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    GOELDI E A MORTE

    ANUNCIADA:

    seis gravuras para a revista Clima1

    em 1944

    Sheila Cabo Geraldo

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    Bandeira Preta a imagem em que a representao da morte

    aparece impressa em gigantesco estandarte que anuncia aos homensrastejantes, possivelmente feridos de guerra, a iminncia do m. Diantede to potente imagem que se destaca na escurido da bandeira, comoidenticar seu tempo e seu lugar? noite, dia? Onde e quando foidesfraldada? Destacada do cu e da terra, sua nica identidade parece sero terror e o medo. Pungente o suciente para desencadear um processode rememorao, no h como no a ver associada s calaveras gravadasem madeira pelo mexicano Posada, mas tambm no h como no ver

    nos corpos do primeiro plano aqueles do Fuzilamento, de Goya, talvezos mortos da barricada de Delacroix e at mesmo os da jangada, deGricault, cuja bandeira-farrapo, ao contrrio desta, anuncia a salvao.No se trata aqui de buscar as inuncias ou as causas da imagem, masde identicar e expor os cruzamentos que a explicitam, construindouma forma de relao externa da obra que, sem dvida, tece aquela teiaque nos leva a pensar na posio e pertinncia do artista que a criou nomundo e no curso da arte, da cultura e da histria.

    Oswaldo Goeldi nasceu no Brasil, em 1895. Viveu aqui at oscinco anos, tendo morado, durante sua primeira infncia, em Belm,no Par, para onde fora seu pai, Emilio Goeldi, com o objetivo dereorganizar o Museu Paraense de Histria Natural, hoje Museu Goeldi.

    Como que o individual, o

    soturnamente fechado em si mesmo,

    como o seu universo, de pesadelo

    lcido e irnico, pode desencadear

    tamanha onda de emoo generosa,

    criando uma espcie de fraternidade.

    Carlos Drumond de Andrade2

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    Tendo voltado com a famlia para Berna, Oswaldo s retorna ao Brasilcom 24 anos, aps a morte do pai. Durante sua formao na Sua,por ocasio da Primeira Guerra Mundial, foi convocado para o serviomilitar, tendo servido como sentinela na fronteira com a ustria,experincia que o artista relatou diversas vezes e que o teria marcadopela proximidade da morte e da violncia. Com o falecimento do pai,transfere-se para Genebra, onde estuda arte. Faz, ainda em Berna, suaprimeira exposio de desenhos, antes mesmo de seu retorno ao Brasil,que se d na poca da efervescncia modernista.

    Goeldi tem sido, nos ltimos anos, aclamado como um denossos maiores artistas da primeira metade do sculo XX. Sua obra

    vem recebendo a ateno dos mais importantes crticos e historiadoresbrasileiros. Em sua chegada, entretanto, no foi assim reverenciado, eisso, aliado ao incipiente mercado de arte, o levou, por muitos anos, ase dedicar ilustrao. Desde 1926 Goeldi colaborou em jornais, masnas dcadas de 1930 e 1940 recebeu importantes encomendas parailustraes de livros. Foi na dcada de 1940 que ilustrouHumilhados eofendidos3 eRecordaes da casa dos mortos4 , obras de Dostoievski,com xilogravuras, e, em bico de pena, O Idiota5 .

    Bandeira Preta faz parte da srie Balada da Morte, compostade seis gravuras em madeira elaboradas por Goeldi em 1944. Foipublicada como um encarte no nmero 13 da revista Clima, editada emSo Paulo e dedicada arte e cultura, tendo frente Dcio de AlmeidaPrado, Antonio Candido, Paulo Emlio Salles Gomes, Lourival GomesMachado, Alfredo Mesquita e Ruy Coelho. Lourival Gomes Machadoera o responsvel pela crtica de artes plsticas e possivelmente foiquem convidou Goeldi para essa empreitada. Lourival vai ser tambm o

    primeiro organizador da Bienal de So Paulo, em 1951, quando Goeldirecebeu o primeiro prmio de gravura, em reconhecimento bastantetardio de sua obra. Mas, Balada da Morte no uma ilustrao feita para a revista. Trata-se de uma srie especial veiculada, de maneirabastante peculiar, nessa tambm intrigante publicao.

