Post on 19-Jun-2015
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
TEMA 2:
O DESENVOLVIMENTO NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
Docentes: Lina Morgado Angelina Costa
© Universidade Aberta, 2009 Psicologia do Desenvolvimento
U. C. PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO, UNIVERSIDADE ABERTA
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Texto 1:
As Grandes Linhas do Desenvolvimento na Infância
PERSPECTIVA HISTÓRICA
Até os adultos reconhecerem e permitirem a emergência da infância, ela parecia
não existir. Durante longos séculos pensou‐se que por volta dos 6/7 anos de idade a
criança estaria preparada para ser tratada como um adulto. As crianças eram
consideradas pouco mais do que adultos em miniatura. Com excepção de um pequeno
conjunto de crianças ricas, nascidas em boas famílias, todas as outras trabalhavam
juntamente com os adultos nos campos, lutavam e morriam nas guerras, trabalhavam nas
minas e, com a industrialização, trabalhavam de manhã à noite nas fábricas.
Considerando um período de tempo de 4 mil a 5 mil anos de história, verifica‐se
que a educação das crianças é um fenómeno recente. Apenas nos últimos 150 anos as
sociedades adultas ocidentais reconheceram a infância e os anos juvenis como estádios
especiais de desenvolvimento. As crianças sempre existiram nas sociedades. Contudo,
tornava‐se necessário o reconhecimento dos adultos para que a infância pudesse existir e
ser estudada.
Uma vez reconhecida, surgiu um período de grandes mudanças. Formularam‐se
leis protectoras do bem‐estar e da saúde das crianças. E o que aconteceu no século XIX
para as crianças, voltou a acontecer no século XX para a adolescência. Apenas
recentemente, nos países e culturas industrializadas, os adultos começaram a levar em
conta as necessidades e capacidades fisiológicas e psíquicas características dos
adolescentes e esta percepção deu‐lhes oportunidade de reconhecer um estádio
específico de desenvolvimento humano. Como consequência, tem vindo a aumentar a
nossa compreensão acerca das características fundamentais dos adolescentes. Na última
metade do século XX assistimos a mudanças no modo como os adolescentes são tratados
pelos adultos, as quais são semelhantes às modificações vividas pelas crianças no século
anterior.
CONCEITOS BÁSICOS: ESTÁDIOS E DOMÍNIOS DE CRESCIMENTO
Na psicologia do desenvolvimento contemporânea, o conceito de estádio tem um
significado importante e especial. Um estádio é um sistema de funcionamento humano
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que é distinto, único e consistente como um todo. As diferenças entre um estádio inicial e
um estádio posterior são qualitativas e não quantitativas. Os estádios são sequenciais,
construindo‐se cada um deles a partir do que lhe antecedeu. O crescimento ao longo dos
estádios não é automático, mas depende da combinação da maturação fisiológica com
uma interacção adequada com o meio ambiente.
Estádio: um sistema distinto, único, consistente do funcionamento humano
Os psicólogos desenvolvimentalistas afirmam que todos os seres humanos
processam, activamente, o conhecimento que é adquirido na prática, isto é, que a mente
humana tenta atribuir um significado a cada experiência. O ser humano possui a
capacidade de pensar, de reflectir, de examinar e de raciocinar. Quando vivenciamos
alguns acontecimentos tentamos processá‐los cognitivamente de forma a procurar,
activamente, chegar a algum significado. Por outras palavras, não somos receptáculos
vazios ou indivíduos passivos. Em vez disso, somos participantes activos na vida,
procurando tornar significativas todas as nossas experiências. A capacidade de reflexão é
intrínseca à condição humana; possuímos uma forte tendência para tentar retirar
significado das experiências.
A forma como cada indivíduo processa as situações representa o estádio, isto é, o
conjunto das operações mentais que ele geralmente utiliza. No seio de grupos etários
amplos, as operações cognitivas têm tendência a ter em comum um conjunto de
características semelhantes. Além disso, cada pessoa tende a utilizar o mesmo sistema
básico de pensamento de uma maneira generalizada e consistente. Para explicar a noção
de estádio cognitivo‐desenvolvimentalista são utilizadas, frequentemente, diversas
expressões: esquema, estrutura cognitiva, estrutura mental, sistema mediador interno ou
estratégia de resolução de problemas. Estes termos baseiam‐se no tipo de raciocínio que
cada indivíduo efectua num processo de tomada de decisão.
A cognição, o acto de pensar, ou, de um modo geral, o processamento do
conhecimento, e inerentemente, uma capacidade humana. Em aspectos particulares do
desenvolvimento, o sistema que cada pessoa utiliza possui características que se
identificam facilmente, como um estádio coerente e internamente consistente. Para um
desenvolvimentalista, ou para um educador, é extremamente importante ser capaz de
identificar o processo de raciocínio e de tratamento da informação que cada um
efectivamente utiliza, dado que isso lhe permite adequar o trabalho ao nível de
funcionamento actual do aprendente.
Estádios: sistemas de processamento que são qualitativamente diferentes
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Uma segunda característica dos estádios consiste no facto de eles serem
qualitativamente diferentes. As diferenças entre um estádio e o seguinte são diferenças
de género. Este ponto de vista entra em contradição com a visão geral sobre os seres
humanos, defendida no fim do século XIX, especificamente, eu a infância, a adolescência e
a vida adulta eram partes essenciais de um contínuo. Assim, por exemplo, as crianças
eram consideradas fisicamente mais pequenas, mentalmente mais lentas, capazes de
memorizar menos informação e de escrever frases ais elementares do que os
adolescentes ou adultos. As crianças eram quase como os adultos, sendo, apenas de
menor tamanho. Não existiam características essenciais que fossem diferentes, com
excepção para a capacidade de reprodução. As diferenças eram todas de grau, possuindo
os adultos mais «expressões» de uma dada característica do que as crianças e os jovens.
Hoje em dia sabemos que as mudanças de um estádio para outro constituem
transformações. Pode fazer‐se uma analogia adequada com a entomologia: o processo de
transição do ovo de uma lagarta para uma borboleta. Cada estádio de desenvolvimento
humano representa, idealmente, esse tipo de metamorfose. Outra analogia pode ser
retirada da física: quando acontece uma descoberta nova e radical, um novo método de
compreensão de algum aspecto do Universo como, por exemplo, a descoberta da
gravidade feita por Newton, é descrita uma nova lei, dando‐se um salto quântico. Da
mesma maneira, uma mudança de estádio de funcionamento constitui um avanço deste
tipo para um novo nível de processamento do conhecimento. Este novo estádio é mais
complexo do que o anterior e representa um novo modo, ou sistema, de pensamento.
Os estádios de desenvolvimento são sequenciais
Os estádios são ordenados de acordo com níveis de complexidade. Todas, ou
quase todas as pessoas, iniciam o seu desenvolvimento aproximadamente ao mesmo
nível e o crescimento, por definição, progride de um nível menos complexo para outro
mais complexo. Uma vez que cada novo estádio se edifica directamente sobre as
experiências do estádio anterior, o crescimento é sequencial, isto é, passa‐se de um
estádio a outro por ordem de complexidade. Foi referido anteriormente que os estádios
são qualitativamente diferentes; por isso eles constituem uma hierarquia. Esta hierarquia
dos estádios e a natureza sequencial do desenvolvimento mostram que a ordem é
unidireccional e que respeita determinados passos. Os estádios iniciais não podem ser
omitidos.
Existe outro aspecto igualmente importante nesta ideia. De uma maneira geral,
se uma pessoa atinge completamente um determinado estádio nunca regredirá para um
nível de complexidade menor. Tecnicamente, esse fenómeno é atribuído à
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impossibilidade de ocorrer uma regressão estrutural. Nesta perspectiva, uma vez
terminada a infância, o indivíduo não consegue voltar a ter, integralmente, uma visão
ingénua do mundo (partindo do princípio de que as funções intelectuais permanecem
intactas). Esta observação não significa que o adulto, por vezes, não seja um pouco
infantil. No entanto, as suas vivências não são qualitativamente iguais às das crianças.
Os estádios representam diferentes domínios de processamento humano
Muitas vezes o conceito de estádio é mal interpretado. Tem havido uma
tendência para afirmar que, quando se refere um estádio de desenvolvimento, se faz uma
generalização ao domínio completo do funcionamento humano. Apesar de ser fácil cair
nesta sobregeneralização, a investigação actual indica que devemos ser bastante
cautelosos ao especificar a que aspecto particular, ou domínio, nos estamos a referir.
Os autores que defendem a existência de estádios têm concentrado os seus
esforços em áreas diferentes do funcionamento humano. Por exemplo, os trabalhos de
Piaget dão particular ênfase ao desenvolvimento cognitivo. Do mesmo modo, ao falarmos
do desenvolvimento psicossexual, a perspectiva de Freud propõe uma sequência
específica de estádios. O mesmo acontece com outras áreas como o desenvolvimento
moral ou o desenvolvimento da identidade. Assim, cada domínio possui uma sequência
característica de desenvolvimento.
O desenvolvimento dos estádios depende do processo de interacção
O pressuposto mais importante e, de certa forma, decisivo, refere‐se ao facto de
o crescimento depender do processo de interacção, tal como se afirmou anteriormente.
Alguns autores defenderam o oposto, nomeadamente que o desenvolvimento era, de um
modo amplo, orientado internamente. Este é um ponto de vista maturacionista. Contudo,
o desenvolvimento não é unilateral. O pano de fundo, tal como Erik Erikson lhe chamava,
ou a determinação orgânica, constitui apenas um dos elementos do processo. O
desenvolvimento tem lugar dependendo quer do género, quer da qualidade da
estimulação ambiental, a qual interage com a capacidade do indivíduo para tirar proveito
das experiências. A sequência constante dos estádios oferece uma ideia geral, alargada,
sobre a forma como o desenvolvimento resulta da interacção indivíduo‐ambiente.
Os perigos de uma perspectiva unilateral são duplos. Podemos dificultar ou
mesmo obstruir o desenvolvimento quer impedindo a interacção, quer subjugando a
pessoa ao ambiente. No primeiro caso extremo, por exemplo, mantendo fechadas em
armários, garagens e sótãos crianças com atraso mental, tem‐se a certeza de que elas não
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se desenvolverão mesmo dentro do seu limitado potencial. Outro exemplo está expresso
num estudo realizado em escolas do primeiro ciclo da cidade de Nova Iorque que mostrou
que as capacidades de algumas crianças declinavam como consequência da própria
aprendizagem. Os seus resultados na leitura e o seu auto‐conceito diminuíam durante os
anos iniciais da escolaridade. Uma análise das interacções reais na sala de aula indicou
que as crianças estavam inseridas num meio pouco estimulante e monótono, no qual
eram frequentemente ignoradas.
Existem também estudos que mostram de forma clara que uma estimulação em
excesso, que conduza a uma idade adulta prematura, pode ser prejudicial para as
crianças. Por exemplo, um estudo com crianças da área de Bóston revelou que as crianças
em idade pré‐escolar tinham de cuidar dos seus irmãos mais novos, alguns recém‐
nascidos. Elas aprendiam a ir às compras, a negociar astutamente e, muitas vezes, a cuidar
dos pais alcoólicos. Por este facto, apresentavam competências sociais muito
desenvolvidas. Contudo, este tipo de desenvolvimento prematuro provocava dificuldades
acentuadas no seu desenvolvimento emocional e pessoal. Além disso, manifestavam uma
incapacidade acentuada para adquirir mesmo as competências básicas do primeiro ano de
escolaridade. Os custos deste comportamento adulto prematuro distorciam o seu futuro
antes de terem iniciado a escolaridade obrigatória.
Outros estudos mostram os efeitos positivos de uma estimulação e apoio
emocional adequados. Alguns programas eficazes de educação pré‐escolar, para crianças
socialmente desfavorecidas, apresentam evidências claras de que uma interacção positiva
e apropriada leva à promoção de um desenvolvimento saudável. O que é verdadeiro para
as escolas também o é para o ambiente familiar. Também neste domínio vários estudos
documentam os benefícios da colocação de crianças muito novas, adoptadas e
provenientes de meios precários, em lares onde lhes era dado um ambiente adequado.
Nestas condições, o ambiente enriquecido estimulava o crescimento das crianças.
Surpreendentemente, não foi só o seu funcionamento geral que melhorou, mas também
o valor do seu QI que, em média, subiu cerca de 20 pontos comparativamente ao das
crianças do grupo de controlo. Mesmo as capacidades intelectuais não estão
determinadas à nascença, mas dependem, em grande medida, da qualidade da
interacção.
A importância da interacção não se restringe à infância. Por exemplo, as curvas
de desenvolvimento e os índices de base relativos aos anos da adolescência mostram que,
em muitos casos, os níveis de desenvolvimento decrescem ou tornam‐se estáveis. Este
resultado sugere que pode deixar e existir uma adequada interacção na escola ou em
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casa. Por exemplo, uma grande maioria dos adolescentes não é capaz de resolver os
problemas escolares que envolvem o raciocínio abstracto. Teoricamente, pelo menos a
maior parte deles deveria ser perfeitamente capaz de desenvolver o raciocínio e outras
funções intelectuais a este nível. Contudo, os programas educacionais muitas vezes não
proporcionam a estimulação adequada. Como consequência, menos de um teço dos
adultos consegue alcançar o nível intelectual de que é potencial capaz.
Dados semelhantes indicam que o que acontece para o pensamento formal
também é verdade para o desenvolvimento dos valores, do ego e das relações
interpessoais. Não nos podemos esquecer de que o processo de interacção é a base
essencial para a estimulação do desenvolvimento.
Adaptado de N. Sprinthall e W. Collins, Psicologia do Adolescente, 1994
Texto 2:
As Grandes Linhas do Desenvolvimento na Adolescência
Introdução
O termo adolescência tem origem na palavra adolescere, que quer dizer crescer
para adulto. Sempre se cresceu para adulto. Mas nem sempre foi dado a este crescimento
um tempo de vida tão alargado como nos tempos vigentes.
Nos dias de hoje, a adolescência é um período alongado, que se estende até à
terceira década de vida, em que o adolescente vive com os pais. Para este facto são
apontadas várias causas: culturais, como a maior liberalização, aceitação e tolerância dos
costumes; sociais, onde se destaca o prolongamento dos estudos que leva
consequentemente a uma maior dependência; e económicas, como o desemprego ou o
trabalho precário (Braconnier & Marcelli, 2000).
Uma das questões que, ao longo da história da adolescência se tem
sistematicamente levantado, é a da turbulência e instabilidade que o jovem vive nesta
fase da sua vida. Apesar de estarem um pouco de lado as perspectivas storm and stress,
continuam a estudar‐se os problemas da adolescência porque eles são reais e trazem
consigo mal‐estar e novas dificuldades. No entanto, existem hoje noções diferentes face a
estes problemas que permitem ver a adolescência de outro modo. Sabe‐se hoje que
alguns jovens encontram na adolescência dificuldades, mas que tal não é verdade para
todos. Sabe‐se também que, quando existem dificuldades, estes problemas não se
generalizam a todas as áreas de funcionamento do jovem ou atingem necessariamente
graves proporções. Sabe‐se, ainda, que muitos dos problemas na adolescência surgem
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como formas de adaptação do adolescente aos novos desafios que se lhe colocam
(Sprinthall & Collins, 1999).
