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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO – PRPPG
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – CCHL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DO BRASIL – PPGHB
MESTRADO EM HISTÓRIA DO BRASIL – MHB
MARIA AUXILIADORA CARVALHO E SILVA
DE SALTEADORES ERRANTES A MÁRTIRES E MILAGREIRO: representações
sociais de ciganos na Cidade de Esperantina-Piauí (1913-2010)
TERESINA – PI
2011
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MARIA AUXILIADORA CARVALHO E SILVA
DE SALTEADORES ERRANTES A MÁRTIRES E MILAGREIRO: representações
sociais de ciganos na Cidade de Esperantina-Piauí (1913-2010)
Dissertação apresentada à Coordenação do
Programa de Pós-Graduação em História do
Brasil, do Centro de Ciências Humanas e
Letras, da Universidade Federal do Piauí,
como requisito parcial para obtenção do grau
de Mestre em História do Brasil.
Orientadora: Profª. Drª. Áurea da Paz Pinheiro.
TERESINA – PI
2011
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FICHA CATALOGRÁFICA
Universidade Federal do Piauí
Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco
Serviço de Processamento Técnico
S586d Silva, Maria Auxiliadora Carvalho e
De salteadores errantes a mártires e milagreiro: representações
sociais de ciganos na Cidade de Esperantina – Piauí (1913-2010) /
Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. – 2011.
142 f.: il
Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade
Federal do Piauí, Teresina, 2011.
Orientação: Profª. Drª. Áurea da Paz Pinheiro
1. Ciganos - Piauí. 2. Memória Coletiva. 3. Religiosidade
Popular. I. Título.
CDD: 305.891 497
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MARIA AUXILIADORA CARVALHO E SILVA
DE SALTEADORES ERRANTES A MÁRTIRES E MILAGREIRO: representações sociais
de ciganos na Cidade de Esperantina-Piauí (1913-2010)
Dissertação apresentada à Coordenação do
Programa de Pós-Graduação em História do
Brasil, do Centro de Ciências Humanas e
Letras, da Universidade Federal do Piauí, para
obtenção do grau de Mestre em História do
Brasil.
Orientadora: Profª. Drª. Áurea da Paz Pinheiro
Trabalho apresentado e aprovado em 22/03/2011
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Profa. Dr
a. Áurea da Paz Pinheiro (Orientadora)
Universidade Federal do Piauí - UFPI
_________________________________________________________
Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima
Universidade Federal do Piauí - UFPI
________________________________________________________
Profª. Drª. Eliane Moura Silva
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
________________________________________________________
Profª. Drª. Viviane Pedrazani (Suplente)
Universidade Estadual do Piauí - UESPI
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Aos ciganos do Brasil
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AGRADECIMENTOS
A Deus, por me iluminar nesta caminhada, a trilhar os caminhos da sabedoria e
discernimento em minhas escolhas.
À minha mãe Maria de Amorim Silva, a pessoa mais especial em minha vida.
A todos os meus familiares pelo apoio.
À Profª. Drª. Áurea da Paz Pinheiro, minha orientadora, pela confiança, entusiasmo e
força que depositou neste trabalho e em mim.
Aos professores doutores, Solimar Oliveira Lima e Jacqueline Lima Dourado, pelas
valiosas contribuições apresentadas durante o exame de qualificação.
Ao Prof. Dr. Edwar de Alencar Castelo Branco, pelas críticas e sugestões apresentadas
ao meu projeto, durante a disciplina Seminários de Linha de Pesquisa, que muito nortearam a
realização deste trabalho.
Aos devotos, pela gentileza em conceder entrevistas.
Aos colegas de turma: Agnelo Pereira, Vanessa Negreiros, Ernani Brandão, Graça
Prazeres, Neuza Arêa Leão, Sorailky Batista, Iêda Moura, Pedrina Nunes, Carla Danielly,
Veruska Laureana e Teotônio Filho, pelo apoio e incentivo na elaboração desta pesquisa.
Pelos nossos momentos de conversa, descontração, risos e alegrias compartilhados durante o
biênio 2009-2010.
À grande amiga Viviane Pedrazani, por ter me incentivado em retornar à vida
acadêmica, acompanhando-me nessa trajetória desde a elaboração do projeto até a conclusão
desta pesquisa.
Aos amigos Alexandre Veras e Adriana Soares, presentes de Deus, agradeço o apoio,
incentivo e por estarem sempre presentes na minha vida, torcendo pelo meu sucesso e minha
felicidade.
Ao Mestrado em História do Brasil, por ter aberto essa oportunidade de crescimento
pessoal, intelectual e profissional.
À Professora Telde Soares Leal Melo Lima, pela revisão ortográfica.
À Lauriene Matos, minha eterna professora de inglês, pela correção do abstract.
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A todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização desta Dissertação,
que me ajudaram de alguma forma, no decorrer do meu percurso em busca do almejado título
de “Mestre em História do Brasil”, agradeço imensamente.
Muito Obrigada!!
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Mora, no sangue cigano,
uma canção de pássaros
expulsos do Paraíso.
Só tiveram tempo
de levar consigo:
a música e a dança,
roupas do corpo
abrigo do espírito,
cobertor de soluços.
Deus logo os chamou de volta
para alegrarem de novo as festas do Céu.
(Ciganos - Poemas em Trânsito. Thesaurus, Brasília, 1998)
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RESUMO
A dissertação versa sobre o massacre de um grupo de ciganos realizado pela Polícia
Militar do Piauí, no início do século XX. Segundo a imprensa da época, os ciganos
percorriam o norte piauiense, andavam armados e praticavam furtos e depredações à
propriedade privada. Essas ações teriam portanto motivado uma perseguição ao grupo
pela polícia que veio a alcançá-los no povoado Retiro da Boa Esperança, atualmente
Município de Esperantina. No local, travou-se um tiroteio no qual morrem ciganos adultos
e uma criança. Os corpos dos ciganos mortos, após um velório não convencional sob a
sombra de três mangueiras, foram jogados em vala única. O sentimento de piedade
manifestado pelas pessoas pela morte trágica, ausência do ritual cristão diante da morte e a
maneira como foram sepultados, acabou por transformá-los em mártires e o local do
sepultamento em espaço de romaria e preces. Eis uma transformação no plano do
imaginário popular no que tange às representações dos ciganos: de salteadores errantes a
mártires e milagreiro. Essa ressignificação elaborada historicamente para o plano mítico é
um dos pressupostos da pesquisa. Neste trabalho traço uma abordagem sobre as
representações sociais historicamente construídas sobre ciganos no Brasil. Historicizo o
massacre dos ciganos usando como fontes os jornais de época, as fontes policiais, a
investigação oral para compreender essa tragédia entre as pessoas de Esperantina. Ao
analisar as fontes orais, deparo-me com a história de um massacre que permanece viva na
memória coletiva, reinventado por gerações. Faço uma análise das representações que
favoreceram essa ressignificação. Por último, abordo os usos sociais dessas representações
e apresento ao leitor um sentimento religioso construído em torno das almas dos ciganos
pelos esperantinenses, bem como as práticas de religiosidade popular, como visitas aos
cemitérios, o ato de acender velas e fazer promessas ao Ciganinho, que segundo o
imaginário coletivo, por ser uma criança, um inocente, ganhou poderes na hierarquia do
mundo celestial, podendo intervir entre Deus e as pessoas deste mundo em momentos
difíceis.
PALAVRAS-CHAVES: Ciganos. Memória Coletiva. Piauí. Religiosidade Popular.
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ABSTRACT
This paper broaches a massacre of a gipsy group, interprised by the military police of Piauí
during the beginning of the twentieth century. According to the press from that time, these
people were traveling in the northern part of Piauí they were armed, pickpocking and
vandalizing private property. These acts would have leaded a pursuit of the group by the
police that reached them in a village named Retiro da Boa Esperança, currently Esperantina.
In that place a shoot-out happened, where many gipsies were killed, including a child. The
corpses, after an unusual deathwatch that took place under a mango tree shadow, were threw
in unique ditch. The mercy felling evidenced by the people cause of the tragedy and specially
because they were buried without the Christian ritual, like animals, turned them from villains
to martyrs also the place where they dead became a point of pilgrimages and prayers. Here is
a changement in the popular imaginary plan about the representation of these gypsies. This
resignification historically developed to the mythical plan is one of the topics of this research.
I report the massacre of gypsies using as source a press from that time, some others
informations were given by the police. I used the oral investigation to understand this tragedy
among the people from Esperantina. Analyzing the oral source I came across the history of a
massacre that remains alive in collective memory that is recreated over generations. I make an
analysis of the representation that supports this resignification. Finally, I broached social uses
of these representations and I showed the readers a religious felling developed around
gipsies´souls by the people from Esperantina as well the popular religiosity practices like
visits to the cemetery, the act of lighting candles and making promises to the gipsy child
“Ciganinho” who, according to the collective imaginary, being an innocent, got some power
in the hierarchy of celestial world. People think the kid would be able to intervene on their
lives to help them.
KEYWORDS: Gipsies. Collective Memory. Piauí. Popular Religiosity.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 Espaço urbano do Retiro da Boa Esperança no início do século XX -
Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
60
Figura 02 Rota da tropa policial em perseguição aos ciganos - Fonte: Arquivo
Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
72
Figura 03 Cemitério dos Ciganos – Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora
Carvalho e Silva
100
Figura 04 Cemitério dos Ciganos (vista interna) - Fonte: Arquivo Particular de Maria
Auxiliadora Carvalho e Silva.
100
Figura 05 Visitantes acendem velas no cruzeiro do cemitério no dia de finados
- Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
101
Figura 06 Jatobazeiro, local onde o Ciganinho teria buscado esconderijo - Fonte:
Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silv.
104
Figura 07 Cemitério do Ciganinho - Dia de finados - Fonte: Arquivo Particular de
Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
105
Figura 08 Figura 08: Fiéis acendem velas no túmulo do Ciganinho no dia de finados -
Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
115
Figura 09 Fiéis acendem velas no Jatobazeiro - Fonte: Arquivo Particular de Maria
Auxiliadora Carvalho e Silva
116
Figura 10 Placa do túmulo restaurado pela devota Maria de Jesus de Sá Carvalho - 118
12
Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
Figura 11 Ex-votos depositados ao lado do túmulo do Ciganinho - Fonte: Arquivo
Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
120
Figura 12 Ex-voto de pernas - Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora
Carvalho e Silva
121
Figura 13 Ex-voto de seios - Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora
Carvalho e Silva
121
Figura 14 Ex-voto de uma mão - Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora
Carvalho e Silva.
122
Figura 15 Ex-votos variados - Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora
Carvalho e Silva
122
13
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................... 12
1. CIGANOS NO BRASIL: marginalização e tolerância ................................................ 20
1.1 Segregados na Metrópole, tolerados na Colônia........................................................... 20
1.2 A inserção dos ciganos no comércio ............................................................................ 31
1.3 Mitos sobre o povo cigano........................................................................................... 38
2. CORRERIA DE CIGANOS NO PIAUÍ ...................................................................... 47
2.1 O alvorecer do século XX no Piauí .............................................................................. 47
2.2 O Retiro da Boa Esperança .......................................................................................... 57
2.3 O “banditismo dos ciganos” e ação policial ................................................................. 67
3. CIGANOS: da tragédia à religiosidade popular ........................................................... 96
3.1 Dia de finados: gestos de fé e devoção ........................................................................ 96
3.2 Ciganinho Roldão: o errante milagreiro ....................................................................... 101
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 126
REFERÊNCIAS E FONTES .......................................................................................... 128
APÊNDICES
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Neste estudo, narro a história do massacre de um grupo de ciganos realizado pela
Polícia Militar do Piauí, em 1913, no povoado Retiro da Boa Esperança, atualmente,
município de Esperantina.
O acontecimento envolveu um grupo de ciganos que percorria o Norte do Piauí, acusado
de praticar furtos e depredações. A notícia da presença dos ciganos chegou ao conhecimento
do poder público que enviou um contingente policial em perseguição ao grupo, que foi
“caçado” de Miguel Alves, passando pelos povoados Peixe e Marruás [atualmente os
municípios de Nossa Senhora dos Remédios e Porto, respectivamente], Campo Largo, e,
finalmente, no Retiro da Boa Esperança, onde foi travado um tiroteio, que resultou na morte
de alguns deles.
Segundo notícias publicadas nos jornais da época, os ciganos formavam um “bando” em
torno de duzentas pessoas montadas a cavalo, armadas de garruchas, espingardas, rifles,
espadas e punhais, que atacavam e depredavam propriedades dispersas pela região. As
notícias que se espalhavam, criaram no imaginário coletivo sentimentos e atitudes de repulsa
e medo por parte das populações locais. A imprensa adjetivava os ciganos de “bandidos”,
“trapaceiros”, “cangaceiros cearenses”, que saqueavam cereais e animais, para transporte e
alimentação. Além disso, os ciganos eram acusados de assediarem moças da sociedade, na
tentativa de raptarem-nas para integrá-las ao “bando”. Essas e demais histórias das ações dos
ciganos teriam oportunizado “O massacre do Retiro” em 1913, onde policiais cercaram,
massacraram e dispersaram o “bando” de ciganos, pondo fim à saga do grupo.
A violência da qual foram vítimas e o sepultamento não convencional dos mortos, que
foram atirados em uma vala comum, sem caixão, sem mortalha e sem velório – prática
contrária à fé e à piedade cristã –, acabariam por transformar os ciganos, outrora “bandidos”,
em mártires, tornando o local de sepultamento dos mesmos em espaço de romaria e preces.
Após quase um século, o acontecimento ainda não foi devidamente estudado pela
historiografia piauiense. O trabalho “Massacre no Retiro: os ciganos entre a História e o
imaginário popular”, monografia de final de curso de graduação em História de minha autoria,
é o único trabalho acadêmico até então realizado. Reconstituí a história do massacre, a partir
da análise de fontes hemerográficas, de matérias publicadas sobre o acontecimento divulgadas
nos principais periódicos da época, dentre eles “Piauí” e “Diário do Piauí”; além de fontes
oficiais, como relatórios e inquéritos policiais.
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Naquela pesquisa, centrei as análises no município de Esperantina, local que
representa1515 o palco final da tragédia cigana. A escolha da temática partiu de um interesse
pessoal. Nasci em Esperantina, desde criança ouvia falar da história daqueles ciganos. Em
recorrentes indagações de como a polícia teria matado um grupo de ciganos, que
supostamente roubava na região; ou sobre um sentimento de indignação que dominava
pessoas que narravam o acontecimento.
Na tarefa de reconstituir a história do massacre na cidade, utilizei além das fontes já
citadas a metodologia da História Oral. Entrevistei filhos de contemporâneos do massacre,
encontrei a última testemunha ocular da chacina. “A História Oral, ao se interessar pela
oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e versão que dimanam do interior e
do mais profundo da experiência dos atores sociais”1. Deparei-me com memórias que
permanecem vivas para muitas pessoas de Esperantina, mesmo após décadas do
acontecimento.
Agora, como pesquisa em nível de mestrado acadêmico, avanço no estudo e análise da
temática. Ao narrar uma história do “Massacre do Retiro”, indago sobre as condições de
existência de grupos sociais específicos como os ciganos no Piauí no início do século XX.
Para realizar o meu intento, formulo as seguintes indagações: Como poderia ser descrita a
sociedade piauiense do Norte do Piauí nas duas primeiras décadas do século vinte? Quem
eram os ciganos e que papéis desempenharam no interior da sociedade piauiense? Que lugar
os ciganos ocupam no imaginário coletivo? Que memória social foi construída do “Massacre
do Retiro”? No que se refere aos ciganos de Esperantina e ao “Massacre do Retiro”, que
razões históricas teriam colaborado para a transmutação, no sentido de ressignificação, dos
ciganos de errantes salteadores a mártires e a milagreiro?
Pretendo historicizar o acontecimento, analisar as representações sociais construídas dos
grupos ciganos, os usos sociais dessas representações e compreender através das práticas
devocionais aos ciganos, os signos, os sentidos e os significados da religiosidade popular
entre as pessoas de Esperantina e entorno.
Neste trabalho, estudo o massacre dos ciganos como um acontecimento tornado fato
histórico, um fenômeno cultural construído e representado socialmente por grupos ciganos e
por populações que viveram o tempo do acontecimento e para além dele. Ao tomar como
objeto de estudo o massacre dos ciganos, insiro-me na tradição de pesquisas de temas
1 LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In:
FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1999, p. 16.
16
recorrentes na produção da Nova História Cultural. Considero os ciganos uma categoria
subalterna, sujeitos sociais excluídos de uma história escrita tradicional, que ao longo de
muitos anos privilegiou categorias sociais dominantes. No amplo campo de investigação da
Nova História Cultural, sujeitos marginalizados têm um papel significativo nas narrativas dos
historiadores, que buscam compreender as atitudes em relação aos excluídos, as categorias
sociais subalternas; entender as imagens e representações construídas desses grupos em um
contexto de transformações econômicas, sociais e mentais em comunidades marcadas por
lógicas sociais.
Para uma melhor compreensão do trabalho que intitulei “De salteadores errantes a
mártires e milagreiro: representações sociais de ciganos na Cidade de Esperantina-Piauí
(1913-2010)”, organizo a narrativa da seguinte forma: Capítulo 1, “Ciganos no Brasil:
marginalização e tolerância”, onde traço uma caracterização construída culturalmente sobre o
povo cigano. Dividi-o em três sub-tópicos: No primeiro: “Segregados na Metrópole,
tolerados na Colônia”, abordo a origem dos ciganos, a chegada deles no continente europeu e
as primeiras manifestações de exclusão pela sociedade européia, em especial, a política do
degredo colonial, e a chegada desse povo ao Brasil; no tópico: “A inserção dos ciganos no
comércio”, defendo que esses nômades, mesmo fora da tradicional ordem do trabalho no
mundo colonial, buscavam formas que garantissem a sobrevivência: o comércio de
mercadorias diversificadas, a arte circense, e o conserto de peças nos engenhos; mas foi como
mercadores de escravos que ganharam aceitação e valorização social. No último tópico:
“Mitos sobre o povo cigano”, mostro os estereótipos construídos sobre os ciganos ao longo da
história: “sujos”, “vadios” e “ladrões”. É na prática do roubo que a imagem dos ciganos se
consolida. No final do século XIX, com o fim do trabalho escravo, muitos dos ex-mercadores
passaram a sobreviver de pequenos delitos, e, em consequência disso, sofreram ações
repressivas pela polícia mineira, as chamadas “correrias de ciganos”. Tento fazer uma
conexão entre as correrias de ciganos em Minas Gerais e a repressão ocorrida no Piauí.
Os ciganos são atores sociais. Representados historicamente como marginais, foram
marginalizados, excluídos, e passaram a ser estudados como minorias, como grupos
periféricos. Abro essa discussão com a chave teórica de Jean-Claude Schmitt, historiador dos
marginais, que entende que uma sociedade se revela por inteiro diante do trato de suas
margens, ou ela exclui ou integra seus marginais, atenta para o critério da utilidade social2.
Utilizei a teoria de Schmitt para compreender a inserção dos ciganos na sociedade colonial.
2 SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
17
Para a construção da narrativa, fiz um balanço da literatura, de estudos sobre ciganos no
Brasil no terreno da História, Antropologia e Ciganologia. Foi um trabalho de “garimpagem”,
visto que existem poucos estudos acadêmicos conhecidos sobre ciganos no Brasil. As
pesquisas em História sobre o tema são tímidas e, como sujeitos do conhecimento histórico,
os ciganos são ainda marginais na historiografia.
