Post on 27-Jan-2019
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 1
Texto para Discussão 017 | 2017
Discussion Paper 017 | 2017
Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e perspectivas de democratização no meio de uma crise de poder e de acumulação
Jaime Ernesto Winter Hughes León Doutorando em Ciências Econômicas pelo Universidade Federal do Rio de Janeiro Estudante do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Membro do Grupo de Estudos Florestan Fernandes E-mail: jjaimeleon@hotmail.com.
Maria Mello de Malta Pró-reitora de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Coordenadora do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: mariammalta@yahoo.com.br.
This paper can be downloaded without charge from
http://www.ie.ufrj.br/index.php/index-publicacoes/textos-para-discussao
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 2
Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e perspectivas de democratização no meio de uma crise de poder e de acumulação
Julho, 2017
Jaime Ernesto Winter Hughes León Doutorando em Ciências Econômicas pelo Universidade Federal do Rio de Janeiro Estudante do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Membro do Grupo de Estudos Florestan Fernandes E-mail: jjaimeleon@hotmail.com.
Maria Mello de Malta Pró-reitora de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Coordenadora do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: mariammalta@yahoo.com.br.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 3
Resumo
Este artigo analisa criticamente a questão democrática brasileira a fim de contribuir com o entendimento da atual crise política e econômica. Para tanto, privilegia as discussões sobre as perspectivas democráticas no Brasil com a distensão do regime de ditadura civil-militar no fim da década de setenta. É feito o resgate das interpretações de Fernandes (1975) e de Coutinho (1979) sobre a problemática da tradição democrática no Brasil e suas imbricações com as relações de classe, políticas e econômicas, no interior do Estado brasileiro. A hipótese de trabalho é que a "Nova República" se esgostou, resultado de um movimento global de ascensão do autoritarismo no contexto de crise estrutural do capitalismo que vem sinalizando a possibilidade de uma nova forma de dominação autoritária ainda compatível com a tradição plutocrática brasileira. Como no regime de 1964, o Estado desta iminente forma de autoritarismo concilia o padrão de dominação de classe burguês via um consenso de transformação capitalista que comporta disputas internas entre frações da classe dominante e que é orientado pelos negócios. Porém, este Estado tem uma marca distinta daquele ao pretender a manutenção não-harmônica de "instituições democráticas" pela via do Poder Judiciário como substância do capital. Este trabalho se trata de um resgate da teoria marxista de Estado e da história do pensamento marxista no Brasil.
Palavras-chave: democracia; Estado; classes; neoliberalismo; autoritarismo
Abstract
This paper analyses the Brazilian democratic issue in order to contribute with the understanding of the current economic and political crises. Thus, the paper focuses on the discussions about the democratic perspectives in Brazil with the distension of the civil-military dictatorship in the late seventies. Fernandes`(1975) and Coutinho`s (1979) interpretations of the democratic tradition in Brazil and the relations of classes, political and economic, within the Brazilian State are taken into consideration. The hypothesis of the paper is that the "New Republic" is worn out as a result of the global movement of rising authoritarianism in a context of a structural crises of capitalism which indicates the possibility of a new form of authoritarian domination still compatible with the Brazilian plutocratic tradition. Just like the regime of 1964, the State of this form of authoritarianism patches the bourgeois` domination pattern up throughout a consensus of capitalist transformation guided by business. However, this State has a distintive mark in pretending the non-harmonic maintenance of "democratic institutions" through the Judiciary Power. This paper addresses a recovery of the marxist theory of State and of the history of Brazilian marxist thought.
Key-words: democracy; State; neoliberalism; authoritarianism
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 4
Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.
A revolução dos bichos (George Orwell, 1945)
1 Introdução
A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia
liberal. Conforme Hobsbawm (2011), a predominância atual desta forma de
manifestação da democracia remonta ao fim da disputa ideológica e hegemônica
entre E.U.A. e U.R.S.S. durante a Guerra Fria. Com a vitória estadunidense a
democracia liberal - fundada nos princípios de representatividade; da soberania dos
Estados nacionais; da garantia das liberdades civis e políticas e de eleições
periódicas decididas por maiorias numéricas - despontou diante de regimes
políticos diferentes como a "única" alternativa de organização política democrática,
classificando os outros como "não-democráticos". Embora haja debate sobre a
restauração neoliberal e acerca das perspectivas para a periferia do capitalismo
contemporâneo, o fato é que esta modalidade de gerenciamento das relações de
classe está em crise expressa na alienação política, na erosão das liberdades civis e
na emergência do autoritarismo no mundo capitalista (Ayers & Saad-Filho, 2014).
No centro do sistema, a eleição de Donald Trump nos E.U.A. em 2016 e a
possibilidade de candidatos de extrema direita serem eleitos na Europa ocidental
num futuro iminente são exemplos deste processo. Tal movimento também se
alastra à periferia. Houve o fim da chamada "onda rosa" na América Latina da
primeira década do século XXI, governos classificados como "progressistas" foram
substituídos por governos declaradamente conservadores. No caso brasileiro em
particular, a ascensão do impopular governo de Michel Temer, via o impeachment
da presidenta anterior, é a consolidação e expressão deste processo1. Conforme
1 É importante frisar que a ascensão de Temer representa uma continuação da política econômica
neoliberal de Dilma Rousseff. No máximo, a diferença entre ambos governos seria uma intensificação
do arrocho sobre os trabalhadores, sobre o sistema de seguridade social (com a substituição dos
serviços pela iniciativa privada) e sobre a austeridade da política fiscal. A marca que o define como
um governo autoritário, e deste ponto de vista distinto aos de Dilma e de Lula, são as restrições às
liberdades-civis e à Constituição. configurando um retorno ao autoritarismo com uma política
econômica orientada pelos interesses de classe burgueses brasileiros, os quais são comandados pela
dependência do capital internacional (Sampaio Jr., 1999; Singer, 2015; Pinto et alli, 2017).
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 5
Boulos (2017), o governo Temer assumiu o poder com a seguinte proposta de
políticas: a flexibilização das relações trabalhistas; a Emenda Constitucional com um
teto para os gastos públicos e a reforma da previdência social. As acusações de não
respeitar as regras democráticas e os direitos adquiridos pelos trabalhadores ao
longo de décadas de luta e de propor medidas antissociais são relevantes para
qualquer perspectiva de democracia no país e têm reflexos sérios nas sociedades
civil e política brasileiras.
Este artigo visa realizar um debate sobre a questão democrática no Brasil. Seu ponto
de partida é a discussão, com destaque para a abordagem marxista, sobre o que é a
democracia e, em termos de classes sociais, para quem ela serve na sua forma
contemporânea. Para isso, serão expostas a tradição plutocrática de democracia
brasileira e as perspectivas que estavam na ordem do dia no período de abertura do
regime autoritário instaurado em 1964. Tal questão será balizada pela análise das
obras de Florestan Fernandes e de Carlos Nelson Coutinho, dois intérpretes do
Brasil que privilegiaram a perspectiva política de análise crítica da sociedade no
contexto histórico da transição do regime nascido em 1964 para a "Nova República".
Ao expor o debate em torno do tipo de democracia existente no país e suas
perspectivas no capitalismo brasileiro dependente, o artigo chega à discussão sobre
as estratégias adotadas pelo principal partido, em termos de defesa da causa
trabalhadora, da cena política brasileira das últimas três décadas: o Partido dos
Trabalhadores (PT). Apesar de sua evolução trazer semelhanças interessantes com
os traços marcantes do ciclo político do Partido Comunista do Brasil (PCB), interessa
mais destacar as diferenças dos ciclos políticos de ambos os partidos: Enquanto
instrumento de luta pela democracia de massas no país, como meio para a
construção da consciência dos trabalhadores do conceito de "classe para si" (de
classe como sujeito histórico da emancipação trabalhadora e associado a uma
determinada estratégia de ação), o PT se aproximou do PCB (Neves, 2016). Porém
deve-se levar em conta o período histórico totalmente distinto destes ciclos, o que
condicionou as suas diferenças2. O trabalho aponta os fatos que afastaram o PT de
2 Vale destacar que o PT surgiu como fruto de um movimento histórico singular na história do Brasil,
o surgimento da classe operária como classe em si, de forma independente à classe capitalista, no
movimento grevista do ABC paulista de 1978. Enquanto o PCB surgiu em 1922 como reflexo da III
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 6
suas premissas fundantes e que ajudam a explicar como, num contexto internacional
de retomada do pragmatismo econômico e de ascensão do autoritarismo, o Brasil se
encontra hoje numa tríplice crise (Pinto et alli, 2017) de acumulação de capital; da
cena política; e da relação entre bloco no poder e Estado, a qual, no limite, está
reinstaurando bases autoritárias no Brasil (Iasi, 2016).
A hipótese de trabalho é que há uma nova forma de autoritarismo no Brasil advinda
da manifestação da atual fase do neoliberalismo, que se diferencia do regime de
1964 por comportar uma disputa entre classes e frações de classe burguesas,
internas e externas, que não estão harmonizadas no interior do Estado em relação
aos rumos da liderança política para o país. Isto explica o impedimento de Dilma ter
se dado de forma oportunista e desorganizada pelo partido do então vice-presidente
(Partido do Movimento Democrático Brasileiro), porém estas mesmas classes e
frações de classe ainda estão concertadas em torno de um padrão de dominação
burguês consolidado como "plutocracia" e que necessita da polarização crescente
da luta de classes. Este padrão de dominação gerou uma crise de acumulação e de
poder sem precedentes que pôs em xeque a forma de democracia de cooptação,
exercida plenamente pelo PT assim que subiu ao poder. Já em 2013, nas
manisfestações conhecidas como "jornadas de 2013", esta forma de dominação
sofreu uma inflexão importante para a cena política e foi agravada pela inflexão
econômica com a crise internacional chegando ao Brasil e os ajustes econômicos do
governo Dilma Rousseff, causa principal de sua queda.