E são múltiplos os desafios a vencer: a adaptação a uma nova condição biológica,
a conquista de uma nova autonomia, o estabelecimento de novas relações interpessoais
próximas e duradouras, a progressão académica, entre outros. E como se isto não
bastasse, o adolescente precisa ainda, tal como todo o ser humano, de sentir‐se
valorizado como pessoa, estabelecer um lugar num grupo produtivo, sentir‐se útil para os
outros, dispor de sistemas de suporte e saber usá‐los, fazer escolhas informadas e
acreditar num futuro com oportunidades reais. Ultrapassar estes desafios e preencher
estas necessidades tornam‐se requisitos necessários para que os adolescentes se tornem
adultos saudáveis e produtivos.
Um pouco da história da adolescência
A adolescência, tal como hoje se concebe, é uma fase da vida relativamente
recente. Ariés (1973) refere que a adolescência se encontrou absorvida pela infância até
ao século XVIII, não se verificando, no entanto, mesmo após esta época, uma
preocupação em considerar a adolescência como um período de desenvolvimento
diferenciado que impunha um olhar especial.
Pode‐se, no entanto, traçar um percurso um pouco mais distante no tempo para
o surgimento deste período. Segundo Lutte (1988), a adolescência surgiu no início do
século II a.C., na sociedade romana, como consequência de profundas alterações do
sistema económico‐social. O senado aprovou duas leis, a lex plaetiria e a lex Villia annalis.
A primeira correspondia ao nascimento de um novo grupo social, instituindo uma acção
penal contra quem abusasse da inexperiência de um jovem com idade inferior a 25 anos.
A segunda limitava a participação dos jovens em cargos públicos. A juventude ou
adolescência surge assim como uma fase de protecção e simultaneamente de limitação
dos direitos e recursos.
Durante a Idade Média e a época pré‐industrial, a juventude situava‐se entre a
dependência da infância e a independência relativa da idade adulta, que por sua vez se
caracterizava pelo casamento e herança dos bens. Este período, entre a infância e a idade
adulta, situava‐se aproximadamente entre os 7‐10 anos até aos 25‐30 anos. Agra (1986)
refere a existência na Idade Média de palavras como pueritia (puerícia), adolescentia
(adolescência) e juvenes (jovens), mas salienta que não apresentavam qualquer
correspondência com a existência de etapas de vida ou estatuto, tal como hoje se
concebem.
Até ao século XVIII e durante este século, are prática frequente os jovens, na
altura da puberdade, deixarem a casa de seus pais para irem para a casa de outras
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famílias, por vezes em locais bastante afastados do lar. Aqui, rapazes e raparigas eram
colocados na situação de aprendizes ou criados. O controlo dos pais torna‐se assim mais
reduzido, o que constitui um processo facilitador da sua autonomia e responsabilização
(Claes, 1985).
No entanto, apenas no século XIX surge a adolescência, tal como é concebida nas
sociedades contemporâneas. Nos meados do século XIX, o termo utilizado
frequentemente era jovem, apenas ocasionalmente se encontra referência ao termo
adolescência. No final do século XIX, o termo começa a aparecer com mais frequência.
Mas apesar de não ser frequente, já existiam muitas ideias precisas em relação a esta fase
da vida. A adolescência era vista como um período de transição, de desenvolvimento
individual, que envolvia grandes mudanças a nível físico, sexual, comportamental e
profissional.
A «repartição da vida» em mais uma etapa, a adolescência, coincidiu com um
período histórico: a revolução industrial. Lutte (1988) refere que a industrialização
conduziu a mudanças radicais na estrutura cultural, escolar, familiar. E estas mudanças
reflectiram‐se na «construção» desta nova «etapa» da vida. Factores como o declínio da
aprendizagem as profissões devido ao processo de industrialização, extensão progressiva
e obrigatoriedade da escolaridade foram determinantes no estabelecimento do estatuto
de adolescente. Mas, sem dúvida, que um factor bastante forte neste processo
construtivo foi a evolução da concepção de família. É a partir de meados do século XIX
que surge a mudança no seio da família: cada vez mais o adolescente permanece junto da
sua família, deixando‐a apenas para constituir a sua própria família. A família,
anteriormente patriarcal, transforma‐se em família nuclear, constituída por pais e filhos
que permanecem juntos, coabitando o mesmo espaço. Assim, a adolescência decorre
entre a puberdade e o acesso ao estatuto de adulto. Este longo período de vida dos
indivíduos, vivido sob tutela parental, coincide com o nascimento da família moderna.
Esta nova concepção de família orienta as suas energias ara a vida privada, para a troca
afectiva, para a promoção do bem‐estar dos filhos, para a transmissão de valores, dando
assim um enfoque privilegiado às tarefas educativas. É em torno destes objectivos que
vive a família moderna.
As grandes mudanças na adolescência
A adolescência é um tempo de crescimento, de desenvolvimento de uma
progressiva maturidade a nível biológico, cognitivo, social e emocional. Nas sociedades
modernas não existe um acontecimento único que marque o fim da infância ou o início da
adolescência. (Segundo Baumerind (1987), a adolescência engloba o período que vai dos
10 aos 25 anos. Este período é geralmente repartido em três fases: fase inicial, entre os 10
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e os 15 anos; fase intermédia, entre os 15 e os 18 anos; e a fase final, que envolve o
período desde o final do ensino secundário até à entrada em um ou mais papéis adultos).
Esta transição envolve um conjunto de mudanças graduais em múltiplas esferas da
condição humana, que ocorrem durante um período mais ou menos alargado e que
preenchem toda a adolescência.
Um dos temas centrais da adolescência continua a ser a forma como se
ultrapassam estas mudanças, transições, desafios, crises, necessidades ou o que quer que
se lhe chame. Encontram‐se sempre dois lados da questão: o pessimismo e o optimismo.
Para uns, a adolescência é um período de mudanças dramáticas a nível familiar, a nível
escolar, ao nível das amizades, a nível profissional. É um período de confusão, de
sentimentos paradoxais, excitação e ansiedade, felicidade e tristeza, certezas e incertezas.
E, como se não bastasse, estas dúvidas não se limitam ao jovem, mas alastram aos outros
que com ele privam, nomeadamente pais, professores e amigos que vivem também os
seus próprios problemas (Lerner & Galambos, 1998). Para outros, a maioria dos jovens
está preparada para lidar com as mudanças biológicas, cognitivas, emocionais e sociais da
adolescência e ultrapassá‐las com sucesso (Steinberg, 1998). De acordo com esta
perspectiva, parte dos problemas que surgem na adolescência não têm consequências
graves ou a longo prazo. Devem, pois, ser equacionados como fazendo parte do
desenvolvimento normal como formas exploratórias necessárias ao desenvolvimento, ou
como um reflexo de um desfasamento entre a maturidade biológica e a maturidade
emocional (Baumerind, 1987; Irwin, 1987; Moffiitt & Caspi, 2000).
Mudanças Biológicas
As mudanças biológicas que ocorrem no início da adolescência constituem os
sinais mais evidentes de que uma nova época chegou. Entrou‐se na adolescência. Esta
entrada poderá ser mais ou menos «aceite» pelo próprio e pelos outros.
Steinberg /1998) refere que um factor talvez mais importante do que a entrada
em si é o momento em termos cronológicos desta transição. Segundo o autor, o impacto
imediato da puberdade na auto‐imagem e no humor do adolescente pode ser
relativamente discreto, mas o timing da maturação física afecta o desenvolvimento social
e emocional do jovem de formas importantes. Parece que esta maturação precoce está
associada a aspectos mais positivos para os rapazes do que para as raparigas. Os rapazes
que maturam mais cedo tendem a ser mais populares, a ter autoconceitos mais positivos
e a ser mais autoconfiantes, comparativamente com os que maturam mais tarde. Por
outro lado, as raparigas que maturam mais cedo podem sentir‐se desconfortáveis e
desajeitadas com a sua nova imagem.
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Encontram‐se também referências que defendem que a maturação precoce pode
constituir um factor de risco para o desenvolvimento de problemas de externalização
(padrões comportamentais observáveis, potencialmente desajustados do ponto de vista
interpessoal, denominados também problemas de comportamento, como, por exemplo,
agressividade ou comportamento delinquente), devido ao facto dos jovens que maturam
mais cedo desenvolverem amizades com adolescentes mais velhos. No entanto, parece
que este risco é sobretudo válido para jovens que têm história de dificuldades anteriores
à adolescência. Segundo Moffitt e os seus colaboradores (2002), os problemas que se
desenvolvem nesta fase são essencialmente devidos ao desfasamento entre a maturidade
biológica e social. E este desfasamento ou fosso entre a puberdade e a maturidade
psicossocial é maior nos tempos actuais. A puberdade ocorre mais cedo, os jovens
prolongam mais os ses estudos e, como tal, adiam a entrada na vida activa,
comparativamente com épocas passadas. Será este um prenúncio de cada vez mais
problemas durante esta longa adolescência?
Mudanças Cognitivas
A adolescência é também um período de grandes mudanças a nível cognitivo.
Muda‐se a forma de pensar sobre as coisas. Com a entrada no período das operações
formais, o pensamento torna‐se mais complexo e mais eficiente. Primeiro, os
adolescentes estão mais aptos a pensar sobre hipóteses. O raciocínio hipotético‐dedutivo
que se desenvolve na adolescência permite ultrapassar as barreiras do concreto, sendo
assim possível pensar acerca de ideias abstractas. Uma outra característica é a capacidade
de pensar sobre o processo de pensar, que se denomina meta‐cognição. Este processo de
pensamento permite uma maior consciência de si, na medida em que trata como objectos
de contemplação os seus pensamentos e os dos outros. Cada vez mais o pensamento
tende a analisar múltiplos aspectos da vida e a vê‐los como fruto de posições pessoais ou
de critérios de avaliação.
A teoria de Piaget trouxe uma contribuição fundamental para a compreensão do
desenvolvimento cognitivo, facto que pode ser avaliado pelo lugar de destaque e atenção
que ainda hoje se dá às suas formulações. Piaget (1983) apresenta quatro estádios de
desenvolvimento, sendo que o último estádio, estádio das operações formais, surge na
adolescência. Este estádio inclui operações como pensamento proposicional, análise
combinatória, raciocínio probabilístico, correlacional e abstracto, que se tornam as
operações mentais mais abstractas, complexas, lógicas e flexíveis.
Nos últimos anos surgiram novas abordagens ao desenvolvimento cognitivo
baseadas no processamento da informação. Segundo esta abordagem, o sistema de
processamento da informação nos adolescentes aumenta a sua capacidade de
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processamento, sendo consequentemente mais sofisticado e complexo. Os defensores
desta perspectiva argumentam que a passagem do período das operações concretas para
as operações formais depende precisamente desta evolução ao nível da capacidade do
sistema de processamento de informação. Por detrás destas mudanças estão três
aspectos: aumento do conhecimento, maior organização, planeamento e controlo na
capacidade de pensar e processamento mais rápido e automático. Estas capacidades
permitem a realização de várias tarefas cognitivas ao mesmo tempo.
Mudanças Emocionais
A par das alterações biológicas e cognitivas, ocorrem as alterações emocionais.
Estas alterações envolvem mudanças na forma como os indivíduos se vêem a eles
próprios e na sua capacidade de funcionar independentemente. Com a entrada na
adolescência aumenta a consciência de si próprio, pelo que os adolescentes estão cada
vez mais capazes de se caracterizar de modo complexo e abstracto. A procura e
estabelecimento de uma definição de si, isto é, de uma identidade pessoal constituem
uma das tarefas‐chave da adolescência. No entanto, outros desafios importantes se
colocam. Segundo Steinberg (1998), estabelecer um sentido de autonomia e
independência é uma parte tão importante da transição emocional como o
estabelecimento da identidade.
A Procura de uma Identidade
O conceito de identidade foi «popularizado» por Erikson. Na perspectiva deste
autor, o desenvolvimento processa‐se por etapas ou estádios psicossociais nos quais os
indivíduos são confrontados com desafios ou crises que necessitam de ser resolvidas de
forma adequada para enfrentar os desafios seguintes.
Segundo Erikson (1968, 1982), a adolescência é a fase da vida em que os
indivíduos devem estabelecer um sentido de identidade pessoal. Este desafio da
construção da identidade, mais conhecido por crise de identidade, é fruto do
desenvolvimento biológico, de expectativas culturais e de pressões sociais. A identidade
não surge espontaneamente com a maturação, tem de ser procurada e estabelecida
através de um esforço pessoal. Para Erikson, a identidade só pode ser encontrada através
da interacção com os outros significativos. E nesta fase da vida assumem uma importância
especial, os amigos e os grupos de pares. As relações que se estabelecem a este nível são
fundamentais no encontro da sua identidade pessoal, na medida em que dão
oportunidades de experimentar papéis e oferecem, em simultâneo, uma apreciação do
desempenho. O adolescente passa, assim, por um período de maior necessidade de
reconhecimento pelo grupo de pares e por um envolvimento quase compulsivo com este
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grupo. Esta ligação forte com os pares cria uma nova dependência que vem substituir a
dependência dos pais. Tal como a anterior, esta nova dependência precisa ser quebrada
para que o jovem se encontre a si próprio e atinja uma identidade madura. A aquisição de
uma identidade pessoal permite ao jovem adulto ter autonomia, iniciativa e confiança nas
suas decisões. Por outro lado, a não resolução deste desafio, ou uma resolução
inadequada, leva à construção de uma identidade difusa, incoerente, ou a uma má
«consciência do eu». Segundo Erikson, muitos dos problemas de comportamento que os
jovens apresentam poderão ser nada mais do que reflexos de uma identidade mal
resolvida.
Marcia (1980) expandiu a teoria original de Erikson, concretamente através de
um enfoque especial e do alargamento de alguns aspectos relacionados com o estádio
«identidade versus confusão da identidade». De acordo com Márcia, o critério para atingir
uma identidade madura é baseado em duas variáveis essenciais, que Erikson identificou
como crise/exploração e comprometimento. A crise/exploração refere‐se ao tempo em
que o adolescente analisa e coloca em causa os objectivos e valores definidos pelos pais, e
começa a procurar alternativas ajustadas a si próprio em termos de valores, crenças e
opções futuras. O comprometimento diz respeito ao envolvimento pessoal e afirmação
dos objectivos, valores, crenças e opções que elegeu. Combinando estes critérios, surgem
quatro modos distintos de conceptualizar as questões da identidade na adolescência.
1) identidade difusa ou confusa, o adolescente ainda não explorou hipóteses nem se
comprometeu com alternativas possíveis. As questões da identidade ainda não
surgiram como significativas ou não foram ainda resolvidas.
2) comprometimento precoce, o adolescente ainda não explorou hipóteses, mas já se
comprometeu com valores e objectivos que surgem de uma identificação com os pais
ou outros significativos. Como tal, a identidade não resulta de um investimento pessoal
de procura de alternativas.
3) moratória, que é uma fase de exploração activa em que o adolescente experimenta
diferentes papéis no sentido de encontrar a sua verdadeira identidade. No entanto,
ainda não se comprometeu definitivamente com nenhuma das alternativas possíveis.