No segundo capítulo: “Correria de ciganos no Piauí”, apresento ao leitor o massacre dos
ciganos. Para uma melhor compreensão do conflito, dividi o capítulo em três sub-tópicos, no
primeiro: “O alvorecer do século XX no Piauí”, apresento a conjuntura social, política e
econômica do Estado do Piauí nos anos iniciais do século XX, com base em produções
historiográficas locais; no segundo: “O Retiro da Boa Esperança”, apresento ao leitor a
organização, desenvolvimento e urbanização do povoado, nas duas primeiras décadas do
século anterior. Faço uma revisão de literatura e apresento o “Retiro” tomando como
referência obras publicadas por escritores esperantinenses. Usei as fontes orais, entrevistei
pessoas que conhecem a história do povoado, informações que complementam aquelas
extraídas da bibliografia consultada; faço um mapeamento do centro da cidade de Esperantina
e mostro o espaço urbano do “Retiro”, em 1913, bem como a localização de prédios e
logradouros, como Igreja, Praça, Cemitério e residências de pessoas que naquela época
atuaram direta ou indiretamente no massacre dos ciganos. O tópico “O „banditismo‟ dos
ciganos e ação policial” é um prolongamento da minha pesquisa anterior, onde narro o
massacre com detalhes e mais maturidade acadêmica.
Encontrei limitações na tarefa de historicizar o massacre no Retiro. Os ciganos, por
serem ágrafos, não deixaram registros escritos, a documentação que analisei [fontes policiais
e jornais] reflete a visão que os donos do poder tinham sobre o povo cigano, um olhar hostil e
preconceituoso. Esses documentos do “centro”, segundo Schmitt, são reflexos do lugar onde
foram produzidos, e nos possibilitou uma releitura do próprio centro3.
Torna-se uma tarefa árdua trazer os ciganos - sujeitos sociais marginais, minorias,
excluídos, para o corpo do texto, deslocando-os das notas de rodapé. É preciso contar a
história desse povo, mesmo diante da relativa escassez de documentação por eles mesmos
produzida, o que temos, na maioria das vezes, são documentos não produzidos pelos ciganos.
Esse é o grande desafio do historiador que se propõe a estudar e interpretar a história dos
excluídos, dos marginais.
Em nosso ofício de historiadores, os marginais estreiam preenchendo lacunas da história
3 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995.
18
tradicional, trazendo de volta à memória os esquecidos: criminosos, bruxos, negros,
homossexuais, prostitutas e ciganos. Cada vez que a história se orienta para novos territórios,
ressurge um questionamento sobre as fontes, se elas permitem responder às novas
problemáticas.
Como ouvir a voz dos marginais do passado, quando por definição, ela foi sistematicamente abafada pelos detentores do poder, que falavam dos
marginais, mas não os deixavam falar. Chegar diretamente ao que os
marginais diziam, sem passar de uma maneira ou de outra pela mediação de um discurso oficial ou erudito, é uma empresa quase desesperada
4.
Schmitt sugere arquivos e documentos diversos que emanam do “centro” não das
margens: registros da Inquisição, dos arquivos de polícia, dos tribunais de justiça ou das
prisões. A partir dessas fontes, “o historiador pode ouvir melhor a voz dos marginais. Por
mais paradoxal que possa parecer, a razão disso é que esses arquivos nasceram da repressão”5.
Essas fontes, na visão schmittiana, são depoimentos sobre o próprio „centro‟, sobre o lugar em
que foram elaboradas. Dessa forma, a história da marginalidade traz uma contribuição
essencial de não ter somente preenchido as margens da história, como ter possibilitado
também uma releitura da história do centro6.
Contar a história de grupos marginais a partir de uma história inédita das margens ou
uma história renovada do centro, é um passo essencial na contribuição para uma história total
em construção. Esse procedimento remete o historiador do centro à periferia, ao âmago de seu
objeto, a um indicativo de que, através dos discursos e das práticas de marginalidade e de
exclusão, manifestam-se as transformações fundamentais das estruturas econômicas, sociais e
ideológicas, pois “[...] tanto na sociedade como no livro, a margem é vazia e a figura
imprevista do marginal que nela vem inscrever-se, na maior parte dos casos é fugidia, prestes
a dissolver-se em um lado ou a cair no outro porque desafia os marcos preestabelecidos da
„razão social‟” 7.
Antes da sugestão de Schmitt, no tocante à problemática das fontes, o historiador
italiano Carlo Ginzburg já atentava para os documentos do “centro” em trabalhos como “O
Queijo e os Vermes” [1987]8 e “Andarilhos do Bem”
9 [1988], que focalizam marginais. No
4 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 285. 5 Ibid. Id. 6 Ibidem. 7 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 286 8 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
19
primeiro trabalho, o autor narra o cotidiano, a vida de um moleiro, conhecido por Menocchio,
perseguido pela Inquisição por disseminar ideias heréticas no povo de sua aldeia. Como
fontes, o historiador utiliza os processos da Inquisição, que condenaram o moleiro, homem
simples do povo; no outro trabalho, Ginzburg lança luzes sobre a questão da bruxaria e sua
perseguição: Os andarilhos do bem eram os praticantes de um culto de fertilidade, na região
italiana do Friuli, entre o final do século XVI e a primeira metade do século XVII.
Apresentavam-se como defensores das colheitas contra bruxos e feiticeiros que, em sonho ou
delírio semi-onírico, combatiam com ramos de erva-doce. Se vencessem os andarilhos do mal
[bruxos ou feiticeiros], a colheita de trigo e uva seria abundante, se perdessem a guerra, o
resultado seria a fome. A Igreja Católica, naquele período, perseguia essas crenças oriundas
da cultura popular pagã, buscava levar seus praticantes a confessar essas batalhas noturnas,
uma versão clássica do Sabá10
. Diante desse labor, Ginzburg também utiliza como
documentos os processos inquisitoriais, uma vez que esses marginais por serem iletrados não
deixaram documentos escritos; “é lícito dizer que as vozes desses camponeses chegam
diretamente até nós, sem véus, não confiadas – como muitas vezes ocorre – a testemunhos
fragmentários e indiretos, filtrados por uma mentalidade diversa e inevitavelmente
deformante”11
.
Ciente de que se trata de contextos e períodos diferentes – ou seja, Itália no século XVI
e XVII - podemos utilizar a mesma metodologia relativa às fontes empregadas por Ginzburg
quando ele analisa os processos inquisitoriais e trazê-la para a conjuntura da construção da
história sobre ciganos no Brasil e no Piauí, pois os ciganos por serem ágrafos não deixaram
registros escritos e a documentação é de caráter dispersa e parcial. Documentos em que
ciganos aparecem, são “ouvidos” indiretamente, através de mediadores, como os chefes de
polícia. Nessas fontes, produzidas por esses sujeitos, descrevem-se hábitos, costumes, modos
de ser e fazer do povo cigano, numa análise descritiva meticulosa, mas por intermédio de um
olhar hostil e constrangedor, tal qual nos processos inquisitoriais tratados por Ginzburg.
É através dessas fontes, mesmo denotando um olhar preconceituoso, “coisificado” ao
ser cigano, que posso historicizá-los. Para essa história chegar até nós, já que os ciganos eram
anônimos, não deixavam “rastros”, foi necessário o encontro deles com o poder, que resultou
9 GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. 10 Reunião noturna das sextas-feiras, muito conhecida no período medieval. Nesse festim, que começava à meia-
noite, as bruxas entregavam-se a orgias e ao demônio, voavam em suas vassouras, cavalgavam seus bodes, ou
mesmo transformadas sob a forma de pássaros. Para que pudessem voar, untavam seus corpos com uma poção
mágica por elas preparada. 11 GINZBURG, Carlo. Op., Cit., 1988, p. 07.
20
em um massacre. Caso contrário, como atenta Michel de Foucault, não se poderia reaver a
vida desses homens infames, em si mesmas, nas mentiras imperiosas que supõem os jogos do
poder e as relações com ele12
.
Quando analisei as fontes orais, os depoimentos coletados sobre a história do massacre
no Retiro, enfatizei na narrativa o imaginário coletivo, a maneira como o acontecimento,
tornado fato, permanece vivo na mentalidade coletiva, repassado e reinventado por gerações.
É preciso entender que as representações de uma sociedade numa época formam um sistema
articulado com outros, classificação social e religião que também são modos de
comunicação13
. A maioria dos meus entrevistados não foram contemporâneos do massacre, no
entanto tiveram contato com pessoas que testemunharam o acontecimento em 1913. Assim, a
partir das reflexões de Maurice Halbawchs, percebi que um homem para evocar seu próprio
passado necessita fazer apelo às lembranças dos outros, dessa forma, a carga de lembranças
que esses entrevistados carregam não lhes pertence, trata-se de uma memória emprestada14
.
No terceiro capítulo, intitulado “Ciganos: da tragédia à religiosidade popular”, mostro
ao leitor um sentimento religioso construído em torno das almas dos ciganos pelas pessoas de
Esperantina. Os ciganos adjetivados como bandidos foram ressignificados no plano do
imaginário coletivo para mártires o que se justifica devido à morte bárbara que tiveram. Um
sentimento de piedade toma conta do esperantinense quando o massacre é lembrado. O
sentimento religioso é mais intenso para com o Ciganinho, a criança que foi alvejada pela
polícia de um jatobazeiro quando procurava esconderijo. É comum as pessoas fazerem
promessas ao pequeno errante, colocando-o como intercessor entre os homens e Deus. No
tópico “Dia de finados: gestos de fé e devoção”, mostro a solidariedade cristã das pessoas de
Esperantina em torno da alma dos ciganos no dia de finados quando se dirigem ao cemitério
onde estão enterrados, para acenderem velas e lembrarem os ciganos e o massacre em
orações. Em outro tópico, “Ciganinho Roldão: o errante milagreiro”, mostro a devoção ao
pequeno nômade e as diversas práticas de religiosidade popular em torno dele: visitas ao
cemitério, promessas, ex-votos. Para construir esse capítulo, adotei novamente a metodologia
da História Oral quando saí “à caça” de devotos do Ciganinho ou pessoas que fizeram
promessas a ele diante de uma eventualidade, para concederem entrevistas e falarem sobre
suas experiências religiosas, de promessas. Visitei os cemitérios dos Ciganos e do Ciganinho
no dia de finados, por várias vezes, no intuito de observar o fluxo de visitas de fiéis católicos,
12 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens/veja, 1992. 13 PATGLEAN, Evelyne. A História do Imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1995. 14 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Ed. Revista dos Tribunais, 1990.
21
nesses lugares colhi depoimentos dos visitantes e registrei por meio de fotos, imagens que se
encontram inseridas no corpo do capítulo. Busquei a teoria de Émile Durkheim para iluminar
meu estudo sobre a devoção ao menino cigano. Roldão é um ser espiritual e a relação que os
devotos mantêm com ele é determinada pela natureza que lhe é atribuída: por procedimentos
psicológicos, procurando convencê-lo através de palavras [invocações, orações] ou de
oferendas e de sacrifícios15
. Adequei o pensamento durkheimiano de que os seres espirituais
são predominantes ao homem comum e entre eles se estabelece uma dependência recíproca:
“Os deuses, também, têm necessidade do homem; sem as oferendas e os sacrifícios eles
morreriam”16
. Assim, entendo que, se os devotos dependem do Ciganinho para interceder
junto a Deus, o Ciganinho também precisa de seus devotos para se manter nessa posição de
destaque na hierarquia espiritual.
15 DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo:
Ed. Paulinas, 1989. 16 Ibidem, p. 69-70.
22
CAPÍTULO 1
CIGANOS NO BRASIL: marginalização e tolerância
1.1 Segregados na Metrópole, tolerados na Colônia
Ciganos. O que se sabe e o que se diz sobre eles? As representações sociais construídas
ao longo do tempo em torno do povo cigano dizem respeito a um contingente disperso pelo
mundo, sem pátria, gente livre, alegre, aventureira, que preserva tradições e costumes
acumulados e recriados de geração a geração.
Costuma-se associar ao povo cigano, aos seus costumes e valores, a imagem de
mistério, de fascínio, uma estreita ligação com o futuro por intermédio de práticas
adivinhatórias. Eis aí uma visão romântica e idealizada. Por outro lado, os ciganos são vítimas
de um arraigado preconceito, expresso até na definição da palavra cigano, que quer dizer:
astuto, velhaco, trapaceiro, povo errante e miserável, que procede da Índia, que percorre todo
o mundo, ora a enganar compradores e vendedores de gado nas feiras, ora envolvidos na
pirataria, etc.17
O mesmo preconceito é expresso na palavra ciganice – sua derivada – que
significa artimanhas para iludir nas compras e vendas. Esses preconceitos e estereótipos
impõem abismos entre as etnias e a sociedade, transforma-os em objetos de curiosidade, de
temor e de crendices18
. Dessa forma,“[...]os ciganos são retratados a partir de sentimentos que
oscilam entre o fascínio que suas tradições exercem e os temores alimentados por estigmas e
superstições atrelados ao seu estilo livre”19
. E como as demais minorias que são vítimas de
condenação, julgamento e atitudes segregacionistas do mundo civilizado, o preconceito racial
e cultural contra os ciganos continua vivo, sendo a história desse povo marcada pela
exclusão20
.
A origem dos ciganos é permeada de controvérsias. Alguns ciganólogos recorreram à
Bíblia para explicar suas origens, apontando-os como descendentes de Caim. O trecho do
livro de Ezequiel 30: 23 [Dispersarei os egípcios entre as nações, eu os disseminarei em
17 CAVALCANTI, Sônia Maria Ribeiro Simon. Caminheiros do destino. São Paulo: PUC-SP, 1994. 18 Ibidem. 19 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Ciganos em terras brasileiras. In: Revista de História da Biblioteca Nacional.
Ano 02, n. 14, nov. 2006, p. 15. 20 CAVALCANTI, Sônia Maria Ribeiro Simon. Op. Cit., 1994.
23
diversos países] foi associado aos ciganos, visto que eles eram conhecidos como egípcios
quando chegaram à Europa21
.
Porém, a hipótese mais aceita é a de que procederiam da Índia. Expulsos do território
indiano no final do século XIV, teriam migrado para a Pérsia e Egito, e somente no início do
século XV teriam se espalhado pela Europa. A dispersão dos grupos teria ocorrido de forma
gradual, tocando eles em épocas irregulares a pontos sucessivos22
. Uma vez no Egito, por
ocasião da fuga da Virgem Maria, os ciganos recusaram-se em dar-lhe hospedagem, o que
justificaria o caráter peregrino e errante dos ciganos, dispersos, sem pátria, por todos os
tempos23
. Essa lenda tenta explicar o nomadismo, uma das características do povo cigano.
A presença desse povo no continente europeu é logo notada, “a atração do exotismo e a
caridade para com aqueles considerados peregrinos prevalecem sobre a desconfiança”24
, “[...]
as mulheres têm „cabelos negros como rabo de um cavalo‟ e grandes anéis nas orelhas.
Todavia, embora lhes ofereçam víveres, as prefeituras proíbem-nos de entrar nos limites das
cidades e logo adquirem o costume de pagar para que eles fossem embora”25
.
A partir do século XVI, as autoridades francesas passaram a assimilá-los explicitamente
aos „indigentes‟ e „vagabundos‟ por não terem profissão ou domicílio. Justificavam que “[...]
o nascimento não é rigorosamente o que faz o boêmio26
, mas sim a profissão vagabunda”27
.
A partir de então, atitudes radicais são dirigidas contra os ciganos. De acordo com um
decreto do governo francês de 1682, “os homens devem ser mandados às galés28
, as mulheres
devem ter seus cabelos raspados e serem banidas, e as crianças devem ser internadas no
Hospital”29
.
Em Portugal, foram identificados como “gicianos”, “egipcianos”, “egicianos” ou,
simplesmente, ciganos.
O primeiro olhar dos portugueses conseguia perceber o nomadismo, o
costume de andar em grupo, um outro modo de vestir. Uma observação mais
atenta identificava uma língua estranha e um modo de se comportar diferente da população portuguesa. Com o passar do tempo, os preconceitos
21 SILVA, Denize Carolina Auricchio Alvarenga da. Introdução à história dos ciganos. Disponível em:
http://www.historianet.com.br/conteúdo/default.aspx?codigo=965. Acesso em 22 out. 2010. 22 MORAES FILHO, Mello. Os ciganos no Brasil e Cancioneiro dos ciganos. São Paulo: Ed. da USP, 1981. 23 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte: Crisálida, 2007. 24 SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1995, p. 277. 25 Ibid. Id. 26 Era como o cigano era chamado na França. 27 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit.,1995, p. 277 28 Antigos navios de guerra, de borda baixa, movidos a remo, mas também dotados de 2 ou 3 mastros. Tinham de
15 a 30 metros de comprimento e eram movidos geralmente por condenados ou escravos. 29 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 277
24
iam ganhando forma30
.
Uma sociedade se revela por inteiro, segundo Jean-Claude Schmitt, no que concerne ao
tratamento de suas margens. Teoricamente, duas possibilidades lhe são oferecidas: a
integração ou a exclusão dos marginais. Em todas as épocas nas sociedades existe uma linha
divisória que decide pela integração ou pela exclusão conforme o critério da “utilidade”
social. Este conceito “fixa o limite além do qual a segurança dos bens, das pessoas e da ordem
estabelecida parece, com ou sem razão, ameaçada”31
como também indica “um limite do
pensável, em que se encontram os que põem em xeque as taxonomias sociais, os que são
privados de „estatuto‟”32
. O historiador francês, ao teorizar a marginalidade, bem como sua
integração ou exclusão, ilustra a chegada dos ciganos na Europa como um exemplo notório.
Nas representações dos contemporâneos, não há lugar então para esses
nômades de pele morena. Assim, são apresentados primeiro como
peregrinos, e eles próprios exibem salvo-condutos do imperador, do rei, ou mesmo do papa, e pretendem que estão indo para Roma, visitar túmulo de
São Pedro. No entanto, a consciência sedentária já está bem estabelecida nas
populações européias e alia-se ao medo dos vagabundos para fazer fracassar essa tentativa de integração: eles são rejeitados do outro lado da linha
divisória e juntam-se aos indigentes nas galés ou no Hospital Géneral. Ora,
em ambos os casos, quer sejam assimilados a peregrinos, quer o sejam a
bandidos, nenhum lugar específico lhes é reconhecido, nem pode ser, nas representações da sociedade
33.
Ciganos e seus descendentes em Portugal foram proibidos pelas Ordenações
Manuelinas34
de ocuparem cargos públicos, eclesiásticos e de receberem títulos honoríficos.
Além dessas proibições, as autoridades judiciais culpavam-nos sempre pelos mesmos crimes:
ser nômade, deslocarem-se em grupos, cometerem pequenos furtos, pedirem esmolas sem
autorização específica, fingirem saber feitiçarias, falarem geringonça35
, usarem “traje de
ciganos”, ou as mulheres lerem a sorte, a buena-dicha36
. Tinham a sua imagem negativada,
eram considerados “indigentes e vagabundos”, porque não tinham profissão definida, nem
domicílio fixo, moravam em qualquer lugar, “gente sem senhor”, inúteis ao mundo37
.
