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social,3 se no encerra todas as controvrsias em torno do tema, certamente contribui
para uma "re-viso" do instituto da propriedade diante dos novos valores consagrados
na Constituio de 1988. nesse sentido que se nota, cada vez mais, uma tendncia a
repensar as caractersticas essenciais do domnio4 e a redimensionar a proteo que
lhe dispensada pelo ordenamento jurdico.
Mas a que ponto essa nova tendncia tem interferido no tratamento
jurisprudencial do direito de propriedade? Que papel tem sido atribudo pelos
tribunais brasileiros ao princpio da funo social? De que maneira vem se garantindo
ou buscando garantir a efetiva funcionalizao do domnio? Essas so questes de
ordem prtica que o ttulo, pouco sedutor, j sugeria e que apenas a anlise das
decises judiciais permite responder. O que se pretende aqui to-somente confrontaro pensamento doutrinrio e o tratamento jurisprudencial, a teoria e a prtica da funo
social da propriedade, a fim de se alcanar uma percepo mais realista dessa matria
no direito brasileiro.
2. Consideraes preliminares sobre a funo social da propriedade. Estrutura e
funo. Concepo pluralista da propriedade.
O estudo das decises dos tribunais brasileiros revela determinadas questes
polmicas em que se tem centrado a discusso sobre a funo social da propriedade.
Essas questes no necessariamente coincidem com aquelas de que se ocupa a
3 Inclusive por parte de autores consagrados. Cf. GUSTAVO TEPEDINO, "Contornos Constitucionais daPropriedade Privada", in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 267-291; LUIZEDSON FACHIN, "Da Propriedade como Conceito Jurdico", in Revista dos Tribunais n 621, pp. 16-39;FABIO KONDERCOMPARATO, "Funo Social da Propriedade dos Bens de Produo", in Revista de
Direito Mercantil n 63, pp. 71-79; CELSO RIBEIRO BASTOS, "A Funo Social como LimiteConstitucional ao Direito de Propriedade", in Revista de Direito Constitucional e Cincia Poltica v. 4,n 6, pp. 101-113; JOS DINIZ DE MORAES,A Funo Social da Propriedade e a Constituio Federalde 1988, So Paulo: Malheiros, 1999; e LUS ROBERTO GOMES, "O Princpio da Funo Social daPropriedade e a Exigncia Constitucional de Proteo Ambiental", in Revista de Direito Ambientaln17, pp. 160-178, entre outros.4 Os termos propriedade e domnio so aqui utilizados como sinnimos, embora alguns autoressustentem a sua diferenciao. Cf., por exemplo, RICARDO ARONNE, Propriedade e Domnio Reexame Sistemtico das Noes Nucleares de Direitos Reais, Rio de Janeiro: Renovar, Biblioteca deTeses, 1999.
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doutrina, mas quase sempre podem ser interpretadas como efeitos especficos de
debates tericos mais genricos. De fato, o que a prtica jurisprudencial expe, em
ltima anlise, so os reflexos do conflito entre a ultrapassada concepo
individualista da propriedade e a sua atual funcionalizao a interesses sociais, como
fruto de uma tica mais solidria e menos excludente. A transio do modelo anterior
para o novo provoca naturalmente alguma instabilidade. Diante disso, os juristas tm
avidamente buscado apoio em conceitos slidos e instrumentos tcnicos consagrados,
dos quais ainda anda cata a nova concepo.
Quanto ao prprio conceito de funo social da propriedade permanece ainda
alguma incerteza. O contedo ideolgico sugerido pela expresso faz com que nela se
vislumbre, vez por outra, uma ameaa de negao propriedade privada e ao prpriosistema capitalista. Exemplo disso se tem na seguinte ementa:
"Ningum nega ao Poder Pblico o direito de instituir parques nacionais,
estaduais ou municipais, contanto que o faa respeitando o sagrado
direito de propriedade assegurado pela Constituio Federal anterior
(artigo 153, 22) e pela vigente (artigo 5, inciso XXII). (...) O fato de o
legislador constitucional garantir o direito de propriedade, mas exigir
que ele atenda a sua funo social (XXIII) no chegou ao ponto de
transformar a propriedade em mera funo e em pesado nus e
injustificvel dever para o proprietrio." (original sem grifo). 5
O temor explica-se, em parte, diante da prpria evoluo histrica do conceito
de funo social, que surge, na obra do constitucionalista francs Leon Duguit, como
contraposio ao direito subjetivo de propriedade.6 s por meio de rduos esforos
5 Trecho do voto proferido pelo Min. Garcia Vieira, do Superior Tribunal de Justia, no RecursoEspecial 32.222-8/PR, julgado em 17 de maio de 1993. A ementa do acrdo j sugeria a investidacontra a ideologia socialista: "Da queda do muro de Berlim e do desmantelamento do impriocomunista russo sopram ventos liberais em todo o mundo. O Estado todo poderoso e proprietrio detodos os bens e que preserva apenas o interesse coletivo, em detrimento dos direitos e interessesindividuais, perde a sobrevivncia."6 LEON DUGUIT,Les Transformations du Droit Priv Depuis le Code Napolon , Paris: Armand Colin,1 ed., 1913, sobretudo pp. 152 e ss. Para detalhada anlise da lgica funcional de Duguit e de sua
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da doutrina italiana que a funo social vem se consolidar como elemento interno do
domnio, capaz de alterar a estrutura desse instituto jurdico.7
Os institutos jurdicos, em consagrada classificao , decompem-se em dois
elementos: o elemento estrutural e o elemento teleolgico ou funcional; em outras
palavras, a estrutura e a funo. Na lio de Pietro Perlingieri, "estrutura e funo
respondem a duas indagaes que se pem em torno do fato. O como ? evidencia a
estrutura, o para que serve? evidencia a funo."8 A funo corresponde aos
interesses que um certo instituto pretende tutelar, e , na verdade, o seu elemento de
maior importncia j que determina, em ltima anlise, os traos fundamentais da
estrutura. Para Salvatore Pugliatti, a funo a "razo gentica do instituto" e, por
isso mesmo, seu elemento caracterizador9. Das lies do Professor de Messina seextrai, em sntese, que: (i) a funo corresponde ao interesse que o ordenamento visa
tutelar por meio de um determinado instituto jurdico; e (ii) a funo de um instituto
jurdico pr-determina a sua estrutura.
Na concepo individualista do direito de propriedade, definido como o
direito de usar e dispor das coisas "de la manire plus absolute", parece evidente que
a funo do domnio correspondia unicamente proteo dos interesses do
proprietrio. O titular do direito de propriedade era dotado de um direito quase
absoluto, cuja amplitude esbarrava apenas em limitaes de carter negativo,
obrigaes de no fazer que lhe eram impostas pelo Poder Pblico. E mesmo essas
crtica ao direito subjetivo, ver, entre ns, JOS FERNANDO DE CASTRO FARIAS,A Origem do Direito deSolidariedade, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, pp. 222-236.7 Cf. GUSTAVO TEPEDINO, "Contornos Constitucionais da Propriedade Privada", cit., sobretudo pp.277-283.8
PIETRO PERLINGIERI, Perfis do Direito Civil Introduo ao Direito Civil Constitucional, Rio deJaneiro: Renovar, 1999, p. 94.9 SALVATORE PUGLIATTI, La Propriet nel Nuovo Diritto, Milano: Dott. A. Giuffr Editore, 1964, p.300: "Non soltanto la struttura per s conduce inevitabilmente al tipo che si pu descrivere, ma nonindividuare, bens inoltre la funzione esclusivamente idonea a fungere da criterio d'individuazione:essa, infatti, d la ragione genetica dello strumento, e la ragione permanente del suo impiego, cio laragione d'essere (oltre a quella di essere stato). La base verso cui gravita e alla quale si collegano lelinee strutturali di un dato istituto, costituita dall'interesse al quale consacrata la tutela. L'interessetutelato il centro di unificazione rispetto al quale si compongono gli elementi strutturali dell'istituto(...)".
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obrigaes negativas eram consideradas excepcionais e estranhas ao instituto da
propriedade.
A tudo isso veio se opor a idia de funo social. A crise de legitimao da
propriedade privada e o movimento solidarista evidenciaram a necessidade de se
tutelar, com o instituto da propriedade, no apenas os interesses individuais e
patrimoniais do proprietrio, mas tambm interesses supra-individuais, de carter
existencial, que poderiam ser prejudicados pelo irresponsvel exerccio do domnio
(e.g., preservao do meio ambiente e bem-estar dos trabalhadores). Altera-se, assim,
drasticamente a funo da propriedade, que passa a abarcar tambm a tutela de
interesses sociais relevantes.