O reforçamento da democracia de cooptação, possibilidade anunciada em
Fernandes (1975), através da incorporação de parcela significativa dos "condenados
do sistema" ao consumo de massas financeirizado3 foi a opção seguida pelo PT na
primeira década de 2000 para conciliar interesses burgueses com a base social
histórica do partido: os trabalhadores. Assim foi construído e articulado, durante o
governo de Lula, um grande acordo entre classes e frações de classe que se
prolongou aos governos de Dilma Rousseff e reproduziu a dominação burguesa
(Singer, 2015). A marca distintiva do governo de Dilma teria sido um certo
Internacional Comunista, sendo influenciado pelos impactos da Revolução Russa de Outubo de 1917
(Bandeira et alli, 1967). 3 Para mais sobre a dinâmica das relações políticas e econômicas no interior do Estado, sob a
dominância do movimento de financeirização, ver Filho & Paulani (2011).
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 7
"weberianismo tacanho" de achar que poderia interferir politicamente nos acordos
políticos de classe, sem alterar os interesses econômicos estabelecidos. Nas
avaliações de Singer (2015) e de Pinto et alli (2017), Dilma achou que o poder
emanava do Executivo autonomizado das outras esferas de poder e que era
independente das relações econômicas e políticas entre as heterogêneas classes e
frações de classe no interior do Estado e pagou um alto preço político: seu
impeachment. Contudo, seu afastamento logo demonstrou para as classes
dominantes que o governo de Temer, embora tenha avançado grande parte das
reformas pretendidas, era também débil em termos de apoio popular e parlamentar
e não pode entregar estabilidade. Pode-se afirmar que as frações dominantes
assumiram o risco de um "salto no escuro", pois sabiam que o status quo não estava
em contestação.
A ascensão de Michel Temer foi uma manobra das burguesias dominantes de tentar
restaurar e garantir os privilégios particularistas da classe burguesesa. Num
verdadeiro jogo político, que traz a mente as disputas descritas em "O dezoito
Brumário" de Marx (1852), as diversas classes e frações burguesas se uniram
compositamente para afastar Dilma; porém como é comum ao capitalismo estes
interesses são heterogêneos e, logo após o impedimento, foi desencadeada uma
"guerra fratricida" entre os diversos segmentos burgueses: imprensa, sistema
jurídico (Procudaria Geral da União, Supremo Tribunal Federal, Parlamento), classe
média e classes dominantes (Pinto et alli, 2017). Neste contexto a discussão da
democracia volta à ordem do dia como tema eminente, principalmente porque estes
conflitos incidem diretamente sobre a massa da população.
Para dar coerência, em termos metodológicos, à interpretação proposta neste artigo,
foi necessário sincronizar três pontos básicos: i) o que está acontencedo no Brasil e
no mundo com o capitalismo em termos político, econômico e social; ii) qual o
conceito de Estado utilizado e iii) o que define a burguesia brasileira. Não se
pretendeu resolvê-los em todas as controvérsias que o envolvem, mas de alinhá-los
para uma reflexão coesa.
Uma análise de teoria política descolada da análise de economia política não é capaz
de responder estes pontos e seria uma discussão de política estéril (Heinrinch,
2007). Portanto o cerne de orientação metodológica foi como a História explica a
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 8
relação entre a estrutura (base material da vida, relações sociais de produção e
forças produtivas) e a superestrutura (consciência social, aparato jurídico e
organismo político) do modo-de-produção capitalista no Brasil.
Em relação ao primeiro ponto, o artigo se propõe a analisar o neoliberalismo, num
momento de crise estrutural do capital e sua manifestação política de democracia
liberal, pois são nas contradições do capital com o trabalho que se encontram a
resposta para a crise estrutural do capitalismo e as novas soluções que o capital
encontra para si e as possibilidades abertas ao trabalho (Mészáros, 2005).
Em relação ao Estado, apesar de ser um lugar onde se manifestam os diferentes
interesses econômicos e políticos de classe, é, em última instância, um instrumento
de dominação de classe. Ele pode comportar disputas intestinas entre as diversas
classes que o compõem, mas seu caráter de classe é bem definido. Aqui é importante
frisar, conforme Heinrich (2007), que o uso de uma "sociologia do poder" tal como
as derivações de Lenin, de Gramsci e de Poulantzas é insuficiente para a análise do
Estado, é necessária também a crítica da Economia Política que busca na teoria do
valor as determinações ocultas do Estado. A especificidade brasileira seria sua
formação social colonial, sendo que, no campo econômico-social, o estatuto da
escravidão exerce direta e indiretamente influência central na determinação do
padrão tradicional de vida da maioria da população e, no campo político, o
oligarquismo das classes dominantes mantêm as classes subalternas alijadas do
poder, numa espécie de circuito fechado à plena participação popular (Fernandes,
1981a).
Por úlitmo, em relação à burguesia brasileira, o artigo segue a linha de Prado Jr.
(1966), de Fernandes (1975) e de Fontes (2010) de que nossas classes dominantes,
resultado do capitalismo dependente, compõem uma classe orientada pelos
negócios, com uma mentalidade de curto prazo para a valorização de suas riquezas.
Além disso, não têm um caráter nacional, mas sim são umbilicalmente associadas ao
volátil capital internacional de forma subordinada. Refuta-se, as visões de uma
suposta "burguesia interna" brasileira, pois isto dá margem para interpretações
equivocadas de que há uma burguesia dentro do Brasil dissociada da externa.
Tampouco se faz a distinção entre burguesia produtiva e burguesia financeira, pois
na era do capitalismo monopolista financeiro elas são indissociáveis.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 9
Além desta introdução, este artigo conta com outras seis seções. A segunda é
referente à discussão sobre o conceito de democracia e para quem, em termos de
classes sociais, ela serve; a terceira é sobre a específica tradição democrática
brasileira; a quarta trata do consenso burguês de dominação e transformação
capitalista no período da ditadura civil-militar iniciado em 1964 na interpretaçao de
Fernandes (1975); a quinta analisa o desmonte deste consenso e as perspectivas
postas à democracia no Brasil no fim daquele regime; a sexta traz a discussão sobre
democracia e revolução presente em Coutinho (1979); por fim, na sétima, há
ponderações sobre a democracia no ciclo do PT e as conclusões.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 10
2 Democracia e Estado como pilares das classes dominantes
Desde o fim da Guerra Fria, os países capitalistas hegemônicos defendem as
bandeiras de democracia e de liberdade como se fossem conceitos de inquestionável
consenso sobre seu conteúdo qualitativo positivo. Não são, há disputa ao redor
deles. É necessário frisar que a democracia de que tratam é a democracia liberal
construída a partir das revoluções liberais inglesa, estadunidense e francesa a partir
do fim do século XVII. Por ser um conceito que pode assumir distintas formas ao
longo do tempo em formações sociais distintas, a democracia pode ser defendida
por distintas correntes de pensamento e ideologias (Hobsbawm, 2011; Malta, 2008;
Ayers & Saad-Filho, 2015).
Liberais e socialistas reivindicam a democracia e a liberdade como princípios
norteadores de suas visões de mundo, suas ideologias. Conforme a reflexão de Marx
& Engels (1846) as ciências sociais, incluindo a economia política e a teoria política,
não são neutras. Elas assumem um caráter político específico em cada formação
social sob o comando das ideias das classes dominantes. Como o período de
consolidação do neoliberalismo foi o de subjulgamento de alternativas aos
princípios liberais de individualismo, o "fim da História", a democracia e a liberdade
liberais puderam se perpetuar a partir de então como a opção hegemônica.
Segundo Bobbio (1988), a democracia liberal tem seu limite máximo no formalismo
do ativimismo político com o direito ao voto universal masculino e feminino, que
teoricamente passaria a mensagem de que cada pessoa participa da vida política de
uma sociedade ao poder exercer o direito de eleger um parlamento que a represente.
Em teoria, as pessoas teriam igualdade de ativismo político. Há de se fazer uma
análise deste formalismo.
Segundo a crítica marxista, hoje vive-se a democracia liberal, fundada na
formalidade da igualdade e da liberdade liberais, que tem como pressuposto um
princípio metodologicamente equivocado: a naturalização dos momentos da
totalidade "produção, distribuição, troca e consumo" (Malta, 2008). Ao formularem
o método materialista-histórico, Marx & Engels (1846) refutam esta naturalidade
das relações sociais de produção e apontam que os indivíduos não são iguais, nem
formalmente tampouco concretamente, pois desde que existe a propriedade privada
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 11
e a garantia de existência deste tipo de instituição, as possibilidades de igualdade
são eliminadas. Este fato tem implicações na vida econômica, política e social, logo,
também reflete determinações no interior do Estado. Assim, a crítica da economia
política marxista é importante para a crítica da teoria política.
Simplificadamente, para o marxismo, existem os proprietários dos meios de
produção, os capitalistas, e os despossuidos/expropriados, aqueles que só podem
contar com a venda da sua força de trabalho como fonte de subsistência. Assim, o
pressuposto de igualdade da democracia liberal já é eliminado, pois a liberdade na
qual ele é fundado, a liberdade individual privada, é falsa. A subsunção formal do
trabalho ao capital, dada pela existência da propriedade privada, e a posterior
subsunção real, dada pelo desenvolvilmento das forças produtivas e a geração de
mais-valor relativo, transformam a liberdade do indivíduo em dependência social
(Malta, 2008).
Destarde, para os autores marxistas, a noção de liberade individual advogada pelo
liberalismo é de uma liberdade limitada, pois é mediada pelas trocas. Isto porque a
democracia liberal pressupõe a existência de diferença social. Retomando e
interpretando a epígrafe deste artigo, todos os homens são iguais, mas alguns
homens (os proprietários dos meios de produção) são mais iguais que outros e
estabelecem relações assimétricas de poder no interior do Estado: a relação entre
dominantes e dominados, como afirmaria Gramsci (1934).