A legislação portuguesa do século XVI procurava reprimir as diferenças e igualá-los ao
30 COSTA, Elisa Maria Lopes da Costa. Op. Cit., 2006, p. 16-17. 31 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 286. 32 Ibid. Id. 33 Ibid. Id. 34 Codificação portuguesa promulgada por D. Manuel em 1521. Ordenações Manuelinas. Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordena%C3%A7%C3%B5es_Manuelinas. Acesso em 18 mar. 2010. 35 O dialeto calo, também chamado romani-ibérico. 36 COSTA, Elisa Maria Lopes da Costa. Op. Cit., 2006, p. 17. Buena dicha atividade de prever o futuro através
da leitura da palma das mãos, também conhecida como quiromancia. 37 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 280.
25
restante da população, mas sem sucesso. “A falta de êxito das tentativas de integração forçada
juntou-se à necessidade dos colonizadores de povoar os territórios de além-mar, e por isso o
degredo foi aplicado tanto ao indivíduo quanto à família cigana”38
.
Sua Majestade D. Pedro, rei de Portugal e Algarves, preocupadíssimo com a
„inundação de gente tão ociosa e prejudicial por sua vida e costumes, andando armados para melhor cometerem seus assaltos‟, decidiu determinar
por decreto, que além do degredo para a África já estabelecido nas
ordenações Filipinas de 1603, eles seriam também degredados para o
Brasil39
.
Essa resolução real foi estabelecida no século XVII, mas no século anterior já havia
informações sobre a chegada de uma família cigana ao Brasil, como degredada. O cigano
João Torres e sua esposa Angelina foram presos apenas pelo fato de serem ciganos.
Estando ele na prisão, padecendo à míngua, „fraco e quebrado‟ e não
podendo „servir em coisa de mar‟ devido sua debilidade física, sendo muito pobre „que não tinha nada seu‟, pediu comutação de sua pena nas galés para
o degredo no Brasil e „para sempre‟. Seus cinco anos de galés foram
comutados „em outros cinco anos de degredo no Brasil, onde ele levou sua mulher Angelina e seus filhos
40.
No final do século XVII, aconteceu de forma generalizada o degredo de ciganos para o
Brasil. As informações sobre aquele período são muito limitadas, pois são conhecidos apenas
os documentos relativos às políticas anticiganas portuguesas. Daí ser praticamente impossível
procurar com exatidão quaisquer dados histórico-demográficos sobre ciganos no Brasil. Essa
documentação torna-se menos escassa a partir do século XVIII, durante o reinado de D. João
V (1706-1750), momento em que a perseguição aos ciganos portugueses se acentuou e
dezenas deles foram degredados para as colônias ultramarinas, inclusive o Brasil. No entanto,
é bastante difícil, praticamente impossível mesmo, determinar quantos ciganos vieram para o
Brasil até 182241
. Não resta dúvida de que “[...]os primeiros ciganos que desembarcaram no
Brasil foram oriundos de Portugal, e que estes não vieram voluntariamente, mas expulsos
daquele país”42
.
Uma das razões dos ciganos serem enviados aos trópicos como degredados foram as
38 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit., 2006, p. 17. 39 PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os degredados do Brasil-Colônia. Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil: Fundação Biblioteca Nacional, 2000, p. 111. 40 COELHO, Francisco Adolfo. Os ciganos de Portugal. Lisboa, Imprensa Nacional, 1892 Apud PIERONI,
Geraldo. Op. Cit., p. 111. 41 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007. 42 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 27.
26
acusações por furtos e blasfêmias contra Deus. Sob essa suspeita foram acusadas as ciganas
Maria Fernandes e Apolônia Bustamente, que:
[...] pareciam irritadíssimas com as abundantes chuvas que caíam incessantemente naquele período. Usando de palavras indecorosas contra
Deus e a fé católica, resolveram grotescamente atribuir a Deus todos os
incômodos das chuvas. Blasfemaram dizendo que Deus urinava sobre elas43
.
O degredo, segundo a história tradicional, teria sido a fórmula encontrada por Portugal
para povoar as terras do além-mar; política usada como instrumento pela Metrópole para
colonizar o Brasil. Essas atitudes perduraram por três séculos, homens e mulheres vieram
integrar a população da Colônia, sendo que a maioria desse contingente fazia parte de estratos
humildes da população portuguesa. Condenados em Portugal pela Inquisição por crimes que
variavam desde “furtar uma mão de trigo” a “cortar uma árvore frutífera”, bem como crimes
por adultério, bigamia, crime de lesa-majestade e homicídio44
. Além desta variedade de
crimes, os ciganos foram acusados também pela Inquisição de serem feiticeiros: “A prática de
ler a sorte – buena dicha – fazia com que eles fossem considerados pelo diabólico tribunal
como signatários de pacto infernal e, portanto, merecedores de castigos corporais e até mesmo
de desterro” 45
.
A legislação ibérica explica o posicionamento do poder civil e religioso em relação aos
ciganos, que juntamente com os judeus e muçulmanos, eram considerados indivíduos
perniciosos; por conseguinte, ameaçadores da unidade espiritual dos países que na época dos
grandes descobrimentos marítimos representavam os baluartes da fé católica, cujos ideais de
expansionismo, baseado na centralização do poder, não permitiam divergências quanto aos
princípios dogmáticos, nem tampouco quanto às práticas ou aos rituais que pudessem
concorrer com os oficiais46
. Assim, “em nome dos bons costumes e da unidade da fé, e contra
todos aqueles que a isto não se subordinavam, foram tomadas medidas severas e muito
distanciadas das páginas do evangelho”47
.
O degredo seria uma política de exclusão social? Significava um remédio, um elixir
milagroso, capaz de provocar a expiação e regeneração dos crimes e pecados cometidos? O
que podemos considerar é que essa política possibilitou à Metrópole livrar-se de seu
43 Primeira Visita do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça, Confissões
da Bahia: 1591-1592, prefácio de Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro, F. Briguet, 1935, p. 58-128 Apud
PIERONI, Geraldo. Op. Cit., 2000, p. 112. 44 Ibidem. 45 MOTA, Ático Vilas-Boas da. Ciganos – Antologia de Ensaios (org.). Brasília: Thesaurus, 2004, p. 44. 46 Ibidem. 47 Ibidem, p. 44.
27
contingente populacional, considerado inútil, indesejado e perigoso e, ao mesmo tempo,
ofereceu a possibilidade de purificar a alma dos culpados. Sob esse prisma, o degredo
funcionou como um nítido rito de purificação e integrou-se perfeitamente à luta da Inquisição
pelo controle, correção, manutenção e consolidação da ortodoxia e unidade religiosa.
Minorias naquele contexto como cristãos-novos e ciganos foram sistematicamente
perseguidos em Portugal com o degredo colonial48
.
Em princípio, a idéia de solucionar o problema do povoamento com as penas do
degredo não trouxe eficácia: “Muitos condenados abandonavam o território após o
cumprimento da pena ou mesmo antes, com o argumento de terem sido degredados para o
Brasil sem lugar específico mencionado na sentença”49
. Elisa Costa aponta o decreto de 18 de
janeiro de 1677, que impunha a especificação do destino para as capitanias da Bahia,
Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Rio de Janeiro, dentre outras. “Eram encaminhados ao
respectivo governador e deveriam ser registrados ainda no dia da chegada, com anotação do
tempo de pena a cumprir e da data em que findaria. Cumprida a pena, deveriam receber a
certidão devida”50
.
A escolha da Capitania do Maranhão, para receber os ciganos, não ocorreu de forma
aleatória:
[...] o destino dos degredados seriam as áreas menos densamente ocupadas
pelos colonizadores, nas quais o espaço seria disputado com os índios. Ainda
que segregados na Metrópole, dava-se preferência aos ciganos, e não ao gentio da terra, no processo de ocupação de determinadas áreas da Colônia
Portuguesa na América51
.
Rodrigo Teixeira52
discorda de Elisa da Costa53
ao apontar que ainda não foram
descobertos documentos que indiquem dados sobre o número de ciganos deportados naquele
período, para quais capitanias e por quais motivos, mas sabe-se que outras capitanias também
receberam ciganos, como Pernambuco, Ceará e Bahia. Salvador, a primeira capital colonial
brasileira tornou-se também a mais importante cidade para os ciganos do Brasil. A
comunidade exercia atividades como venda e troca de animais, metalurgia [caldeireiros,
latoeiros, ferreiros, consertadores de alambiques e engenhos], artes circenses [saltimbancos,
48 PIERONI, Geraldo. Op. Cit., 2000 49 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit.,2006, p.18. 50 Ibid. Id. 51 GONÇALVES, Andréa Lisly. Fazer o quê? In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 02, n. 14,
nov. 2006, p. 20. 52 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 53 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit., 2006.
28
teatro mambembe], amestradores, empalhadores. As mulheres liam a “buena-dicha” ou
“batiam cartas” [cartomancia], vendiam miçangas, dançavam, cometiam pequenos delitos,
pediam esmolas, etc.54
. De Salvador, muitos rumaram em direção à região das minas [hoje
Minas Gerais], mas sempre acusados de causarem incômodos às autoridades mineiras.
Rumaram para São Paulo, onde supostamente passaram a incomodar também as
autoridades paulistas. Naquela Capitania, foram solicitadas medidas contra ciganos que
apareciam na cidade e que eram “prejudiciais” à população porque andavam com jogos e
outras perturbações:
[...] por ser notório nesta cidade se acha um bando de ciganos composto de homens, mulheres e filhos sendo público terem sido expulsos de Minas
Gerais por serem perniciosos naquelas povoações e assim se vieram acolher
a esta cidade aonde já vão havendo algumas queixas [...]55
.
O final do século XIX e início do século XX foi o ápice de confrontos entre polícia e
ciganos, ao que Teixeira denominou de “correrias de ciganos”. Eram movimentações de
ciganos em fuga, perseguidos pela polícia, onde ocorriam frequentes tiroteios, resultando em
morte de ambos os lados. Minas Gerais foi palco desse movimento em grandes proporções,
mas, as correrias também aconteceram em outros estados. A não submissão do povo cigano
aos padrões dominantes e a incapacidade das autoridades em lidar com ele ficou patente em
muitos documentos. A prática dominante, por ser aparentemente de simples aplicação,
conforme Elisa da Costa, consistia em frequentes tentativas de expulsão. “Minas expulsa seus
ciganos para São Paulo, que os expulsa para o Rio de Janeiro, que os expulsa para o Espírito
Santo, que os expulsa para a Bahia, de onde são expulsos para Minas Gerais, e assim por
diante”56
. Essa estratégia adotada desde que os primeiros ciganos chegaram à Europa,
pretendia também no mundo colonial mantê-los em “movimento”57
, ou seja,o melhor lugar
para os ciganos era sempre o mais distante: “[...]no bairro vizinho, no município ou no Estado
vizinho, ou então no país vizinho ou num país bem distante”58
.
Esses estudiosos da temática afirmam que os ciganos chegaram ao território mineiro
logo após a descoberta do ouro: “[...] os judeus e cristãos-novos, bandos imensos de ciganos,
atiraram-se para as terras ultramarinas, buscando fortuna e a redenção na largueza dos sertões
54 PAIVA, Assède. Brumas da História do Brasil: ciganos e escravos, a verdade. (ensaio). Rio de Janeiro.
Edição independente: Fábrica de Livros do SENAI, 2002. 55 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 33. 56 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit., 2006, p. 19. 57 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 34. 58 Ibid. Id.
29
infindos, onde dificilmente chegariam as importunações do Santo Ofício”59
.
No que tange ao papel da Igreja Católica na Colônia, temos informações sobre a
“Primeira Visita do Santo Ofício” às Capitanias da Bahia, entre 1591 e 1593, e Pernambuco,
no biênio seguinte.
Esta referência, porém, não é suficiente para indicar o povo cigano como um
alvo da Inquisição. Pelo contrário. Apesar de sua longa existência – do
século XVI ao XIX – e de seu alcance geográfico se estender de Portugal às colônias, são relativamente poucos os processos contra ciganos. As
acusações quase não variam: blasfêmias, pequenos delitos e, um caso de
bruxaria60
.
A presença dos ciganos no Rio de Janeiro foi certa desde o início do século XVIII. A
princípio, chegaram ocupando as áreas pantanosas da Capital, os terrenos considerados
desvalorizados, em virtude da dificuldade de edificar e por causa da insalubridade. Tratava-se
de uma área desabitada, na qual,
[...] ninguém pretendera por inaproveitável. Constituída de brejos e
alagadiços que as menores chuvas inundavam, tinham fama de pestilenta pelos miasmas que dela exalavam. Os pauis que a formavam tornavam-na
própria tanto para a lavoura como para que nela se erigissem construções
permanentes. Nesse pantanal e desprezado, onde ninguém os viria
incomodar, ergueram os seus míseros e toscos casebres de moradia dos ciganos
61.
Ainda no final daquele século, quando foi empreendido o processo de saneamento da
capital, pelo vice-rei Luís de Vasconcellos e Souza, os ciganos foram obrigados a se retirarem
daquele local:
Não foram para longe. Com o consentimento tácito ou formal da Ordem do
Carmo, instalaram-se na chácara que fora de Paula Carvalho, junto com as
divisas das terras de Coelho da Silva. Aí levantaram as suas casas, formando
uma nova rua, em ângulo reto com a de São Jorge e que deles tomou o nome, conservando-o até à época da Independência
62.
Esse espaço formaria o Campo de Sant‟Ana, também conhecido como Campo dos
Ciganos. Por volta da década de vinte, do século XIX, a região viria a ser o Largo do Rossio,
atualmente Praça Tiradentes, na capital carioca.
Foi naquela área que a população cigana concentrou-se majoritariamente no Rio de
59 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 31. 60 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit., 2006, p.17. 61 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit.,2007, p. 38. 62 Ibidem, p. 34.
30
Janeiro durante todo o século XIX, momento em que viveu um ápice em economia e status
social. Os anos que antecederam a Independência, durante a permanência da Corte portuguesa
no Brasil, são considerados o momento de maior aceitação e de valorização romântica cigana,
ao menos no Rio de Janeiro63
. Embora os ciganos tenham chegado à capital imperial, fixando-
se em locais insalubres, construindo casebres miseráveis, muitos deles tornaram-se ricos. A
razão desse sucesso econômico foi o comércio de escravos, ainda que eles desempenhassem
outras profissões64
. Uma dessas profissões foi o ofício de meirinho65
, uma atividade que se
transformou em objeto de transmissão hereditária: “[...] podem ser identificadas linhas de
descendência nas quais toda uma geração de filhos e netos trabalha no métier”66
. Sobre essa
questão, Oliveira China registra depoimento de uma testemunha ocular:
Tivemos aqui um quarteirão habitado por ciganos, quando eu era estudante do Pedro II. A rua principal era a da Constituição (que o povo denominava
de „Rua dos Ciganos‟). Mais tarde, quando estudante de Direito, encontrei
nessa mesma rua, muitos ciganos em atividade. Era notável o número deles na função de „oficiais de justiça‟, ou meirinhos e, nessa mesma rua estavam
situados os principais juizados e cartórios forenses. [...] Anos depois, alguns
elementos típicos, ainda meirinhos (a profissão passa de pais a filhos), ainda
resistiam esparsos pelos cartórios e juizados, sendo notável o característico racial da tez morena bronzeada e os olhos garçons
67.
Costuma-se assinalar a participação institucional no Judiciário, como um importante
referencial de sedentarização, pois teria sido a partir das funções desempenhadas na Justiça
carioca que os ciganos tornam-se parte fixa da sociedade majoritária68
.
Evocar sua participação no Judiciário é uma forma de operar o que se pode
chamar de „inversão de estigma‟. De fato, a posição que os ciganos ocuparam historicamente os colocava ao lado dos mantenedores da ordem
pública. Os calons se dedicaram, durante sucessivas gerações, a um ofício
que tem fé pública, ou seja, que torna sua palavra presumidamente
verdadeira. Pode-se, sem muito esforço, imaginar a repercussão disso para um grupo constantemente posto sob suspeição
69.
O ofício de meirinho exercia especial atração sobre os ciganos, “[...] talvez por ser a
porta modesta que arrombavam para derrogar a velha proibição do exercício de cargos
63 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007. 64 Ibidem. 65 Oficial de Justiça. 66 SOUZA, M. A. de; SILVA MELLO, M. A. da. Meirinhos Aristocráticos. In: Revista de História da Biblioteca
Nacional. Ano 02, n.14, nov/2006, p. 29. 67 CHINA, J. Baptista de Oliveira. Os ciganos no Brasil: subsídios históricos, etnográficos e lingüísticos.
Separata da Revista do Museu Paulista. São Paulo, 1936, p. 418-419. 68 SOUZA, M. A. de; SILVA MELLO, M. A. da. Op. Cit., 2006, p. 29. 69 Ibidem, p. 32.
31
públicos”70
.
No universo do Judiciário, os ciganos estavam relacionados a outros ofícios, como:
porteiros de auditório, taquígrafos, auxiliares-datilógrafos, comissários de menores,
comissários de vigilância, escreventes, ficharistas. Mas, foi como oficiais de justiça que se
sobressaíram, esse ofício parece ter sido um verdadeiro negócio de ocasião, e a ocasião, a
oportunidade para ocupá-lo, foi, sem dúvida, a transferência da Corte para a Colônia.
A instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, no início do século XIX, além de
consequências imediatas – a abertura dos portos às nações amigas e muitas mudanças
substantivas na economia e sociedade, a saber, a interiorização da metrópole – proporcionou
também a ascensão sócioeconômica dos ciganos e, em especial, daqueles que comerciavam
escravos. Essa atividade proporcionou-lhes uma maior aceitação e até mesmo uma
valorização social, uma vez que exerciam uma atividade reconhecida como útil por grande
parte da população71
.
Com a transferência da família Real portuguesa para o Brasil, em 1808, vieram também
milhares de portugueses, dentre eles ciganos: eram cantores, músicos e ferreiros da Corte72
. O
folclorista Mello Morais levanta essa possibilidade:
Do interminável séquito da família real poucos prestavam para alguma coisa. Eram fidalgos e vadios. Aos fidalgos mandou-se dar pensões do tesouro, [...]
os vadios foram empregados nas repartições que se criaram para esse fim. E
os fidalgos e vadios não eram mais fidalgos nem menos vadios do que os
ciganos, que certamente fizeram parte da comitiva [...]73
.
Alguns ciganos, na capital imperial, tornaram-se ilustres, chegando a patrocinar
festividades na Corte. Em virtude da comemoração da elevação do Brasil ao Reino Unido, em
1815, no segundo dos três dias de celebrações, “D. João VI levou a corte inteira e a delegação
estrangeira ao Campo dos Ciganos para uma tarde e noite de danças e entretenimento”74
. Em
outra ocasião festiva, quando da comemoração das bodas do Príncipe Real D. Pedro, os
ciganos foram novamente convidados para apresentarem suas danças e músicas:
[...] e logo entrou na praça a célebre danças dos ciganos, que se compunha
de seis homens, e outras tantas mulheres vestidos todos com muita riqueza;
depois de tudo quanto apresentaram de ornato era veludo; e ouro:
precedia-os uma banda de música instrumental; e sobre um estrato
70 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 39. 71 Ibidem, p. 90 72 CAVALCANTI, Sônia Maria Ribeiro Simon. Op. Cit., 1994, 73 MORAES FILHO, Mello. Op. Cit., 1981, p. 28-29. 74 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 41.