Como se v, a modificao essencialmente de funo, mas a insero de
interesses sociais no elemento funcional gera, por via reflexa, uma remodelao da
estrutura do direito de propriedade. A propriedade passa a ser vista no mais como
direito absoluto ou "poder inviolvel e sagrado" do proprietrio, mas como situao
jurdica subjetiva complexa em que se inserem direitos, deveres, nus, obrigaes.10
Esses deveres no equivalem queles de carter negativo, considerados externos ao
domnio e impostos ao proprietrio em nome do interesse pblico ou do poder
administrativo de polcia. So deveres de carter tambm positivo11 atribudos ao
titular do domnio como conseqncia do prprio direito de propriedade; sua origem
no se situa em um fator externo qualquer que justifique a limitao do exerccio do
10 "A construo, fundamental para a compreenso das inmeras modalidades contemporneas depropriedade, serve de moldura para uma posterior elaborao doutrinria, que entrev na propriedadeno mais uma situao de poder, por si s e abstratamente considerada, o direito subjetivo porexcelncia, mas una situazione giuridica soggetiva tpica e complessa, necessariamente em conflito oucoligada com outras, que encontra a sua legitimidade na concreta relao jurdica na qual se insere"(GUSTAVO TEPEDINO, "Contornos Constitucionais da Propriedade Privada", cit., p. 279).11 "Em um sistema inspirado na solidariedade poltica, econmica e social e no pleno desenvolvimentoda pessoa (...) o contedo da funo social assume um papel do tipo promocional, no sentido de que adisciplina das formas de propriedade e as suas interpretaes deveriam ser atuadas para garantir e parapromover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso no se realiza somente finalizandoa disciplina dos limites funo social" (PIETRO PERLINGIERI,Perfis do Direito Civil Introduo aoDireito Civil Constitucional, cit., p. 226). Nada obstante, no incomum que autores identifiquemtambm nas limitaes administrativas propriedade uma manifestao de sua funo social. Averdade que os fundamentos das limitaes administrativas, embora historicamente diversos da
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direito, mas, ao contrrio, encontra sua gnese no interior do prprio instituto, mais
precisamente em seu elemento funcional.
Esclarea-se que funcionalizar a propriedade ao atendimento de interesses
sociais no significa, de modo algum, propor o aniquilamento dos direitos individuais
ou pregar a negao da propriedade privada. Muito pelo contrrio. A funo social,
impondo ao proprietrio a observncia de determinados valores sociais, legitima a
propriedade capitalista e a compatibiliza com a democracia social que caracteriza os
sistemas polticos contemporneos.12 O proprietrio permanece como beneficirio
imediato, e quase sempre predominante, do domnio; apenas se impe a ele que
exera o seu direito atendendo tambm aos interesses sociais. A propriedade se
mantm privada, mas se afasta da definio individualista de "poder absoluto doproprietrio" para buscar na conformao ao interesse social a sua legitimao, a
razo e o fundamento de sua proteo jurdica.13 Nessa nova concepo, a
propriedade passa a ser tutelada apenas na medida em que observe os interesses
sociais relevantes. A conduta do proprietrio e a tutela dos seus interesses passam a
estar condicionadas ao atendimento da funo social da propriedade.14 No se oprime
o indivduo, mas se exige dele alguma ateno aos anseios mais graves do organismo
social em que se insere.15
funo social, repousavam, em ltima anlise, sobre os interesses supra-individuais que a funo socialveio a atrair para o interior da relao jurdica de propriedade.12 Da a observao crtica de Orlando Gomes: "Se no chega a ser uma mentira convencional, umconceito ancilar do regime capitalista; por isso que, para os socialistas autnticos, a frmula funosocial, sobre ser uma concepo sociolgica e no um conceito tcnico-jurdico, revela profundahipocrisia pois 'mais no serve do que para embelezar e esconder a substncia da propriedadecapitalstica'. que legitima o lucro ao configurar a atividade do produtor de riqueza, do empresrio,do capitalista, como exerccio de uma profisso no interesse geral. Seu contedo essencial permaneceintangvel, assim como seus componentes estruturais. A propriedade continua privada, isto , exclusivae transmissvel livremente. Do fato de poder ser desapropriada com maior facilidade e de poder ser
nacionalizada com maior desenvoltura no resulta que a sua substncia se estaria deteriorando."(ORLANDO GOMES,Direitos Reais, Rio de Janeiro: Forense, 2001, 18 ed., p. 109).13 A necessidade de buscar a legitimao da propriedade no em seu contedo, mas em seus fins,remonta a P. J. PROUDHON, Thorie de la Propriet. Suivie dun Nouveau Plan dExpositionPerptuelle, Paris: Librarie Internationalle, 1871, p. 128.14 Note-se, entretanto, que a perda dessa tutela e a supresso do direito de propriedade no soconseqncias instantneas; esto submetidas aos requisitos e procedimentos previstos em cadaordenamento jurdico.15 "A despeito, portanto, da disputa em torno do significado e da extenso da noo de funo social,poder-se-ia assinalar, como patamar de relativo consenso, a capacidade do elemento funcional em
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A perspectiva funcional acima analisada permite compreender construo
doutrinria de grande importncia, referente multiplicidade do domnio. A doutrina
civilstica j demonstrou que no h um nico instituto jurdico de propriedade, mas
vrios institutos, regulados por estatutos jurdicos prprios de acordo com a funo a
que visem atender. O direito de propriedade mltiplo, plural, porque, dependendo
do interesse tutelado pelo ordenamento, poder atrair disciplinas normativas
inteiramente diversas. As diferentes funes a serem exercidas pela propriedade,
conforme as caractersticas de seu sujeito ou objeto, fazem incidir sobre ela regras
particulares. Assim, por exemplo, o proprietrio tem, em regra, o direito de alterar a
coisa sobre a qual recai o seu domnio, mas nega-se igual direito ao proprietrio de
coisa em condomnio, salvo se houver permisso de todos os condminos. Muitoembora o co-proprietrio seja por si s proprietrio, o direito de alterao da coisa lhe
restrito. Outro exemplo se apresenta na chamada propriedade literria, cientfica e
artstica, em que a perpetuidade tendencial tpica do domnio desaparece em face do
prazo de tutela dos direitos patrimoniais do autor, e o conseqente ingresso da obra
em domnio pblico.16 Nestas e em outras situaes17 as disciplinas normativas
alterar a estrutura do domnio, inserindo-se em seu profilo interno e atuando como critrio de
valorao do exerccio do direito, o qual dever ser direcionado para um massimo sociale." (GUSTAVOTEPEDINO, "Contornos Constitucionais da Propriedade Privada", cit., pp. 281-282).16 Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, artigos 41 a 44. Ressalve-se que controversa a prpriainsero dos direitos autorais na dogmtica do direito de propriedade. Para um histrico das crticas aessa concepo, cf. PIERRE RECHT, Le droit d'auteur: une nouvelle forme de propriet, Gembloux: J.Duculot, 1969, pp. 229-233, e, entre os juristas brasileiros, D ARCY BESSONE, Direitos Reais, SoPaulo: Saraiva, 1996, 2 ed., pp. 114-118. Em sntese, julgando inadequado o paradigma dapropriedade, h autores que optam por considerar o direito do autor como um monoplio; o caso dePLANIOL e JOS DE OLIVEIRA ASCENSO, para quem "o direito de autor (...) no nem umapropriedade e nem um direito real. A obra intelectual, uma vez divulgada, no pode estar sujeita aodomnio exclusivo dum s. Todos desfrutam diretamente deste bem, mas s o titular pode beneficiareconomicamente com ele. Tem pois um exclusivo de explorao econmica da obra (...) os direitossobre bens intelectuais se inserem na categoria dos direitos de exclusivo ou de monoplio" (Direitos
Reais, Coimbra: Almedina, 1978, p. 106). Outra corrente advoga a sua incluso numa categoria parte, a dos "direitos intelectuais"; esta foi a proposio de PICARD, seguida, entre ns, por CARLOSALBERTO BITTAR, para quem os direitos do autor seriam um "direito sui generis, especial ouautnomo, diante de sua natureza desfruta de teoria prpria, que o separa dos demais direitos privados"(Contornos atuais do direito de autor, So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992, p. 21). Nojulgamento do Recurso Especial 89.171-MS, o Min. Fontes de Alencar, relembrando o magistrio deTobias Barreto, criador da expresso "direito autoral", considerou "no mais apropriado falar-se empropriedade literria, cientfica e artstica. No mais a propriedade intelectual. O nosso tempo retomoua denominao tobiana, e s vezes na forma plural, reacendeu a idia de que o direito autoral insere-seno campo dos direitos pessoais". O referido acrdo foi um dos precedentes invocados quando da
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particulares produzem diferenas to significativas entre os direitos que, a rigor
tcnico, talvez no seja possvel atribuir a todos a denominao comum de
propriedade.
