’homme pour être le spectateur et l’admirateur de ses ouvrages ; et que de l’autre, ayant joint l’âme à un corps, il faut bien qu’il lui ait donné la faculté, c’est-à-dire le pouvoir de voir, d’apercevoir, de connaître, non seulement le corps auquel elle est jointe, mais aussi tous les autres qui l’environnent, qui pouvaient lui nuire ou l’aider à la conservation du sien. Or, il ne se pouvait pas faire que tous les autres corps n’en fussent éloignés. Il a donc fallu nécessairement qu’il lui ait donné le pouvoir de connaître les corps éloignés du lieu où elle serait, c’est-à-dire, du corps auquel elle serait jointe » (VFI, 8, 84).
138
se refere à presença local ou à diferença de tipo ontológico183, já que os corpos estão sempre,
por assim dizer, apartados da alma – a percepção que a alma tem deles é fundamental para
conservar sua existência enquanto unida ao corpo. Isso significa que a percepção dos corpos
não se trata de um detalhe acessório, mas algo de fundamental no que concerne ao quadro em
questão. Assim sendo, admitir que Deus tenha, por fim, criado a alma capaz apenas de perceber
determinados seres representativos que tomam o lugar das coisas materiais, que não poderiam
ser percebidas pela alma, indica que há, pelo menos, algo de estranho nessa compreensão. Isso
porque essa perspectiva parece guardar uma incongruência entre as intenções de Deus e a
instanciação na existência das almas criadas junto a seus corpos próprios que é aparentemente
incompatível com a natureza perfeita de Deus – pois demonstra alguma hesitação ou mesmo
alguma imperfeição em Deus, que intenciona uma coisa e realiza outra:
Deus não quis criar nossa alma e colocá-la num corpo que devia estar rodeado de uma
infinidade de outros corpos [de forma que] ele não tenha quisto também que ela fosse
capaz de conhecer os corpos; e que, consequentemente, ele não tenha quisto também
que os corpos fossem concebidos por nossa alma. Ora, todas as vontades de Deus são
eficazes: é algo certo, então, que Deus deu a nossos espíritos a faculdade de ver os
corpos, e aos corpos a faculdade passiva, por assim dizer, de serem vistos por nosso
espírito (VFI, 10, 91)184.
Ora, é justamente esse o raciocínio de Arnauld quando ele confronta as citadas intenções
de Deus com a existência de seres representativos realmente distintos do ato de percepção e
necessários para o processo perceptivo de coisas externas à alma. A existência desses seres
representativos impõe para a natureza de Deus uma espécie de imprecisão, de titubeio quanto à
realização de suas intenções que lhe é incompatível. Afinal de contas, esses seres
representativos, como concebidos por Malebranche, são os objetos imediatos da percepção,
cuja realidade, distinta das modificações mentais, é configurada em entidades representativas
que substituem as coisas mesmas no processo perceptivo. Uma teoria da percepção como a de
183 As formulações acerca da distância ou acerca da diferença de tipo ontológico dizem respeito à maneira como Malebranche elabora a problemática da percepção das coisas materiais, como visto mais detalhadamente no capítulo sobre Malebranche. 184 « Dieu n’a point voulu créer notre âme, et la mettre dans un corps qui devait être environné d’une infinité d’autres corps, qu’ils n’ait voulu aussi qu’elle fût capable de connaître les corps ; et que par conséquent il n’ait voulu aussi que les corps fussent conçus par notre âme. Or, toutes les volontés de Dieu sont efficaces : il est donc certain que Dieu a donné à nos esprits la faculté de voir les corps, et aux corps la faculté passive, pour parler ainsi, d’être vus par notre esprit » (VFI, 10, 91).
139
Malebranche, aqui sob crítica de Arnauld, baseada na existência desses seres representativos
cuja função é substituir aquilo que não pode ser percebido por si mesmo, admite, em última
instância, que a realidade efetivamente percebida é aquela dos seres representativos e não
aquela criada por Deus e que seria representada por essas entidades representativas. Mas,
novamente, por que Deus faria as coisas dessa maneira? Como compreender a perfeição e a
racionalidade divinas num movimento de criação que instancia na realidade almas unidas a
corpos, circundadas por outros corpos de cuja percepção depende sua preservação, com
capacidade de perceber objetos, mas que, no entanto, são incapazes de perceber diretamente
esses corpos, só podendo perceber entes que representam esses corpos, esse mundo, para elas?
Esse argumento das intenções de Deus no que diz respeito à capacidade perceptiva da
alma demonstra, segundo Arnauld, a evidência da falsidade dos seres representativos de
Malebranche a partir de razões teológicas que fornecem um pano de fundo com o qual
Malebranche poderia concordar. O que se quer dizer aqui é que, com esse argumento, Arnauld
fornece razões que não dependem apenas de uma reinterpretação dos elementos que estão em
jogo na teoria da percepção de Malebranche, mas sim oferece indícios de que o raciocínio
malebranchista acerca da existência de seres representativos distintos do ato perceptivo – ainda
que não estivesse baseado, como defende Arnauld, em princípios falsos, e não postulasse
indevidamente entidades a fim de explicar algum problema – incorre em erro porque
descaracteriza a compreensão básica sobre a natureza perfeita de Deus. Desse modo, é legítimo
dizer que Arnauld não apenas evidencia a condição quimérica dos seres representativos de
Malebranche (como já visto até aqui) mas que ele tem condições de defender a falsidade dessas
entidades em razão da incoerência entre elas e as intenções de um Deus perfeito. A não ser que
Malebranche, entre outros, pudessem aceitar algum grau de imperfeição na vontade de Deus, é
forçoso concluir, a partir do proposto por Arnauld, que os seres representativos realmente
distintos da percepção são entidades falsas, inventadas oportunamente com o objetivo de
resolver o problema da percepção de objetos que não poderiam ser percebidos pela alma, de
acordo com o pensamento de Malebranche.
Entretanto, poder-se-ia questionar que a vontade precisa e eficaz de Deus realiza-se com
a percepção dos corpos por meio dos seres representativos e que, por isso, não há nenhuma
incompatibilidade entre as intenções de Deus e a existência de entidades representativas185. Para
dar conta dessa possível objeção, Arnauld introduz o argumento da simplicidade das vias, ou o
princípio de economia da ação, que norteia toda a criação divina em função da racionalidade
185 Cf.: VFI, 11, 99-101.
140
expressa por esse princípio. Arnauld retoma esse princípio da própria filosofia de Malebranche,
quem não apenas concorda, mas baseia nele posições significativas, como a da visão das ideias
em Deus, como já visto no capítulo 2, sobre Malebranche. Esse princípio afirma basicamente
que Deus não faz nada de modo complexo, imbricado, confuso, tortuoso se ele pode fazê-lo de
modo mais simples, claro e sem rodeios, isto é, Deus age, tendo em vista seus fins, de maneira
direta, buscando sempre uma economia que dispensa aquilo que é supérfluo e que se atém
àquilo que é mais simples: “Deus não faz por vias compostas o que se pode fazer por vias mais
simples” (VFI, 10. 91)186. Esse princípio da simplicidade das vias de Deus justifica-se, tanto
para Malebranche, como já visto, quanto para Arnauld pelo seu caráter de maior racionalidade
no que diz respeito ao alcance de finalidades e de realização de projetos ou intenções.
Demonstra mais poder e sabedoria o percurso da via mais direta e mais eficaz que permite
atingir o objetivo. Isso porque a realização de uma finalidade por meios mais econômicos, isto
é, com menos desvios, aufere resultados efetivos de modo mais rápido e mais eficiente: se o
objetivo é alcançar C partindo do ponto A, num contexto em que isso pode ser realizado sem a
necessidade de um ponto intermediário, a razão diz que é melhor partir de A em direção a C
sem desvios para uma passagem por B. Para Arnauld, esse princípio denota fortemente o caráter
supérfluo e tortuoso de uma teoria da percepção que concebe como necessária a existência de
seres representativos distintos da percepção como intermediários do processo perceptivo, visto
que isso atinge em cheio a simplicidade e a racionalidade de Deus, reconhecida também por
Malebranche – pois, se Deus cria almas, dotadas de capacidade de perceber objetos, unidas a
um corpo em meio a um mundo material, por que motivo ele não permitiria que as almas
pudessem perceber esse mundo material, mas apenas seres representativos que estariam no
lugar desse mundo? Arnauld diz:
Ora, Deus, tendo quisto que nosso espírito conhecesse os corpos e que os corpos
fossem conhecidos por nosso espírito, sem dúvida foi mais simples para ele tornar
nosso espírito capaz de conhecer imediatamente os corpos, isto é, sem seres
representativos distintos das percepções (pois, é nesse sentido que eu sempre tomarei
aqui a palavra imediatamente) e os corpos capazes de serem imediatamente
conhecidos por nosso espírito, que deixar a alma na impotência de vê-los de outra
forma que não por meio de certos seres representativos, e de uma maneira tão
embaraçada que não há homem sincero que possa dizer de boa fé que ele a
compreende (VFI, 10, 91)187.
186 « Dieu ne fait point par les voies composées ce qui se peut faire par des voies plus simples » (VFI, 10, 91). 187 « Or Dieu, ayant voulu que notre esprit connût les corps, et que les corps fussent connus par notre esprit, il a été sans doute plus simples de rendre notre esprit capable de connaître immédiatement les corps, c’est-à-dire, sans
141
Dessa maneira, buscou-se nessa seção apresentar uma leitura de alguns dos argumentos
que aparecem nas demonstrações de Arnauld contra os seres representativos de Malebranche.
Essa leitura entende que o que é central nas demonstrações é o enfoque no caráter supérfluo da
noção malebranchista de seres representativos, que teria sido cunhada arbitrariamente com a
função, segundo Arnauld, de resolver o problema da percepção das coisas externas,
notadamente das coisas materiais, que estariam impedidas de serem percebidas pela mente por
causa da distância ontológica entre o mental e o corporal – distância essa que, como já visto,
impediria que as coisas externas estivessem de fato presentes no momento da percepção, como
seria necessário, para Malebranche. Assim, com o intuito de resolver um determinado
problema, os seres representativos teriam sido postulados como elemento central para a teoria
malebranchista da percepção, o que, para Arnauld, fere os princípios de uma boa argumentação
filosófica e coloca em xeque toda a teoria.
Entretanto, como vimos, para além de apontar o caráter quimérico e inventado de tais
entidades, Arnauld procura apresentar dois argumentos contrários à noção de seres
representativos que buscam atingir a consistência dessa noção em si mesma. São os argumentos
das intenções de Deus e o da simplicidade, ou economia das vias. Enquanto o primeiro mostra
que não é razoável que Deus não tenha dado à alma, unida ao corpo, a capacidade de perceber
as coisas materiais em meio às quais ela existe e que a afetam, pois isso tornaria sua vontade de
que a alma percebesse os corpos imperfeita (Deus quer A mas não faz A como quer); o segundo
mostra que a via mais simples, a melhor maneira de fazer com que a alma perceba os corpos é
dando-lhe a capacidade de percebê-los efetivamente sem a necessidade de nenhum desvio no
processo perceptivo, pois isso é o mais racional a fazer, já que se trata da via mais simples.
Esses dois argumentos, como dialogam com princípios aceitos pelo próprio Malebranche,
pretendem minar internamente a consistência dos seres representativos e demonstrar finalmente
sua falsidade, segundo Arnauld.
des êtres représentatifs, distingués des perceptions (car c’est dans ce sens que je prendrai toujours ici le mot d’immédiatement) et les corps capables d’être immédiatement connus par notre esprit, que de laisser l’âme dans l’impuissance de les voir autrement que par le moyen de certains êtres représentatifs, et d’une manière si embarrassée, qu’il n’y a point d’homme sincère qui puisse dire de bonne foi qu’il l’ait comprise » (VFI, 10, 91).
142
3.4 A crítica ao representacionalismo de Malebranche
As ideias, como visto em Malebranche, são entidades realmente distintas das operações
da mente que representam para ela as coisas externas criadas por Deus, das quais elas também
são realmente distintas. Nesse sentido, as ideias consistem em entidades cujo status ontológico
é o de uma terceira coisa entre a mente que percebe e a coisa que é percebida, ou seja,
constituem objetos que intermedeiam a percepção das coisas externas à medida que são capazes
de representar essas coisas, que, enfim, são percebidas pela mente por meio dessas entidades.
Como já debatido, no pensamento de Malebranche há a concepção de que as ideias estão em
Deus e são por ele disponibilizadas para os homens. Dessa forma, pode-se afirmar, como já
feito no capítulo sobre Malebranche, que as ideias são a própria natureza de Deus enquanto
representativas dos objetos criados, isto é, elas constituem a natureza de Deus enquanto
modelos perfeitos e inteligíveis da criação. E, assim, perceber as coisas externas, envolve
perceber o que em Deus é representativo das coisas criadas e não diretamente as coisas criadas.
Até essa altura do capítulo, discutiu-se a interpretação de Arnauld acerca da legitimidade
de uma tal concepção do processo perceptivo intermediada por determinadas entidades
independentes tanto do próprio ato de percepção, quanto da coisa percebida e, no entanto,
necessária para a ocorrência da percepção. O foco da discussão esteve em mostrar que, por um
lado, os pressupostos que embasam a teoria de Malebranche são falhos; e que, por outro lado,
a concepção de ideia como uma terceira coisa na relação entre a mente e a coisa percebida é
uma postulação supérflua e prescindível de uma entidade para explicar a percepção das coisas
externas – e que se dá justamente em função do embasamento da teoria em pressuposições
deformadas, como é o caso do pressuposto da necessidade da presença entendido como
presença local. Não só é possível explicar a percepção sem essas entidades representativas,
como é o mais simples e mais verdadeiro a fazer, segundo Arnauld.
Entretanto, nesse momento, é preciso comentar talvez a consequência mais marcante
implicada pela admissão de seres representativos na percepção, segundo Arnauld, que é o
representacionalismo radical de Malebranche. Conforme Arnauld, uma teoria que envolve a
necessidade de uma terceira entidade, como a dos seres representativos, para a percepção das
coisas externas impossibilita a efetiva percepção das coisas externas, pois o que se percebe
imediatamente, ao fim e ao cabo, são essas entidades representativas e não as coisas que se
pensaria perceber à primeira vista.
Essa consequência, que é um tipo de representacionalismo radical, provinda da
admissão de que as ideias são entidades representativas realmente distintas da percepção é
143
demonstrada por Arnauld em VFI, 11, 95-99. Nessa passagem, ele considera que apesar de
inicialmente Malebranche admitir que uma infinidade de coisas materiais são vistas, a
introdução da noção de ideia como seres representativos para explicar o funcionamento dessa
percepção leva-o a concluir que de fato aquilo que é visto, percebido, são determinados entes
representativos que substituem as coisas externas no processo perceptivo. Arnauld anuncia a
estranheza dessa consequência na seguinte passagem:
[...] [ele] supôs como uma coisa incontestável que nós vemos uma infinidade de
corpos e que nosso espírito percebe-os; mas a dificuldade está em explicar como ele
percebe-os. É isso que o faz dizer no título do capítulo 1 da segunda Parte do Livro
III que as ideias nos são necessárias para perceber todos os objetos materiais. Ele
supõe, então, que a gente percebe [os corpos]. E isso é como se eu dissesse que as
Lunetas nos são necessárias para perceber os Satélites de Júpiter e de Saturno; pois,
certamente seria ridículo falar assim se mesmo com tais Lunetas nós não
percebêssemos os Satélites desses dois Planetas (VFI, 11, 96)188.
Isso significa que, assim como é insensato supor que as lunetas são necessárias para a percepção
de determinados objetos que, ao final, não podem ser percebidos justamente por causa das
lunetas, a admissão das ideias como entidades representativas necessárias para a percepção leva
à conclusão problemática, segundo Arnauld, de que na teoria malebranchista não há de fato
uma verdadeira percepção das coisas externas justamente em função dessas ideias. Isso porque
o que se percebe realmente, nesse caso, são essas ideias, que são os objetos imediatos da
percepção. Para Arnauld, no contexto em que as ideias são objetos realmente distintos das
operações da mente, em que elas substituem e tomam o lugar das coisas materiais, que não
podem ser percebidas por si mesmas, apenas as ideias das coisas são percebidas, jamais as
coisas criadas por Deus o são. Em resumo, Arnauld identifica no pensamento de Malebranche
uma consequência representacionalista radical que encerra a percepção das coisas externas, do
mundo material criado por Deus, numa mera relação entre a mente e as ideias que, em Deus,
188 « […] [il a] supposé comme une chose incontestable que nous voyons une infinité de corps, et que notre esprit les aperçoit ; mais que la difficulté est d’expliquer comment il les aperçoit. C’est ce qui lui fait dire, dans le titre du chapitre 1 de la deuxième Partie du Livre III, que les idées nous sont nécessaires, pour apercevoir tous les objets matériels. Il suppose donc qu’on les aperçoit. Et c’est comme si je disais que les Lunettes d’approche nous sont nécessaires pour apercevoir les Satellites de Jupiter et de Saturne ; car certainement il serait ridicule de parler ainsi, si même avec ces Lunettes nous n’apercevions point les Satellites de ces deux Planètes » (VFI, 11, 96).
144
representam esse mundo. De forma que, no fim das contas, a mente só se relaciona no contexto
perceptivo com essas ideias e jamais com o mundo, havendo um abismo insuperável entre eles:
[...] forçando ainda mais as consequências naturais dessa Filosofia das ideias,
[Malebranche] transporta-nos de repente a países desconhecidos onde os homens não
mais possuem o conhecimento real uns dos outros, nem mesmo de seus próprios
corpos, nem do sol e dos astros que Deus criou; mas onde cada um vê, ao invés dos
homens para os quais ele volta seus olhos, apenas homens inteligíveis; ao invés de seu
próprio corpo, para o qual ele olha, apenas um corpo inteligível; ao invés do sol e dos
outros astros que Deus criou, apenas um sol e astros inteligíveis; e, ao invés dos
espaços materiais, que estão entre nós e o sol, apenas espaços inteligíveis (VFI, 11,
96)189.
Para Arnauld, trata-se de uma consequência absurda, índice da falsidade das ideias
tomadas como seres representativos, pelas razões a seguir. Em primeiro lugar, retomando mais
detalhadamente o raciocínio de Arnauld, ele considera absurda a consequência
representacionalista radical da teoria da percepção malebranchista porque ela é resultado de
uma estrutura argumentativa impertinente operada por Malebranche que parte da tentativa de
explicar como a percepção dos corpos se dá e conclui no fim das contas que os corpos não são
efetivamente percebidos. Segundo Arnauld (VFI, 11, 95), um indício de que um princípio é
falso dá-se quando ele leva o raciocínio a conclusões disparatadas, contrárias a coisas sabidas
indubitáveis das quais esse princípio procurava explicar determinados aspectos. É justamente
isso que Arnauld reconhece e atribui ao princípio malebranchista da necessidade da presença
do objeto para a alma a fim de que ele pudesse ser percebido – onde presença é compreendida
por Malebranche como uma união íntima entre o objeto percebido e a alma. Como já visto
anteriormente nesse capítulo, parte significativa do equívoco da teoria da percepção de
Malebranche encontra-se no seu embasamento em princípios espúrios resultantes de meros
preconceitos da infância. Eis que, para Arnauld, é justamente o princípio da necessidade da
presença, como já explicitado, que conduz o raciocínio malebranchista à postulação da
189 « […] poussant encore plus loin les conséquences naturelles de cette Philosophie des idées, [Malebranche] nous transporte tout d’un coup en des pays inconnus, où les hommes n’ont plus de véritable connaissance les uns des autres, ni même de leurs propres corps, ni du soleil et des astres que Dieu a créés ; mais où chacun ne voit, au lieu des hommes vers lesquels il tourne les yeux, que des hommes intelligibles, au lieu de son propre corps qu’il regarde, qu’un corps intelligible, au lieu du soleil et des autres astres que Dieu a créés, qu’un soleil et des astres intelligibles, et au lieu des espaces matériels, qui sont entre nous et le soleil, que des espaces intelligibles » (VFI, 11, 96).
145
concepção de ideia como uma terceira entidade representativa distinta das operações mentais e
também dos objetos externos criados por Deus.
Contudo, nesse momento, o objetivo é ressaltar a interpretação de Arnauld sobre como
a condução dos argumentos feita por Malebranche a partir desse princípio evidencia, no fim
das contas, uma armadilha, que é a negativa de um ponto de partida aceito pelo próprio
Malebranche como indubitável, a saber, o dado de que as almas unidas aos corpos (os homens)
são capazes de perceber os corpos existentes no mundo material em que coabitam.
A tarefa de esclarecer o modo como a percepção das coisas materiais ocorre é moldada,
na leitura de Arnauld, pelo princípio malebranchista em questão. Esse princípio define, em
última análise, que corpos só podem ser percebidos por intermédio de certas ideias que os
representam para a mente, pois, em função de sua condição material, eles estão impedidos de
estabelecer uma união íntima com a alma, o que é necessário para a percepção. A maneira como
Malebranche constrói a definição de ideia na Recherche, III, II, 1 já conduz de maneira robusta
à formulação da noção de ser representativo, como explicitado no capítulo sobre Malebranche,
ou seja, entende-se que está presente desde lá toda a base para a elaboração da teoria da
percepção considerada problemática por Arnauld. Contudo, Arnauld mostra que é em
passagens dos Éclaircissements, VI e X que a adesão malebranchista à referida consequência
da noção de ideia como ente representativo é definitivamente explicitada e elaborada em função
da distinção operada por Malebranche entre o que significa olhar e o que significa ver, no
contexto da percepção dos objetos materiais. Para ele os corpos que são olhados não são os
mesmos que são vistos, uma vez que corpos não são visíveis por si mesmos. Trata-se aqui da
distinção entre o olhar, que diz respeito à captação de objetos pelo sentido da visão quando os
olhos se voltam para os corpos; e o ver, que se refere à percepção intelectual que se pode ter
dos corpos. Ao dizer que as coisas materiais podem ser olhadas, mas jamais vistas, ou
percebidas, Malebranche está explicitando sua adesão irrestrita à consequência
representacionalista radical de acordo com a qual o mundo material não é efetivamente
percebido pela alma, pois, por sua natureza material, os corpos não cumprem o requisito daquilo
que pode ser percebido por si mesmo, necessitando, portanto, do intermédio das ideias, essas
sim os objetos efetivamente percebidos pela alma. Nesse sentido, a alma só percebe de fato
corpos inteligíveis e não aqueles corpos materiais criados por Deus:
Ele distingue olhar e ver. Ele define olhar ao dizer que se trata apenas de voltar nossos
olhos para um objeto; e ele dá a entender que ver é perceber um objeto por nosso
espírito. [...] Ele nos declara, então, que quando nós olhamos nosso corpo, isto é,
146
quando nós voltamos nossos olhos para ele, o que nós vemos por nosso espírito na
ocasião do ato de olhar não é o corpo que nós animamos, mas sim um corpo
inteligível, que, não tendo nada de material, pôde estar intimamente unido à nossa
alma. E que da mesma maneira, quando nós olhamos o sol ao tornar nossos olhos
para ele, aquilo que nós vemos pelo nosso espírito não é o sol material que Deus criou,
mas um sol inteligível (VFI, 11, 97-98)190.
Essa argumentação, porque termina por destruir o dado malebranchista, que é ponto de
partida para a investigação proposta na Recherche, III, II, 1, de que os corpos são percebidos,
denota, segundo Arnauld, a estrutura argumentativa imprópria que leva o autor a negar aquilo
que ele tinha como certo (e, para Arnauld, o era efetivamente). Na interpretação de Arnauld,
Malebranche é conduzido equivocadamente pela aceitação de um princípio ilegítimo à
formulação das bases teóricas de uma teoria da percepção de cunho representacionalista radical
porque, como visto, a teoria nega, em última análise, a possibilidade de que as almas tenham
qualquer contato perceptivo com o mundo material criado por Deus. Além disso, para Arnauld,
o representacionalismo de Malebranche consiste numa conclusão absurda do raciocínio porque
é incompatível, como se verá em seguida, com a noção de um Deus perfeito da qual
Malebranche, assim como Arnauld, compartilha.