De acordo com Bobbio (1988), a democracia socialista (ou proletária) se opõe à
democracia liberal (ou burguesa) por, ao invés de propor uma democracia
representativa, advogar uma democracia direta de todo o povo sem representantes
e com delegados cujos mandatos estão sujeitos à revogação. Ademais, ao contrário
da democracia liberal, a democracia socialista prevê participação popular, além do
voto universal, na tomada de decisões econômicas. Assim, o objetivo final da
democracia socialista, soberania popular com igualdade entre os homens, seria
atingido por meio de uma melhor distribuição da riqueza social e superaria a
aparência de igualdade formal entre os homens, baseada no mero direito ao voto.
Na democracia liberal a igualdade dos indivíduos seria um consequência da livre
tomada de decisões individuais em todos os campos da vida social, enquanto na
democracia socialista a igualdade entre os indivíduos, adquirida com o fim da
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 12
propriedade privada dos meios de produção e exploração de um homem por outro,
é pressuposto para a liberdade. A democracia socialista implica a plena participação
popular em todos os espaços de sociabilidade humana.
Conforme Ayers & Saad-Filho (2015), as próprias condições que tornam a
democracia liberal do neoliberalismo possível geram contradições em diversas
áreas da vida social que impedem a plena realização da democracia enquanto
soberania popular. Por exemplo, a democratização política liberal promove partidos
políticos, organizações de comércio e grupos de interesse com interesses de
horizontes limitados, por não terem um projeto de sociedade além de seus próprios
interesses particularistas. Já o sistema jurídico, malgrado sua formal independência,
é estabelecido para garantir a previsibilidade das "regras do jogo" democrático,
porém não esconde um viés conservador orientado pelas ideias e interesses das
classes dominantes.
Para a perspectiva marxista, o formalismo da democracia liberal é uma
escamoteação por nunca ter permitido a efetiva participação de cada membro da
sociedade civil na vida política no interior do Estado. Tal fato já tinha sido
explicitado por Marx (1852) e seria melhor elaborado nas elaborações de teoria
política de Gramsci (1934) e de Poulantzas (1978) com a discussão sobre classes,
frações de classe, Estado e bloco no poder.
Em linhas gerais, para Poulantzas (1978) o Estado é o lugar onde se dão as diversas
disputas políticas de classes e frações de classe, incluindo dominantes e dominados,
em torno de interesses de classe específicos, os quais têm sua base material
definidas, no limite, por interesses econômicos de classe mas que com os interesses
políticos interagem de forma simultânea numa relação dialética de determinação.
Ademais, em cada formação social histórica há um determinado grupo, orbitando
interesses de classe comuns, que se apresenta como hegemônico perante as outras
classes e frações de classe que conformam um "bloco no poder" no interior do
Estado, orientando a dinâmica política e econômica de determinada sociedade em
um momento dado do tempo. Vale lembrar que as formas de dominação se dão, no
geral, por meio da coerção e do consenso, sendo este último construído no "chão da
fábrica", nas relações cotidianas de produção de forma educativa e via os aparelhos
hegemônicos privados e hegemônicos de Estado (Gramsci, 1934).
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 13
Para Poulantzas (1978), o Estado, garantidor e organizador da acumulação
capitalista, é definido como um processo e, importante, o "poder de Estado" difere
de "poder de classe". Para ele, por mais que em determinadas conjunturas haja um
determinado grupo com hegemonia ao bloco no poder, não se pode confundir, por
exemplo, o Estado com um mero "comitê da burguesia". É necessário levar em
consideração que no interior do Estado as diversas frações burgesas estão em
permanente disputa. O que se pode passar é que em determinados momentos, como
os de crise econômica e política burguesa, o Estado possa ser controlado a partir dos
interesses da classe dominante reunida - mesmo que heterogeneamente - com vistas
à manutenção do status quo de dominação (Sawaya, 2016; Pinto et alli, 2017).
Mais, o Estado pode ganhar certa "autonomia relativa" na medida em que o poder
seja efetivamente exercido nos "centros de poder de Estado" formados por
aparelhos, instâncias e órgãos de tomadas de decisão sem subordinação burocrática
direta às frações de classe dominante4. É crucial apontar, porém, que esta autonomia
é relativa, pois não está dissociada do poder da classe dominante, mas sim por estes
centro de poder terem a possibilidade de decisão própria dada a sua posição na luta
política de classes. Esta visão é, de certa forma, a assumida por Coutinho (2011).
Já para Fernandes (1975), o Estado tem um caráter de classe bem definido: é
dominado pelas classes dominantes em favor do interesses delas mesmas. No caso
das economias do "capitalismo dependente", o Estado comporta a disputa entre as
diversas classes e frações de classe a depender do estado das lutas de classes. Se
estas estiverem como uma "guerra civil oculta", com manifestações de dentro da
ordem e com a concessão de alguns benefícios para as classes médias e para as
classes desprivilegiadas, o Estado terá uma aparência democrática. Se as lutas de
classe estiverem como uma "guerra civil aberta", com contestação da ordem a partir
de fora, o Estado assume uma posição autoritária e repressora.
Em busca da especificidade brasileira, será analisado como a democracia liberal se
desenrolou no interior do Estado, entendido sob a relação entre a sociedade civil e
a sociedade política como uma totalidade dialética entre coerção e consenso, num
4 Hoje, os centros de poder de Estado se encontrariam no Banco Central, no Supremo Tribunal Federal
e, em especial na operação anti-corrupção da Lava Jato comandada pela "República do Paraná",
segundo Pinto et alli (2017).
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 14
país de tendência autocrática de "via prussiana" única como o Brasil com o fim do
período de repressão civil-militar iniciado em 1964 e terminado, formalmente, em
1985.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 15
3 A tradição democrática brasileira
Para se fazer uma avaliação da democracia como ela existe no Brasil e suas
perspectivas, é interessante considerar sua forma de existência na América Latina5
como corolário das revoluções burguesas postas em curso com os movimentos de
independência nacional, conforme alertou Ianni (1988). Para o sociólogo, todos os
países da região já tiveram suas revoluções burguesas, porém sem consolidar a
democracia para as massas. Mais precisamente há a existência de uma tradição de
"democracia restrita" ou democracia para poucos (plutocracia) em função de
valores conservadores, caudilhescos, patrimonialistas, oligárquicos, particularistas
e autoritários que são reproduzidos ao longo do tempo pelas classes e frações de
classe dominantes.
Tais valores foram instaurados e reproduzidos nas ordens sociais denominandas
por Fernandes (1968) de colonial e a sua sucedânea neocolonial. Nestas épocas, por
5 Poder-se-ia fazer uma interpretação da tradição autoritária brasileira como em Sérgio Buarque de
Holanda em "Raízes do Brasil" (1936), que através de uma análise não materialista da história, busca
aquilo que diferencia o brasileiro, em particular, e o latino-americano, em geral, de suas raízes
ibéricas, a fim de apontar os traços fundantes da tradição democrática latino-americana. Dado o
período em que escreveu, Holanda (1936) está analisando a democracia na região sob este prisma
de algo novo nas sociedades de classe incipientes de origem ibéricas.
Para ele, no caso brasileiro a democracia no Brasil é um "lamentável mal-entendido", pois as classes
dominantes (burguesas) brasileiras, rebentas das oligarquias rurais do período neocolonial,
distorceram os princípios e valores das lutas burguesas europeias pela democracia liberal,
adaptando-a de forma a manter seus privilégios em terras americanas. Criaram uma caricatura de
democracia burguesa imposta de "cima para baixo", dos dominantes para os dominados. As
transformações vistas no Brasil aliás se davam pelos intelectuais e por motivos sentimentais do
"homem cordial", movido pelos motivos do coração, atingindo a massa do povo despreparada para
tais mudanças.
É importante ressaltar que Holanda escrevia num período de ascensão do fascismo na Europa como
crítica ao liberalismo parlamentarista e que ele próprio escrevia da Alemanha. Portanto sua tentativa
era de denunciar as tendências fascistas e autoritárias da manifestação de sua forma no Brasil, o
integralismo, e de apontar mudanças bruscas na sociedade brasileira que não coincindentemente
tiveram a emergência de um Estado autoritário (Estado-Novo em 1937) apenas um ano após a
publicação de Raízes do Brasil.
Caudilhismo e liberalismo são postos como antítese em Holanda (1936) e sua superação seria
condição necessária para a concretização de "nossa revolução" proposta por Sérgio Buarque, aquela
que acabaria com os traços coloniais e patriarcais em nossa sociedade . De um lado, o personalismo
caudilhesco seria a base da nossa vida social. O oligarquismo seria a manisfestação no tempo e no
espaço daquele personalismo que foi capaz de dar a aparência de estabilidade política aparente em
distintos momentos-chave de nossa história.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 16
definição, o conceito de nação não se aplicava ao Brasil, pois o país não passava de
mera colônia da metrópole portuguesa. Com a emergência da ordem social
competitiva, típica da sociedade de classes, nos começos do século XX e as
revoluções burguesas da região, a variável de sociedade burguesa latino-americana
surgiu mantendo as antigas oligarquias das ordens sociais precendentes aliadas às
classes dominantes burguesas do capitalismo dependente. O ápice da tradição de
contrarrevoluções preventivas teria sido, segundo Fernandes (1975), a
concretização da revolução burguesa dependente na ordem social monopolista na
era do imperialismo total com as ditaduras civis-militares que se difundiram em
toda região. Vale lembrar que os regimes autoritários latino-americanos foram
contemporâneos do acirramento da Guerra Fria, da experiência de Cuba e tiveram
apoio estadunidense (Hobsbawm, 2011; Netto, 2014).