4) aquisição da identidade, o adolescente passou por um processo de exploração de
hipóteses bem sucedido. Como resultado, construiu uma identidade madura com
comprometimento pessoal em termos de ocupação, crenças e valores. Márcia refere
que cada um destes estatutos não é estático, mas sim um processo em decurso. O
indivíduo estabelece um sentido de identidade progredindo através destes quatro
estatutos. No entanto, segundo o autor, apenas a moratória é essencial para a
aquisição da identidade, na medida em que é a etapa em que ocorre exploração,
fundamental para o estabelecimento de um verdadeiro sentido de identidade pessoal.
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A Conquista de uma Maior Autonomia
A autonomia é uma tarefa central na adolescência. A autonomia refere‐se à
medida em que o processo de socialização facilita o desenvolvimento de um sentido de
identidade pessoal, eficácia e valor (Barber, 1997). Envolve uma mudança nas relações e
na representação que o adolescente tem de si e dos outros. Entre estes outros,
encontram‐se os pais, elementos‐chave na tarefa da conquista da autonomia (Fleming,
1993). Neste período de vida, o adolescente é confrontado com duas necessidades
paradoxais em relação aos pais: a separação e a dependência. A separação é inicialmente
psicológica, traduz‐se num sentimento de desilusão em relação aos pais: os pais não
escutam, não permitem o diálogo, não entendem. Os pais deixam, pois, de ser vistos
como os mais sábios e poderosos. Muitas vezes, perante esta desilusão, o jovem procura
modelos no seu grupo de pares ou em outros adultos. Assim, os pais deixam de ser a sua
única fonte primária de apoio e suporte. As preocupações, os aborrecimentos e as mais
variadas necessidades podem agora ser partilhadas ou preenchidas por outros
significativos, que não os pais. No entanto, a necessidade de dependência continua a
existir. Esta necessidade é, segundo Braconnier e Marcelli (2000), escondida pelos
adolescentes. A resistência a esta necessidade de dependência pode, segundo estes
autores, estar na origem de muitos dos conflitos da adolescência. Contudo, é importante
salientar que este desejo de separação, travado pela dependência, não implica uma perda
da ligação afectiva que os adolescentes têm com os seus pais. Fleming (1993) salienta que
uma ligação segura aos pais é condição fundamental para a autonomia.
Mas o que é ser autónomo para um adolescente? E como se conquista a
autonomia? Fleming realizou um estudo com jovens entre os 12 e os 19 anos que permite
dar resposta a estas questões. Ser autónomo, para o adolescente, é poder decidir e agir
de acordo com as suas ideias e opiniões numa série de aspectos relevantes na sua vida
como, por exemplo, saídas com amigos, fins‐de‐semana, férias, aparência pessoal,
organização do seu espaço pessoal (quarto), gestão do dinheiro, relações afectivas e
resolução de assuntos pessoais. A conquista desta autonomia está relacionada com as
percepções que os adolescentes têm das atitudes e do amor que os pais têm para
consigo. Quanto maior a percepção de que os pais encorajam a autonomia, maior será
esta capacidade. Também em relação ao amor se verifica que os adolescentes que sentem
que os pais têm amor para com eles são aqueles que manifestam maior capacidade de
autonomia. De acordo com as conclusões do trabalho, um ambiente familiar de
encorajamento contínuo da autonomia, de baixo ou moderado controlo parental
sobretudo na fase intermédia e final da adolescência, são condições fundamentais para a
autonomia comportamental dos adolescentes.
15
Mudanças Sociais
As mudanças a nível cognitivo e emocional influenciam a forma como os
adolescentes vêem o mundo social. Os adolescentes têm agora mais capacidades para
pensar sobre possibilidades, para auto‐análise das suas cognições e para perceber e
analisar diferentes perspectivas. Assim, conseguem avaliar e antecipar as possibilidades
de resposta e de comportamentos, são capazes de deduzir características pessoais,
motivações e sentimentos a partir de comportamentos, e reconhecer que existem
diferentes perspectivas sobre uma mesma situação (Sprinthall e Collins, 1999).
Apesar deste importante desenvolvimento em termos de capacidades cognitivas,
Elkind (1980) refere que no início da adolescência os jovens são frequentemente
egocêntricos. Este egocentrismo apresenta duas componentes: o público imaginário
(apesar do reconhecimento de diferentes perspectivas, os adolescentes têm a crença de
que são o centro das atenções e de que a sua perspectiva prevalece sobre as outras); e a
narrativa pessoal (a crença de que os seus sentimentos são únicos e que ninguém os pode
entender). Segundo o autor, a maturação a nível cognitivo e as interacções com os pares
permitirão ultrapassar este egocentrismo. E o grupo de pares assume realmente uma
posição de destaque na socialização dos adolescentes.
Um dos aspectos mais importantes ao nível do desenvolvimento social é a
mudança quantitativa e qualitativa ao nível dos contextos sociais significativos para o
adolescente. Com a aquisição de uma maior autonomia, o jovem passa menos tempo em
casa com os pais e dirige este tempo para estar com os pares. Os pares têm, durante a
adolescência um papel especialmente importante no desenvolvimento do jovem,
nomeadamente como um espaço onde é permitido experimentar novos papéis sociais,
um espaço de diálogo acerca dos seus problemas pessoais, escolares e profissionais, um
espaço de formação e partilha de opiniões acerca dos próprios indivíduos, dos outros
relevantes e do mundo social.
Adaptado de M. C. Simões, Comportamentos de Risco na Adolescência, 2007
16
Texto 3:
O Comportamento de Vinculação
A energia que o homem e a mulher dedicam à produção de
bens materiais aparece quantificada em todos os nossos índices
económicos. A energia que um homem e uma mulher dedicam à
produção, na sua própria casa, de filhos felizes, saudáveis e seguros
de si mesmos, não contam para nada. Criámos um mundo ao
contrário. J. Bowlby, 1988
Capítulo 1. Um modelo em dupla hélice do desenvolvimento psicológico: vincula‐
ção/separação ao longo do ciclo de vida
1. Introdução
Em 2003 celebraram‐se os 50 anos da publicação, na revista Nature, daquela que
pode ser considerada a mais marcante descoberta da biologia molecular do século XX: o
modelo em dupla hélice da molécula de ADN, elaborado por James Watson e Francis Crick
(1953). Para além do seu valor simbólico e heurístico, o modelo da dupla hélice permeou
a cultura popular e tornou‐se parte do imaginário do nosso tempo.
Não admira assim que a dupla hélice me tenha surgido como um modelo
inspirador do desenvolvimento psicológico do ser humano. A minha dupla hélice
apresenta o desenvolvimento humano como resultado da interacção dinâmica entre
hélices psicológicas, a do processo de vinculação e a do processo de separação‐
individuação. Esta perspectiva contraria a perspectiva mais clássica da Psicologia do
Desenvolvimento, que tenta integrar as numerosas, e por vezes contraditórias, teorias
contemporâneas sobre componentes cognitivas, morais ou sociais do desenvolvimento
humano.
Sugiro, portanto, uma nova orientação: investigar o desenvolvimento da
personalidade como dinâmica interactiva entre individuação e vinculação, processos que,
embora estando, como defendo, interligados, têm sido investigados em separado.
2. Revisitando a dupla hélice do ADN
A molécula de ADN pode ser descrita, metaforicamente, como uma escada em
espiral em que os seus dois longos corrimãos são sustentados por numerosos degraus. Os
corrimãos correspondem às duas longas cadeias em espiral de elementos repetitivos de
açúcares‐fosfatos: os degraus que unem transversalmente os corrimãos, são os compo‐
nentes «nobres» da molécula: cada degrau é um par de bases complementares e, no seu
17
conjunto, armazenam toda a informação genética da célula ou do indivíduo. Devido ao
facto de todos os degraus da escada terem o mesmo comprimento, os corrimãos man‐
têm‐se a uma distância constante ao longo de toda a cadeia da molécula de ADN. Esta
distância constante entre as duas hélices constitui uma clara diferença entre a molécula
de ADN e o modelo da dupla hélice para o desenvolvimento psicológico humano que pro‐
ponho, já que no meu modelo as hélices da vinculação e da separação‐individuação vão
variando de distância entre si ao longo da vida.
3. A dupla hélice psicológica: a hélice da vinculação e a hélice da separação
Tal como a molécula de ADN, a dupla hélice psicológica consiste numa espiral
feita de duas longas e sinuosas cadeias, tal como está ilustrado na figura da página
seguinte. A extensão desta dupla hélice corresponde à extensão total do ciclo de vida do
ser humano. Uma das hélices representa o grau de vinculação do sujeito a outro ser
humano; a outra hélice refere‐se ao grau de separação‐individuação do mesmo sujeito.
Estas duas vertentes do desenvolvimento psicológico vão sofrendo alterações durante as
diferentes idades do ser humano, ora se aproximando ora se afastando do eixo central da
dupla hélice.
4. Principais características da dupla hélice psicológica
O modelo rege‐se pelos seguintes postulados:
(i) O desenvolvimento psicológico humano progride de acordo com um padrão
ascensional em espiral de dupla hélice, organizando‐se de forma assimétrica em torno
de um eixo central já que, habitualmente, uma hélice predomina sobre a outra (em
contraste com os modelos bidireccionais compostos por duas linhas que caminham em
18
sentido contrário, como é o caso, por exemplo, do modelo de desenvolvimento
proposto por Erikson).
(ii) As hélices mantêm‐se activas ao longo do ciclo de vida e mudam a sua distância em
relação ao eixo central, em função de estímulos internos e externos que afectam o
psiquismo humano, no quadro do processo interactivo entre o ser e o meio que o
rodeia.
(iii) As duas hélices entram em interacção través de mecanismos de retroacção que
modulam a distância entre si e, naturalmente também, a distância que as separa do
eixo central da estrutura. Uma maior distância representa que nesta fase do ciclo de
vida uma das duas linhas de desenvolvimento predomina sobre a outra, significando
que as tarefas de desenvolvimento que lhe correspondem estão mais activas (por
exemplo, na primeira infância as tarefas de desenvolvimento que visam a vinculação
predominam sobre as que visam a separação‐individuação).
O objectivo principal do modelo é o de afirmar que ocorre uma interacção
dialéctica, ao longo de toda a vida, entre a vinculação e a separação‐individuação.
Contrariamente à visão tradicional que apresenta estes dois desenvolvimentos como
antagonistas, aqui o que se propõe é ma visão que consiste em afirmá‐los como duas
entidades que co‐evoluem interactivamente: o estabelecimento de vínculos entre pais e
filhos potencia a separação‐individuação, esta, por sua vez, estimula o sistema vinculativo
e o indivíduo pode permitir‐se o afastamento e a separação porque se sente ligado aos
pais por vínculos seguros.
5. Premissas da «dupla hélice psicológica»
Vinculação (V) Separação-Individuação (SI)
19
O modelo assenta nas seguintes premissas:
1) O desenvolvimento psicológico humano ocorre/decorre na tensão dialéctica entre o
processo de vinculação e o processo de separação‐individuação, concebido como duas
hélices que evoluem em torno de um eixo, que representa a evolução psicológica,
aproximando‐se mais ou menos deste eixo consoante predominam os processos de
vinculação ou de separação, no quadro das sucessivas matrizes familiares.
2) Estes dois processos ocorrem em simultâneo, estão presentes desde o período pré‐
natal, mantêm‐se activos e permanecem como motores de desenvolvimento ao longo
e todo o ciclo vital.
3) A vinculação responde à necessidade primária de criar ligações afectivas, de apegar‐se a
outros seres humanos, como meio de assegurar segurança e protecção.
4) A individuação responde à necessidade primária de criar a sua própria individualidade,
a sua própria identidade, à necessidade de não se fundir/confundir com o Outro a
quem se está vinculado
5) Estes dois processos, articulados entre si, vão conhecendo configurações diferentes, em
função das tarefas de desenvolvimento específicas de cada etapa de desenvolvimento
ao longo do ciclo de vida do ser humano (se, por exemplo, no período perinatal é a
vinculação que predomina, na adolescência é, ao contrário, a individuação que
desempenha o papel mais forte.
6. O início da dupla hélice: da infância precoce à infância propriamente dita
Do mesmo modo que nos primatas, a vinculação entre os progenitores e as suas
crias tem uma função fundamental de sobrevivência, assegurando a protecção das crias
face aos seus predadores, a vinculação nos seres humanos cria a base para os sentimentos
de protecção e de segurança da criança. A vinculação tem ainda a função fundamental de
assegurar as ligações trangeracionais, ligando afectivamente as famílias de ascendência
com as famílias de descendência ao longo de todo o ciclo vital.
De igual forma, se na família humana os pais asseguram a função de vinculação,
eles também são responsáveis pelo incentivo da função de separação‐individuação. No
contexto emocional das interacções precoces com o bebé e através da parentalidade
intuitiva e a intencionalidade educativa, os pais estimulam a emergência de processos de
simbolização (acesso ao diálogo, ao símbolo e à linguagem) permitindo que a criança
inicie os comportamentos exploratórios e a sua progressiva integração no meio físico e
sociocultural que a rodeia.
7. A vinculação predomina no recém‐nascido
20
A vinculação inicia‐se ainda durante o período de gestação, quando a mãe cria o
primeiro vínculo ao seu bebé imaginário ainda antes do vínculo ao bebé real, após o nas‐
cimento deste. Bowlby (1951) sugere a existência, no bebé, de sistemas comportamentais
inatos prestes a serem accionados imediatamente após o nascimento. Estes sistemas
(compostos pelos comportamentos de mama, agarrar, seguir, chorar, sorrir) visam estabe‐
lecer o apego a figuras específicas que se mostrem mais próximas e permanentes e que
asseguram a sobrevivência do bebé, o que habitualmente é desempenhado pela mãe bio‐
lógica.
É a existência de um sistema de comportamentos inatos, prestes a serem
accionados logo após o nascimento, que permite ao bebé vincular‐se a figuras de
protecção. Mas é também a existência de capacidades perceptivas muito precoces de
reconhecimento e de diferenciação do Outro que permite ao bebé iniciar um processo
que visa a sua individuação.
As observações de Brazelton e colaboradores (1979; 1991, 1994) revelaram o
papel que, desde o seu nascimento, o bebé assume no estabelecimento de relações com
o objecto materno, mostrando competências muito precoces de discriminação e de
diferenciação em relação ao que o rodeia. Imediatamente após o nascimento, o bebé em
estado de «alerta» é capaz de atenção focal e de diferenciar entre imagens, vozes e sons.
Destaco os estudos de Brazelton que evidenciam a capacidade do bebé para
estimular comportamentos maternos de resposta: se, por acaso, ela não responde, o bebé
prossegue no seu esforço para captar a sua atenção, só vindo a desinteressar‐se após
tentativas muito activas e continuadas. De acordo com este autor «o bebé nasce com
meios excelentes para dar a conhecer as suas necessidades e também para agradecer aos
que o cercam. De facto, pode até escolher o que espera dos seus pais (1981: 387).
A capacidade precoce de criar vínculos e a capacidade de diferenciar, são funções
básicas na evolução e estruturação normal do psiquismo humano, fundamentais para o
seu desenvolvimento emocional e cognitivo. É da qualidade e quantidade das experiências
relacionais com as figuras cuidadoras, propiciadoras de sentimentos de satisfação versus
frustração, que se vão constituindo os ingredientes básicos para que o desenvolvimento
se processe de forma mais ou menos harmoniosa.
