Post on 22-Aug-2020
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
MESTRADO ACADÊMICO EM SAÚDE COLETIVA
EMANUELLA CAJADO JOCA
O TEATRO DO OPRIMIDO COMO TECNOLOGIA DO CUIDADO EM SAÚDE
MENTAL
FORTALEZA - CEARÁ
2017
EMANUELLA CAJADO JOCA
O TEATRO DO OPRIMIDO COMO TECNOLOGIA DO CUIDADO EM SAÚDE
MENTAL
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado
Acadêmico em Saúde Coletiva do Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Centro
de Ciências da Saúde da Universidade Estadual
do Ceará, como requisito parcial à obtenção do
título de mestre em Saúde Coletiva. Área de
Concentração: Saúde Coletiva.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Rocineide
Ferreira da Silva
FORTALEZA - CEARÁ
2017
EMANUELLA CAJADO JOCA
O TEATRO DO OPRIMIDO COMO TECNOLOGIA DO CUIDADO EM SAÚDE
MENTAL
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
Acadêmico em Saúde Coletiva do Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Centro
de Ciências da Saúde da Universidade Estadual
do Ceará, como requisito parcial para à
obtenção do título de Mestre em Saúde
Coletiva. Área de Concentração: Saúde
Coletiva.
Aprovada em: 19 de dezembro de 2017.
BANCA EXAMINADORA
AGRADECIMENTOS
“E aprendi que se depende sempre
De tanta, muita, diferente gente
Toda pessoa sempre é as marcas
Das lições diárias de outras tantas pessoas
E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente
vá
E é tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense es-
tar”
(Gonzaguinha)
Como dissera, os poetas Milton Nascimento e Tunai “Certas canções que ouço/cabem tão
dentro de mim/Que perguntar carece/Como não fui eu quem fiz?”. Assim é com a poesia de
Gonzaguinha que faz tanto sentido em minha existência. Sou grata à vida por todas as belas
experiências que ela tem me proporcionado, as amizades que tenho vivido e aos amores de
minha vida. Certamente o encontro com o pensamento de Augusto Boal foi algo transformador
e mesmo sentindo-me acanhada busco ousar. Portanto, sou grata pela alegria deste encontro.
Á quem me apresentou a sua obra, que foi a minha primeira grande mestra e também amiga, a
professora Angela Maria Dias Fernandes com quem tive a alegria de iniciar na Psicologia com
autonomia. E como essa Anja, outras fui encontrando e foram Ângela Souza, Ângela Linhares
e, por mais que não tenha o mesmo nome, Rocineide foi sempre angelical em sua orientação.
Minha gratidão a Maria Rocineide Ferreira da Silva, querida orientadora, por sua acolhida,
cuidado e orientações afetuosas. Minha gratidão, a essas incríveis mulheres com as quais tive o
prazer de compartilhar momentos significativos de viver e essa aprendizagem carrego comigo,
que diz que nos caminhos da vida precisamos cuidar de nós e dos outros.
À Cecilia Thumin por me receber em sua casa e apresentar o acervo do Instituto Boal, além de
conversar acerca de sua experiência em Paris nos hospitais Psiquiátricos.
À turma de mestrado PPSAC 2016/2017 com os quais dividimos momentos de festividades,
angústias, conquistas, desafios e ousadias. Em especial gratidão às zamigas, que carregarei no
coração.
Ao Laboratório de Práticas Coletivas em Saúde - LAPRACS e sua acolhida carinhosa, junto
aos professores, além da querida Rocineide, Augusto Torres e Lucilane Sales da Silva.
Às queridas pessoas da Saúde Mental de Fortaleza que toparam imbricar caminhos e nesse
processo montar imagens flores/jardineiras, construindo um conhecimento acerca do Teatro do
Oprimido. À Fundação Silvestre Gomes, ao Bloco Doido é Tu e à Eliza Günter pelo apoio.
Às trabalhadoras residentes e preceptoras da Residência Multiprofissional da Escola de Saúde
Pública do Ceará, turma 2013/2015. Que sempre acolheram a proposta do TO com entusiasmo,
especialmente minha querida amiga Clarissa Dantas pelas escutas, sugestões e apoio durante
todo o processo de mestrado.
Aos mestre Nei Xiu e Ana Claudia Dutra, que na senda do Yoga me ajudaram a manter “a
mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”.
Aos meus maiores amores, aqueles com os quais compartilho o viver repleto de diferentes
nuances. Ao meu companheiro João Ernani Filho e aos meus queridos filhos, Ermínio e Estela.
Além de minha mãe e pai, Lucimar Cajado e Geronimo Filho, que acompanham vibrando cada
passo. Aos meus irmãos Jeronimo e Gabrielle Cajado pelo carinho fraterno.
Mas minha gratidão é maior do que cabe nessas letras. São muitas as marcas em meus caminhos
e como disse o poeta a gente é tanta gente onde quer que vá, portanto, sou grata a estas citadas
e as outras tantas que mesmo presentes não foram citadas.
“A imagem é ficção, mas quem transforma não
é. Penetrando nesse espelho, o ato de
transformar transforma aquele ou aquela que o
pratica. Um poeta se faz poetando, um escritor
escrevendo, um compositor compondo, um
professor ensinando e aprendendo, um Curinga
curingando – um cidadão se faz agindo social,
política e responsavelmente. O Ato de
transformar é transformador.”
(AUGUSTO BOAL, 2009, p.233).
RESUMO
O Teatro do Oprimido como Tecnologia de cuidado em Saúde Mental é o foco desse estudo
que consiste em uma pesquisa-intervenção com o objetivo geral de compreender os significados
produzidos com a experiência do Teatro do Oprimido na estratégia da Atenção Psicossocial.
Especificamente descreve como o Teatro do Oprimido tem sido utilizado na Política de Saúde
Mental brasileira, analisa como a proposta ético-estética sistematizada por Augusto Boal insere-
se como uma tecnologia do cuidado no modo psicossocial e estuda os significados formulados
por usuários e trabalhadores à prática do Teatro do Oprimido na saúde mental e analisa como a
experiência do Teatro do Oprimido permite pensar limites e possibilidade da Atenção
Psicossocial. Metodologicamente está ancorado na Epistemologia Qualitativa de Gonzalez Rey
(2002; 2015) e tem como referencial principal o pensamento de Augusto Boal. Trata-se de
pesquisa com abordagem qualitativa e os participantes são sujeitos ligados à política de saúde
mental, entre usuários, familiares e trabalhadores. Para construção de informações foram
constituídos os seguintes momentos: Diário de Campo; Oficina de Conversação Coletiva com
os trabalhadores; Entrevistas Individuais com participantes de Teatro do Oprimido e Oficina
de restituição da pesquisa. Essa investigação foi submetida ao Comitê de Ética/Universidade
Estadual do Ceará (CEP/UECE) e aprovada sob o número 1.978.556. Os resultados da pesquisa
empírica corroboraram com a bibliografia levantada no estudo que afirma que o Teatro do
Oprimido como tecnologia social presente na Política Nacional de Saúde Mental tem
estimulado a expressividade, o protagonismo social bem como o diálogo entre os campos
manicomiais e antimanicomias. Analisando a abordagem teórico-metodológica do Teatro do
Oprimido e os significados subjetivos ressaltados ao longo deste estudo algumas categorias
foram elencadas. Através da conversação dos pesquisatores-trabalhadores foram pontuadas
quatro (4) categorias: compreensões sobre o Teatro do Oprimido na Saúde Mental; Proposição
teórico-prática do Teatro do Oprimido; Trabalho em Saúde Mental; e a experiência com a
oficina de conversação coletiva. Quando em conversação com usuários participantes de Teatro
do Oprimido foram elencadas duas (2) categorias: a participação em atividades envolvendo o
Teatro do Oprimido e as experiências com as técnicas do Teatro do Oprimido. Considerando
as colocações das pessoas entrevistadas o ponto principal foi a possibilidade de expressão e
relação com um público (com o outro), bem como dizer de si de forma magnificada e artística.
A partir destas elaborações partiu-se para a análise coletiva das ponderações realizadas na
investigação, o que foi proposto na oficina de restituição. Nesse sentido, três categorias foram
9
delineadas: sofrimento/doença/medicamentos; o campo da Saúde Mental e o Hospital
Psiquiátrico e expressão e Teatro do Oprimido. Esse estudo ressaltou a importância de
problematizar as práticas de atenção à saúde em processo no Brasil, buscando fortalecer o
cuidado dos sujeitos em sofrimento psíquico grave para que possam ser protagonistas na
condução de suas vidas, e além da construção de uma política pública de saúde que acolha a
diversidade de necessidade de saúde da população bem como seja calcada em direitos humanos
plenos. O Teatro do Oprimido como tecnologia de cuidado em saúde mental demonstrou sua
amplitude político-terapêutica de transformação e mobilização de modos cristalizados.
Palavras-Chave: Saúde Mental. Teatro do Oprimido. Práticas de Cuidado. Arte.
