Tecendo a vida Texto: Assuero Gomes Imagens: Web Música: Caetano Veloso.

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Tecendo a vida

Tecendo a vida

Texto: Assuero GomesImagens: WebMúsica: Caetano Veloso

Observo minha filha Clara descobrindo o mundo da costura.

Imagino a vida como um tecido que vamos

criando através de infinitos fios.

Todos estão entrelaçados, tão

juntos, tão dependentes uns dos outros, que feridos pelas agulhas ou lacerados pelas

tesouras se recompõem.

As suturas são cicatrizes.

Os remendos que fazemos na nossa vida,

sejam por conta de amores puídos, ou por traumas psicológicos

não resolvidos ou ainda por causa da saúde

rompida, vão deixando marcas.

Ah! quantas vidas, quantos tecidos.

Pergunto a ela sobre a vida. Ela mostra-me uma colcha

de retalhos. A dela é composta por alegres

estampas e bordada com fios coloridos. Nós apertados nos

laços familiares. Pontos e chilreados, linhas retas e zigzags, tecidos de várias texturas, suaves cetins,

rendas delicadas.

Penso na vida de tantas e tantas pessoas que passaram pela minha

vida.

Como estarão suas vestes, que roupas estarão usando? Acaso o pano negro da mortalha já estará tecido com o alinhavo da dor, ou apenas os claros e leves panos das roupas infantis, costurados

em seguida às cambraias do vestido de noiva com a casimira

inglesa do paletó do noivo, entrecortados com a fina seda da

camisola do dia?

O fio da vida, em alguns pontos esgarçado noutros seguro, em outros em alto relevo ou ainda correndo por debaixo da pele da fazenda, faz ligações e mais

ligações, infinitas com fios do passado e do futuro, de tal maneira que se poderia caminhar por toda a

existência humana mostrando que ninguém existe sozinho e que a delicada teia da vida é tecida com as existências articuladas e interdependentes de cada

ser vivo.

O que agora não sabemos sobre o mistério da vida,

pois observamos como quem olha um bordado pelo avesso, será revelado

(retirado o véu, que é de pano), então saberemos

finalmente da beleza plena e misteriosa da vida contida

no universo e compreenderemos o

significado oculto de tantos e tantos acontecimentos

inexplicáveis.

A lã que agasalha e que falta ao pobre, a

fita da festa que enfeita os dias de trabalho duro sem

recompensa digna, a estola do sacerdote

que presta serviço, o jaleco do médico que

ameniza a dor, como se apresentam?

Como vestirá a professora o seu

hábito de dedicação? Em quais mãos de

qual costureira hábil se tornarão vida?

Que vestes usaremos no nosso último dia,

primeiro da eternidade?

Eu pergunto a mim mesmo, quem teceu o manto da aurora ou a capa negra da

noite bordada de estrelas e luz?

Como descobrir um país inteiro com o lençol da vergonha e vesti-lo com as vestes da

justiça e da paz?

A linha continua costurando, seguindo a agulha incólume que penetra o tecido e tenta dar um sentido aos milhares

de nuances e segredos escondidos no pedaço de

pano, num pedaço de vida, entrelaçada a tantas vidas.

A linha continua costurando...

A linha continua...

A linha...