Se o sistema vinculativo se mostra apto a responder às necessidades do bebé, e
se a vinculação entre a mãe e o bebé é propiciadora de prazer para ambos, o bebé
adquire confiança no seu cuidador, e cria objectos internos confiáveis, suportes mentais
para a sustentação do sentimento interno de segurança e de autoconfiança. Isto mesmo
também foi posto em evidência por Mahler (1968,1975): se os pais respondem com
sensibilidade às necessidades do bebé e providenciam um meio seguro à criança, ela
progride na sua capacidade de explorar o seu meio ambiente de modo cada vez mais
21
complexo e a maior distância, sabendo que ela pode sempre regressar para perto dos
pais.
Um padrão organizado de vinculação propicia à criança um continuado sentimen‐
to interno de segurança. Ele vai‐se estabelecendo ao longo do primeiro ano de vida e é
este sentimento que permite ao bebé tolerar a ausência temporária da mãe, porque ele
acredita que ela vai voltar (Ainsworth, 1978). Se, pelo contrário, a qualidade das interac‐
ções precoces não é de boa qualidade, no sentido que Bowlby lhe dá (1988), a ansiedade
que se gera pode atingir níveis dificilmente tolerados pelo bebé e, neste caso, podem
ocorrer fenómenos que perturbam o seu desenvolvimento psíquico.
As funções maternas de contenção – capacidade de conter/integrar
mentalmente as experiências emocionais do filho – e de rêverie – capacidade de
transformar as experiências emocionais em representações e atribuir‐lhes significado –
foram descritas por Bion (1962). Vários outros estudos concluíram que a capacidade
materna de contenção dos estados mentais do bebé aumenta a confiança deste na
capacidade materna de o cuidar com afecto, de tal forma que o bebé sente que pode
recorrer a ela nos estados de sofrimento e de grande excitação. A expectativa de ser
consolado e confortado fortalece o vínculo emocional da criança com a pessoa que cuida
dela.
8. A interacção dinâmica entre vinculação e separação inicia‐se na primeira infância
É o sentimento de segurança e de confiança no Outro que estimula a criança a
ter comportamentos de exploração do meio que a cerca, a afastar‐se das figuras de
vinculação e a iniciar o processo de separação‐individuação. É também este sentimento
que alicerça a auto‐estima e a autoconfiança da criança, criando condições para a
separação física dos pais, constituídos agora como «pais internos» que não desaparecem,
mesmo quando estão fisicamente ausentes.
Deste modo, os processos de vinculação e de separação‐individuação potenciam‐
se mutuamente e a espiral do desenvolvimento progride. De acordo com este modelo, o
estabelecimento de ligações afectivas constitui a primeira e fundamental base para a
separação‐individuação e esta, por sua vez, estimula o sistema vinculativo. Neste
contexto, a criança pode permitir‐se o afastamento dos cuidadores porque se sente ligada
a elas por vínculos seguros.
Diferentes trabalhos de investigação realizados as últimas décadas mostram a
relação entre a qualidade dos vínculos estabelecidos e o desenvolvimento de capacidades
cognitivas infantis. Se o vínculo for seguro, a criança está em melhores condições de men‐
talizar. Target & Fonaggy (1996) afirmam que «as crianças cuja necessidade de apego é
completamente atendida parecem sentir‐se livres para explorar a mente das pessoas que
22
cuidam delas e estão numa situação duplamente vantajosa para o seu desenvolvimento. À
sensitividade materna, mediador‐chave da interacção precoce mãe‐bebé estes autores
juntam um outro mediador, a função reflexiva: a capacidade dos pais espelharem as suas
próprias mentes e as mentes dos seus filhos. Uma função altamente reflexiva protege os
filhos contra uma vinculação insegura. Isto significa que o desenvolvimento emocional e o
desenvolvimento cognitivo progridem em simultâneo.
9. A separação‐individuação acentua‐se a partir do primeiro ano de vida
A aquisição da consciência de si como um ser separado traz grandes benefícios
para a autonomia da criança, que assim pode expandir as suas ligações a outras figuras do
seu meio familiar e extra‐familiar. Durante a fase de ensaios – dos 9 aos 16 meses
aproximadamente – a criança, devido à sua maior mobilidade, deseja conquistar o mundo
físico à sua volta. A consciência de se saber um ser separado é simultaneamente dolorosa
e necessária à criança como condição indispensável para a saída da concha fusional
familiar. O reconhecimento da sua imagem na fase do espelho (Lacan) e a capacidade do
«não» (Spitz) são alguns dos indicadores e organizadores psicológicos da progressiva
diferenciação do Eu. Eles constituem a base a partir da qual a criança evolui para níveis
mais complexos de construção da individualidade e de uma rede cada vez mais alargada
de ligações afectivas, dentro e fora do espaço de convivialidade familiar.
Na fase seguinte do processo de separação‐individuação, designada por fase de
reaproximação, entre os 16 e os 24 meses de idade, o movimento em direcção à
individuação conhece um notável incremento, inicialmente num registo de ambivalência,
uma vez que a criança alterna entre o desejo de desvinculação e o desejo de aproximação
às figuras de vinculação. Mais tarde, a ambivalência diminui e o desejo de individuação
estimula a criança a tornar‐se cada vez mais autónoma. Pelo terceiro ano de vida, a
criança progride para novos estádios como resultado de uma vinculação segura aos seus
objectos de amor, os cuidadores primários, em combinação com a «autonomia, a individuação,
a constância e coesão do Eu».
As mudanças psíquicas estruturais preparam a criança para a resolução de
questões relacionadas com o complexo de Édipo e para o desenvolvimento cognitivo,
nomeadamente para o desenvolvimento de competências interpessoais (Selman, 1981): a
capacidade de perceber que o Outro tem sentimentos e pensamentos separados e
diferentes dos que lhe são próprios. A capacidade da criança reconhecer o Outro como
alguém que é psicologicamente diferente de si permite um avanço significativo na
individuação e, em consequência, a hélice separação‐individuação torna‐se
predominante.
23
Simultaneamente, estas novas competências estimulam o progresso na hélice de
vinculação: a criança relaciona‐se cada vez mais com o meio social e adquire novas
capacidades para a cooperação, o desempenho de papéis e para um novo tipo de relações
emocionais.
10. Entre a infância e a adolescência: o período de latência
Apesar do alargamento dos laços e das relações sociais (aos amigos e pares de
idade, no infantário, na escola e noutros contextos sociais) e apesar do desejo de
conquistar cada vez mais autonomia face ao controlo dos pais, o desejo de viver no
espaço familiar, a necessidade de protecção e a adesão aos valores e estilos de vida da
família não são postos em causa pela criança no período de latência dos 6 aos 10 anos
aproximadamente). A tensão entre as hélices de vinculação e de separação‐individuação
atenua‐se e a distância de cada uma ao eixo central é equivalente.
A família é então o contexto de vida mais importante e a dependência é
valorizada positivamente. A espiral do desenvolvimento progride para novas tarefas à
medida que a tensão gerada entre as duas hélices é superada e se avança em
competências sociais e relacionais. Às grandes mudanças da primeira e segunda infância
segue‐se um período de acalmia no plano pulsional/afectivo e no plano das relações
familiares.
Um acontecimento biológico, a puberdade, irá perturbar esta fase do
desenvolvimento psicológico. Durante a puberdade, o calendário genético impõe a
maturação genital e esta irá introduzir novos e significativos dados no equilíbrio
psicológico da criança e no equilíbrio familiar. A emergência de novas competências de
empatia, mutualidade e de preocupação com o Outro preparam a criança para o
desenvolvimento de dimensões mais complexas da hélice da separação‐individuação o
que, por sua vez, potencia novas experiências no plano da vinculação.
11. A separação‐individuação predomina na adolescência
A partir da puberdade, a hélice da separação‐individuação vai ser predominante
e puxar inevitavelmente para a consolidação de níveis mais complexos e radicais de
autonomia. Os vínculos aos pais perdem a sua força tão atractiva, e a protecção e o
controlo parental, aceites pacificamente até aí, são questionados e tornam‐se fonte de
conflitualidade entre pais e filhos, particularmente durante o segundo processo de
individuação do adolescente.
O valor da dependência e da vinculação aos pais é questionado e o valor da
autonomia de comportamentos e de atitudes começa a impor‐se. O adolescente
manifesta novos desejos e inicia comportamentos até aí não realizados. A entrada na
24
adolescência, como acontecerá com a saída e entrada na idade adulta, são períodos de
transição que desafiam o sistema familiar para a mudança.
A evolução das capacidades cognitivas para um novo estádio, o das operações
formais, caracterizado pelo pensamento formal, introduz a capacidade de pensar em abs‐
tracto, de modo complexo e flexível e de um raciocínio social‐cognitivo. O adolescente
passa a ser capaz de «pensar em perspectiva» e de reconhecer o carácter de mutualidade
das relações com os pais.
O adolescente sente‐se atravessado por forças que o puxam em sentido
contrário: por um lado o desejo de ficar no espaço de protecção da família e manter a sua
vinculação aos pais e por outro o desejo de partir, de aumentar os comportamentos
exploratórios fora da esfera e do controlo parental.
Os resultados da minha própria investigação nesta área mostraram
repetidamente que o desejo de autonomia se manifesta desde o período peripuberal e
que os comportamentos autónomos aumentam de forma contínua ao longo da idade,
sendo uma das fontes de conflitualidade entre pais e filhos (Fleming, 2005). A capacidade
de desobedecer e de se comportar de acordo com as escolhas e valores pessoais, num
processo que implica a desidealização das figuras parentais, vai‐se impondo
progressivamente à medida que o período adolescente avança.
Apesar da notável variabilidade do comportamento adolescente, posta em
evidência nomeadamente nos estudos pioneiros de Margaret Mead, teóricos e
investigadores estão de acordo em afirmar que a principal tarefa de desenvolvimento na
adolescência é a autonomia, intrinsecamente ligada ao processo de separação‐
individuação. A separação intrapsíquica e relacional (entre pais e adolescentes) organiza
todas as outras mudanças de desenvolvimento: a remodelação interna da ligação aos pais,
a consolidação da autonomia e da identidade. O adolescente e os pais têm de se ajustar
mutuamente e encontrar novos papéis, novas hierarquias na regulação do poder parental.
As relações familiares evoluem da dependência para uma maior mutualidade e
reciprocidade.
12. A transição para a idade adulta: replicações
A transição para a idade de jovem adulto coloca ao ser humano novos desafios e
obriga‐o a empenhar‐se em novas tarefas de desenvolvimento. Se na fase anterior era o
ganho em autonomia o mais importante, agora é a capacidade para a intimidade a
principal tarefa de desenvolvimento (Erikson, 1968). O jovem adulto «está pronto para a
intimidade, ou seja, para se comprometer com afiliações e relações específicas».
A hélice da vinculação replica‐se, ou seja, enquanto as vinculações primárias se
mantêm, novas vinculações têm lugar. A capacidade de se envolver em relações de inti‐
25
midade vai trazer a capacidade para o casamento. O ser humano é agora um ser capaz de
gerar (a principal tarefa de desenvolvimento do estado adulto, de acordo com Erikson,
1963) não só os seus filhos, mas também ideias e uma grande variedade de realizações. A
hélice da vinculação desdobra‐se e dá lugar à hélice das novas vinculações trazidas pela
constituição de laços familiares complexos aos pais e também aos filhos, numa rede de
afiliações transgeracional.
A investigação nesta área tem repetidamente mostrado que os jovens adultos
depois da sua saída de casa apresentam níveis mais elevados de separação‐individuação,
como seria de esperar, mas também e, mais surpreendentemente, evidenciam vínculos
mais fortes aos pais. Quando se tornam pais, mostram uma maior proximidade afectiva
entre eles próprios e os seus pais. A vinculação, tal como dissemos atrás, assegura agora
as ligações transgeracionais, vinculando as famílias de ascendência com as famílias de
descendência.
A investigação empírica tem demonstrado que também que os jovens adultos
que melhor progridem em termos de desenvolvimento psíquico (medido pelo seu bem‐
estar, adaptação a novas situações, níveis mais bem integrados no plano da identidade,
maior capacidade de estabelecer relações de intimidade e tendo mais sucesso após a sua
saída da família de origem) são também aqueles que apresentam um maior grau de
separação‐individuação (medido pela capacidade de controlo pessoal, autonomia e
sentido de responsabilidade), em simultâneo com um maior grau de vinculação, expresso
pela capacidade de ligação afectiva e pela proximidade aos pais.
A interacção entre vinculação e separação‐individuação encontrada ao longo da
infância e adolescência continua na idade adulta: mais uma vez se constata que uma
vinculação segura favorece a separação‐individuação, separadas mas em interconexão,
ascendem na espiral de dupla hélice do desenvolvimento humano.
13. Da maturidade à velhice
Com a entrada na última fase do ciclo de vida, a hélice da vinculação volta a ser
predominante e a comandar o desenvolvimento nesta fase. A perda de capacidades
associadas ao envelhecimento transforma o ser humano num ser cada vez mais
dependente, o que reactiva os comportamentos de vínculo, sob um registo ansioso.
A tensão entre as duas hélices que, no decurso do ciclo de vida humana,
funcionou como motor de desenvolvimento psicológico, decai na velhice: as duas hélices
aproximam‐se e a hélice da vinculação volta a ser predominante como acontecia no início
da vida.
A morte representa uma ruptura, lembrando a ruptura física da molécula de ADN
quando ocorre a morte celular programada, a apoptose, mas os laços afectivos persistirão
26
como marca e como recordação nos descendentes ao longo dos anos, revelando,
portanto, que o poder da vinculação humana continua para além da morte.
Adaptado de Fleming, M., Entre o Medo e o Desejo de Crescer, 2005
A Vinculação
O conceito de vinculação surge na segunda metade do século XX, a partir da
constatação dos efeitos das separações e carências afectivas resultantes da experiência da
Segunda Guerra Mundial. A institucionalização de crianças pequenas, separadas dos pais e
em condições precárias, ou a hospitalização, por períodos prolongados, foram outros
aspectos que sugeriram um conjunto de estudos com conclusões surpreendentes. Outro
aspecto ainda que suscitou a atenção para este conceito foi a progressiva saída das
mulheres para o mundo do trabalho e a necessidade de criação de instituições que
prestassem cuidados às crianças.
Com o aumento, há bem poucas décadas atrás, do número de mulheres a
trabalhar fora de casa, a questão dos cuidados às crianças teria que ser posta, mais que
não fosse por aqueles que consideravam estes comportamentos desadequados e que a
função feminina se deveria restringir aos cuidados com a família. Também a difusão da
informação relativamente aos estudos da psicologia sobre os comportamentos maternais,
desde o aleitamento até à relação de vinculação, muitas vezes mal interpretada e
apresentada nos meios de comunicação social de modo superficial e distorcida, veio
acender o debate e criar em muitas mulheres sentimentos de culpa perturbadores.
Não é por acaso que o tempo legislado de permanência da mãe com o seu bebé,
após o parto, tem vindo a aumentar. A questão da colocação da criança numa creche
prende‐se com a acumulação de factores de risco que as instituições podem apresentar,
como, por exemplo, mudanças constantes de pessoal, remunerações instáveis e precárias,
condições deficientes. Mas também com a acumulação de factores de risco que as
famílias podem apresentar como vulnerabilidade social e económica, pais cansados e com
pouca disponibilidade para cuidar adequadamente as crianças. Vários estudos têm
mostrado que os factores familiares são mais importantes para o desenvolvimento
saudável da relação de vinculação do que os factores da instituição de guarda.