ABSTRACT
The Theater of the Oppressed as Technology of care in mental health is the focus of this study
which consists of an intervention research with the general objective of understanding the
meanings produced with the experience of the Theater of the Oppressed in the strategy of
Psychosocial Attention. Specifically, it describes how the Theater of the Oppressed has been
used in the Brazilian Mental Health Policy, analyzes how the ethical-aesthetic proposal
systematized by Augusto Boal is inserted as a care technology in the psychosocial way and
analyzes how the experience of the Theater of the Oppressed allows to think limits and
possibility of Psychosocial Attention. Methodologically it is anchored in the Qualitative
Epistemology of Gonzalez Rey (2002, 2015) and has as main reference the thought of Augusto
Boal. It is a research with a qualitative approach and the participants are subjects linked to the
mental health policy among users, family and workers. For the construction of information the
following moments were constituted: field diary; Workshop of Collective Conversation with
workers; Individual interviews with participants of the Theater of the Oppressed and Workshop
for the return of the research. This investigation was submitted to the Ethics Committee/State
University of Ceará (CEP/UECE) and approved under number 1.978,556. The results of the
empirical research corroborated with the bibliography raised in the study that affirms that the
Theater of the Oppressed as social technology present in the National Policy of mental health
has stimulated expressiveness, social protagonism as well as the dialogue between the asylum
and anti-asylum. Analyzing the theoretical-methodological approach of the Theater of the
Oppressed and the subjective meanings highlighted throughout this study, some categories were
listed. Through the conversation of the researcher-workers, four (4) categories were listed:
understandings about the Theater of the Oppressed in Mental Health; Theoretical and Practical
Proposition of the Theater of the Oppressed; Work in Mental Health; and experience with the
collective conversation workshop. When in conversation with users participating in Theater of
the Oppressed, two (2) categories were listed: participation in activities involving Theater of
the Oppressed and experiences with Theater of the Oppressed techniques. Considering the
positions of the people interviewed the main point was the possibility of expression and relation
with one public (with the other), as well as to say of itself in a magnified and artistic way. From
these elaborations, we set out to the collective analysis of the weights carried out in the
investigation, which was proposed in the restitution workshop. In this sense, three categories
were outlined:
suffering/illness/medicines; the field of Mental Health and the Psychiatric Hospital; and
expression and Theater of the Oppressed. This study emphasized the importance of
problematizing the health care practices in process in Brazil, seeking to strengthen the care of
the subjects in severe psychic suffering so that they can be protagonists in the conduct of their
lives and beyond in the construction of a public health policy that welcomes the diversity of the
population's health needs as well as being based on full human rights. The Theater of the
Oppressed as a technology of care in mental health demonstrated its political-therapeutic
amplitude of transformation and mobilization of crystallized modes.
Keywords: Collective Mental Health. Theatre of the Oppressed. Care practices. Art.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Árvore do Teatro do Oprimido ................................................................. 41
Figura 2 Imagem explicativa dos momentos do processo de construção de
inteligibilidade da investigação: O Teatro do Oprimido como tecnologia
de cuidado em Saúde Mental .................................................................... 50
Figura 3 Imagem da etiqueta de selagem do envelope com lembrete acerca da data
do encontro de Conversação Coletiva com trabalhadores-pesquisadores
...................................................................................................................... 51
Figura 4 Imagem do material completo disponibilizado aos trabalhadores-
pesquisadores como dispositivo de conversação ...................................... 51
Figura 5 Fotografia da apresentação do Grupo de Teatro do Oprimido montado
no CAPS Geral SR IV, durante o Projeto Teatro do Oprimido na Saúde
Mental de Fortaleza, 2014 ......................................................................... 57
Figura 6 Fotografia da cena apresentada no encerramento das atividades do
Grupo de Teatro do Oprimido do CAPS Geral SR IV formado no Projeto
Teatro do Oprimido na Saúde Mental de Fortaleza 2014 ...................... 57
Figura 7 Imagem desenhada por Lírio Casablanca como proposição de Logo para
o GTO ......................................................................................................... 60
Figura 8 Imagem impressa em uma camisa por Lírio Casablanca ........................60
Figura 9 Fotografia de um dos encontros do GTO Sociedade CAPS ................... 61
Figura 10 Apresentação do espetáculo Amarga Ceia no Teatro José de Alencar em
18 de Maio de 2018 ..................................................................................... 65
Figura 11 – Pintura de Lírio Casablanca como resposta à questão: como foi
participar das atividades com Teatro do Oprimido................................. 80
Figura 12 – Segunda pintura de Lírio Casablanca como resposta à questão: como foi
participar das atividades com Teatro do Oprimido? .............................. 81
Figura 13 – Carta convite entregue aos participantes ................................................. 85
Figura 14 - Cartaz afixado em três locais estratégicos no serviço CAPS SR IV....... 86
Figura 15 - Painel coletivo "O Teatro do Oprimido na Saúde Mental" ................... 99
Quadro 1– Revisão de literatura em Banco de Periódicos científicos que
apresentam trabalhos com Teatro do Oprimido ..................................... 34
Quadro 2– Modelo explicativo do processo de planejamento da Oficina de
Restituição .................................................................................................. 53
Quadro 3 – Processo de Análise .................................................................................... 55
Quadro 4 – Descrição da oficina de Restituição da Pesquisa O Teatro do Oprimido
como tecnologia de Cuidado em Saúde Mental ....................................... 87
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
CEP/UECE Comitê de Ética/Universidade Estadual do Ceará
CIEPs Centros Integrados de Educação Pública
CTO-RJ Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro
DST/AIDS Doença Sexualmente Transmissível/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
ESP/CE Escola de Saúde Pública do Ceará
GTO Grupo de Teatro do Oprimido
HIV Vírus da Imunodeficiência Humana
MTO-CE Movimento de Teatro do Oprimido no Ceará
MTSM Movimento dos trabalhadores em Saúde Mental
NAPS Núcleo de Atenção Psicossocial
ONG Organização Não-Governamental
PPHM Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador
SR Secretaria Regional
SUS Sistema Único de Saúde
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TO Teatro do Oprimido
SUMÁRIO
1 ABREM-SE AS CORTINAS ......................................................................... 16
1.1 O CAMINHO SE FAZ NO CAMINHAR: APROXIMAÇÃO COM O OBJETO
DA PESQUISA ................................................................................................ 22
2 OBJETIVOS................................................................................................... 27
2.1 GERAL ............................................................................................................ 27
2.2 ESPECÍFICOS ................................................................................................. 27
3 A SAÚDE MENTAL E O TEATRO DO OPRIMIDO ................................ 28
3.1 SAÚDE MENTAL: UM CAMPO DE PRÁTICAS HISTORICAMENTE
CONSTITUÍDO ............................................................................................... 28
3.2 REVISÃO DE LITERATURA: O TEATRO DO OPRIMIDO NA POLÍTICA
DE SAÚDE MENTAL BRASILEIRA ............................................................ 33
4 REFERENCIAL TEÓRICO: O TEATRO DO OPRIMIDO NA SAÚDE
MENTAL ........................................................................................................ 39
4.1 O PENSAMENTO DE AUGUSTO BOAL ..................................................... 39
5 METODOLOGIA .......................................................................................... 43
5.1 REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO: EPISTEMOLOGIA
QUALITATIVA .............................................................................................. 43
5.2 TIPO DE PESQUISA ....................................................................................... 45
5.3 CENÁRIOS E PERÍODOS .............................................................................. 46
5.4 PARTICIPANTES DA PESQUISA ................................................................ 49
5.5 CRITÉRIOS DE INCLUSÃO E EXCLUSÃO ................................................. 49
5.6 TÉCNICAS E INSTRUMENTOS PARA CONSTRUÇÃO DE
INFORMAÇÕES ............................................................................................. 49
5.7 ANÁLISE DO MATERIAL ............................................................................ 54
5.8 ASPECTOS ÉTICOS ....................................................................................... 56
6 RESULTADOS E DISCUSSÕES ................................................................. 57
6.1 DIÁRIOS DE CAMPO: O GRUPO DE TEATRO DO OPRIMIDO
SOCIEDADE CAPS – ATUANDO PARA O EQUILÍBRIO MENTAL......... 57
6.2 NO ESPAÇO ESTÉTICO: A OFICINA DE CONVERSAÇÃO COLETIVA
.......................................................................................................................... 65
6.2.1 Conversação Coletiva: os pesquisatores-trabalhadores em ação
.......................................................................................................................... 67
2
6.3 ENTREVISTAS INDIVIDUAIS: “uma flor se abrindo” ................................. 78
7 TRANÇADO ANALÍTICO: DIÁRIO DE CAMPO, OFICINA DE
CONVERSAÇÃO COLETIVA E ENTREVISTAS INDIVIDUAIS ......... 82
8 OFICINA DE RESTITUIÇÃO DA PESQUISA .......................................... 85
8.1 AO SOM DO TAMBOR DE MOSENHOR POM POM: Poéticas do Teatro do
Oprimido na Saúde Mental ............................................................................... 88
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ARTE É UM CAMINHO ......................... 101
REFERÊNCIAS ........................................................................................... 104
APÊNDICES ................................................................................................ 112
APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
........................................................................................................................ 113
APÊNCIDE B – CARTA DE ANUÊNCIA 1.................................................. 114
APÊNCIDE C – CARTA DE ANUÊNCIA 2 ................................................. 115
ANEXOS ....................................................................................................... 116
ANEXO A ...................................................................................................... 117
ANEXO B ...................................................................................................... 118
16
1 ABREM-SE AS CORTINAS
Abertura Intempestiva
No caminho me inventei flor
Me atravessaram jardins e diferentes jardinagens
Fui Jardineira/Flor
E nessa engrenagem flor/jardineira/flor
Teve cuidado, regas, inspiração, meditação...
Misturação de olores, raízes, brotos, galhos tortos, retos e de variadas direções
Teve dias de sol
Outros com Chuva
E até vendavais
Haja explosão de espinhos com tanto a temer
Mas, agregando, misturando, replantando ou podando
Apresenta-se imagens e fotografias recortadas
Com recortes de vida vivida, vida escrita com ausências, desafios, possibilidades...
Essa é a criação de uma história, de uma trajetória
O Teatro do Oprimido consiste em uma metodologia teatral desenvolvida pelo
teatrólogo Augusto Boal, brasileiro com naturalidade carioca que trabalhou com diversos
grupos, utilizando o diálogo cênico como forma de problematizar as relações sociais opressivas.