Eis, portanto, as outras razões pelas quais Arnauld considera a consequência
representacionalista um contrassenso: uma retomada dos argumentos já discutidos das
intenções de Deus e da simplicidade das vias na criação, argumentos esses que são contra a
noção mesma de ideia como ente representativo, para demonstrar a incoerência total do
representacionalismo malebranchista diante da aceitação da existência de um ser perfeito como
Deus. Do ponto de vista da criação divina, não faz sentido que um ser perfeito tenha criado
almas com capacidade de perceber, as tenha unido a corpos, que existem em meio a outros
corpos que o atingem, provocando tanto o bem estar necessário para sua conservação, quanto
o sofrimento que pode resultar na sua corrupção; sem que ele tenha dado para as almas a
capacidade de perceber realmente o seu próprio corpo e todos os outros que o circundam, ou
190 « Il distingue regarder et voir. Il définit regarder, en disant que c’est seulement tourner nos yeux vers un objet : et il fait entendre que voir est apercevoir un objet par notre esprit. […] Il nous déclare donc que lorsque nous regardons notre corps, c’est-à-dire, lorsque nous tournons nos yeux vers lui, ce que nous voyons par notre esprit à l’occasion de ce regard n’est pas le corps que nous animons, mais que c’est un corps intelligible, qui, n’ayant rien de matériel, a pu être intimement uni à notre âme. Et que de même, quand nous regardons le soleil, en tournant les yeux vers lui, ce que nous voyons par notre esprit n’est pas le soleil matériel que Dieu a créé, mais un soleil intelligible » (VFI, 11, 97-98).
147
seja, não é razoável pensar que Deus tenha disponibilizado para a alma, nessas condições,
apenas a percepção de determinados entes representativos que substituem os verdadeiros
corpos, o verdadeiro mundo material criado, se é nesse mundo que as almas existem unidas a
seus corpos e lá precisam conservar sua integridade:
Deus, ao criar minha alma e colocá-la num corpo, quis que ela cuidasse da
conservação desse corpo [...] Ora, era necessário para isso que eu conhecesse o corpo
que eu animo e não um corpo inteligível, pois eu devo conhecer o corpo que eu devo
conservar; ora, não se trata de um corpo inteligível que eu devo conservar, mas o corpo
que eu animo (VFI, 11, 100)191.
Não é também coerente com um ser perfeito que ele tenha preferido só dar à alma a
capacidade de perceber certos seres representativos a dotá-la da capacidade de perceber
efetivamente o mundo material quando essa última opção denota uma maior simplicidade, sinal
de maior racionalidade e sabedoria, que são atributos de um ser perfeito. Dar a saber sobre o
mundo que cerca a alma incarnada por meio de determinados seres representativos que
apresentam para ela o que é esse mundo é desviar, voltear, complexificar a relação de percepção
de maneira incompatível com a natureza de Deus, que em sua perfeição e sapiência segue o
princípio de que a via mais simples e mais direta é a melhor via, pois é a mais racional e a mais
perfeita à medida que realiza algum efeito com menos “recursos”. Assim, se Deus poderia
garantir que a alma percebesse os corpos por eles mesmos, isto é, sem o intermédio de seres
representativos, como defende Arnauld, por que ele não o faria e relegaria a alma a um
conhecimento do mundo inteiramente mediado por ideias (entidades representativas) que fazem
o papel de objeto imediato da percepção com a função de apresentar para ela o que as coisas
são? Conforme Arnauld:
Ora, uma vez verdadeiro que isso que se faz tão facilmente e tão naturalmente na
suposição de que Deus tornou nossa alma capaz de conhecer os corpos materiais,
também poderia se fazer na outra suposição – de que ela não é capaz de conhecê-los,
mas somente de conhecer os corpos inteligíveis –, seria sempre necessário confessar
que isso não se faria, nessa última suposição, que por uma via não apenas muito menos
191 « Dieu, en créant mon âme, et la mettant dans un corps, a voulu qu’elle veillât à la conservation de ce corps […] Or il a été nécessaire pour cela que je connusse le corps que j’anime, et non un corps intelligible ; car je dois connaître le corps que je dois conserver ; or ce n’est point un corps intelligible que je dois conserver, mais le corps que j’anime » (VFI, 11, 100).
148
simples que a da primeira, mas que seria [uma via] seguramente muito confusa e muito
embaraçada (VFI, 11, 101)192.
Diante disso, compreende-se que a crítica de Arnauld à teoria da percepção de
Malebranche culmina, após exame e parecer contrários à necessidade da existência de ideias
que são entes representativos distintos do ato mental da percepção, na explicitação da
consequência representacionalista radical exposta anteriormente. Arrisca-se aqui a dizer que o
reconhecimento da forma do representacionalismo de Malebranche sintetiza grande parte das
preocupações teóricas de Arnauld com relação à teoria defendida na Recherche, III, II, 1-6
porque é essa forma de representacionalismo – que veta a possibilidade de que a alma perceba
efetivamente o mundo criado por Deus – que ele considera a consequência absurda a que se
refere no início do capítulo 11 de VFI: “nada pode convencer melhor um homem que raciocina
bem da falsidade de um princípio que quando esse princípio o conduz a erros totalmente
absurdos [...]” (VFI, 11, 95)193. Assim, considera-se aqui possível interpretar que o
representacionalismo de Malebranche é, para Arnauld, o principal alvo das críticas
empreendidas nos capítulos de VFI discutidos até aqui, pois é contra ele que todas as críticas
se voltam ao mesmo tempo que é ele (entendido como consequência absurda) que, em última
instância, denuncia a falsidade do princípio que embasa toda a teoria da percepção de
Malebranche.
3.5 Arnauld: realismo direto?
A crítica de Arnauld à concepção do representacionalismo na teoria da percepção de
Malebranche implica uma adesão a uma concepção realista direta da percepção por parte da
teoria defendida por Arnauld em sua obra intitulada Des vraies et des fausses idées? A presente
seção pretende expor, por meio de uma leitura atenta de passagens da referida obra de Arnauld,
alguns argumentos que sugerem que o objetivo do referido pensador ao elaborar sua crítica a
Malebranche não seria realizar um ataque integral a toda e qualquer concepção
representacionalista da percepção. Isso significa que a aspiração de Arnauld não vislumbraria,
192 « Or, quand il serait vrai que ce qui se fait si facilement et si naturellement dans la supposition que Dieu a rendu notre âme capable de connaître les corps matériels, se pourrait faire aussi dans l’autre supposition – qu’elles n’est point capable de les connaître, mais seulement de connaître des corps intelligibles –, il faudrait toujours avouer que cela ne se ferait dans cette dernière supposition que par une voie, non seulement biens moins simple que dans l’autre, mais qui serait assurément très brouillée et très embarrassée » (VFI, 11, 101). 193 « Rien ne peut convaincre davantage un homme qui raisonne bien de la fausseté d’un principe, que quand il le conduit dans des erreurs tout à fait absurdes […] » (VFI, 11, 95).
149
a princípio, desmantelar a compreensão de que o processo perceptivo envolve (de alguma
maneira) a noção de representação. A finalidade da crítica de Arnauld seria propriamente
apenas demonstrar que aquilo sobre o que se assenta o representacionalismo do tipo
malebranchista, a saber, a concepção de que as ideias são entidades representativas realmente
distintas e independentes das operações mentais, que estão em Deus, é falso e não merece
crédito de qualquer um que raciocine bem e a partir de princípios bem assegurados. Nesse
sentido, a posição contrária à concepção de ideia defendida por Malebranche não levaria
Arnauld necessariamente à defesa de um realismo direto na percepção, havendo espaço para a
interpretação da teoria da percepção de Arnauld como constituindo um representacionalismo,
mas de um tipo moderado tendo em vista aquele de Malebranche. Entretanto, como se verá ao
longo dessa seção, procedimentos argumentativos de Arnauld sugerem uma possível
negligência com relação ao conceito cartesiano de realidade objetiva que dá oportunidade à
interpretação realista direta da posição de Arnauld. Observe a passagem a seguir:
A princípio, parece que não se pode admitir como verdadeiras as seguintes formas de
falar: nós não vemos imediatamente as coisas, são suas ideias que são o objeto
imediato de nosso pensamento; e é na ideia de cada coisa que nós vemos suas
propriedades; sem que se seja obrigado a receber [aceitar] a Filosofia das falsas Ideias
[...] Eu não rejeito essas formas de falar. Eu creio que elas são verdadeiras quando são
bem entendidas. E eu posso mesmo concordar com essa última consequência. Mas eu
nego que se siga disso a obrigação de admitir outras ideias além daquelas que eu defini
no capítulo precedente, definições três, seis e sete, que não possuem nada em comum
com os seres representativos distintos de percepções, que são os únicos que combato,
como deixei claro particularmente na definição sete (VFI, 6, 72-73)194.
Segundo a exposição de Arnauld, aparentemente sua crítica ao representacionalismo
radical malebranchista não implica a defesa de um realismo direto porque, se é possível admitir
que as coisas não são imediatamente vistas, mas apenas suas ideias, isso significa que de alguma
maneira a visão, ou a percepção, que se tem das coisas é mediada por essas ideias. Note-se que
194 « Il semble d’abord qu’on ne peut admettre pour vraies ces façons de parler : Nous ne voyons point immédiatement les choses : ce sont leurs idées qui sont l’objet immédiat de notre pensée ; et c’est dans l’idée de chaque chose que nous en voyons les propriétés, qu’on ne soit obligé de recevoir la Philosophie des fausses Idées […] Je ne rejette point ces façons de parler. Je les crois vraies étant bien entendues. Et je puis même demeurer d’accord de cette dernière conséquence. Mais je nie qu’il s’ensuive de là qu’on soit obligé d’admettre d’autres idées que celles que j’ai définies dans le chapitre précédent, définitions trois, six et sept, qui n’ont rien de commun avec les être représentatifs distingués des perceptions, qui sont les seuls que je combats, comme je l’ai marqué particulièrement dans la définition sept » (VFI, 6, 72-73).
150
a concordância de Arnauld com a consequência de que é na ideia das coisas que as propriedades
delas são vistas parece reforçar ainda mais a perspectiva da mediação, via ideia, da percepção
das coisas externas ao pensamento. Pois, à medida que as ideias das coisas contêm de algum
modo as propriedades das coisas, torna-se um pouco mais claro como a percepção das coisas
criadas se dá mediada pelas ideias. O que se quer apontar aqui é que a noção de mediação na
percepção é de certa forma aclarada (ainda que não completa e satisfatoriamente) pelo
entendimento expresso na consequência admitida por Arnauld de que a ideia contém, de
determinado modo, as propriedades das coisas que representam; e é por esse motivo que a
percepção imediata das ideias seria, em última instância, a percepção mediada das coisas
criadas. Levando em consideração esses elementos, é possível interpretar a posição de Arnauld,
no que concerne à percepção, como admitindo um certo representacionalismo – e é esse o ponto
que se quer ressaltar nesse momento, mesmo sem a devida apresentação do que exatamente
consiste esse representacionalismo. O friso na possibilidade da admissão, por parte de Arnauld,
de que a percepção das coisas externas seja mediada por ideias diz respeito ao ponto mais
sensível a ser discutido nesse momento, que é mostrar como isso não conduz necessariamente
a uma teoria das ideias semelhante àquela de Malebranche. É dessa forma que se compreende
aqui que Arnauld encaminha a argumentação presente no início do capítulo seis de VFI: ao se
perguntar sobre se determinados modos de falar acerca da relação entre percepção e coisa
percebida implicam uma adesão tácita às teses malebranchistas da percepção, Arnauld diz não.
Compreende-se aqui que esse posicionamento visa a defender que uma noção de representação
como necessária para a percepção das coisas externas não conduz necessariamente a uma
concepção de ideia como entidade representativa realmente distinta da mente. Assim, Arnauld
sugere que é possível admitir um representacionalismo e negar que as ideias sejam do tipo
defendido por Malebranche, a saber, que elas sejam entes representativos distintos da
percepção.
Nesse contexto, Arnauld remete às definições três, seis e sete do capítulo 5 de VFI como
lugares da precisa compreensão do significado de ideia. Como visto, tratam-se das definições
que dão conta da noção de ideia como sendo a mesma coisa que a percepção, ou seja, como
sendo uma mesma modificação mental, que possui caráter essencialmente representativo, que
é, por isso, completamente diferente da noção de ente representativo como objetos realmente
distintos da mente, e que encerra dois aspectos: um que se refere à mente à medida que ela é
uma operação mental, e o outro que diz respeito à coisa percebida à medida que ela está por
representação na mente. Isso sugere que Arnauld não recusa simplesmente o
151
representacionalismo na percepção das coisas (como já apontado). Mas apenas que ele renega
uma determinada forma de representacionalismo resultante da concepção dos entes
representativos de Malebranche, como visto na seção anterior.
E aqui abre-se parêntesis para se considerar que é preciso que se examine e se pondere
bem o que significa esse tipo de representacionalismo que seria defendido por Arnauld, pois
ele precisa ser compatível com o contexto em que Arnauld define a noção de ideia pela noção
de ato de percepção (definição essa que ele faz com a finalidade de defender, contra
Malebranche, que as ideias não são distintas da percepção, ou seja, não são distintas do ato
perceptivo). Ora, conceber que haja, da forma como for, algum conteúdo representativo que
seja objeto imediato do ato de percepção, como ocorre num modelo representacionalista, parece
justamente a reprodução de uma teoria da percepção que Arnauld quer rejeitar. E isso pode ser
assim considerado porque a redução arnaldiana de ideia à noção de percepção sugere o
encerramento da dicotomia ato-conteúdo mental no processo perceptivo. Mais à frente esse
ponto será melhor elaborado.
Mas enfim, retomando a hipótese de que é apenas contra o representacionalismo de
Malebranche que Arnauld fala, é preciso apontar que, como está expresso no texto da definição
sete (VFI, 5, 68) e na parte final da passagem aqui anteriormente citada (VFI, 6, 72-73), são os
entes representativos malebranchistas – e suas consequências inadequadas, conclui-se aqui –
que são frontalmente combatidos por Arnauld; e, aparentemente, não a concepção de qualquer
teoria representacionalista da percepção. A passagem a seguir subsidia com mais detalhes essa
interpretação:
[...] toda percepção, sendo essencialmente representativa de alguma coisa e, segundo
isso chamando-se ideia, não pode ser essencialmente reflexiva sobre si mesma sem
que seu objeto imediato seja essa ideia, isto é, a realidade objetiva da coisa que meu
espírito é dito perceber; de forma que, se eu penso no sol, a realidade objetiva do sol,
que está presente para o meu espírito, é o objeto imediato dessa percepção; e o sol
possível ou existente, que está fora do meu espírito é seu objeto mediado, por assim
dizer. E dessa maneira vê-se que sem recorrer aos seres representativos distintos das
percepções, é muito verdadeiro nesse sentido que não apenas no que diz respeito às
coisas materiais, mas geralmente no que concerne a todas as coisas, são as nossas
ideias que nós vemos imediatamente e que são o objeto imediato de nosso
pensamento; o que não impede que nós vejamos também por essas ideias o objeto que
contém formalmente o que está apenas objetivamente na ideia, isto é, por exemplo,
152
que eu conceba o ser formal de um quadrado que está objetivamente na ideia, ou na
percepção, que eu tenho de um quadro (VFI, 6, 73-74)195.
Essa passagem retoma aquelas “formas de falar”, citadas no início dessa seção e que
indicariam a possibilidade da admissão de um tipo de representacionalismo, diferente do
malebranchista, por parte de Arnauld, como um corolário que se seguiria da própria concepção
de ideia defendida no capítulo 5 de VFI – uma vez que não supõe a distinção entre ideia e
percepção196 – associada ao caráter reflexivo inerente à percepções197. Dessa maneira,
considerando que “toda percepção é essencialmente representativa de alguma coisa”, isto é, é
uma ideia de alguma coisa; e que elas são “essencialmente reflexivas sobre si mesmas”, isto é,
são acompanhadas inerentemente por uma consciência de que e do que se percebe, isto é, uma
consciência de que se tem uma ideia e do que é essa ideia, é necessário concluir que o objeto
imediato de toda percepção é a própria ideia que se tem de alguma coisa, é aquilo que é
representado pela ideia na consciência, é a representação de alguma coisa.
Segundo Arnauld, “[...] nosso pensamento ou percepção é essencialmente reflexivo
sobre si mesmo [...]” (VFI, 6, 73)198, isso significa que o ato mental de perceber alguma coisa
nunca vem desacompanhado de uma reflexão sobre si mesmo, ou seja, de uma consciência
sobre esse ato. Ora, a consciência da percepção exige que seu objeto imediato seja a própria
percepção, pois a percepção não poderia ser essencialmente reflexiva se não tivesse a si mesma
como seu objeto imediato. Isso permite que se possa compreender a partir do que aqui se chama
de a forma linguística da percepção intencional, que aqui se expressará como ‘eu percebo x’,
que ela deve vir sempre com a seguinte forma: ‘eu sei que percebo x’, onde ‘eu sei que...’
representa a consciência necessária que acompanha os atos mentais de percepção, segundo
Arnauld. O objeto imediato dessa percepção necessariamente acompanhada por uma reflexão
195 « […] toute perception étant essentiellement représentative de quelque chose, et selon cela s’appelant idée, elle ne peut être essentiellement réfléchissante sur elle-même, que son objet immédiat ne soit cette idée, c’est-à-dire la réalité objective de la chose que mon esprit est dit apercevoir : de sorte que, si je pense au soleil, la réalité objective du soleil, qui est présente à mon esprit, est l’objet immédiat de cette perception ; et le soleil possible ou existant, qui est hors de mon esprit, en est l’objet médiat, pour parler ainsi. Et ainsi l’on voit que sans avoir recours à des êtres représentatifs, distingués des perceptions, il est très vrai en ce sens que non seulement au regard des choses matérielles, mais généralement au regard de toutes choses, ce sont nos idées que nous voyons immédiatement, et qui sont l’objet immédiat de notre pensée : ce qui n’empêche pas que nous ne voyions aussi par ces idées l’objet, qui contient formellement ce qui n’est qu’objectivement dans l’idée : c’est-à-dire, par exemple, que je ne conçoive l’être formel d’un carré, qui est objectivement dans l’idée ou la perception que j’ai d’un carré » (VFI, 6, 73, 74). 196 Como apontado no parágrafo precedente, a compatibilidade da noção de ideia defendida por Arnauld com alguma forma de representacionalismo não é óbvia e precisa ser examinada. Propor-se-á mais à frente uma consideração sobre esse ponto. 197 Cf. VFI, 6, 73: sobre a reflexão virtual e a reflexão expressa. 198 « […] notre pensée ou perception est essentiellement réfléchissante sur elle-même […] » (VFI, 6, 73).
153
(‘eu sei que percebo x’) é a própria percepção de x à medida que se trata de um aperceber-se,
que é direto, da operação mental que representa alguma coisa na mente – coisa essa que seria,
em última instância, percebida, conhecida, atingida indiretamente pela percepção. Nesse
sentido, porque a percepção ou ideia é sempre a consciência de que alguma coisa é representada
no intelecto, o seu objeto imediato parece ser sempre o que é exibido ou representado no
intelecto por essa operação mental, isto é, aquilo que Arnauld chama de “realidade objetiva da
coisa que o espírito é dito perceber”. Assim, o que é sugerido por Arnauld nessa passagem é
que toda vez que se pensa em alguma coisa, isto é, que se é consciente de que se pensa em
alguma coisa, o objeto imediato desse pensamento é a própria operação mental de exibir alguma
coisa no intelecto, que remete ou aponta para alguma coisa, meramente possível ou mesmo
existente, que não se reduz apenas a essa operação do pensamento, mas que é mediada por ela.
É possível considerar nessa passagem que um ponto importante para Arnauld é mostrar
que o objeto imediato da percepção, que é sempre reflexiva, é a própria operação mental da
percepção à medida que ela exibe, ou representa, no intelecto a realidade objetiva do objeto
percebido. Sendo assim, entende-se que o objeto imediato da percepção consiste em uma
representação (que dá ao intelecto alguma coisa determinada a ser pensada, ou conhecida) dada
por uma operação mental de caráter representativo199 que não necessita, dessa maneira, de
nenhuma recorrência a nenhum tipo de entidade representativa separada, ou independente da
mente, isto é, que prescinde de qualquer tipo de ser representativo que seja realmente distinto
da própria percepção enquanto uma modificação mental. Dessa maneira, parece ser reforçada
por essa passagem a leitura de que o objetivo de Arnauld é mostrar a prescindibilidade dos seres
representativos de Malebranche na consideração do fenômeno da percepção; e, como
consequência disso, mostrar também a completa inadequação do tipo radical de
representacionalismo suscitado pela noção de ser representativo em questão. Em resumo,
Arnauld visaria apenas a atacar o modelo representacionalista de Malebranche e não
exatamente operar, como já dito anteriormente, uma destruição de toda e qualquer concepção
representacionalista, o que sugere, finalmente, que Arnauld poderia admitir um tipo mais
moderado de representacionalismo em sua teoria da percepção, e, por consequência, não dar
adesão a um realismo direto. Discutir-se-á ao fim dessa seção em que medida esse tipo de
199 O caráter representativo da percepção constitui uma marca essencial dela e é defendido por Arnauld na definição de número sete em VFI, 5, 68. Esse caráter essencialmente representativo da percepção, que é uma operação da mente, trata-se talvez da principal divergência de Arnauld com Malebranche no que diz respeito à teoria da percepção, pois enseja, como visto, importantes diferenças de interpretação acerca do que é e como se processa a percepção.
154
representacionalismo moderado sugerido por Arnauld é adequado tendo em vista sua
concepção de que a ideia e a percepção constituem a mesma modificação mental.
Num conhecido artigo intitulado “‘Representative ideas’ in Malebranche and
Arnauld”, Arthur Lovejoy (1923) apresenta leitura semelhante acerca dos objetivos de Arnauld
em sua crítica a Malebranche. Para ele, a disputa entre Arnauld e Malebranche diz respeito
propriamente a se atos mentais podem ser representativos de objetos materiais ou não; não
tendo o seu foco, portanto, a ver com a admissibilidade ou não da ocorrência de representação
no contexto da percepção de objetos externos à mente. Segundo ele, que a representação está
implicada no processo de percepção das coisas externas é um fato admitido tanto por Arnauld,
quanto por Malebranche, sendo o ponto de discordância entre eles localizado no fato de que
enquanto para Malebranche essa representação só pode ocorrer em uma entidade representativa
independente da mente, Arnauld considera que ela é dependente da mente, pois é resultado de
um ato, ou modificação da mente. Dessa forma, pode-se compreender que Lovejoy concorda e
sustenta a interpretação anunciada acima de que Arnauld não propõe em sua crítica à teoria da
percepção malebranchista uma condenação irrestrita da perspectiva representacionalista, mas
apenas combate sua versão radical, visto que ela se assenta em bases questionáveis:
Assim, ambos na disputa concordavam que o tema em discussão não era se “êtres
représentatifs” de algum tipo estavam envolvidos na nossa apreensão de objetos
físicos, mas se os “êtres représentatifs” em que ambos acreditavam ser indispensáveis
eram, como Malebranche compreende, “être représentatifs distingués des
perceptions” (isto é, eram entidades lógicas objetivas, ou essências), ou eram, como
Arnauld sustentava, idênticas com nossas percepções enquanto estados subjetivos. A
questão crucial era, como Arnauld afirmava e Malebranche negava, se estados
subjetivos podem ser “representativos” de reais físicos [realidades físicas]
(LOVEJOY, 1923, p. 452-453)200.
Lovejoy (1923, p.454-455) avança e sofistica sua interpretação a fim de explicar em que
sentido Arnauld entende o que é percepção e em que medida ela é, enquanto modificação
mental, representativa. A questão para ele é entender se a percepção, ou a ideia (que consistem
200 “Thus it was agreed by both disputants that the issue under discussion was not whether ‘êtres représentatifs’ of some kind are involved in our apprehension of physical objects, but whether the ‘êtres représentatifs’ which both believed to be indispensable were, as Malebranche held, ‘êtres représentatifs distingués des perceptions’ (i.e, were objective logical entities, or essences), or were, as Arnauld maintained, identical with our perceptions as subjective states. The crucial question was whether, as Arnauld affirmed and Malebranche denied, subjective states can be ‘representative’ of physical reals” (LOVEJOY, 1923, p. 452-453).