32
fronteiro às reais pessoas executaram com muito garbo, e perfeição, várias
danças espanholas, que mereceram universal aceitação75
.
Até fins da segunda década do século XIX, o Campo dos Ciganos “[...] havia se tornado
o bairro boêmio do Rio, uma área conhecida por uma vida alegre e pelos artistas brasileiros e
estrangeiros que ali viviam”76
.
Podemos compreender esse momento sui generis da história cigana no Brasil se
relacionarmos com a ascensão do movimento romântico na Europa, que aqui repercutia com a
visão de que o cigano era a encarnação dos ideais da vida livre e integrada à natureza. A
mulher cigana era também idealizada naquele momento, agora não mais a miserável e
desonesta quiromante, mas, uma mulher forte, sensual e fascinante77
. Nesse contexto, “[...]
portugueses e demais europeus que chegavam ao Brasil, ávidos por encontrar os mais
exóticos tipos humanos nos trópicos, os ciganos correspondiam bem a essa expectativa”78
.
Ao final da década seguinte, os ciganos já não eram requisitados para se apresentarem
nas festividades da Corte do império recém-fundado. Esse momento de ascensão e triunfo
começou a ruir, em função dos movimentos em prol da Independência, acrescidos de
momentos fatais sobre o escravismo em décadas posteriores. Assim, não havia qualquer
possibilidade de os ciganos servirem ao perfil que se idealizava para o “ser brasileiro”79
.
Quando a questão da raça passou a ser temática essencial na definição da identidade nacional,
mesmo sob o enfoque romântico do exotismo, após a Independência, a nação passou a ser
descrita de forma a-histórica, via paisagem natural. Naturalistas brasileiros e estrangeiros
percorrem o Brasil procurando pesquisar a flora e a fauna, mas passaram a se interessar
também pela população, principalmente das cidades, discutindo os tipos humanos e
analisando os efeitos da miscigenação. A gradual incorporação do discurso científico ao
conceito de “ser nacional” teve seu marco com a criação do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro [IHGB], em 1838. Essa ação ia de encontro à prática historiográfica que se
desenvolvia na Europa. Em meados do século XIX, o Império elegeu o indígena como
símbolo fundamental e consolidou o discurso de que a miscigenação entre o branco, o índio e
o negro promoveria o patriotismo e consolidaria a nação em desenvolvimento80
. “Dos
ciganos, permaneceu a idéia de imisturáveis, supersticiosos, desclassificados e desconfiados
75 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 41-42. 76 Ibid. Id. 77 Ibidem. 78 Ibidem, p. 41. 79 Ibidem, p. 43 80 Ibidem.
33
do que de participantes da formação do brasileiro”81
. Diante dessa perspectiva: “a presença
dos ciganos na composição da população seria omitida, pois era uma minoria difícil de ser
apreendida por esse discurso nacionalista. Negando-se aos ciganos o direito à história,
tentava-se colocá-los à margem da „boa sociedade‟”82
.
Além disso, o crescimento da importância do projeto de modernização e civilização dos
costumes junto às elites brasileiras, pretendiam estabelecer um reordenamento físico das
cidades, higienizar as vias públicas e excluir dos centros urbanos todos os indivíduos que não
se adequassem à nova ordem. Ainda que “civilização” e “progresso”, fossem expressões
fundamentais na cultura europeia nos fins século XVIII, no Brasil, foi no transcorrer dos
oitocentos que se almejaram tais metas. A partir daquele momento, “[...] intensificou-se a
repressão às populações marginalizadas, entre elas os ciganos. Eles tanto não se enquadravam
na nova ordem como, segundo a sociedade acreditava, a ameaçavam”83
. Dessa forma,
segregar e expulsar os ciganos da cidade passou a integrar o projeto “civilizador” das
autoridades imperiais. Essas medidas repressivas acabaram por fechar, paulatinamente, o
cerco sobre os ciganos84
.
1.2 A inserção dos ciganos no comércio
Como apresentei acima, os primeiros ciganos vindos de Portugal se espalharam
rapidamente pelo território brasileiro. Esses ciganos ibéricos compunham o gênero Calon, que
vieram para o Brasil como degredados até o final do século XVIII. Outro grupo, o Rom,
proveniente do Leste Europeu, chegou ao Brasil na primeira metade do século XIX. Os
Calons, segregados e perseguidos na Metrópole, na nova pátria, não se inserem na tradicional
ordem do trabalho: senhor, escravo ou agregado. Fora dessa ordem, precisavam garantir a
sobrevivência e ocuparam-se de variadas funções: vendedores ambulantes de cavalos,
bugigangas, escravos, saltimbancos circenses, caldeireiros [consertadores de peças dos
engenhos de açúcar]. “Os negociantes ambulantes estrangeiros no Brasil passaram a ser
conhecidos em certas áreas por „gringos‟ dentro da velha tradição peninsular de denominar-se
81 RIBEIRO, Cristina Betioli. Ladrões de Crianças. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 02, n.
14, nov. 2006, p. 25. 82 Ibid. Id. 83 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 16. 84 Ibidem.
34
„gringo‟ o cigano ou vagamundo [...]”85
. De acordo com Gilberto Freyre, os ciganos são os
primeiros a serem chamados de gringos no Nordeste86
; o sociólogo pernambucano conclui:
“A respeito dos gringos convém lembrar que os ciganos foram, na sua especialidade – venda
de escravos e cavalos – os primeiros vendedores ambulantes que tornaram conhecidos em
trechos remotos do Brasil [...]”87
. Como vendedores ambulantes, foram sem dúvida,
elementos de integração nacional, no tempo em que as estradas eram pouco mais, pouco
menos que trilhas88
.
O comércio foi considerado a mais importante das atividades desenvolvidas pelos
ciganos, desde que chegaram ao Brasil. Comercializavam as mais diversas mercadorias, como
tecidos, jóias, roupas, quinquilharias. Essa atividade exigia deles utilizar habilidades retóricas
para o convencimento da outra pessoa, bem como a diversidade dos produtos que
comercializavam oferecia-lhes a oportunidade de algum tipo de socialidade com a população
não-cigana.
A versatilidade dos ciganos para o exercício das atividades econômicas mais
favoráveis diante das circunstâncias foi um dos principais fatores para sua
sobrevivência ao longo do tempo. Ao encontrarem nichos econômicos
desocupados, nos quais pudessem exercer alguma de suas inúmeras atividades, eles encontravam formas de se inserir em sociedades hostis que,
eventualmente, os toleravam89
.
Destacaram-se também no comércio de animais, sobretudo, cavalos e bestas. Foi em
grande parte por conta dessa atividade que carregaram o estigma de ladrões e trapaceiros. A
primeira, por serem acusados de negociar animais roubados; a segunda, por transformarem
pangarés em vistosos cavalos de raça e convencerem os compradores de que o eram. Gilberto
Freyre destaca que no mundo colonial “[...] houve, enfim, muito velhaco e espertalhão
escondido por trás das barbas patriarcais e engabelando, com suas manhas, comissários,
agentes e até ciganos, vendedores de cavalos pelo engenho”90
.
Sobre essa ocupação, o historiador Rodrigo Teixeira se posiciona em defesa dos ciganos
ao levantar a possibilidade de que eventuais trapaças devem ter realmente ocorrido nesse
comércio, não porque os negociantes fossem ciganos, mas porque a atividade proporcionava
85 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. 2. ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1951, p. 201. 86 FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil.
7. ed. – São Paulo: Global, 2004, p. 115. 87 Ibidem, p. 201. 88 PAIVA, Assède. Op. Cit., 2002, p. 31. 89 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 83. 90 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1951, p. 141.
35
muitas possibilidades para enganos. Teixeira acredita que eventuais trapaças ocorressem no
intuito de se reafirmar a identidade cigana em frente aos não-ciganos: “Enganar o não-cigano
era, ocasionalmente algo valorizado entre os ciganos”91
.
Outro ofício desempenhado por eles foi o de saltimbancos e circenses. Essa atividade
indutora do lúdico era vista com desconfiança pelos não-ciganos, por estar associada à
transgressão das normas sociais.
Gilberto Freyre esclarece que os ciganos introduziram animais exóticos no desempenho
dessa atividade no Nordeste açucareiro colonial:
[...] iam de engenho a outro, diz a tradição que com meninos, às vezes roubados; que faziam acrobacias sobre cavalos, geralmente também
roubados; com ursos verdadeiros, ou então fingidos – só a pele ou a imitação
da pele do animal por cima de um homem – que dançavam ao som de pandeiros; com macacos ou macacas grandes, vestidas de sinhás, cheias de
laços de fitas, que também dançavam e faziam graças [...]92
.
Trata-se de uma ocupação secular, associada aos ciganos antes mesmo de sua chegada à
Europa que, no Brasil, foi vista de forma ambígua: “[...] embora estivessem individualmente
estigmatizados, enquanto artistas, os ciganos eram muitíssimo apreciados. O mais curioso é
que, os mesmos que os aplaudiam enquanto artistas rechaçavam-nos, enquanto indivíduos”93
.
A quiromancia, termo erudito para a expressão popularmente conhecida como buena-
dicha, era uma atividade típica das mulheres ciganas. Para elas, significava “[...] uma
atividade lúdica e sua principal e mais rendosa atividade. Para as consulentes, quase sempre a
buena-dicha significava boas novas, ou seja, a esperança de mais sorte na vida”94
. Além
dessa, as ciganas também se ocupavam com a cura e o exorcismo de doenças. Similar a essa
atividade, embora também exercida por homens, era a feitura de simpatias para recuperar
escravos desaparecidos. “[...] Muitos senhores de escravos não hesitavam em recorrer ao
auxílio dos ciganos para recuperar um cativo fugido de seus planteis. Afinal, os ciganos eram
famosos pelas mais fortes simpatias e orações para aparecer negro fugido”95
.
Mas foi sobretudo o comércio de escravos a atividade econômica de maior destaque
exercida pelos ciganos. Esse ofício, exercido com muita intensidade nas primeiras décadas
dos oitocentos, proporcionou-lhes uma maior aceitação e até mesmo uma valorização social,
uma vez que exerciam uma atividade reconhecida como útil por grande parte da população.
91 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 85. 92 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 2004, p. 115 93 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 87. 94 Ibidem, p. 90. 95 GONÇALVES, Andréa Lisly. Op. Cit., 2006, p. 21.
36
Esse ramo no qual se inseriram, contribuiu para o abandono do nomadismo, consagrado como
referência para a identidade do grupo:
[...] muitos ciganos tiveram êxito nesse ramo, a ponto de ocuparem mais do
que posições intermediárias na hierarquia traficante. Membros de famílias
incluídas em decretos de banimento conseguiram até mesmo figurar nas listagens das fortunas cariocas e de agraciadas com condecorações
96.
Atuavam como agentes intermediários, que comerciavam com os agentes da costa, de
vários portos marítimos, principalmente o porto do Rio de Janeiro. “Os intermediários
transportavam seus escravos para os futuros proprietários por canoa ou pequenas embarcações
ou através de rotas terrestres”97
.
A comercialização de escravos trouxe extraordinário ganho aos ciganos, no
Rio, alguns tornaram-se ricos. A causa disto é que o sistema escravista era um dos pilares da economia, já que as áreas mineradoras ainda absorviam
grande mão-de-obra, e as plantações cada vez mais necessitavam desse
trabalho. Além disso, nas cidades, o trabalho dos escravos diversificava-se cada vez mais
98.
Sob um prisma social, os ciganos também se beneficiaram com tal atividade. O
comércio de escravos, apesar de todos os seus aspectos repulsivos, era sem dúvida uma
ocupação utilitária para as classes mais baixas. Os ciganos, por negociarem também escravos
de segunda mão, cuja necessidade de capital era bem menor do que o comércio de venda por
atacado, possibilitavam o acesso à mercadoria às pessoas de baixo poder aquisitivo, como
brancos pobres e até ex-escravos, que compravam a mercadoria africana, almejando com isso,
adquirir melhor status. Por sua vez, tal comércio permitiu aos ciganos publicizar sua
identidade étnica e fortalecer os limites culturais, distinguindo-os da população branca, desta
forma, sua imagem ia sendo matizada e igualmente fragmentada99
.
No decorrer do período colonial até a primeira metade dos oitocentos, o comércio de
escravos não era adjetivado como degradante à condição humana. Por conseguinte, os atores
envolvidos nessa atividade não eram vistos como protótipos do mal.
A utilidade social que passaram a ter, relacionava-se ao fato de que a posse
de escravos era um atributo importante para o status social. Então, os
comerciantes de escravos eram elementos que proporcionavam
96 SOUZA, M. A. de; SILVA MELLO, M. A. da. Op. Cit., 2006, p. 30. 97 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 91. 98 Ibidem, p. 97. 99 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007
37
indiretamente a elevação do status do comprador100
.
É importante salientar que, em função desse comércio na Corte, os ciganos se
encontravam sedentarizados, desenvolvendo uma atividade econômica relativamente estável e
inseridos no cotidiano local, embora mantendo sua identidade. No entanto, no interior do
Império, sobretudo nas áreas rurais, mantinham uma continuidade em relação ao século
anterior.
A partir da segunda metade do século XVIII, o abastecimento de escravos africanos no
Rio de Janeiro concentrava-se na Rua do Valongo101
. Tratava-se de uma área localizada no
subúrbio da cidade, criada sob a justificativa de
[...] evitar que escravos nus, recém-chegados da África, andassem pela Capital nus e com moléstias – o que ocorria até então. A intenção, portanto,
era livrar a corte desses incômodos e tentar promover a recuperação dos
escravos doentes. Ali, os negros eram vendidos por grandes firmas, por casas leiloeiras e por traficantes independentes
102.
A década de 20 do século XIX, representa o período em que o mercado do Valongo
viveu o seu ápice de movimentação comercial, plenamente integrado à cidade. Quando
desembarcavam os navios negreiros, os cativos eram alojados em depósitos onde seriam
maquiadas as feridas adquiridas no longo traslado da África para a América:
Exaustos e confusos, os cativos eram jogados em galpões, a fim de serem
tratados e „maquiados‟ para a venda em leilão público. Era chegada a hora de engorda, de tratar e cuidar dos escravos: aplicava-se óleo da palma a fim
de esconder as doenças e dar brilho à pele; lustravam-se os dentes,
impunham-se exercícios físicos para aumentar a flexibilidade. Afinal, o preço do escravo era definido pelo sexo, pela idade e especialização, mas
dependia sobretudo da condição física103
.
Por conta dessa tática de camuflar os ferimentos, sabe-se que havia constantes queixas
pelos calotes cometidos por mercadores, e os ciganos eram, de praxe, acusados disso. Um dos
calotes atribuídos aos ciganos era o de pintarem os cabelos brancos e a barba dos negros
velhos para que aparentassem mais novos104
. Os viajantes viam os mercadores de escravos
como criaturas cruéis e repugnavam a atitude dos ciganos. O médico e folclorista Mello
100 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 93. 101 Alutinação de Vale Longo, originado em Portugal. Refere-se ao largo do Valongo ou Rua do Valongo,
entreposto onde ficavam os negros para serem vendidos. Hoje, rua do Carneiro, cercanias do bairro da Saúde,
Rio de Janeiro. 102 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 95. 103 Ibidem, p. 95-96. 104 MORAES FILHO, Mello. Quadrilhas de Ciganos. In: MOTA, Ático Vilas-Boas da. Op. Cit.,, 2004.
38
Morais Filho, pioneiro em estudos sobre ciganos no Rio de Janeiro no final do século XIX,
concorda com essa idéia:
Em 1830, os bairros preferidos pelos Calons para sua habitação foram o Valongo e a grande área da Cadeia (Nova). O comércio de escravos,
obrigando-os a se fixarem naquele local, em conseqüência do tráfico, a
exploração das minas e o negócio de animais reclamando a sua presença
neste, segue-se que havia na escolha uma razão natural. Depois de 1808, a Rua dos Ciganos e o Campo de Sant‟Ana foram-se despovoando desses seus
primitivos moradores que, chamados a outras funções, distraídos com os
proventos do ouro e barganha de cavalos, procuravam as localidades mais próximas das estradas do interior e toda Prainha e Saúde, opulentos
empórios dos carregamentos da Costa d‟África.
Quem, ao escurecer, passava por aqueles armazéns, pertencentes a diversos proprietários, dos quais eram comissários os ciganos, sentia desprenderem-se
dos salões infectos as exalações especiais à raça negra [...] Os ciganos, como
um povo banido, vilipendiado, aceitaram com prazer o comércio que
aviltava mais ao senhor que comprava, do que à família, os filhos, os vencidos, escravizados [...] Naqueles bazares da tirania humana e da
deslealdade da sorte, o cigano, repimpado em sua poltrona, de chicote em
punho, era o medianeiro de má fé nas transações dos desgraçados [...] [...] Marquês de B... pertencia à raça boêmia [cigana]. Sua imensa fortuna
proveio de ser medianeiro, na compra de escravos para Minas, a Amaro
Velho, João Gomes Velho e João Gomes Barroso, dos quais recebia uma
dobla por cabeça. O refugo entregava aos parentes, que iam vender no interior. Os Calons, adaptados por esse lado à nossa civilização, mais
salientes se tornavam pelos seus costumes e usos, incontestavelmente
próprios. Moravam em casas térreas, gostavam que tivessem três portas, que conservavam abertas durante o dia e parte da noite...
105.
Embora o comércio de escravos apresentasse ampla estrutura de funcionamento legal, o
crescimento da necessidade dessa mercadoria na Capital, bem como os lucros do negócio,
contribuíram para o desenvolvimento de formas ilegais desse comércio: “Eram comuns
traficantes que trabalhavam sem licença e com escravos roubados. As constantes queixas
contra ladrões traziam grande insegurança aos proprietários”106
. Na imprensa carioca, eram
constantes as advertências para que não se comprassem escravos fugidos ou roubados:
“Constantemente acusavam-se os ciganos e homens livres de roubarem escravos. Entre os
suspeitos alguns claramente adquiriam escravos por roubo, e os registros da polícia incluem
testemunhos dos raptos de escravos são totalmente conclusivos neste ponto”107
.
Com a criação da Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil, a partir
de 1808, órgão responsável pela manutenção da ordem, administração das obras públicas e
organização das tropas, os ciganos passaram a representar “um grande incômodo para a
105 MORAES FILHO, Mello. Op. Cit., 1981, p. 36. 106 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 98. 107 Ibid. Id.
39
realização do controle do espaço urbano”108
; a repartição criada atribui o roubo de escravos
como atividade típica dos ciganos.
O comércio ilegal de escravos envolvia pessoas de diversos segmentos sociais com
funções específicas: de ladrões a compradores, de intermediários a transportadores de negros
para fora da cidade. Esses personagens aproveitavam-se da fama dos ciganos e envolviam-se
no furto de negros: “Às vezes, o escravo era negociado na própria cidade, não havendo nem a
preocupação de levá-lo para longe de seu antigo senhor”109
.