Com algumas experiências no campo da psiquiatria na década de 1980, na Europa, Boal (2002)
apresenta suas reflexões acerca dessas vivencias quando sistematiza um método de teatro
terapêutico. No Brasil foi na década de 1990 quando ocorreram as primeiras proposições em
contextos hospitalares manicomiais. No entanto, é apenas nos anos 2000 que o Ministério da
Saúde, através de sua coordenadoria de saúde mental, apoia o Centro de Teatro do Oprimido
do Rio de Janeiro (CTO-RJ) a formar trabalhadores da saúde no uso dessa metodologia
(BRASIL, 2007, 2011).
Como centro difusor da abordagem de Augusto Boal o CTO-RJ realizou formação
em Teatro do Oprimido em diferentes campos de conhecimento e práticas sociais, bem como
diversos locais do Brasil e exterior (METAXIS, 2007, 2008, 2010). Os apoios dos ministérios
da saúde, cultura e educação do Brasil foram incentivadores das ações de multiplicação dessa
abordagem teatral, o que foi favorecido pelas mudanças importante nas práticas de atenção à
saúde que ocorreram com a reformulação da Constituição Federal, de 1988, a chamada
17
Constituição Cidadã. Nesse período foram promulgadas as Leis Orgânicas de Saúde 8.080 e
8.142, junto a transformações sociais e políticas estava se fortalecendo um campo alternativo à
psiquiatria clássica no país. A luta pela Reforma Psiquiátrica buscava estruturar uma nova
relação/cuidado com a loucura, modificando o foco da doença para a saúde mental. O Modo
Psicossocial foi o caminho da política brasileira, redirecionando o modelo hospitalocêntrico
para o comunitário.
A Saúde Mental, conforme Lancetti e Amarante (2015), é uma área de
conhecimento e campo de atuação complexo, com atravessamentos de ordem ideológica,
política, social e cultural. Pontuam três sentidos a esse campo: origens históricas da psiquiatria
(com as hospedarias e o alienismo de Pinel1); a Reforma Psiquiátrica (críticas e reformulações
a partir da II Grande Guerra Mundial) e a dimensão revolucionária (o termo propõe uma
mudança paradigmática do foco na doença, em que a pessoa é colocada na condição de
assujeitado, para a saúde, em que o sujeito é visto na sua totalidade).
Em 2001 o cenário brasileiro para o campo da psiquiatria recebe contornos legais
para mudanças. Nesse momento é promulgada a Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Nº
10.216), após muitas lutas de trabalhadores da saúde mental, usuários, familiares e sociedade
civil. Conforme Amarante & Torre (2001) as experiências pioneiras em serviços substitutivos2
foram utilizadas como referência para as subsequentes portarias ministeriais.
Nesse contexto o Teatro do Oprimido estava apresentando experiências no campo
da psiquiatria no Brasil desde 1994, quando dois curingas3 do Centro de Teatro do Oprimido
do Rio de Janeiro (CTO-RJ) realizaram um trabalho no Hospital Psiquiátrico Dom Pedro II.
Conforme Felix (2010) nesse período Boal cumpria o mandato de vereador no Rio de Janeiro e
1 Em O Século dos Manicômios de Isaias Pessotti pode-se encontrar um estudo acerca da perspectiva e pratica de
Philippe Pinel, que conforme o autor (1996) foi a partir das obras desse médico francês que os asilos se
transformaram em manicômios com o intuito do tratamento moral da doença mental. 2 Na cidade de São Paulo em 1987 foi criado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) chamado
Professor Dias da Rocha Cerqueira e em Santos foi criado o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS). As duas
propostas colocam a atenção psicossocial como caminho, mas Amarante & Torre (2001) afirmaram existirem
nuances. O CAPS foi criado em meio as transformações no sistema de saúde no Brasil, na passagem de um modelo
privatista para organização estatal. Estariam apoiados no modelo dos Estados Unidos e nas idéias de transformação cultural do movimento italiano. Seria a doença mental pensada no âmbito da saúde coletiva, considerando os
contextos macro e micro social, históricos, do trabalho e das famílias. Portanto, um tipo de serviço entre os
ambulatórios e os hospitais psiquiátricos. O NAPS data de 1989 e foi fundamentado na perspectiva de Franco
Basaglia que preconizava uma transformação social, objetivando substituir totalmente o modo manicomial na
assistência e na sociedade, nesse sentido rompendo efetivamente com as bases teórico-prática da psiquiatria
clássica. 3 Conforme Sanctum (2009) curinga é um termo do Teatro do Oprimido utilizado para designar uma pessoa/artista
que ministra cursos e oficinas, dirige espetáculos e atua como mestre de cerimônia nas sessões de Teatro-Fórum,
sendo um interlocutor entre a peça e a platéia. Deriva das primeiras experiências de Augusto Boal no Teatro de
Arena quando experimentava o que chamou sistema coringa, no qual cada ator poderia ser qualquer personagem,
não havia propriedade sobre os papeis.
18
havia sistematizado a vertente do Teatro-Legislativo, que auxiliou na criação da lei de
atendimento geriátrico obrigatório nas unidades de Saúde Pública no Rio de Janeiro. Essa lei
foi constituída com um grupo de mulheres de terceira idade que eram acompanhadas
semanalmente pela psicologia no Dom Pedro II, esse foi um dos primeiros grupos de Teatro do
Oprimido no Brasil em interseção com a saúde mental, ou ainda nesse momento, na psiquiatria.
Foi no final da década de 1990 que o grupo mais antigo de Teatro do Oprimido
nesse campo se iniciou, o Pirei na Cenna que, atualmente, está com quase vinte anos de
existência e decorre do Hospital Psiquiátrico Jurujuba. Conforme Amarante e Lima (2008) o
grupo é formado por usuários, familiares e simpatizantes da Luta Antimanicomial. Tem
trabalhado com prevenção, assistência e direitos humanos em temas relacionados à Doença
Sexualmente Transmissível/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (DST/AIDS), bem como
o estigma e o preconceito vivido por pessoas marginalizadas socialmente.
Esse grupo foi contemplado pelo Prêmio Cultural Loucos pela Diversidade 2009 –
Edição Austregésilo Carrano. Conforme Edital N° 001, de 20 de maio de 2009, foi uma
iniciativa do Ministério da Cultura e Ministério da Saúde, consistindo em uma das ações
encaminhadas a partir da Oficina Loucos pela Diversidade – Oficina Nacional de Indicação de
Políticas Públicas Culturais para Pessoas em Sofrimento Mental e em Situações de Risco
Social de 2007, decorrente da parceria interministerial para construção da Política Nacional
Loucos pela Diversidade. O grupo Liberarte de inserção da metodologia do Teatro do Oprimido
no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho também foi outro
contemplado e ambos são de iniciativa do CTO-RJ.
Essas experiências ocorreram com usuários, ainda, de hospitais psiquiátricos.
Conforme Brasil (2004) é a partir de 2001 que a Política Nacional de Saúde Mental é
reestruturada com vistas à atenção psicossocial e as ações começam a se expandir para os
Centros de Atenção Psicossocial, a estratégia ministerial para o cuidado com base comunitária.
Foi então no início da implantação/expansão da rede CAPS por volta de 2004 que o Ministério
da Saúde apoiou o CTO-RJ no projeto que ocorre, prioritariamente, nos serviços substitutivos.
Pedro Delgado, o propositor da Lei da Reforma Psiquiátrica, foi um incentivador
dessa parceria, pois foi em sua gestão como coordenador Nacional de Saúde Mental do
Ministério da Saúde que o CTO-RJ recebeu incentivos para a implementação do projeto Teatro
do Oprimido na Saúde Mental. Em nota na revista Metaxis, dedicada à Saúde Mental, Delgado
(2010) falou do desafio da Reforma Psiquiátrica na reorientação do modelo assistencial,
pontuando que “(...) o aprofundamento teórico e prático da clínica da atenção psicossocial são
19
desafios e responsabilidades da política de saúde mental, mas também de muitos autores.”
(DELGADO, 2010, p. 14). E colocou o trabalho do CTO-RJ como qualificador do cuidado nos
CAPS, sendo a parceria com esta organização fundamental para a Reforma Psiquiátrica
Brasileira, porque o Teatro do Oprimido seria um instrumento de construção de possibilidades
de cuidado e de vida para as pessoas.
Esse diálogo entre o método artístico-político sistematizado por Boal e difundido
pelo CTO-RJ e o campo psicossocial em processo de construção no Brasil é portanto a imagem
tema do estudo. Trata-se de uma pesquisa-intervenção que inicia situando o leitor no contexto
nascedouro das implicações da pesquisa. Quando nesse processo de multiplicação do CTO-RJ
diversos atores sociais são formados na abordagem de democratização da arte pelo método do
Teatro do Oprimido.
Segue-se no estudo buscando compreender no que se constitui historicamente o
campo da saúde mental e como o Teatro do Oprimido no Brasil esteve atuando nessa política
pública. Como referencial teórico fez-se importante aprofundar os aspectos teóricos e
metodológicos do pensamento de Augusto Boal com o Teatro do Oprimido.
Fundamentado metodologicamente no método qualitativo a investigação se apoia
nas formulações de Gonzalez Rey (2002, 2015) que trabalha a partir do caráter construtivo-
interpretativo do conhecimento, da legitimação do singular como instância de produção de
conhecimento científico e do ato de compreender em pesquisa como um processo de
comunicação, um processo dialógico. Assim, foram realizados momentos de construção de
inteligibilidade acerca do estudado com instrumentos e ferramentas que possibilitaram o
alcance dos objetivos: o Diário de Campo, Oficina de Conversação Coletiva, Entrevistas
Individuais, e por fim, uma de restituição.