155
no mesmo fenômeno, segundo Arnauld), é um ato mental ou um conteúdo mental. Segundo
ele, a definição seis do capítulo cinco de VFI parece indicar um reconhecimento por parte de
Arnauld da distinção entre ato mental e conteúdo mental que serve de argumento para uma
leitura realista direta à medida que se poderia concluir dessa distinção que Arnauld toma a
percepção, ou a ideia, como um ato da mente, de maneira que seu conteúdo só poderiam ser as
coisas mesmas – já que não há para Arnauld a dicotomia percepção-ideia no processo
perceptivo. Como já visto, a definição a que se refere indica um reconhecimento por parte de
Arnauld de que a percepção é um tipo de modificação mental que encerra duas relações
distintas, a saber, quando a percepção refere-se à mente que ela modifica trata-se de um ato
mental; e quando a percepção refere-se à coisa percebida trata-se de um conteúdo. Como toda
percepção diz respeito ao mesmo tempo a um ato mental e a um conteúdo percebido, e, segundo
Lovejoy, essas duas coisas podem ser interpretadas como fenômenos totalmente distintos a
partir da definição de Arnauld, a interpretação realista direta compreendeu que se o conteúdo é
distinto do ato mental e esse conteúdo refere-se às coisas, a percepção-ideia é o ato ou função
mental de apreender as coisas elas mesmas. Nesse caso a percepção-ideia seria um ato mental
que se refere sempre à mente que modifica e à coisa que percebe; mas como ato parece ser lido
nesse realismo direto como separado do conteúdo (e não apenas como distinto, como Lovejoy
proporá), percepção-ideia envolve aquilo que é percebido não na forma de um conteúdo mental,
mas diretamente como a coisa externa. Ressalta-se aí nessa interpretação realista direta uma
compreensão de base de que o modo mental ao qual Arnauld refere-se ao tratar da percepção-
ideia deve ser ou uma operação da mente ou um conteúdo, de forma que se a percepção-ideia é
referida à mente como um ato (isto é, como modo da mente ela é um ato), então esse conteúdo
a que ela se refere, ele mesmo, não pode ser o que marca a modificação mental, sendo tomado,
então, como o objeto externo diretamente percebido201.
Entretanto, Lovejoy recusa que essa seja a interpretação mais adequada do texto porque,
além de Arnauld não dizer categoricamente nos textos analisados que os objetos externos à
mente são percebidos diretamente sem nenhuma mediação (na verdade, ele diz o contrário no
201 Lovejoy não desenvolve em seu artigo essa explicação sobre como uma aparente distinção entre ato mental e conteúdo mental constante da definição seis, capítulo cinco de VFI serviria de suporte para uma interpretação realista direta que ele atribui a Mr. Dawes Hicks. A interpretação constante nesse texto foi desenvolvida por mim na tentativa de compreender o argumento de Lovejoy contrário à posição realista direta. A conclusão a que cheguei é que para ele a interpretação (equivocada) de que ato mental e conteúdo mental são coisas não apenas distintas, mas separadas, estaria na base da leitura realista direta da teoria da percepção de Arnauld. Isso porque a percepção, enquanto ato mental, é a marca da modificação mental quando a mente percebe alguma coisa. Ainda que esse ato tenha a função de apreender algum conteúdo como objeto percebido, esse conteúdo não pode ser uma modificação mental, restando para o realismo direto a conclusão de que o conteúdo apreendido é a própria coisa externa à mente.
156
capítulo seis de VFI, como visto acima); o texto da definição nove do capítulo cinco de VFI
apresenta, segundo ele, uma compreensão de percepção, ou ideia, como conteúdo mental, isto
é, um entendimento aparentemente distinto daquele que afirma que a percepção é um ato da
mente. Diz-se aqui aparentemente, pois como se verá, a interpretação de Lovejoy do que é a
percepção é aquela que congrega na mesma modificação mental um ato e um conteúdo. Mas,
além dessas razões contra a interpretação realista direta, Lovejoy oferece mais duas: 1) a tese
de que a percepção é um evento mental, o que implica que o modo de ser da percepção é tão
completamente distinto da realidade material externa ao pensamento que ocasiona problemas
para a compreensão de como se daria uma apreensão mental direta de objetos físicos; e 2) a
tese de que esse modo mental da percepção é essencialmente representativo.
Tendo em vista os indícios de que a leitura realista direta é equivocada (leitura essa que
reduz percepção-ideia exclusivamente a um ato mental), questiona Lovejoy, por que motivo
Arnauld, que parece admitir na definição seis como coisas distintas o par ato mental e conteúdo
mental, considera que o fenômeno da percepção-ideia não envolve duas entidades (a mente que
se modifica e determinados objetos [representativos] distintos dessa modificação), mas sim
apenas uma única modificação? Porque, segundo Lovejoy, a interpretação mais adequada da
definição seis, acima explicitada, é aquela que considera que essa única modificação mental
possui duas relações implícitas. Como Arnauld admite que há modificações mentais que são
representativas de coisas distintas da mente – o que Malebranche recusa como sendo um
problema – ele precisa explicar isso da seguinte forma: a modificação mental representativa
guarda uma peculiaridade, pois ela é ao mesmo tempo um modo dependente da mente que
aponta ou indica alguma coisa exibida ou representada na mente e que, no entanto, é diferente
da mente. Dessa forma, o conteúdo representativo da percepção parece ser o resultado da função
representativa do modo da mente em questão (a percepção). Nesse contexto, o conteúdo não
consiste numa outra coisa independente da mente, como supõem tanto Malebranche quanto
aqueles partidários de uma interpretação realista direta de Arnauld. É conveniente ressaltar aqui
que a dificuldade dos realistas diretos, pela interpretação feita aqui de Lovejoy, é em aceitar
que um modo da mente possa ser ao mesmo tempo ato e conteúdo; por isso, para eles, a
percepção é um ato e seu conteúdo são as coisas externas à mente. No fim das contas, a lógica
do realismo direto parece assemelhar-se muito àquela de Malebranche, estando a diferença de
compreensão apenas no que diz respeito ao status ontológico do que é percebido: seres
representativos ou as coisas mesmas. Assim, segundo Lovejoy, a dualidade que Arnauld
pretende negar na percepção não é aquela entre conteúdo representativo e as coisas externas à
157
mente, que seria uma negativa própria da interpretação realista direta de Arnauld; mas sim a
dualidade entre o ato mental perceptivo e o conteúdo representativo distinto, separado,
independente da mente, que seria a motivação da sua crítica a Malebranche. Dessa maneira,
entende-se aqui que a interpretação de Lovejoy corrobora significativamente a leitura de que a
crítica arnaldiana aos seres representativos de Malebranche não implica a defesa de um realismo
direto.
Denis Moreau (1999, p. 144-146), em seu livro sobre a polêmica entre Arnauld e
Malebranche, também se filia à interpretação de que Arnauld não rejeita a noção e o papel da
representação como necessários para a percepção. Em acordo com Lovejoy (1923), Moreau
classifica Arnauld como um filósofo da representação, assim como o é Malebranche, pois,
segundo ele, a função representativa da percepção-ideia não é jamais questionada. Ao contrário,
ela é tomada como o ponto de partida segundo o qual se pode compreender o que é a ideia, pois
a representação é constitutiva da ideia e de nada serviria procurar o porquê, já que se trata de
algo primitivo. Como sustentação, Moreau aponta parte da definição oito do capítulo cinco de
VFI, a saber,
[...] Pois, no que concerne às ideias, [representação] quer dizer que as coisas que nós
concebemos estão objetivamente no nosso espírito e no nosso pensamento. Ora, essa
maneira de ser objetivamente no espírito é tão particular ao espírito e ao pensamento,
como sendo aquilo que compõe sua natureza, que em vão procurar-se-á algo de
semelhante em tudo o que não é espírito e pensamento. E, como já notei, foi isso que
embaralhou todo esse tema das ideias: disso que se quis explicar, por comparações
feitas com as coisas corporais, a maneira pela qual os objetos são representados por
nossas ideias, ainda que não pudesse haver acerca disso nenhuma relação verdadeira
entre os corpos e os espíritos (VFI, 5, 68)202.
Se a representação, ou a maneira de ser objetivamente no pensamento, é algo próprio e
particular que estabelece, forma a natureza do pensamento, está-se tratando de algo que é básico
e primitivo naquilo que o pensamento é: pensar é representar. Tentar explicá-la a partir de outra
coisa que não o pensamento é equivocado e inútil, já que não se pode explicitar a natureza do
202 « […] Car, au regard des idées, cela veut dire que les choses que nous concevons sont objectivement dans notre esprit et dans notre pensée. Or cette manière d’être objectivement dans l’esprit est si particulière à l’esprit et à la pensée, comme étant ce qui en fait la nature, qu’en vain on chercherait rien de semblable en tout ce qui n’est pas esprit et pensée. Et c’est, comme j’ai déjà remarqué, ce qui a brouillé toute cette matière des idées, de ce qu’on a voulu expliquer, par des comparaisons prises des choses corporelles, la manière dont les objets sont représentés par nos idées, quoiqu’il ne puisse y avoir sur cela aucun vrai rapport entre les corps et les esprits » (VFI, 5, 68).
158
pensamento a partir do que é corpóreo. Assim, seguindo o raciocínio indicado por Moreau,
como representar é a natureza da ideia (ideia é representação) e pensar é ter ideias, trata-se
portanto de um postulado, um conhecimento primeiro e indiscutível, que o que o pensamento
faz é representar.
Dessa maneira, esse posicionamento em defesa do caráter representativo das ideias
como constitutivo de sua natureza permite a leitura de que também Moreau discorda da tese da
adesão arnaldiana à concepção da teoria da percepção como um realismo direto. Como se pode
notar, Moreau, assim como Lovejoy, reconhece que o objetivo de Arnauld é apenas minar a
concepção malebranchista de ideia e não atacar toda forma de representacionalismo:
[...] quando Arnauld escreve que se pode provar “a falsidade das Ideias tomadas como
seres representativos” (VFI, 5, 66)203, ele ataca talvez isso que são as ideias em
Malebranche, provavelmente ao que o Oratoriano pensou sobre seu ser, mas
certamente não [ataca] a função representativa dessas ideias (MOREAU, 1999, p.
146)204.
Moreau (1999, p. 149-153) considera que é preciso explicar, e qualificar em que medida,
por que a defesa de que Arnauld é um filósofo da representação dá a ele o status de
representacionalista. Pode-se dizer, de forma geral, segundo a interpretação que Moreau faz de
Arnauld, que isso se deve à leitura de que não há uma relação direta entre a mente que percebe
e a coisa percebida, visto que essa relação é mediada pela representação operada pela
percepção-ideia, que consiste na natureza das modificações mentais que possuem uma maneira
de ser objetiva, isto é, são objetivamente na mente a exibição de alguma coisa como objeto para
a mente que percebe.
Contudo, com a finalidade de tornar a interpretação mais clara acerca do que significa
a mediação entre a percepção e a coisa percebida realizada pela representação, Moreau avalia
que é preciso comentar uma importante passagem do texto de Arnauld que é responsável por
fornecer subsídios para uma interpretação da teoria da percepção arnaldiana à luz de uma
concepção realista direta, que é contraditória com a posição que ele defende. Eis a passagem:
“[...] [é] imediatamente que nós podemos conhecer as coisas materiais tanto quanto Deus e
203 Essa referência ao texto de Arnauld, feita originalmente por Moreau, foi aqui adaptada tendo em vista a edição da obra de Arnauld utilizada por mim nessa tese. 204 « […] lorsqu’Arnauld écrit qu’on peut prouver « la fausseté des Idées prises comme des êtres représentatifs » (VFI, 5, 66), il s’en prend peut-être à ce que sont les idées chez Malebranche, probablement à ce que l’Oratorien a pensé de leur être, mais sûrement pas à la fonction représentative de ces idées » (MOREAU, 1999, p.146).
159
nossa alma, isto é, que nós podemos conhecê-los sem que haja qualquer meio entre nossas
percepções e o objeto (VFI, 6, 79)”205. Aparentemente, nessa passagem Arnauld defende uma
posição totalmente oposta a que se tem visto até esse momento da exposição à medida que fala
em conhecimento imediato das coisas materiais e na inexistência de qualquer meio, ou
intermédio, entre a percepção e o objeto. Entretanto, ao se olhar para o contexto do qual essa
passagem foi retirada poder-se-á notar que ela fala em conhecimento imediato das coisas
materiais tendo em vista a oposição entre conhecimento imediato das coisas criadas e
conhecimento mediado pelas ideias como elas são compreendidas por Malebranche, ou seja,
como certos seres representativos realmente distintos da mente. Essa passagem encontra-se no
meio de uma discussão em que Arnauld está qualificando o sentido da palavra ‘imediatamente’
e visa a concluir que se pela noção de meio, ou de intermediário, compreende-se a existência
de entidades representativas distintas da percepção, então a percepção das coisas deve ser
concebida como imediata, isto é, sem o intermédio de tais entes representativos. Entretanto,
isso não exclui, segundo Arnauld, a compreensão de que a percepção se dá por meio das ideias
tais como elas são definidas por ele mesmo, isto é, como já dito mais acima, como modificações
mentais que estão objetivamente, ou por representação, na mente:
[...] se por conceber imediatamente o sol, um quadrado, um número cúbico,
compreende-se aquilo que é oposto a concebê-los por meio das ideias, tais quais eu as
defini no capítulo precedente, isto é, como ideias não distintas das percepções, eu
permaneço de acordo com que nós não os vemos imediatamente, pois é mais claro
que o dia que nós só podemos vê-los, percebê-los, conhecê-los pelas percepções que
temos deles, seja da maneira que for que nós as tenhamos (VFI, 6, 79)206.
A interpretação de Moreau acerca desse contexto procura mostrar que os realistas
diretos atêm-se às concepções de Arnauld acerca da percepção e da ideia principalmente no que
essas concepções dizem respeito à inexistência de alguma outra coisa entre o pensamento (e
suas modificações) e as coisas percebidas. Como se tem visto ao longo do capítulo, a recusa
205 « […] [c’est] immédiatement que nous pouvons connaître les choses matérielles aussi bien que Dieu et notre âme, c’est-à-dire que nous les pouvons connaître sans qu’il y ait aucun milieu entre nos perceptions et l’objet » (VFI, 6, 79). 206 « […] si par concevoir immédiatement le soleil, un carré, un nombre cubique, on entend ce qui est opposé à les concevoir par le moyen des idées, telles que je les ai définies dans le chapitre précédent, c’est-à-dire, par des idées non distinctes des perceptions, je demeure d’accord que nous ne les voyons point immédiatement ; parce qu’il est plus clair que le jour que nous ne les pouvons voir, apercevoir, connaître, que par les perceptions que nous en avons, de quelque manière que ce soit que nous les ayons » (VFI, 6, 79).
160
arnaldiana da tese malebranchista da existência de terceiras entidades na relação entre
percepção e coisa percebida, é, na realidade, a defesa de que, no que concerne à percepção,
apenas o pensamento e as coisas criadas por Deus são os termos da relação de percepção; não
havendo, portanto, nada entre a mente e as coisas percebidas. Tendo isso em vista, é bom que
se diga que a atenção dos realistas diretos sobre essas concepções de Arnauld ressalta a falta de
intermediários de um ponto de vista substancial, isto é, no que concerne à concepção de que na
percepção só há duas substâncias envolvidas – a mente que percebe e a coisa (externa)
percebida. Para eles, todo o contexto da discussão de Arnauld sobre o sentido do termo
‘imediatamente’ é lido sob a ótica da distinção real entre as substâncias envolvidas na
percepção. Ao fazerem isso, os realistas diretos permitem-se concluir que, como entre a mente
que percebe e a coisa percebida não há uma terceira coisa, uma terceira substância, então a
percepção das coisas se dá de forma direta ou imediata.
Entretanto, Moreau lembra que, para além das distinções reais entre a percepção e a
coisa percebida priorizadas na compreensão realista direta da percepção, há outras formas de
distinção, como as modais, que precisam ser consideradas a fim de se produzir uma explicação
mais precisa do processo perceptivo, por um lado; e a fim de tornar inteligível e não
contraditório todo o contexto da discussão sobre o significado da palavra ‘imediatamente’, por
outro lado. Nesse sentido, ainda que possa ser um consenso a defesa de Arnauld de que não há
uma terceira substância envolvida na percepção, não se deve ignorar que entre a mente que
percebe e a forma particular dessa percepção há uma distinção de tipo modal à medida que a
mente percebe alguma coisa mediante um tipo de modificação específica de sua natureza, que
é a ideia. Segundo Moreau, essa ideia é tanto algo distinto da coisa externa de que ela é ideia,
uma vez que são coisas de natureza diferentes, quanto da mente da qual ela é uma modificação,
já que ela não define a essência da mente, pois é apenas uma modificação que não determina
completamente a natureza da mente. Dessa maneira, é razoável compreender que entre as duas
únicas substâncias envolvidas na percepção (a mente e a coisa percebida) existe, não um
terceiro ente, mas sim um processo perceptivo dado por um tipo particular de modificação
mental sem a qual não se poderia pensar ou perceber alguma coisa – esse processo perceptivo
pode ser apontado aqui justamente como a exibição ou a representação na mente, feita pela
ideia, de um conteúdo determinado. É a isso que Arnauld se refere quando diz, como explicitado
em citação feita acima, que se por conhecer alguma coisa imediatamente significa conhecê-la
independentemente da sua ideia (quando ideia, ou percepção, é compreendida como a
modificação mental responsável por dar a conhecer, exibir, representar a coisa à mente) então
161
é apenas por intermédio de ideias que se pode conhecer ou perceber alguma coisa207. Dessa
forma, é preciso esclarecer que a relação entre a mente que percebe e a coisa que é percebida
não pode ser considerada imediata, pois passa necessariamente pela mediação de um modo
mental responsável por representar a coisa para a mente. Sendo assim, entende-se aqui
juntamente com Moreau, que ignorar que seja através de um modo específico da mente, cuja
função é determinar um conteúdo, que se possa dizer que a mente percebe alguma coisa, é
desconsiderar um elemento importante do processo perceptivo sem o qual sua compreensão
pode permanecer obscura. Pois, o que seria propriamente a percepção imediata, direta de um
objeto, excluído o papel de intermediação desse modo mental pelo qual alguma coisa pode ser
dada a ser pensada, conhecida, ou percebida pela mente? Seria o contato direto entre a mente e
as coisas externas? E como se processaria um contato direto entre a mente e as coisas materiais?
Enfim, questões que o realismo direto deve responder a fim de esclarecer o que parecem
dificuldades importantes208.
Em resumo, alinhado com a interpretação exposta, entende-se aqui que o aparente uso
contraditório do termo ‘imediatamente’ visa apenas a explicitar a recusa de Arnauld de que a
percepção envolva necessariamente uma terceira substância intermediária entre a mente e a
coisa percebida. É por isso que no espaço de poucas linhas é dito tanto que o conhecimento das
coisas materiais não se dá imediatamente, quanto que ele se o dá. Isso porque Arnauld quer
frisar que, do ponto de vista substancial, os termos envolvidos na percepção são apenas dois; e,
por isso, num contexto em que se sugere que a percepção é mediada por uma ideia, tomada
como uma terceira substância, é preciso que se reforce que essa mediação não existe, pois a
percepção das coisas é imediata entre a mente e a coisa, ou seja, sem a interferência de uma
outra entidade. Agora, no contexto em que ideia é concebida como modificação mental, então
a percepção tem de ser dita mediada, pois ela o é por essa modificação representativa da mente
que não se confunde com a coisa percebida e não se reduz à mente. Desse modo, se para Arnauld
o conhecimento, ou a percepção que se tem das coisas, é necessariamente mediado pela ideia
dessas coisas, então é legítimo tomá-lo como um representacionalista, ainda que de um tipo
207 “[...] se por conceber imediatamente o sol, um quadrado, um número cúbico, compreende-se aquilo que é oposto a concebê-los por meio das ideias, tais quais eu as defini no capítulo precedente, isto é, como ideias não distintas das percepções, eu permaneço de acordo com que nós não os vemos imediatamente, pois é mais claro que o dia que nós só podemos vê-los, percebê-los, conhecê-los pelas percepções que temos deles, seja da maneira que for que nós as tenhamos” (VFI, 6, 79). 208 Mais à frente falar-se-á sobre aspectos da leitura realista direta da teoria da percepção de Arnauld apenas sob a ótica da interpretação que alguns autores, como Ong-Van-Cung e Nadler, fazem das passagens aqui discutidas do capítulo seis de VFI. Infelizmente, não se dedicará a explicitar as eventuais soluções que o realismo direto propõe para questões dessa natureza.
162
distinto daquele de Malebranche. É interessante apontar que essa leitura representacionalista da
concepção de Arnauld sobre a percepção aproxima-se da interpretação que se defenderá no
último capítulo acerca da teoria cartesiana da percepção. E nessa perspectiva, Arnauld poderia
ser tomado como aquele que elabora melhor os elementos envolvidos na teoria de Descartes.
Entretanto, como se verá na sequência, é preciso considerar com mais atenção um aspecto
ressaltado por autores que entendem a posição de Arnauld como um realismo direto. Com isso
pretende-se jogar luz sobre uma questão acerca do significado da redução da noção de ideia,
como conteúdo representativo, à noção de ato mental que não pode ser ignorado, mesmo
quando a interpretação de Arnauld como representacionalista parece muito convincente.
Assim sendo, a leitura apresentada até aqui corrobora a admissão de um
representacionalismo em Arnauld. Entretanto, há autores que leem toda a passagem que foi
discutida do capítulo seis de VFI como indicando apenas uma tentativa arnaldiana de conciliar
sua teoria da percepção com um vocabulário representacionalista de uso corrente entre os
cartesianos. Mas para esses autores o que Arnauld faz é demonstrar uma trivialidade na
conciliação dessa forma representacionalista de falar com o que seria sua perspectiva realista
direta. A trivialidade estaria presente porque o que Arnauld diria em toda essa passagem é que
a percepção das coisas é mediada pela percepção que se tem das coisas. Há aspectos presentes
em toda a argumentação, exposta até aqui, em defesa do representacionalismo na teoria da
percepção de Arnauld que são interpretados ou ressaltados de um outro modo por alguns
defensores do realismo direto. Notadamente, aspectos que dizem respeito a passagens em que
Arnauld define ideia e percepção como o mesmo tipo de modificação mental, e também a
consideração do papel central da ideia, ou percepção, no processo perceptivo (visto acima como
sendo uma importante fonte para a defesa do representacionalismo de Arnauld). Para esses
realistas diretos, a definição da ideia-percepção como um único modo mental implica que essa
modificação mental trata-se de um ato e não de um conteúdo mental (como supõe, de certa
maneira, Lovejoy e Moreau), de modo que reforçar o papel central da ideia no processo
perceptivo, a saber, afirmar que a percepção das coisas se realiza através das ideias, seria apenas
uma constatação trivial de Arnauld de que as coisas são percebidas necessariamente por meio
de um ato mental, que é a percepção.