Para Fernandes (1975), a definição de revolução burguesa na periferia seria: "um
fenomêno essencialmente político, de criação, consolidação e preservação de
estruturas de poder predominantemte políticas, submetidas ao controle da
burguesia ou por ela controláveis em qualquer circunstâncias" (FERNANDES, 1975:
343), por isso não se pode falar de revolução burguesa frustrada no Brasil. De fato,
a revolução burguesa foi completa em toda a América Latina com o estabelecimento
de contrarrevoluções com o controle das estruturas de poder garantido às
burguesias latino-americanas (Ianni, 1988). Vale lembrar que, no Brasil, a Revolução
Burguesa se consolida com a crise da República Velha e ascensão conciliadora de
Vargas em 1930.
Octávio Ianni aponta as conexões das revoluções burguesas latino-americanas, as
quais combinaram a aceleração do processo econômico com a intensificação dos
problemas sociais, políticos e culturais, com a emergência de um Estado forte,
autoritário e bastante vinculado com os interesses internacionais. Surge daí uma
cultura política autoritária marcada pelo conservadorismo expressos nos lemas de
"ordem e progresso"; "segurança e desenvolvimento", "paz social" e pelo elevado
número de golpes e tentativas de golpes de Estado e cartas constitucionais dos
países da região. Seria também característico desta cultura autoritária a afirmativa
de que as mudanças propostas com o Estado autoritário estão cerceadas de
legalidade ou de razões que as justificam e são sempre em prol do conceito de
democracia liberal, forma política que serve às classes dominantes. Por fim, esta
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 17
tradição é caracterizada pela transformação da questão social em questão de polícia,
pois os movimentos dos setores populares da sociedade civil, por serem débeis e
desorganizados, são postos como subversivos e perigosos à ordem estabelecida e
resolvidos pela força da violência institucionalizada.
Portanto, a constatação sobre a tradição democrática brasileira é inequívoca: o país
tem uma tradição democrática bem delineada de autoritarismo e plutocracismo,
típica do capitalismo dependente latino-americano6. Pode parecer paradoxal a
afirmação de uma democracia autoritária, mas, a democracia assume diversas
formas em contextos distintos (Bobbio, 1988). A qualificação mais adequada para
explicar como se deu o consenso burguês de dominação de classe e transformação
capitalista seria a de democracia restrita, tal como cunhou Fernandes (1975).
6 Não obstante a generalidade da questão democrática na América Latina, a especificidade brasileira
estaria na forma em que a dupla articulação e a segregação social gravitariam em torno do estatudo
da escravidão como dínamo social e econômico uma vez que este é ditado pelo "sentido dos negócios"
e, nos marcos do capitalismo dependente, necessita de um exército de mão-de-obra disponível para
a valorização do capital sob baixa remuneração e alta exploração. A permanência da questão por
resolver do negro e de seus descendentes, segundo Fernandes (1981a), seria chave para se afirmar
se o Brasil é ou não é um país democrático. Para o sociólogo, o negro e seus descendentes são a base
da exploração econômica brasileira desde os tempos coloniais, mas deve-se lembrar, como alertou o
autor, que não obstante a questão racial seja central para se pensar a democracia no país, é na causa
proletária que se encontra a unidade de interesses dos explorados no Brasil.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 18
4 Consenso burguês de dominação burguesa e de transformação capitalista
O cerne da explicação da unidade entre autoritarismo e democracia no Brasil estaria
na forma como as burguesias brasileiras e as suas frações de classe encontraram
para solucionar o período de crise burguesa na ordem social monopolista e de
imperialismo total durante os anos sessenta (Fernandes, 1975).
A relação entre dominação burguesa e transformação capitalista assumiu uma
forma idiossincrática, pois ela é sempre variável, instável e mutante. De um lado, as
heterogêneas classes e frações de classe burguesas se encontravam pressionadas
"de fora" pelas burguesias dos países hegemônicos centrais e suas transnacionais.
Por outro, a instabilidade interna gerava pressões sociais e políticas "de dentro", que
embora não estivessem organizadas politicamente para realizar uma "revolução
democrática", eram potencialmente pré-revolucionárias e por isso traziam medo às
burguesias.
Como formulou o sociólogo, a solução burguesa para sua própria crise foi a de se
reunir compositamente, como se fosse uma colcha de retalhos. As classes e frações
de classe burguesas ficariam unidas por uma solidariedade assentada na defesa de
seu interesse comum: sua manutenção como classe dominante. Portanto, as
burguesias e frações de classe burguesas, no contexto do capitalismo dependente
marcado pela segregação social interna e dependência externa, fizeram uma opção
crucial que varreu qualquer possibilidade de solução desta dupla articulação, senão
a intensificou. Por um lado, se uniram ao "aliado principal" - o capital internacional
- para se reproduzirem enquanto classe; para se inserir ao espaço econômico
mundial mais amplamente; e para tomarem o controle de um Estado viablilizador
de logros que estavam além da esfera privada de ação burguesa. Por outro, puderam
agir de forma aberta, opressora e repressora contra seu "inimigo principal" - as
classes populares -. Este era o chamado "consenso burguês".
Tal acordo era dotado de uma racionalidade própria de unificação e centralização
do poder destas classes e frações de classe com a transferência da arena econômica
de dominação para a arena puramente política. Destarte estaria garantida a
continuidade da dominação burguesa opressora, única saída viável para as
burguesias e suas frações de classe no capitalismo dependente.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 19
É claro que tal solução só foi possível num contexto de ápice da Guerra Fria, no qual
a defesa da ordem capitalista figurava como cerne das políticas em todo continente.
As ideias dominantes do centro eram as das classes dominantes do país hegmônico
da ordem mundial e eram importadas mimeticamente pelas classes dos países
dominantes da periferia. Não é à toa que valores abstratos tais como "solidariedade
do hemisfério" ou "defesa da civilização cristã ocidental" foram defendidos se
sobrepondo até mesmo aos interesses de cada país em particular como Nação, como
o conjunto da maioria do povo. Se tratava da submissão de interesses nacionais e,
logo, da democracia como algo libertador (Fernandes, 1975; Netto, 2014).
O busílis da interpretação de Fernandes para este trabalho é o seguinte: ao
assumirem tal postura reacionária, as burguesias e frações de classe burguesas
brasileiras abandonaram, por não precisarem, as ideologia e utopia burguesas tal
como estabelecidas nos casos clássicos de revolução democrático-burguesa inglês,
francês e estadunidense uma vez que se formaram num período histórico e numa
realidade social distintas. Elas optaram por uma solução que reforçou o caráter de
democracia restrita instaurando duas revoluções antagônicas na sociedade
brasileira: uma de "aceleração do tempo histórico" que promoveu a modernização
da economia, indispensável para a legitimação de sua dominação; outra de caráter
contrarrevolucionário, pois tornou permanente as contradições econômicas,
sociais, culturais e políticas no interior da sociedade burguesa através de uma
"ditadura de classe preventiva". Em linhas gerais, a formação da Nação em moldes
democrático, nacional ou popular foi tirada da ordem do dia pelas burguesas
dependentes.
A dominação burguesa se manifestava então nos seus traços mais elementares e
irredutíveis. Na defesa de seus interesses materiais privados e políticos
particularistas, as classes dominantes assumiram sem medo formas autocráticas de
autodefesa e de autopriviliegiamento. "O 'nacionalismo burguês' enceta assim um
último giro, fundindo a república parlamentar com o fascismo" (FERNANDES, 1975:
345).
De forma complexa, a dominação burguesa ainda foi camuflada aparentando ser
coincindente com os interesses da nação (mairoria do povo). Houve uma clara
separação entre "sociedade civil e Nação" e uma nítida identificação de "classe
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 20
burguesa com a Nação". O eixo de gravitação da relação política entre as classes
dominantes, os interesses nacionais e a estabilidade político-econômica foi
deslocado para o interior das classes burguesas e de seu controle sobre toda a
sociedade.
Todo este padrão de dominação e de transformação capitalista burgueses teria um
alto preço para as classes e frações de classe burguesas. Ao se fecharem em si
mesmas de forma agressiva e autoritária, diminuíram seu raio de ação e afastaram
qualquer diálogo possível com as demais classes. Funcionalmente, lidaram até com
as manifestações de dentro da ordem, o chamado "radicalismo burguês", como se
fossem manifestações contra a ordem e portanto reagiram de forma repressora com
reivindicações que vinham a partir de dentro da ordem burguesa e não visavam a
mudança radical da ordem vigente. Assim, a ordem social "competitiva" burguesa
assumiu a única forma possível no capitalismo dependente: aberta somente para os
mais iguais, para os que se inseriam positivamente na ordem como classes
possuidoras. E o fazia sob a condição de explorar as classes despossuidas e os semi-
integrados à ordem.
Como já destacado, o problema com que se defrontaram as burguesias brasileiras
era um problema da ordem e não de democracia. Era o desafio de como instaurar
uma "oligarquia coletiva das classes possuidoras" que estava posto para elas,
procuravam como prolongar seu status de classes historicamente dominantes na
sociedade brasileira. E a solução foi implantar uma autocracia aberta, opressora e
repressora que unificasse e centralizasse o poder burguês na figura de um Estado
forte e núcleo de poder burguês. Historicamente encontra-se no colapso do
populismo que precedeu a cristalização do poder burguês, principalmente com
Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, o fracasso do radicalismo burguês e uma das
condições de cristalização do poder autoritário.
Florestan Fernandes elucidou como a intensificação da dominação burguesa, fez
com que aumentasse a impregnação militar e da tecnocracia no Estado como
processos de preservação e consolidação da ordem, inclusive com demonstrações
excessivas de força bruta. O Estado além de policial-militar, era jurídico e político e
tinha como principal função eliminar a necessidade de articulação política entre as
classes, pois ele mesmo determinava a ordem que deveria ser respeitada: a ordem
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 21
burguesa. O Estado virou portanto uma superentidade política que centralizava os
controles de dominação política, jurídica e promovia a aceleração econômica da
sociedade.