Boal (2009) coloca que o Teatro do Oprimido seria o método da Estética do
Oprimido que é a expressividade pela imagem, som e palavra dos que historicamente tiveram
esse canais dominados. O pensamento de Augusto Boal foi desenvolvido ao longo de uma
trajetória que parte de um grupo de artista no Brasil na busca de construir uma arte com as
feições de sua terra (MAGALDI, 1984). Um Teatro revolucionário (ALMADA, 2004) e
popular (BOAL, 1984). Alguns autores a exemplo de Mostaço (1984) e Carlson (1997) colocam
a perspectiva de Boal como um teatro político. Castro-Pozo (2011) classificou o período inicial
nas formulações de Boal como boalista, desvinculado da academia e ligado aos movimentos
sociais de inspiração marxista como a Educação Popular e a Teologia da Libertação. E o que
vai sendo criado posteriormente junto a seus multiplicadores e demais grupos é classificado
20
como modelo boaleano, mais ligado a terapias artísticas e a um sistema filosófico e estético.
Portanto como coloca Vannucci (2013, 2017) o pensamento de Boal toma dimensão filosófica
e de ação a(r)tivista.
Mas uma ressalva é acentuada por Castro-Pozo (2011) que a caracterização
boaleana pode sofrer o que o autor chama de “branqueamento” do método teatral, quando o
mesmo é desvinculado do seu modelo teórico de proposição libertária dos oprimidos. Sendo
portanto transformado em mercadoria e subordinado ao modo capitalístico de busca de
domesticação e adaptação. O autor ainda coloca essa questão acentuando que um dos campos
que têm realizado tal apropriação do Teatro do Oprimido seria o da Ciências da Saúde.
Então duas ligações feitas nessa pesquisa precisam ser elaboradas porque o Teatro
do Oprimido está sendo proposto e analisado a partir das ciências da saúde bem como uma
tecnologia. Tais campos, neste estudo, estão situados em uma perspectiva crítica, tanto a
discussão da saúde como o da tecnologia são postas em análise a partir de uma visada histórica
das práticas.
A discussão e problematização acerca das tecnologias e das práticas de saúde recebe
uma significativa contribuição crítica no estudo de Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves (2017)
em que analisa a questão da tecnologia e sua reprodução social. O autor ressalta a multiplicidade
conceitual ligada ao termo e realiza uma crítica a tais perspectivas que associam a ‘tecnologia’
a ‘coisa’. O autor coloca que essa perspectiva de objetos tecnológicos desconsidera aspectos da
realidade ligados ao trabalho, produção e sociedade, identificando uma estruturação ideológica
nesse discurso associado às noções de eficácia, produtividade, eficiência e adequação.
Acrescenta:
A tarefa talvez consista principalmente em tornar os campos de aplicação dessas
noções em aspectos verdadeiramente parciais, isto é, em dimensões analiticamente
relevantes e pertinentes, correspondentes aos conceitos, todos eles subordinados à compreensão da tecnologia como não autônoma mas integrada à prática; não reificada
mas encontrando nas relações sociais que viabiliza, por nelas ter-se gerado, seu
significado mais íntimo; não técnica que pode ser politizada mas política enquanto
técnica. (MENDES-GONÇALVES, 2017, p. 200)
Portanto, a leitura de Mendes-Gonçalves (2017) coloca a importância de observar
que os instrumentos de trabalho são suportes para as relações estabelecidas entre os homens e
a natureza com caráter sempre provisório e historicamente constituído, em que os homens
modificam a natureza e a si mesmos. O autor acentua que as práticas de saúde não podem ser
reduzidas a técnicas abstratas como feito pela Medicina e atribui às ciências sociais da saúde o
questionamento à objetivação da ‘doença’ e, além, a colocação de sua historicidade.
Observando a construção histórico-social das práticas de saúde e o seu caráter de trabalho
21
humano.
Compreende-se nesse sentido o Teatro do Oprimido qualificado como tecnologia
do cuidado em saúde mental: está em um espaço-tempo que o caracteriza como uma ação de
trabalho/militância ligada à reforma psiquiátrica e ao questionamento de práticas opressivas,
além de percebê-lo também como trabalho afetivo (Hardt, 2003).
E ainda, o termo tecnologia do cuidado está amparado nas formulações do
sanitarista Emerson Merhy (1997), que compreende as tecnologias em saúde divididas em:
leves, que compreendem as relações interpessoais como a produção de vínculos, autonomização
e acolhimento; leve-duras, que são saberes bem estruturados como a clínica médica, a
epidemiologia e a clínica psicanalítica; e as duras, que são compostas por equipamentos
tecnológicos do tipo máquina, normas e estruturas organizacionais. Para o autor, o trabalho em
saúde não pode ser globalmente capturado pela lógica do trabalho morto, expresso nos
equipamentos e nos saberes tecnológicos estruturados, pois o seu objeto não é plenamente
estruturado e suas tecnologias de ação, mais estratégicas, configuram-se em processos de
intervenção em ato, operando em tecnologias de relações, de encontros de subjetividade, para
além dos saberes tecnológicos estruturados (trabalho vivo).
Merhy e Feuerwerker (2009) escrevem acerca das tecnologias em saúde e fazem a
crítica do trabalho focado nas questões biológicas, o qual seria uma estratégia de
disciplinarização da vida, ou mesmo na linguagem boaleana, mecanização, opressão. Merhy e
Onocko (2002) estão pensando o campo da micropolítica do trabalho em saúde, analisando os
modos de produção de subjetividade de usuários e trabalhadores que se constitui mutuamente
no cotidiano dos serviços. Nessa empreitada com o cuidado através do Teatro do Oprimido
localizamo-nos nessa seara da micropolítica de produção mútua de subjetividades, incluindo
também a investigação sistemática das práticas de cuidado como um elemento de produção de
subjetividades. Os autores colocam que o campo da micropolítica do trabalho vivo em saúde é
território de tecnologias leves.
A priorização da tecnologia leve como instrumento na prática dos processos de
trabalho busca atingir a integralidade do cuidado, essa prática pode ser fundamentada no
acolhimento, no diálogo, no vínculo, na co-responsabilidade e na escuta ativa entre profissional
e usuário dos serviços de saúde. Buscando compreender como os sujeitos inscritos na política
de saúde mental e que vivenciaram os métodos e técnicas dessa abordagem teatral significam
essa vivência. Aqui considerada como uma práxis problematizadora de estigmas,
normatizações, discriminações e violências, em consonância com a Reforma Psiquiátrica
22
Brasileira, a Luta Antimanicomial (que tem por lema: “cuidar sim, excluir não!) e a Saúde
Coletiva.
1.1 O CAMINHO SE FAZ NO CAMINHAR: APROXIMAÇÃO COM O OBJETO DA
PESQUISA
O encontro com o pensamento de Boal (1980, 1984, 1991, 1998, 2002, 2003, 2009)
ocorreu durante a graduação em Psicologia, através das ações com o grupo de Psicologia
Educacional (no período de 2005-2008) na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O Teatro
do Oprimido, nessa ocasião, era utilizado, sobretudo, como ferramenta de pesquisa-intervenção
no campo da Análise Institucional ou dispositivo de intervenção grupal como compreende a
perspectiva francesa (FERNANDES; JOCA, 2011). A partir dessa inserção em percursos
formativos e na militância estudantil foram aproximando-se o movimento da Luta
Antimanicomial e a discussão acerca das violações de direitos humanos no modo asilar, esses
campos constituíram minha trajetória como pesquisadora e profissional. Unindo-se nesse
sentido a dimensão psíquica e a político-estética da linguagem teatral, que encontraram no
Teatro do Oprimido um espaço singular de atuação em psicologia.
A discussão acerca do compromisso social da Psicologia e da luta por direitos
humanos, os estágios em políticas públicas, as pesquisas-intervenções e demais processos
formativos constituíram um importante arcabouço teórico-metodológico para a prática
profissional. Ainda no último ano de graduação o foco das pesquisas foi no desenvolvimento
de modos de investigação no campo da subjetividade, pensando a atuação e formação para a
saúde mental.
Os primeiros trabalhos com o título de psicóloga foram de cuidado a pessoas com
experiências de violência. Inicialmente com crianças e jovens vítimas de violência sexual em
um serviço ligado à Secretaria de Direitos Humanos de Fortaleza, no projeto Aquarela, 2009-
2010. E também, com mulheres em situação de violência doméstica no Centro de Referência e
Atendimento à Mulher – Francisca Clotilde, serviço da Coordenadoria de Políticas Públicas
para as Mulheres de Fortaleza, onde desenvolvi atividades durante os anos de 2010-2012.
Acolhendo pessoas com experiências de extrema violência, questionava quais recursos a
Psicologia me possibilitava? O que poderia realmente fazer? Quais métodos para o cuidado?
Recorrendo à minha formação vislumbrei a arte, aceitei o convite de Augusto Boal.
Boal subverteu na arte teatral e através dela especialismos, transbordando os
23
campos disciplinares. No seu convite afirmava que todos podemos pintar, cantar, atuar, entre
outros. E além, convidou trabalhadores sociais a utilizarem as técnicas que havia sistematizado,
não como receita mas como ponto de partida à prática que estimulava a reflexão crítica e a ação
social.
Esse convite foi sedutor para minha busca de modos de fazer cuidado que não
condicionassem o sujeito à passividade, à domesticação, à mais violência institucional. Grande
bifurcação, ousadia. Então, como trabalhadora de políticas públicas propunha o Teatro do
Oprimido, convidando à expressividade através da arte. Uma arte que problematiza as
experiências de violência e de forma coletiva buscar alternativas, não individualizando tais
questões ou culpabilizando o sujeito, como era caro à Psicologia. Dialogando com a arte,
criando atuações/intervenções. Mas a todo momento pensando os passos, analisando,
compreendendo que a pesquisa e a atuação não podem caminhar separadamente, porque dessa
forma a prática tornar-se-ia alienada, trabalho alienado. Por isso, caminhei na pesquisa,
mantendo o diário de campo e as anotações acerca do trabalho em assistência.