Segundo a interpretação de Kim Sang Ong-Van-Cung em “L’objet de nos pensées:
Descartes et l’intentionnalité” (2012, p. 205-206), o que Arnauld pretende frisar – na
passagem em questão, na qual ele reforça que é pelas ideias que as coisas são concebidas – não
é que a ideia seja o objeto da percepção, no sentido de ser um intermediário entre a mente e a
163
coisa percebida, mas sim que ela é a percepção pela qual uma coisa é percebida. Dessa forma,
a ideia, que em sentido habitual, para Arnauld, não é realmente distinta da percepção, constitui
apenas o ato pelo qual a mente percebe alguma coisa. Em resumo, a ênfase de Arnauld na
centralidade da ideia no processo perceptivo vista no capítulo seis de VFI teria apenas a função
de esclarecer que isso não significa nada além de que é pela ideia, ou percepção, que se tem
ideia, ou percepção, de alguma coisa – não havendo, portanto, nenhuma defesa de que a
percepção seja intermediada por alguma coisa, mas, ao contrário, uma explicitação de que a
percepção das coisas se dá diretamente:
A percepção do espírito é, no sentido ordinário do termo, direta. Mas pode-se dizer
das ideias, ou percepções, no entanto, que elas são os meios de perceber os objetos
externos, mas não no sentido em que existiria um meio intermediário entre nossas
percepções e o objeto, pois as ideias não são aquilo que percebemos, mas as
percepções pelas quais nós percebemos as coisas físicas (ONG-VAN-CUNG, 2012,
p. 205-206)209.
Essa interpretação de Ong-Van-Cung dialoga com a leitura de Steven Nadler em
“Arnauld and the Cartesian philosophy of ideias” (1989, p.108-115), que, de forma mais
desenvolvida, procura mostrar o caráter trivial da afirmação arnaldiana de que é por meio das
ideias que as coisas são percebidas, concebidas, vistas etc. Segundo Nadler, dada a rejeição de
Arnauld da existência de uma terceira entidade entre a mente que percebe e a coisa percebida;
e dada a definição de ideia como constituindo o mesmo modo mental que a percepção – o que,
segundo Nadler, significa que a ideia é, para Arnauld, idêntica ao ato de perceber –, é preciso
concluir que as únicas coisas envolvidas na percepção são a mente e a coisa percebida, de modo
que não há nada que medeie o processo perceptivo. É essa lógica de interpretação do processo
perceptivo do ponto de vista das substâncias envolvidas nele (bem explícita em Nadler) que foi
apontada por Moreau (como visto anteriormente nessa seção) como constante da interpretação
realista direta feita da teoria da percepção de Arnauld. Entretanto, é preciso que se diga que, o
que é destaque nessa interpretação não é o suposto esquecimento (proposital ou não) das
distinções modais constituintes da substância pensante, como parece ser para a interpretação de
Moreau acerca da interpretação realista direta. Mas sim, o fato de, para Nadler, a distinção
modal entre a mente e a ideia, ou percepção, não acrescentar nada a mais ao processo
209 « La perception de l’esprit est, au sens ordinaire du terme, directe. Mais on peut dire néanmoins des idées, ou perceptions, qu’elles sont les moyens de percevoir les objets externes, mais non au sens où il existerait un milieu intermédiaire entre nos perceptions et l’objet, car les idées ne sont pas ce que nous percevons, mais les perceptions par lesquelles nous percevons les choses physiques » (ONG-VAN-CUNG, 2012, p. 205-206).
164
perceptivo, como é sugerido tanto por Moreau quanto por Lovejoy – para quem a ideia se trata
de um modo mental que, ao envolver um conteúdo representativo, incrementa o processo
perceptivo, que se volta para esse conteúdo como o objeto imediato da percepção. Como Nadler
compreende que a definição de ideia feita por Arnauld acaba por conferir a ela o status de ato
mental, é necessário concluir, segundo ele, que ao dizer que as coisas são vistas por meio das
ideias, Arnauld está apenas dizendo que a mente percebe as coisas através do ato de ter ideias,
o que significa, em última instância, perceber, isto é, que a mente percebe as coisas através do
ato da percepção. Não há nesse contexto uma defesa de que as ideias são objetos imediatos da
percepção, mas apenas a observação de que elas são a via pela qual a mente percebe as coisas210.
Nesse sentido, não sobra espaço na interpretação de Nadler para considerar as ideias,
em nenhum sentido, como conteúdos mentais, o que, segundo ele, é feito por Lovejoy. Nadler
(1989, p. 111) afirma que, ainda que Lovejoy reconheça que ideia e percepção são uma única e
mesma modificação mental, Lovejoy toma ideia-percepção como sendo um conteúdo
percebido. E, dessa maneira, segundo Nadler, ele mantém, mesmo sem se dar conta, um
dualismo, uma distinção, entre o ato mental de perceber e conteúdo mental percebido que,
compreende-se aqui, seria uma espécie de reprodução da estrutura da teoria da percepção
malebranchista a que Arnauld visa atacar. Entende-se aqui que a crítica de Nadler pretende
mostrar que a aceitação de que o fenômeno mental da percepção envolve um ato mental e um
conteúdo mental (que é distinto do ato) é incompatível com a compreensão de Arnauld de que
não há ideias separadas da percepção. Sendo a ideia idêntica à percepção, não há distinção no
processo perceptivo entre ato mental de perceber e conteúdo mental percebido e, por isso, o que
é percebido não é um intermediário, mas a coisa mesma.
O que é central na interpretação de Nadler é a consideração de que as definições de
Arnauld acerca do que é a ideia impedem a consideração delas como objetos, ou como
conteúdos, pois elas são definidas como atos da mente. E enquanto atos, as ideias simplesmente
seriam o caminho, a via pela qual a mente percebe alguma coisa, independentemente de
intermediários tais quais conteúdos ou objetos mentais – que dirá seres representativos ao estilo
dos de Malebranche. Eis aí uma interpretação favorável a uma compreensão realista direta de
Arnauld que está baseada numa compreensão de que as ideias, ou percepção, são
exclusivamente atos mentais que captam ou apreendem imediatamente as coisas externas.
Interpretação essa que, ainda que não demonstre completamente a falsidade da leitura
representacionalista de Arnauld, impõe-lhe um grave problema, que é o de exigir dela uma
210 Cf.: NADLER, 1989, p. 113-114.
165
explicação satisfatória para a concepção representacionalista diante da concepção arnaldiana
de que o processo perceptivo não envolve a dicotomia entre percepção, como ato, e ideia, como
conteúdo.
À guisa de conclusão, é necessário realizar alguns comentários acerca do que foi
discutido. Em primeiro lugar, não se pretende aqui responder definitivamente a questão sobre
se a crítica aos seres representativos de Malebranche implica uma adesão a um realismo direto
por parte de Arnauld. O que se quis frisar com mais cuidado é que existem elementos fortes no
texto arnaldiano que indicam um projeto de crítica à noção malebranchista de que a percepção
necessariamente envolve determinadas entidades representativas realmente distintas da mente
e das coisas externas, que estão em Deus e que, por esse motivo, a percepção está fadada a um
representacionalismo radial. Ao longo do capítulo foi vista a argumentação de Arnauld que
pretende debelar tal compreensão ao demonstrar que ela pressupõe princípios falsos e provoca
consequências absurdas. O tipo de representacionalismo que a admissão desses entes
representativos de Malebranche suscita é uma consequência absurda que é vislumbrada e
fortemente combatida por Arnauld, como visto na seção anterior. Entretanto, não há uma visão
tácita de que, em seu trabalho, Arnauld esteja procurando desmontar toda e qualquer
compreensão representacionalista da percepção, haja visto toda a discussão presente no capítulo
seis de VFI, e comentada aqui, acerca da suposta não imediaticidade da percepção das coisas
externas, o que subsidia a interpretação de que Arnauld põe-se contra o representacionalismo
malebranchista, mas admite um mais moderado. Entretanto, não é prudente esquecer-se da
leitura realista direta que, ao focar na identidade entre percepção e ideia, é capaz de ler as
passagens sobre a presumida mediação da percepção das coisas externas pelas ideias como uma
constatação simples de que essa percepção se dá pela percepção das coisas (uma vez que
perceber é ter ideias). De forma que esse vocabulário representacionalista tratar-se-ia apenas de
um modo de falar que poderia e deveria ser compreendido adequadamente tendo em vista as
definições acerca do que é a ideia realizadas no capítulo cinco de VFI.
Assim, diante dessas possibilidades interpretativas, entende-se aqui que é preciso
destacar o seguinte: tanto a leitura representacionalista, quanto a leitura realista direta da teoria
da percepção de Arnauld parecem envolver problemas relativos ao conceito cartesiano de
realidade objetiva das ideias, que é fundamental para a teoria cartesiana da percepção, à medida
que as duas posições precisam lidar com a compreensão arnaldiana de que a ideia e a percepção
são o mesmo modo mental indistinto, o que permite que se considere que Arnauld promove
166
uma redução do conteúdo representativo ao ato perceptivo211. O que se quer comentar nesse
momento é que a maneira como Arnauld posiciona-se na crítica que faz a Malebranche abre
margem para se interpretar que ele negligencia a noção cartesiana em questão. Isso porque o
seu objetivo de negar a tese malebranchista de que o conteúdo representativo percebido pela
mente seja uma terceira entidade no processo perceptivo (que é realmente distinta e
independente tanto das operações da mente, quanto das coisas externas) acaba por conduzi-lo
a uma definição de ideia que a reduz à mera operação da mente (quando afirma que a ideia e
percepção são a mesma modificação mental). Nesse sentido, é parte do objetivo de Arnauld na
sua crítica a Malebranche demonstrar que a ideia não é distinta da percepção, que se trata de
uma única operação mental capaz de apresentar à mente alguma coisa como objeto percebido.
Dito de outro modo, se Arnauld opera uma redução da noção de ideia – tradicionalmente
entendida como conteúdo representativo, pelo menos desde Descartes – a um ato de percepção
da mente; e isso é feito em função de sua crítica a Malebranche, que em sua teoria da percepção
radicalizou a noção de ideia como conteúdo representativo e deu-lhe um status de
independência da mente; como a teoria da percepção de Arnauld, pretenso intérprete que
melhor teria entendido Descartes, pode ser lida relativamente ao conceito cartesiano de
realidade objetiva das ideias? Como visto no capítulo 1 (a aprofundar-se mais no próximo
capítulo), o conceito de realidade objetiva parece ser a defesa cartesiana de que o processo
perceptivo é composto por um certo tipo de ato mental ambíguo cuja função é determinar um
conteúdo como objeto na mente que possui uma realidade típica das coisas enquanto elas são
pensadas. A redução da ideia ao ato de perceber proposta por Arnauld significa a redução do
conteúdo ao ato de tal forma que o tom da identificação ideia-percepção parece deixar pouca
margem para sugerir que, mesmo enquanto ato mental, o processo perceptivo envolva a
dicotomia ato-conteúdo.
Ainda que realistas diretos e representacionalistas tenham produzido interpretações
distintas para essa perspectiva arnaldiana da identificação ideia-percepção, todas elas devem
produzir uma explicação capaz de conjugar o conteúdo percebido (aquilo que é percebido) com
a noção de ideia como ato mental, isto é, noção essa que parece abolir, nas modificações
mentais, a dualidade de um ato que apreende um conteúdo. A princípio, a posição realista direta
pode aceitar que esse conteúdo percebido seja redutível à coisa externa percebida, respeitando,
dessa forma, a rejeição de Arnauld de que no campo da percepção a ideia seja alguma coisa
211 « […] [perception et idée] ne sont point deux entités différentes, mais une même modification de notre âme […] »
167
distinta da percepção, como, por exemplo, um objeto mental. E a posição representacionalista
tem de dar conta de como esse conteúdo representado não se configura num objeto mental
distinto do próprio ato perceptivo.
Seja da maneira como for, o que se apresenta como problemático é se Arnauld é capaz
de – ao rejeitar a teoria da percepção de Malebranche212 reduzindo a dicotomia entre o ato
mental de percepção que envolve um conteúdo distinto dele a uma única modificação da mente,
a um único ato que se refere a alguma coisa como percebida – apresentar uma interpretação
adequada do conceito de realidade objetiva das ideias empregado por Descartes. Se esse
conceito fala sobre a maneira de ser de um objeto apresentado na consciência por um ato mental
que o determina, trata-se, portanto, de um conceito que aparentemente conjuga justamente
aquilo que Arnauld parece querer evitar, que é a relação dual entre um ato mental perceptivo
que envolve um conteúdo representativo, que no caso cartesiano, pode-se dizer, existe
objetivamente na mente.
Sendo assim, é legítimo considerar Arnauld como aquele que melhor leu, interpretou e
desenvolveu a teoria cartesiana da percepção? É possível refletir sobre como a teoria da
percepção de Arnauld pode ser considerada uma boa interpretação da teoria cartesiana se for
lida pela ótica representacionalista moderada213. Entretanto, como já aventado, essa leitura
precisa dar conta do status da identificação entre ideia e percepção operado por Arnauld. Nesse
sentido, considerando que essa dificuldade aponta para uma espécie de negligência arnaldiana
com o conceito cartesiano de realidade objetiva, considera-se aqui, pelo menos por ora, que a
filosofia de Arnauld, tal como a de Malebranche, não é a melhor, ou a mais definitiva,
interpretação da teoria cartesiana da percepção. Tendo isso em vista, o capítulo seguinte, o
último dessa tese, retornará a Descartes com o objetivo de desenvolver uma interpretação acerca
212 É legítimo interpretar o trabalho de Malebranche como uma tentativa de solucionar determinados problemas vislumbrados pelo autor na teoria cartesiana da percepção, que comporta em si uma ambiguidade à medida que é pensada por Descartes como se tratando de uma modificação mental representativa de conteúdos para a consciência chamados de realidades objetivas. Para Malebranche, compreender que a mente possua modos representativos de coisas externas a si mesma é um problema no que diz respeito à teoria da percepção. Segundo ele, esses conteúdos representados no pensamento não podem ser modificações mentais se eles representam algo de externo à, ou diferente da, mente. Isso porque as modificações mentais reduzem-se a meras operações mentais capazes apenas de exibir estados da própria mente. Do que se trata, então, a percepção das coisas externas realizada pela mente? Em função da diferença de tipo ontológico entre a mente e as coisas materiais, esses conteúdos exibidos na mente também não podem ser as coisas externas criadas por Deus. Sendo assim, Malebranche conclui que esses conteúdos percebidos devem ser entidades representativas distintas tanto das operações mentais, quanto das coisas externas que estão em Deus e é por ele disponibilizado para a percepção realizada pelas mentes finitas. Cf.: capítulo 2. 213 Como já apontado, a perspectiva representacionalista moderada considerada nesse capítulo é a que mais se aproxima da interpretação que se desenvolverá no capítulo 4 acerca da teoria cartesiana da percepção.
168
das noções de ser objetivo e de realidade objetiva que sejam subsidiárias de uma compreensão
mais clara dos caminhos para uma interpretação da teoria cartesiana da percepção.
169
4 DESCARTES: REPRESENTACIONALISMO OU REALISMO DIRETO NA
TEORIA DA PERCEPÇÃO
Ao final do último capítulo foi sugerido que os esforços argumentativos de Arnauld
contra a teoria malebranchista da percepção conduziram-no à operação de uma redução radical
da noção de ideia como conteúdo mental à noção de percepção como ato mental. Essa redução,
como visto, indica como objetivo o encerramento da dicotomia ato-conteúdo na teoria da
percepção a fim de debelar os pontos que dão margem à construção de uma teoria como a de
Malebranche, que considera que enquanto conteúdo representativo as ideias jamais poderiam
ser resultado de operações mentais, sendo, portanto, independentes e realmente distintas dessas
operações. Ora, segundo a leitura sugerida ao final do capítulo 3, para evitar a consequência
malebranchista, Arnauld procura mostrar que ter a ideia de um objeto é nada além de percebê-
lo, isto é, a ideia consiste no ato mental de apreensão da coisa percebida, de tal modo que, como
consequência disso, não haveria lugar para se considerar que o processo perceptivo (intelectual)
envolva o par ato mental de perceber e conteúdo mental percebido.
Conforme foi discutido, é com base nessa interpretação que algumas leituras de caráter
realista direto da teoria da percepção de Arnauld são defendidas à medida que entendem, a
partir da identificação entre percepção e ideia, que entre a operação perceptiva da mente e a
coisa percebida não haveria uma terceira coisa intermediária: só haveria o ato mental e a coisa
mesma percebida. O objetivo aqui não é dar adesão definitiva à interpretação realista direta,
mas apenas mostrar que a identificação da ideia com a percepção sugere fortemente que
Arnauld ignora um aspecto tradicionalmente vinculado à ideia, a saber, que ela é, para dizer o
mínimo, também um conteúdo mental. E, nesse sentido, Arnauld acaba por negligenciar um
ponto muito significativo para a teoria da percepção cartesiana, que se relaciona com as noções
de ser objetivo e de realidade objetiva – conceitos esses que exprimem as preocupações de
Descartes com o aspecto da ideia enquanto conteúdo mental representativo de alguma coisa
como objeto na consciência. Ao reduzir a ideia à mera operação mental, Arnauld parece
desconsiderar os esforços cartesianos para explicitar o que é a percepção, pois parece ignorar
que ela consiste numa operação que guarda em si mesma uma ambiguidade como uma marca
própria da sua natureza, ou como uma marca do tipo de ato mental em que ela consiste.
Investigar o que é essa operação ambígua do intelecto que envolve ato e conteúdo, o significado
das noções de ser objetivo e de realidade objetiva, o status ontológico dessas noções e sua
função no processo perceptivo é o objeto de estudo desse capítulo.
170
4.1 Os conceitos de ser objetivo e de realidade objetiva da ideia
No primeiro capítulo, que versa, de maneira geral, sobre o tema da natureza e da
estrutura das ideias segundo Descartes, pôs-se em discussão a definição de ideia como imagem
das coisas enquanto exposição do caráter intencional da ideia. Viu-se que a intencionalidade da
ideia é dada pelo seu caráter representativo, que, apesar da analogia com a imagem, não guarda
nenhum sentido de reprodutibilidade imagética, tomando, dessa maneira, a noção de
representação como a exibição de um conteúdo não imagético no intelecto. Com isso, pode-se
dizer que a noção de representação possui um caráter primário, constitutivo, ligado àquilo que
é mais básico na ideia, que é apresentar alguma coisa como objeto para a mente. Na sequência
da análise do fenômeno da representação como exibição de um conteúdo no intelecto, fez-se
necessária a explicitação da caracterização cartesiana da estrutura das ideias. Tratou-se ali da
exposição do que a tradição dos estudos cartesianos chama de via cartesiana, ou seja, o modelo
analítico da natureza das ideias, segundo Descartes. As ideias são atos do pensamento que
envolvem um conteúdo apresentado ao intelecto como um objeto. Enquanto ato do pensamento,
todas as ideias possuem a mesma forma, são todas atos de representação; e enquanto conteúdo,
as ideias diferenciam-se umas das outras pelo objeto que exibem no intelecto. O ato
representativo constitutivamente envolve um conteúdo representado, e a análise proposta na via
cartesiana permite ressaltar um duplo aspecto presente nas ideias, uma ambuiguidade que em
realidade compõe o fenômeno mental da representação à medida que ele é simultaneamente um
ato da mente cuja função, ou resultado, é a determinação de um conteúdo na consciência.
Em resumo, a via cartesiana procura analisar a natureza e a estrutura das ideias a partir
das noções de realidade material, de realidade formal e de realidade objetiva. Essas noções
permitem compreender o que são as ideias enquanto um fenômeno mental representativo de
objetos e quais são suas especificidades na teoria cartesiana. Ao mesmo tempo que as noções
de realidade material e formal das ideias têm por função explicitar que elas tratam-se de um
tipo específico, uma forma particular de modificação mental (sendo isso que é mental a
“matéria” da ideia), essa forma particular de ato mental que é a ideia consiste na representação
de objetos para a mente, isto é, envolve um conteúdo intencional que aponta para algo de
diferente da própria operação intelectual e que, segundo Descartes, não consiste num mero
nada, como já dito no primeiro capítulo. Assim, a ideia é aquele tipo de ato da mente que diz
respeito, ou envolve, necessariamente (e é por isso que se trata de um tipo especial de operação
mental) a apresentação de um conteúdo na consciência como objeto. Esse conteúdo
representado pela ideia é apontado por Descartes como uma realidade objetiva.
171
Nesse contexto, a concepção das ideias como um certo tipo de ato mental, isto é, como
uma modificação mental específica cuja função é apresentar um conteúdo como objeto para a
consciência expõe, como anunciado anteriormente, aquele que constitui um significativo
problema acerca da teoria cartesiana das ideias e da percepção, a saber, o seu caráter dual, que
consiste em ser ao mesmo tempo um evento mental que é simultaneamente uma operação da
mente e um conteúdo intencional portador de grau de realidade, para Descartes. É importante
nesse momento retomar – para enfatizar apropriadamente, já que se trata do cerne da questão –
que a exposição cartesiana do duplo aspecto da ideia apresenta a noção de conteúdo exibido
como real, como uma realidade objetiva, que se traduz como a maneira de ser da coisa enquanto
pensada. A noção de realidade objetiva do conteúdo representativo das ideias é introduzida por
Descartes à medida que esse conteúdo não é considerado por ele um “puro nada” (AT VII, 103;
AT IX, 82), pois não se constitui uma mera denominação extrínseca da coisa percebida, segundo
Descartes responde a Caterus, mas apresenta ao intelecto graus de realidade que obedecem à
hierarquia própria à ontologia cartesiana na qual substâncias possuem mais grau de realidade
que seus modos.
Como visto nos capítulos segundo e terceiro, a ambiguidade da noção de ideia na teoria
cartesiana é objeto de uma intensa disputa teórica entre Malebranche e Arnauld que, segundo a
interpretação apresentada aqui, diz respeito à tentativa de ambos de oferecer uma interpretação
do que é a percepção, em especial no que diz respeito à concepção de ideia enquanto um
conteúdo determinado no pensamento, que sanasse os problemas por eles observados nessa
matéria. Dessa forma, Malebranche propõe uma reinterpretação, a seu modo, da teoria
cartesiana das ideias que o leva a concebê-las como entes, ou objetos, representativos
independentes da mente porque ele pensa ser problemática a tese de que a representação de
objetos no intelecto possa ser resultado de uma operação mental. Isso significa que ele não
aceita (pelas razões já demonstradas no segundo capítulo) justamente a ambiguidade
reconhecida e defendida por Descartes de que a ideia é simultaneamente um ato mental de
representação de um objeto, em que esse objeto é, de certa maneira, dependente desse ato, isto
é, dependente de uma operação mental específica. Assim, compartilhando de pressupostos
cartesianos, Malebranche elabora uma outra teoria – historicamente conhecida como a teoria
da visão das ideias em Deus – como tentativa de solucionar aquilo que ele compreende como
problema na teoria de Descartes.
É importante ressaltar que, como o aspecto da ambiguidade da ideia que não é aceito
por Malebranche como ele foi pensado por Descartes é o de que atos mentais possam ser
172
representativos de objetos, está-se falando propriamente da noção de realidade objetiva da ideia.
É essa concepção cartesiana que é o foco do problema e que Malebranche não aceita como
sendo dependente do pensamento à medida que nele só há modificações de sua própria natureza,
que é o pensamento sendo ora de uma maneira, ora de outra, isto é, modificações que apenas
expressam o que o pensamento é, e não uma exibição de alguma outra coisa distinta dele. Dessa
forma, para Malebranche, o aspecto representativo, ligado à realidade objetiva da ideia, não
pode ser explicado por operações da mente e, por isso, porque é um outro distinto do intelecto,
é preciso concebê-lo como, atribui-lo a, algo externo e independente da mente, o que leva
Malebranche a cunhar sua noção de ideia como um ente representativo distinto das operações
mentais e cujo lugar é Deus. Como visto, essa interpretação malebranchista provoca uma reação
de Arnauld que gira em torno da proposição de uma interpretação sobre a teoria cartesiana das
ideias cujo objetivo é corrigir sua ambuiguidade característica, de modo a evitar a leitura
malebranchista, o que, sugeriu-se aqui, termina por esvaziar, de certa maneira, a noção
cartesiana de realidade objetiva da ideia.
Passa-se nesse momento à recuperação das concepções cartesianas de ideia, de ser
objetivo e de realidade objetiva, bem como da discussão em torno delas, já apresentada no
primeiro capítulo, com o intuito de retomar uma leitura do argumento cartesiano em favor da
concepção de que o ser objetivo das ideias é alguma coisa que existe e tem realidade objetiva
no pensamento. A partir dessa reapresentação, pretende-se avançar uma argumentação mais
robusta em favor de certa autonomia ontológica do ser objetivo na teoria cartesiana da
percepção. A finalidade disso é apresentar uma interpretação sobre em que medida a ideia pode
ser um determinado tipo de ato mental que exibe como objeto algum conteúdo para o intelecto
que tem grau de realidade objetiva, isto é, que é alguma coisa de irredutível e relativamente
independente do ato mental representativo..