Segundo Fernandes (1975), o Estado nacional virou um Estado nacional sincrético,
pois na aparência ainda defendia a ordem como se fosse democrático,
representativo e pluralista, mas na realidade era um verdadeiro instrumento de
oligarquias autoritárias permeado de contradições. Esta era a única possibilidade
num capitalismo dependente que passara por profunda crise.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 22
5 O desmanche do consenso e a possibilidade de democracia de cooptação
A própria opção pelo consenso burguês continha as sementes de sua destruição, ou
pelo menos de seu debilitamento. Fernandes (1975) apontou que, definitivamente,
a plutocracia compósita burguesa autoritária e repressiva seria transitória. Muito
embora este acordo tenha dado às classes burguesas a possibilidade de gerir
abertamente novas formas da luta de classes com um Estado autocrático, não lhe
deu autonomia "para fora" e limitou o próprio horizonte interno de solidariedade
entre a burguesia e as demais classes. Os setores dominantes não tinham base
material para realizar o autodesenvolvimento do Brasil e enxergavam as classes
despossuidas como meros "inimigos irreconciliáveis" ou setores sociais que deviam
ser tutelados. Enfim, a opção pelo consenso foi também a opção de entrar numa
circularidade viciosa que só fazia aumentar a dupla articulação entre segregação
social interna e dependência externa e impedia ideais realmente revolucionários de
autodeterminação.
De acordo com Fernandes (1975), uma vez consolidada a democracia restrita
autocrática do consenso burguês, surgiu com o milagre econômico, a forma de
democracia de cooptação. Os heterogêneos interesses burgueses que haviam sido
temporariamente abrandados pela união compósita de classe, guiados pela
solidariedade de classe, poderiam voltar à cena política implicando a inevitável
corrupção do sistema de poder. A cooptação ou agregação sistemática e
generalizada de interesses brasileiros e estrangeiros burgueses serviu de elo
facilitador para o autoprivilegiamento dos "mais iguais". Não é um
autopriviliegiamento somente das classes "altas", senão também das frações médias
que puderam usufruir do aparato estatal, tecnocrático e militar. Enfim, os interesses
dominantes se impuseram ilimitadamente de "cima para baixo" conformando um
verdadeiro "paraíso burguês".
Malgrado este cenário do auge da regeneração burguesa, as dinâmicas da
emergência do capitalismo monopolista e da industrialização intensiva colocavam
em conflito cada vez maior os interesses burgueses no período de "estabilidade"
política dentro do regime militar dos anos setenta. Os interesses privados e estatais
oriundos desta nova ordem capitalista acelerada pela revolução modernizadora
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 23
colocavam em xeque a contrarrevolução. Em síntese, como é caracaterístico do
capitalismo, seu desenvolvimento ou aceleração econômica numa determinada
formação social acarreta a irrupção de contradições no interior da sociedade de
classes, o terror das burguesias plutocráticas. É verdade que a ativação daquelas
forças reprimidas era insuficiente para uma revolução socialista, mas impunha
inexoravelmente transformações na sociedade dependente. É por isso que a
distensão política do regime civil-militar passou a ser almejada pelas próprias
classes dominantes.
Florestan Fernandes formulou que a tarefa burguesa naquele período de início de
abertura política seria dupla, teria de criar modos novos de conectar organicamente
os mecanismos de democracia de cooptação com o Estado autocrático burguês. Não
se trataria de retomar uma suposta "democracia", algo que nunca teria existido, mas
sim de reforçar a autocracia burguesa ampliando a cooptação "para baixo", criando
novas formas de conexão com o restante da sociedade civil de maneira a camuflar o
autoprivilegiamento, e estabelecendo claramente o alcance constitucional e legal do
Estado autocrático. Para o sociólogo, as burguesias visavam retornar condições
seguras para o prosseguimento da ordem competitiva de antes de 1964. Com a
garantia do status quo burguês, elas já podiam pensar na transição do regime.
O sociólogo foi preciso ao formular que as classes dominantes teriam de encontrar
novas formas coercitivas estatais e que o alastramento da democracia de cooptação
implicaria o beneficimanento de outras classes que não só as altas e as médias.
Assim, a possibilidade de mobilidade vertical social teria duas consequências: i)
aumentaria o horizonte da consciência burguesa ao converter estas classes
despossuidas em possuidoras gerando protestos de "dentro da ordem"; ii) geraria
uma crescente organizada de pressões "contra a ordem", uma vez que estariam
expostas as contradições da sociedade de classes7.
Segundo Fernandes (1975), a democracia de cooptação aberta nasceria débil, pois
na perspectiva das classes tuteladas ofereceria muito pouco, enquanto que na ótica
7 Esta bifurcação entre reforma e revolução será retomada mais a frente, pois será central para
entender o ocorrido nos anos de governo do Partido dos Trabalhadores e, em linhas gerais, remete
ao texto de Marx & Engels (1850) sobre os limites de alianças que um partido revolucionário pode
fazer com partidos burgueses.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 24
dos dominantes teria um preço muito elevado. Nos parece extremamente atual sua
afirmação:
Acresce que a democracia de cooptação possui pouca eficácia e pouca
"flexibilidade" em nações capitalistas pobres onde a extrema
concentração da riqueza e do poder deixa um escasso excedente para
dividir na compra de alianças ou de lealdades. Por isso, ela concorre para
exarcebar as contradições intrínsecas ao regime de classes, levando-as a
pontos explosivos de efervescência, que mais debilitam que fortalecem o
Estado autocrático, compelido a funcionar sob extrema tensão
permanente e autodestrutiva, de insuperável paz armada" (FERNANDES,
1975:424).
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 25
6 Perspectivas de uma democracia de massas
Pode-se afirmar que Coutinho (1979) tinha uma visão mais otimista para as
perspectivas da democracia brasileira do que Florestan Fernandes. Mais
precisamente, ele tinha mais esperança na tarefa que julgava competente às forças
de esquerda no país: a luta pelo fim do regime de exceção implantado em 1964 e a
implantação do socialismo. Sua obra é marcada pela forte conexão entre democracia
e revolução e é fortemente influenciada pela busca de uma "terceira via" entre o
socialismo stalinista e a social-democracia europeia, dado que o autor se exilara na
Itália8 na década de setenta.
O autor fez sua análise a partir de uma visão crítica da teoria política, a partir do
arcabouço político e teórico gramsciano. Portanto, combinou a crítica da política ou
das lutas no interior da superestrutura da sociedade de classes tendo como base, em
última instância, a crítica da economia política determinada na luta econômica de
classes9.
A interpretação de Carlos Nelson Coutinho da tradição política brasileira não difere
substancialmente da de Florestan Fernandes, da de Sérgio Buarque de Holanda ou
de Octávio Ianni. Para ele o Brasil é um país de tradição antidemocrática com a
variável de "democracia restrita", sendo suas transformações orientadas de "cima
para baixo". Foi assim com a instauração da República Velha, com Revolução de
1930 e com o Estado Novo. Em Coutinho (1979), a especificidade brasileira seria a
de combinar o capitalismo de Estado com o latifundismo e as formas imperialistas
de dominação e exploração econômicas. No país, minorias determinam o rumo, o
sentido e a intensidade das mudanças sociais através do que o autor chamou de "via
prussiana"10, exatamente este fato de a dominação política das classes dominantes
8 No seu exílio na Itália, Carlos Nelson Coutinho sofreu influência do eurocomunismo de Enrico
Berlinguer, com quem teve contato, e aprofundou sua análise de democratização como caminho para
o comunismo. 9 Como afirma Coutinho (2011), para Gramsci, a política tem na relação "governantes x governados"
todas as determinações mais simples da teoria política, assim como, para Marx, as conexões mais
elementares da economia política se encontravam na conexão entre "mercadoria e valor". 10 Como afirmam Martins et alli (2014), a preocupação de Carlos Nelson Coutinho com a espeficidade
histórica e estrutural brasileira data de 1972, numa obra sobre Lima Barreto, o fez formular a análise
sobre via prussiana brasileira de conciliação com o atraso e comandado "pelo alto" das classes
dominantes brasileiras.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 26
orientarem o ritmo, o sentido e a intensidade das transformações sociais brasileiras.
A propósito, tal forma de ação seria comum também em outras formações sociais
capitalistas.
A perspectiva gramsciana do autor, o fez afirmar no final da década de setenta, em
movimento de crítica ao stalinismo soviético e à social-democracia burguesa, que a
passagem para a democracia socialista seria algo provável e de transição longa,
necessitando a criação de "pressupostos ideológicos, econômicos e políticos" para
tal (Coutinho, 1979). Portanto a tarefa da esquerda se tratava de uma estratégia, e
não de uma tática, de pôr fim às soluções prussianas dando resposta às
insuficiências da revolução burguesa no Brasil11.
Sua explicação se baseia na circunstância de o sistema capitalista, que à época recém
atingira a fase monopolista de Estado, trazer inexoravalemnte na sua dinâmica os
fundamentos da "suprassunção" da democracia liberal para a democracia socialista.
A transição da democracia liberal para a socialista seria, portanto, a superação
dialética da democracia liberal, tal qual elaborada pelos autores liberais do século
XVIII, com a incorporação de elementos novos e a negação dos elementos
incompatíveis com o novo momento histórico de emancipação humana, abertura
possível graças à criação incipiente daqueles "pressupostos ideológicos, econômicos
e políticos.