A questão fundamental que ressalta de todo o debate é que as crianças
necessitam de estabelecer ligações seguras a adultos do seu meio ambiente. Se «os pais
estão satisfeitos consigo mesmos e com as suas decisões, e se o bebé tem uma ama ou
auxiliar da creche que se liga a ele e lhe incute um sentimento de insegurança, então a
criança pode de facto desenvolver uma vinculação segura com a ama ou a auxiliar,
construindo assim vínculos sólidos com os pais (…). Em todo o caso é preciso não confiar
27
em pontos de vista baseados em generalizações abusivas, que não têm qualquer validade
científica, ou posições puramente ideológicas e “politicamente correctas”» [Karen, 1994, cit.
por Guegeney e Guedeney, 2002: 82‐83].
Os estudos de Bowlby
As primeiras fases da vida são decisivas para o desenvolvimento de uma criança.
As relações que estabelece com o mundo que a rodeia, designadamente através dos pais,
asseguram‐lhe as condições para a sua sobrevivência e desenvolvimento, por exemplo, o
alimento, o abrigo, o conforto e a segurança. O psiquiatra britânico John Bowlby
desenvolveu uma teoria a partir de uma hipótese: a relação privilegiada que o bebé
estabelece com a mãe é decisiva para o seu desenvolvimento físico e psicológico. Bowlby
designa por vinculação os laços que se vão construindo entre a mãe e o bebé. A
vinculação é a necessidade de criar e manter relações de proximidade e afectividade com
os outros, de o bebé se apegar a outros seres humanos para assegurar protecção e
segurança.
Esta relação, que se manifesta pela necessidade de contacto físico e de
proximidade, seria, tal como a fome e a sede, uma necessidade básica ou primária.
Segundo a teoria de Bowlby, para assegurar estas relações existem esquemas
comportamentais inatos que se manifestam logo após o nascimento e que permitem
estabelecer laços com as pessoas mais próximas, geralmente com a mãe biológica. Assim,
chorar, sorrir, mamar, agarrar, seguir com o olhar constituem os comportamentos que o
bebé adopta para manter a relação privilegiada com as figuras de vinculação, de
protecção.
Bowlby explica a relação de vinculação através da Teoria dos Sistemas de
Controle. Ele começou por trabalhar sobre a problemática das perturbações apresentadas
pelos lactentes separados da mãe, e só mais tarde se tornou um teórico da vinculação. O
seu trabalho apresenta uma síntese entre a psicanálise, no que se refere à perda da liga‐
ção maternal, e a etologia, no que se refere ao imprinting. O fenómeno de imprinting
demonstra que em algumas espécies podem desenvolver‐se e persistir laços entre
indivíduos sem que haja necessariamente satisfação das necessidades fisiológicas
primárias.
Durante muito tempo pensou‐se que os animais nasciam com instintos, respos‐
tas comportamentais prontas a utilizar, enquanto que os seres humanos tinham de
aprender tudo. Hoje, compreendemos que esta oposição radical entre o instinto e a
aprendizagem, entre o animal e o homem, era falsa. Tanto para um como para outro, a
aprendizagem, mais ou menos longa, é quase sempre necessária. Tanto para um como
para outro, existem sistemas de reacção inatos, mais ou menos numerosos, e pensa‐se
28
que, tanto para um como para outro, a activação destes sistemas se realiza em certos
períodos. O essencial é a existência destes sistemas, a identificação da vinculação como
um destes sistemas, e o facto deste sistema descoberto no animal existir nos seres huma‐
nos.
Para Bowlby, há cinco comportamentos, padrões fixos de acção, que estão ao
serviço da vinculação. São eles o chupar, agarrar, seguir, chorar e sorrir. No início, estes
comportamentos são relativamente independentes uns dos outros, mas no decurso do
primeiro ano de vida integram‐se num comportamento, cuja função é a de ligar a criança
à mãe e contribuem para a dinâmica recíproca desta relação. Enquanto que em relação ao
chupar, agarrar e seguir, o bebé é o principal elemento activo, o choro e o sorriso servem
para activar o comportamento maternal, actuando como desencadeadores sociais de
respostas das mães.
Bowlby frisa que um dos pontos principais da sua tese é que cada uma das cinco
respostas que sustentam a ligação à mãe está presente devido ao seu valor de sobre‐
vivência. Afirma ele que a não ser que haja poderosas respostas inatas que assegurem
que a criança desperta a atenção maternal e permanece numa proximidade íntima da
mãe, durante os anos da infância, a criança morrerá. Desta forma, no decurso da nossa
evolução, o processo de selecção natural levou a que o choro e o sorriso, o chupar, o
agarrar e o seguir se tornassem respostas específicas da espécie humana.
Bowlby afirma que todas as respostas instintivas parecem atingir um máximo e
depois decrescem. «Conforme os anos passam, primeiro a sucção, depois o choro e
depois o agarrar e o seguir, todas diminuem. Até o sorridente bebé de dois anos se
transforma na criança de escola mais solene. São um quinteto que compreende um
repertório bem adaptado à infância, mas que, tendo cumprido a sua função, é relegado
para um lugar secundário. Não obstante, nenhuma delas desaparece. Todas permanecem
em diferentes graus de actividade ou latência e são utilizadas em novas combinações
quando o repertório adulto amadurece. Além disso, algumas, em particular chorar e
agarrar, voltam a um estado anterior de actividade, em situações de perigo, doença ou
incapacidade. Nestes papéis, desempenham uma função natural e saudável que não é
necessariamente regressiva.
Dois conceitos são ainda importantes para entender a perspectiva de Bowlby.
São eles o de ambiente de adaptabilidade evolutiva e o de proximidade. O conceito de
ambiente de adaptabilidade evolucionista sugere que o comportamento de vinculação é
um comportamento adaptativo necessário à sobrevivência, inscrito biologicamente e
resultado do processo evolutivo da espécie humana. Dado a vulnerabilidade,
inacabamento ou aquilo que se costuma chamar imaturidade do bebé humano, os adultos
que o rodeiam são fundamentais não só para o protegerem dos perigos do meio, numa
29
perspectiva evolutiva, como também para garantirem o desenvolvimento das estruturas
psíquicas necessárias ao processo de se tornar humano.
O conceito de proximidade implica uma noção espacial relacionada com a dis‐
tância física necessária entre o bebé e a figura parental que permite, no comportamento
de vinculação, responder às necessidades da criança, proporcionando‐lhe um sentimento
de segurança.
Alguns estudos marcantes sobre a necessidade de vinculação
Todos estamos de acordo que, durante o primeiro ano de vida, a criança des‐
envolve uma forte relação com a figura maternal. O interessante é perceber por que razão
é que isto se passa assim.
Inicialmente a criança era considerada como um ser que passava dum estado pu‐
ramente biológico ao estado de ser social por aprendizagem. Segundo alguns
investigadores, os bebés só encontrariam prazer na companhia do adulto em virtude de
associarem o adulto à satisfação de necessidades fisiológicas. A criança teria necessidades
fisiológicas que deveriam ser satisfeitas como, por exemplo, a fome, a sede, o alívio da dor
e o calor, mas não eram referidas necessidades sociais. A criança, ao longo do tempo,
aprenderia que a mãe é fonte de gratificação, e esta serviria de reforço à manutenção da
relação. As necessidades fisiológicas seriam primárias. O afecto seria secundário. Nesta
perspectiva, a dependência social derivaria da dependência física e seriam as
necessidades fisiológicas que produziriam a necessidade emocional do outro.
Também os teóricos da psicanálise eram unânimes em reconhecer as primeiras
relações objectais da criança como pedra fundamental do seu desenvolvimento. No
entanto, não há concordância quanto à natureza e dinâmica destas relações. Uma das
ideias mais generalizadas era a de que os bebés têm necessidades inatas de se
relacionarem com o seio humano, de o chupar e de o possuir oralmente. A seu tempo, o
bebé aprenderia que ligada ao peito há uma mãe, e desta forma relacionar‐se‐ia também
com ela. Da mesma forma que para os autores anteriores, os autores desta perspectiva
olham para a relação com a mãe como um benefício secundário da satisfação das
necessidades de alimento.
Investigações realizadas na área da Etologia vêm contrariar esta ideia. Estes
estudos partiram da hipótese de que nas espécies não‐humanas há muitas respostas
inatas que são independentes de necessidades fisiológicas e cuja função é promover a
interacção social entre os membros dessa espécie. Esta interacção social tem por função
assegurar a cooperação entre os congéneres.
Por exemplo, algumas aves, como os patos, os perus e os gansos, cujas ninhadas
não são alimentadas pelos pais, começam a debicar um dia depois de nascerem. E curio‐
30
samente seguem qualquer coisa que se mova no seu ambiente. É conhecida a imagem de
Lorenz, etólogo austríaco que foi prémio Nobel, com uma ninhada de patinhos atrás. Este
comportamento a que Lorenz chamou imprinting [impregnação ou cunhagem], não deri‐
va da satisfação das necessidades fisiológicas mas da necessidade inata de um vínculo
social.
Lorenz criou alguns ovos de ganso numa incubadora deixando outros ao cuidado
da mãe. Os gansos, cujos ovos tinham sido incubados artificialmente, não demonstravam
qualquer medo de serem pegados e seguiam qualquer pessoa que passasse por eles, pian‐
do dolorosamente quando eram deixados para trás. Quando, posteriormente, colocou es‐
ses gansos junto da ninhada criada com a mãe natural, verificou que esta os incluía, sem
qualquer problema, na prole, defendendo‐os logo que via a mão do homem aproximar‐se.
Pelo contrário, os gansos bebés do primeiro grupo, não apresentavam predisposição para
seguir os adultos da sua espécie, piavam, fugiam e seguiam o primeiro ser humano que
por acaso passasse. Os filhotes criados na incubadora por Lorenz iam atrás de dele, procu‐
rando‐o quando assustados. Os outros filhotes seguiam a mãe e formavam um vínculo
com ela.
1. As investigações de Harlow
Nos finais da década de 50, Harry Harlow desenvolveu um conjunto de estudos
com macacos Rhesus que mostraram os efeitos da ausência da mãe junto das jovens crias
desenvolveu com a sua equipa várias experiências que passamos a descrever.
Construiu duas mães artificiais substitutas, ambas de forma cilíndrica: uma de
arame soldado, a outra de arame revestido de tecido felpudo. As duas mães artificiais
forneciam alimento através de um biberão situado no «peito» das duas mães. Os oito
macaquinhos recém‐nascidos, separados das suas mães, acediam a qualquer uma das
mães artificiais. Do ponto de vista estritamente fisiológico, as duas mães cumpriam o seu
papel de alimentadoras: os macacos bebés, alimentados por uma ou por outra,
desenvolveram‐se fisicamente ao mesmo ritmo. Contudo, Harlow constatou que as crias
passavam a maior parte do tempo agarradas à mãe de peluche. Era junto dela que
procuravam abrigo face a uma situação de perigo.
Mesmo quando só estava presente a mãe de arame,
os macaquinhos não procuravam a sua protecção
numa situação ameaçadora. Numa outra variante,
em que só a mãe de arame fornecia alimento, as
crias mantinham-se agarradas à mãe de peluche
recorrendo à de arame só para se alimentar.
31
Em estudos posteriores, Harlow procurou
avaliar o efeito dos bebés macacos criados sem qualquer contacto. Isolou‐os em jaulas de
ferro vazias sem verem outro ser vivo durante três meses a um ano. quando os períodos
eram longos, os animais encostavam‐se ao fundo do compartimento, balançavam para a
frente e para trás e abraçavam‐se a si próprios e mordiam‐se. Quando juntos a outros
macacos criados com as suas mães, não participavam nas brincadeiras fugindo de
qualquer contacto. Quando adultos, o seu comportamento sexual estava bastante
afectado bem como a sua capacidade para tratar das cias. As mães não manifestavam
qualquer interesse ou capacidade para tratar dos seus filhos, chegando a provocar‐lhes
maus tratos.
Com estas experiências, Harlow concluiu que o vínculo entre a cria e a mãe
estaria mais relacionado com o contacto corporal e o conforto daí decorrente do que com
a alimentação. Esta necessidade básica de contacto/conforto é também reconhecida elo
investigador nos bebés humanos, que manifestam a necessidade de estar junto da mãe,
ou de outro cuidador, em contacto físico. A origem da vinculação encontrar‐se‐ia nesta
necessidade e não na alimentação. Concluiu ainda que são devastadores os efeitos da
ausência da mãe ou dos agentes maternantes: a privação desse contacto humano
traduzir‐se‐ia em perturbações físicas e psicológicas profundas.
2. As investigações de Spitz
René Spitz, psiquiatra infantil de origem austríaca, com formação psicanalítica,
desenvolveu um conjunto de estudos em crianças que, durante os 12 primeiros anos de
vida, permaneceram durante um período prolongado numa instituição hospitalar ou num
orfanato, privadas da presença da mãe. Estudou as consequências e concluiu que os
bebés apresentavam perturbações somáticas e psíquicas como resultado da ausência
completa da mãe numa instiuição em que os cuidados são administrados de forma
anónima, sem que se estabeleçam laços afectivos. Do ponto de vista do cuidado físico,
estavam asseguradas as condições fundamentais de higiene e de alimentação; do ponto
de vista afectivo, constatou uma carência afectiva total, porque cada adulto tinha à sua
guarda várias crianças.
32
Spitz designou por hospitalismo o conjunto de perturbações ividas por crianças
insitucionalizadas e privadas de cuidados maternos: atraso no desenvolvimento corporal,
dificulades nas competências manuais e na adaptação ao meio ambiente, atraso na
linguagem. Constatou, ainda, uma menor resistência às doenças e que, nos casos mais
graves, pode ocorrer apatia. Os efeitos do hospitalismo são duradouros e, muitas vezes,
irreversíveis.
Com as suas investigações, Spitz confirmou a necessidade de laços e de contactos
afectivos entre o bebé e o adulto, especialmente entre a mãe e o filho. A sua ausência
pode conduzir a perturbações emocionais, comportamentais e desenvolvimentais graves.
Recentemente, as suas conclusões foram confirmadas por estudos desenvolvidos nas
crianças encontradas em orfanatos, sobrelotados, em 1989 na Roménia.
A ausência de uma relação privilegiada com a mãe ou com um agente
maternante (um adulto que a substitua), tem como consequência a recusa em se
alimentar, a perturbação do sono, a manifestação de comportamentos ansiosos. O
sentimento de abandono e a ausência de uma figura securizante compromete o equilíbrio
das crianças.
Estas conclusões levaram a Organização Mundial de Saúde, em 1950, a incluir nas
suas orientações um documento, Cuidados maternos e saúde mental, on de afirma: «(…)
fica claramente demonstrado que os cuidados maternos no decurso da primeira infância
desempenham um papel essencial no desenvolvimento harmonioso da saúde mental».
3. As investigações de Ainsworth
Mary Ainsworth, psicóloga canadiana que trabalhou com Bowlby e que
desenvolveu uma teoria da vinculação estudando no Uganda o efeito da separação em 28
bebés, durante três anos. Apresenta então o que considera serem as etapas do processo
de vinculação: a um primeiro estádio de orientação, segue‐se um estádio de focalização
que conduz, cerca dos 7/8 meses, à vinculação propriamente dita.