A funo o elemento responsvel pelo surgimento dos estatutos legais
diferenciados e pela conseqente "repartio" da propriedade em institutos jurdicos
distintos.18 Nem por isso se deixar de atribuir funo da propriedade uma noo
essencial, genrica e flexvel, apta a assumir feies distintas em cada "espcie"
normativa de propriedade. Basta, para tanto, determinar-lhe o contedo fundamental,
e aqui ser preciso retornar, agora em definitivo, idia de insero de interesses
sociais no mbito da tutela do domnio. No ordenamento jurdico brasileiro, essa
insero se d mesmo por fora dos princpios constitucionais da solidariedade sociale da dignidade da pessoa humana (Constituio, artigos 1, III, e 3, I e III).19 O
aprovao do verbete n 228 da Smula de Jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia, em1999: " inadmissvel o interdito proibitrio para a proteo do direito autoral". Diante dessasinstabilidades conceituais, certeza somente se tem na afirmao de MARIE-ANGLE HERMITTE: "lapropriet intellectuelle peut se lire comme l'histoire d'une categorie juridique brise" ("Le rle desconcepts mous dans les techniques de djuridicisation: l'exemple des droits intellectuels",Archives dePhilosophie du Droit, n. 30, 1985, p. 331).17 A anlise do ordenamento brasileiro revela uma srie de estatutos jurdicos diferenciados, conformevariem, qualitativa e quantitativamente, o objeto ou o sujeito do domnio. Assim, primeiramente sob o
perfil subjetivo, podemos identificar estatutos jurdicos diversos de acordo com o fato de o titular serente pblico ou particular (cf. Cdigo Civil, artigo 65, e Constituio da Repblica, artigo 183, 3), ousingular ou plural (cf. Cdigo Civil, artigos 623 a 646). Sob o perfil objetivo, o estatuto jurdico serdistinto conforme se trate de coisa material ou imaterial (cf. Lei 9.610/98), mvel ou imvel (cf.Cdigo Civil, artigos 592 a 622 e 530 a 591), imvel rural ou urbano (cf. Constituio da Repblica,artigos 183 e 182, 4 e 2, e, por outro lado, artigos 191, 184 e 196), pequeno imvel rural ou no(cf. Constituio da Repblica, artigo 191 e Lei 4.504/64, artigo 21), e, por fim, pequena propriedadeurbana ou no (cf. Constituio da Repblica, artigo 183). Embora em muitos casos se esteja diante demodos de aquisio, modos de extino, faculdades jurdicas, instrumentos de proteo e atqualidades essenciais totalmente distintas, todos esses estatutos jurdicos so objeto de uma sdesignao: propriedade.18 A demonstrao de que no h verdadeira unidade no instituto jurdico da propriedade encontra-seem SALVATORE PUGLIATTI, La Propriet nel Nuovo Diritto, cit., p. 309. O autor assim encerra sua
anlise dos estatutos jurdicos proprietrios existentes no direito italiano: "Non ci occorre altro perconcludere (e ben altro si potrebbe aggiungere). La risposta al quesito che ci siamo proposti all'iniziosta nell'analisi che abbiamo condotta e potrebbe trovare specifica conferma in quella che altri vorrcondurre. Qui in sintesi e a suggello del lungo discorso, possiamo dichiarare che la parola proprietnon ha oggi, se mai ha avuto, un significato univoco. Anzi troppe cose essa designa, perch possaessere adoperata con la pretesa di essere facilmente intesi. In ogni caso l'uso di essa, con le cautele e ichiariamenti necessari, anche se si protrarr ancora nel prossimo futuro, non pu ormai mantenerel'illusione che all'unicit del termine corrisponda la reale unit di un saldo e compatto istituto.").19 Sobre o papel dos princpios da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana comocondicionantes da autonomia privada, v. MARIA CELINA BODIN DE MORAES, "Constituio e Direito
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ncleo do conceito de funo (social) da propriedade situa-se, hoje, no
condicionamento da tutela do direito do proprietrio realizao dos valores
constitucionais, e ao atendimento de interesses no proprietrios considerados
socialmente relevantes.
3. Interesses sociais relevantes. Tratamento constitucional da funo social da
propriedade. Anlise de decises judiciais.
A expresso "interesses sociais relevantes" dotada de certa indefinio, e
bem se sabe que ao esprito dos juristas a indefinio aparece quase sempre como
uma porta aberta arbitrariedade. Da a tendncia a se estabelecer parmetros
objetivos para a especificao do contedo das clusulas gerais e dos conceitos
jurdicos abertos ou indeterminados.20
busca de definio mais precisa para esses interesses sociais relevantes deve-se
percorrer, como primeiro passo, o direito positivo. No que tange funo social da
propriedade, encontram-se previses constitucionais expressas primeiramente no
artigo 5, XXIII, em que o Constituinte, logo aps garantir o direito propriedade,
declara que "a propriedade atender a sua funo social."21 A funo social aparece
tambm no artigo 170, III, entre os princpios da ordem econmica. At aqui, no h,todavia, qualquer indicao que aconselhe ou auxilie a determinao dos interesses
sociais que a propriedade funcionalizada deve reverenciar. Essa pretenso encontrar
Civil: Tendncias", in Revista Estado, Direito e Sociedade n 15, Rio de Janeiro: PontifciaUniversidade Catlica (Departamento de Cincias Jurdicas), p. 104: "No Estado Democrtico deDireito, o poder do Estado est limitado pelo Direito; mas no s: o poder da vontade do particular, emsuas relaes com outros particulares, tambm o est. Limita-o no apenas a eventual normaimperativa, contida nas leis ordinrias, mas, sobretudo, os princpios constitucionais da solidariedadesocial e dignidade humana que se espraiam por todo o ordenamento civil, infra-constitucional.Evidentemente, permanecem espaos abertos de liberdade mas esta liberdade (autonomia) consentida
e j no serve mais a definir o sistema de direito privado."20 ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, "Insuficincias, deficincias e desatualizao do Projeto deCdigo Civil na questo da boa-f objetiva nos contratos", in Revista Trimestral de Direito Civil, ano1, vol. 1, Rio de Janeiro: Padma, 2000, p. 11: "Os conceitos jurdicos indeterminados especialmenteo bando dos quatro, a que me referi continuam a ser usados, mas, agora, no paradigma de hoje, ops-moderno, com diretrizes materiais."21 Benefcio imediato que decorre desse dispositivo a insero da funo social entre as clusulasptreas, o que, em boa hora, a pe a salvo do nosso obstinado Poder Constituinte Derivado. Cf.
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abrigo apenas mais frente, no artigo 186 do texto constitucional, em que se
enumerou expressamente os requisitos para atendimento da funo social da
propriedade rural.
"Art 186. A funo social cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critrios e graus de exigncia estabelecidos
em lei, aos seguintes requisitos:
I aproveitamento racional e adequado;
II utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao
do meio ambiente;
III observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho;
IV explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dostrabalhadores."
O mesmo se poder dizer com relao funo social da propriedade urbana,
j que a Constituio especifica, em seu artigo 182, 2, que "a propriedade urbana
cumpre sua funo social quando atende s exigncias fundamentais de ordenao da
cidade expressas no plano diretor".
Pode-se concluir que ao menos no que diz respeito propriedade imobiliria,
urbana e rural, o Constituinte indica expressamente, nos artigos 182 e 186, interesses
sociais relevantes que entende devem ser atendidos pelo titular do direito de
propriedade. Entretanto, no apenas a esses interesses sociais que se deve submeter
o proprietrio. Os dispositivos constitucionais mencionados acima no podem ser
interpretados isoladamente, mas precisam ser lidos luz dos princpios fundamentais
da Constituio. A prpria opo axiolgica do Constituinte, privilegiando valores
existenciais sobre valores meramente patrimoniais, deve ser levada em considerao
na definio do contedo concreto do princpio da funo social da propriedade.22
Constituio da Repblica, artigo 60, 4, IV: "No ser objeto de deliberao a proposta de emendatendente a abolir: (...) IV os direitos e garantias individuais."22 GUSTAVO TEPEDINO, "O Cdigo Civil, os chamados Microssistemas e a Constituio: Premissaspara uma Reforma Legislativa", in Problemas de Direito Civil-Constitucional, Rio de Janeiro:
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Dessa forma, a noo de funo social deve ser informada por valores existenciais e
interesses sociais relevantes, ainda que estranhos literalidade dos artigos 182 e 186
da lei fundamental.