A questão que se pretende enfrentar nesse momento visa a retomar e esclarecer as
noções de ser objetivo e de realidade objetiva na filosofia de Descartes com o objetivo de
oferecer uma explicação sobre o sentido em que o objeto percebido, pensado, exibido na
consciência é dependente da mente, por um lado, e, no entanto, não se reduz à mente, por outro
lado. Como se verá mais detalhadamente, a hipótese é de que o ser objetivo é uma espécie de
objeto representativo, que é determinado na mente pelo ato perceptivo, ainda que ele guarde
certa autonomia ontológica em relação ao ato da mente que o exibe. Para compreender o sentido
dessa hipótese cabe, então, explicar em que medida um ato do intelecto pode ser representativo
de coisas distintas dele, bem como esclarecer como o ser objetivo, determinado por um ato da
173
mente, consiste numa realidade no pensamento que o difere, de algum modo, do próprio ato.
Com isso, pretende-se mostrar porque a interpretação malebranchista da percepção é
desnecessária do ponto de vista cartesiano, bem como apontar que a leitura de Arnauld
enfraquece a teoria da percepção de Descartes ao sugerir um reducionismo do conteúdo
representativo ao ato de representação, o que pode levar a uma interpretação realista direta da
percepção.
A discussão de Descartes com Caterus (AT VII, 91-12; AT IX, 73-95) acerca da noção
da realidade objetiva dos objetos no pensamento traz para a teoria cartesiana das ideias a
necessidade de elaboração e de esclarecimento da noção de ser objetivo, que precisa ser
investigada fundamentalmente segundo seu status ontológico a fim de que se torne
compreensível o papel que ele ocupa no processo perceptivo. Essa necessidade é fruto do
reconhecimento do tratamento dado a essa questão nos textos da referida discussão, que atribui
sentido ontológico à noção de ser objetivo que não se quer aqui ignorar. Além disso, considera-
se, como ficará mais claro, que o aspecto ontológico ligado a esse debate é fundamental para a
compreensão do sistema cartesiano como ele é desenvolvido principalmente nas Meditações.
Dessa forma, é preciso esclarecer o que é exatamente a natureza do ser objetivo para
Descartes, que, como visto até agora, aparentemente não consiste nem em afecções puras do
sujeito, nem numa mera denominação, dado que possui realidade irredutível às operações do
pensamento, nem num ente representativo independente da mente, já que consiste numa
modificação mental. Nas respostas a Caterus, apresentada de forma geral no primeiro capítulo
dessa tese, Descartes214 concentra-se em esclarecer que a ideia envolve um ser objetivo que não
se restringe ao resultado, ao término de uma operação do intelecto tal como um objeto, que
começa e termina como uma mera operação mental. Descartes defende que o ser objetivo é a
coisa mesma enquanto pensada, isto é, a coisa existindo objetivamente no pensamento, que é a
maneira como as coisas costumam ser no pensamento quando são pensadas. Como foi visto
mais detidamente na exposição da discussão em questão feita no primeiro capítulo, o texto de
Descartes sugere que ao tratar do tema da aplicação do princípio de causalidade ao ser objetivo
é preciso considerá-lo não no que diz respeito ao ato mental, ou à realidade formal da ideia, isto
é, a ideia tomada como um determinado tipo de operação da mente que tem por função exibir
um conteúdo como objeto – o que, aparentemente, consiste na compreensão de Caterus sobre
o que pensa Descartes –, mas sim no que concerne à ideia como um conteúdo representativo,
214 Cf. AT VII,102-104; AT IX, 81-83.
174
um objeto determinado na mente, que em razão daquilo que exibe diferencia-se das demais
ideias:
E aqui ser objetivamente no intelecto não significará o término de uma operação do
entendimento à maneira de um objeto, mas sim estar no entendimento da maneira
como seus objetos estão normalmente lá; de tal maneira que a ideia do sol é o sol
mesmo existindo no entendimento; é certo que não existindo formalmente, como ele
está nos céus, mas existindo objetivamente, isto é, da maneira como os objetos
costumam existir no entendimento [...] (AT VII, 102)215.
Nesse contexto, o que Descartes faz é ressaltar que tendo em vista seu caráter
representativo, isto é, enquanto um conteúdo específico representado, o ser objetivo da ideia é
alguma coisa que é na mente algo para além de uma simples operação à medida que se configura
como um determinado objeto diferente do sujeito, isto é, ele é capaz de uma diferenciação que
parece escapar ao fato de ser o resultado de uma operação mental que apenas apresenta aquilo
que o sujeito é. O fato de que a ideia seja de x ou de y, segundo Descartes, requer uma explicação
acerca do seu ser objetivo que exceda o ato mental a ele ligado porque não consiste em alguma
coisa que é meramente relativa à mente, ou é um ser de razão, ou uma afecção; mas sim trata-
se de um objeto determinado, uma coisa representada de tal maneira no pensamento que não
pode ser considerado um “puro nada”. Dito de outra maneira, segundo Descartes, o ser objetivo
é uma coisa real à medida que constitui um objeto na consciência irredutível à mera operação
do pensamento: como o conteúdo exibido pelo ato de perceber alguma coisa não se reduz ao
mero ato, esse conteúdo trata-se, ele mesmo, de um objeto para o pensamento que em si mesmo
é real. Isso porque o que ele é não pode ser explicado ou reduzido às operações do pensamento
à medida que consiste na exibição, no pensamento, de alguma coisa que é diferente do próprio
pensamento, no sentido de ser distinto de suas operações – e, por isso, é algo que em si é, de
certa forma, distinto e independente do referido ato de pensamento. O ser objetivo é a
conformação na consciência de um ‘outro’ diante da consciência, um objeto com suas
propriedades e características e que nessa condição necessariamente aponta para, faz referência
a, alguma coisa que não é o próprio pensamento. Dessa forma, se o ser objetivo é uma coisa
215 « Et là être objectivement dans l’entendement ne signifiera pas terminer son opération à la façon d’un objet, mais bien être dans l’entendement en la manière que ses objets ont coutume d’y être ; en telle sorte que l’idée du soleil est le soleil même existant dans l’entendement, non pas à la vérité formellement, comme il est au ciel, mais objectivement, c’est-à-dire en la manière que les objets ont coutume d’exister dans l’entendement […] » (AT IX, 81-82).
175
que não se reduz aos atos do pensamento, trata-se de alguma coisa que existe no pensamento,
refere-se a uma realidade no pensamento e, enquanto tal, é plausível admitir que ele possua
graus de realidade, e, por conta disso, não é um “puro nada”. É preciso que se reforce que ao
tratar do conceito de ser objetivo como uma realidade no pensamento, Descartes busca enfatizar
que ele se trata de objetos representados que são coisas ou entidades reais que estão
objetivamente no pensamento, isto é, estão lá enquanto são representadas no intelecto. É isso
que Descartes quer assinalar quando afirma que a realidade objetiva da ideia é “a entidade ou
o ser da coisa representada pela ideia, na medida em que tal entidade está na ideia [...]” (AT
VII, 161; CP, 179)216.
Segundo Raul Landim no artigo “Ideia, ser objetivo e realidade objetiva nas
‘Meditações’ de Descartes” (2014, p.675-676), a argumentação em favor de que a noção de
ser objetivo consiste em objetos reais no pensamento porque são representação de coisas
determinadas na mente, que dela se diferenciam e, nesse sentido, não se reduzem às operações
da própria mente não é suficiente para convencer um objetor como Caterus acerca do tipo de
realidade particular que o ser objetivo possui no pensamento. Isso porque a noção de ser
objetivo como a exibição de um conteúdo como objeto para a consciência pode admitir que
seres de razão – que podem ser considerados um puro nada à medida que não possuem nenhum
tipo de realidade atual217 – sejam considerados seres objetivos conforme exibem alguma coisa
como objeto para o pensamento. Nesse caso, ser objetivo condiz com o objeto exibido no
pensamento, entendido como uma espécie de rótulo designador de alguma coisa, um ser de
razão, e não tem necessariamente, em função disso, realidade objetiva218.
Assim, entende-se que, para além de explicitar que o ser objetivo é o objeto apresentado
na ideia, como a argumentação inicialmente proposta faz, é preciso explicar em que medida o
ser objetivo não se reduz de fato às operações da mente, se a finalidade é defender que ele se
trata de uma entidade real no pensamento. Essa necessidade se coloca porque definir o ser
objetivo como o objeto apresentado à consciência pela ideia não evita que eles sejam tomados
como meros seres de razão, já que, como visto, esses últimos também podem ser tomados como
ser objetivo quando constituem objetos de ideias. O que se quer chamar atenção aqui é que o
216 « […] l’entité ou l’être de la chose représentée par l’idée, en tant que cette entité est dans l’idée […] » (AT IX, 124). 217 Considera-se aqui que o tipo de realidade própria dos seres objetivos que é defendido por Descartes, a saber, a realidade objetiva concernente ao conteúdo das ideias, é um tipo de realidade atual no pensamento. 218 Landim (2014, p. 675) atribui a Eustachio de S. Paulo (Summa Philosophica Quadripartita de Rebus Dialecticis, Moralibus, Physicis et Metaphysicis, quarta parte, questão III, p. 17-20. Paris: Carolus Chastellain, 1609. 2 vol.) e também a Caietano (Comentarium super Opusculum De Ente et Essentia Thomae Aquinatis, c. IV, q. 7. Roma: Ex Pontificia Officina Typographica, 1907) a identificação do ser objetivo ao objeto do intelecto.
176
fato de as ideias exibirem diferentes conteúdos como objetos no intelecto não legitima, apenas
por isso, a tese cartesiana de que elas não são um “puro nada”. É preciso um argumento
adicional para sustentar que o ser objetivo das ideias seja uma realidade objetiva no
pensamento.
Em função disso, Landim (2014, p. 677) aponta para o que ele considera ser um
argumento na Exposição Geométrica, axioma VI, em favor da tese de que o ser objetivo possui
diferentes graus de realidade objetiva. Segundo ele, Descartes aceita, sem contestação, a tese
de que há uma hierarquia ontológica de graus de realidade no que se refere às coisas formais
que vai do maior, o grau de realidade da substância infinita, ao menor, o grau de realidade dos
modos das substâncias finitas219. A partir disso, Descartes consideraria que é por essa razão que
as ideias que representam substâncias possuem mais graus de realidade que aquelas que
representam modos, pois, de alguma forma, a realidade das ideias é derivada da realidade das
coisas que elas representam:
Há diversos graus de realidade ou de entidade: pois a substância tem mais realidade
do que o acidente ou o modo, e a substância infinita mais do que a finita. Eis porque
também há mais realidade objetiva na ideia de substância do que na de acidente, e
mais na ideia de substância infinita do que na de substância finita (AT VII, 166-167;
CP, 182)220.
Há uma espécie de constatação não problematizada, que aparece na passagem da
Terceira Meditação que será citada abaixo, de que os objetos exibidos pelas ideias se
diferenciam entre si, e do próprio sujeito, em função dos graus de realidade que representam no
pensamento, sendo a ideia de substância infinita portadora de maior grau de realidade que a
ideia de um modo. Entretanto, no axioma VI da Exposição Geométrica citado acima, Descartes
parece oferecer uma razão que explica por que as ideias se distinguem de acordo com o grau de
realidade que exibem na consciência. Essa razão consiste em que as ideias retiram das
realidades formais o seu próprio grau de realidade objetiva. Assim, segundo Landim, na
Terceira Meditação Descartes parece apenas assinalar que a diferença entre as ideias se dá, não
apenas porque elas exibem objetos diferentes, mas porque elas possuem graus de realidade
219 É bom lembrar aqui que a ontologia cartesiana admite que tudo aquilo que é ou é substância infinita, isto é, Deus; ou é substância finita, a saber, coisa(s) pensante(s) e coisa(s) extensa(s); ou são modificações dessas substâncias. 220 « Il y a divers degrés de réalité ou d’entité : car la substance a plus de réalité que l’accident ou le mode, et la substance infinie que la finie. C’est pourquoi aussi il y a plus de réalité objective dans l’idée de la substance que dans celle de l’accident, et dans l’idée de la substance infinie que dans l’idée de la substance finie » (AT IX, 128).
177
distintos no pensamento. Mas é no texto do referido axioma VI, que aparece a razão pela qual
as ideias possuem graus de realidade objetiva, a saber, porque se trata de uma realidade extraída
da realidade dos entes formais. Veja-se a citação da passagem da Terceira Meditação abaixo:
[...] considerando-as como imagens [...] é evidente que elas são bastante diferentes
entre si. Pois, com efeito, aquelas que me representam substâncias são, sem dúvida,
algo mais e contêm em si (por assim falar) mais realidade objetiva, isto é, participam,
por representação, em um maior número de graus de ser ou de perfeição do que
aquelas que representam modos ou acidentes (AT VII, 40; CP, 111, §15)221.
Pode-se conjecturar, no entanto, que a concepção de que o grau de realidade objetiva
das ideias é derivado do grau de realidade dos entes formais talvez já seja sugerida por Descartes
quando ele afirma que ter mais realidade objetiva é participar, enquanto representação, de mais
graus de ser (como na citação acima), isto é, é representar coisas mais complexas e completas
do ponto de vista ontológico. Todavia, no contexto da Terceira Meditação, isso torna-se
problemático porque as dúvidas com relação à existência e ao conhecimento das coisas externas
ao pensamento estão ainda vigentes, o que não permite considerar tal razão como justificativa
para a tese de que as ideias possuem graus de realidade objetiva. Trata-se, segundo Landim, de
um argumento que só pode ser válido após todo o percurso das Meditações, pois exige que a
dúvida acerca da existência das coisas externas e a dúvida metafísica já tenham sido superadas.
Entretanto, é preciso considerar aqui que, ainda que de posse de todas as respostas
fornecidas pelo sistema cartesiano, não parece plausível, assim como Landim sugere, que o fato
de haver uma hierarquia ontológica entre as coisas reais e existentes implique que as coisas
pensadas reproduzam entre si essa hierarquia. Isso porque não é claro, pelo que já foi
considerado até agora, que aquilo que é pensado, o ser objetivo das ideias, possua qualquer
realidade no pensamento para além de ser uma denominação exterior à coisa pensada. Justificar
o tipo de realidade que o ser objetivo tem enquanto é pensado é exatamente o cerne do problema
posto pelas considerações trabalhadas até esse momento. E não é uma suposta constatação a
posteriori de que as ideias reproduziriam em si a hierarquia de ser, constatada entre os entes
221 « […] les considérant comme des images […] il est évident qu’elles sont fort différentes les unes des autres. Car, en effet, celles qui me représentent des substances sont sans doute quelque chose de plus et contiennent en soi (pour ainsi parler) plus de réalité objective, c’est-à-dire participent par représentation à plus de degrés d’être ou de perfection, que celles qui me représentent seulement des modes ou accidents » (AT IX, 31-32).
178
que possuem realidade formal, que pode servir de sustentação para a tese de que o ser objetivo
das ideias é alguma coisa que possui algum grau de realidade.
Pensa-se aqui ser necessário ainda um argumento que fundamente a tese de que o ser
objetivo possua realidade no pensamento. Pois, a plausibilidade do argumento de que o grau de
realidade das ideias é derivado do grau de realidade das coisas formais – e, por isso, há entre as
ideias a reprodução da hierarquia ontológica a que as coisas formais estão submetidas – só pode
ser válida se restar demonstrado que o ser objetivo exibido na ideia é alguma coisa de real no
pensamento e não um “puro nada”.
Ainda em acordo com Landim (2014, 679-680), pode-se encontrar na resposta de
Descartes a Caterus a sustentação para a concepção de que o ser objetivo possui realidade no
pensamento. Como visto, numa primeira análise das Respostas às Primeiras Objeções foi
considerado que o argumento cartesiano em favor da concepção em questão dizia respeito ao
fato de que o ser objetivo constituiria um objeto para o pensamento que, enquanto tal, seria a
representação de uma outra coisa diante da consciência que é distinta da própria consciência e,
por isso, irredutível a ela. Entretanto, como visto, esse argumento, por si só, não é suficiente
para justificar que os seres objetivos possuam um tipo de realidade específica no pensamento,
pois eles podem ser apenas uma denominação no intelecto, sem qualquer realidade atual, que
em nada acrescenta ou altera a coisa percebida. Tendo isso em vista, ao examinar mais
atentamente a resposta de Descartes a Caterus, pode-se afirmar que ela trata de uma distinção
de concepção do que são os modos de ser formal e objetivo a partir da qual se pode defender
que aquilo que é pensado é uma realidade no pensamento, ou seja, a consideração da distinção
entre os modos de ser formal e objetivo permite que se extraia dela uma argumentação em favor
da fatualidade da realidade objetiva do ser objetivo. Considere novamente a seguinte passagem
de Descartes,
[...] ser objetivamente não significa outra coisa além de ser no entendimento da
maneira como os objetos habitualmente são lá. Assim, por exemplo, se alguém
pergunta o que ocorre com o sol do fato de que ele está objetivamente no meu
entendimento, responde-se muito bem que nada ocorre com ele além de uma
denominação exterior, a saber, que ele termina como objeto a operação do meu
entendimento; mas se pergunta-se sobre a ideia do sol o que ela é, e responde-se que
se trata da coisa pensada enquanto ela está objetivamente no entendimento, ninguém
compreenderá que se trata do sol mesmo enquanto essa denominação exterior está
nele. E aqui ser objetivamente no intelecto não significará o término de uma operação
do entendimento à maneira de um objeto, mas sim estar no entendimento da maneira
como seus objetos estão normalmente lá; de tal maneira que a ideia do sol é o sol
179
mesmo existindo no entendimento; é certo que não existindo formalmente, como ele
está nos céus, mas existindo objetivamente, isto é, da maneira como os objetos
costumam existir no entendimento [...] (AT VII, 102)222.
O trecho citado trata, entre outras coisas, de mencionada distinção entre o modo de ser
formal e o modo de ser objetivo, que é importante para sustentar que o ser objetivo tem realidade
no pensamento. Logo no início, Descartes esclarece que o ser objetivo diz respeito
exclusivamente a um ser típico das coisas do entendimento. E que, nesse sentido, é
absolutamente razoável considerá-lo uma denominação externa no que diz respeito àquilo que
tem realidade formal, ou que é uma coisa atual. É nesse sentido que Descartes se utiliza do
exemplo do sol para dizer que o sol enquanto pensado, isto é, a ideia do sol é apenas uma
espécie de rótulo externo ao sol atualmente existente, pois enquanto ideia ela não o afeta de
maneira nenhuma. Mais que isso, Descartes concorda que do ponto de vista do sol realmente
existente, a ideia é apenas o término de uma operação do intelecto como um objeto. Na mesma
linha, a ideia, quando considerada em si mesma como a coisa pensada que tem um modo de ser
objetivo no intelecto, também não é confundível com a coisa formal por ela representada. A
razão para essas considerações feitas por Descartes é explicitar que há uma distinção importante
a ser observada entre o modo de ser da coisa enquanto representada pela ideia e o modo de ser
da coisa na sua realidade formal. No tocante ao modo como as coisas estão no intelecto quando
são pensadas é necessário dizer que se trata de um modo diferente daquele que elas têm quando
existem atualmente porque entre eles há uma certa independência. Isso significa que a ideia de
alguma coisa não necessariamente depende, ou se explica, pela existência atual da coisa
representada, isto é, o ser objetivo nem sempre tem um correlato formal; bem como as coisas
atuais não dependem de nenhuma representação para serem o que são, isto é, as coisas não
222 « Être, dit- il, objectivement dans l’entendement, c’est terminer à la façon d’un objet l’acte de l’entendement, ce qui n’est qu’une dénomination extérieure, et qui n’ajoute rien de réel à la chose, etc. Où il faut remarquer qu’il a égard à la chose même, comme étant hors de l’entendement, au respect de laquelle c’est de vrai une dénomination extérieure, qu’elle soit objectivement dans l’entendement ; mais que je parle de l’idée, qui n’est jamais hors de l’entendement, et au respect de laquelle être objectivement ne signifie autre chose, qu’être dans l’entendement en la manière que les objets ont coutume d’y être. Ainsi, par exemple, si quelqu’un demande, qu’est-ce qu’il arrive au soleil de ce qu’il est objectivement dans mon entendement , on répond fort bien qu’il ne lui arrive rien qu’une dénomination extérieure, à savoir qu’il termine à la façon d’un objet l’opération de mon entendement ; mais si on demande de l’idée du soleil ce que c’est, et qu’on réponde que c’est la chose pensée, en tant qu’elle est objectivement dans l’entendement, personne n’entendra que c’est le soleil même, en tant que cette extérieure dénomination est en lui. Et là être objectivement dans l’entendement ne signifiera pas terminer son opération à la façon d’un objet, mais bien être dans l’entendement en la manière que ses objets ont coutume d’y être ; en telle sorte que l’idée du soleil est le soleil même existant dans l’entendement, non pas à la vérité formellement, comme il est au ciel, mais objectivement, c’est-à-dire en la manière que les objets ont coutume d’exister dans l’entendement […] » (AT IX, 81-82).
180
precisam ser pensadas para ser. Trata-se aqui, em síntese, da caracterização de dois modos de
ser que guardam uma certa independência entre si, observada pela maneira como ser objetivo e
ser formal são alguma coisa a despeito de qualquer relação de subordinação causal, ou de
implicação epistemológica: o que é pensado não depende necessariamente de ter sido causado
por algo externo, e o que existe atualmente não precisa ser conhecido para ser o que é.
Todavia, além disso, a importante distinção mencionada anteriormente também trata de
uma certa autonomia do ser objetivo (desse modo de ser objetivo da coisa pensada) com relação
à realidade formal da própria ideia que o representa, isto é, com relação ao próprio ato de
pensamento que o exibe no intelecto. A parte final da citação se encarrega de anunciar isso
quando reforça que do ponto de vista do modo de ser objetivo, isto é, ao ser objetivamente,
aquilo que é pensado não significa uma operação do intelecto que assume a forma de um objeto,
mas sim uma presença no intelecto que tem um modo específico de ser próprio aos objetos
pensados. Trata-se portanto da consideração do ser objetivo para além da operação mental que
o exibe na consciência, mais que como uma denominação externa do ente formal, mas como
um conteúdo que tem um modo de ser particular no pensamento.
O que está em jogo é mostrar que o modo de ser particular que o ser objetivo tem no
pensamento, quando considerado nele mesmo, não pode ser confundido ou assimilado pelo
modo de ser formal das próprias operações intelectuais porque, pelo menos em alguns casos, o
ser objetivo não se trata de um conteúdo que depende do pensamento. Está-se falando aqui
daquelas representações de objetos que possuem propriedades necessárias, como as ideias de
Deus e dos objetos matemáticos, que não são constituídas pelo pensamento, apesar de estarem
nele e serem nele exibidas como objetos. Ora, o ser objetivo deve ser considerado como
possuindo uma autonomia ontológica relativa ao ato mental que o exibe, isto é, deve ser tomado
como uma realidade particular no pensamento porque se trata de um modo de ser na mente que
é irredutível à mente, não apenas porque é a exibição de um objeto, mas porque pode ser alguma
coisa que está na mente independentemente de ser por ela constituído. Assim, diante das
limitações da mente tendo em vista a constituição de seres objetivos cujo modo de ser na
consciência extrapola as condições da mente de ser sua autora, é preciso concluir que eles
compõem alguma coisa, de certa maneira, autônoma com relação à mente e, por isso, possuem
um tipo próprio de realidade, que Descartes chama de objetiva.
A concepção cartesiana de que o ser objetivo possui realidade no intelecto é explicada,
desse modo, pelo fato de que se trata de alguma coisa que não é meramente um ser de razão,
elaborado exclusivamente pelo pensamento, ou por ele abstraído, mas sim é a exibição de
181
alguma coisa que é em si mesma uma realidade, com suas características próprias sobre as quais
o pensamento não tem nenhuma ingerência e, por esse motivo, não pode ser considerado a razão
do seu modo de ser próprio.