Se a relação com os pais gera segurança, na medida em que o bebé está certo
que a relação se mentém para além da separação, a criança sente‐se mais livre para
decsobrir o mundo e para estabelecer outras relações. Mary Ainsworth descreve o
funcionamento desta base de segurança dada pelos pais a partir das experiências que
desenvolveu. Ao voltar aos EUA, aprofundou a sua investigação recorredo a um
procedimento experimental que ficou conhecido como Situação Estranha. Em síntese, a
investigadora regista o efeito da separação e do reencontro dos bebés entre os 12 e os 24
meses com a sua mãe:
• a criança está com a mãe numa sala;
33
• uma pessoa estranha entra e junta‐se a eles;
• a mãe abandona a ala deixando a criança com a pessoa estranha;
• a pessoa estranha abandona a sala deixando a criança sozinha;
• a pessoa estranha egressa para junto da criança;
• a mãe regressa para junto da criança.
Na perspectiva de Ainsworth, a forma como o bebé reagia, quer à ausência da mãe,
quer ao seu regresso, reflectiria o seu equilíbrio emocional, que relacionava com os
cuidados que recebera.
A partir das suas observações, distingue três categorias de vinculação: a vinculação
segura, a vinculação evitante e a vinculação ambvalente/resistente.
No primeiro tipo, as crianças choram e protestam com a ausência da mãe, mas
procuram o contacto físico logo que ela entra na sala, ficando camas. As crianças com uma
vinculação evitante parecem indiferentes à separação da mãe e ao seu regresso. Os bebés
com uma vinculação ambivalente/resistente manifestam ansiedade mesmo antes da mãe
sair e perturbação quando abandona a sala, hesitando entre a aproximação e o
afastamento dela quando esta regressa. A vinculação segura seria o tipo de vinculação
com o carácter mais adaptativo.
Estes estudos mostraram a importância das primeiras vinculações e que a sua
qualidade influencia as relações que a criança vai estabelecer no futuro, designadamente
com colegas e professores. Seria como que um modelo do que se pode esperar dos
outros.
Ainsworth estudou também a relação que a criança estabelece com o pai,
utilizando a experiência da Situação Estranha com o progenitor masculino. Concluiu que a
criança manifestava igualmente sinais de angústia quando ele abandonava a sala, assim
como a procura do contacto quando voltava.
Depois destes estudos, a ligação da criança à mãe foi vista noutra perspectiva. Os
bebés têm uma necessidade inata de estar em contacto e de se agarrar a um ser humano.
Neste sentido há a necessidade de um objecto independente do alimento. Esta necessi‐
dade social é tão necessária como a necessidade de alimento e de calor. Trata‐se de uma
necessidade inata e não aprendida.
Esta constatação veio sublinhar a natureza primária do amor, a força irreprimível
da necessidade de vinculação, sendo a vinculação condição primeira do que será mais
tarde o equilíbrio e a adaptação social.
Bowlby considera o caregiving (tradução literal «dar cuidados») como o conjunto
dos comportamentos parentais que implicam os cuidados físicos e psíquicos/afectivos
34
dados à criança. Estes comportamentos, solicitados pela criança e prestados pelos pais, ou
seus substitutos, são sustentados por mecanismos evolutivos e biológicos. Podemos então
dizer, como Wallon, um teórico francês importante da psicologia do desenvolvimento que
o social é biológico. Ou seja, e de um modo simplista, o amor pode ser considerado um
mecanismo de sobrevivência da espécie.
Ainda antes do nascimento, mãe e bebé iniciam uma relação. O que a mãe pensa
é como que o início do pensamento do bebé. Todas as mães, durante a gravidez
«pensam» o seu bebé. Ele tem que ser adivinhado, sonhado, pensado, pela mãe. Este
«trabalho», que é feito durante o período de gestação, tem uma função de ajustamento e
é fundamental para o posterior desenvolvimento da relação. A mãe, ao transformar
emoções em pensamentos, é uma espécie de «continente» que oferece um espaço
psicológico ao seu bebé, uma vez que o representa. O primeiro pensamento do bebé é a
constatação de uma ausência. A ausência da mãe.
É também por estas razões que os serviços de adopção, mesmo havendo crianças
em condições de serem imediatamente colocadas na família que a vai adoptar, dão aos
pais, um período de «gestação» do futuro filho que é mais ou menos de 6 meses. Este
período serve para preparar a vinda da criança, imaginando‐a e representando‐a, quer
dizer, ajustando‐se a ela.
35
Texto 4:
A Construção da Identidade
A identidade pessoal, que pode parecer uma noção simples e evidente, revela‐se um fenómeno complexo e multidimensional. Tem, antes de mais, uma significação objectiva: o facto de cada indivíduo ser único, diferente de todos os outros pelo seu património genéti‐co. Contudo, tem sobretudo um sentido subjectivo: remete para o sentimento da sua indivi‐dualidade («eu sou eu»), da sua singularidade («eu sou diferente dos outros e tenho estas e aquelas características») e de uma continuidade no espaço e no tempo («eu sou sempre a mesma pessoa»)
Este sentimento é o do sujeito, mas também o dos outros, do seu meio: nós espe‐ramos de cada um que ele manifeste uma certa coerência e uma certa constância no seu ser, nas suas atitudes e nos seus comportamentos («eu conheço‐te bem…»). Uma grande variabi‐lidade a esse nível é sentida como patológica (inconsistência, fragilidade identitária ou per‐sonalidades múltiplas).
Fenómeno complexo, a identidade é igualmente paradoxal. Com efeito, na sua própria significação, ela designa o que é único: distingue‐se e diferencia‐se irredutivelmente dos outros. Mas qualifica igualmente o que é idêntico, isto é, o que é perfeitamente seme‐lhante, mantendo‐se distinto. Esta ambiguidade semântica tem um sentido profundo. Sugere que a identidade oscila entre a semelhança e a diferença, entre o que faz de nós uma indivi‐dualidade singular e o que, ao mesmo tempo, nos torna semelhantes aos outros. A psicolo‐gia mostra bem que a identidade se constrói num duplo movimento de assimilação e de dife‐renciação, de identificação com os outros e de distinção relativamente a eles.
Lipiansky, E. L’Identité Personelle, 1997
«Quem sou eu?» é uma pergunta que acompanha o Homem ao longo da sua
existência. Todos nós procuramos responder a essa questão. Parece que toda a nossa vida
é uma procura incessante no sentido de tentarmos perceber quem é que somos. Somos
boas ou más pessoas? Somos capazes ou somos uns incapazes da pior espécie?
Conforme nos vamos desenvolvendo, vamo‐nos modelando aos olhares que
espelham a nossa imagem, oferecida pelos outros e, ao mesmo tempo, vamos lidando
com o que temos, com aquilo que já faz parte de nós. A construção da identidade é um
processo que decorre ao longo da vida inteira, numa permanente relação dinâmica entre
o que temos e o que nos é devolvido pelos outros. À medida que vamos crescendo, e para
isso os outros desempenham um papel primordial, vai‐se tornando possível responder de
uma forma mais completa à pergunta «quem sou eu».
Como podemos verificar pelas palavras de Lipiansky, acima expressas, o termo
identidade parece contraditório. A palavra identidade reúne a noção de semelhança e, ao
mesmo tempo, de diferença. Cada um de nós define‐se por características comuns a todos
os outros e por características que nos distinguem de todos os outros. Neste sentido,
podemos afirmar que a identidade engloba quer a ideia de um «eu próprio» quer o
contexto social e cultural onde nascemos e vivemos.
36
Uma das particularidades da dinâmica identitária é que ela resulta do confronto
de tendências contraditórias. Procuramos ser, ao mesmo tempo, plurais e singulares, con‐
formamo‐nos, mas afirmamos a nossa individualidade, fazemos prova de uma certa
continuidade, naquilo que somos e na forma como nos comportamos e, ao mesmo
tempo, tendemos a mudar. Estas contradições resultam também da coexistência, e às
vezes do confronto, de diferentes papéis sociais. Podemos ser, ao mesmo tempo, pai de
família, apreciador de boa comida, inspector de impostos, adepto de uma equipa de
futebol, membro de uma associação artística. A cada um destes papéis corresponde uma
identidade e comportamentos específicos. Temos de gerir esta diversidade, mantendo a
coerência.
Podemos então definir a identidade como o conjunto de características que uma
pessoa considera suas e às quais dá valor para se afirmar, reconhecer e ser reconhecido
socialmente. A identidade é produto da interacção do particular com o social.
O conceito de identidade inclui um outro aspecto, o autoconceito. O
autoconceito é a forma como nos percebemos a nós próprios e inclui a auto‐imagem e a
auto‐estima. A auto‐imagem é a forma como nos vemos fisicamente, corresponde à
imagem corporal e é, provavelmente, a primeira parte do autoconceito que se forma. A
auto‐imagem é mediada por valores culturais que influenciam o grau de satisfação que
sentimos com o nosso corpo. A auto‐estima é o valor que sentimos ter, o quanto
gostamos de ser como somos. Todas estas percepções de nós próprios são construídas e
reconstruídas, ao longo do processo de desenvolvimento, na relação com os outros.
A partir do texto que se segue, analisemos agora o modo como, na adolescência,
se organiza a identidade.
Apresentação
A mais importante consequência psicossocial da puberdade, no quadro da teoria
psicanalítica, é a desvinculação e a separação das pessoas mais significativas, dos pais e da
família. Mesmo os autores que sublinham o processo de redefinição da relação com os
pais, mais do que a separação, acentuam a aquisição da autonomia como tarefa primor‐
dial do adolescente.
Paralelamente, ocorrem mudanças no funcionamento cognitivo com a emergên‐
cia do raciocínio formal, o que inclui a capacidade de pensar hipoteticamente, de imaginar
uma série de possibilidades em relação a si próprio e ao futuro. Estas competências per‐
mitem ao adolescente repensar criticamente os seus valores, crenças e imagens do mun‐
do anteriormente definidos pelas pessoas a quem estava afectivamente ligada.
37
Estas mudanças encorajam o adolescente a procurar um sentido de autonomia e
preparam‐no para uma melhor compreensão de si próprio e dos outros, o que constitui
alicerces para a construção da sua identidade.
Há quem considere que o principal desafio com que se confrontam os
adolescentes reside na tarefa de desenvolvimento da identidade do EU. Têm sido
identificados dois aspectos do Eu intimamente ligados: o Eu como sujeito e o Eu como
objecto. O Eu como sujeito, autor e actor, timoneiro, o conhecedor e avaliador e o Eu
como objecto do seu próprio conhecimento e avaliação; o sujeito que tem de se constituir
como existente, separado dos outros e o objecto constituído pelas categorias ou teorias
pessoais a construir para se definir a si próprio.
Desde já se assinale que uma tónica comum a todas as perspectivas é a da
importância da interacção social e do conhecimento dos outros para a construção do Eu,
como sujeito e como objecto e, portanto, da identidade.
Desenvolvimento do Eu
O Eu seria o integrador das diferentes ideias e experiências pessoais bem como
das expectativas sociais e o organizador da acção humana. Loevinger (1970, 1983)
apresentou um modelo de desenvolvimento das estruturas do Eu, desde a mais simples à
mais complexa. Este modelo faz referência a dez estádios do desenvolvimento.
1. Pré‐social. Caracteriza o indivíduo numa fase autista, cuja primeira tarefa é a sua
diferenciação dos outros e do que o rodeia, e tem o seu início com a construção
da realidade, permanência e conservação dos objectos.
2. Simbiótico. Apesar da sua diferenciação, o indivíduo permanece numa relação
simbiótica com o meio. A aprendizagem da linguagem torna‐o capaz de se ver
como uma pessoa separada.
3. Impulsivo. Os impulsos do indivíduo ajudam‐no a afirmar‐se como uma entidade
separada, embora a necessidade dos outros permaneça muito forte, o que se
manifesta por comportamentos de dependência. Os outros são vistos como fonte
de recompensa e punição. A orientação é quase exclusivamente virada para o
presente e não para o passado e futuro.
4. Auto‐protecção. Verifica‐se o primeiro passo para o auto‐controlo dos impulsos,
o indivíduo é capaz de antecipar punições e recompensas a curto prazo.
Compreende que há regras, contudo a regra mais importante é «não te deixes
apanhar» e não é capaz de ser responsável pelas suas acções. Este estádio
caracteriza‐se, assim, por um hedonismo oportunista.
38
5. Conformismo. O indivíduo identifica o seu bem‐estar com o do grupo, mas para
que isto aconteça é necessário que tenha atingido um nível de confiança básico
suficiente. Tem medo da desaprovação dos outros, percebe as normas e
obedece‐lhes porque são aceites pelo grupo. É capaz de observar diferenças de
grupo, no entanto, é insensível às diferenças individuais. os seus
comportamentos e valores existem em unção de influências externas e portanto
de aceitação social.
6. Auto‐consciência. Período de transição do conformismo à tomada de
consciência. Caracteriza‐se fundamentalmente por um aumento desta assim
como pel capacidade em perceber múltiplas perspectivas e alternativas, o que
permite ao indivíduo sair do controlo exclusivamente externo, assim com
reconhecer diferenças individuais e múltiplas formas de pensar, sentir e agir.
7. Tomada de consciência. O indivíduo tem regras e valores interiorizados, é capaz
de se ver como aquele que toma decisões, que age e tem relações empáticas e
de mutualidade, sendo capaz de apreciar nos outros diferentes emoções e
perspectivas. Neste estádio, os elementos básicos da consciencialização dos
adultos estão presentes: auto‐avaliação de objectivos e ideais, autocrítica,
sentido de responsabilidade.
8. Individuação. Período de transição para o estádio da autonomia. Caracteriza‐se
essencialmente por um aumento do sentido da individualidade, consciência de
conflitos emocionais envolvidos nas relações dependência/independência. O
indivíduo é mais tolerante, consigo e com os outros, reconhecendo‐os na sua
complexidade. Está consciente das diferenças entre processo e resposta, das
discrepâncias entre a realidade interna e aparência externa e entre respostas de
ordem psicológica e fisiológica.
9. Autonomia o que distingue este estádio é a capacidade de conhecer e lidar com
conflitos internos. A complexidade conceptual é a característica mais saliente: o
indivíduo vê a realidade como complexa e multifacetada e é capaz de integrar
duas ideias aparentemente contraditórias e ambíguas. Tem consciência clara dos
seus papéis e está interessado no seu desenvolvimento e progresso. Reconhece a
autonomia aos outros e a sua interdependência.
10. Integridade. Neste estádio, o indivíduo transcende os conflitos do autónomo,
adquirindo um sentido integrado da sua identidade. É de salientar que é pouco
frequente encontrarmos indivíduos neste estádio.
Num estudo realizado junto de 250 estudantes universitários do Porto, a fre‐
quentarem o segundo ano, verificou‐se que trinta por cento se encontravam no estádio
39
do conformismo ou próximo e cerca de sessenta por cento estavam a transitar para o da
tomada de consciência ou já aí se encontravam. Resultados idênticos têm sido encontra‐
dos em estudos realizados noutros países.
A identidade segundo Erikson
Erik Erikson foi um dos primeiros autores a debruçar‐se seriamente sobre o
fenómeno da construção da identidade. O seu trabalho baseou‐se, embora divergindo em
pontos importantes, na perspectiva freudiana do desenvolvimento.