Segundo Coutinho (1979), a democracia liberal teria como conjunto de qualidades
os princípios da soberania nacional, da representatividade, da pluralidade, do
direito ao voto etc. Segundo sua crítica marxista, esta democracia - a liberal - é
baseada no princípio da pluralidade dos indivíduos e tenderia ao falso "equilíbrio
natural" de auto-regulação pelas forças de mercado. O poder executivo, segundo
11 Neves (2016), em tese exegética sobre a obra de Carlos Nelson Coutinho, faz a diferenciação entre
tática e estratégia tão utilizada na obra do autor baiano. Partindo da analogia já levantada por
Gramsci entre política e guerra, ambas - tática e estratégia - têm como significado a ação racional
visando a obtenção de um determinado objetivo final, portanto englobam a ideia de objetivo final e
caminho para tal. Porém, o campo da tática se refere a ações que se tomam para lidar com situações
de momento, é a teoria para lidar com os embates episódicos de classe. Já a estratégia seria uma ação
planificada objetivando obter vantangens futuras ou interesses de classes ou frações de classe com
respeito à dominação sobre o adversário sobre o qual se quer demarcar posição. Estes conceitos
serão cruciais para explicar o que será uma estratégia democrática, algo tão caro ao PCB (Partido
Comunista do Brasil) e ao PT (Partido dos Trabalhadores).
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 27
advogam os defensores da democracia liberal, seria guiado por uma burocracia
estatal alheia ao controle público que, supostamente, harmonizaria a sociedade. Esta
burocratização estatal, ao pretender equilibrar os interesses particularistas
individuais, lograria somente homogeneizar os interesses do capital. Todavia, como
para o marxismo não existe teoria política livre de axiologia ideológica, a democracia
liberal camufla a dominação ou hegemonia de classe burguesa sobre a sociedade
civil com este mecanismo de "burocracia harmonizante".
Já a democracia socialista, segundo Carlos Nelson Coutinho, seria fundada na
participação e controle das massas e pela reversão da via prussiana de
transformação social. Para ser atingida teria de ser construída por um processo de
renovação democrática que acabasse com a alienação política - fruto do
autoritarismo do regime de exceção - e com a tendência à burocratização estatal.
Isto se daria pelo fortalecimento de tendências recém surgidas naquele contexto. A
saber: o surgimento de novos mecanismos de democracia direta relativamente
dissociados do Estado (comissões de empresa, sindicatos, associações religiosas, de
bairro etc.) agregando numa unidade interesses plurais, principalmente da classe
operária, de forma organizada de "baixo para cima", o que conformaria o "sujeito
político coletivo"; também reforçaria as formas de democracia indireta (parlamento
e cena político-partidária), de forma a constituírem uma síntense política dos
sujeitos coletivos. Uma advertência é feita porém: estes mecanismos de democracia
direta e indireta não poderiam resultar na burocratização proletária do Estado, pois
a ideia era ter um autogoverno dos produtores associados com o fim da alienação
política. O povo deveria ser visto como um conjunto e não governado por um grupo
"acima da sociedade".
Para Coutinho (1979), tal processo de democratização em novas bases pressupõe a
negação da falsa identidade entre "gênese e validade" da democracia. A explicação
de "democracia como um valor universal de Carlos Nelson Coutinho advém do fato
de o conceito de democracia, formalmente, não depender do momento e da
sociedade de sua origem. As qualidades que o sistema democrático impõe na
intensificação da vida política das massas seriam o que tornam a democracia
"universal", valendo em distintas formações sociais como um princípio a ser
atingido. Isto teoricamente, permitiria a possibilidade de suprassunção da
democracia liberal em democracia socialista. Portanto, a democracia socialista
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 28
requer mais que socialização dos meios de produção, mas uma verdadeira
socialização da política com a superação da antinomia entre governantes e
governados, elemento fundante da política segundo Gramsci (Coutinho, 2011).
O ponto da análise propositiva de Coutinho que gerou muita polêmica foi sua crença
de que as possibilidades de transformação da democracia a partir da distensão do
regime civil-militar estariam, num primeiro momento, circunscritas aos limites da
democracia liberal, pois o processo de renovação democrática seria lento e gradual.
As raízes disso estariam no fato de a fonte da fraqueza democrática brasileira estar
na tradição de soluções prussianas, a qual aliada à marca da antidemocracia, geraria
uma barreira temporária para a renovação democrática que ficaria ainda por um
certo tempo sob hegemonia de monopólios nacionais e internacionais12.
Tal análise da democracia brasileira, leva Coutinho ao seguinte diagnóstico de
bifurcação para a abertura que se mostrava iminente:
Embora no quadro de uma busca permanente da máxima unidade
possível, é certo que se alterarão - em função das tarefas concretas - a
natureza e a amplitude das alianças visadas pelas forças populares. De
modo esquemático, poderíamos dizer que as tarefas da renovação
democrática desdobram-se em dois planos principais. Em primeiro lugar,
lógica e cronologicamente, trata-se de primeiro conquistar e depois
consolidar um regime de liberdades fundamentais, para o que se torna
necessária uma unidade com todas as forças interessadas nessa conquista
e nas permanências das "regras do jogo" a serem implantadas por uma
Assembleia Constituinte dotada de legitimidade.
E, em segundo, trata-se de construir as alianças necessárias para
aprofundar a democracia no sentido de uma democracia organizada de
massas, com crescente participação popular; e a busca de unidade, nesse
12 Esta proposição, como será visto, será fundante do programa democrático-popular e está
relacionada à não superação da estratégia de revolução nacional-democrática do PCB.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 29
nível terá como meta a conquista do consenso necessário para
empreender medidas de caráter antimonopolista e anti-imperialista e,
numa etapa posterior, para a construção em nosso País de uma sociedade
socialista fundada na democracia política (COUTINHO, 1979: 45-46).
A primeira abertura, de busca de unidade das forças que buscavam o fim do regime
de exceção, foi crucial para atingir o conjunto de liberdades citado para a garantia
de um regime estabelecido pela Assembleia Consituinte após findado o regime civil-
militar. Como afirma Neves (2016), na década de 1980 havia um compromisso
sincero, indenpendente de posição de classe, com a "democracia".
O segundo caminho, de construção de alianças que construiriam o rumo para a
democracia de massas, é o que parece dispontar como ponto de maior polêmica do
texto. Se tanto para economia política crítica e para a teoria política crítica, com as
quais o autor tanto se referencia, as contradições da sociedade capitalista estão
postas nas irreconciliáveis lutas de classe, econômicas e políticas, a construção de
alianças para orientar a democracia liberal para a democracia de massas seria uma
tarefa cheia de dificuldades. Para Coutinho, a passagem pela agenda democrático-
popular era uma necessidade para a chegada na "sociedade regulada" de Gramsci
ou, simplesmente, na democracia socialista. Portanto, para o autor, a democracia é
um processo (Neves, 2016). Em suma, se se usa conceitos de gramscianos, Carlos
Nelson Coutinho no período da redemocratização priorizou a busca pela hegemonia
política pela via da "guerra de posição" do que o reforço da estratégia socialista pela
"guerra de movimento", Iasi (2017).
Um dos maus usos do conceito de "democracia como valor universal" foi a
apropriação por setores da esquerda que se estavam movimentando para dentro da
ordem burguesa. Assim, Coutinho propôs, posteriormente, a substituição do título
de seu trabalho por "democratização como valor universal", a ideia é que a
democracia ou a democratização são um caminho necessário a atingir o socialismo,
pois as condições objetivas e subjetivas para emergência deste não estariam postas
(Martins et alli, 2014).
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 30
A discussão das perspectivas sobre a democracia brasileira encontrariam
materialidade no começo da década de oitenta com a criação do Partido dos
Trabalhadores. A interpretação e o uso que tal partido faz desta categoria é
significante para sua ação como partido de organização política dos trabalhadores e
para se entender os limites que se colocaram ao partido como instrumento de
transformação social emancipatório da classe trabalhadora.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 31
7 Conclusão: democracia como instrumento de acomodação à ordem burguesa
Iasi (2013) e Neves (2016) fazem uma importante recapitulação de como a
democracia foi o centro de orientações equivocadas, segundo o marxismo, para a
obtenção de um autogoverno dos produtores associados. Antes de expor a maneira
como o PT lidou com a abertura política, eles citam as semelhanças do uso
programático, pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), da democracia burguesa
como "campo privilegiado de luta em direção ao socialismo".
Segundo Iasi (2013), a utilização, por parte do PCB, das orientações do VI Congresso
da III Internacional comunista em 1928 teria uma influência problemática e de
"gravíssimas consequências políticas" para os rumos do programa nacional-
democrático. Conforme Neves (2016), as orientações da Internacional Comunista se
consolidariam com a estratégia nacional-democrática vigentes no Brasil desde
1935. Seu conteúdo está explícito na Declaração de Março de 1958 do PCB.
A ideia era a seguinte: havia, segundo orientações daquele Congresso, a ideia da
necessidade de uma longa passagem ou etapa de transição entre o desenvolvimento
capitalista dependente, de colônias e semi-colônias, em direção ao capitalismo
avançado para, então, exisitirem condições objetivas e subjetivas rumo a transição
ao socialismo. A imposição da necessidade de florescimento de condições mínimas
de transição num futuro não bem definido foi o mote da intervenção da
Internacional nos partidos comunistas de todo o mundo.