O aprofundamento no trabalho de Augusto Boal também ocorreu pela interlocução
com o pensamento de Jacob Levy Moreno (1889-1974). Moreno desenvolveu um sistema
teórico complexo sobre o comportamento social e grupal, com conceitos e técnicas derivadas
de estudos experimentais com o teatro. Tais conhecimentos estruturados em um caminho
ousado que o médico de Viena sistematizou foi importante para a questão que na época
permeava minhas reflexões, qual seja, a terapêutica através do teatro. Nesse sentido, realizei
um estudo teórico intitulado O Teatro Terapêutico de Moreno e Boal: relações entre o
Psicodrama e o Arco-Íris do desejo, analisando suas proposições teórico-práticas que tinham
como objetivo principal a função terapêutica, verificando convergências e diferenciações
teóricas e técnicas fundamentais.
Uma significativa inserção na prática do Teatro do Oprimido ocorreu no período de
atuação junto ao Movimento de Teatro do Oprimido no Ceará (MTO-CE), movimento social
que propunha a multiplicação da proposta boaleana (2009-2013), principalmente, em Fortaleza.
E que carregava, fundamentalmente, um dos princípios básicos do TO, a democratização da
arte teatral, além da busca coletiva de alternativas de enfretamento de situações de opressão.
Atuávamos diretamente com jovens de Fortaleza e de áreas metropolitanas. Em 2011-2012,
trabalhamos com usuários e familiares da rede psicossocial do município, realizando uma
intervenção de relevância ao discutir diversas questões que envolvem a política de Saúde
Mental e como a atenção no modelo de superação ao manicomial ainda contém práticas
24
opressoras e de subjugamento.
Essa experiência estimulou ingressar através da Escola de Saúde Pública do Ceará
(ESP-CE) na Residência Integrada em Saúde, com ênfase na saúde mental coletiva, atuando
nos Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) como psicóloga e compondo equipes
multiprofissionais. Em diversas atividades desenvolvidas durante os dois anos de residência na
atenção psicossocial, em serviços de base comunitária do município de Fortaleza, propus ao
Ministério da Saúde um projeto intitulado O Teatro do Oprimido na Saúde Mental de Fortaleza.
Para o edital de II Chamada para seleção de projetos de fortalecimento do protagonismo de
usuários e familiares da rede psicossocial, sendo aprovado e executado nos anos de 2013-2014,
junto a um coletivo de residentes e preceptores. Consistiu em uma potente intervenção que deu
continuidade às ações do MTO-CE e do próprio Centro de Teatro do Oprimido do Rio de janeiro
(CTO-RJ) que tinha o projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental (2004-2011). Acerca deste
projeto dois artigos que tratam do processo podem ser citados, são eles: Joca e Linhares, 2016;
e Santos, Joca e Souza, 2016.
A formação em psicologia foi fundamentada, portanto, na análise crítica acerca das
teorias e práticas institucionalizadas da profissão que ancoram uma expertise elitista,
classificadora e excludente, sobretudo da cultura dos sujeitos e sua potência criativa. No âmbito
da necessidade de construir uma atuação baseada na ética e na solidariedade, afirmando as
diferenças e potenciais do sujeito é que avulta a arte como dispositivo de cuidado em saúde,
como prática a ser proposta e experimentada. A questão que se colocava era: que estratégias de
cuidado poderiam ser acionadas para a construção de um trabalho implicado com emancipação
dos sujeitos? Que suportes teórico-práticos acessíveis ao trabalho em psicologia fortaleceriam
intervenções em políticas públicas?
O teatrólogo Augusto Boal ao estimular ultrapassar os especialismos, seja do saber-
fazer artístico, como do científico, questiona a atuação centrada em técnicas. Esta crítica no
campo da ciência encontra-se ainda timidamente apontada, e é estimulada por falas como a de
Lavrador (2007), que desafia o profissional da psicologia a criar estratégias de produção de
vida, que na saúde mental, junto à perspectiva da Reforma Psiquiátrica deve estar atrelada a
estratégias de enfrentamento dos desejos de manicômios (ALVERGA; DIMENSTEIN, 2006)
que nos atravessam. Por isso, estamos implicados com a arte que nos exige criações,
posicionamentos, (re)definições e enfrentamentos cotidianos em uma perspectiva que confere
ao outro o lugar de sujeito em contexto terapêutico dialógico e calcado na dimensão dramática
das aprendizagens em saúde mental.
25
Através das proposições na atenção psicossocial do município de Fortaleza
podemos discutir e aprofundar as questões das pessoas que vivenciam o sofrimento psíquico
grave e suas famílias. Construímos cenas de Teatro do Oprimido e problematizamos a violência
contra a pessoa com transtornos mentais graves junto à sociedade. Mas uma questão incitou
maior investigação, quais impactos causaria a experiência com o Teatro do Oprimido na saúde
mental se o formato fosse longitudinal? As propostas anteriores consistiam em atividades a
serem cumpridas. Tinha-se um cronograma que continha uma tarefa, qual seja, montar um
espetáculo com dia marcado. Esse fato estava chamando atenção, porque observava a
necessidade de mais tempo para as elaborações profundas, cuja técnicas do arsenal boaleano
propunham. Como coloca Boal (2009),
é essencial ao método do Teatro do Oprimido a busca serena, sem pressa e sem
atropelos: para nós, é importante que cada pessoa amadureça seguindo o seu próprio
ritmo, segundo suas próprias possibilidades, necessidades e desejos. (BOAL, 2009, p.
172)
Questionava quais significações poderiam ser elaboradas com a experiência de um
grupo em formato longitudinal, ou seja, de funcionamento a longo prazo e sem tarefas pré-
estabelecidas, mas a se construir cada passo de forma coletiva e acordada, fortalecendo vínculos
e processos de autonomia.
Assim segui na form(ação) do mestrado. No caminho de propor o Teatro do
Oprimido como uma prática de cuidado para a atenção psicossocial. Com isso, foi sendo
montado um Grupo de Teatro do Oprimido em um serviço psicossocial de Fortaleza, o que é
foco nesta pesquisa de Mestrado. Que consistiu em um convite à construção coletiva de
conhecimento e análise de práticas em saúde mental, no qual analisamos junto a usuários,
trabalhadores e familiares as significações do Teatro do Oprimido no serviço de Saúde Mental.
Discutindo como a expressividade pela arte estimula diálogos importantes e questionamentos a
estruturas de poder em atenção psicossocial e aos modos manicomiais ainda vigentes na saúde
mental.
É, então, como trabalhadora da saúde mental na cidade de Fortaleza desde 2011 que
a proposta do Teatro do Oprimido tem se constituído como uma tecnologia do cuidado. Nesse
sentido, é importante pensar acerca de quais significados os sujeitos inscritos na Política de
Saúde Mental elaboram a partir da experiência com essa abordagem teatral. Questionar,
portanto, como o Teatro do Oprimido, que almeja a libertação, pode facilitar processos de
26
autonomia em saúde mental a partir da análise dos participantes, de suas experiências, e mais
ainda analisar os limites dessa abordagem nesse campo de práticas.
27
2 OBJETIVOS
2.1 GERAL
Compreender os significados produzidos por usuários, familiares e trabalhadores, de um
Centro de Atenção Psicossocial da cidade de Fortaleza, com a experiência do Teatro do
Oprimido na estratégia da Atenção Psicossocial.
2.2 ESPECÍFICOS
Descrever como o Teatro do Oprimido tem sido utilizado na Política de Saúde Mental
brasileira;
Compreender como a proposta ético-estética sistematizada por Augusto Boal insere-se
como uma tecnologia do cuidado no modo psicossocial;
Analisar como a experiência do Teatro do Oprimido permite pensar limites e
possibilidades da Atenção Psicossocial.
28
3 A SAÚDE MENTAL E O TEATRO DO OPRIMIDO
3.1 SAÚDE MENTAL: UM CAMPO DE PRÁTICAS HISTORICAMENTE CONSTITUÍDO
É oportuno compreender a historicidade dos saberes e fazeres em saúde mental.
Conforme Costa-Rosa (2013) ao falar acerca da Política Nacional de Saúde Mental brasileira,
afirmou:
A Atenção Psicossocial se firma como uma política pública persistente do Ministério
da Saúde para o país, a partir das últimas décadas, delimitando um campo de saberes
e práticas atravessado por um ideário ético-político substitutivo ao da psiquiatria
hospitalocêntrica e medicocentrada, subordinada ideologicamente, mas ainda
dominante nas práticas cotidianas. (COSTA-ROSA, 2013, p.09)
É importante frisar que Costa-Rosa (2013) situa que o termo Atenção referindo-se
a um conjunto de ações realizadas no campo da saúde mental, denominados de forma geral
como tratamento, promoção, ou cuidado psicossocial. No Brasil, com a Reforma Sanitária e a
Reforma Psiquiátrica o Ministério da Saúde adotou um caminho de atenção, em saúde mental,
estruturado em uma Rede de Atenção Psicossocial (instituída juridicamente por meio da
portaria 3.088 de 2011), que constitui uma gama de serviços, ações e programas que buscam
ofertar à população cuidados, conforme as diretrizes constitucionais de descentralidade,
atendimento integralizado e participação social. Também, esse caminho de atenção à saúde
mental orienta as práticas no sentido da Lei 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos
das pessoas com transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial de asilar para
comunitário.
O caminho percorrido pelo país para estruturação dessa política situa-se em um
processo histórico, que remete, primeiramente, às práticas em relação à loucura importadas dos
modos europeus. Captar a historicidade dos campos, aqui postos em análise, coloca em relevo
o seu caráter mutante, ressaltando a necessidade de vermos os fatos sociais em movimento.