    Geraldo Ferraz, em artigo de O Jornal, em 19446 , comparouesse conjunto de gravuras com a srie de Hans Holbein nomeadaDana da Morte, que se constitui de 41 cenas desenhadas pelo artistaholands, gravadas em madeira e impressas em Lyon, em 1538, juntocom uma espcie de alfabeto da morte, tambm do artista. O tema damorte, um tema medieval, tal como a tcnica da gravura em madeira, assduo entre os povos germnicos, escreve Reis Junior7 , um dos mais

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    ntimos amigos de Goeldi, na tentativa de explicar a recorrncia dessasimagens em seus desenhos e gravuras. Teria sua origem numa vontadede especulao losca, que se intensicara na retomada romnticados temas medievais, concorrentes da aspirao ao absoluto, queesto na base da potica do Sturm und Drang e, posteriormente, nados expressionistas alemes, assim como na de Goeldi. No nenhumanovidade falar sobre o expressionismo romntico de Goeldi. Suasgravuras e desenhos so criados na medida da vida cotidiana, mas emplena conscincia de que essa criao um ato inaugural, que originaimagens a partir do ser e enseja uma correspondncia de existncias8 .

    Anibal Machado9 escreveu em 1955 que a potica de Goeldi

    semelhante a um cncavo, onde ressoam todas as vibraes domundo. Assim que, em suas gravuras, a penumbra grave das ruas,a sobriedade, a desolao das casas e a presena irredutvel do postede luz nos direcionam para o reconhecimento de um mundo, mas deum mundo remoto, tempo de gente perdida, semelhante a um tempode recordaes. Sobretudo na gravura Bandeira Preta, que compe asrie junto com O sol se apaga voltarei amanh; 167 de uma s vez!;Comilo, cuidado com a sobremesa!; Nero,no brinca e O bbado,

    o que se impe a presena pictrica de uma atmosfera noturna, frutodo choque dirio do sujeito com o mundo. Talvez resida a a identidadeda obra de Goeldi: o choque da dignidade pessoal com o jogo domundano, mas sobretudo a vontade moral de super-lo, o que nos fazver nessas gravuras a marca do existencialismo de Kierkegaard, paraquem a dimenso tica traz em si a liberdade. Assim que podemos nosaproximar da srie Balada da Morte, mas tambm das gravuras feitas namesma poca paraHumilhados e ofendidos eRecordaes da casa dos

    mortos, expostas em conjunto na individual do Instituto dos Arquitetosdo Brasil, em 1944.Sem dvida, Balada da Morte carrega em si a potica

    romntico-expressionista que tem como motivao a pergunta sobrea existncia e o m da existncia. Mas tambm uma resposta aoacontecimento terrvel da Segunda Guerra Mundial. Raquel de Queiroz,num depoimento de 1981, comentando a participao arredia de Goeldino meio artstico, referiu-se ao artista como um homem que, conscientede seu valor, no desejava competir. Acrescentou ainda que, sendo umhomem, em suas palavras, sensitivo, no tinha interesse na participao poltica, mas, no caso da Segunda Guerra, se posicionara veementecontra Hitler.

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    A escritora considerou Goeldi sobretudo um artista avesso srodinhas palacianas, o que talvez possa esclarecer o interesse doseditores de Clima por seu trabalho, a ponto de lhe darem um espaoconsidervel na revista, fundada em 1941 por um grupo de recm-formados na Faculdade de Filosoa, Letras e Cincias Humanas daUniversidade de So Paulo. Em seu primeiro nmero, de maio de 1941,os redatores a identicam como uma revista de gente moa, cheiade coragem, que pretende apresentar e fazer conhecer os trabalhosno nvel da cultura, em qualquer dos seus ramos, tentando criar esseclima de curiosidade, de interesse e ventilao intelectual. Pensadacomo publicao com especial interesse na discusso de literatura,

    teatro, msica, cinema e artes plsticas, s durou quatro anos, tendoseu ltimo nmero, o 14, sado em novembro de 1944; nesse perodo,entretanto, abriu espao para a construo de uma nova viso darealidade brasileira, o que incluiu a luta contra o nazifascismo e pelademocratizao do Brasil, em pleno Estado Novo.