A anlise das decises judiciais confirma esse entendimento. O Supremo
Tribunal Federal, por exemplo, j decidiu que a propriedade imobiliria urbana no
cumpre sua funo social quando desrespeita normas municipais de carter
urbanstico, ainda que no se trate de exigncias formuladas no plano diretor.
"No que concerne ao artigo 5, XXII alegao de ofensa ao direito de
propriedade o acrdo deu resposta correta. O que deve ser
considerado que a propriedade atender a sua funo social:Constituio Federal, artigo 5, XXIII. Ora, 'o Municpio, ao editar a lei
que se l s fls. 40 e seguintes teve por finalidade exatamente atender a
esse preceito.' (...) dizer, fundado em convenincias administrativas,
razoveis, facultado ao Municpio limitar, no seu territrio, o direito de
construir certo que essas limitaes no so exclusivas do plano
diretor." 23
A deciso do Supremo Tribunal Federal ainda poderia ser vista como mera
interpretao ampliativa do artigo 182, 2, mas outras h que transcendem
inteiramente o dispositivo. O Superior Tribunal de Justia, no acrdo em epgrafe,
entendeu que hospitais particulares devem atender funo social representada pelo
interesse geral sade e ao trabalho, e, portanto, esto compelidos a aceitar o
Renovar, 2000, p. 10: "Percebe-se a a diferena fundamental entre a clusula geral admitida pelaEscola da Exegese (...) e a tcnica das clusulas gerais imposta pela contemporaneidade, que reclama,
necessariamente, uma definio normativa (narrativa) de critrios interpretativos coerentes com a ratiodo sistema, voltada para valores no patrimoniais, como quer, no caso brasileiro, o textoconstitucional."23 Recurso Extraordinrio n 178.836-4/SP, julgado em 8 de junho de 1999, trecho extrado do voto doMinistro Carlos Velloso. Votou vencido o Min. Marco Aurlio de F. Mello, sob o argumento de que,conforme o disposto no artigo 174 da Constituio da Repblica, o planejamento urbano meramenteindicativo, e no vinculante, para a iniciativa privada. Parece, contudo, que o artigo 174 quer se referirao planejamento econmico em geral, e no ao planejamento urbano, contemplado especificamente no
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ingresso de mdicos e a internao dos respectivos pacientes em suas instalaes,
ainda que esses mdicos sejam estranhos ao seu corpo clnico.
"(...) Da que a sentena, baseando-se na funo social da propriedade, e
se louvando igualmente, no particular, em prestigiosa doutrina, deu
espcie, a meu sentir, correta soluo. Com efeito, no caso de
internamento de pacientes, existe interesse maior (do prprio paciente,
ou de seu mdico), e olhem que a sade direito de todos embora seja
dever do Estado!, interesse que nem sempre h de coincidir com o do
proprietrio do hospital privado. (...) o direito aqui nestes autos
proclamado no se choca com o direito de propriedade, pois este, em
sendo um direito, um direito sujeito a limitaes, ou, noutras palavras,a propriedade privada, mas a sua funo social." 24
Outro exemplo encontra-se em polmica deciso do Tribunal de Justia do
Rio Grande do Sul, que considerou no cumprir sua funo social propriedade rural
que, no obstante produtiva, apresentava dbitos fiscais de natureza federal,
mantendo assentadas, por essa razo, as seiscentas famlias carentes que haviam
ocupado a rea. A supremacia dos valores existenciais tambm foi invocada como
fundamento da deciso.
"Prevalncia dos direitos fundamentais das 600 famlias acampadas em
detrimento do direito puramente patrimonial de uma empresa.
Propriedade: garantia de agasalho, casa e refgio do cidado. Inobstante
captulo intitulado "Da Poltica Urbana", de cujo artigo 182, notadamente 2 e 4, se extrai aobrigatoriedade de observncia do plano diretor pela iniciativa privada.24
Recurso Especial n 27.039-3/SP, julgado em 8 de novembro de 1993, trecho extrado do voto doMin. Nilson Naves. O pedido autoral encontrou amparo, ainda, na Resoluo n 1.231/86, do ConselhoFederal de Medicina, que, em seu artigo 1, assegura a todo mdico o direito de utilizar-se dasinstalaes de qualquer hospital pblico ou privado, ainda que no faa parte do seu corpo clnico. Orecorrente invocou, tambm, os artigos 20 e 25 do Cdigo de tica Mdica, que tipificam ocerceamento de atividade profissional. O proprietrio do hospital, por outro lado, sustentou que asaludidas normas administrativas violavam o seu direito de propriedade, consubstanciado no artigo 524do Cdigo Civil, que na condio de norma hierarquicamente superior deveria prevalecer. A decisoinvocou a funo social da propriedade (artigo 5, XXIII, da Constituio da Repblica), a fim deafastar a pretendida violao ao dispositivo do Cdigo Civil.
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ser produtiva a rea, no cumpre ela sua funo social, circunstncia esta
demonstrada pelos dbitos fiscais que a empresa proprietria tem perante
a unio."25
Deciso interessante colhe-se tambm no Tribunal de Justia do Rio de
Janeiro, que invocou a funo social para julgar necessria a conformao do direito
de propriedade de condmino ao interesse na segurana coletiva, por meio da retirada
de fechadura instalada em porta de elevador que conduzia ao seu pavimento.
"O direito de propriedade deve se harmonizar com a respectiva funo
social (artigo 5, XXIII, da Constituio Federal) e no pode constituir
obstculo ao bem estar coletivo. Considerando tambm esse aspecto, aintimao para que se retire fechadura da porta de pavimento, conforme
determina o ordenamento positivo que regula a matria, configura ato
administrativo de polcia vlido e eficaz, porque editado com o intuito
de assegurar a proteo aos usurios dos elevadores e, como
conseqncia, de preservar o interesse coletivo em harmonia com a
funo social da propriedade."26
Confira-se ainda deciso do Tribunal de Justia do Paran, que encontrou na
funo social da propriedade o legtimo fundamento para exigncia de instalao, em
bancos comerciais, de bebedouros e sanitrios acessveis aos seus clientes.
"Cabe ao municpio a poltica de desenvolvimento urbano e a
propriedade urbana exerce funo social em obedincia s exigncias
25 Agravo de Instrumento n 598.360.402 - So Luiz Gonzaga, julgado em 6 de outubro de 1998, Rel.Des. Elba Aparecida Nicolli Bastos, trecho extrado da ementa oficial. Para o exame dos aspectos maispolmicos dessa deciso, seja permitido remeter a GUSTAVO TEPEDINO e ANDERSON SCHREIBER,"Funo Social da Propriedade e Legalidade Constitucional", in A Luta pela Reforma Agrria nosTribunais, Porto Alegre: Companhia Rio-Grandense de Artes Grficas, no prelo.26 Apelao Cvel n 2000.001.09199, registrada em 26 de maro de 2001, Rel. Des. Milton Fernandesde Souza, ementa oficial.
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fundamentais do plano diretor da cidade. A imposio de sanitrios
abertos clientela dos bancos atende ao fim social da propriedade" 27.
Por fim, veja-se a sentena proferida pelo Juzo da 8 Vara da Justia Federal
de Minas Gerais, em que a solidariedade social e outros princpios constitucionais
serviram de fundamento contra a retirada de diversas famlias alojadas s margens da
rodovia BR 116.
"(...) enquanto no construir ou pelo menos esboar uma sociedade
livre, justa e solidria (CF, art. 3, I), erradicando a pobreza e a
marginalizao (art. 3, III), promovendo a dignidade da pessoa humana
(art. 1, III), assegurando a todos existncia digna, conforme os ditamesda justia social (art. 170), emprestando propriedade sua funo social
(art. 5, XXIII, e 170, III) (...), enquanto no fizer isso, elevando os
marginalizados condio de cidados comuns, pessoas normais, aptas a
exercerem sua cidadania, o Estado no tem autoridade para dele exigir
diretamente ou pelo brao da Justia o reto cumprimento da lei."
Em cada uma dessas decises, e em outras que no foram citadas, o que se
nota que os tribunais brasileiros tm buscado tutelar, por meio da funo social da
propriedade, interesses sociais que transcendem a interpretao literal dos artigos 182,
2, e 186 da Constituio. Nos casos mencionados, interesses sociais em sade,
segurana, trabalho e bem estar coletivo, embora no contemplados expressamente
nos dispositivos constitucionais especficos, encontraram no princpio da funo
social da propriedade um caminho para sua efetivao.
Mas pergunta-se: ter sido um caminho vlido? O condicionamento da tutela
jurdica da propriedade ao atendimento de interesses sociais distintos daqueles
mencionados nos artigos 182 e 186 no consistir em violao da legalidade
27 Apelao Cvel 79.573-5 - Londrina, julgada em 28 de setembro de 1999, trecho do voto do Rel.Des. Fleury Fernandes.
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constitucional? Pode o juiz, margem de previso legislativa especfica, eleger os
interesses sociais que lhe paream relevantes?