A partir de 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, que decretou a proibição do tráfico
negreiro, ocorreram mudanças substantivas no mercado escravista a ponto de afetar
sensivelmente o papel desempenhado pelos ciganos no comércio de escravos. Embora a
primeira tentativa de se proibir o tráfico negreiro para o Brasil tenha sido a partir de 1831,
oficialmente, a proibição da entrada de escravos africanos ocorreu em 1850, e os impactos
econômicos da extinção do tráfico são brutais:
O valor dos cativos triplica, transformando a escravaria de uma fazenda num
problema financeiro fundamental. [...] os grandes proprietários, sobretudo
paulistas, foram obrigados a recorrer ao tráfico interno de escravos. Os
cativos passaram a vir do Nordeste, oriundos das decadentes fazendas de cana, o que acarretou não só a elevação súbita dos preços no mercado, como
também uma migração de escravos ladinos mais adaptados ao local110
.
Até essa data, os comerciantes portugueses monopolizavam o tráfico transatlântico. Com
a proibição do comércio, tiveram que se enquadrar em outras parcelas do mercado escravista,
dentre elas o comércio de segunda mão. Era uma atividade bem menos lucrativa, porém com a
hipervalorização dos preços dos escravos após 1850, passou a proporcionar altos lucros. No
entanto, era um setor ocupado por grandes e pequenos proprietários, dentre eles, os ciganos.
Isso explica de certa forma o crescente cerceamento ao comércio de escravos feito pelos
ciganos, a partir da segunda metade do século XIX111
.
Enfrentando a partir de então a concorrência com os portugueses e cerceados cada vez
mais pelas posturas municipais, as duas primeiras leis abolicionistas: Lei do Ventre Livre
(1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), os ciganos foram pressionados ainda mais pelas
atividades desempenhadas com o comércio. A primeira Lei libertava os filhos de escravos,
mas não as mães, e estabelecia que o liberto deveria ficar até os 21 anos sob a tutela do
108 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 98. 109 Ibidem, p. 99. 110 MORAES FILHO, Mello. Op. Cit., 1981, p. 114-115. 111 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit, 2007.
40
senhor; a segunda, também chamada de Lei Saraiva-Cotegipe, concedia liberdade aos
escravos ao completarem 60 anos de idade. Ambas as leis consistiam em formas de maquiar o
processo de abolição, e ao mesmo tempo representavam tentativas de responder ao
movimento abolicionista cada vez mais atuante e mais apoiado pelo povo112
.
Diante desse contexto, nos anos que precederam a abolição, tornou-se raro encontrar
grupos de ciganos que lucrassem com o mercado de escravos como fora no início do século.
Com o decreto da Lei Áurea, em 1888, que aboliu em definitivo o trabalho escravo no Brasil,
os ciganos do Centro-Sul brasileiro perdem uma importante fonte de subsistência. No final do
século XIX, restava-lhes “permanecer entre uma população rural cada vez mais hostil ou se
unir à massa de trabalhadores urbanos”113
. No entanto, ainda havia uma última „opção‟ para
garantia da sobrevivência: a prática de pequenos delitos contra a propriedade privada.
1.3 Mitos sobre o povo cigano
Como abordei no início da narrativa, é associado ao povo cigano a imagem de
liberdade, de mistério, de fascínio, a ligação com o futuro através de práticas adivinhatórias
como a leitura de cartas e das mãos. A imagem do preconceito os estigmatiza como velhacos
e trapaceiros por conta da sua forma de garantir a sobrevivência e seu estilo de vida livre.
O historiador mineiro Rodrigo Teixeira, em estudo sobre o povo cigano, utiliza como
fontes os relatos de viajantes e memorialistas. Esses documentos, os estereótipos “sujos”,
“trapaceiros” e “ladrões” são recorrentes.
Os ciganos andavam em bandos mais ou menos numerosos, e aqueles que
não se entregavam à pilhagem, e a certos negócios, como a compra e venda de cavalos, nos quais os indivíduos pouco experientes sempre saíam
logrados, eram geralmente caldeireiros ambulantes, e onde quer que
chegassem, levantavam as suas tendas, e saíam à procura de trabalho que
consistia, especialmente, no conserto de objetos de latão e cobre. As mulheres, porém, importunas, astutas e nimiamente loquazes, saíam a
esmolar, e liam a buena-dicha pelas linhas das mãos, predizendo a boa ou
má-sorte do indivíduo, mediante uma remuneração qualquer114
.
Posso iniciar esta discussão sobre a percepção das nuances do discurso sobre o povo
cigano a partir da análise do vocábulo contido em um dicionário de época, citado por Rodrigo
112 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 113 Ibidem, p. 103-104. 114 COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais pernambucanos: Vol. V (1701-1739). Recife: Arquivo Público
Estadual, 1983. 1718, p. 299-303 Apud TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 37.
41
Teixeira:
Cigano – Raça de gente vagabunda, que diz que vem do Egito, e pretende
conhecer de futuros pelas rayas, ou linhas da mão; deste embuste vive, e de
trocas, e baldrocas; ou de dançar, e cantar: vivem em bairros juntos, tem
alguns costumes particulares, e uma espécie de Germânia com que se entendem. [...] Cigano, adj. Que engana com arte, subtileza e bons modos
115.
No dicionário aparece uma mitologia política. Quando falamos de opiniões formadas
em torno de ciganos, devemos considerar que algumas vezes eles mesmos contribuíram para a
construção de mitos. Em função disso, em algumas ocasiões, as autoridades locais como
também os próprios ciganos produziram diferentes razões ideológicas e mitos coincidentes
sobre os ciganos116
.
Vinculados a um conjunto de estereótipos, predominantemente negativos, os ciganos foram identificados como tendo uma natureza „perigosa‟, uma
encarnação da ameaça, pois seriam sujos e imorais. Assim, o cotidiano
cigano sempre esteve intimamente associado à imagem que se construiu
deles. Imagem esta que manifestava as ressonâncias dos pesadelos e, eventualmente, até dos sonhos, da sociedade que os „abrigava‟
117.
Um dos adjetivos mais aplicados aos ciganos, foi o de “sujos”. Essa adjetivação advém
talvez da maneira mais fácil pela qual os indivíduos numa certa sociedade e cultura podem se
diferenciar dos demais, daí se tornarem excluídos, repugnados, adjetivados de forma
negativa118
. No Nordeste da cana-de-açúcar, essas imagens ficaram conhecidas: “É possível,
ainda, que, essa gente em extremo porcalhona, os ciganos, desde o século XVII desterrados
no Nordeste – desde 1686, pelo menos -, fossem grandes propagadores da pulga e percevejo
por esta região brasileira”119
.
Assim, a associação dos ciganos à sujeira é uma das mais sedimentadas imagens e
estereótipos firmados sobre eles em diversas sociedades.
Estar diante do cigano era estar diante da diferença extrema. Qualquer cigano era
reduzido ao estatuto da imagem cigana, construída como se fosse natural, imutável e
indestrutível. No que tange ao aspecto físico, o “olhar cigano” era o mais notado pelo não-
cigano, era mais que um traço de sua aparência física, era como se tivesse uma dimensão
transcendental. Assim, numa sociedade que transmitia seus saberes tradicionalmente de forma
115 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p.13. 116 Ibidem. 117 Ibidem, p. 135. 118 Ibidem. 119 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 2004, p. 115.
42
oral, o olhar é o ponto de partida para a compreensão entre as pessoas120
.
O encontro e a revelação do outro se inicia com o olhar. A presença do olhar
cigano instaurava uma crise de identidade do não-cigano, acompanhada de
perplexidade e medo. Assim, o olhar cigano incomodava porque ao mirarem,
constrangiam os não-ciganos para não o devolverem. Ao ser olhado pelo cigano, o indivíduo sentia-se „coisificado‟. Em contrapartida, o cigano ao
incidir seu olhar sobre o outro, rompia momentaneamente com a fronteira e a
distância original, seu mundo ficava à deriva121
.
No campo da religião, sobretudo da religião cristã, os ciganos foram ainda mais
rechaçados pelos moralistas. Considerados hereges, pagãos, idólatras e ateus, não cumpriam
as solenidades de matrimônio e batismo. Para a Igreja Católica, os ciganos viviam em pecado
por praticarem o concubinato. Tradicionalmente, realizavam suas próprias cerimônias, não se
casavam na Igreja, talvez pelo alto custo dos trâmites burocráticos e do pagamento ao pároco
que realizava o casamento.
A burocracia da Igreja dificultava, já que os supostos pretendentes ao matrimônio deveriam levantar documentos, como o batismo, e apresentar
testemunhas, a fim de que se garantisse o local de residência, de não serem
já casados, atestando-se a idoneidade dos requerentes122
.
Acredito que era difícil aos ciganos cumprir todos esses requisitos.
Não executavam suas tarefas de forma mensurada, de forma cíclica e rotineira, não
viviam sob a égide do relógio, não consideravam a duração dos dias e das noites, ignoravam o
tempo abstrato, linear e uniformemente dividido. A elite incomodava-se pela maneira como
eles dispunham de seu tempo, que lhes parecia ser de ociosidade. Ao mesmo tempo em que
defendia o trabalho como a única via para os pobres conseguirem algo digno; essa elite via o
ócio como patrimônio e privilégio unicamente seu. Assim, os ciganos, por usufruírem
também do ócio, serviam de mau exemplo aos homens trabalhadores e constituíam uma
dissonância ao trinômio trabalho/ordem/progresso. Nessa perspectiva, o cigano seria um
miserável por sua preguiça, ou um indivíduo enriquecido por conta das suas atividades
ilícitas. Dessa maneira,
[...] os ciganos constituíam-se em um dos segmentos sociais identificados como vadios, embora de forma sui generis, por se diferenciarem etnicamente
dos demais. Portanto, entender como se viam os vadios, ajuda a perceber
120 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007. 121 Ibidem, p. 108. 122 Ibidem, p. 112.
43
como se viam os ciganos123
.
Vadio era o indivíduo sem domicílio, que se recusava a seguir o ritmo e as regras do
trabalho. A partir dessa definição, decorria a imagem de desonestidade e de ausência de
vínculos sociais. A concepção de vadiagem compreendia a itinerância e a ociosidade,
comportamentos e atitudes vistos como ameaçadores à estabilidade social, portanto, não havia
consenso definitivo quanto à percepção do que era vadio ou ocioso.
Além de ser inconveniente, de representar um ônus, um peso que recaía sobre a
sociedade, no imaginário das elites urbanas, a vadiagem significava um substrato comum, a
origem de todos os outros crimes. Entre as décadas de 1820 a 1830, temia-se que os vadios
não apenas engrossassem os protestos das camadas pobres das cidades contra a carestia e a
opressão, mas também se levantassem contra os ricos, pondo em risco suas propriedades. À
proporção que crescia essa população “desordeira” e “perigosa”, maior era a preocupação
com as algazarras e os delitos, principalmente os roubos. O número de pobres vagando nas
ruas aumentava com as crises econômicas conjunturais, quando escasseavam os empregos e
havia carestia de alimentos124
.
Vadiagem e mendicância eram considerados crimes policiais segundo o Código
Criminal do Império de 1830, no art. 295, e o “criminoso”, as pessoas que não se ocupassem
de forma honesta e útil para sua subsistência deveriam cumprir pena de 08 a 24 dias de prisão.
No entanto, a Lei de 26 de outubro de 1830 reformou o artigo, elevando a pena para 01 ano e
06 meses de prisão e em caso de reincidência, a pena seria duplicada125
.
Esse código indicava que os vadios deveriam se tornar “úteis” e se inserir no sistema
produtivo e de uma ordem estabelecida. Para os ciganos, essa legislação significava que
sofreriam ações repressivas ainda mais violentas, uma vez que eles eram considerados
“incorrigíveis”, sem qualquer esperança de regeneração, pelo menos em curto prazo. Dessa
forma, a solução imediata seria expulsá-los da cidade e até mesmo da Província. Em função
da intensa desconfiança em relação aos ciganos, eles foram simplesmente “irrecuperáveis” e,
de acordo com algumas teorias da época, acreditava-se que os ciganos eram uma “raça” na
qual o caráter (negativo) de seus membros já estaria determinado desde o nascimento126
.
Tradicionalmente, as sociedades sedentárias veem no nomadismo um comportamento
suspeito, associado à criminalidade. Essa visão está também sedimentada nos dicionários e
123 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 115. 124 Ibidem. 125 Ibidem. 126 Ibidem
44
enciclopédias do século XIX, que rejeitavam e tratavam pejorativamente o nomadismo, uma
vez que esse seria um modo de vida oposto ao “crescente progresso”, afinal o ideal
civilizatório requisitava a presença da cidade, e, consequentemente, exigia-se o
sedentarismo127
. Assim, “visto a partir do signo da falta e não-ser, os nômades são os que não
têm habitação fixa, não deixam traços duradouros de sua existência, não são civilizados”128
.
Apontados pelas sociedades sedentárias como vagabundos e bárbaros, os nômades
como forasteiros eram depredadores e desestabilizadores da ordem pública. Como
estrangeiros eram portadores de fascínio; identificados como hostis, sua presença trazia uma
alternativa ao modo de vida sedentário, por conta disso colocavam em questão os papéis
sociais; como endemoniados, recordavam o mal, dimensão que deveria ser extirpada da
sociedade sedentária e cristã129
. Por mobilizarem uma série de valores que afrontavam o
status quo e por criarem novas perspectivas culturais, os nômades causavam repulsa e
fascínio.
Portanto, o vagabundo era caracterizado pela não-posse de domicílio, era associado
também à imoralidade, pouca higiene, falta de vínculos com a sociedade sedentária e
civilizada; à vagabundagem como o estrangeiro, mal afamado, ladrão em potencial,
preguiçoso, delinquente e propagador de epidemias como a varíola, que alastrou a população
mineira, nas primeiras décadas do século XVIII e que teria sido trazida pelos ciganos130
.
O estigma mais agregado aos ciganos é o de ladrões: de galinha, de cavalos ou de
crianças – são algumas variações da mesma imagem forte e estereotipada em relação ao
cigano. O mito do roubo de crianças tem origem na literatura europeia do século XVII, e no
século XIX, a temática foi adotada na literatura com teor “educativo”:
Acreditavam que o contraste entre o „mundo civilizado‟ dos jovens leitores e
a „vida perniciosa‟ dos ciganos, por suposição, incitaria as crianças a
apreciar mais sua própria cultura e a obedecer a seus pais. Essas estórias fantasmas contribuíram bastante para criar uma imagem negativa dos
ciganos. Assim os autores manipulavam a imagem dos ciganos para
valorizar as virtudes cívicas e civilizadas dos não-ciganos. Essa literatura sobre os ciganos foi uma estratégia de educação moral, portanto de
dominação131
.
Essa literatura “educativa” reforçou mais um estereótipo que se construiu ao longo do
127 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 128 DUARTE, Regina Horta. Noites circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX.
Campinas: UNICAMP, 1995, p. 37. 129 Ibidem. 130 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 131 Ibidem, p. 121.
45
tempo através da ótica depreciativa sobre os hábitos e modos de vida dos ciganos132
.
Contrários aos modelos de conduta cívica e virtuosa, estritamente
recomendados pelos leitores de romances do século XIX, os ciganos eram maus exemplos, mas exóticos e fascinantes. Os „ladrões de crianças‟ eram
personagens interessantes para a literatura, porém maus cidadãos133
.
De todos os delitos dos quais são acusados, nenhum foi mais frequente e significativo
do que o roubo. Este é, sem dúvida, o mais temido traço do “caráter” cigano. Considerado um
ato imperdoável, principalmente num contexto em que a noção de propriedade ia ganhando
cada vez mais tonicidade, a associação ao roubo impregnava com um estigma marcante os tão
“suspeitos” ciganos.
Segundo estudos de especialistas, muitos já citados acima, os primeiros ciganos que
chegaram à Europa traziam consigo o hábito da pilhagem, comum em algumas regiões da
Ásia – continente de onde provavelmente vieram. Naquelas regiões, a pilhagem não era
considerada um crime, principalmente quando praticado por viajantes. Há uma lenda cigana
que tenta explicar a origem e a razão de roubos praticados por eles, pela qual, no momento em
que Cristo estava sendo crucificado, os soldados romanos se viram impedidos de espetar seu
coração porque um cigano roubara um dos pregos. Por causa disso, os ciganos ganham do
próprio Cristo, a permissão para roubar134
.
Acusados de roubos, mas sem nenhuma comprovação, essas simples suspeitas somadas
a eventuais trapaças e roubos, principalmente no comércio de cavalos, solidificava-se a idéia
de cigano como sinônimo de ladrão.
Mas, é em virtude da acusação de roubo que vão ocorrer confrontos entre polícia e
ciganos, com maior intensidade, do final do século XIX ao início do século XX, no território
mineiro. Tratava-se das correrias ciganas, perseguições feitas pelas autoridades policiais aos
ciganos em fuga, onde constantemente havia tiroteios, o que resultava em morte tanto de
policiais como de ciganos. Embora fossem numericamente inexpressivos, causavam grande
incômodo às autoridades policias; eram acusados de roubos diversos e também de
corromperem os costumes, colocando em perigo a ordem pública, daí serem encarados pelas
autoridades como perturbadores da ordem vigente. Recorto da obra de Teixeira, um trecho do
relatório de um chefe de polícia destacado para perseguir um grupo de ciganos:
132 RIBEIRO, Cristina Betioli. Op. Cit., 2006. 133 Ibidem, p. 25. 134 MACEDO. Oswaldo. Ciganos, natureza e cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
46
Centenas de ciganos, em diversas zonas do Estado, que vinham
„provocando‟ desordens, munidos de fino armamento e de carabinas das
mais modernas, prontos à tenaz resistência aos destacamentos, que os perseguem, proclamando abertamente seus desrespeitos aos poderes
constituídos135
.
Similar à correria mineira foi uma correria ocorrida em território piauiense, no início do
século XX, onde a polícia militar destacada para combater um grupo de ciganos percorreu um
itinerário pelo norte do Estado. As fontes para o estudo da correria piauiense são também os
jornais de época, fontes policiais, como inquéritos e relatório de chefe da polícia.
O olhar do chefe policial, evidentemente, é um olhar estrangeiro, que não percebe que
os ciganos são portadores de uma cultura própria. Em geral, eles são notados pela ausência de
valores, atitudes e condutas prezadas pela elite brasileira, que procura alcançar plenamente a
governabilidade, a civilização e o progresso. Por esse entendimento, os ciganos são
considerados apolíticos, sem pátria, sem religião, sem lei, sem civismo e são incivilizados136
.
Os valores dos ciganos eram tidos como algo tão absurdo que nem sequer
eram percebidos como sendo traços de uma outra cultura. Além disso, como
forasteiros, os ciganos são vistos com extremo temor, pois se apresentam de armas na mão, conduzindo munições de guerra, semeando a terror por toda a
parte, vivendo até aqui de roubos e pelo roubo137
.
No final do século XIX, a força armada do Estado de Minas Gerais, enfrentou
constantes e fatigantes marchas e contramarchas, provocando debandada de ciganos. A polícia
mineira agia para expulsá-los de cidade em cidade, sem promover um extermínio
generalizado e também sem fazer qualquer tentativa de acordo.
Ser cigano significava, no mínimo, estar sob suspeita. As ações policiais eram
precipitadas na apuração de supostos crimes cometidos por eles. Muitas vezes, eram presos,
torturados, seus bens eram confiscados e eles enfrentavam tiroteios simplesmente pelo fato de
serem ciganos. A apreensão dos bens, em geral, como objetos e mulas, era feita sob a
alegação de serem roubados. “Na verdade, o simples fato de esses bens estarem com eles era
motivo suficiente para serem considerados roubados. Aos ciganos, era quase negado o direito
à posse dos bens”138
.