Como país enquadrado no perfil de capitalismo dependente, a revolução nacional-
democrática do PCB se pautaria pela intensificação da democracia burguesa a fim
de superar os resquícios feudais ou semifeudais que, segundo a Internacional,
subsistiam aqui para só quando consolidada esta levantar a bandeira de uma
revolução do tipo socialista. O principal proponente das teses do PCB foi Nelson
Werneck Sodré que recebeu duras críticas de Caio Prado Júnior sobre o caráter
dependente da orientação comercial do capitalismo brasileiro. Para ambas
interpretações, como para outros teóricos da revolução nacional-democrática, a
formação da Nação era algo imprescindível para o desenvolvimento.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 32
Conforme apontam Iasi (2013) e Neves (2016), as teses do PCB mostravam o
caminho da revolução nacional-democrática como democrático-burguesa, anti-
imperialista, antimonopolista e antilatifundiária a fim de eliminar resquícios
disfuncionais ao capitalismo e, logo, a transição ao socialismo. Ao dar esta orientação
de necessidade de concretização da revolução burguesa, o PCB imaginava que se
"acumulariam as forças" necessárias para que estivessem postas as condições para
a transição socialista. Daí a importância de uma burguesia nacional, supostamente
com interesses anti-imperialistas, anti-feudais e nacionais. Assim, a tarefa do
proletariado na revolução nacional-democrática seria, em última instância, lutar
pelo desenvolvimento capitalista no Brasil. Só depois, num futuro não vislumbrável,
poderia pôr em marcha a mudança socialista.
Segundo Neves (2016), desta interpretação do PCB advinham duas situações
problemáticas: i) a falta de percepção da especificidade das formações sociais
dependentes, que tendem a reproduzir a dependência externa e segregação social
interna indefinidamente, levava a uma caracterização algo progressista e positiva
do capitalismo como modernizador; ii) o acúmulo de forças necessárias ao câmbio
socialista deveria vir do reforçamento do capitalismo. Estes pontos problemáticos
ajudam a explicar, de acordo com Schwarz (1970), a lentidão e a letargia dos setores
de esquerda no interior do PCB quando do golpe de 1964. Eles tinham certa
esperança que o aparato civil-militar poderia promover esta eliminação dos
entraves ao capitalismo que levaria à revolução socialista. Um erro de interpretação
de proporções gigantescas que se traduziu em conciliação com os setores burgueses
e dominantes da sociedade.
Esta digressão sobre a orientação dada pelo PCB à revolução nacional-democrática
é importante para diferenciá-la do papel do PT. Este partido foi fundado em 1980
com a retomada da luta sindicial e operária no período em que as teses de Florentan
Fernandes e de Carlos Nelson Coutinho sobre o fracasso da revolução nacional-
democrática e sobre os rumos da democracia brasileira estavam na ordem do dia.
Vale lembrar que ambos autores participaram do movimento entitulado de "Nova
Esquerda" de crítica aos limites do PCB e foram intelectuais ativos na criação do PT
e das formulações do programa democrático-popular, sendo ambos duros críticos
de algumas posições do novo partido.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 33
Como explorado por Iasi (2013), o PT surgiu tentando se diferenciar do PCB
negando sua estratégia revolucionária e tentando estabelecer uma linha
programática própria. Já no seu V Encontro Nacional em 1987, os dirigentes do PT
deixaram claro que, nas suas formulações, descartariam o caráter nacional,
indicando que a aliança com a burguesia brasileira seria espúria na medida em que
em nada contribuiria para o atingimento da meta final do partido: a introdução do
socialismo.
Em Iasi (2012), fica claro como as proposições iniciais do PT eram superficiais. Em
1986, no seu IV Encontro, os participantes do partido tinham delineado sua visão
sobre a meta socialista. Porém, conforme lembra Neves (2016), tal meta também
existia no PCB e, até mesmo, na proposta da social-democracia europeia (pelo
menos até 1959). Outro aspecto desta superficialidade é a existência de uma
diagnóstico da necessidade do acúmulo de forças (a expressão é a mesma usada pelo
PCB) para atrair e não afastar pequenos setores médios, a pequena burguesia
urbana e rural. Portanto, a estratégia do PT estava desde o seu surgimento
embrenhada de permanências com a estratégia do PCB, dentre as quais a mais
explícita é justamente a teoria da etapa nacional e democrática com acúmulo de
forças com outras classes para realizar a "transição para a transição".
Neves (2016: 484) portanto chega a formular:
O que importa aqui, é que o pressuposto é o mesmo, e inscreve-se num
marco fundamental que, uma vez atravessado - tão cedo como 1986 -
permitiu que o PT viesse a reproduzir, ao longo de todo o
desenvolvimento posterior de sua estratégia para a revolução brasileira,
o mesmo elemento fundamental a informar o limite da estratégia do PCB
e, com ele, sua dificuldade de servir de fato como base teórica para uma
armação política coerente com a transição socialista: esse pressuposto é a
necessidade de se desenvolver o capitalismo para que se pudesse transitar
ao socialismo.
A estratégia democrático-popular levou o PT cada vez mais perto dos setores
burgueses da sociedade em prol do acúmulo de forças necessário, segundo sua
formulação de 1986, para a transição ao socialismo. Acontece que o quadro de classe
mobilizada e em avanço nos anos pós ditadura encetou as possibilidades de ganhar
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 34
espaços e posições no interior executivo do Estado burguês. Todavia, esta tomada
de posições nunca engendrou, segundo o núcleo administrativo do partido, o início
às transformações socialistas estabelecidas como meta final na formulação inicial do
PT. Igual aos anos de PCB e de sua revolução nacional-democrática, as condições
para a mudança foram sempre consideradas insuficientes pelo PT. Longe de estarem
amadurecidas, era sempre necessário a intensificação na "guerra de posição" no
interior do Estado burguês. Porém é necessário frisar que o contexto de atuação do
PT é radicalmente distindo do PCB.
Assim que possível, o partido viu a necessidade de governar e isto, no Estado e
sociedade burgueses, só foi possível para um partido como o PT com alianças. Então
o "presidencialismo de coalizão" passou a ser defendido em prol da governabilidade
em si mesma e não tendo o objetivo final como horizonte de chegada. A estratégia
de ação do PT, portanto, foi de atingir novas formas de manter o status quo sem abrir
mão do programa originário, mas sem perspectiva nenhuma de cumpri-lo.
Ironicamente a cooptação foi exercida em sua forma plena, com a "abertura para
baixo" por um partido de base social trabalhadora que sofreu o que Gramsci
chamaria de transformismo: um processo de absorção gradual e contínua dos
setores aliados e inimigos, aparentemente irreconciliáveis, por meio de variadas
técnicas. Nos governos de Sarney, Collor e FHC isto não fora possível, pois não
tinham o mesmo apelo popular que Lula obteria junto às massas. Ao assumir a linha
de menor resistência de conciliação e apassivamento da luta de classes e rendição
total aos princípios neoliberais do Plano Real, o PT se tornou o que Sampaio Jr.
(2017) chamou de o partido da esquerda da ordem, reproduzindo a dependência e
o subdesenvolvimento típicos do capitalismo dependente.
Iasi (2013: 33) nos remete a Florestan Fernandes quando afirma precisamente:
A situação real de governo apenas aprofunda a contradição. As alianças
necessárias para ganhar não são suficientes para governar e se ampliam
para além do centro, para a direita do espectro político. Segue-se nova
moderação programática e finalmente a rendição ao pragmatismo.
As alianças e programa se mostram, dessa forma, secundários em relação
ao acúmulo de forças. A mediação democrática é mais essencial que seu
caráter popular. Não por acaso, nas formulações o termo forte passa a ser
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 35
"uma revolução democrática", caindo para segundo plano o qualificativo
popular.
Há alguma proximidade da estratégia democrática-popular do PT com a estratégia
nacional-democrática do PCB pelo fato de ambas perceberem insuficiências no
capitalismo brasileiro, em sua infraestrutura e superestrutura, que fazem com que
seja necessária a intensificação da democracia burguesa para qualquer pretensão de
câmbio socialista. Entretanto é necessário ressaltar suas diferenças, o PCB nunca
chegou ao poder e, portanto, tampouco esteve tão umbilicalmente relacionado com
alianças tão espúrias como esteve o PT.
A cooptação se baseia no pacto e aliança de classes e frações de classe, uma
verdadeira "revolução das técnicas da contrarrevolução" (FERNANDES, 1981b: 10).
A estratégia do PT nada mais foi do que se acomodar aos marcos da democracia
burguesa cooptando os setores médios e altos, o que garantiu os patamares de
acumulação de capitais, enquanto a crise mundial não se fazia sentir tão
intensamente por aqui dado o "efeito China", e enquanto a domestificação das
classes tuteladas com emprego, com consumo de massas e com programas
assistenciais focalizadas de massa pôde vigorar. Conforme alertou Grasmci (1934),
o conseno vem da fábrica, do cotidiano das relações de trabalho dos trabalhadores
e da racionalização do processo produtivo e da consciência social, necessitando de
poucos intermediários profissionais e ideológicos para atuar como ator do
apassivamento da luta de classes conjuntamente com a força que neutraliza os
sindicatos e outras formas de organização dos trabalhadores. Os mecanismos para
a "democracia de cooptação com abertura para baixo" de que alertara Florestan
Fernandes foram postos em prática de forma a reproduzir a tutela dos dominantes
sobre os dominados com o reforço do Estado autocrático burguês, casando as duas
perspectivas colocadas pelo sociólogo.
O reforço da autocracia burguesa também parece ter sido um acerto do sociólogo
brasileiro, pelo menos no período de governo do PT. E como previra o sociólogo em
citação referida acima, a democracia de cooptação instaurou a instabilidade neste
Estado, numa "tensão permanente e autodestrutiva de silenciosa paz armada". Vale
lembrar que em "O que é Revolução?" (Fernandes, 1981b) já alertava sobre os riscos
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 36
do oportunismo e do populismo da "social-democratização" dos partidos que se
propõem a mudar a ordem.