4. Princpios e regras. A funo social como princpio e como regra. Novo
standardjurdico das relaes patrimoniais.
A resposta a essas indagaes s se pode encontrar, a nosso ver, na clara
distino entre as regras e os princpios jurdicos. O reconhecimento do carter
normativo dos princpios, conquista da doutrina contempornea, vem a inseri-los
definitivamente no gnero das normas jurdicas, de que tambm so espcie as regras.
Princpio, em conhecida definio, "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro
alicerce dele, disposio fundamental que se irradia sobre diferentes normascompondo-lhes o esprito e servindo de critrio para sua exata compreenso e
inteligncia, exatamente por definir a lgica e a racionalidade do sistema normativo,
no que lhe confere a tnica e lhe d sentido harmnico".28
A distino entre princpios e regras pode se basear em uma srie de critrios,
que vo desde o grau de indeterminabilidade at a finalidade desempenhada no
ordenamento jurdico. Pode-se dizer, por exemplo, que (i) os princpios encontram-se
imediatamente relacionados com os valores sociais; (ii) os princpios possuem maior
grau de generalidade aplicando-se a uma mais ampla variedade de situaes;29 (iii) os
princpios so enunciados de forma vaga, enquanto as regras possuem linguagem
mais especfica; (iv) os princpios consistem na ratio das regras; (v) princpios
antagnicos podem ser ponderados e aplicados a um mesmo caso, enquanto as regras,
em caso de antinomia, se excluem; (vi) princpios exercem funo fundamentadora e
28 CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, So Paulo: Malheiros,1994, 5 ed., p. 450.29 As regras podem ser gerais no sentido de serem aplicveis a um nmero indeterminado de atos oufatos que podem se enquadrar na situao pr-determinada. A generalidade dos princpios, contudo, mais ampla porque so eles aplicveis a uma srie indefinida de situaes. A lio de J EANBOULANGER, "Principes Gnraux du Droit et Droit Positif", apud PAULO BONAVIDES, Curso deDireito Constitucional, So Paulo: Malheiros, 2001, 11 ed., p. 239.
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patrimonial. Quando as cortes brasileiras utilizam a funo social da propriedade em
relao a interesses sociais como sade, trabalho, segurana ou bem-estar coletivo,
transcendendo a dico expressa dos artigos 182 e 186, esto, na verdade, se valendo
da aplicao direta de um princpio constitucional. No se pode evidentemente limitar
a incidncia do princpio anlise literal dos artigos 182 e 186, sob pena de se
esvaziar o princpio e se passar a aplicar somente as regras.32
A valorao da conduta do proprietrio a fim de verificar o atendimento aos
interesses sociais relevantes ficar a cargo do julgador, que dela se desincumbir com
ateno aos valores constitucionais e s circunstncias do caso concreto. Alis, a
ampla invocao do princpio da funo social da propriedade nas cortes de todo o
pas legitima-se, de plano, como meio de realizao do projeto constitucional, aindaadormecido em larga extenso.
As decises judiciais revelam mesmo que a funo social, com seu contedo
relativamente indeterminado, vai assumindo o papel destandardjurdico nas relaes
patrimoniais,33 comparando-se boa-f nas relaes contratuais e ao melhor interesse
da criana nas relaes familiares.34 A comparao, entretanto, deve ser feita cum
promovida pela Unio, segundo as normas constitucionais, sem violncia e ilegalidades, no sendopermitido s pessoas escolherem, a seu bel prazer, qual a rea que dever ser ocupada ou no."32 O risco de inverso semelhante se apresenta nas relaes entre as normas constitucionais e o CdigoCivil. Cf., a respeito, GUSTAVO TEPEDINO, "Premissas Metodolgicas para a Constitucionalizao doDireito Civil", in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 1-22.33 O termo transcende deliberadamente as relaes de propriedade. Acerca, por exemplo, da funosocial da posse, v. LUIZ EDSON FACHIN, "A funo social da posse e a propriedade", in Revista daAssociao Brasileira de Reforma Agrria v. 18, n 1, pp. 77-82. Sobre esse tema, cf. ainda ANTONIOHERNNDEZ GIL,La Funcion Social de la Posesion, Madrid: Alianza Editorial, 1969. No que tange srelaes patrimoniais em geral, seja permitido remeter, mais uma vez, a GUSTAVO TEPEDINO eANDERSON SCHREIBER, "Funo Social da Propriedade e Legalidade Constitucional", in A Luta pelaReforma Agrria nos Tribunais , cit.: "(...) toda atividade econmica privada, tanto na titularidade
dominical, quanto no exerccio de quaisquer direitos patrimoniais, encontra-se vinculada aos princpiosfundamentais da Repblica, inscritos no Ttulo I da Constituio Federal, que tm como fundamentos,dentre outros, na dico do art. 1o, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o valor social dotrabalho e da livre iniciativa."34 O standard jurdico da funo social deve ser entendido como elemento interno das relaespatrimoniais, verdadeiro critrio de valorao do exerccio dos direitos envolvidos. Alguns autores,todavia, parecem considerar a funo social como elemento externo, excepcional e meramenteprogramtico. Cf., por exemplo, FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: Introduo, Rio de Janeiro:Renovar, 2000, 3 ed., pp. 357-358: "(...) a funo social se configura como princpio ordenador dadisciplina da propriedade e do contrato, legitimando a interveno do Estado por meio de normas
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granu salis, porque ostandardda funo social no encontra a mesma receptividade
que a boa-f ou o melhor interesse da criana. Enquanto a esses ltimos standards
opem-se situaes jurdicas cuja supresso no esbarra em fortes obstculos
culturais (m-f e desconsiderao do interesse do menor), a plena realizao da
funo social sofre histrica resistncia oriunda da fora cultural do individualismo
proprietrio.35
5. Parmetros objetivos para aplicao do princpio da funo social da
propriedade. Conflitos entre valores. Tcnica de ponderao.
Impor parmetros objetivos aplicao dos princpios constitucionais necessrio e conveniente. Isso por inmeras razes que vo desde a possibilidade de
abuso por parte do Poder Judicirio at os riscos de que a invocao repetitiva e
impertinente do princpio acabe por convert-lo em frmula vazia, abandonada
incredibilidade e ao esquecimento. Consoante a melhor doutrina, servem de
parmetros para a aplicao dos princpios e clusulas gerais os prprios valores
consagrados na Constituio.36
O conflito entre regras antagnicas, j se observou acima, resolve-se pela
excluso de uma das regras e aplicao da outra, seja porque uma delas foi declarada
invlida seja porque recorreu-se a uma das clusulas de exceo previstas no prprio
excepcionais, operando ainda como critrio de interpretao jurdica. A funo social , por tudo isso,um princpio geral, um verdadeiro standard jurdico, uma diretiva mais ou menos flexvel, umaindicaoprogramtica, que no colide nem torna ineficazes os direitos subjetivos, orientando-lhes orespectivo exerccio na direo mais consentnea com o bem comum e a justia social" (grifou-se).35
Cf. PIETRO BARCELLONA, L'individualismo proprietario, Torino: Boringhieri, 1987, sobretudo ocaptulo intitulado "La metamorfosi del soggetto e il principio proprietario", pp. 78-113.36 "O legislador contemporneo, instado a compor, de maneira harmnica, o complexo de fontesnormativas, formais e informais, nacionais e supranacionais, codificadas e extracodificadas, devevaler-se de prescries narrativas e analticas, em que consagra expressamente critrios interpretativos,valores a serem preservados, princpios fundamentais como enquadramentos axiolgicos com teornormativo e eficcia imediata, de tal modo que todas as demais regras do sistema, respeitados osdiversos patamares hierrquicos, sejam interpretadas e aplicadas de maneira homognea e segundocontedo objetivamente definido." (GUSTAVO TEPEDINO, "O Cdigo Civil, os chamadosMicrossistemas e a Constituio: Premissas para uma Reforma Legislativa", cit., p. 11).
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ordenamento.37 As regras so aplicadas de acordo com a lgica do "tudo ou nada" e,
em caso de antinomia, apenas uma delas ser autorizada a influenciar a deciso. 38
A coliso de princpios, por sua vez, se resolve no com a excluso ou
invalidade de um dos princpios, mas por meio da ponderao dos valores envolvidos.