À imprensa coube o papel de manter os leitores informados sobre os problemas
causados pelos ciganos, os periódicos elogiavam as atuações das forças policiais: Cada
135 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 68. 136 Ibid. Id. 137 Ibidem, p. 69. 138 Ibidem p. 79.
47
adjetivo agregado à palavra cigano era uma forma de exaltar a Polícia. A intenção era
contrastar a „crueldade‟ dos ciganos com a „coragem‟ da força policial. Assim, ao festejarem a
debandada geral dos ciganos imposta pelas autoridades, pretendiam passar o discurso de
estarem saneando moralmente o Estado139
. Na correria do Piauí, a imprensa também se fez
presente de forma similar, ao divulgar notícias sobre o acontecimento, rechaçava os ciganos
como desordeiros, bandidos, trapaceiros e cangaceiros cearenses, e destacava o papel da força
policial, enaltecendo a bravura dos soldados piauienses.
A presença dos ciganos como pauta na imprensa escrita, no período citado, expressava o
incômodo que eles causavam à sociedade em geral. Defensora da civilização, do progresso e
do avanço da ciência, subentende-se como um projeto de educação e controle da população.
Apesar do público leitor se concentrar na “boa sociedade”, as questões tematizadas na
imprensa repercutiam diretamente no cotidiano das pessoas, em que a imprensa fomentava as
determinações políticas das elites locais140
.
Quando apresentamos questões propostas pelos autores para responderem sobre a
origem das “correrias” e perseguições aos ciganos, como na região mineira, entre o final do
século XIX e início do XX, as respostas foram diversas. Recapitulemos que as transformações
ocorridas na economia e na sociedade, com a gradual fragmentação do escravismo, tiveram
um impacto na vida dos ciganos. Com a extinção do trabalho escravo, alguns ciganos
perderam sua principal atividade econômica, o mercado de escravos. A Região do Campo de
Sant‟Ana e as ruas dos Ciganos e do Valongo, no Rio de Janeiro, viveram o apogeu da
comunidade cigana nas primeiras décadas do século XIX. Com o transcurso do século, essa
comunidade entrou em decadência juntamente com o comércio de escravos, tanto pelo fim do
tráfico negreiro, quanto pela crescente introdução do trabalho assalariado e pela divulgação
das ideias abolicionistas. A abolição da escravatura foi sem dúvida o golpe final no comércio
de escravos, praticado pelos ciganos. Com o fim desse comércio, os grupos ciganos deixaram
o Rio de Janeiro rumo às Minas Gerais, aumentando substantivamente o número deles na
região mineira141
.
Nas últimas décadas do século XIX, com o crescente papel da medicina social, o projeto
higienista associou os ciganos à mais baixa escória, caracterizando-os como horda, malta,
manada de facínoras e desordeiros. Individualmente, o cigano era visto como um preguiçoso,
vagabundo e sujo, assemelhando-se à imagem do homem livre e pobre. O cigano era visto,
139 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 140 Ibidem. 141 Ibidem.
48
sobretudo, como um ladrão em potencial. Os adeptos do higienismo viam neles um incômodo
enorme às normas sanitárias em implantação, em especial no Rio de Janeiro, que deveria ser o
modelo de nova cidade racionalmente organizada. Isso trouxe aos ciganos graves problemas
com a polícia, provocando constantes fugas em direção às cidades vizinhas ou ao interior142
.
A maior parte dos ciganos sempre dependeu do mercado consumidor não-cigano, tanto
para seus serviços, como a quiromancia, quanto para a comercialização de seus produtos.
Dessa forma, os ciganos tiveram sua história atrelada às cidades. À medida que o processo de
urbanização foi se acentuando no final do século XIX, acompanhado pelo discurso da
civilização e progresso, os ciganos foram cada vez mais segregados do espaço urbano. As
autoridades desejavam tê-los o mais longe possível, na periferia ou fora do perímetro urbano.
As sucessivas escaramuças sofridas pelos ciganos, de uma cidade a outra, foi a principal causa
das “Correrias de Ciganos”143
.
Esse acontecimento, intenso no final do século XIX e início do século XX, talvez tenha
sido uma das maiores perseguições contra ciganos na História do Brasil. As correrias
aconteceram em grande intensidade no território mineiro, acredita-se que elas tenham
ocorrido também em outros estados, além da correria no Piauí, no início da década de 1910. É
sobre essa correria e perseguição que tratarei no próximo capítulo.
142 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 143 Ibidem.
49
CAPÍTULO 2
CORRERIA DE CIGANOS NO PIAUÍ
2.1 O alvorecer do século XX no Piauí
Nos anos iniciais da segunda década do século XX, mais precisamente em 1913, o
território piauiense foi palco de uma “correria” de ciganos, provocada pela Polícia Militar do
Estado. O acontecimento envolveu um grupo de ciganos que percorria o Norte do Piauí,
acusado de praticar furtos e depredações. A notícia da presença do grupo nômade chegou ao
conhecimento do poder público, que enviou um contingente policial para perseguí-los. A
tropa policial seguiu um itinerário à “caça” dos ciganos, passando por Miguel Alves e os
povoados Peixe [atualmente Nossa Senhora dos Remédios], Marruás [Porto], Campo Largo,
e, finalmente, alcançando-os no Retiro da Boa Esperança [atualmente Esperantina] onde foi
travado um tiroteio, que resultou na morte de alguns ciganos.
Igualmente ao que Rodrigo Teixeira denominou de “correria de ciganos” em solo
mineiro, a “correria” ocorrida no Piauí constou dos mesmos elementos: perseguição policial,
confronto com a polícia, aprisionamento e morte de ciganos. A imprensa também se fez
presente, teve o papel de veicular as informações e formular opiniões sobre os ciganos, em
geral adjetivando-os de “bandidos”, “trapaceiros” e “cangaceiros cearenses”.
Após quase um século, o acontecimento ainda não foi devidamente estudado pela
historiografia. O trabalho “Massacre no Retiro: os ciganos entre a História e o imaginário
popular”, monografia de final de curso de graduação em História de minha autoria, é o único
trabalho acadêmico até então realizado. Naquele estudo, que retomo agora, reconstituo a
história do massacre. Mesmo sendo pouco estudado, o acontecimento passou a ser conhecido
na historiografia local como “Massacre dos Ciganos”.
Para melhor compreender o conflito, considero necessário contextualizar o Piauí nos
anos iniciais do século XX e apresentar um perfil da urbanização e organização do povoado
Retiro, local que serviu de palco para a tragédia final da saga cigana.
Analisar a conjuntura do Estado do Piauí entre os finais do século XIX e os primeiros
anos do século XX, nos leva “[...] a refletir o que foi, historicamente, a transição do período
50
monárquico para uma „nova ordem‟, a República, período esse movimentado por crises
políticas que perpassaram todo o País”144
. Naquele contexto, a nova ordem política
representava desejos e esperanças de um novo regime que se evidenciavam no imaginário
republicano brasileiro. Desta forma:
[...] os republicanos partem de um diagnóstico da „monarquia „ como sistema de governo de vícios, que não satisfaz as necessidades do presente, funciona
mal e comprime o organismo social, não permitindo, portanto, o
desenvolvimento das suas forças sociais de renovação. Essas forças de renovação eram as do progresso, a imagem do progresso – versão prática do
conceito homólogo de civilização – transformou-se na obsessão coletiva da
burguesia brasileira, obsessão esta reveladora da outra face do progresso – a
pobreza145
.
No Piauí, a “Proclamação da República “[...] traduziu-se politicamente num ato de
passagem de um governo para outro sem grandes manifestações a favor ou contra o antigo
regime”146
. Não se trata, porém, de afirmar que o Piauí não estivesse em sintonia com os
movimentos que ocorriam no País no final do século XIX. Existiram sim, no Piauí, partidários
do ideário republicano, embora ligados aos partidos monarquistas como o Partido Liberal, ou
quem com militância isolada em um outro partido, defendesse essas ideias.
A mudança do regime político, em particular nos primeiros anos, permitiu o
alinhamento dos antigos grupos conservadores e liberais, e mesmo a eliminação de antigas lideranças políticas – inclusive pelo abandono dos
interesses partidários. Nesse novo ordenamento, antigas lideranças dos dois
partidos se uniram para formar os Partidos Republicano Federal, Democrata e Legalista, este de efêmera duração. O Partido Republicano Federal resultou
da aliança entre os antigos líderes do Partido Conservador – como Gabriel
Ferreira e Teodoro Pacheco – e chefes liberais, como o Barão de Uruçuí
(João da Cruz e Santos). O Partido Democrata resultou basicamente da dissidência do Partido Liberal, identificada desde os primórdios da década de
1880 e chefiado por Mariano Gil Castelo Branco (depois Barão de Castelo
Branco), cuja liderança alcançava parte do centro-norte da Província e envolvia quase toda a sua parentela
147.
No Piauí, o novo regime federativo, legitimado juridicamente pela Constituição de
1891, não trouxe mudanças significativas para o Estado.
144 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Cotidiano e Pobreza: a magia da sobrevivência em Teresina – Teresina:
Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. p. 17. 145 Ibid. Id. 146 NASCIMENTO. Francisco Alcides do. A revolução de 1930 no Piauí. Teresina: Fundação Cultural
Monsenhor Chaves, 1994, p. 19. 147 QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a república: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do tempo.
Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994, p. 224.
51
Não obstante, foi um período marcado por lutas pela manutenção de sua autonomia, uma vez que existiam ameaças de o Piauí ser incorporado às
unidades federativas limítrofes, em face da alegada insuficiência de recursos
para sua auto-sustentação. Contudo, realizavam-se transformações de natureza político-administrativa, que buscavam a consolidação da autonomia
do Estado148
.
A mudança de regime político não representou mudanças profundas para o Estado, o
que houve de fato foi uma rearticulação de forças, uma vez que “[...] o novo regime negou
espaço para a participação política de novos segmentos, pois não ocorreram mudanças
efetivas. A elite política advinda do Império continuou compondo os quadros da
administração e os cargos eletivos, sobretudo nos momentos iniciais”149
.
Naquele período ocorreram confrontos entre algumas facções políticas, em especial as
do grupo de oposição ao governo, que reagiu às mudanças contrárias aos seus interesses. Essa
foi, sem dúvida, uma das principais características dos grupos oligárquicos150
na disputa pelo
poder.
Embora esses grupos, uns rotulados de „liberais‟, outros de „conservadores‟, se confrontassem, na verdade pertenciam a uma mesma classe social de elite,
com os mesmos objetivos e concepções ideológicos. Os confrontos se davam apenas em épocas de eleições, quando seus interesses pessoais eram
atingidos. Daí fazerem novas recomposições ou alianças, pois nenhum deles
queria perder o poder. Utilizavam a imprensa escrita como estratégia política de apoio ao poder: propagando suas idéias, fazendo críticas à oposição ou
apoiando seu grupo político151
.
A imprensa, por meio dos periódicos impressos, era o instrumento que a elite política
utilizava para fazer oposição. “Através desses periódicos, observamos os conflitos políticos,
bem como o discurso respaldado no ideário positivista”152
.
Teresina, capital do Estado do Piauí, naquele contexto, passou por um conjunto de
mudanças superficiais, projetadas por um grupo da elite local. Apesar de ser uma cidade
pequena, com aspectos provincianos, há nos discursos da elite, marcas de um imaginário
progressista. Nesses discursos, destaca-se a ideia de que para o progresso se instalar teria que
148 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit.,1995, p. 18. 149 BRANDÃO. Adail J. Monteiro. As armadilhas do poder: partidos políticos e a sucessão governamental de
Miguel Rosa. Teresina: CNPq/UFPI, 1996, p. 18. 150 Esses grupos têm sua origem nas famílias que se constituíram no Piauí nos séculos XVII e XVIII,
principalmente ligadas à terra. Essas famílias detiveram o poder político e econômico, adquiriram prestígio em
nível regional e federal e se mantiveram hegemônicas por séculos. 151 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit.,1995, p.19. 152 Ibid. Id.
52
haver uma ordenação da sociedade153
.
A aspiração pelo progresso, revelada nos discursos e na prática pode ser
traduzida nos projetos políticos, e nas lutas por iluminação pública, estradas, telégrafos, encanamento d‟água e estrada de ferro. Como também pode ser
identificada nos projetos que objetivavam a organização do espaço urbano,
seja através de medidas policiais, seja pelas leis de ordenamento da cidade, como o código de postura, ou ainda de instituições de Misericórdia, Asilo
dos Alienados e Asilo da Mendicidade, que tinham por fim afastar os loucos,
coibir a mendicância das ruas, disciplinar o processo migratório, regulamentar o trabalho e prevenir a „ociosidade‟ e a „vagabundagem‟
154
Naquele momento, a maioria da população da Capital era formada por ex-escravos,
migrantes, homens livres e pobres, que estavam à margem do comércio. Esse contingente
vivia em áreas insalubres da cidade, no desconforto, na doença, imundície e promiscuidade.
Nas últimas décadas do século XIX, a cidade “[...] foi palco de encenações de uma massa de
migrantes nordestinos fugidos da seca”155
tornando-se a “terra da fome ao invés do seu
famoso título de „Cidade Verde‟ atribuído pelo escritor Coelho Neto”156
.
A emigração em larga escala se inicia com a grande seca de 1877 a 1879, a
qual deixou a memória em toda a região, até os dias de hoje. Três anos seguidos sem chuvas; sem semeaduras, sem colheitas, os rebanhos
morrendo, os homens fugindo para não morrer. É verdade que em secas
anteriores haviam-se registrado já emigrações além das fronteiras da província que era a principal vítima das faltas de chuvas, o Ceará. [...] Na
seca de 1792, emigrações houve das fronteiras do Ceará para as terras
úmidas do Piauí, e que o êxodo de sertanejos adquiriu maiores proporções
em 1825, estendendo-se até o Pará. Reconhece, porém, que só se torna intensa – intensíssima – depois de 1877
157.
A Capital tornou-se um receptáculo não somente de flagelados da seca, mas também de
imigrantes de quase todo o Piauí; apresentava um “[...] contraste com uma cidade que se
tentava dotar de infra-estrutura urbana, „uma cidade que se civilizava‟”158. Em razão dessa
contradição, a elite criou uma política de afastamento desses migrantes do perímetro urbano,
iniciativa dos grandes proprietários de terras com o apoio do Governo.
O discurso da elite política era voltado à necessidade de uma prática progressista,
contudo uma parte da população de Teresina estava vivendo do subemprego, da mendicância
153 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995. 154 Ibidem, p. 20. 155 Ibidem, p. 33 156 BRANDÃO, Adail J. Monteiro. Op. Cit., 1996, p. 33. 157 FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: gêneses e lutas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 22. 158 BRANDÃO, Adail J. Monteiro. Op. Cit., 1996, p. 35.
53
e de trabalhos temporários. “Essa gente, em muitos casos, era levada à loucura e ao suicídio,
provocados pelo vício do álcool”159
. A pobreza se fazia presente na vida social piauiense, e
essa realidade inquietava as elites locais, a ponto de se criar,
[...] tentativas no sentido de preservar o centro da cidade, por constituir a
zona urbana e por representar, através de seus símbolos, as autoridades
constituídas. Com o passar dos anos, esta zona urbana cresceu, surgindo novas ruas, avenidas, bairros, ruas calçadas, praças arborizadas e edifícios
160.
Esses discursos recheados de indícios de um ideário que recriava o imaginário social, a
partir do progresso e da ordem, deixavam transparecer a preocupação com a crise social,
decorrente dos problemas políticos e econômicos em que o Piauí se encontrava mergulhado,
crise essa que, desde o final do Império, era sentida no desempenho dos governos
oligárquicos, em sua busca pela hegemonia do poder161
.
No aspecto econômico e social, a situação do Piauí era muito diferente da situação do
Centro-Sul do Brasil. Esta região estava centrada na dinâmica da produção do café voltada em
grande parte para o mercado externo, enquanto no Piauí, a economia e a sociedade
apresentavam características similares às de extensas áreas do interior do Nordeste, marcada
por “[...] uma pecuária secularmente estacionária, para não dizer decadente, associava-se
rudimentar agricultura de subsistência, praticada principalmente por moradores de grandes
latifúndios”162
. Assim, o nível técnico era elementar, o que tornava baixo o índice de
produtividade163
. Em face disso, não ocorriam mudanças básicas na produção, não havia
diversificação na composição do comércio e nem se evidenciavam quaisquer sinais de
mudanças qualitativas das atividades econômicas tradicionais164
, com exceção dos municípios
de Barras, Pedro II, Oeiras e Amarante, que comercializavam parte de sua produção de arroz,
milho, feijão, mandioca e cana-de-açúcar. No entanto, essas atividades comerciais eram
realizadas através de troca de produtos agrícolas por bens ofertados pelo comércio ambulante
vindo das províncias vizinhas do Piauí165
.
No ápice da sociedade piauiense estavam os detentores das maiores e melhores
extensões de terras dedicadas à pecuária, os quais em alguns casos incursionavam pelas
159 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 35. 160 Ibidem, p. 33 161 Ibidem. 162 QUEIROZ, Teresinha. A importância da borracha de maniçoba na economia do Piauí (1900-1920).
Teresina: FUNDAP, 2006, p. 101. 163 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995. 164 QUEIROZ, Teresinha. Economia piauiense: da pecuária ao extrativismo. Teresina: Apech/UFPI, 1993. 165 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995.
54
atividades mercantis. Na base, estava todo o restante da população, composta por pequenos
proprietários e posseiros, sobretudo não detentores de terras, que habitavam as fazendas como
vaqueiros, agregados e arrendatários166
.
Tratava-se de uma população predominantemente rural. A economia podia ser definida
como fechada e autosuficiente167
.
A produção agrícola – com exceção do algodão, em alguns anos em que os
preços eram mais favoráveis – geralmente circunscrevia no mercado local e a maior parte das necessidades dos habitantes, que eram poucas, eram
satisfeitas no âmbito da própria família. Móveis, utensílios domésticos,
calçados, redes, alimentos, quase tudo era produzido localmente168
.
Quanto à mão de obra, no início da década de 1870, já era adotado no Piauí o sistema de
agregado, que utilizava o trabalho livre como forma de remuneração. “Assim, valendo-se de
sua sorte, o vaqueiro percebia uma quarta de cada quatro novas cabeças de gado
contabilizadas”169
. No início da República, “[...] os trabalhadores livres continuaram seus
serviços nas propriedades, conjuntamente com os ex-escravos, sem muita consciência do que
vinha a ser trabalho remunerado”170
. Outras modalidades de trabalho eram adotadas, também
sem assalariamento ou uma combinação com outras formas de pagamento, como a meação, a
parceria. “Nessas modalidades, o homem do campo vinha subordinado ao proprietário da
terra, que detinha poder local, e, de modo geral agradecendo ao „coronel‟ pelos pequenos
favores e apadrinhamento recebidos”171
. Esses coronéis que detinham o poder político local,
[...] compunham ou dominavam as Câmaras dos Municípios, cuja
„autonomia e independência‟ a Constituição estadual de 1891 institucionalizara. O pacto do poder com as oligarquias dominantes garantia
a autoridade dos chefes locais, a cuja força e influência se subordinavam, em
maior ou menor grau, os habitantes das comunas. A lei era determinada ou derivada da vontade do chefe do momento e sua vinculação era menor com o
Direito que com a força, a qual se media, em muitos casos, pela capacidade
de aliciar e comandar cabras ou jagunços e, evidentemente, pelo poder econômico
172.