O trabalho de Ferdinand Alquié em um capítulo do livro “La découverte
métaphysique de l’homme chez Descartes” (1991, p. 201-217) acerca da realidade das ideias
corrobora essa interpretação acerca do sentido em que se pode afirmar que o conteúdo objetivo
das ideias é um tipo de realidade no pensamento. Alquié (1991, p. 201) considera que a doutrina
cartesiana das ideias acaba por expor três tipos de realidade admissíveis no contexto do sistema
cartesiano, a saber, a realidade da substância pensante, a realidade das coisas formais externas
ao pensamento e, também, a realidade da ideia tomada em si mesma, que é distinta das duas
outras. Nesse sentido, é possível afirmar que Alquié reconhece na teoria cartesiana que as
ideias, tomadas enquanto certos conteúdos representativos de coisas, são algo de real no
pensamento à medida que, assim tomadas, elas se diferenciam tanto do tipo de realidade
específica do pensamento, quanto do tipo de realidade própria das coisas externas. Enquanto
essas duas realidades constituem o modo de ser formal da substância pensante, por um lado, e
das coisas atualmente existentes, por outro lado; a realidade que é particular da ideia e que está
em jogo nessas considerações é a realidade objetiva que ela apresenta na consciência quando lá
exibe alguma coisa como objeto. Entretanto, Alquié procura oferecer uma razão para sustentar
sua interpretação. Segundo ele, o conteúdo apresentado pelas ideias no pensamento, pelo menos
alguns deles, apesar de estarem no pensamento, não são simples produtos das suas operações,
mas são alguma coisa que se impõe ao pensamento, de modo que são nele, de certo modo,
naturezas por si. Isso quer dizer que, a princípio, pelo menos determinadas ideias exibem
objetos de cujo o entendimento de sua definição o sujeito é apenas constrangido a reconhecer
quais são seus atributos e o que deles decorrem. São, nesse caso, objetos, como dito
anteriormente, sobre os quais o pensamento não tem nenhuma ingerência, isto é, não é
responsável por sua constituição. De modo que é legítimo compreendê-los como realidades, de
certa maneira, independentes em si mesmas.
É interessante apontar que o movimento argumentativo que permite a realização da
primeira prova da existência de Deus na Terceira Meditação pode ser entendido segundo essa
perspectiva acerca da realidade do conteúdo objetivo das ideias, anteriormente apresentada. E
nesse ponto, afasta-se aqui da leitura de Landim (2014, p. 680-681), pois entende-se, como se
verá, que a noção de que as coisas, enquanto pensadas, possuem realidade objetiva já aparece
elaborada na Terceira Meditação mais do que como algo assumido sem explicação. Assim,
182
mesmo que na apresentação da via cartesiana de análise das ideias223 a concepção de que elas
exibem objetos que possuem grau de realidade objetiva, tal qual as coisas atuais possuem grau
de realidade formal, apareça como uma constatação não problematizada, a análise introspectiva
das ideias, realizada mais à frente, parece esclarecer o sentido em que as ideias possuem
realidade objetiva, isto é, são exibições de objetos como algo de real no pensamento. Quando
o meditador avalia de quais, entre suas ideias, ele não pode ser a razão do conteúdo, ele está
explicitando o sentido de realidade objetiva que, como se viu até aqui, torna-se mais claro na
resposta de Descartes a Caterus: a coisa pensada tem realidade objetiva à medida que consiste
em algo que não é redutível às operações do pensamento. Dessa forma, a realidade objetiva do
conteúdo das ideias deve-se ao fato de que o modo de ser desses conteúdos no pensamento não
depende, exclusivamente, do seu poder criador, ou operador: a realidade objetiva do conteúdo
das ideias é algo além de uma constituição mental que configura um objeto. Assim, ao analisar
o conteúdo exibido pela ideia de Deus, o meditador reconhece se tratar de algo cuja operação
representativa da mente não pode explicar o conteúdo, ou seja, de algo que não se explica pelo
mero pensamento e que, por isso, é alguma coisa de independente dele. Isso sugere, avalia-se
aqui, que na esteira da argumentação que culmina na prova da existência de Deus é explicitado
em que medida coisas pensadas têm realidade objetiva: quando se trata de um conteúdo que
não pode ser reduzido ou explicado pelo pensamento porque exibe um conjunto de propriedades
que se impõe a ele224. E, por fim, como a ideia de Deus exibe um conteúdo cujas propriedades
são perfeitas, necessárias e infinitas, a realidade objetiva desse conteúdo é de tal maneira
especial que não apenas o meditador reconhece que um determinado conteúdo no seu
pensamento é irredutível a ele, mas, além disso, que se trata de um conteúdo que só pode ser
explicado por uma realidade formal infinita, perfeita e necessária, como o Deus existente. O
exemplo da máquina complexa elaborado por Descartes na resposta a Caterus parece ilustrar
tal compreensão ligada à necessidade de se encontrar uma explicação para os conteúdos
objetivos (que no caso da ideia de Deus leva à prova da existência de Deus):
[...] se alguém tem na mente a ideia de alguma máquina muito artificial, pode-se, com
razão, perguntar qual é a causa dessa ideia. [...] Não será muito satisfatório também
223 Cf. AT VII, 40; CP, 111, §15. 224 É preciso que se aponte aqui a questão sobre se todas as ideias possuem ou não realidade objetiva. Considerando-se que o conceito de realidade objetiva em debate diz respeito aos graus de ser presentes no ser objetivo exibido por uma ideia na consciência quando esse ser objetivo apresenta alguma coisa como um conjunto de propriedades necessárias, é possível compreender que nem todas as ideias possuam realidade objetiva. No entanto, como se verá mais à frente no texto isso não significa defender que apenas as ideias de Deus e dos objetos matemáticos possuam realidade objetiva, pois é razoável conceber que ideias de coisas materiais também possuam-na à medida que são, no fim das contas, ideias que designam coisas independentes da mente – ainda que antes da prova da existência das coisas materiais não se possa saber disso.
183
quem disser que é o entendimento mesmo a causa à medida que se trata de uma de
suas operações; pois não se duvida disso, mas somente se quer saber qual é a causa
desse artifício objetivo que está nela. Pois, que essa ideia contenha esse artifício
objetivo e não outro, isso se deve, sem dúvida, a alguma causa; e o que se aplica ao
artifício objetivo pertencente a essa ideia, também se aplica à realidade objetiva
pertencente à ideia de Deus (AT VII, 103-104)225.
É preciso, agora, apontar o que é propriamente o ser objetivo exibido pelas ideias e que
tem realidade objetiva à medida que não é redutível às operações do pensamento. A questão
nesse momento volta-se para uma explicação acerca da natureza do conteúdo das ideias. Qual
é o status ontológico do ser objetivo de uma ideia que apresenta para a mente um objeto com
propriedades determinadas que se impõem ao pensamento e, por isso, é irredutível à operação
mental que o exibe, como no caso da ideia de Deus e dos objetos matemáticos? Segundo o que
foi visto, justamente pelo seu caráter não dependente da mente é que se pode pensar o ser
objetivo como algo de real no pensamento. Entretanto, não se trata da própria coisa existindo
formalmente no intelecto, mas sim a coisa existindo objetivamente, isto é, segundo um modo
de ser que, apesar de diminuto e imperfeito, não é um “puro nada”. Aqui retoma-se a leitura de
Landim (2014, p. 681-682), em acordo com o que é sugerido por ele, para considerar a
plausibilidade de que esse conteúdo real exibido pela ideia, porque apresenta propriedades
necessárias que entram na composição de um objeto que é visado pela mente, relaciona-se com
as essências. Como aquilo que se deriva necessariamente da ideia de alguma coisa é próprio
dessa coisa, isto é, se da ideia de um objeto advém forçosamente uma propriedade, quando se
fala que o ser objetivo apresenta propriedades necessárias do objeto, fala-se, então, que o ser
objetivo exibe no intelecto a essência do objeto. É isso que faz do ser objetivo uma realidade
no pensamento, que, no entanto, é de certo modo autônoma, pois não depende dele para ser o
que é.
Essa interpretação de Landim é bastante alinhada com aquela apresentada por Alquié
(1991, p. 201-202). Como visto anteriormente, com o intuito de explicitar que a realidade que
as ideias têm no pensamento consiste num tipo específico distinto tanto da realidade do eu
225 « […] si quelqu’un a dans l’esprit l’idée de quelque machine fort artificielle, on peut avec raison demander quelle est la cause de cette idée […] Celui- là ne satisfera pas aussi, qui dira que l’entendement même en est la cause, en tant que c’est une de ses opérations ; car on ne doute point de cela, mais seulement on demande quelle est la cause de l’artifice objectif qui est en elle. Car que cette idée contienne un tel artifice objectif plutôt qu’un autre, elle doit sans doute avoir cela de quelque cause, et l’artifice objectif est la même chose au respect de cette idée, qu’au respect de l’idée de Dieu la réalité objective » (AT IX, 83).
184
pensante, quanto da realidade das coisas externas ao pensamento, Alquié encontra na
irredutibilidade dos conteúdos das ideias às operações do pensamento a justificativa para o que
procurava. O fato de algumas ideias apresentarem objetos que se impõem ao pensamento
também encaminha Alquié para a interpretação de que esses objetos exibidos estejam
relacionados a essências à medida que tratam, na verdade, de um conjunto de propriedades
necessárias que designam alguma coisa sobre a qual o pensamento não pode intervir,
reorganizar, reconstruir porque isso seria transformar tanto o conteúdo representado, quanto a
coisa por ele designada. É por isso que Alquié faz referência à seguinte passagem da Quinta
Meditação para tratar do tema em questão, pois nela Descartes trata dessa noção de essência
como conjunto de propriedades determinadas que constituem uma natureza em si, independente
de qualquer constituição subjetiva:
[...] encontro em mim uma infinidade de ideias de certas coisas que não podem ser
consideradas um puro nada, embora talvez elas não tenham nenhuma existência fora
do meu pensamento, e que não são fingidas por mim, conquanto esteja em minha
liberdade pensá-las ou não pensá-las; mas elas possuem suas naturezas verdadeiras e
imutáveis. Como, por exemplo, quando imagino um triângulo, ainda que não haja
talvez em nenhum lugar do mundo, fora do meu pensamento, uma figura, e que nunca
tenha havido alguma, não deixa, entretanto, de haver uma certa natureza ou forma, ou
essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e eterna, que eu não inventei
absolutamente e que não depende, de maneira alguma, de meu espírito; como parece,
pelo fato de que se pode demonstrar diversas propriedades desse triângulo [...] (AT
VII, 64; CP, 131-132, §5)226.
Tendo isso considerado, avalia-se nesse momento que a interpretação de que o ser
objetivo exibido pela ideia possui realidade no pensamento à medida que não é integralmente
dependente dele é corroborada pela própria definição de realidade objetiva realizada na
Exposição Geométrica constante das Respostas às Segundas Objeções. Lá Descartes diz: “pela
realidade objetiva de uma ideia, entendo a entidade ou o ser da coisa representada pela ideia,
na medida em que tal entidade está na ideia; e, da mesma maneira, pode-se dizer uma perfeição
226 « […] je trouve en moi une infinité d’idées de certaines choses, qui ne peuvent pas être estimées un pur néant, quoique peut-être elles n’aient aucune existence hors de ma pensée, et qui ne sont pas feintes par moi, bien qu’il soit en ma liberté de les penser ou ne les penser pas ; mais elles ont leurs natures vraies et immuables. Comme, par exemple, lorsque j’imagine un triangle, encore qu’il n’y ait peut-être en aucun lieu du monde hors de ma pensée une telle figure, et qu’il n’y en ait jamais eu, il ne laisse pas néanmoins d’y avoir une certaine nature, ou forme, ou essence déterminée de cette figure, laquelle est immuable et éternelle, que je n’ai point inventé , et qui ne dépend en aucune façon de mon esprit ; comme il paraît de ce que l’on peut démontrer diverses propriétés de ce triangle […] » (AT IX, 51).
185
objetiva, ou um artifício objetivo, etc. [...]” (AT VII, 161; CP, 179)227. Essa passagem pode ser
lida como assinalando que uma ideia apresenta uma realidade objetiva, que o conteúdo exibido
por uma ideia é uma realidade no pensamento, quando se trata da apresentação do ser da coisa
na ideia, isto é, enquanto o ser da coisa é pensado. Se a essência de uma coisa é aquilo que
guarda a definição, ou a determinação das propriedades dessa coisa, então é razoável admitir
que ao consistir no ser da coisa enquanto ela é pensada, a marca do conteúdo das ideias é ser
no pensamento, enquanto pensada, a essência ou o ser das coisas. É ser no pensamento a
exibição de algo que não depende do pensamento.
Tendo em vista que a noção de realidade objetiva do conteúdo das ideias está
relacionada com a noção de essência, as ideias que apresentam um conteúdo necessário são
ideias de essências ou são elas mesmas essências? Segundo Landim (2014, p. 684), a noção de
essência diz respeito tanto a um ser objetivo no pensamento segundo o qual alguma coisa tem
determinadas propriedades definidas, mas não necessariamente existe atualmente, o que diz
respeito à essência pensada; quanto a uma essência atualizada, ou existente, e nesse caso a
essência não se distingue da coisa existente. Nesse sentido, no que se refere às essências, elas
podem ser no pensamento certas ideias de coisas com propriedades determinadas que têm
existência necessária ou meramente possível (são ideias de essências, ou seja, ideias que exibem
um ser objetivo irredutível às operações do pensamento); ou como essências existentes, isto é,
instanciadas na realidade. Tendo isso em vista, pensa-se aqui que se pode responder a questão
do início do parágrafo dizendo que o conteúdo necessário pensado são ideias de essências, são
essências objetivas, isto é, são a maneira pela qual o intelecto é capaz de apresentar, segundo
uma operação representativa, objetos com propriedades necessárias e independentes da mente.
Isso é importante porque se quer defender, em consonância com Landim (2014, p. 684), que há
uma distinção real entre a essência objetiva e a essência atualmente existente, isto é, entre a
ideia da essência de uma coisa e a coisa existente como realização de uma essência: a ideia de
Deus é realmente distinta de Deus existente, ainda que ela seja a ideia da essência de um objeto
cuja existência é necessária. Pensa-se aqui que isso se justifica porque, como Descartes sugere
na resposta a Caterus, como visto anteriormente, o modo de ser objetivo de um objeto é distinto
do modo de ser formal da coisa, mesmo que se refira à mesma essência, pois no que concerne
ao conteúdo das ideias, seu modo de ser é um modo próprio das coisas enquanto são pensadas,
227 « Par la réalité objective d’une idée, j’entends l’entité ou l’être de la chose représentée par l’idée, en tant que cette entité est dans l’idée ; et de la même façon, on peut dire une perfection objective, ou un artifice objectif, etc. […] » (AT IX, 124).
186
o que não é confundível com o modo de ser das coisas enquanto são existentes atualmente228:
ainda que a ideia do sol seja “o sol mesmo existindo no entendimento” (AT VII, 102), o modo
como ele existe lá é próprio das coisas pensadas e diferente das coisas atuais ou formais.
É preciso que se diga que essa leitura que assimila o ser objetivo das ideias às essências
parece dizer respeito apenas às ideias de Deus e dos objetos matemáticos, que são aquelas ideias
que apresentam conteúdos que o sujeito percebe como necessários pela simples análise que faz
deles. Contudo, isso quer dizer que as ideias das coisas externas não possuem realidade objetiva,
uma vez que são ideias cujo ser objetivo pode ser, de certo modo, forjado pelo intelecto? A
hipótese é de que isso não se aplica, pois essas ideias possuem sim realidade objetiva, mas o
conhecimento disso só pode ser alcançado após a realização de todo o percurso do sistema
cartesiano, com as provas existenciais e o desmantelamento da dúvida. É por isso que a análise
introspectiva das ideias proposta na Terceira Meditação apenas logra êxito em provar a
existência de Deus, independentemente de se deparar com toda sorte de conteúdos das ideias.
Após isso, na Quinta Meditação, Descartes alcança o conhecimento das naturezas verdadeiras
e imutáveis seguindo o mesmo movimento que o faz reconhecer que Deus existe na Terceira
Meditação, isto é, a observação de que aquilo que é irredutível, de algum modo, às operações
do pensamento guarda algum tipo de realidade que se impõe ao próprio pensamento, permitindo
reconhecer que é algo de independente dele. Mas apenas na Sexta Meditação é possível provar
que as coisas materiais externas existem e só a partir disso pode-se considerar a efetiva
existência de coisas que eram, até então, meramente possíveis. Desse modo, é legítimo conceber
que as ideias das coisas materiais possuem realidade objetiva porque elas, em última instância,
também exibem alguma coisa que é irredutível às simples operações do pensamento: elas
representam essências de coisas atualmente existentes. Nesse sentido, retomando, é possível
dizer que o ser objetivo das ideias que possuem realidade objetiva é a existência ou realidade
mental representativa das essências tanto de coisas necessárias, quanto de coisas possíveis.
Assim, se o ser objetivo das ideias tem uma realidade objetiva no pensamento porque é
o modo de ser representativo de essências, é possível avançar a seguinte interpretação sobre o
status ontológico do ser objetivo: trata-se de uma realidade exclusivamente mental que, apesar
disso, não depende da mente para ser o que é à medida que consiste num conjunto de
propriedades segundo as quais se determina o ser de um objeto e que se impõe ao pensamento
em função da necessidade de suas propriedades. A ideia, o ser objetivo e a realidade objetiva
compõem, nesse sentido, a teoria cartesiana da percepção na sua complexidade, que se pode
228 Cf. AT VII, 102.
187
sintetizar do seguinte modo: o processo perceptivo se dá via ideias que, porque são “como as
imagens das coisas”, consistem em representações de coisas na consciência. Nesse sentido,
todas as ideias são o mesmo tipo de ato da mente cuja função é representar um conteúdo como
objeto para a consciência. Dessa forma, toda ideia necessariamente envolve um conteúdo
representado. Mas esse conteúdo não é algo de forjado pela operação mental da ideia, ele é a
exibição de um conjunto de propriedades que se imbricam segundo necessidades próprias e
independentes do ato mental que o exibe. De modo que esse conteúdo não pode ser reduzido e
nem explicado apenas por esse tipo de ato mental que é a ideia, pois se trata de um conteúdo
que tem um modo de ser que não é um “puro nada”, mas sim uma realidade objetiva no
pensamento. Em sendo assim, a ideia é um fenômeno ambíguo porque é simultaneamente um
ato da mente e um objeto na mente que, ao mesmo tempo que dependem um do outro (toda
ideia é um ato mental representativo de um objeto – esse tipo de ato mental representativo
depende do objeto representado e o objeto representado só o é em função desse tipo de ato
mental), eles são autônomos à medida que o modo de ser do conteúdo da ideia não se reduz ao
ato que o exibe.
Ora, a teoria cartesiana da percepção parece, então, ser aquela que procura explicar o
fenômeno da percepção das coisas como algo que ocorre a partir das operações mentais. Mas
que, no entanto, não precisa da postulação da existência de objetos externos que seriam
apreendidos pelas operações da mente (sejam eles as coisas atualmente existentes ou
determinadas entidades representativas, como pensou Malebranche). Não supõe que o ato
mental de perceber se realiza na apreensão ou assimilação direta da coisa e, em si mesmo, é
como uma denominação externa das coisas percebidas. Mas, ao contrário, compreende que,
independentemente da existência atual das coisas, determinados seres objetivos, conjuntos de
propriedades determinantes de um objeto, essências, são exibidas e percebidas pela consciência.
Não como entidades, ou coisas realmente distintas do pensamento, mas como resultado da
própria operação perceptiva.
4.2 Teoria cartesiana da percepção: um representacionalismo moderado
De posse da discussão realizada anteriormente, acredita-se ser o momento de examinar
qual é o papel do ser objetivo no que diz respeito ao processo perceptivo das coisas que são
externas e/ou independentes do pensamento. Segundo o que foi visto, o ser objetivo consiste
numa realidade mental relativamente independente da mente à medida que está nela, mas não
se reduz a ela. Nesse sentido, é legítimo defender que o ser objetivo consiste propriamente
188
falando no objeto imediato do ato de percepção, da operação mental que exibe um conteúdo
como objeto para a consciência. O que se percebe diretamente quando se percebe alguma coisa
é o ser objetivo exibido no intelecto por meio de uma operação mental representativa. Isso
significa que o ser objetivo pode ser considerado o intermediário do processo perceptivo que
se coloca como um modo de ser representativo entre a mente (e suas operações) e a coisa, ou
realidade formal externa ao pensamento, (nesse caso, indiretamente) percebida. De forma que
a percepção, ou o conhecimento, das coisas formais se daria pelo acesso imediato que o sujeito
tem a esse ser objetivo, que é no intelecto o modo de ser das coisas enquanto elas são pensadas.
Isso significaria, então, que o acesso do sujeito às coisas atualmente existentes, porque se dá
por meio do ser objetivo que as representa no intelecto, não é direto, mas decorrente da
apreensão, como objeto, de um conteúdo mental com realidade objetiva no pensamento que é
realmente distinto das coisas atuais.
Entretanto, Landim (2014, p. 686) apresenta uma interpretação acerca da relação entre
o ser objetivo e seu (possível) correlato formal que implica uma concepção acerca da
imediaticidade e da mediaticidade da percepção diferente da que foi cogitada no parágrafo
anterior. Ele considera possível conceber que o ser objetivo e seu correlato formal guardam
uma relação de identidade que explicaria por que perceber o ser objetivo imediatamente não
exclui que a percepção do que é representado por ele seja também imediata, e não mediada.
Essa relação de identidade se daria porque entre a essência objetiva (a essência pensada) de
uma coisa e a essência instanciada na realidade (a coisa existente) não haveria nenhuma
distinção, já que se trata da mesma essência, ou seja, o mesmo conjunto de propriedades que
designa a natureza de uma coisa. Considerando isso, o argumento de Landim acerca da
imediaticidade da percepção das coisas parece ser o seguinte: o ser objetivo pode ser
interpretado como sendo a representação de essências de coisas meramente possíveis e de coisas
existentes; as essências enquanto são pensadas e enquanto estão instanciadas nas coisas atuais
consistem no mesmo conjunto de propriedades definidoras de alguma coisa; nesse sentido, ter
a ideia de x, isto é, pensar na essência objetiva de x é perceber um certo conjunto de
propriedades que pode estar instanciado como uma realidade formal existente; assim, quando
se pensa na ideia de x e x é uma coisa existente (é a essência instanciada, a essência existente),
a percepção imediata da essência objetiva de x é também percepção imediata da essência
existente de x; de modo que se pode concluir que x (atualmente existente) é diretamente
percebido pelo sujeito no processo perceptivo, pois, como a essência de uma coisa é aquilo que
a coisa é, ao perceber na ideia a essência de x, percebe-se imediatamente x. Assim, de acordo
189
com essa leitura, a teoria cartesiana da percepção seria uma forma de realismo direto porque o
conhecimento das coisas não depende, em última análise, de um terceiro, de um intermediário
que se interpõe entre a percepção e a coisa percebida. Ainda que o ser objetivo apresentado pela
ideia na consciência seja uma realidade no pensamento (e ele o é à medida que consiste na
representação de essências que, enquanto tal, não dependem e não se resumem à mera atividade
do pensamento), ainda que a percepção imediata seja a que se tem do ser objetivo, a percepção
das coisas existentes não é indireta, para Landim, porque entre a essência pensada e a essência
existente não há distinção. De modo que ao perceber o ser objetivo de alguma coisa, percebe-
se também diretamente a coisa229.