Princpios conflitantes coexistem, porque a sua prpria natureza permite o
balanceamento de valores39 e interesses, podendo ambos informar a deciso, cada um
em certo grau.40
A ponderao de valores no uma tcnica guiada por uma metodologia
precisa, mas a doutrina contempornea tem se esforado por estabelecer critrios
mnimos a serem seguidos nesse processo. , por exemplo, amplamente aceita, entreos autores que se ocuparam do tema, a idia de que a tcnica de ponderao no pode
resultar na absoluta supresso de um valor em favor de outro. "Como no existe um
critrio abstrato que imponha a supremacia de um (valor constitucional) sobre o
outro, deve-se, vista do caso concreto, fazer concesses recprocas, de modo a
37Lex posterior derogat priori, lex superior derogat inferiori e lex specialis derogat generali. Osbrocardos correspondem aos critrios cronolgico, hierrquico e da especialidade. Alguns autoresressalvam, todavia, que esses critrios no so inteiramente suficientes para a soluo de antinomias.Cf., por todos, NORBERTO BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurdico, Braslia: Universidade deBraslia (UnB), 1999, 10 ed., pp. 91-114.38 Neste sentido, RONALD DWORKIN, Taking Rights Seriously, Cambridge: Harvard University Press,1999, 17 ed., p. 24: "The difference between legal principles and legal rules is a logical distinction.Both sets of standards point to a particular decision about legal obligation in particular circumstances,but they differ in the character of the direction they give. Rules are applicable in all-or-nothing fashion.If the facts a rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the answer it suppliesmust be accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to the decision."39 Analisando a doutrina de Robert Alexy, conclui PAULO BONAVIDES, Curso de DireitoConstitucional, cit., p. 251: "Da posio de Alexy se infere uma suposta contigidade da teoria dos
princpios com a teoria dos valores. Aquela se acha subjacente a esta. Se as regras tm que ver com avalidade, os princpios tm muito que ver com os valores."40 Ainda RONALD DWORKIN, Taking Rights Seriously, cit., p. 26: "() This first difference betweenrules and principles entails another. Principles have a dimension that rules do not the dimension ofweight or importance. When principles intersect (the policy of protecting automobile consumersintersecting with principles of freedom of contract, for example), one who must resolve the conflict hasto take into account the relative weight of each. This cannot be, of course, an exact measurement, andthe judgment that a particular principle or policy is more important than another will often be acontroversial one. Nevertheless, it is an integral part of the concept of a principle that it has thisdimension, that it makes sense to ask how important or how weighty it is."
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produzir um resultado socialmente desejvel, sacrificando o mnimo de cada um dos
princpios ou direitos fundamentais em oposio."41
Da anlise de inmeras decises do Tribunal Constitucional Federal alemo,
Karl Larenz extraiu alguns parmetros metodolgicos para a ponderao de valores:
"(...) trata-se, em primeiro lugar, de saber se, segundo a ordem de valores contida na
Lei Fundamental, se pode estabelecer uma clara prevalncia valorativa de um dos
bens aqui em questo face ao outro. Haver que dizer, sem vacilar, que vida humana
e, do mesmo modo, dignidade humana corresponde um escalo superior ao de
outros bens, em especial os bens materiais. (...) Mas, na maioria dos casos, tratar-se-
ou de direitos de igual escalo, por exemplo, de iguais direitos de personalidade, ou
de bens cuja disparidade exclui uma comparao abstracta. (...) Ento, trata-se, emprimeiro lugar, da medida em que o bem jurdico protegido realmente afectado (...)
e, alm disso, do grau de prejuzo que haveria de sofrer um ou outro bem, no caso em
que tivesse de ceder face ao outro. Finalmente, tm validade os princpios da
proporcionalidade, do meio mais idneo ou da menor restrio possvel."42
O princpio da funo social consubstancia valores existenciais que,
privilegiados pelo prprio ordenamento constitucional, devem prevalecer quando em
conflito com valores meramente patrimoniais. No obstante, a ponderao entre esses
valores h de ser feita sempre com a inteno de garantir a menor restrio possvel a
todos eles, e de evitar ao mximo a supresso de um em favor de outro.
Exemplo de deciso em que se procedeu ponderao de valores, por meio de
concesses recprocas, foi a deciso do Tribunal de Justia de So Paulo que denegou
41 LUS ROBERTO BARROSO, "Liberdade de expresso, direito informao e banimento da publicidadede cigarro", in Temas de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 265.42 KARL LARENZ,Metodologia da Cincia do Direito, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1997, 3ed., pp. 585-586. Cf., entre ns, DANIEL SARMENTO, A Ponderao de Interesses na ConstituioFederal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 96: "Com efeito, na ponderao, a restrio imposta acada interesse em jogo, num caso de conflito entre princpios constitucionais, s se justificar namedida em que: (a) mostrar-se apta a garantir a sobrevivncia do interesse contraposto, (b) no houversoluo menos gravosa, e (c) o benefcio logrado com a restrio a um interesse compensar o grau desacrifcio imposto ao interesse antagnico."
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ao reivindicatria de terreno urbano sobre o qual j se consolidara determinada
comunidade social. Utilizou-se o tribunal dos seguintes argumentos: (i) a retirada
fsica de trinta famlias, integradas comunidade, invivel; (ii) os loteamentos e
lotes urbanos perderam suas qualidades essenciais, de modo que deve ser considerado
perecido o objeto do direito de propriedade; (iii) os reivindicantes e os proprietrios
anteriores exerceram o direito de propriedade de forma anti-social, relegando o
imvel ao abandono. O direito indenizao foi, todavia, garantido, a fim de no se
suprimir inteiramente o valor da iniciativa privada em favor da realizao dos valores
existenciais consubstanciados na permanncia daquela comunidade. Houve, portanto,
razovel ponderao dos valores em jogo.
"No caso dos autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelosautores e por seus antecessores, de forma anti-social. O loteamento
pelo menos no que diz respeito aos nove lotes reivindicados e suas
imediaes ficou praticamente abandonado por mais de 20 (vinte) anos
(...) Ojus reivindicandi fica neutralizado pelo princpio constitucional da
funo social da propriedade. Permanece a eventual pretenso
indenizatria em favor dos proprietrios contra quem de direito."43
6. Efetivao da funo social.A emblemtica questo do IPTU progressivo.
A indicao pelo Constituinte de parmetros objetivos para aferio do
cumprimento da funo social da propriedade rural e urbana deu-se no sentido de
garantir sua efetividade e evitar frustraes semelhantes quelas outrora
experimentadas pelo legislador ordinrio.44
Tambm com vistas a garantir a efetividade do princpio da funo social, a
Constituio colocou a servio do Poder Pblico uma srie de instrumentos
43 Apelao Cvel n 212.726-1/8, julgado em 16 de dezembro de 1994, Rel. Jos Osrio, publicado naRevista dos Tribunais n 723, 1996, pp. 204 e ss.
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destinados coero do proprietrio que no atende aos interesses sociais relevantes.
Se alguns desses instrumentos, como a desapropriao,45 j eram conhecidos no
direito brasileiro, outros so inteiramente inovadores. o caso, por exemplo, do
parcelamento e da edificao compulsrios, institutos de amplo potencial
transformador,46 cuja plena aplicao permanecia ainda espera de regulao
especfica,47 omisso parcialmente sanada com a recente edio do Estatuto da
Cidade.48
Instrumento tambm mencionado pelo Constituinte e que tem gerado
infindveis controvrsias nas cortes brasileiras o IPTU progressivo, situado no
artigo 182, 4, inciso II. A progressividade aparece tambm no artigo 156, 1, do
texto constitucional, nos seguintes termos: "O imposto previsto no inciso I (imposto
44 A falta de objetividade normativa j condenara inefetividade a funo social da empresa,mencionada, sem a fixao de parmetros objetivos ou sanes especficas, nos artigos 116 e 154 daLei das Sociedades por Aes (Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976).45 Registre-se aqui, por pertinente, a crtica de FBIO KONDER COMPARATO, "Funo Social daPropriedade dos Bens de Produo", in Revista de Direito Mercantil, n 63, So Paulo: Ed. RT, p. 77:"A sano clssica contra o abuso da propriedade particular a expropriao pela autoridade pblica.Mas o regime desse instituto, no Direito brasileiro e ocidental, de modo geral, padece de grave defeito., na verdade, logicamente insustentvel que a desapropriao, como sano do abuso particular,tenha, legalmente, o mesmo tratamento que a expropriao por utilidade pblica sem abuso doproprietrio. No entanto, a garantia constitucional da propriedade, arrancada a constituintes timoratos
ou cmplices, pela presso dos interesses dos proprietrios, iguala ambas as expropriaes naexigncia de prvia e justa indenizao em dinheiro; ou, em se tratando de imveis rurais includos nasreas prioritrias de reforma agrria, na exigncia de justa indenizao (art. 161) que o STF acabouinterpretando como correspondente ao valor venal dos imveis (RE 100.045-7/PE). Em termosprticos, a sano do abuso, em tais hipteses, pode redundar em manifesto benefcio econmico doexpropriado."46 Por meio do parcelamento e edificao compulsrios impe-se ao proprietrio do solo urbano malaproveitado uma prestao de contedo positivo (evidenciando-se a diferenciao entre a funo sociale aquelas limitaes administrativas, externas ao domnio e de carter eminentemente negativo). Sobreparcelamento e edificao compulsrios, a lio de RICARDO PEREIRA LIRA, Elementos de DireitoUrbanstico, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 167: "J se viu que, no ordenamento atual brasileiro, ono-uso uma faculdade do dominus soli, constituindo esse fato um dos fatores que ensejam a prticaespeculativa nos grandes centros urbanos. Em reas previamente definidas em lei municipal, baseadaem plano de uso do solo, o no-uso pode deixar de ser uma faculdade desse dominus. (...) Trata-se dapossibilidade da criao da propriedade urbanstica acompanhada de uma obrigao propter rem,consistente na obrigao de fazer (parcelar, edificar ou utilizar) sobre o solo, nos termos da leimunicipal, baseada em plano de uso do solo".47 Artigo 182, 4, da Constituio. A exigncia de regulao especfica corroborada pelajurisprudncia: "A matria relativa ao uso, parcelamento e ocupao do solo urbano deve ser reguladaatravs de lei, na forma dos artigos 30, I e 182 da Constituio Federal" (Tribunal de Justia do Rio deJaneiro, Mandado de Segurana n 2000.009.00048, julgado em 2 de maio de 2000).