Erikson conceptualiza e define a identidade de uma forma interdisciplinar em
que a construção biológica, a organização pessoal da experiência e o meio cultural dão
significado, forma e continuidade à existência do indivíduo. Situa o desenvolvimento do
indivíduo num contexto social dando ênfase ao facto de ocorrer na interacção com os
pais, a família, as instituições sociais e uma cultura num momento histórico particular.
O autor apresenta um esquema do desenvolvimento numa sequência fixa de oito
estádios, cada um correspondendo a um período cronológico específico e envolvendo a
aquisição de um estilo consistente de organização da experiência, de reestruturação da
identidade desde a infância e de incorporação de novos papéis oferecidos pela sociedade.
Cada um destes estádios é caracterizado por um dilema ou crise particular em
que o indivíduo desenvolve atitudes básicas que contribuem para o seu desenvolvimento
psicossocial. Estas atitudes básicas surgem em cada estádio como orientações polares,
isto é, o indivíduo pode emergir em cada um deles com um sentido de si próprio
reforçado ou debilitado. Estas orientações polares são conflitos nucleares ou seja,
momentos de crise e de síntese activa do Eu, nos quais está perante soluções
contraditórias que implicam decisões cuja natureza depende do balanço de vários
factores de desenvolvimento (maturidade cognitiva, crescimento físico…). Estas
orientações polares não significam que uma exclui a outra, mas que em cada estádio se
verifica uma dialéctica entre ambas. Quer dizer, o resultado será a síntese dos pólos
negativo e positivo de cada estádio.
A teoria de Erikson embora organizada em estádios não é uma teoria estrutural.
Isto significa que a emergência de um estádio é independente da resolução com sucesso
do estádio anterior. Contudo, a qualidade da resolução está dependente da resolução de
estádios precedentes.
A tarefa por excelência do adolescente é a construção da sua identidade. O ado‐
lescente preocupa‐se com a definição de si próprio, quem é, o que quer ser e fazer, qual
seu papel e função no mundo, quais os seus projectos para o futuro. Tenta dar um signifi‐
cado coerente à sua vida, integrando as experiências passadas e presentes e procurando
um sentido para o futuro.
40
A formação da identidade tem uma função dupla: psicológica e social. Por um
lado, a construção da identidade surge da necessidade do indivíduo organizar e
compreender a sua individualidade de uma forma consistente e sem contradições. Por
outro, é um processo social que surge de pressões externas para que o indivíduo escolha e
invista em papéis familiares, profissionais e sociais o que lhe dará um estatuto e posição
na sociedade.
Porque a identidade psicossocial serve estas duas funções, a tarefa do
adolescente é duplamente complexa. Por um lado tem de possuir um desenvolvimento
psicológico adequando à realização desta tarefa e, por outro, a construção da sua
identidade tem de ser realista e adaptada à sociedade onde está inserido, em constante
mudança.
Se é verdade que a construção da identidade ocorre essencialmente no período
da adolescência, não se inicia e termina aí. É um processo contínuo ao longo do ciclo de
vida.
O processo de desenvolvimento da identidade depende e inicia‐se no primeiro
encontro com a mãe, em que o sentido do Eu emerge de um jogo de confiança durante a
infância. É da experiência de uma relação segura que a criança se reconhece como distinta
dos outros. A interiorização e a identificação às figuras mais significativas são as primeiras
formas de estruturação do Eu. Só quando o adolescente se torna capaz de as seleccionar,
sintetizar e organizar é que a formação da identidade ocorre. São a integração e
organização de aspectos do Eu num conjunto coerente e distinto que vão definir a
identidade.
• Assim, o primeiro estádio tem como requisito a aquisição de um sentimento de
confiança básica em oposição à desconfiança. Ao longo do primeiro ano de vida,
a relação da criança com o adulto facilita ou dificulta o desenvolvimento de uma
segurança íntima em relação a si próprio e ao mundo. É através da relação entre
a mãe e a criança que se desenvolve um sentido rudimentar do Eu. É também
através desta relação que a criança tem o seu primeiro encontro com a cultura,
ou seja, com as regras educacionais dessa cultura, presentes no comportamento
da mãe. O sentimento de confiança em si e nos outros e a capacidade de ser
idêntico e distinto são os resultados esperados desta crise.
• A criança começa progressivamente a explorar o mundo, aprende que pode
dominar o seu corpo e explorá‐lo sem medo. Se o controlo externo é demasiado
rígido e precoce não facilitará um sentimento de auto‐domínio, o que poderá
resultar numa propensão para a dúvida e a vergonha. Este segundo estádio,
autonomia/vergonha dúvida depende necessariamente da confiança básica fir‐
41
memente desenvolvida e do estímulo que o meio dá à criança para realizar coisas
sozinha.
• Consciente da sua independência, tenta imitar os adultos, a sua curiosidade
aumenta, uma variedade de preocupações e interesses por questões da
sexualidade surgem. O sucesso neste terceiro estádio, iniciativa/culpa parece ser
fulcral para o desenvolvimento da identidade a medida em que o indivíduo sente
sem culpabilidade que pode ser o que imagina ser. O balanço adequado entre os
sentimentos de iniciativa e de culpabilidade é temperado pela consciência dos
limites impostos pelas convenções culturais apreendidas no meio social em que
vive.
• No quarto estádio, indústria/inferioridade, a criança sente que é competente,
que é capaz de fazer e fazer bem. Sem iniciativa, autonomia e confiança no meio
não é capaz de produzir coisas com perseverança, de auto‐reconhecer as suas
capacidades e de se fazer reconhecer pelos outros. Neste estádio, a dificuldade
pode estar relacionada com o insucesso de tarefas anteriores. O pânico de
perder a mãe, o medo de crescer porque isso implica sair de casa são comuns em
crianças cujas famílias não as preparam para o mundo exterior. Os professores e
os pais têm de ser sentidos como alvos de confiança de forma a permitir a sua
identificação positiva a figuras que fazem e sabem coisas que ela ainda não sabe,
e a não ter medo de crescer e de se confrontar com o mundo exterior porque
tem a segurança de não estar só. O sentimento de incapacidade não permite
criar objectivos de vida possíveis, mas o sentimento de que se pode fazer tudo,
sem consciência das limitações, pode também levar à incapacidade de realização.
• Neste processo de aquisição de competências, estas funcionam como peças que
contribuem progressivamente para a aquisição da identidade. O adolescente
precisa agora de uma moratória que lhe permita a integração dos elementos da
identidade já adquiridos. É a recapitulação e redefinição desses elementos que
caracteriza a crise da adolescência. Se a procura de confiança em si e nos outros
ainda for importante, o adolescente terá necessidade de procurar elementos que
proporcionem essa confiança. Mas, se já tiver criada a necessidade de uma defi‐
nição de si pelo que pode ser e querer livremente, então procurará condições e
oportunidades para tomar decisões que vão no sentido dessa definição. Por
outro lado, os pais e professores pressionam o indivíduo para tomar decisões,
particularmente no que respeita às áreas escolar e profissional. É a convergência
de mudanças internas e de pedidos externos que define a tarefa psicossocial de
aquisição da identidade. O adolescente adquire um sentido subjectivo de si,
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caracterizado pela unidade e continuidade que permite reconhecer‐se no pre‐
sente, no passado e no futuro. A identidade é também um fenómeno interpes‐
soal, na medida em que se baseia na forma como os outros percebem o indivíduo
e o avaliam.
Deste modo, a identidade envolve três características fundamentais:
1. Um sentido de unidade entre diferentes concepções de si próprio nas diferentes
situações, o que implica a integração de vários papéis.
2. Um sentido de continuidade desta concepção ao longo do tempo. Quer dizer que
apesar das mudanças em aspectos físicos, psicológicos e sociais, o indivíduo
percebe que é o mesmo.
3. Um sentido de mutualidade em relação aos outros, existindo uma interrelação
entre a percepção de si próprio e a que os outros têm de si.
Quando não adquire uma identidade adequada, o adolescente permanece num
estado de confusão de identidade, sem um sentido em relação ao passado e ao futuro,
como um estranho no seu próprio corpo.
• É do desenvolvimento da identidade que emerge a competência do indivíduo
para estabelecer relações de partilha e cooperação. O sexto estádio
intimidade/isolamento é a tarefa psicossocial do jovem adulto. Para Erikson, a
intimidade é muito mais do que a capacidade de realização sexual. No final da
adolescência ou início da idade adulta, quando o jovem não é capaz de ter
relações íntimas com outros, as suas relações tenderão a ser estereotipadas com
um profundo sentimento de isolamento. As relações na adolescência têm apenas
a função de auto‐definição e não de intimidade. Muitas relações e mesmo
casamentos funcionam como pontes para a resolução da identidade, quer como
forma de separação das figuras parentais, quer para resolver a sua identidade
através do companheiro.
• O adulto é caracterizado mais pela necessidade de dar e de ensinar. O sétimo
estádio, generatividade/estagnação, é definido pela necessidade do indivíduo
em orientar a geração seguinte, de investir na sociedade em que está inserido. A
estagnação surgirá se o indivíduo se focalizar apenas em si próprio.
• No último estádio, integridade/desespero, o indivíduo tem necessidade de
interioridade, de integrar as imagens do passado através da aceitação do sentido
vital, tornando‐se mais capaz de compreender os outros. Em muitas situações, a
sociedade não facilita este processo e a confrontação com a diminuição de
algumas capacidades pode levar o indivíduo não à integridade, mas ao
desespero.
43
Daqui resulta que enquanto a infância é o alicerce da construção da identidade, a
idade adulta acrescenta componentes e o indivíduo define‐se, progressivamente, como
sendo «aquele que ama, aquilo para que contribui e aquilo que viveu».
A adolescência é, de facto, o período por excelência desta crise determinada de
múltiplas formas pelo que ocorreu antes e determinante em grande parte do que vai
ocorrer posteriormente. Falamos em crise no sentido de um ponto decisivo no
desenvolvimento e de um período de grande vulnerabilidade. É neste período que o
indivíduo é confrontado com a maturação genital, a incerteza de papéis a assumir na
entrada no mundo adulto, a preocupação mórbida com o que possa parecer aos olhos do
outro e a busca e um novo sentido de unidade e de continuidade. Além disso, tem de
enfrentar de nova as crises de anos anteriores, antes de encontrar a sua identidade.
A sociedade facilita ao adolescente um período de moratória que lhe permite
lidar com estes problemas. Mas é preciso referir que esta moratória psicossocial pode não
ser o tempo que o indivíduo necessita para este trabalho de definição da sua identidade.
Se a pressão social para fazer investimentos é necessária, quando demasiado forte pode
obrigar o adolescente a optar precocemente ou a escolher o caminho da difusão da
identidade.
O período de moratória é governado por instituições e estruturas sociais que
podem facilitar ou inibir a experimentação de papéis. Erikson chama a estas estruturas
moratórias institucionalizadas que dão ao jovem modos de socialização para o ajudar a
resolver a sua crise de identidade (rituais, aprendizagens escolares…)
A crise de identidade decorre então neste período de moratória psicossocial e
num contexto de moratória institucionalizada. Mas para que uma crise de identidade
ocorra, são necessárias quatro condições:
1. um certo nível de desenvolvimento intelectual;
2. que a puberdade tenha ocorrido;
3. um certo crescimento físico;
4. pressões culturais que conduzam à reestruturação da identidade.
As características da crise, ou seja, o seu aparecimento, duração e intensidade
variam com factores individuais, sociais, históricos e económicos.
Nas sociedades ocidentais contemporâneas industrializadas, este período de
moratória é cada vez mais longo, tornando o adolescente mais dependente durante um
período de tempo mais alargado. Este prolongamento deve‐se, em parte, à necessidade
de realizar uma aprendizagem mais especializada para a sobrevivência num mundo tecno‐
lógico e de retardar a entrada na vida profissional e no mundo dos adultos. Assim, a idade
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em que os adolescentes se tornam adultos e assumem papéis de adulto independente e
autónomo á cada vez mais tardio.
A confusão da identidade não sendo anormal por si só. Para Erikson, grande
parte dos comportamentos característicos de uma confusão da identidade não são mais
do que manifestações da incapacidade do indivíduo de mobilizar a energia interior e a
sociedade para a construção da sua identidade. A confusão da identidade pode ser
verificada na sobreposição de imagens de si próprio, de papéis e oportunidades
contraditórias. Enquanto o processo de aquisição da identidade não está completo, a crise
e a confusão permanecem.
Os estatutos da identidade do Eu
Apoiado na perspectiva de Erikson, Marcia (1966, 1980, 1986) verificou a
necessidade de trabalhar critérios psicossociais para determinar momentos ou modos de
aquisição da identidade. Neste sentido, postulou a existência de quatro estatutos de
identidade que representam estilos diferentes de lidar com esta tarefa psicossocial. Os
quatro estatutos são definidos pela presença ou ausência de exploração e de
investimento em áreas específicas: profissional, ideológica (religiosa e política)
interpessoal/sexual (atitudes sobre os papéis sexuais e sobre as relações).
A dimensão exploração refere‐se ao questionar activo para tomar decisões e
atingir objectivos. Um indivíduo em exploração evidencia uma actividade dirigida ao
recolher a informação necessária à tomada de decisão.
• Um indivíduo encontra‐se em exploração quando sente necessidade de trabalhar
questões referentes à sua identidade com o objectivo de tomar decisões e se
empenha na análise das várias alternativas. No início da exploração, a excitação,
antecipação e curiosidade caracterizam o estado emocional da pessoa. Com o
decorrer da crise vive uma sensação de desconforto pela indefinição dos seus
objectivos e valores o que pode provocar sentimentos de frustração, intolerân‐
cia, ambiguidade e ansiedade. A intensidade destas emoções varia de indivíduo
para indivíduo. Dado o desconforto há um desejo iminente de fazer escolhas.
Continuar indefinidamente na ambiguidade faz crer que as alternativas não estão
a ser consideradas num sentido real e activo. Contudo, a escolha nem sempre é
viável, as respostas podem não ser encontradas e surgir a desistência.
• Após a exploração o indivíduo passou por uma fase de valorização activa de
vários elementos de identidade, mas já a ultrapassou com sucesso se daí emergiu
um firme sentido de direcção para o futuro, ou com insucesso, se a tarefa foi
abandonada sem ter atingido uma conclusão significativa.
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• A ausência de exploração significa que o indivíduo não sente necessidade de
escolher objectivos, crenças, valores e alternativas, quer porque já estão
definidos por outrem e foram incondicionalmente aceites, quer por falta de
estímulos que permitam encontrar e ponderar outros.
A dimensão investimento implica, por um lado, escolhas relativamente firmes e,
por outro, acções dirigidas para as implementar, tendo assim aspectos internos e
externos. Para se dizer que há investimentos não basta a verbalização de ideias
socialmente apropriadas: é preciso que haja uma influência directa na vida do indivíduo e
uma preparação para papéis futuros consistentes com objectivos e valores anteriormente
definidos. Esta dimensão não se refere apenas ao aqui e agora, mas fornece um
mecanismo de integração do passado com o presente e do presente com o futuro. Isto
não significa que os vários elementos da identidade continuem imutáveis, mas que existe
um sentido de continuidade e projecção no futuro.