Há muitos autores230 que defendem um realismo direto na teoria cartesiana da
percepção. Entre eles encontra-se Pierre Guenancia, a quem se considera importante, nesse
momento, fazer referência. Em um artigo de 2006 intitulado “L’idée comme representation”,
Guenancia defende que a teoria cartesiana admite para a percepção uma relação diádica entre o
sujeito e a coisa percebida que se realiza, portanto, sem nenhum intermediário. Trata-se, como
se verá, de uma defesa do realismo direto baseada em uma leitura bastante diferente da que foi
apresentada até agora, fundamentalmente no que diz respeito ao modo de conceber o que é a
realidade objetiva da ideia.
Entende-se aqui que a preocupação central de Guenancia é em defender que a ideia não
pode ser entendida como “[...] sinônimo, para Descartes, de uma tela interposta entre a mente
e as coisas fora dela” (GUENANCIA, 2006, p. 59)231. Isso significaria conceber que as ideias
formariam o que seria um mundo próprio da mente, fechado em si mesmo, a partir do qual se
poderia atingir as coisas fora da mente. No entanto, para o autor, esse ponto de vista, calcado
numa interpretação do que é a ideia que está ligada a uma perspectiva ontológica, é equivocado
no que diz respeito à concepção cartesiana do que é a percepção. Segundo ele, a questão deve
ser colocada em termos epistemológicos procurando compreender a maneira pela qual uma
ideia permite conhecer, exibir, ou representar um objeto. Isso exclui a questão ontológica acerca
da natureza das ideias, pois a preocupação não se concentra em definir uma suposta natureza
do conteúdo pensado, mas apenas esclarecer as condições em que algo a ser pensado pode ser
dado. O que parece justificar essa leitura está em que Guenancia insiste em que a ideia não é
229 Pretende-se na sequência desse capítulo divergir dessa tese, pois ela parece desconsiderar o que foi defendido anteriormente acerca da distinção entre o modo de ser objetivo no pensamento e o modo de ser formal das coisas. 230 Cf. YOLTON (1984); COOK (1987); NADLER (1989); ALANEN (2003); ONG-VAN-CUNG (2012). 231 « […] synonyme pour Descartes d’un écran interposé entre l’esprit et les choses hors de lui » (GUENANCIA, 2006, p. 59).
190
um ser real, mas apenas a exibição de uma coisa como uma imagem. Dessa maneira, fica
fortemente sugerido que ele entende que ser por representação é distinto de ser real e por isso
o objeto que é exibido por uma ideia na mente não deve ser tomado como um análogo mental
daquilo que é real: “mas não é porque a ideia é um modo de ser por representação da coisa e
não um ser real, que a ideia é uma espécie de contraparte mental ou consciente de uma coisa”
(GUENANCIA, 2006, p. 60)232.
É importante chamar atenção aqui para o uso impreciso de determinados termos feito
por Guenancia. Ao dizer que a ideia não é um ser real, ele toma o termo ‘real’ por aquilo que é
atual de modo que retira disso a conclusão de que porque a ideia tem um modo de ser diferente
do modo de ser atual das coisas (que ele chama de real), então ela não é nada de real. Assim,
porque a ideia não seria nada de real no pensamento, resta ao autor a sugestão de que para se
compreender o que é a ideia deve-se defini-la apenas por sua função representativa, sem levar
em consideração questões sobre sua natureza. Isso significa, em última análise, que a ideia deve
ser compreendida enquanto o ato, ou a operação da mente, de apresentar coisas no pensamento.
Guenancia, como se pode interpretar, defende nesse contexto que a ideia não deve ser
considerada senão enquanto ato: é apenas uma função representativa da mente, não é nada além
dessa função, ou seja, não é nem um objeto mental, nem guarda alguma natureza que a
caracterize de algum modo como distinta da, ou irredutível à, operação representativa da mente:
“é por isso que vale mais a pena dizer que a ideia tem por função representar uma coisa e que
ela não é nada para além dessa função” (GUENANCIA, 2006, p. 60)233.
Ao enfatizar que a ideia deva ser tomada como o ato da mente de representar, isto é, o
ato mental que torna a mente consciente de algum objeto, consciente de algum conteúdo
pensado, Guenancia defende que a ideia não seja confundida com uma espécie de duplicata
mental da coisa atualmente existente. Isso porque o que a ideia exibe e dá a conhecer ao
intelecto, como visto, não seria para ele uma contraparte mental daquilo que é atual, mas apenas
seu sentido, aquilo que é entendido conscientemente e é capaz de designar um objeto: “a ideia
de uma coisa é o seu sentido ou sua significação. Nós [enquanto sujeitos] nunca fazemos a
experiência da separação ou da distinção da coisa e de sua significação. As duas coisas são
232 « Mais ce n’est pas parce que l’idée est un mode d’être par représentation de la chose, et non un être réel, que l’idée est une sorte d’homologue mental ou conscient d’une chose » (GUENANCIA, 2006, p. 60) 233 « C’est pourquoi il vaut mieux dire que l’idée a pour fonction de représenter une chose et qu’elle n’est rien en dehors de cette fonction » (GUENANCIA, 2006, p. 60).
191
dadas juntas ou não são dadas” (GUENANCIA, 2006, p. 62)234. Nesse sentido, a ideia de uma
coisa e a coisa são numericamente a mesma, pois a consciência de um objeto, que é a
compreensão intelectual de um sentido ou de uma significação, segundo Guenancia, vem
acompanhada da própria coisa: ter a ideia de x é ser consciente de uma significação que designa
alguma coisa para além da (operação da) ideia x, isto é, o que se percebe, o que se conhece é a
coisa que é designada pela ideia e não a ideia. Não haveria nenhuma dualidade entre ideia e
coisa, nesse sentido, mas apenas uma operação mental capaz de tornar o sujeito consciente de
alguma coisa e as coisas mesmas em sua realidade formal. Essa interpretação leva Guenancia à
conclusão de que ter uma ideia, representar, significa apenas a operação específica e própria da
mente que permite perceber – diretamente – as coisas.
Guenancia defende, dessa forma, uma leitura realista direta da teoria cartesiana da
percepção, tal qual Landim o faz. Todavia, por vias de interpretação bastante diferentes. Isso
porque Landim, como visto, procura interpretar a natureza do ser objetivo de acordo com a tese
cartesiana de que ele não constitui um “puro nada”, isto é, dá ênfase à questão acerca da
natureza disso que é representado pela ideia no pensamento, o ser objetivo. Enquanto
Guenancia posiciona-se, segundo interpreta-se aqui, a partir de uma estratégia de esvaziamento
da importância da questão ontológica sobre o ser objetivo. E ele o faz em nome da valorização
do que considera preponderante, a saber, tomar a ideia sob o aspecto epistemológico a partir de
sua função de representar objetos na consciência, ou seja, como uma mera operação intelectual
de dar algo a conhecer à mente.
A fim de concluir a interpretação realista direta de Descartes feita por Guenancia, é
preciso expor e evidenciar o sentido em que ele toma o conceito de realidade objetiva. Sentido
esse que, segundo compreende-se aqui, é o que lhe permite defender o realismo direto na teoria
cartesiana. A partir da página 63 do seu artigo, Guenancia retorna ao vocabulário cartesiano a
fim de explicar o sentido em que uma ideia é uma estrutura articulada entre os polos da sua
realidade formal e da sua realidade objetiva. Entretanto, o autor quer evitar o percurso
cartesiano realizado na Terceira Meditação que pressupõe a demonstração de Descartes de que
as ideias precisam de uma causa que explique por que algumas são ideia de umas coisas e outras
são de outras coisas. Ele quer evitar o percurso que envolve a demonstração de que as ideias
possuem um modo de ser que é uma realidade na mente, uma realidade objetiva. Essa estratégia,
234 « L’idée d’une chose, c’est son sens ou sa signification. Nous ne faisons jamais l’expérience de la séparation ou de la distinction de la chose et de sa signification. Les deux sont données ensemble ou pas du tout » (GUENANCIA, 2006, p. 62).
192
sugere-se aqui, faz parte do projeto de interpretação da teoria cartesiana da percepção que relega
o conceito de realidade objetiva a uma situação de desimportância como se esse conceito
tratasse-se apenas de uma complexificação desnecessária à teoria cartesiana. E nessa direção,
Guenancia considera que a noção de realidade objetiva aplica-se às ideias enquanto elas
representam alguma coisa e, nesse sentido, são objetos do entendimento. A realidade objetiva
diz respeito ao conteúdo representado pela ideia. Fala-se em realidade objetiva da ideia quando
esta é tomada enquanto representação de alguma coisa. A maneira como Guenancia propõe que
se deva compreender essas palavras é que elas indicam que o conteúdo representado pela ideia
não é nada além do sentido pensado, nada além da consciência de um significado de alguma
coisa que, em última análise, designa ou aponta para alguma outra coisa independente da mente.
Dessa forma, como já anunciado, a ideia não é uma espécie de duplicata ou contraparte na
mente da coisa realmente existente, mas é a penas aquilo que é entendido quando se percebe ou
se conhece alguma coisa. Nesse sentido, entre o conteúdo, a representação de uma coisa exibida
por uma ideia e a coisa atual não existe, para Guenancia, uma distinção real, pois a
representação é apenas o que se entende da coisa quando se pensa nela e não uma entidade ou
qualquer tipo de modo de ser real no pensamento.
A maneira como Guenancia (2006, p. 63) interpreta a resposta de Descartes a Caterus
nas Respostas às Primeiras Objeções corrobora o que foi dito até agora. Segundo ele, o modo
de ser objetivo das coisas enquanto elas são pensadas refere-se apenas à condição própria do
que está na mente quando se compreende alguma coisa. Assim, as ideias estão objetivamente
no entendimento à medida que ser pensado é algo que ocorre na mente e não fora da mente.
Entretanto, esse modo de ser não constitui a configuração de um duplo da coisa pensada no
entendimento, como se se tratasse, como já aludido, de um tipo de ser composto da realidade
própria que os objetos têm no entendimento. O modo de ser que as coisas costumam ter no
entendimento, segundo a interpretação de Guenancia, é apenas a exibição de um significado
que é inteligido na percepção que o sujeito tem de alguma coisa. Não haveria uma realidade
específica das coisas no entendimento enquanto elas são pensadas, mas apenas o fato de que,
como visto, quando elas são pensadas, seu significado está disponível na consciência. Dessa
maneira, ter a ideia de alguma coisa é simplesmente compreender um sentido que designa, visa
a, alguma coisa para além das próprias operações da mente. E, segundo esse modo de
compreender o que é a percepção, aquilo que é pensado, aquilo que é percebido, é a coisa
mesma, a coisa atual, e não a ideia dessa coisa, que propriamente falando, não é nada além de
uma operação da mente. A ideia é, segundo Guenancia, apenas a operação mental que, ao
193
apresentar um sentido à consciência, visa à coisa mesma a partir desse sentido, ou significação,
entendido no processo perceptivo.
É relevante considerar o seguinte. Segundo a interpretação de Guenancia, anteriormente
exposta, a ideia é um ato da mente que exibe um sentido determinado no pensamento a partir
do qual se pode saber o que ela designa: a ideia do sol é nada além da compreensão intelectual
de um sentido determinado que designa uma coisa no mundo externo ao pensamento. Sendo
assim, cabe questionar: por que a interpretação de que a realidade objetiva de uma ideia é um
sentido determinado no entendimento (que designa a coisa representada) implica, como
Guenancia defende, que esse sentido exibido na consciência (essa realidade objetiva) não é algo
em si mesmo com relativa autonomia tendo em vista o ato mental que o exibe? Como, para o
autor, a realidade objetiva da ideia não é alguma coisa de realmente distinta da coisa formal
designada por ela – a ponto de o autor conceber que a percepção é uma relação diádica entre a
mente e a coisa externa a ela? Essas questões são relevantes tendo em vista o que foi discutido
nesse capítulo acerca da natureza do ser objetivo – discussão essa que é rejeitada por Guenancia
em seu artigo, mas da qual não se consegue aqui escapar. Descartes, tanto na Terceira
Meditação, quanto nas Respostas às Primeiras Objeções ressalta a ideia como a operação da
mente que exibe um objeto que não é um “puro nada” na consciência. Ao contrário, o conteúdo
apresentado pela ideia é alguma coisa de real no pensamento que possui um modo de ser próprio
das coisas enquanto elas são pensadas. Tendo isso em perspectiva, como é possível defender
que a ideia de uma coisa e a coisa atual são numericamente a mesma, como faz Guenancia, pois
enquanto sentido de, ou significação de, a ideia está sempre atrelada à coisa que designa? Como
se pode sustentar, como faz o autor em questão, que esse modo de ser do conteúdo de uma ideia
é aquele típico das coisas quando são compreendidas, mas que em termos de consistência
ontológica isso não significa nada?
A hipótese aqui é que a interpretação realista direta que Guenancia realiza da teoria de
Descartes constrói-se a partir da recusa em tomar o conceito de realidade objetiva das ideias na
gravidade que lhe cabe, procurando mascarar seu modo de construção na filosofia cartesiana
com a finalidade de dar-lhe um destino, ou uma função saneada de eventuais complicadores
metafísicos. Esse procedimento resulta numa estratégia argumentativa que é a de reduzir o
papel que a ideia ocupa na teoria cartesiana da percepção ao de mero ato mental a partir do qual
o sujeito percebe as coisas externas a ele. Falar que é por meio da ideia que se percebe alguma
coisa, nesse contexto, seria apenas tratar da constatação óbvia de que a percepção de alguma
coisa depende de um ato mental de percepção. Desse modo, a argumentação ignora qualquer
194
aspecto ontológico possivelmente atrelado ao conteúdo exibido na consciência pela ideia como
relevante para a teoria. E, nesse sentido, as ideias não seriam nenhum tipo de intermediário da
percepção que o sujeito tem das coisas, isto é, as ideias não seriam nenhum tipo de objeto da
percepção a partir do qual se perceberia as coisas externas ao sujeito. Ao contrário, como já
dito, as ideias seriam nada além de atos mentais de percepção das coisas externas235.
A mesma estratégia argumentativa encontra-se em outros representantes da
interpretação realista direta da teoria cartesiana da percepção como YOLTON (1984); COOK
(1987), NADLER (1989), ALLANEN (2003), para mencionar rapidamente alguns. Entre eles
não se encontra, no entanto, LANDIM (2014), que, como visto, procura encarar as noções de
ser objetivo e de realidade objetiva a partir de uma análise que não se exime de considerar os
aspectos ontológicos ligados a essas noções.
Dessa forma, de acordo com a análise aqui realizada tendo em vista o procedimento
interpretativo que pretende esvaziar o conceito de realidade objetiva, propõe-se considerar a
leitura realista direta de Descartes (como a de Guenancia) muito discordante das ênfases que o
texto cartesiano dá à natureza especial do ser objetivo no pensamento. O exame empreendido
desses textos nesse capítulo procurou mostrar que Descartes tem por objetivo defender que o
ser objetivo não é uma mera denominação extrínseca sem realidade e certa autonomia no
pensamento e ignorar isso é, no mínimo, negligenciar um elemento fundamental para que se
compreenda o conceito de realidade objetiva e o papel que esse conceito ocupa na teoria
cartesiana da percepção.
Além disso, outra questão que parece aqui muito cara e que está relacionada ao esforço
em demonstrar que o ser objetivo tem realidade no pensamento é o fato de que só a partir dessa
perspectiva Descartes pode realizar a primeira prova da existência de Deus na Terceira
Meditação e abrir caminho para o desenvolvimento do percurso das Meditações. Somente a
noção de realidade objetiva da ideia como uma realidade no pensamento que necessita de
explicação causal conduz à prova de que Deus existe e é causa da ideia de Deus pensada pelo
sujeito. Desse modo, ainda que se possa observar ganhos com a interpretação realista direta de
Descartes que operem uma espécie de depuração de complexidades metafísicas aparentemente
desnecessárias, é imperioso observar que esses supostos avanços interpretativos não podem e
não devem desconsiderar aspectos fundamentais da condução argumentativa do pensamento de
um autor, que tem sua ordem e estrutura próprias. Por essas razões, considera-se aqui que a
235 Cf. HOFFMAN (2009, p. 169-170).
195
interpretação realista direta parece fortemente inadequada para dar conta do fenômeno da
percepção na filosofia de Descartes.
Porém, é preciso aqui reforçar que, como dito anteriormente, LANDIM (2014) concebe
que a teoria cartesiana da percepção é uma espécie de realismo direto sem desconsiderar o
aspecto ontológico envolvido nas noções de ser objetivo e de realidade objetiva. Isso significa
que as razões apontadas anteriormente não atingem a intepretação realista direta desenvolvida
por Landim. É preciso oferecer uma razão adicional para se posicionar contra essa leitura.
Apesar de no desenvolvimento expositivo, realizado nesse capítulo, das noções de ser
objetivo e de realidade objetiva ter-se acompanhado as interpretações de Landim, entende-se
aqui, em desacordo com ele, que a conclusão em favor de uma interpretação realista direta de
Descartes é equivocada. Isso porque a leitura realista direta apresentada por ele parece
desconsiderar o que foi defendido (durante o desenvolvimento) acerca da distinção entre o
modo de ser objetivo no pensamento e o modo de ser formal das coisas. Como visto, tratam-se
de modos de ser realmente distintos, de forma que aquilo que é pensado, enquanto é pensado,
possui modo de ser próprio e independente daquilo que é uma coisa formal. Eis uma
compreensão aceita por Landim e acompanhada aqui em função da análise do texto das
Respostas às Primeiras Objeções realizada anteriormente que parece ser ignorada por Landim
quando ele afirma que a percepção imediata da essência objetiva de uma coisa é, em última
análise, a percepção imediata da essência existente dessa coisa. Em favor da distinção entre o
modo de ser objetivo e o modo de ser formal das essências pode-se fazer referência à seguinte
passagem de Descartes em carta de 1645 ou 1646 a destinatário desconhecido que
provavelmente constitui o texto dos comentários aludidos na carta a Mesland de 1645 ou
1646236: “[...] se por essência nós entendemos uma coisa que está objetivamente no intelecto, e
por existência [nós entendemos] a mesma coisa enquanto ela está fora do intelecto, é manifesto
que as duas são realmente distintas” (AT IV, 350; CSMK, 281). Concebe-se que esse trecho
reforça a compreensão de que ainda que a essência pensada de alguma coisa, isto é, um
determinado ser objetivo, seja o mesmo objeto que existe formalmente fora da mente237, o modo
de ser objetivo que o objeto tem enquanto está na mente é realmente distinto do modo de ser
formal do objeto que existe no mundo exterior à mente.
Nesse sentido, pretende-se defender aqui o seguinte encaminhamento: ainda que a
essência de uma coisa reúna as propriedades dessa coisa, enquanto ser objetivo, a ideia de um
236 Cf. AT IV, 346. 237 “[...] a ideia do sol é o sol mesmo existindo no entendimento [...]” (AT VII, 102; AT IX, 82).
196
objeto possui, como já defendido, um modo de ser próprio que é realmente distinto do modo de
ser atual das coisas. Logo, mesmo que se concorde que segundo a teoria cartesiana da percepção
o sujeito pode perceber (ou conhecer) verdadeiramente o que as coisas são – o que consiste
numa forma de realismo, já que são as coisas mesmas, mesmo que indiretamente, que são
conhecidas –, isso, no entanto, não se dá senão por intermédio das representações que
disponibilizam no intelecto o ser objetivo das coisas (necessária ou possivelmente) atuais:
defender o realismo na filosofia de Descartes é diferente de defender que a teoria cartesiana da
percepção seja realista direta.
Dessa forma, defende-se aqui que a teoria cartesiana da percepção é de caráter
representacionalista porque ela não prescinde da mediação do ser objetivo das ideias no
processo perceptivo. A percepção e o conhecimento das coisas externas, para Descartes, decorre
da apreensão imediata do ser objetivo das ideias. Como esse ser objetivo consiste num conjunto
de propriedades que determinam um objeto, percebê-lo diretamente leva à percepção da coisa
que esse ser objetivo representa, contudo isso ocorre indiretamente, pois mediado pela
apreensão imediata do ser objetivo. Trata-se aqui, como se pode notar, de um
representacionalismo de um tipo moderado, se for tomada como referência a teoria
malebranchista da percepção. Isso porque, como visto, para Descartes esse ser objetivo não
constitui uma terceira entidade distinta da mente, mas é sim dependente da mente à medida que
é aquilo que é determinado no intelecto por um ato mental cuja função é exibir um conteúdo
como objeto para a consciência. E também porque a percepção imediata do ser objetivo não
encarcera o sujeito nas suas próprias representações, como se elas constituíssem um mundo
mental particular intransponível. Ao contrário, por intermédio do conteúdo exibido por suas
ideias, o sujeito acessa as coisas formais, externas ao pensamento, mas não diretamente, pois,
como visto, a mente não poderia assimilar ou captar diretamente uma realidade atual. É isso
que entende-se aqui estar explícito na carta de Descarte ao Padre Gibieuf de 19 de janeiro de
1642 nas duas passagens que se seguem: “[...] eu não posso ter qualquer conhecimento daquilo
que está fora de mim que não seja pelo intermédio das ideias dessas coisas que tenho em mim
[...]” (AT III, 474; FA, II, 905)238; e “[...] nós não podemos ter qualquer conhecimento das
coisas que não seja pelas ideias pelas quais nós as concebemos [...]” (AT III, 476; FA, II,
907)239.
238 « […] je ne puis avoir aucune connaissance de ce qui est hors de moi, que par l’entremise des idées que j’en ai eues en moi […] » (AT III, 474; FA, II, 905). 239 « […] nous ne pouvons avoir aucune connaissance des choses, que par les idées que nous en concevons […] » (AT III, 476; FA, II, 907).
197
Em suma, compreende-se aqui que o representacionalismo moderado de Descartes
concebe que o acesso do sujeito às coisas se dá por intermédio de seres objetivos exibidos no
intelecto como representação de coisas. Como consequência disso, o acesso que o sujeito tem
às coisas não se dá, portanto, por uma apreensão direta e imediata dessas coisas. Enquanto
realidade mental, o ser objetivo consiste propriamente falando no objeto imediato do ato de
percepção, da operação mental que exibe um conteúdo como objeto para a consciência. E em
sendo assim, é legítimo conceber que a teoria cartesiana da percepção seja de cunho
representacionalista, pois tem no ser objetivo das ideias o intermediário por meio do qual o
sujeito conhece indiretamente as coisas que não dependem do pensamento, sejam elas
atualmente existentes ou meramente possíveis.
198
CONCLUSÃO
A teoria das ideias de Descartes guarda uma ambiguidade na definição do que é ideia
que implica uma questão acerca da percepção, que é a seguinte: o que se percebe diretamente
no processo perceptivo são as ideias das coisas ou as coisas mesmas em sua realidade formal?
Essa ambiguidade, como foi visto, diz respeito ao fato de Descartes considerar que as ideias
devem ser tomadas segundo sua realidade formal, isto é, como um certo tipo de ato do
pensamento cuja função é a de apresentar alguma coisa como objeto para a consciência; e
segundo sua realidade objetiva, isto é, como um objeto determinado representado na
consciência que, por ser algo de irredutível às operações do pensamento e que a ele se impõe
pela imbricação necessária (e não forjada) das propriedades que apresenta, é alguma coisa de
real no pensamento. Ora, a noção de ideia, nesse sentido, diz respeito simultaneamente ao ato
de apreensão, ou percepção, de alguma coisa e ao conteúdo apreendido, ou percebido, como
objeto. E é preciso que se considere que a ideia se refere ao mesmo tempo a esses dois aspectos
porque Descartes desenvolve o conceito de realidade objetiva para dar conta de um modo de
ser próprio aos conteúdos pensados pelo sujeito que, ainda que exibidos à consciência pelo ato
mental representativo, são algum tipo de realidade autônoma no pensamento que não se
confunde com suas afecções. Tendo isso em vista, é legítimo questionar acerca da percepção,
se seu objeto imediato é a realidade objetiva do conteúdo apresentado pela ideia ou se é a
realidade formal da coisa visada pela ideia.
Nos estudos propostos nessa tese, procurou-se investigar a questão do
representacionalismo ou do realismo direto na teoria da percepção de Descartes tendo como
referência o desenvolvimento da questão a partir do debate instaurado já no século XVII, pouco
depois da morte de Descartes, entre Malebranche e Arnauld, acerca desse tema. Procurou-se,
nesse sentido, elaborar essa interrogação, compreender os elementos e os meandros nela
envolvidos e formular a partir disso uma interpretação para a questão no pensamento de
Descartes com base no modo como ele foi lido tanto por Malebranche, quanto por Arnauld.