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predial e territorial urbano IPTU) poder ser progressivo, nos termos de lei
municipal, de forma a assegurar o cumprimento da funo social da propriedade".
Ambos os dispositivos tratam do IPTU progressivo como instrumento de
efetivao da funo social da propriedade urbana. Todavia, enquanto o artigo 182,
2, em sua literalidade, parece vincular a noo de funo social ao atendimento das
exigncias do plano diretor, o artigo 156 no traz qualquer especificao nesse
sentido, referindo-se apenas genericamente ao "cumprimento da funo social da
propriedade".
Diante disso, tornou-se necessrio definir se a aplicao do IPTU progressivo
era possvel fora da hiptese de violao ao plano diretor. A doutrina dividiu-se entreos que sustentavam que a progressividade apenas poderia ser fixada com base no
critrio do artigo 182, 2, (terrenos baldios etc.),49 e aqueles que, ao contrrio,
defendiam a ampla incidncia do IPTU progressivo com base em quaisquer critrios
que, no entendimento do Poder Pblico, configurassem meio de efetivao da funo
social da propriedade (e.g., rea e localizao dos imveis).50
48 Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituio Federal,estabelece diretrizes gerais da poltica urbana e d outras providncias. O parcelamento, edificao ouutilizao compulsrios so regulados nos artigos 5 e 6 do Estatuto.49 Nesse sentido, RICARDO LOBO TORRES, Os Direitos Humanos e a Tributao, Rio de Janeiro:Renovar, 1999, pp. 436-437: "Tanto a progressividade do art. 156, 1, quanto a do art. 182, 4,repita-se, tm a finalidade extrafiscal de assegurar o cumprimento da funo social da propriedade. Oimposto poder variar para atingir asperamente os terrenos baldios, os imveis abandonados etc. Masno poder ser progressivo em razo de caractersticas intrnsecas do imvel ou de aspectos subjetivos,porque implicaria discriminao proibida."50 TOSHIO MUKAI, "O Imposto Predial e Territorial Progressivo A Funo Social da Propriedade e a
Constituio de 1988", in Cadernos de Direito Municipal, Revista de Direito Pblico n 93, pp. 243-244: "Para ns, nada autoriza ou obriga interpretao conjugada que se pretende dar aos arts. 156,1, e 182, 2 e 4 da Constituio. Ao contrrio, por se tratarem de situaes e figuras jurdico-tributrias distintas, exigem interpretaes isoladas. (...) A progressividade disposta no 1 do art. 156da CF sempre existiu, sendo apenas o reconhecimento constitucional desse fato, isto , da utilizaonormal do tributo com finalidades extrafiscais, funo de h muito reconhecida aos tributos, no mundocivilizado. J a progressividade no tempo, do inc. II do 4 do art. 182 da CF novidade no textoconstitucional, sendo penalidade aplicvel a situaes anormais apenas; e por essa razo, mereceu doconstituinte cuidados especiais, tanto que fez depender sua aplicao de lei federal e de lei especficapara que a rea onde for utilizada seja prevista no plano diretor".
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O Supremo Tribunal Federal optou pela orientao mais restritiva ao
considerar o IPTU como imposto de natureza real, no sujeito a progressividade com
base em qualquer aspecto da capacidade econmica do contribuinte. Segundo a
suprema corte, o IPTU progressivo admitido pelo ordenamento constitucional
excepcionalmente, e apenas na hiptese de descumprimento do plano diretor,
conforme consignado no artigo 182, 2 da lei fundamental.
"No sistema tributrio nacional o IPTU inequivocamente um imposto
real. Sob o imprio da atual Constituio, no admitida a
progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu
artigo 145, 1, porque esse imposto tem carter real que incompatvel
com a progressividade decorrente da capacidade econmica docontribuinte, quer com arrimo na conjugao desse dispositivo
constitucional (genrico) com o artigo 156, 1 (especfico). A
interpretao sistemtica da Constituio conduz inequivocamente
concluso de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o inciso
II do 4 do artigo 182 a explicitao especificada, inclusive com
limitao temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no artigo
156, I, 1. Portanto, inconstitucional qualquer progressividade,em se
tratando de IPTU, que no atenda exclusivamente ao disposto no artigo
156, 1, aplicado com as limitaes expressamente constantes dos
2 e 4 do artigo 182, ambos da Constituio Federal." (grifou-se)51
A orientao excessivamente restritiva e no se coaduna com a concepo da
funo social como princpio constitucional e standard jurdico das relaes
patrimoniais. De fato, a violao ao plano diretor apenas uma das possveis
manifestaes contrrias aos interesses sociais que integram e condicionam o direito
de propriedade. O artigo 182, 2, representa apenas um parmetro objetivo indicado
pelo Constituinte a fim de garantir a efetividade da funo social, mas no pode, de
51 Recurso Extraordinrio n 153.771-0, julgado pelo tribunal pleno em 20 de novembro de 1996, Rel.Min. Moreira Alves, ementa oficial.
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maneira alguma, ser considerado como definio taxativa de seu contedo, mesmo
porque a funo social princpio constitucional informado por valores existenciais
da mais variada ordem, e sua aplicao direta no pode ser limitada pela incidncia
das eventuais regras que inspire.
certo que o IPTU progressivo deve ser instrumento de carter excepcional e
que sua incidncia deve ficar limitada quelas hipteses em que se configura a
finalidade de garantir o cumprimento da funo social. Da no se infere, entretanto,
que deva ficar limitado aos casos de violao ao plano diretor. A observncia das
exigncias de ordenao urbanstica critrio objetivo dirigido efetividade da
funo social, mas no a funo social. Concluso diversa somente se atinge por
meio de uma interpretao isolada e literal do artigo 182, 2, em total desateno aosdemais dispositivos constitucionais, notadamente aos artigos 5, XXIII, e 170, III, que
se tornariam inteis (com relao propriedade urbana) se o contedo do princpio se
esgotasse na violao s normas do plano diretor.
Se a doutrina tem se preocupado com a fixao de parmetros objetivos para a
efetivao dos princpios e clusulas gerais, certo que no pode igualmente
descuidar do risco de que esses parmetros acabem, em uma grave inverso
metodolgica, sendo tomados como taxativa especificao do contedo dessas
normas que tm, entre suas principais caractersticas, justamente o alto grau de
generalidade de seus enunciados.
No caso especfico do IPTU, diversas leis municipais, editadas em sua maioria
antes de 1988, autorizavam os Municpios a empregar a progressividade com base na
rea e na localizao dos imveis tributados.52 H aqui, na verdade, aspectos bastante
distintos a demandarem tratamento e soluo diferenciados: se a localizao do
imvel no parece, a princpio, critrio justificado para a cobrana do tributo
progressivo, a sua rea , por outro lado, critrio que se legitima em face mesmo das
dificuldades de acomodao do contingente humano que se amontoa nos grandes
52 Ver, por exemplo, Lei 914/84 do Municpio do Rio de Janeiro.
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centros urbanos. A concentrao excessiva gera no raro a marginalizao de
comunidades inteiras, relegadas s encostas de morros e a terrenos de geografia
pouco hospitaleira, mas prximos dos principais ncleos de desenvolvimento. A
cobrana do IPTU progressivo com base na rea do imvel guarda, portanto, ntima
relao com a funo social da propriedade urbana, no representando instrumento de
punio dos grandes proprietrios, mas to-somente forma razovel de repartio dos
custos sociais. Com o tributo progressivo, assegura-se a propriedade privada sob
extensas reas urbanas, ao mesmo tempo em que se financia o atendimento aos
valores existenciais das populaes marginalizadas, tudo em plena consonncia com
os princpios da solidariedade social e da realizao da dignidade humana.