A psiquiatria clássica, conforme Pessotti (1996) e Amarante (2007), tem em
Phillipe Pinel, médico francês, um importante agente social no processo de sua
institucionalização como especialidade médica para o tratamento das enfermidades da mente,
fato ocorrido no século XVIII. É com esse personagem e seus seguidores que a medicina
colocou uma proposta de tratamento para o que seriam as enfermidades da mente.
Mas para esses fatos acontecerem um solo fértil foi preparado. Foucault (1979) em
sua tese acerca do nascimento da medicina social no século XVIII abordou práticas para
organização sanitária das cidades que chamou de político-médica. Colocou os dois grandes
29
modelos referenciais dessa organização: o modelo da lepra e o modelo da peste. O primeiro
datado da Idade Média consistia na expulsão do leproso das cidades. Era baseado na exclusão
e busca de purificação da cidade. Afirmou, ainda, “o próprio internamento dos loucos,
malfeitores, etc., em meados do século XVII, obedece ainda a esse esquema.” (FOUCAULT,
1979, p. 88). O modelo da peste já não expulsa, mas vigia, controla e coloca a sociedade em
um espaço esquadrinhado, permanecendo inspecionada e controlada através do registro de
todos os fenômenos.
Em um estudo específico acerca da loucura, ainda o filósofo francês pontuou:
Mas será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse
novo espantalho que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de
divisão, de exclusão, de purificação (...) Antes de a loucura ser dominada, por volta
da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela
tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da renascença.
(FOUCAULT, 1976, p. 12)
É nesse processo de dominação que o autor localiza a Nau dos Loucos, uma
composição literária simbolicamente ligada à ideia de grandes viagens e feitos, que no caso
existiu na realidade social. Os loucos errantes eram retirados das cidades e uma das formas de
tratamento era colocando-os em navios para desembarcarem em outras terras. Nessa imagem
marítima é possível observar o caráter de exclusão, isolamento e punição em relação à loucura
que estava sendo construído nas cidades europeias.
De acordo com Foucault (1976, 1979) as hospedagens não eram, inicialmente,
locais da medicina, mas de filantropia e assistência social, agregando uma diversidade de
demandas das cidades. Mas aos poucos foi se transformando em lugar de atuação médica, os
hospitais gerais.
Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência
aos pobres. Instituição de assistência, como também de separação e exclusão. O pobre
como pobre tem necessidade de assistência e, como doente, portador de doença e de
possível contágio, é perigoso. (...) O hospital permanece com essas características até
o começo do século XVIII. (FOUCAULT, 1979, p. 101-102)
Essa argumentação, em que o autor fala acerca do nascimento dos hospitais,
consiste na transição histórica das práticas sociais. Com a urbanização, o capitalismo e o
desenvolvimento de tecnologias de organização das cidades Foucault (1979) pontuou que seria
então a disciplina uma técnica de exercício de poder que foi sofisticada no século XVIII. A tese
do autor é que a proposição terapêutica dos hospitais ocorreu apenas após a transformação pela
30
disciplinarização dos espaços hospitalares e pelas mudanças epistemológicas da medicina, que
assume o modelo de inteligibilidade da doença a partir da botânica, compreendendo a doença
como um fenômeno natural. “É, portanto, o ajuste desses dois processos, deslocamento da
intervenção médica e disciplinarização do espaço hospitalar, que está na origem do hospital
médico.” (FOUCAULT, 1979, p. 107).
No estudo de Issaias Pessotti (1996) o autor identificou a efervescência da
revolução francesa como momento de criação das bases para o modelo manicomial. Pois seria
o médico Philippe Pinel um personagem importante das transformações dos espaços
hospitalares, então em transição, e que instituiu um modelo médico de tratamento da loucura
em isolamento. O objetivo era constituir um lugar para a cura daquilo que era considerado como
uma doença da mente.
Segundo Costa-Rosa e Devera (2007), os hospícios brasileiros emergiram
juntamente com a República e eram novas práticas de controle social que tinham como
propósito o encerramento em espaços isolados, chamados de manicômios. O discurso afirmava
um tratamento para a busca de uma cura. Protagonizado pela psiquiatria e respaldado
juridicamente o asilamento do louco, nesse momento, então, nomeado de doente mental possuía
um arcabouço teórico, uma tecnologia de intervenção, um dispositivo institucional, bem como
os profissionais dedicados a este mister, já os alienados eram objetos do tratamento.
No Brasil, um estudo interessante sobre o processo de institucionalização da
loucura pode ser encontrado na investigação de Magali Engel (2001), que apresentou as ideias
e vivências da loucura, apropriada e transformada pelos alienistas em doença mental no início
da República brasileira. Esboçou alguns casos, no Rio de Janeiro, de pessoas que vivenciavam
a loucura de forma livre e realizou contrapontos com o processo de apropriação desses sujeitos
pelo saber/poder médico.
Pessotti (1996) buscou compreender a psicopatologia e a prática psiquiátrica no
século XIX e verificou a construção histórico-social da loucura como perigosa e a da medicina
como aquela área que voltava-se para proteger o louco do meio social, enquanto com isso
protegia a sociedade das condutas desviantes do louco, o que Paim e Almeida Filho (1998)
identificaram como uma polícia médica. Esse termo é apresentado por Foucault (1979) como
derivado da medicina de Estado da Alemanha, do início do século XVIII, e que consistiu em
programas de Estado para melhoria da saúde da população com um sistema complexo de
observação da morbidade, bem como de normalização da prática e do saber médico.
31
No estudo de Issaias Pessotti (1996) o autor observou o fato de não ter encontrado,
nas fontes pesquisadas, uma fala daqueles considerados como doente mental, ressaltando,
então, a mudez dos loucos. O autor destaca que não havia registros das falas desses que não
eram considerados sujeitos. No trecho abaixo verificamos o tratamento:
O impressionante arsenal (é bem esse o termo) de instrumentos terapêuticos violentos,
a férrea disciplina na conduta clínica, ou as práticas repressivas da vida manicomial
estão a demonstrar quanto a medicina se aproximava do louco como quem se defronta
com um inimigo que, além de perigoso, por isso sempre vigiado de perto, carrega em
si mesmo uma “natureza”, “instintos”, “impulsos”, ou seja, uma “animalidade” que
precisa ser domada. (PESSOTTI, 1996, p.13)
As críticas a esse modelo indicaram principalmente sobre a ineficiência do
tratamento e os maus-tratos perpetrados aos internos, assim como se referiam ao inchaço dos
asilos manicomiais. Como afirmou Amarante (1995) as reformas de crítica ao modelo
questionavam o papel e a natureza tanto da instituição asilar como do saber psiquiátrico e
ganharam relevo no período do pós-Segunda Grande Guerra, momento em que o mundo
questionava as práticas manicomiais que usavam tortura e degradação humana, por lembrarem
os campos de concentração construídos na guerra.
A Reforma Psiquiátrica Brasileira vem no bojo da internacional, com o
questionamento das instituições totais (GOFFMAN, 2005). Conforme Amarante (1995), o
estopim no Brasil foi a crise na Divisão Nacional de Saúde Mental, em 1978, quando
profissionais de quatro das suas unidades no Rio de Janeiro entraram em greve. Nesse momento
irregularidades nesses locais são denunciadas e outros profissionais se mobilizam, bem como o
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). Com esse contexto emergiu o Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), agente importante do movimento de crítica ao
modelo manicomial.
Vasconcelos (2008) discriminou quatro períodos marcantes das transformações
brasileiras para a saúde mental no caminho ao novo paradigma da desinstitucionalização e da
atenção psicossocial. Destacou como primeiro momento, as mobilizações acima referidas, que
tiveram início em 1978. Um segundo período, a partir de 1980, caracterizou-se pela expansão
e formalização do Sistema Único de Saúde (SUS), e pela montagem de equipes
multiprofissionais em ambulatórios de Saúde Mental, objetivando o controle e a humanização
do setor hospitalar em atuação no Estado. A partir de 1987 ocorreu o terceiro período, com
certo fechamento no espaço político para mudanças, embora seja neste período que conquistas
fundamentais tenham ocorrido: a Constituição de 1988 e a Lei Orgânica de Saúde. Também se
32
iniciaram o movimento da Luta Antimanicomial e a transição para o modelo de
desinstitucionalização. A partir do quarto período, após 1992, o autor identificou um período
de avanços e consolidações com a implantação da rede de serviços psicossociais, mas também
observou limites para a expansão desse modelo, causados pelas políticas neoliberais.
Nesse contexto brasileiro, portanto, observa-se em saúde mental, o movimento de
transição do foco da doença para a saúde, colocando-se, hoje, concretamente como política
pública, o desafio de estruturação de um modelo de cuidado em liberdade. Amarante (2007,
2012), Costa-Rosa, Luzio e Yasui (2003) apontaram o modo psicossocial como alternativa de
atenção em relação à prática psiquiátrica, vista como ineficiente e degradante, dentro do modelo
asilar. A Atenção Psicossocial, desse modo, tem sustentado ações que possuem esta perspectiva
da autonomia dos sujeitos e protagonismo, cunhando o desenvolvimento de um olhar plural em
suas diversas dimensões teórico-prática, político-ideológicas e éticas. A inspiração teórica
assinalada traz sua influência dos movimentos de contestação mundial como as Psiquiatrias de
Setor e Comunitária; a Antipsiquiatria; a Psicoterapia Institucional e a Psiquiatria Democrática
Italiana. Essa última, segundo Amarante (2007), teve maior influência na estruturação da
proposta em saúde mental para o Brasil. Seria aquela que se apropriou de muitas experiências
interessantes das proposições anteriores.