O PT optou por um longo processo de conciliação de classes, mas que chegou a um
ponto de saturação quando se pensa nas possibilidades de o PT estreitar laços
novamente com sua base social trabalhadora devido ao desgaste de seu processo de
transformismo, conforme hipótese de Antunes (2017). Segundo Iasi (2016), o
contexto atual de governo de Michel Temer é de rumo a uma nova ditadura. Porém
não naquela forma civil-militar da contrarrevolução preventiva com Estado de
exceção repressor, senão um novo tipo cercado de legalidade jurídica e com a
aparência de possibilidades de alternância política como se o Estado de Direito
estivesse preservado, mas que na verdade torna o Estado de exceção uma regra. As
formas institucionalizadas de democracia teriam entrado em confronto com os
interesses da classe dominante dando forma a um novo tipo de ditadura que
sintetiza a totalidade entre coerção e consenso, mas que como em todas as ditaduras
repousam sob as modernas relações sociais de produção capitalista em graus
distinto de desenvolvimento.
Segundo o autor, o momento de crise não é único ao Brasil, está no centro capitalista
e na sua periferia se traduzindo em barbárie, negando a possibilidade dos meios de
consenso atuarem efetivamente. A relação entre forma de Estado e conteúdo de
Estado se torna obscura no regime burguês, encobrindo graus distintos de
autoritarismo, de representatividade e de violência. Para ele o Estado se baseia na
criação e superação de equilíbrios instáveis sem, entretanto, poder esconder sua
substância de classe.
Iasi (2016) levanta um ponto interessante quando afirma que a derrota do PT, com
o golpe de 2015-2016, representa uma instabilidade nova na ordem. Não por
contestações "de fora da ordem", mas sim por ter intestinamente uma convulsão de
interesses díspares disputando o núcleo da dominação burguesa. Segundo Mauro
Iasi, as burguesias não estão num momento de consenso burguês de solidariedade
de classes e isto ainda gerará instabilidades impresíveis na política, economia e
sociedade brasileiras. Esta mesma hipótese é defendida em Pinto et alli (2017) ao
afirmarem que a atual crise de acumulação e de poder burguesas está se
manifestando numa espécie de guerra fratricida pelas frações de classe burguesas
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 37
no interior do Estado. Isto é, porém, um ponto de diferença em relação à
interpretação de Sampaio Jr. (2017), para quem o conflito fratricida burguês é
normal ao regime capitalista, mas condicionado por um padrão de dominação
concertado e conformado a ser pouco suscetível à mudança.
Embora haja certa divergência entre, de um lado, Iasi (2016) e Pinto et alli (2017) e,
de outro Sampaio Jr. (2017) de outro, sobre se as burguesias brasileiras atuam de
forma monolítica ou não no momento atual de crise, há convergência sobre o caráter
burguês do Estado e na caracterização das burguesias brasileiras serem
fundamentalmente burguesias dos negócios, conformando uma grande feitoria
moderna marcada por instabilidade política, econômica e social.
Uma conclusão é que a democracia de cooptação chegou ao ponto de saturação nas
"jornadas de 2013". A confusa relação entre o público e o privado trouxe a
corrupção, mais uma vez, ao debate de democracia no Brasil. O hábil controle que a
mídia e o Estado execem sobre as manifestações como se fossem apartidárias e "sem
bandeira" mostra como a manutenção da ordem é o que une as classes dominantes.
A greve, em todo o país, no dia 28 de Abril de 2017 foi um ponto de inflexão para a
instabilidade do governo Temer, porém as cúpulas do Estado (nas sociedades civil e
política) trataram de assumir uma postura de controle desta instabilidade
principalmente por meio da delação premiada de Joesley Batista, a fim de esvaziar o
poder dos movimentos populares. Atualmente, o uso do aparato judiciário-legal é o
instrumento de ordem do Estado e sujeito do capital correspondente ao que foi a
tecnocracia militar do regime de 1964.
Como fenômeno superficial que esconde o substrato de luta de classes da sociedade
burguesa, a forma política desta democracia varia entre a cooptação e o
esmagamento das classes trabalhadoras. O que se pode afirmar com o efetivo fim da
"Nova República" é que, apesar de autoritária, a nova forma política e as bases que
emergirão para o Estado brasileiro ainda são amorfas. Se não forem superados os
dilemas da segregação social interna e dependência externa que reproduzem o
subdesenvolvimento, a democracia brasileira continuará alienando a maioria da
população das esferas decisórias da política, da economia e da cultura, pois o capital
mesmo em momentos de crises sérias encontra novas formas para execer seu poder
de dominação. Parafraseando Giuseppe di Lampedusa em Il Gattopardo de 1958:
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 38
"tudo deve mudar para que tudo fique como está". Se esta nova forma política que
está por emergir seguir plutocrática, ainda não se poderá falar de democracia de
massa ou plena participação popular em todas esferas de sociabilidade humana no
Brasil, mas somente em democracia para "os mais iguais": a tradição brasileira.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 39
Referências Bibliográficas
ANTUNES, Ricardo. Nossas classes dominantes sempre oscilaram entre a conciliação
e o golpe. Entrevista ao sítio Esquerda Diário. Disponível em
http://esquerdadiario.com.br/ideiasdeesquerda/?p=126. Acessado em
16/06/2017, 2017.
AYERS, Alison & SAAD-FILHO, Alfredo. "Democracy against neoliberalism:
paradoxes, limitations, transcendence". Critical Sociology. V.41. pp.581-596, 2015.
BANDEIRA, Monis et alli. O ano vermelho: a revolução russa e seus reflexos no Brasil.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988
[2000].
BOULOS, Guilherme. Ofensiva conservadora, condusão estratégica: o duplo desafio da
esquerda brasileira. Entrevista ao sítio Le monde diplomatique Brasil. 2017.
Disponível em: http://diplomatique.org.br/o-duplo-desafio-da-esquerda-
brasileira/. Acessado em janeiro de 2017, 2017.
COUTINHO, Carlos. "A democracia como valor universal: notas sobre a questão
democrática no Brasil". Rio de Janeiro: Revista Encontros com a civilização
brasileira. n.9. pp.33-47, 1979.
____. De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política. São Paulo: Boitempo editorial,
2011.
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1968 [1981a].
____. A revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação Sociológica. São Paulo:
Editora Globo, 1975 [2011].
____. O que é revolução? São Paulo: Editora Brasiliense, 1981b.
____. Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo hoje. São Paulo: Editora Globo,
1984.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 40
FILHO, Niemeyer & PAULANI, Leda. "Regulação social e acumulação por espoliação
- reflexão sobre a essencialidade das teses da financeirização e da natureza do
Estado na caracterização do capitalismo contemporâneo". Campinas: Economia e
sociedade. V.20. pp.243-272, 2011.
FONTES, Virginia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2010.
GRAMSCI, Antonio. Cardenos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. v.3 e
v.4, 1934 [2011].
HEINRICH, Michael. "Marx`s State theory after 'Grundrisse' and 'Capital'". Atenas.
(no prelo), 2007.
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das
letras, 2011.
HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1936 [1995].
IANNI, Octávio. "As raízes da anti-democracia na América Latina". Lua Nova: Revista
de Cultura e Política. São Paulo: Lua Nova, n. 14, pp.17-22, 1988.
IASI, Mauro. As metamorfoses da consciência de classe. São Paulo: Expressão Popular,
2012.
____. "O PT e a revolução burguesa no Brasil". Marília: Editora Unesp. (no prelo),
2013.
____. O caminho da ditadura. Texto publicado no blog da Boitempo. Disponível em:
https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/24/o-caminho-da-ditadura/. Acessado
em 08/12/2016, 2016.
____. Política, Estado e Ideologia na trama atual. Sao Paulo: Instituto Caio Prado
Júnior, 2017.
JINKINGS Ivana et alli (organizadores). Por que gritamos golpe? São Paulo:
Boitempo editorial. 2016.
MALTA, M. "Liberdade e democracia: agenda socialista ou liberal?" In: IV
Conferencia Internacional "La obra de Carlos Marx y los desafíos del siglo XXI. Cuba.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 41
Disponível em:
https://www.nodo50.org/cubasigloXXI/congreso08/conf4_mellom.pdf, 2008.
MARTINS, Caio et alli. "A "estratégica democrática e popular" e um inventário da
esquerda revolucionária". Rio de Janeiro: Marx e o marxismo. v. 2. n.3. pp.382-403,
2014.
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo editorial, 1852
[2011].
____. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo editorial, 1875 [2012].
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia
alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão
em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo editorial,1846 [2007].
____. "Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas". Texto disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm.
Acessado em 16/06/2017, 1850.
MÉZSÁROS, István. Para além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
NETTO, José Paulo. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). São Paulo:
Cortez Editora, 2014.
NEVES, Victor. Democracia e revolução: um estudo do pensamento político de Carlos
Nelson Coutinho. Tese de doutorado em Serviço Social — Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2016.
PINTO, Eduardo et alli. "A guerra de todos contra todos: a crise brasileira". Texto
para discussão 006/2017. Rio de Janeiro: Instituto de Economia da UFRJ. Grupo de
Análise Marxista Aplicada, 2017.
POULANTZAS, Nico. O Estado, o poder, o socialismo. Riode Janeiro: Graal, 1978.
PRADO JR., Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966 [2004].
SAAD-FILHO, Alfredo. "Crise no neoliberalismo ou crise do neoliberalismo?"
Uberlândia: Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.1. n.3. Edição especial -
Dossiê: A crise atual do capitalismo, 2011.
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 42
SAMPAIO JR., Plínio. Entre a nação bárbarie: os dilemas do capitalismo dependente
em Caio Prado, Florestan e Celso Furtado. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
____. Crônicas de uma crise anunciada: crítica à economia políitica de Lula e Dilma. São
Paulo: SG-Amarante, 2017.
SAWAYA, Rubens. Dependência e subordinação: capital transnacional nas
estruturas do Estado. Trabalho apresentado no XXI Encontro Nacional de Economia
Política. São Bernardo do Campo, 2016.
SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1970 [2008].
SINGER, André. "Cutucando a onça com vara curta". São Paulo. Novos Estudos.
CEBRAP. n.102, 2015.