    Apesar de crticos do modernismo, esses redatores admiravamMrio de Andrade, a quem convidaram para fazer a apresentao do primeiro nmero da revista. Mrio, numa lucidez absoluta, fez um

    balano do movimento artstico entre as dcadas de 1920 e de 1940,percebendo a distncia entre esses jovens recm-sados da universidadee os modernistas dos anos 20. Denindo sua gerao como deabstencionistas ou inconscientes, reconhece que tiveram mrito naconstituio do movimento modernista, mas tambm identica o quechama de um perigoso movimento em direo arte social a partirde 30. O que o escritor aponta como novo e louvvel nessa gerao o fato de procurarem publicar uma revista que, como escreveu Mrio,

    pretendia suprir a falta de um pensamento losco, de uma atitudelosca da inteligncia, entre nossos intelectuais.10Se de fato, em seus primeiros nmeros, Clima rene artigos

    que abordam temas muitas vezes acadmicos, distantes da discussopoltica dos anos 30, a seo de crtica, como escreveu Srgio Milliet11 ,referindo-se a Lourival Gomes Machado, em carta publicada no segundonmero, uma crtica de oposio crtica de arte objetiva, tcnica,plstica e que defende a tese da crtica losca e sociolgica. Deresponsabilidade dos editores, as crticas so escritas procurando umarelao entre a cultura e o pensamento crtico-losco, distanciando-se da simples constatao temtica e da identicao tcnica que oque Milliet chama de crtica objetiva , mas tambm isentando-se de

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    qualquer posicionamento poltico.A partir de agosto de 1942, a revista passou a homenagear

    um artista em cada edio, e Livio Abramo teve, ento, suas gravuras publicadas em Clima n 1112 , em que os editores incluram umadeclarao antifascista, mas esclarecendo: ainda que ao fundar o peridico tinham resolvido nele no debater assuntos de poltica,nacional ou internacional, entendiam agora que a guerra entre oBrasil, de um lado, e a Alemanha e a Itlia, do outro, era inseparvelda guerra que se processa em escala internacional e ideolgica contrao fascismo13 . Terminam a declarao com uma denio do fascismoem que o identicam com o Integralismo de Plnio Salgado no Brasil. O

    nmero 12 da revista saiu apenas em abril de 1943 e tem como editorialuma carta em que os editores explicam a lacuna de vrios meses,justicando-a pelas condies que a guerra criou para a imprensa14, sobretudo materiais. Anunciam mudanas para os prximos nmerosda revista, que passar a ser trimestral e ter um novo perl15 .Tendo como artista convidado Manoel Martins e contando com oartigo de Mario Schenberg16 intitulado O destino das naes unidas,neste nmero foi publicado, ainda, um Comentrio sobre as reaes

    declarao antifascista publicada no nmero anterior.No nmero 13, a guerra aparece de maneira explcita: alm

    do artigo A distribuio das responsabilidades da guerra, de MoacirWerneck de Castro17 , nele consta a srie Balada da Morte. No s emBandeira Preta isso perceptvel, mas tambm em 167 de uma s vez!,em que uma caveira gaiata, com chapu de marinheiro comandante,equilibrando-se em uma bia, em pleno mar, observa ironicamente umnavio que acaba de naufragar veio buscar e conta seus alvos e suas

    almas. Indubitvel tomada de posio contra a guerra, a gravura revela,na inteligente stira de Goeldi, uma compreenso que supera a simplesadeso aos aliados. Sua na e constante ironia, que aparece tambmem seus desenhos, esses rpidos registros de bbados, cachorros, casas,guarda-chuvas e urubus, signos de uma vida ultrajada e decada, revelaa compreenso dos acontecimentos em mbito maior, ou seja, naqueleque diz respeito ao aviltamento da condio humana, violao dadignidade do homem. Embora se referindo guerra, o que o interessa, sobretudo, a vida, a existncia humana, agora ameaada de maneiraperemptria. Balada da Morte, sem dvida, nossa verso do que foipara Goya os horrores gravados nas guas-fortes Desastres da Guerra.