De acordo com Costa-Rosa, Luzio e Yasui (2003) a saúde mental, na perspectiva
da atenção psicossocial, se estrutura em quatro campos: o teórico-assistencial/epistemológica
(mudar a fundamentação das práticas); técnico-assistencial (mudança nas práticas); o jurídico-
político (estruturação legal) e o sociocultural (transformações nas concepções sociais acerca da
loucura).
Nesse sentido é que para se constituir em uma alternativa de cuidado em saúde
mental o modo psicossocial precisa se fortalecer nesses quatro campos. No teórico-assistencial
o foco deve ser o sujeito como ator ativo do seu processo terapêutico. A noção seria de
existência-sofrimento ao invés de doença-cura. No campo técnico-assistencial tem-se o sujeito
de direitos em equipamentos para o cuidado em liberdade. No jurídico-político é a luta por
estruturação de leis, novas atuações e garantia/conquista de direitos. No sociocultural são
práticas sociais que visam transformar o imaginário de grupos.
33
3.2 REVISÃO DE LITERATURA: O TEATRO DO OPRIMIDO NA POLÍTICA DE SAÚDE
MENTAL BRASILEIRA
Um processo de revisão de literatura foi constituído baseando-se no estudo de
Vosgerau e Romanowski (2014) que analisaram tipos de estudos de revisão. A revisão aqui
proposta segue a caracterização de uma revisão de literatura em que se objetiva uma
contextualização para a questão estudada.
O Teatro do Oprimido é uma prática artístico-política que tem se alastrado no
mundo e no Brasil, como coloca Babbage (2004). Menções ao Teatro do Oprimido como prática
promotora de saúde foram encontradas em algumas fontes que serão delineadas abaixo.
No Centro Cultural do Ministério da Saúde no catálogo da mostra Memória da
Loucura encontra-se o vídeo Fronteiras da mente, da saúde e da expressão: a palavra e o
palco, que apresenta o Teatro do Oprimido como um instrumento potente para expressão.
O projeto Formação em cidadania para a saúde: temas fundamentais da Reforma
Sanitária do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) abordou o tema Diversidade
cultural e saúde. Nele Amarante e Costa (2012) falam acerca das propostas inovadoras de arte-
cultura no campo da saúde mental. O TO é citado como uma dessas ações que propõem uma
visão crítica sobre a questão da loucura, da discriminação e violência.
Em publicação do Ministério da Saúde, Caderno HumanizaSUS, volume cinco,
Almeida e Duarte (2015) relatam como o município de Guarulhos assumiu o TO como uma
estratégia de cuidado em Saúde Mental e que as intervenções com a proposta ocorrem desde
2006 quando o município estabeleceu parceria com o CTO-RJ e o Ministério da Saúde.
Conforme as autoras o objetivo com o uso da abordagem boaleana é de estimular o
protagonismo dos participantes para que a partir do diálogo teatral construam alternativas de
transformação de suas realidades.
Na coordenação geral do projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental está o
curinga Geo Brito que esteve ao lado de Boal desde o início da fundação do CTO-RJ. Conforme
Brito (2010) o objetivo do projeto consiste em capacitar profissionais para serem
multiplicadores do Teatro do Oprimido e utilizá-lo como instrumento de facilitação do
enfrentamento de conflitos entre práticas manicomiais e antimanicomiais.
Portanto, tais fontes referem-se ao Teatro do Oprimido como: instrumento que
estimula a expressividade; proposta inovadora que possibilita uma visão crítica da loucura, de
sua discriminação e violência; política municipal facilitadora da participação social; estratégia
34
de cuidado da atenção psicossocial; e abordagem que propõe o diálogo entre práticas
manicomiais e antimanicomiais.
Buscando um aprofundamento foi realizada uma sistematização de artigos a partir
de banco de periódicos. Investigaram-se pesquisas no campo da saúde que abordaram o Teatro
do Oprimido. Nessa revisão foi realizado um levantamento em dois bancos de dados: Biblioteca
Virtual da Saúde Brasil e no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES). Foram utilizados os seguintes termos em busca por assunto
simples: “Teatro do Oprimido”; “Theatre of the oppressed”; “Augusto Boal”. No Portal de
Periódicos da CAPES a busca foi refinada em busca avançada com “Theatre of the oppressed”
and “Health”, “Augusto Boal” and “health”. O material pesquisado teve como corte de inclusão
artigos que abordam o campo da saúde, tendo como corte de exclusão apresentações teóricas
do pensamento de Boal, estudos fora da área da saúde, teses, dissertações ou trabalhos de
conclusão de curso.
Neste percurso foram encontrados trinta e dois (32) artigos que tiveram seus
resumos analisados e seguindo os parâmetros de inclusão/exclusão foram elencados dezessete
(17) para leitura integral. Destes 02 (dois) foram retirados por tratar-se de uma dissertação e de
uma apresentação teórica do método teatral de Boal. Restando assim (quinze) 15 textos que
foram classificados em cinco categorias, conforme quadro abaixo com respectivas referências:
Quadro 1 - Revisão de literatura em Banco de periódicos científicos que apresentam
trabalhos com Teatro do Oprimido
(Continua)
Número Categoria Referência
1 Uso do Teatro do Oprimido para formação
de profissionais de saúde
1 – GUPTA et al., 2013
2 –PROCTOR et al., 2008 3- BRETT-MACLEAN; YIU;
FAROOQ, 2012;
2 O Teatro do Oprimido como instrumento
facilitador de educação em saúde
1- GAZZINELLI et al., 2012;
2 – SANTIAGO, 2000;
3 – SULLIVAN et al., 2008;
4 - SULLIVAN et al., 2003
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Quadro 1 - Revisão de literatura em Banco de periódicos científicos que apresentam
trabalhos com Teatro do Oprimido
(Conclusão)
3 O Teatro do Oprimido com função
terapêutica e de reflexão crítica
1 – PENIDO et al., 2014;
2 – ALVES; GONTIJO; ALVES, 2013;
3 - WARNER, 2008.
4 O Teatro do Oprimido na Política de Saúde
Mental Brasileira
1 - SANTOS; JOCA; SOUZA,
2016;
2 - SILVA et al., 2011
5 O Teatro do Oprimido como ferramenta de
pesquisa
1 – OLIVEIRA; ARAÚJO,
2014; 2 - CAMPOS; PANÚNCIO-
PINTO; SAEKI, 2014; 3 - FERNANDES; JOCA,
2011 Fonte: Elaborado pela autora
Os estudos encontrados nos periódicos científicos demonstram que desde os anos
2000 essa abordagem teatral está sendo estudada na sua intersecção com o campo da saúde. A
primeira categoria foi intitulada como 1- Uso do Teatro do Oprimido para formação de
profissionais de saúde e é composta por três artigos (GUPTA et al., 2013; PROCTOR et al.,
2008 e BRETT-MACLEAN; YIU; FAROOQ, 2012). Eles se referem ao Teatro do Oprimido
como ferramenta de intervenção educacional para profissionais e estudantes da saúde. Gupta et
al. (2013) relatam a experiência de propor essa metodologia teatral para discutir questões
humanitárias na Universidade de Ciências Médicas de Nova Deli, na Índia. Os autores afirmam
que seu uso desenvolveu a capacidade crítica na formação médica e favoreceu a humanização
dos estudantes. Na Austrália, Proctor et al. (2008) abordam o uso do Teatro do Oprimido para
trabalhar questões de opressão e capacitar terapeutas familiares na prevenção de suicídios. Nos
Estados Unidos, Brett-Maclean, Yiu e Farooq, (2012) utilizaram a vertente do Teatro-fórum
para a formação de médicos e dentistas. Usaram as técnicas para discutir as questões
vivenciadas pelos trabalhadores em suas atividades profissionais.
Na categoria número 2 - O Teatro do Oprimido como instrumento facilitador de
educação em saúde foram agrupados quatro artigos (GAZZINELLI et al., 2012; SANTIAGO,
2000; SULLIVAN et al., 2008; e SULLIVAN et al., 2003). Destes, dois (02) referem-se a
36
estudos do mesmo grupo em um espaço de cinco anos entre as duas publicações. Sullivan et al.
(2003) em um primeiro texto trazem um relato em que apresentam o grupo de investigação da
Universidade do Texas que compõe o Institute of Environmental Health Sciences Center e
como o Teatro do Oprimido é utilizado junto a comunidade para atividades de educação
ambiental. Refere intervenções no sudoeste do Texas onde as comunidades têm sofrido com o
acometimento de doenças decorrentes das mudanças ambientais, sociais e econômicas causadas
com a implantação de petroquímicas na região. Cinco anos depois, Sullivan et al. (2008)
publicam novo artigo no qual apresenta a continuidade das atividades de seu grupo de pesquisa.
O foco do texto são as questões de justiça ambiental e a poluição existente nas comunidades, e
as ações do grupo utilizando o Teatro do Oprimido para discutir com a comunidade tais
questões que as mesmas vivenciam.
O artigo de Grazzinelli et al. (2012) refere-se a um trabalho em que utiliza o Teatro
do Oprimido como recurso pedagógico para orientar as crianças e jovens sobre o que seria uma
pesquisa científica e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O grupo
compunha uma equipe que objetivava testar uma vacina contra ancilostomíase, conforme
Valente (2013) consiste em uma infecção transmitida pelo contato com o solo contaminado e
causada por parasita da espécie Necator americanus e Ancylostoma duodenale. É uma das
formas de infecção crônica causada em humanos especialmente de áreas rurais pobres. O estudo
de Grazzinelli et al. (2012) usou o Teatro do Oprimido para esclarecer as questões da pesquisa
e observou sua eficácia em favorecer a compreensão sobre a mesma, amenizando o equívoco
terapêutico.