Em função destas dimensões (exploração e investimento) Marcia define quatro
modos de estar perante a tarefa da identidade:
1. os indivíduos não apresentam qualquer investimento, nem passaram por
qualquer período de exploração ou se alguma das questões foram levantadas,
não foram capazes de as resolver e, por isso, abandonaram‐nas; nestes
indivíduos encontram‐se diferentes padrões emocionais desde a passividade e
apatia à agressividade não focalizada; normalmente respondem às pressões
externas pelo caminho de menor resistência, com aceitação e rejeição das
normas sociais convencionais sem apresentar formas alternativas; estão em
difusão da identidade;
2. os indivíduos que não passaram nem estão a passar um período de exploração,
mas que, no entanto, fazem investimentos que normalmente são o reflexo de
escolhas e projectos de outras figuras significativas ou de autoridade; os indiví‐
duos aceitam sem questionar o seu leque limitado de alternativas uma vez que
procurar outras criaria uma situação de conflito com essas figuras de identifica‐
ção; a sua identidade é como outorgada pelas pessoas significativas; estes sujei‐
tos levantam barreiras à comunicação com o mundo exterior, escolhem, por
defesa ou por impossibilidade, a segurança do não confronto com outras alterna‐
tivas e, normalmente são vistos como imperturbáveis, dogmáticos, autoritários e
rígidos em relação às suas atitudes e intolerantes perante a posição dos outros;
3. os indivíduo que estão a vivenciar um período de exploração de alternativas para
tomar decisões; são sensíveis, ansiosos, flexíveis, vacilantes, emocionalmente
instáveis, respondem alternadamente com optimismo e pessimismo, evidenciam
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frustração e incerteza e manifestam uma grande necessidade de ultrapassar esta
situação de moratória;
4. os indivíduos que passaram por um período de exploração e realizaram
investimentos relativamente firmes, construindo a sua identidade pessoal; estes
indivíduos reflectem sentimentos de confiança, estabilidade, optimismo em
relação ao futuro e consciência das dificuldades de implementação dos
elementos de identidade escolhidos.
Esta classificação reflecte formas de resolução da identidade e,
simultaneamente, uma sequência de desenvolvimento. Poderíamos dizer que, num
primeiro momento, todos os indivíduos passam por um período de difusão de identidade
e todos tiveram, em determinado momento, investimentos que lhe foram outorgados
numa ou outra área de vida. Os dois modos ou momentos ideais em termos de
desenvolvimento são a exploração e a construção pessoal da identidade. No entanto, um
indivíduo com uma identidade outorgada pode estar bem adaptado no contexto em que
está inserido.
Archer e Waterman afirmam que, embora por definição os indivíduos em difusão
não mostrem investimentos e não estejam a trabalhar questões de identidade, se podem
encontrar diferentes grupos se analisarmos as suas motivações e posições perante a
tarefa da identidade.
• Um primeiro grupo de adolescentes em difusão manifesta certas semelhanças
com os que se encontram em exploração; foge ou evita investimentos, insiste em
não investir; provavelmente a motivação para este tipo de comportamento é o
medo de que qualquer investimento mais permanente seja insatisfatório.
• Um segundo grupo caracteriza os adolescentes que, embora conscientes da
necessidade de trabalhar questões relacionadas com a identidade, não sente
urgência em iniciar a tarefa; como se, na ausência de pressões externas, adias‐
sem em permanência a elaboração do projecto; o desenvolvimento psicossocial
nos estádios anteriores foi bem sucedido, o que faz pensar que, mais cedo o mais
tarde, esta situação será ultrapassada.
• Um terceiro grupo exprime um desinteresse total em fazer investimentos, quer
agora quer no futuro. Isto parece mascarar uma insegurança em relação à
capacidade de realização bem sucedida desta tarefa. Embora possam existir
problemas em estádios anteriores, parece haver uma relação especial com a falta
de confiança em si e nos outros; a apatia é a única resposta possível para a
manutenção da estima de si próprio.
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• Adolescentes há que não estando interessados em definir objectivos, valores e
crenças, quer agora quer no futuro, se distinguem do grupo anterior pela
expressão intensa da agressividade em relação à tarefa da identidade. Esta
agressividade é exteriorizada e dirigida contra os outros que possam pressionar a
criação de investimentos. Estes indivíduos parecem ter tido dificuldades
fundamentalmente no estádio da autonomia/vergonha, pois é neste estádio que
o negativismo surge como resposta à autoridade parental.
• Enquanto estes adolescentes expressam a sua difusão de identidade pela apatia
ou agressividade, são no entanto capazes de encontrar um caminho, ainda que
marginal, e não apresentam problemas evidentes. No entanto, outros há que
apresentam desequilíbrios que não são apenas uma resposta às dificuldades
experimentadas na tarefa de formação da identidade, mas o produto de
inúmeras circunstâncias.
• Um último grupo mantém certas semelhanças com a identidade outorgada e
caracteriza‐se por uma ligação marginal a elementos de identidade. Fazem
investimentos em diferentes domínios da identidade, mas falta‐lhe investimento
suficiente nas escolhas. Podem possuir potencial para responder às expectativas
do meio e, então, as suas ideias são suficientemente boas até qualquer coisa
melhor surgir. Ou, se tiverem tido dificuldades no estádio da iniciativa/culpa, em
vez de escolherem o caminho para a sua identidade, depositam nos outros o
sentido da sua direcção. São extremamente influenciáveis e sem um verdadeiro
significado da vida.
Factores de desenvolvimento da identidade
Podemos definir três categorias gerais de possíveis influências no
desenvolvimento da identidade: individuais, interpessoais e sociais.
Individuais
A maturidade corporal precoce parece ter consequências na formação e uma
identidade prematura na medida em que estes adolescentes têm uma aparência de mais
velhos em relação aos seus companheiros. Mudanças de altura e de peso e o
aparecimento de características sexuais secundárias têm implicações ao nível do auto‐
conceito, isto é, na forma como os adolescentes se vêem e na forma como sentem que os
outros os vêem. As mudanças físicas podem afectar a auto‐estima o que será reforçado
pela percepção dos outros como negativa.
48
A adolescência é marcada pelo pensamento abstracto que permite considerar
possibilidades que não estão imediatamente presentes bem como diferentes hipóteses de
escolhas viáveis para atingir os objectivos. O que facilita aproximar o ideal do Eu do Eu
real. O pensamento abstracto permite desenvolver e testar hipóteses, ponderar sobre o
possível e o impossível criando o sentimento de ser mais criativo e ter mais controlo na
sua vida. Permite, ainda, desenvolver estratégias para a resolução dos seus problemas.
Isto envolve planificação, definição do problema, desenvolvimento de estratégias e
capacidades de as implementar e, finalmente, tentar outras alternativas caso as
escolhidas falhem. Esta capacidade dá ao adolescente a possibilidade de se assumir como
aquele que controla a sua própria vida.
Parece plausível prever uma relação directa entre a aquisição das operações
formais e a construção da identidade. No entanto, enquanto alguns autores verificaram
que os adolescentes não parecem usar o pensamento formal para resolver a sua
identidade, outros constataram a existência de uma relação entre pensamento formal e
identidade. Rowe e Marcia (1980) referem que as operações formais permitem mas não
garantem níveis superiores de identidade.
Interpessoais
Ao longo do ciclo de vida, o indivíduo tem, sucessivamente, diferentes formas de
compreender o mundo que resultam da sua interacção com o meio social e físico. É na
confrontação progressiva com diferentes realidades sociais que o indivíduo tem
necessidade de escolher novas formas de perspectivar o mundo e de interpretar novas
experiências. Este conflito produzido na área interpessoal encoraja o indivíduo a tomar a
perspectiva dos outros e, portanto, a alargar o seu leque de referências e pontos de vista.
Contextos de interacção por excelência são a família e escola e, por isso, têm sido objecto
de estudos que analisam a sua influência no desenvolvimento da identidade.
O impacto da família no desenvolvimento parece estar relacionado com o tipo de
interacção familiar encorajadora da compreensão dos pontos de vista dos outros. Os
estudos realizados constatam que uma ligação emocional (atitudes de apoio, coesão e
aceitação) e a individualidade (atitudes de desacordo) na interacção familiar estão rela‐
cionadas com o desenvolvimento da identidade. A ligação emocional, quando adequada,
parece estar relacionada positivamente com o desenvolvimento da identidade enquanto
que níveis elevados de aceitação e abertura parecem inibir a exploração. Os adolescentes
que estão em níveis superiores de identidade percebem a interacção familiar como um
envolvimento positivo moderado e activo em que os membros da família são livres de
estar em desacordo. Assim, níveis moderados de conflito e aceitação parecem ser as con‐
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dições necessárias para que o adolescente possa explorar alternativas e desenvolver a
capacidade de se colocar na perspectiva do outro.
Por sua vez, os adolescentes em difusão de identidade parecem ter uma ligação
emocional aos pais caracterizada pela insegurança e conflito, são menos independentes e
sentem‐se rejeitados pelos pais que se mostram, inactivos, ausentes e pouco envolvidos
emocional.
Finalmente, os adolescentes com uma identidade outorgada pertencem a
famílias cujos pais são muito possessivos, dominadores e desencorajadores da expressão
afectiva. Estas famílias caracterizam‐se ainda por uma posição tradicionalista no que se
refere aos papéis sexuais.
Parece então que as experiências familiares têm um papel importante na
formação da identidade. No entanto, não podemos interpretar estes resultados como
uma relação de causa e efeito, mas como uma correlação. Ou seja, sabemos que um
número importante de adolescentes com uma identidade outorgada pertencem a famílias
autoritárias e tradicionais, mas não podemos dizer que estes aspectos da família são os
causadores deste estilo de identidade.
A escola não é apenas uma instituição social com funções gerais de socialização e
de instrução, mas também como um meio de desenvolvimento do indivíduo. No período
escolar há três variáveis importantes para o desenvolvimento da identidade: a confiança
no apoio parental, o sentido de indústria e a auto‐reflexão sobre o seu futuro.
• A criança tem comportamentos de exploração se sente uma ligação forte e
segura com os pais. Também o adolescente tem necessidade de sentir o apoio
parental para experimentar autonomia e individuação. A sua segurança depende
fortemente da convergência entre a família e o desconhecido (a escola) e da
confluência e continuidade destes laços.
• O sentido da indústria é desenvolvido pelo indivíduo no contexto escolar, o que
requer uma avaliação de si como pessoa trabalhadora. Competência e mestria
são garantes da estima de si próprio ao longo do ciclo vital e a escola apela espe‐
cialmente para estas características. Será difícil para um adolescente investir na
área profissional se este sentido de competência não existe. A escola tem aqui
uma função importante criando condições de exploração e acção e favorecendo
feedback aos seus alunos.
• A auto‐reflexão sobre o futuro não significa tomar decisões, mas a capacidade de
falar sobre si próprio, de interpretar, de construir hipóteses de alternativas futu‐
ras. Aqui também a escola tem um papel importante favorecendo imagens de ida
50
como homem e como mulher, facilitando possibilidades de analisar diferentes
papéis no sentido de desenvolver uma perspectiva social.
Neste período etário, a escola parece então ter uma função importante para o
desenvolvimento da identidade. Muitos estudos sugerem que determinadas práticas edu‐
cativas são promotoras da construção da identidade. A formação escolar deve ser uma
experiência com significado pessoal, o que envolve componentes afectivas e cognitivas. A
escola deve criar condições para que a curiosidade não seja inibida, mas antes incentiva‐
da. Mas mais importante do que o encorajamento à exploração é a permissão desta. A
outra dimensão do processo de desenvolvimento da identidade é o investimento, o que
envolve riscos. O adolescente precisa de sentir apoio que lhe dê a segurança de que um
fracasso pode ser ultrapassado.
O desenvolvimento da identidade passa por um período de exploração antes do
investimento. A dependência do professor e do livro não favorece o desenvolvimento da
autonomia, emocional e instrumental do estudante e, consequentemente, um sentido de
competência, auto‐estima e identidade.
A independência emocional é facilitada pelas oportunidades de confronto de
trabalho e de saber com outros adultos que não são os seus próprios pais. Estas oportuni‐
dades devem ser oferecidas num contexto relacional de respeito mútuo o que permite
desenvolver um sentido de interdependência e reciprocidade. Pelo contrário, quando os
currículos são rígidos, quando a aprendizagem requer apenas a memorização da informa‐
ção e quando o sucesso depende do conformismo com o sistema, a independência emo‐
cional dificilmente acontece.
Por sua vez, a independência instrumental é conseguida através do sucesso do
indivíduo na realização de uma variedade de tarefas e problemas, pela aquisição da mobi‐
lidade suficiente para procurar e usar diferentes fontes. A valorização da mera «aprendi‐
zagem» da informação não dá oportunidade de experimentação de diferentes realidades.
Quando o produto é o mais valorizado, a competição entre alunos torna‐se fre‐
quente e as relações interpessoais são afectadas. Pelo contrário, quando a cooperação é
estimulada, então a diversidade de competências, de perspectivas e de informações,
variáveis importantes para o desenvolvimento da identidade, facilitam o desenvolvimento
de competências de comunicação, de perspectiva social, de cooperação, de partilha de
objectivos e, finalmente, de um sentido de competência e auto‐estima.
Em resumo, podemos dizer que o sentido de competência, autonomia e identi‐
dade se desenvolve:
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• Ao nível curricular, se a experiência responsabilizada e as tarefas significativas
são valorizadas e as possibilidades de áreas de estudo e as fontes de informação
são múltiplas.
• Ao nível das práticas pedagógicas, se não são centradas no professor, se os con‐
teúdos desenvolvem diferentes valores, crenças e ideologias e se as turmas fun‐
cionam como grupos de discussão, entre alunos e entre alunos e professores, em
que as discussões de experiências pessoais, sentimentos e comportamentos têm
um espaço de análise.
• Ao nível da avaliação, se a pressão para a aquisição de conhecimentos académi‐
cos é adequada, a realização bem sucedida de tarefas específicas é recompensa‐
da e o feedback for constante e descritivo.
Sociais
As normas sociais podem facilitar ou não a crise de identidade. Parece evidente
que quanto mais institucionalizada for a moratória no sentido da preparação instrumental
para papéis adultos, maior facilidade haverá na resolução da crise. No entanto, se esta for
demasiado simplificada a personalidade adulta poderá vir a reter características da infân‐
cia. Neste caso, as crises psicossociais posteriores serão mais problemáticas. Pelo contrá‐
rio, um contexto social não estruturado pode levar a uma crise de identidade mais agra‐
vada.
A hierarquia social, por sua vez, está inerente à possibilidade ou não de experi‐
mentação de papéis que actualizem as potencialidades de um indivíduo, o que, como já
foi referido, é um factor importante para o desenvolvimento a identidade, assim como a
valorização de determinadas características e a desvalorização de outras que interferem
na imagem que o indivíduo tem de si em comparação com os outros (raça, género, reli‐
gião, classe social).
Finalmente a importância para a formação da identidade de variáveis relaciona‐
das com um determinado momento histórico (guerra, recessão económica, epidemia)
parecem evidentes. Não é possível separar o desenvolvimento pessoal da transformação
comunitária, assim como não poderíamos separar a crise de identidade individual do
desenvolvimento histórico porque ambos se definem mutuamente e estão relacionados
entre si.
Adaptado de Costa, M. E., «Desenvolvimento da Identidade».
In Paiva‐Campos, B., Psicologia do Desenvolvimento e Educação de Jovens, 1990