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    A seqncia das seis gravuras faz emergir no s o tema,mas a identicao humanstica de Goeldi com os povos que sofremas conseqncias da violncia implcita nas guerras, alm de umademonstrao de sua aguda percepo dos motivos pelos quais oshomens se aniquilam nesses combates. Em Comilo, cuidado coma sobremesa!, as pequenas e poucas linhas, de cortes nos, que soalgumas vezes os prprios veios da madeira, como marcas de umhomem angustiado, revelam a necessidade consciente da sobriedade, para permanecer inacessvel potncia esmagadora daquilo que ocerca, mesmo que seja do nvel das tentaes prazerosas e fceis, comoo prato de sobremesa que tenta o comilo, mas que tambm sua morte.

    Goeldi mantm aqui a nsia subjetiva pelo innito, mastambm o respeito por si e a incrvel amorosidade pelos homens Tudocomprimido no limite dessas imagens, verdadeiras protagonistas de umdilogo de existncias.

    Sheila Cabo Geraldo

    Concluiu recentemente o ps-doutorado na Universidad Complutense deMadrid e faz parte do grupo de pesquisa Arte y Poltica: Argentina, Brasil,Chile y Espaa: 1989-2004. Procientista na Universidade do Estado do Riode Janeiro, onde tambm professora do Programa de Ps-graduao em Artes- PPGARTES, assim como editora da revista Concinnitas (UERJ). Possuigraduao em Desenho e Plstica (Licenciatura) pela Universidade Federal doRio de Janeiro (1977) e mestrado em Histria Social da Cultura pela PontifciaUniversidade Catlica do Rio de Janeiro (1994), onde defendeu a dissertao

    Goeldi: modernidade extraviada. Tem doutorado em Histria pela UniversidadeFederal Fluminense (2001), com a tese Arte e Modernidade Germnica.Tem experincia na rea de Artes, com nfase em Histria da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: histria da arte, arte e poltica, arte noBrasil, arte contempornea.

    Notas:1- Clima. So Paulo, N. 13, agosto de 19442- Andrade, Carlos Drumond. Goeldi e o Espanto. Correio da Manh, Rio deJaneiro, 4/10/19563- Dostoievski, F.M. Humilhados e ofendidos.Rio de Janeiro, Livraria Jos

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    Olympio Editora, 1944.4- Dostoievski, F.M. Recordaes da casa dos mortos.Rio de Janeiro, LivrariaJos Olympio Editora, 1945.5- Dostoievski, F.M. O Idiota..Rio de Janeiro, Livraria Jos Olympio Editora,1944.6- Ferraz, Geraldo.O Jornal, Rio de Janeiro, 19447- Reis Junior, Jos Maria. Goeldi. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 19668- Geraldo, Sheila Cabo. Goeldi: modernidade extraviada. Rio de Janeiro,ADESA/Diadorim, 1995.9- Machado, Anbal. Goeldi. Apresentao. Rio de Janeiro, MEC, ColeoArtistas Brasileiros, 1955.

    10- Andrade, Mrio de. Clima, So Paulo, N. 01, maio de 1941, p.12.11- Milliet, Srgio. Clima, So Paulo, N. 02, julho de 1941, p. 136.12- Abramo, Lvio. Gravuras. Clima. So Paulo, N. 11, agosto de 1942.13- Os editores que assinam a declarao de guerra contra o fascismoso: Lourival Gomes Machado, Alfredo Margute, Antonio Lefvre, AntonioCndido e Dcio de Almeida Prado. Clima, So Paulo, N. 11, agosto de 1942.14- Clima, N. 12, So Paulo, abril de 194315- Idem.

    16- Schenberg, Mario O destino das naes unidas. In. Clima, N. 12, SoPaulo, abril de 1943.17- Castro, Moacir Werneck de. A distribuio das responsabilidades daguerra. In: Clima, So Paulo, N. 13, agosto de 1944.