Santiago (2000) fala do trabalho de educação em saúde que desenvolveu no Chile
através do que chamou de Modelo do Teatro da Vida, no qual integra o Teatro do Oprimido de
Boal, o Teatro Pobre de Grotowaski, a Educação para a Paz de Beristain e Cascón, e a educação
popular de Paulo Freire. Discute o uso desse modelo com jovens pessoas portadoras do vírus
da imunodeficiência humana (HIV).
A categoria 3- o Teatro do Oprimido com função terapêutica e de reflexão crítica
consiste em três trabalhos (PENIDO et al., 2014; ALVES; GONTIJO; ALVES, 2013;
WARNER, 2008). Warner (2008) apresenta um espetáculo de Teatro do Oprimido tipo fórum
de um grupo londrino que tem apresentado para pessoas em situação de rua, problematizando
o transtorno mental e o abuso social das pessoas nessa condição. Alves, Gontijo e Alves (2013)
apresentam uma intervenção com jovens em vulnerabilidade social. São profissionais da
Terapia Ocupacional que apresentam uma pesquisa com o objetivo de descrever e analisar a
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utilização do Teatro do Oprimido como recurso terapêutico ocupacional junto a jovens em
situação de vulnerabilidade social no processo de conscientização e protagonismo juvenil.
Penido et al., (2014) relatam uma pesquisa em que adaptaram as técnicas do Teatro
do Oprimido ao tratamento da Terapia Cognitiva-Comportamental para a terapêutica de fobia
social. A pesquisa trabalhou com dois grupos de pacientes acometidos por fobia social, sendo
que um recebeu as técnicas do teatro, o chamado grupo-experimental e outro constituiu no
grupo-controle. Através da manipulação das técnicas da abordagem teatral realizaram a
psicoeducação, o treinamento em habilidades sociais, a reestruturação cognitiva e a exposição
ao vivo. A equipe de pesquisa identificou resultados significativos para sintomas de ansiedade
e depressão no grupo experimental.
Na análise dos trabalhos situados na categoria 4 - O Teatro do Oprimido na Política
de Saúde Mental Brasileira que se referem ao objeto desta pesquisa contaram em dois
(SANTOS; JOCA; SOUZA, 2016, SILVA et al., 2011). Verificou-se que os mesmo coadunam
com as fontes acima referidas quando colocam esta abordagem teatral como instrumento
facilitador da participação social e da expressividade dos sujeitos, estimulando a autonomia e
que constitui uma estratégia que está em consonância com a Reforma Psiquiátrica Brasileira e
a luta antimanicomial. Silva et al. (2011) realizaram uma pesquisa qualitativa com usuários da
atenção psicossocial que participavam de grupos de Teatro do Oprimido e verificaram uma
função psicoterápica, que favorece a expressividade, a inserção social pelo trabalho e pelo
estudo. Santos, Joca e Souza (2016) relatam a experiência de um projeto de Teatro do Oprimido
na rede psicossocial do município de Fortaleza, discutindo a abordagem teatral como
ferramenta que favorece a autonomia e participação dos usuários da saúde mental.
Finalmente a Categoria 5- O Teatro do Oprimido como ferramenta de pesquisa
apresenta três artigos que utilizam essa abordagem como ferramenta de pesquisa e todos
caracterizam-se como estudos do campo da psicologia. Fernandes e Joca (2011) utilizam como
dispositivo de pesquisa-intervenção dentro da perspectiva da Análise Institucional. Oliveira e
Araújo (2014) utilizaram o teatro fórum como ferramenta de pesquisa-participante e Campos,
Panúncio-Pinto e Saeki (2014) discutem a potência do Teatro do Oprimido como construtor de
dados em psicologia social.
Essa investigação buscou demonstrar como diversos autores estão utilizando e
pensando a abordagem do Teatro do Oprimido, especificamente no campo da saúde. Revelando,
dessa forma, uma diversidade de possibilidades que passa por instrumento de educação em
saúde, de formação crítica de profissionais, como ferramenta de cuidado e reflexão crítica, bem
38
como dispositivo de pesquisa social que favorece a participação com a construção de espaços
dialógicos e dados de pesquisa.
Nesse sentido, essa investigação de mestrado busca ampliar e aprofundar os estudos
acerca do Teatro do Oprimido como tecnologia do cuidado na política de saúde mental do Brasil
a partir da proposição do Modo Psicossocial.
39
4 REFERENCIAL TEÓRICO: O TEATRO DO OPRIMIDO NA SAÚDE MENTAL
Nesse estudo parte-se do pensamento de Augusto Boal (1931-2009), que apoiará as
propostas teórico-práticas, sendo importante delinear traços característicos dessa metodologia
teatral que foi sendo estruturada ao longo da vida do autor. São muitos escritos com produções
dramatúrgicas, ensaísticas, literárias, autobiográficas, de crônica e de crítica4.
Foi no final da década de 1980 que retornou do exílio o teatrólogo, dramaturgo,
escritor e sistematizador do Teatro do Oprimido (TO), Augusto Boal. Depois de quase vinte
anos o carioca voltou à sua terra natal com a sua proposta teatral aprimorada e multiplicada
para diversos países no mundo. No início do século XXI eram mais de 70 países com grupos
de Teatro do Oprimido. A volta ao Brasil, após a abertura política, ocorreu incentivada pelo
convite de Darcy Ribeiro para trabalhar nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs)
com a multiplicação de sua arte pedagógica. A partir daí foram várias as ramificações do TO
no Brasil, com inserção na educação, saúde, justiça e centros culturais (LIGIÈRO, TURLE,
ANDRADE, 2013).
4.1. O PENSAMENTO DE AUGUSTO BOAL
Com uma profícua produção, foi com quarenta anos de atividade profissional que
Boal publicou suas formulações/reflexões do Teatro do Oprimido como prática terapêutica, o
Arco-Íris do desejo: método Boal de Teatro e Terapia. Nele, Boal abordou pela primeira vez
uma experiência em hospital psiquiátrico, em Sartrouville e Fleury-les-Aubris, no período de
exílio, quando morava na França e lecionava na Sorbonne. Boal (2002) expõe como se
surpreendeu com suas próprias concepções pré-concebidas acerca de pessoas internas em
manicômios e de como essa vivência estimulou a discussão das opressões que os participantes
viviam, ressaltando sua própria transformação.
4Por ordem cronológica: Arena conta Tiradentes (SP: Sagarana, 1967); Categorias de Teatro Popular (Buenos
Aires: Ediciones CEPE, 1972); 3 Obras de Teatro (Buenos Aires: Ediciones Noé, 1973); Teatro do Oprimido e
outras poéticas políticas [1974] (RJ: 6ª Ed., Civilização Brasileira, 1991); Milagre no Brasil (S/l: Plátano Editora,
1976); Crônicas de Nuestra América (RJ: Codecri, 1977); Murro em ponta de faca (SP: Hucitec, 1978); Stop:
c´est magique (RJ: Civilização Brasileira, 1980); Técnicas Latino-Americanas de Teatro Popular (SP: 2ª Ed.,
Hucitec, 1984); O Corsário do Rei (RJ: Civilização Brasileira, 1985); Teatro de Augusto Boal (SP: Hucitec, 1990);
O suicida com medo da morte (RJ: Civilização Brasileira, 1992); Aqui ninguém é burro! (RJ: Revan, 1996); Teatro
Legislativo (RJ: Civilização Brasileira, 1996); Jogos para atores e não atores (RJ: Civilização Brasileira, 1998);
Hamlet e o filho do padeiro (RJ: Record, 2000); Arco-Íris do Desejo (RJ: Civilização Brasileira, 2002); Jane
Spitfire (SP: Geração Editorial, 2003); O Teatro como arte marcial (RJ: Garamond, 2003); e A Estética do
Oprimido (RJ: Garamond, 2009).
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Em seu último ensaio, Boal (2009) amadureceu teoricamente o TO, colocando-o
como um modelo ético-estético ligado ao ideal dos direitos humanos; citou os caminhos que o
Teatro do Oprimido como metodologia da Estética do Oprimido estaria construindo e dedicou
um capítulo à Saúde Mental. O objetivo seria o de estimular o saudável do ser humano, de
estruturar imagens da sociedade e dar-lhes significados. Para o autor, saúde é a capacidade de
cada um de transformar as potencialidades de seu corpo e mente.
Boal (2009) apresentou sua teoria acerca da produção artística, acreditando que
existe certo distanciamento de quem produz a arte e a consciência de estar-se fazendo arte.
Colocou o conceito de formas delirantes da arte, que consiste em uma adjetivação para a
criação artística. No entanto, ao se reportar ao sofrimento psíquico, utilizou o termo delírio
patológico para abordar a produção em que o sujeito é pouco capaz de controlar o seu delírio.
Diante dessa premissa das formas delirantes da arte e do delírio patológico, seria função do
curinga, quando trabalha o TO na saúde mental o de fortalecer os vínculos dos usuários com o
real.
Se o enfermo conseguir criar como artista, transformando seu delírio em produto
visível, audível e palpável - pintura, dança, escultura, música, poesia, cinema ou cena
teatral -, poderá ver-se a si mesmo, pois se verá refletido em sua arte. Sujeito da sua
criação, recriando-se a si mesmo ao criar a sua obra (BOAL, 2009, p. 229)
Essa é a hipótese boaleana de que ao produzir arte esse produtor torna-se sujeito de
criação de si no mundo, estruturando-se e construindo significados acerca de si e suas relações,
autor de sua própria história. A busca seria a de que pessoas em sofrimento psíquico criassem
elos entre a alucinação e o real, ambos expressando-se em visões estéticas. Seria uma expansão
da percepção através de meios estéticos, em que os participantes exercitam sua capacidade
criadora dentro de limites sociais consensuais, em um ensaio para a vida real.
Nesse ensaio de ser, o usuário da política de saúde mental pode teatralizar seus
conflitos individuais e coletivamente construir alternativas para a realidade opressora. “A