Isso porque a leitura que esses importantes filósofos da tradição cartesiana fizeram da teoria de
Descartes é capaz de iluminar, cada uma a seu modo, os problemas nela compreendidos a ponto
de permitir um melhor enfrentamento da questão como ela pode ser pensada a partir do texto
cartesiano.
Como encaminhamento desse projeto, no primeiro capítulo da tese, propôs-se expor e
discutir as preliminares da teoria cartesiana das ideias, que envolvem não apenas a definição de
199
ideia como representação, mas toda uma explicação das razões pelas quais uma certa via de
classificação e análise das ideias pela sua origem não é fundada em princípios bem assegurados.
Essa demonstração é capaz de romper com a associação entre representação, reprodutibilidade
imagética e semelhança que conduz Descartes a uma outra via de análise das ideias que
privilegia o exame delas segundo sua natureza e sua estrutura. Trata-se da via que demonstra
que é possível olhar para as ideias como certos atos do pensamento que, enquanto tais,
envolvem necessariamente conteúdos determinados como objetos para a consciência, isto é,
como representação de coisas. Dessa maneira, a fim de esclarecer o que é a ideia a partir de sua
natureza e de sua estrutura, foi feita a explicitação dos conceitos de realidade formal da ideia e,
além disso considerações sobre o conceito de realidade objetiva a partir das Respostas às
Primeiras Objeções de Caterus com o intuito de tornar mais claro, preliminarmente, o sentido
do conceito de realidade objetiva. Tendo isso em vista, o objetivo do primeiro capítulo em
questão foi o de apresentar argumentativamente a teoria cartesiana das ideias de modo a
circunscrever sua ambiguidade como uma questão em aberto.
Tendo isso em vista, no segundo capítulo, dedicou-se à exposição e ao exame da teoria
da percepção de Malebranche a partir da perspectiva geral de que o que a motiva, ou lhe dá
ensejo, é a leitura e a interpretação de que o que é característica fundamental da ideia é o seu
aspecto representativo de coisas. Isso significa que Malebranche privilegia, no que concerne às
ideias, a perspectiva de que elas sejam conteúdos representativos em detrimento da perspectiva
de que elas sejam atos representativos. De forma geral, entende-se que Malebranche reconhece
a ambiguidade na definição de ideia formulada por Descartes e propõe uma outra teoria que
pudesse dar conta de dirimi-la. A questão para Malebranche é mostrar que o conteúdo
representativo de uma ideia não é resultado de operações mentais que o constituem de alguma
forma, pois as operações da mente são apenas suas modificações internas, de modo que não
poderiam ser representativas de alguma outra coisa que não fosse a própria mente.
Como se viu ao longo do capítulo, ao recusar que os objetos percebidos pela mente finita
sejam dependentes das modificações dessa mente, Malebranche conclui que as ideias são
entidades realmente distintas das operações mentais, de modo que os objetos da percepção são
independentes da mente. Entretanto, esses objetos da percepção não podem ser as coisas
mesmas existentes à medida que a mente não tem condições ontológicas de apreender, ou
perceber, diretamente as coisas materiais. De modo que para dar conta de explicar o fenômeno
da percepção, baseado na leitura de que as ideias, pelo seu caráter representativo, não podem
ser resultados de modificações mentais, Malebranche conclui que o que é percebido são
200
determinados seres representativos espirituais, que são como que substitutivos das coisas
criadas por Deus e que estão em Deus à medida que são idênticos a sua natureza tomada sob
um determinado aspecto, isto é, quando a natureza de Deus é modelo, ou exemplar, para todas
as coisas criadas.
Diante disso, observou-se que as consequências da interpretação e do posicionamento
de Malebranche frente à concepção cartesiana de ideia levam-no a uma compreensão de que o
processo perceptivo é de cunho representacionalista porque entre a mente que percebe e as
coisas materiais percebidas há uma terceira entidade, a ideia, que intermedeia todo o processo
sendo, propriamente falando, o objeto imediato da operação mental perceptiva. Mais que isso,
considerou-se nesse capítulo que o representacionalismo malebranchista trata-se, na verdade,
de um representacionalismo radical, pois, ao fim e ao cabo, o que se percebe realmente é a
substância de Deus quando se percebe nele as ideias. E apenas por inferência, devido à perfeição
e à bondade divinas, tem-se acesso às coisas criadas por Deus.
No terceiro capítulo, examinou-se a crítica de Arnauld às concepções malebranchistas
em sua teoria da percepção. A interpretação elaborada nesse capítulo acerca dos
posicionamentos de Arnauld tem como referência o seu propósito de solapar o procedimento
argumentativo utilizado por Malebranche que, segundo Arnauld, conduz a teses e
consequências absurdas acerca do tema da percepção, que seriam incompatíveis, na sua
interpretação, com a teoria de Descartes. Desse modo, notou-se que a fim de contestar os
fundamentos que permitem a Malebranche defender sua tese de que as ideias são objetos
representativos realmente distintos tanto da percepção, isto é, do ato mental da percepção,
quanto das coisas criadas por Deus, Arnauld reforça, no desenvolvimento do seu trabalho, o
caráter da ideia como não distinta do ato mental representativo. Ao fazer isso, ele pretende dar
uma resposta a Malebranche no sentido de mostrar a maior plausibilidade, frente à concepção
cartesiana de ideia, de uma teoria da percepção que compreende as ideias como não diferentes
de um ato representativo do pensamento por meio do qual o sujeito pode perceber as coisas. O
esforço argumentativo de Arnauld é o de provar não apenas que a teoria malebranchista está
assentada em bases falsas, mas que a compreensão de ideia como certos seres representativos
independentes da mente depende da postulação de entidades metafísicas desnecessárias para o
efetivo entendimento de como a percepção funciona. E dessa maneira, Arnauld pretende evitar
a consequência representacionalista de Malebranche, que ele entende como radical e
incompatível com os propósitos e a simplicidade de Deus na criação, bem como uma má
compreensão da teoria cartesiana da percepção.
201
Apesar da análise das passagens em que Arnauld parece que poderia assumir um tipo
de representacionalismo na percepção, diferente daquele de Malebranche, não se concluiu na
tese uma interpretação definitiva que o entenda dessa maneira. Isso porque o peso dado por
Arnauld à noção de ideia como ato do pensamento, quando ele associa ideia à percepção,
permite, como visto no terceiro capítulo, a interpretação de que o vocabulário
representacionalista utilizado por Arnauld nessas passagens esteja sendo empregado de maneira
meramente trivial, como quem constata que é apenas através de uma percepção que as coisas
são percebidas, o que pode subsidiar interpretações realistas diretas de Arnauld. Desse modo,
o que se retirou da investigação feita sobre Arnauld nesse capítulo é que para desmantelar a
teoria da percepção de Malebranche, Arnauld procura depurar justamente aquilo que enseja
essa teoria, a saber, a noção de que a ideia é um conteúdo representativo que, de alguma
maneira, se diferencia do ato mental que a torna disponível à consciência e, enquanto tal, precisa
ter a sua natureza explicada. Tendo isso em vista, ele promove uma interpretação da ideia que
a reduz à operação perceptiva da mente e, assim, impede que ela seja tomada como uma terceira
entidade. Contudo, como considerou-se, ao fazê-lo, Arnauld negligencia o conceito cartesiano
de realidade objetiva, permitindo uma interpretação acerca da ideia e da percepção que
esvaziam a teoria de Descartes.
No quarto e último capítulo da tese, retomou-se a discussão acerca da teoria cartesiana
da percepção a fim de olhá-la sob um prisma mais amplo e esmiuçado que se tornou possível
em função da análise de parte do debate entre Malebranche e Arnauld. Conforme a retomada
do exame da resposta com Caterus, procurou-se precisar mais claramente os conceitos de ser
objetivo e de realidade objetiva da ideia a fim de se produzir uma explicação do motivo pelo
qual a ideia é definida por Descartes como um ato da mente que exibe na consciência alguma
coisa como objeto, isto é, como algo de diferente das próprias afecções mentais do sujeito, um
ser objetivo.
Na interpretação desenvolvida, defendeu-se que o conteúdo apresentado pelo ato
representativo da mente na consciência, o ser objetivo, possui realidade objetiva. Isso significa
que esse ser objetivo é alguma coisa de real, que tem grau de realidade, no pensamento e, de
certa maneira, autônoma à medida que não se reduz a, ou não se explica pela, simples operação
mental que o exibe. Com isso se quer dizer que o ser objetivo tem realidade objetiva quando é
a representação mental de um conjunto de propriedades determinadas que designa algum objeto
distinto do sujeito. Sobre o ser objetivo, o pensamento não tem nenhuma ingerência, suas
operações não entram na composição desse conjunto de propriedades, de modo que é possível
202
afirmar que o ser objetivo se impõe ao pensamento: é alguma coisa no pensamento, mas que
não depende dele para ser o que é.
Por ser algo de real no pensamento, é legítimo compreender o ser objetivo como algo
distinto do próprio pensamento. Entretanto, contrariamente à interpretação de Malebranche, a
leitura de Descartes feita nesse capítulo final entende que o ser objetivo não é independente da
mente e por isso cabe dizer que ele é apresentado pela ideia (tomada como ato) no pensamento.
Sendo assim, com relação às operações do pensamento, o conteúdo representativo, ou o ser
objetivo de uma ideia, possui apenas uma autonomia relativa que não implica independência.
E dessa forma, o ser objetivo não consiste num objeto realmente distinto e separado da mente.
É importante perceber que a interpretação realizada nessa tese recusa claramente a
solução malebranchista para a teoria da percepção. Contudo, ela recusa também a leitura
arnaldiana, que, em função das razões debatidas, procura reduzir o conteúdo representativo das
ideias às operações do pensamento. Entende-se que se fosse assim como Arnauld sugere,
Descartes jamais poderia oferecer uma resposta satisfatória a Caterus e o sistema cartesiano
restaria impedido de romper com o solipsismo. Levando isso em consideração, defende-se aqui
que se procurou estabelecer uma interpretação intermediária para o status ontológico do ser
objetivo que recusou tanto sua existência como uma terceira entidade distinta e separada da
mente, quanto sua redução indevida à simples operação mental.
Tanto a leitura de Malebranche, como a de Arnauld acerca da teoria da percepção de
Descartes produzem consequências teóricas não apenas imprevistas, mas, talvez
principalmente, recusáveis por ele. Pois, defendeu-se nessa tese que o texto cartesiano sugere
fortemente que a ambiguidade expressa na definição de ideia diz respeito a características
próprias da percepção do sujeito segundo as quais ele pode conhecer coisas externas ao seu
pensamento. O que se quer dizer é que ao procurar conjugar na definição de ideia os aspectos
do ato mental e do conteúdo mental, Descartes não estaria cometendo uma imprecisão, mas sim
explicando que o fenômeno da percepção de coisas, quando realizado pelo sujeito, é algo que
ocorre segundo as operações do seu pensamento, que são capazes de acessar objetos distintos
dele mesmo sem o recurso a entidades metafísicas pouco esclarecidas e sem o recurso a um
realismo ingênuo que admite como um dado a existência de coisas que seriam apreendidas pela
percepção. Entendeu-se nessa tese que Descartes, com a ambiguidade da noção de ideia,
procura mostrar que a percepção, nesses termos, é um fenômeno do sujeito pensante e, no fim
das contas, do homem, que se explica pela análise daquilo que se passa nesse sujeito, isto é,
sem a necessidade de qualquer postulação metafísica não fundamentada.
203
Nesse sentido, é possível compreender com mais exatidão a afirmação de que ideia,
segundo Descartes, é um modo do pensamento que é “como imagem das coisas”. Isso significa
que a ideia é, como já dito, um certo tipo de modificação mental de caráter representativo e,
simultaneamente a isso, ela é indissociavelmente a exibição de um conteúdo que é representado
como objeto no pensamento; e esse conteúdo não se confunde com o ato. Arrisca-se aqui uma
analogia ilustrativa: tal como um projetor exibe uma imagem ao projetá-la numa tela em branco;
e essa imagem, ainda que dependa do projetor para ser projetada, não se confunde, ou se resume
ao projetor, à medida que ela é a exibição de alguma coisa distinta do próprio projetor, que se
configura segundo seu modo particular de ser; é admissível tomar analogamente a ideia como
uma espécie de projetor na teoria cartesiana das ideias, isto é, como um instrumento, o ato
representativo do pensamento, que projeta, ou apresenta (não figurativamente, nesse caso) um
determinado conteúdo na consciência. Ainda que o conteúdo representativo da ideia dependa
do ato mental que o exibe no intelecto (assim como a imagem depende do projetor), ele não
depende integralmente desse ato para ser o que é, pois é alguma coisa de real no pensamento,
relativamente autônoma com relação a ele, que designa, segundo seu modo próprio de ser,
alguma coisa fora do pensamento.
Por fim, se a ideia, segundo Descartes, é esse modo representativo do pensamento que
exibe um conteúdo determinado como objeto na consciência – conteúdo esse que é uma
realidade no pensamento relativamente autônoma ao ato que a exibe – e que não depende da
existência de nenhum correlato formal instanciado na realidade para ser pensado, então é
legítimo defender que a teoria da percepção de Descartes é de cunho representacionalista. Pois
são os conteúdos representativos que são diretamente percebidos pelo sujeito. Como foi visto
no último capítulo, entre o modo de ser objetivo das coisas pensadas e o modo de ser formal
das coisas existentes há uma distinção real que permite concebê-las como coisas
numericamente distintas. Nesse sentido, mesmo que o conjunto de propriedades que designa
um determinado objeto esteja atualizado no determinado objeto existente, a ideia desse conjunto
de propriedades distingue-se do ente formal que atualiza tais propriedades. Por esse motivo,
quando o sujeito percebe alguma coisa, o que ele percebe diretamente é a ideia de alguma coisa
que o remete para algo distinto do pensamento. A ideia medeia o processo perceptivo na teoria
cartesiana e o sujeito só acessa as coisas mesmas indiretamente.
Entretanto, para concluir, é necessário que se diga que, diferentemente do
representacionalismo de Malebranche, em que a mente finita só acessa um aspecto da
substância divina quando percebe as ideias em Deus, ou seja, onde a relação perceptiva da alma
204
se dá apenas com Deus; o representacionalismo observado na teoria cartesiana da percepção
deve ser entendido como mais moderado à medida que, segundo ele, ainda que indiretamente,
isto é, por intermédio do ser objetivo exibido pela ideia na consciência, o sujeito estabelece
uma relação perceptiva e cognitiva com o mundo criado por Deus.
205
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALANEN, Lilli. Descartes’s concept of mind. Cambridge e Londres: Harvard University Press, 2003.
ALQUIÉ, Ferdinand. La découverte méthaphysique de l’homme chez Descartes. Paris: Presses Universitaires de France, 4ª ed., 1991.
ARNAULD, Antoine. Des vraies et des fausses idées. Denis Moreau (editor). Paris: Vrin, 2011.
BEYSSADE, Jean-Marie. Sensation et idée: le patron rude. In: Antoine Arnauld: philosophie du langage et de la connaissance. Jean-Claude Pariente (org.). Paris: Vrin, 1995.
CHAPPEL, Vere. The theory of ideas. In: Essays on Descartes’ Meditations. Amélie O. Rorty (org.). University of California Press, 1986.
COOK, Monte. Arnauld’s alleged representationalism. Journal of the History of Philosophy, p. 53-62, 12, 1974.
_____. The alleged ambiguity of “idea” in Descartes’ philosophy. The Southwestern Journal of Philosophy, vol. 6, n. 1, p. 87-94. University of Arkansas Press: WINTER, 1975.
_____. Descartes’ alleged representationalism. History of Philosophy Quarterly, vol. 4, No. 2, p. 179-195 Abril, 1987.
_____. Malebranche versus Arnauld. Journal of the History of Philosophy, vol. 29, n. 2, p. 183-199. Johns Hopkins University Press: Abril, 1991.
_____. The ontological status of malebranchean ideas. Journal of History of Philosophy, vol. 36, n. 4, pp. 525-44, 1998.
COSTA, Michael J. What cartesian ideas are not. Journal of the History of Philosophy, vol. 21, n. 4, p. 537-549. Johns Hopkins University Press: October, 1983.
DAUVOIS, Daniel. Idée et figure chez Descartes. In: La voie des idée? Le statut de la representation XVIIe-XXe siècles. Kim Sang Ong-Van-Cung (org.). Paris: CNRS Éditions, 2006.
DE ROSA, Raffaella. Descartes and the puzzle of sensory representation. Nova York: Oxford University Press, 2010.
_____. Descartes’ causal principle and the case of body-to-mind causation. In: Canadian Journal of Philosophy, v. 43, n. 4, p. 438-459, 2013.
206
DERENNE, Jaime. Recherches arnaldiennes – Tome I: Théorie raisonnée des idées chez Antoine Arnauld: reprise et prolongement du projet cartésien. Paris: Classiques Garnier, 2017.
DESCARTES, René. Coleção Os Pensadores: Descartes. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
_____. Œuvres de Descartes. Charles Adam & Paul Tannery (org.), 11 vol. Paris: Vrin, 1957-1996.
_____. Descartes, Œuvres philosophiques. Ferdinand Alquié (org.), 3 vol. Paris : Classiques Garnier, 1996-98.
_____. The philosophical writings of Descartes. Tradução de John Cottingham, Robert Stoothoff e Dugald Murdoch. Cambridge: Cambridge University Press, 1984-85. Vol I-II.
_____. The philosophical writings of Descartes. Tradução de John Cottingham, Robert Stoothoff, Dugald Murdoch e Anthony Kenny. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. Vol III.
_____. Princípios da Filosofia. Tradução de Guido Antonio de Almeida (coordenador), Raul Landim Filho, Ethel M. Rocha, Marcos Gleizer e Ulysses Pinheiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
_____. Discurso do método & Ensaios. Tradução de César Augusto Battisti, Érico Andrade, Guilherme Rodrigues Neto, Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli, Pablo Rubén Mariconda, Paulo Tadeu da Silva. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
GLEIZER, Marcos André. Espinosa e a ideia-quadro cartesiana. In: Metafísica e conhecimento – ensaios sobre Descartes e Espinosa. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014.
GUENANCIA, Pierre. L’idée comme représentation. In: La voie des idée? Le statut de la représentation XVIIe-XXe siècles. Kim Sang Ong-Van-Cung (org.). Paris: CNRS Éditions, 2006.
_____. L’intelligence du sensible. Gallimard, 1998.
GUEROULT, Martial. Descartes selon l’ordre des raisons. 2 vol. Pais: Aubier, 1953
_____. Malebranche: I. La vision en Dieu. Paris: Aubier-Montaigne, 1955.
KAMBOUCHNER, Denis. Les corps sans milieu: Descartes à la lumière d’Arnauld. In: La voie des idée? Le statut de la representation XVIIe-XXe siècles. Kim Sang Ong-Van-Cung (org.). Paris: CNRS Éditions, 2006.
207
_____. Des vraies et des fausses ténèbres: la connaissance de l’âme d’après la controverse avec Malebranche. In: Antoine Arnauld: philosophie du langage et de la connaissance. Jean-Claude Pariente (org.). Paris: Vrin, 1995.
LANDIM FILHO, Raul. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992.
_____. Idée et représentation. In: Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento. São Paulo: Discurso Editorial, 2009.
_____. Objeto e representação. In: Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento. São Paulo: Discurso Editorial, 2009.
_____. Ideia, ser objetivo e realidade objetiva nas “Meditações” de Descartes. Kriterion, Belo Horizonte, n. 130, p. 669-690, Dez. 2014.
HOFFMAN, Paul. Direct realism, intentionality, and the objective being of ideas. In: Essays on Descartes. Nova York: Oxford University Press, 2009.
JOLLEY, Nicholas. The light of the soul: theories of ideas in Leibniz, Malebranche, and Descartes. Nova York: Oxford University Press, 1990.
LAIRD, John. The ‘legend’of Arnauld’s realism. Mind, New Series, Vol. 33, No. 130, p. 176-179, Abril 1924.
LENNON, Thomas. Philosophical commentary. In: The Search After Truth, Ohio State University Press, 1980.
LOVEJOY, Arthur O. ‘Representative ideas’ in Malebranche and Arnauld. Mind, New Series, vol. 32, n. 128, p. 449-461, Out. 1923.
_____. Reply to professor Laird. Mind, New Series, Vol. 33, No. 130, p. 180-181, Abril 1924.
MCRAE, Robert. “Idea” as a philosophical term in the seventeenth century. Journal of the History of Ideas, vol. 26, no. 2, p. 175-190, Abr. - Jun., 1965.
MALEBRANCHE, Nicolas. Oeuvres Complètes de Malebranche. Paris: Vrin, 1958-70.
_____. A Busca da Verdade. trad. Plínio J. Smith. Discurso Editorial, Paulus, 2004.
MOREAU, Denis. Deux Cartésiens: La Polémique Arnauld Malebranche. Paris: Vrin, 1999.
NADLER, Steven. Reid, Arnauld and the objects of perception. History of Philosophy Quarterly, vol. 3, n. 2, p. 165-173. University of Illinois Press on behalf of North American Philosophical Publications: Abr., 1986
208
_____. Arnauld and the Cartesian philosophy of ideas. New Jersey: Princeton University Press, 1989.
_____. Malebranche and ideas. Nova York: Oxford University Press, 1992.
_____. Malebranche and the vision in God: a note on the Search After Truth III, 2, iii. Journal of History of Ideas, Vol. 52, n. 2, pp. 309-14, 1991.
ONG-VAN-CUNG, Kim Sang. L’ argument de l’ilusion en la philosophie cartésienne des idées. Revue de métaphysique et de morale (n° 42), p. 217-233. Presses Universitaires de France: 2004/2.
_____. L’objet de nos pensées. Paris: Vrin, 2012.
PEARCE, Kenneth L. Arnauld’s verbal distinction between ideas and perceptions. History and Philosophy of Logic, vol. 37, n. 4, p. 375–390, 2016.
PESSIN, Andrew. Malebranche on ideas. Canadien Journal of Philosophy. Vol. 34, n. 2, p. 241-286, Junho, 2004.
PYLE, Andrew. Malebranche. Routledge, 2003.
ROBINET, André. Descartes: la lumière naturelle, intuition, disposition, complexion. Paris: Vrin, 1999.
ROCHA, Ethel M. O conceito de realidade objetiva na Terceira Meditação de Descartes. Analytica, Vol. 2, n. 2, pp. 203-18, 1997.
_____. Teoria das ideias no sistema cartesiano: a questão da fundamentação do conhecimento. In: Analytica, vol. 6, n. 2. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001-2002.
RODIS-LEWIS, Geneviève. L’oeuvre de Descartes. Paris: Vrin, 1971, 2013.
SCHMALTZ, Tad. Malebranche on ideas and the vision in God. In: Cambridge Companion to Malebranche, pp. 59-87. Cambridge, 2000.
SHAPIRO, Lionel. Objective being and “ofness” in Descartes. Philosophy and Phenomenological Research, vol. 84, n. 2, p. 378- 418. International Phenomenological Society: Março, 2012.
VINCI, Thomas C. Cartesian Truth. New York: Oxford University Press, 1998.
WELLS, Norman J. Objective ideas in Descartes, Caterus and Suarez. Journal of the History of Philosophy, vol. 28, n. 1, p. 33-61. The Johns Hopkins University Press: Janeiro, 1990.
209
WILSON, Catherine. Descartes’ Meditations: an introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
WILSON, Margaret D. Descartes on the Origins of Sensation. Ideas and Mechanism: Essays on Early Modern Philosophy. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1999.
YOLTON, John. Ideas and knowledge in seventeenth-century philosophy. Journal of the History of Philosophy, vol. 13, n. 2, p. 145-165. Johns Hopkins University Press: Abril, 1975.
_____. Perceptual Acquaintance From Descartes to Reid. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.