A situação dos trabalhadores rurais era de extrema pobreza, enfrentavam problemas
como a falta de capital, de técnicas, instrumentos de crédito e a baixa produtividade do
166 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006. 167 Ibidem. 168 Ibidem, p. 101 169 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 24. 170 Ibid. Id. 171 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 24. 172 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006, p. 101.
55
trabalho resultante desses fatores e das condições naturais. Não encontrei leituras sobre o
período em destaque, que abordassem sobre revoltas de trabalhadores rurais contra a miséria e
a reação do governo. Em um estudo sobre o governo de Miguel Rosa, Adail Brandão destaca:
“O sul do Estado, em virtude dos lucros da maniçoba, atraía muitas pessoas, inclusive
desordeiros que amedrontavam as famílias. Visando à defesa da comunidade, a força pública
entrou em ação com plano de confisco de armas. Em reação foram assassinados alguns
policiais e oficiais”173
.
Suponho que esses personagens sejam os “maniçobeiros alienígenas”, cujas referências
constantes vêm do fato de lhe ser atribuída a origem dos conflitos sociais em que as regiões
sudeste e sudoeste do Piauí foram palco174
. “Esses grupos de extratores, em função de sua
origem, eram tratados como maniçobeiros pernambucanos, cearenses, baianos e adjet ivados
como turbulentos e malfeitores. A sua afluência era atribuída à situação de desordem e
insegurança reinante nas áreas produtoras”175
.
A economia agrária do Piauí ao final do século XIX e início do século XX
caracterizava-se pela combinação da pecuária com o algodão. Historicamente, a economia
piauiense ganhou destaque por suas fazendas de gado que pertenciam aos potentados da
pecuária nordestina. Desde os tempos da colonização, a pecuária foi sua principal atividade
econômica, destacou-se como suporte básico até o início do século XX, quando a atividade
econômica do extrativismo vegetal – a borracha de maniçoba, a cera de carnaúba e a amêndoa
de babaçu incorporaram-se ao quadro econômico do Piauí, como atividade de maior
importância para o Estado176
. Nesse momento, o quadro econômico do Estado sofreu
alterações com o advento do extrativismo. Dessa forma, se a economia piauiense ensaiava
integrar-se ao mercado internacional ainda ao século XIX, durante a primeira metade do
século XX, essa integração começou a se manifestar. Nas primeiras cinco décadas, a
economia foi se dinamizando pelas exportações daqueles produtos extrativos que
sobrepujaram e alteraram a função outrora exercida pela pecuária177
.
A exploração da maniçoba no Nordeste ocorreu em uma conjuntura de altos preços
alcançados pela borracha no final do século XIX e início do século XX, período em que
ocorria grande crescimento das indústrias automobilística e elétrica. Essa atividade propiciava
um saldo de recursos para o Piauí. “[...] 1897, com a descoberta da maniçoba, começou a
173 BRANDÃO, Adail J. Monteiro. Op. Cit., 1996, p. 33. 174 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006. 175 Ibidem, p. 104. 176 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995. 177 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 1993.
56
aparecer avultado saldo no orçamento, o que possibilitou, mais tarde, o governo Arlindo
Nogueira a promover o serviço de água e iniciar o de luz elétrica em Teresina”178
. Esse
governador mostrava-se otimista, pois “[...] a borracha, para ele, no momento em que o gado
se desvalorizava, cujo dízimo baixara de modo assustador e imprevisto, representava uma
nova era de prosperidade e de esperanças”179
.
Naquele período, a contribuição média anual no conjunto da receita das exportações do
Piauí foi de 48,8%. No entanto, a partir do período 1913-14, o produto foi perdendo
importância, devido à crise mundial e nacional, que pode ser explicada em parte pela queda
nas cotações da borracha. Outra razão para essa decadência foi a competitividade dos
produtos asiáticos, que perderam para o Brasil sua posição privilegiada. Durante o século XX,
o Brasil detinha o monopólio da oferta do produto, entretanto “[...] o capital europeu ao
instalar empresas produtoras na Ásia buscava superar a dependência dos países consumidores
à oferta brasileira”180
. A produção no continente asiático caracterizou-se pelo plantio
racional, que aumentava a oferta e diminuía os preços, por isso, contrapunha-se à produção
brasileira que era “inelástica, de alto custo e qualidade heterogênea”181
.
A borracha de maniçoba tinha assumido a posição de principal produto na pauta das
exportações do Estado. Como se tratava de um produto secundário em relação ao látex da
seringueira, teve sua cotação em baixa no período e não havia um substituto para este
produto182
. Entre os anos 1917 e 1920, sua contribuição como geradora da receita já era pouco
significativa183
.
A exploração da cera de carnaúba, assim como da borracha de maniçoba, começou
ainda no século XIX e nos finais deste mesmo século foram realizadas no Piauí tentativas de
colocar o produto no mercado externo. “A partir dos primeiros anos do século XX o produto
passou a ocupar lugar de destaque no conjunto das exportações do Piauí, ao lado da borracha
de maniçoba, do algodão e a partir de 1911, também do babaçu”184
.
Em decênios da segunda metade do século XIX, a cera era imperfeitamente aproveitada
pelos habitantes do lugar.
178 SANTANA, R. N. Monteiro de. Evolução histórica da economia piauiense. 2. ed. Editora Academia
Piauiense de Letras: Teresina, 2001, p. 91. 179 Ibidem, p. 92. 180 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 1993, p. 34 181 Ibid. Id. 182 BRANDÃO, Adail J. Monteiro. Op. Cit., 1996. 183 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 1993. 184 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006, p. 181.
57
Anteriormente, a árvore era empregada na construção de currais, de casas,
ou na fabricação de utensílios, a exemplo de esteiras, chapéu, cofo, peneira,
corda, e o pó, em vela, etc. (...) Nos primeiros anos desse século (XX), as fábricas de tecidos a utilizavam para dar brilho no gomado dos tecidos. Logo
mais no sul do País, foi aproveitada na fabricação de pasta para calçados e,
em menor quantidade, para soalho”185
.
O produto passou a ganhar importância, entre os anos 1904-1914, sob o ponto de vista
das finanças públicas. Com o advento da crise de 1913/14, período em que as exportações
enfrentavam dificuldades, as cotações da cera de carnaúba reagiam positivamente,
propiciando receitas crescentes para o Estado.
Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial abriram-se novas perspectivas
para as exportações da cera, de que se conseguiu produzir um componente bélico – ácido pícrico, de alto poder explosivo. Os altos preços então
alcançados colocaram-na, a partir de 1914, como a principal responsável
pela formação da receita do Piauí, superando inclusive a borracha186
.
Esse pico das exportações teve apenas a duração da guerra. Entre os anos 1920 e 1921,
com a normalização do mercado, e, consequentemente, a redução dos preços, o produto sofreu
sua primeira grande crise, com reflexos no comércio exportador e nas áreas produtoras187
.
No início do século XX, cito o babaçu, cujas primeiras exportações, ao contrário dos
outros produtos, teve início nesse século, mais especificamente em 1911. O principal mercado
consumidor era a Alemanha. Além disso, durante a Primeira Guerra Mundial, as exportações
realizam-se principalmente para o mercado interno; após o conflito, o comércio externo foi
ativado, permitindo a entrada de outros países no mercado consumidor.
A exportação desses produtos passou a ser um fator de viabilização de renascimento do
Piauí. Nos primeiros anos do século XX, foram realizados, na Capital, como citei acima,
serviços públicos em nome do progresso – o abastecimento de água e o fornecimento de luz
elétrica188
. No entanto, a borracha de maniçoba, a cera de carnaúba e a amêndoa de babaçu,
mesmo inseridas na demanda do comércio internacional, não se consolidaram como
atividades dinâmicas e duradouras capazes de influenciar nas transformações da estrutura
sócioeconômica do Estado189
.
O imaginário “progressista” contagiava a nação brasileira. Teresina, assim como as
outras cidades do Brasil, “[...] assimilou esse imaginário de crescimento material,
185 SANTANA, R. N. Monteiro de. Op. Cit., 2001, p. 97. 186 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 1993, p. 29. 187 Ibidem. 188 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995.
189 Ibidem.
58
desencadeando uma euforia de „progresso‟. É necessário dizer que parte da elite piauiense
tinha por inspiração o positivismo, manifestado através das idéias de „progresso e ordem‟”190
.
No entanto, no alvorecer do século XX, era um desafio para essa elite conciliar seu imaginário
progressista com uma realidade social desafiadora, apesar da paisagem que se configurava
com o novo século oferecer perspectivas de modernidade à nação brasileira191
.
No que tange ao Piauí e, particularmente, a sua capital, Teresina, neste
período não passou de um sonho daqueles que alimentaram a ilusão de que estavam vivendo novos tempos – „o progresso‟. Na verdade, esta elite
constituía um pequeno número daquelas pessoas que se vestiam com artigos
de luxo chegados da França, como sedas, veludos, leques de madrepérola, gravatas, perfumarias e jóias de ouro, vendidos nas casas de comércio das
ruas Bella [hoje Senador Teodoro Pacheco] e Imperatriz [hoje Rui Barbosa].
[...] nas residências de luxo dessa elite usavam-se escarradeiras de porcelana, ervilhas e enlatados
192.
O comércio da capital piauiense era uma atividade fraca em virtude de sua dependência
com o Maranhão, através da cidade de Caxias. Os meios de transportes utilizados para a
circulação das mercadorias eram em geral, o lombo dos animais, devido à ausência de
estradas trafegáveis; a canoa, a balsa e o vapor, nos trechos navegáveis do rio Parnaíba e seus
afluentes. O comércio era bastante limitado, o centro de destaque desta atividade era a cidade
de Parnaíba193
. O comércio externo do Piauí dependia do Estado do Maranhão, em virtude do
Porto de Amarração não dar acesso a vapores de linhas transatlânticas.
O Maranhão atinge a cidade de Teresina com mais rapidez, com a ampliação
de sua via férrea. Neste contexto, inicia-se em Teresina uma luta pela
construção do Porto de Amarração, acreditando-se que o custo de mercadorias se tornaria mais baixo, pela diminuição das distâncias, o que
possibilitaria o progresso do Piauí194
.
Foi a partir dos governos das décadas de 1910, nas gestões de Antonino Freire e Miguel
Rosa, que os discursos dos governantes piauienses ganharam destaque diante da preocupação
com as mudanças no comércio e na indústria. Em função do descaso do Governo da União
para com o Nordeste e, especificamente, com o Piauí, naquele período, propostas foram
levadas à Câmara Legislativa do Estado em um trabalho conjunto com a empresa privada,
190 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 31. 191 Ibidem. 192 Ibidem, p. 31.
193 Parnaíba constituía naquele período, o maior empório comercial do Estado. Mantinha relações comerciais
com algumas praças da Europa e dos Estados Unidos, importava bens de consumo de luxo, material de
construção e equipamentos e exportava produtos de extrativismo animal e vegetal. 194 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 32.
59
objetivando solucionar o problema infraestrutural através da construção de estradas, da
navegabilidade do Rio Parnaíba e seus afluentes e da construção do Porto de Amarração195
.
Esses discursos traduzem a luta em prol das transformações infraestruturais do Piauí,
embora a realidade do Estado fosse a de que seus grupos políticos não representavam uma
força substancial que conseguisse apoio do poder central aos projeto que lhes possibilitassem
atingir o tão almejado “progresso”. Dessa forma, as novas expectativas advindas da nova
ordem republicana, foram frustradas. As críticas manifestadas nos jornais eram no sentido de
que a “República continuava com a política imperial de esquecimento dos Estados mais
pobres como o Piauí, que não dispunham de fontes de rendas suficientes para prescindirem
dos auxílios da União”196
.
2.1 O Retiro da Boa Esperança
A urbanização no interior do Estado, municípios, vilas, freguesias ou povoados, naquele
período, era precária em relação à Capital. Apresentamos agora o perfil da organização e
desenvolvimento do povoado Retiro da Boa Esperança no período recortado para esta
investigação.
O Retiro da Boa Esperança durante as décadas iniciais do século XX estava sob a
jurisdição do município de Barras. Sua origem remonta à primeira metade do século XVIII,
surgiu com esse nome no contexto da doação de sesmarias197
pela Coroa Portuguesa. De
acordo com os dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], data de 13 de
julho de 1713 a carta que conferiu o sítio da Boa Esperança, situado na margem esquerda do
rio Longá, ao português Miguel Carvalho e Silva, que fixou residência no local, estabelecendo
uma fazenda de gado e constituindo numerosa família198
. Em seguida, João Antônio dos
Santos, também português, depois de tomar parte na demarcação de terras, tornou-se
fazendeiro, proprietário da fazenda Urubu, construiu currais próximos ao povoado, e
denominou-o de Retiro da Boa Esperança, onde situou rebanho199
. O povoado tomava
195 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, 196 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006, p. 50. 197 Sesmaria foi um instituto jurídico português que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção.
Surgiu em Portugal no final do século XIII e se converteu em verdadeira política de povoamento, estendendo-se
às suas colônias. 198 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Esperantina. Rio de Janeiro, 1959 (Coleção de
Monografias Municipais, n. 245) 199 FRANCO, José Patrício. O Município no Piauí: 1761-1961. Teresina: COMEPI, 1977.
60
impulso e se desenvolvia, a “[...] primeira casa de telha foi construída por volta de 1830. Em
1847, estava concluída a capela, que foi demolida em 1907 para dar lugar à igreja, concluída
em 1908”200
. “Foi pois o belo e apreciável local do Retiro da Boa Esperança, com as
vantajosas condições de seu terreno, que atraiu os primeiros moradores, os quais aglomerando
e aumentando de número, dedicando-se à lavoura e à pecuária.”201
.
O espaço urbano estava restrito a uma “[...] pequena povoação ao redor da capela, com
pouquíssimas casas de telhas e várias de palha, sendo que estas últimas encontravam-se
espalhadas pelo povoado”202
. Havia apenas uma rua, “[...] que era a rua Coronel José Fortes:
uma rua que tinha um areal muito grande, uma rua formada de areias ensombreada por
cajueiros”203
.
200 REBÊLO, Emília Maria de Carvalho Gonçalves. Relações entre urbanização e educação escolar no
Município de Esperantina (PI), no período de 1960/1980. Teresina, UFPI, 1997, p. 50. 201 FRANCO, José Patrício. Op. Cit., 1977, p. 40. 202 REBÊLO, Emília Maria de Carvalho Gonçalves. Op. Cit., 1997, p. 50. 203 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Massacre no Retiro: os ciganos entre a História e o imaginário
popular (monografia de Conclusão do Curso de História – UFPI), Teresina, 1998.
61
01: Espaço urbano do Retiro da Boa Esperança no início do século XX204.
204 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998.
62
Até o final do século XIX, o Retiro da Boa Esperança,
[...] contava ele apenas aproximadamente mais (sic) dúzia de casas de telhas,
essas mesmas de péssima construção. O restante do povoado compunha-se de número não muito avultado de casas de palhas, espalhadas e perdidas no
seio do imenso tucunzal, no perímetro que hoje compreende a zona centro da
Cidade205
.
A chegada do novo século descortinou novos horizontes na vida do povoado, que
ganhou impulso e atraiu somas maiores de moradores. Naquele período, despertou-se o
interesse pela lavoura, em especial a algodoeira, que trouxe grande produtividade.
Naquele tempo foi montado aqui o primeiro engenho para descaroçar
algodão. Tratava-se de uma enorme bolandeira, puxada por burro. O
engenho foi instalado sob enorme latada no local onde fica hoje a casa de
residência de Raimundo Teles. A bolandeira foi trazida do Ceará, por Jerônimo Cirilo, natural daquele Estado, procedente de um certo lugar
denominado „Cofo‟, lá para as bandas da Serra da Ubatuba206
.
Completava o quadro da economia do Retiro, além da pecuária, o extrativismo do
babaçu, da carnaúba e a agricultura de subsistência, sustentada no cultivos do arroz, milho,
mandioca e algodão. Além dessas atividades, havia ainda extração da palha de tucum e a
venda de frutas:
A renda da pobreza era o fiapo da palha de tucum – e o tucum, para engorda
de porco. Matava-se e ia vender em Piracuruca. [...] A produção era para fazer rede. Então, eles tocavam e iam vender na Vila da Manga. A produção
era essa: quando era três horas da manhã ninguém dormia, as mulheres
batendo algodão, cada uma tinha um engenho de mão para descaroçar. Também enchiam-se comboio de mangas e saía-se vendendo até Piracuruca:
era o ramo de vida da pobreza na época207
.
O comércio do povoado estava resumido apenas ao largo da igreja. “Até o último ano
do século XIX, contava o Retiro da Boa Esperança uma única casa comercial. Era
estabelecido aqui o comerciante Jerônimo do Monte Furtado”208
. Esse comerciante,
consciente da ausência de competição demonstrava segurança e paciência no trato com a
clientela, confiante que o freguês não tinha outra opção:
205 PEREIRA, Antônio Sampaio. Esperantina à luz da História. Teresina: COMEPI, 1965, p. 26. 206 Ibidem, p. 37. 207 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. Nascido em 01 nov. 1920, quando jovem testemunhou comentários sobre o massacre dos ciganos entre os
contemporâneos da época. Faleceu em 19 out. 2009. 208 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 27.
63
À tarde, o pessoal que vinha comprar querosene, ia ficando sentado na calçada. De instante a instante, o folgado vendedor, metendo a cabeça pela
estreita janelinha, gritava estridente: Deixa juntar mais! Já quase à noite,
quando a freguesia era avultada, Jerônimo abrindo apenas uma folha da porta principal do estabelecimento, ia vendendo a cada pessoa, „dois vinténs
de gás„. O dinheiro, produto da venda, era displicentemente atirado ao chão,
num cantinho especialmente destinado àquele fim209
.
A aquisição de mercadorias dava-se através do comércio com outras praças,
principalmente com Parnaíba. “Esperantina, no início do século, não tinha muita ligação com
Teresina, a ligação maior que a gente tinha era com Parnaíba”210
. O primeiro comerciante
comprava mercadorias para revenda nessa Cidade. “Homem abastado, o nosso único
comerciante „apartava negócio‟ na praça de Parnaíba. Naquele tempo era uma viagem penosa.
Parnaíba era quase no fim do mundo e a viagem só era feita, no máximo, duas vezes por
ano”211
.
Na primeira década do século XX, precisamente em 1905, outro comerciante se instalou
no Retiro da Boa Esperança, passando a concorrer com Jerônimo Furtado. Era Manoel Lages
Rebêlo, que montou um estabelecimento comercial também no largo da igreja. Esse novo
comerciante também se dedicava a outras atividades, inclusive lavoura e criação.
Moço trabalhador e esforçado, em pouco tempo prosperou, chamando para a sua companhia os irmãos mais moços, Patriotino e Gervásio, com os quais
formou sociedade comercial. A firma dos três irmãos Lages do Retiro da
Boa Esperança, dentro de pouco tempo tornou-se muito conhecida e conceituada nas principais praças do Estado
212.