Atento a essas razes, o Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, mesmoaps a manifestao do Supremo Tribunal Federal, considerou constitucional lei que
institua a progressividade de acordo com o valor venal do imvel, em deciso de cuja
ementa se extrai o seguinte trecho: "A adoo de alquotas diferenciadas e
progressivas para clculo de IPTU, tendo por base o valor venal do imvel e na forma
estabelecida em lei, no inconstitucional e cumpre a funo social da
propriedade".53
A incidncia do IPTU progressivo com base na rea do imvel, no seu valor
venal, ou em outros critrios capazes de garantir o cumprimento da funo social da
propriedade urbana, evidentemente no exclui a sua aplicao aos casos de
descumprimento das exigncias de ordenao urbanstica, nos termos do artigo 182.
Nesse particular, o Presidente da Repblica sancionou recentemente (10 de julho de
53 Apelao Cvel n 598321107, julgada em 21 de outubro de 1999. Nada obstante, os tribunais
estaduais tm, de uma forma geral, seguido o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Cf. decisodo Tribunal de Justia do Rio de Janeiro, na Apelao Cvel 2000.001.07385, registrada em 13 desetembro de 2000: "O plenrio do Egrgio Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentidode que o IPTU, como imposto de natureza real que , no pode variar segundo a presumvelcapacidade contributiva do sujeito passivo, sendo a nica progressividade admitida pela ConstituioFederal de 1988 a extrafiscal (artigo 182, 4, II), destinada a assegurar o cumprimento da funosocial da propriedade. A segunda Turma do Egrgio Supremo Tribunal Federal, em recente acrdo,proclamou que o artigo 67 da Lei n 914/84, do Municpio do Rio de Janeiro, que instituiu aprogressividade do IPTU levando em conta a rea e a localizao dos imveis fatos que revelam acapacidade contributiva no foi recepcionado pela Carta Federal de 1988."
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2001) o Estatuto da Cidade,54 que, entre outras medidas, regula a aplicao do IPTU
progressivo aos terrenos no construdos, objeto de especulao imobiliria. Com o
Estatuto da Cidade, os proprietrios de imveis urbanos no construdos e situados
em rea afastada passam a estar sujeitos, ano a ano, cobrana de alquotas
crescentes de IPTU.55 A inovao representa inegvel conquista no campo da
efetividade da funo social da propriedade urbana.
7. Concluses.
(i) Os institutos jurdicos se decompem em dois elementos: estrutura e
funo. A funo, consistindo no interesse tutelado pelo ordenamento, se erige em
elemento caracterizador do instituto jurdico, sendo capaz de moldar-lhe a estrutura.
(ii) A necessidade do ordenamento de tutelar interesses distintos por meio
das diferentes manifestaes do domnio acaba gerando a elaborao de estatutos
jurdicos to diferenciados que resultam em uma verdadeira "fragmentao" do
instituto jurdico da propriedade. No obstante essa multiplicidade de funes (e a
conseqente multiplicidade de propriedades), possvel identificar um ncleo
essencial ao conceito de funo da propriedade, que, hoje, pode ser situado no
condicionamento da tutela do domnio verificao de atendimento aos interesses
sociais relevantes e, de forma mais ampla, aos valores consagrados no texto
constitucional.
(iii) O termo funo social corresponde, portanto, a essa insero de
interesses sociais no mbito da tutela da propriedade, que, com isso, deixa de ser
encarada como direito tendencialmente absoluto, para se constituir em situao
jurdica subjetiva complexa, composta de direitos, nus, deveres, obrigaes. A
funo social serve, mais, de fundamento, de verdadeira causa legitimadora da
54 Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, sobretudo artigo 7.55 Cf. artigos 7 e 8, caput, do Estatuto.
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propriedade privada, a qual se legitima por meio do atendimento aos interesses
sociais.
(iv) Esses interesses sociais no so apenas os mencionados nos artigos 182
e 186 da Constituio, mas incluem tambm quaisquer interesses voltados
realizao dos valores constitucionais, notadamente os de natureza existencial, que no
ordenamento brasileiro gozam de inegvel primazia em relao aos valores
patrimoniais. Os artigos 182 e 186 contm to-somente parmetros objetivos para a
verificao do cumprimento do princpio da funo social, parmetros esses previstos
pelo Constituinte como meio de garantir a efetividade da funcionalizao do domnio,
e no no intuito de determinar taxativamente o seu contedo, o que seria incompatvel
com a prpria noo de princpio.
(v) Os tribunais brasileiros tm procedido a uma ampla aplicao do
princpio da funo social como critrio qualificativo da conduta do proprietrio em
face dos interesses sociais e dos valores constitucionais envolvidos, utilizando-o
como verdadeiro standardjurdico das relaes patrimoniais, equiparvel boa-f
nos contratos e ao melhor interesse da criana nas relaes familiares.
(vi) Como princpio, a funo social se irradia pelo sistema, informando
outras normas e servindo de critrio para sua interpretao e integrao, sem embargo
da sua aplicabilidade direta. Os valores existenciais tutelados pelo princpio da funo
social esbarram ocasionalmente com outros valores, que lhes so contrapostos. A
tcnica de ponderao de valores antagnicos deve evitar a supresso de um valor em
favor de outro. , todavia, de se reconhecer que os valores existenciais devem
prevalecer sobre os valores patrimoniais, conforme se extrai da prpria tbua
axiolgica consubstanciada na Constituio.
(vii) Algumas decises judiciais j vm, inclusive, revelando a aptido do
Poder Judicirio brasileiro para a ponderao dos valores envolvidos nos conflitos
relativos propriedade. Ao mesmo tempo em que asseguram o atendimento aos
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valores existenciais, inequivocamente superiores, alguns tribunais garantem aos
proprietrios direito indenizao pela limitao ou supresso do domnio.
(viii) Ainda no intuito de atribuir efetividade funo social, a Constituio
coloca disposio do Poder Pblico determinados instrumentos de coero
(parcelamento e edificao compulsrios, desapropriao etc.), dentre os quais se
destaca o IPTU progressivo, cuja incidncia no deve ser limitada hiptese de
violao ao plano diretor (artigo 182, 2). O IPTU progressivo instrumento de
efetivao da funo social e deve, como tal, ser aplicado a qualquer situao em que
a realizao dos valores existenciais esteja sofrendo injustificada restrio em virtude
da atuao de interesses de natureza meramente patrimonial.
Em matria de funo social da propriedade, preciso concluir que, de uma
forma geral, a atuao dos tribunais brasileiros tem estado em sincronia com a recente
evoluo doutrinria. Embora a f nos juzes seja, na lio de Calamandrei, o
primeiro requisito de um advogado,56 no a crena imotivada na atuao do Poder
Judicirio o sustentculo dessa concluso. Os tribunais brasileiros encontram-se, de
fato, atentos nova imagem do direito de propriedade que vai se desenhando no
espao entre um capitalismo autofgico e um socialismo radical: um novo direito de
propriedade, um direito de propriedade legitimado porque cumpridor dos interesses
sociais e dos valores existenciais consagrados pelo ordenamento jurdico.
Esse novo paradigma, essa nova forma de pensar a propriedade pode ser
extrada das decises judiciais mencionadas acima ou das lies doutrinrias mais
recentes. A verdade, contudo, que, nem nestas nem naquelas, se encontrar a idia
com a fora e a clareza que acompanharam as palavras simples do socilogo Herbert
de Sousa: "A terra era grande e a vida pequena. Inicial. A vida foi crescendo e a terra
ficando menor, no pequena. Cercada, a terra virou sorte de alguns e desgraa de
tantos. (...) A terra e a cerca (...) A democracia esbarrou na cerca e se feriu nos seus
56 PIERO CALAMANDREI, Eles, os Juzes, vistos por um Advogado , So Paulo: Martins Fontes, 1997,p. 1.
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arames farpados. (...) Mas tanta (a terra), to grande, to produtiva, que a cerca
treme, os limites se rompem, a histria muda e ao longo do tempo, o momento chega
para pensar diferente."57
57 HERBERT DE SOUSA, Carta da Terra.