O comércio da carne era feito debaixo de árvores. O açougue mais importante era o que
ficava embaixo das “Três Mangueiras”. Quando um animal era abatido, soprava-se um
búzio213
, avisando aos moradores que o produto estava à venda214
. O mesmo recurso era
utilizado no serviço de arrecadação de impostos:
Ouvindo a buzina, meu avô [José Vicente Vaz, encarregado de fazer a
arrecadação dos tributos, era avô de Antônio Sampaio Pereira] depois de
alisar o pontudo bigode, botava o ouvido no tempo e depois de localizar o
209 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 28. 210 CASTRO, Valdemir Miranda de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
10 out. 1997. Nascido em 21 ago. 1969, é escritor, poeta, professor e pesquisador da História de Esperantina. 211 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 27. 212 Ibidem, p. 39. 213 Uma espécie de apito 214 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965.
64
ponto de aviso ou chamado, despachava o diligente pigoreiro para arrecadar
a sagrada parte devida ao „patrão governo‟215
.
Dentre os impostos, havia o imposto da enxada, que o lavrador era obrigado a pagar
dois mil réis por ano, e um imposto cobrado por animais abatidos para o consumo da
população216
.
Como as casas estavam espalhadas e ocultas pelo matagal, soprava-se o búzio diante da
prestação desses serviços e cobrança de impostos, como forma de avisar aos moradores.
Além do comércio, verificava-se no Retiro a presença de curtumes217
e de olarias218
.
Outra atividade artesanal de destaque do povoado era a tecelagem de redes, derivada do
cultivo do algodão. O primeiro tear introduzido no povoado remonta às últimas décadas do
século XIX, de propriedade de Antônio Florêncio Ramos. Esse mestre artesão ensinou sua
arte aos discípulos: Marco Pereira e Francisco Quaresma. Após anos de ensino, eles
receberam o “grau” de mestre tecelão. Sobre essa experiência, Pereira destaca: “Até pouco
tempo, o discípulo era obrigado trabalhar no ofício e demais ocupações da casa, para o
mestre, gratuitamente, durante um lustro, se é que pretendia ser iniciado em qualquer arte”219
.
Com o passar dos tempos, o novo mestre Marco Pereira passou os ensinamentos da arte
de tecer aos seus parentes, e assim se sucedeu, a ponto de anos mais tarde, o ofício da
tecelagem ser uma espécie de monopólio dos descendentes daquele artesão.
Em Esperantina, bater tear é privilégio de um clã, admirado, que, através de
tantos anos, essa família vem conservando religiosamente os tradicionais teares e ensinamentos aos filhos e netos, passando de geração a geração, uma
arte aprendida com um dos primeiros habitantes desta Paróquia de Nossa
Senhora da Boa Esperança220
.
Embora o Retiro da Boa Esperança fosse tomando impulso no tocante a sua economia e
urbanização, ainda era precário o sistema de transportes: “A Vila não dispunha de ônibus ou
outro transporte de linha regular. Não havia carro de linha, apenas de carga”221
. A
precariedade também se estendia ao serviço das comunicações: “Na época os serviços de
correios se faziam de forma precariíssima. O dinheiro arrecadado dos impostos era remetido
215 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 38. 216 Ibidem
217 Estabelecimento onde se processa o couro cru de animais, com a finalidade de deixá-lo utilizável para a
indústria ou venda a atacado. 218 Local onde se fabricam peças de cerâmica, como telhas, tijolos, adobes. 219 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit.,1965, p. 35 220 Ibidem, p. 36 221 REBÊLO, Emília Maria de Carvalho Gonçalves. Op. Cit., 1997, p. 54.
65
para Teresina por um „positivo‟, que ia a pé, levando também cartas. Chamava-se José
Caetano”222
.
Era precário também o regime de detenção de presos. No início do século XX, não
existia cadeia pública no Retiro, funcionava o velho sistema de pelourinho como forma de
detenção. “Não dispondo de cadeia, os presos eram levados ao „tronco‟, ficando os homens
presos por um lado e as mulheres pelo outro. Quem cometesse o mais leve e ligeiro deslize, ia
diretinho com o pé trancafiado no grotesco instrumento de detenção”223
. Conforme a
literatura, o delegado do povoado Raimundo da Rocha Maciel, popularmente conhecido por
“Raimundo Amansa a Égua” costumava deixar os presos na mais incômoda posição no
referido instrumento e algumas vezes:
[...] nas suas andanças e farras, deixando mulheres presas, ao voltar depois
de longas andanças em busca de pinga, encontrava-as na mais lamentável situação. As detentas que eram obrigadas permanecerem longas horas
sentadas no chão frio, com as pernas estiradas e imobilizadas, presas por
cadeados, não tinham outra alternativa senão fazerem suas necessidades
pessoais, ali mesmo, muitas vezes sob as vistas de homens, presos nas mesmas condições
224.
Esse sistema de detenção acabou quando Silvestre Lopes Duarte e Francisco Ferreira,
moradores do povoado, “[...] pegaram o „tronco‟ do Amansa a Égua e jogaram com cadeado,
corrente e tudo, nas águas do Longá”225
. Ao saber do acontecimento, o delegado:
Despojado do seu precioso e querido talismã, [...] ficou fulo e ameaçava
denunciar ao governo imperial, tamanho desrespeito à sua augusta e respeitabilíssima autoridade, acalmando-se quando veio a saber que o
imperador não existia mais e que o tronco não passava de coisa condenável
no regime republicano226
.
Através da literatura, podemos caracterizar o universo social do povoado Retiro da Boa
Esperança como isolado, fragmentado, alheio à conjuntura política republicana. O Brasil
deixava de ser uma monarquia e ensaiava um novo regime, a República. Com o regime
republicano, uma nova Constituição foi promulgada (1891), e dentre algumas de suas
determinações, destaca-se que não era reconhecido como dever do Estado, ao contrário da
Constituição Imperial (1824), proporcionar educação básica e gratuita aos brasileiros. Assim,
222 REBÊLO, Emília Maria de Carvalho Gonçalves. Op. Cit., 1997, p. 55. 223 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 37. 224 Ibidem, p. 38. 225 Ibid. Id. 226 Ibid. Id.
66
podemos compreender a presença de “grandes mestres” no Retiro da Boa Esperança, no final
do século XIX e por algumas décadas do século seguinte. Como não havia escolas do
governo, “[...] o ensino ficava a cargo de mestres contratados pelos pais das crianças. Eram os
„professores de varanda”227
. Recebiam essa denominação porque ensinavam na varanda das
casas, “[...] o pai chamava o „professor de varanda‟ para „desarnar‟ os meninos, para ensinar
as primeiras letras”228
.
Os primeiros mestres do povoado foram Luiz Aleijado, Belarmino Bola de Ouro,
Lázaro, conhecido como “Porca Parida”, Higino Gregório dos Santos, Isaías e José de Lemos
Sobrinho. A partir da segunda e terceira décadas do século XX, destacaram-se os mestres
João Paulo, Levi Saavedra, Félix e a Mestra Joaninha Pinheiro, a Janoca. Alguns desses
professores exerciam o magistério no povoado, ou seja, levavam uma vida sedentária, “[...]
esperando que os discípulos acorressem ao seu encontro, nunca se dando ao trabalho de ir-
lhes à cata”229
. Ainda nas últimas décadas do século XIX, o povoado possuía duas escolas,
que segundo a literatura,
[...] empolgaram os moradores do povoado e a matutada das redondezas, que
sem elas, não dispunham de meios para ensinar aos filhos, portanto, só os mais abastados mandavam letrar seus rebentos em Barras, que naquela época
já tinha foros de centro adiantado e possuía alguns mestres de „meter fé‟
[...]230
.
Outros mestres faziam incursões pelos demais povoados, “[...] dando preferência aos
núcleos habitacionais de maior densidade demográfica, onde ficava aboletado por tempo
indeterminado, dependendo sua permanência no lugar, daquilo que recebia como
prometimento para o desempenho dos misteres do seu ofício”231
.
Quando os alunos estavam devidamente letrados, os mestres procuravam novas turmas
em outras localidades. Mas,
[...] antes de transferir-se em definitivo, ia pessoalmente fazer uma ligeira
averiguação e, só depois de sondar o local, era que, caso a coisa lhe
agradasse, tratava de engatar o compromisso com o pessoal do lugar. Ajustadas as condições, voltava para a casa, pondo-se à espera do aviso de
que tudo estava em dia e de conformidade com as exigências que ele fizera,
227 PEREIRA, Antônio Sampaio. Velhas Escolas – Grandes Mestres. Teresina: COMEPI, 1966, p.22. 228 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998, p. 30. 229 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1966, p. 17. 230 Ibidem, p. 15. 231 Ibidem, p. 18.
67
a fim de evitar a precipitação de um passo em falso e também para que a
muda não redundasse em fracasso232
.
Instalada a escola no novo lugar, como forma de aumentar a renda, os mestres recebiam
discípulos de povoados adjacentes - uma espécie de internato - com direito à alimentação,
dormida e, em alguns casos “[...] o arejado casarão de palha abrigava sua meia dúzia de
rapazolas de fora, os quais pagavam módicas mensalidades, cujos pagamentos eram aceitos
não só em espécie, mas recebidos também em cereais, criação miúda, bicho de pena, carne e
outros comestíveis”233
.
A obrigação firmada com os pais dos alunos que não moravam no “internato” era
apenas em ensinar a ler, escrever e contar, e para aqueles que residiam com o mestre era,
[...] além de letrá-los, garantia abrir-lhes as idéias, isto é, prometia ensinar-
lhes fazer peias, cabrestos, abanos, cofos, esteiras, jacás, balaios, urupembas, quibanos e uma infinidade de outras pequenas utilidades domésticas, que um
homem prático, do interior, precisa saber, para usá-las, quando preciso.
Além dessas pequenas coisas, ensinava ainda, mais por indústria e proveito
próprio do que pelo gosto de transmitir o que sabia aos outros, a execução de muitos trabalhos pesados, inclusive tecer todo tipo de cerca, especialmente
cerca de surrão, na qual passava quinau234
em muitos mestres cerqueiros235
.
Aos alunos mais curiosos, os mestres ensinavam-lhes saberes de outras ciências, e esses
ensinamentos eram passados de forma reservada. Segundo testemunhos de pessoas mais
velhas, sabe-se que muitos alunos do Mestre Belarmino teriam saído de sua casa como
respeitados benzedores,
[...] pois o velho Bola-de-Ouro era também mestre em responsar Santo
Antônio, atalhar fogo e atalhar sangue com palavras, curar na imbira, no rumo e no mastro, rezar contra quebranto, carne quebrada, mau olhado,
campainha caída, dor de dente, especialmente quando a dor de dentes era de
pontadas, levantar arca caída, benzer contra izipira (erizipela) e outros
malefícios236
.
Todos esses mestres usavam a palmatória como castigo nas suas aulas. Sobre isso,
Pereira cita na sua obra depoimento de Belizário Catitu, o último aluno do mestre
Belarmino, que na época com quase 100 anos de idade, relatou:
232 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1966, p. 18. 233 Ibidem, p. 21. 234 Passar quinau significa corrigir com palavras, mostrando o erro. 235 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1966, p. 22. 236 Ibidem, p. 22-23.
68
Mode qui ainda to sintino ar mão ardê, só dur bolo qui ele dava na gente!
[...]Tio Belarmino tinha a mão tão pesada, qui só chumbo. Quando ele dava
um bolo cum mais talento, mode qui ficava um bichim troceno na palma da mão da gente, mode entrá pra dentro. Eu qui conte [...], quiera supapo dum
bolo dado puru tio Belarmino, pois sô dos qui mijô bunitas vezes, na roda do
argumento237
.
Além da palmatória, Mestre Belarmino utilizava outras punições, e eram aplicadas
conforme a gravidade da falta cometida, como por exemplo uma lição “mastigada” ou um
translado mal feito, a punição dada ao aluno era:
[...] posto de joelhos em cima de montinhos de caroços de milho, com os
olhos vendados por grotescos óculos de cacos de cabaça, ou então, caso
fosse a canícula e o sol estivesse abrasador, era mandado para o terreiro,
onde ficava descalço no meio da areia quente, tendo ainda uma cadeira na cabeça, sobre a qual Mestre Belarmino colocava uma pedra bem crescida, ou
em falta de pedra, qualquer objeto pesado238
.
Se o aluno não soubesse mesmo ou apresentasse dificuldades em aprender a leitura ou a
escrita, o mestre colocava-o de “[...] quatro pés no meio da sala, a fim de ser cavalgado por
um discípulo mais aberto, que o esporeava com os calcanhares nos vazios, mostrando aos
outros que passava, que o pobre coitado era mesmo burro”239
.
Mesmo aplicando penas rigorosas aos alunos, esses mestres eram estimados pela
sociedade local. Assim, “[...] naquele tempo, um mestre era um verdadeiro achado e quem
tivesse a sorte de ter um à mão, nunca ousava desgostá-lo, nem que fosse por força de um
motivo forte”240
. A ele era dada “carta branca” e, portanto, contrariá-lo com a supressão de
tais prerrogativas seria uma temeridade241
.
Essas escolas viveram o apogeu nas últimas décadas do século XIX e algumas delas
chegaram ao alvorecer do século XX, segundo o literato Pereira, elas deixaram um legado de
bons serviços prestados às gerações daquela época, deram margem para que fossem recebidas
pelas gerações subsequentes como um precioso subsídio para enriquecer ainda mais o acervo
das tradições esperantinenses.
No decorrer dos anos iniciais do século XX, o povoado tomou impulso, novas e sólidas
construções foram edificadas, o comércio foi se desenvolvendo, enquanto a lavoura e a
pecuária igualmente progrediam. Em virtude desse crescimento e progresso, o povoado foi
237 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1966, p. 26-27. 238 Ibidem, p. 25. 239 Ibid. Id. 240 Ibidem, p. 21 241 Ibidem.
69
elevado à categoria de vila, pela Lei nº 970, de 25 de junho de 1920, sob o nome de Boa
Esperança, território desmembrado de Barras. Todas as exigências da Lei nº 598, de 19 de
junho de 1911 foram preenchidas. Tratava-se da primeira lei de organização municipal pela
Assembleia, e foi sancionada pelo Governador do Estado na época, Antonino Freire. “Essa lei
condicionava a elevação de povoado a vila, mediante critério de população, casa de Conselho
e Cadeia Pública, e terras para o patrimônio do novo município”242
. A mudança do nome para
Esperantina deu-se em razão do decreto lei nº 154, de 30 de setembro de 1943, que proibia a
existência de vários topônimos, e nesse caso o nome de Boa Esperança era dado a vários
municípios brasileiros243
.
Foi nesse contexto próspero que, na manhã do dia 11 de novembro de 1913, o povoado
Retiro foi palco do massacre de um grupo de ciganos pela polícia militar. O grupo naqueles
dias de novembro andava errando pelos povoados adjacentes.
Narro a seguir minuciosamente o fato, a partir do primeiro saque oficialmente
registrado, as notícias encaminhadas às autoridades competentes, o itinerário da tropa policial
em perseguição ao grupo, a chegada no Retiro, bem como o confronto entre polícia e ciganos
que resultou na morte de alguns e aprisionamento do grupo errante.
2.3 O “banditismo” dos ciganos e ação policial
As primeiras notícias de supostas práticas de banditismo dos ciganos em terras
piauienses, segundo fontes impressas, têm registros em mês de outubro de 1913. O grupo
provavelmente possuía uma fazenda no Maranhão, denominada Fazenda Cigana, e outra no
Ceará, por nome Jaivaras. O território piauiense funcionava como um corredor entre os dois
estados e no Piauí os ciganos teriam cometido uma série de infrações244
. A fazenda Jaivaras
localizava-se na região de Sobral: “[...] é aqui de Sobral para quem vai a Canindé. Uma mata
próxima a um açude chamado Jaivaras, e lá é a fazenda deles. Nesse tempo eles eram muitos e
traziam de lá levando de lá para cá”245
.
A imprensa piauiense através dos principais jornais Diário do Piauí, Piauí, Correio de
Teresina, Gazeta noticiava a presença “ameaçadora” de um “bando” armado em torno de
242 FRANCO, José Patrício. Op. Cit.,1977, p. 130. 243 Ibidem. 244 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998. 245 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997.
70
duzentas pessoas, dentre homens, mulheres e crianças, montadas a cavalo, armados com
facas, garruchas, espingardas, rifles, espadas e punhais, que, segundo as notícias, atacavam e
depredavam propriedades dispersas pela região norte piauiense. As notícias se espalhavam
rapidamente e criavam, no imaginário coletivo, sentimentos e atitudes de repulsa e medo por
parte das populações locais. A imprensa adjetivava os ciganos como “trapaceiros”,
“bandidos” e “cangaceiros cearenses”, que saqueavam cereais e animais para a alimentação e
transporte.
Um enorme bando de ciganos, esses indivíduos errantes, malfajezos e
exploradores, que não têm pouso fixo e vivem de terra em terra a explorar e
iludir o nosso sertanejo na sua boa fé, um bando deles invadiu e saqueou a próspera povoação do Peixe, no Município de Barras, a quatro léguas da
margem do Parnaíba, roubando e cometendo desatinos inqualificáveis. Logo
depois de terem praticado semelhantes atos de barbaria, retiraram-se da
povoação com os criminosos troféus, e segundo fomos informados ameaçando de fazerem o mesmo na Cidade de Barras [...]
246.
Esse teria sido primeiro ato de suposto banditismo dos ciganos registrado oficialmente
pela imprensa piauiense. Tratava-se do ataque ao comerciante Antônio do Rego Castelo
Branco, um dos homens mais influentes do Povoado Peixe. Para os articulistas da imprensa
local, na tarde do dia três de novembro de mil novecentos e treze, os ciganos de nome
Mocinho, Mundico, Bento, Rodolfo, chefiados por Benjamim Medrado, teriam invadido a
loja daquele senhor. O chefe dos ciganos teria abordado Antônio do Rego, expressando-se
assim: “queremos cachaça, queremos vinho”247
. O proprietário, que se encontrava na loja,
atendia às ordens dos ciganos. Após terem sido servidos, Medrado teria sentado numa cadeira
próxima ao balcão, retirado da bota uma faca e apontado para Antônio do Rego, que naquele
momento estaria debruçado sobre o balcão, do lado de dentro, e teria exclamado: "Olha
fulano, um espinho por menor que seja nos incomoda, avalia esta toda metida no corpo do
diabo"248
. Em seguida, "pediu um vidro de óleo, abriu-o, passou nos bigodes e cabelos e
perguntou o preço".249
Ao saber pelo proprietário que o referido produto custava 2 $600, teria
dito: "Só vale dez tostões e é o quanto eu pago".250
Além dessa afronta, teria mandado pesar
café, opondo-se também ao preço. Quanto às bebidas, Antônio do Rego teria procurado
obedecer, com receio de ser desagradável. No entanto, o cigano teria desprezado os copos
246 OS CIGANOS do Peixe. Correio de Teresina. Teresina, ano 1, n. 40, 10 nov. 1913. p. 02. 247 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02 248 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913, p. 02. 249 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02. 250 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02.
71
postos para beber o vinho e teria ido até a prateleira e feito descer os copos embrulhados, os
quais estariam expostos à venda. Dentre frases injuriosas, Benjamin teria se manifestado ao
comerciante: "Sr. Antônio do Rego, o senhor merece mesmo é uma visita do Antônio
Silvino".251
Após essa agressão moral, os ciganos teriam deixado o estabelecimento sob
zombarias e risadas.
No inquérito feito pela polícia a Antônio do Rego, consta que este comerciante “[...]
ameaçado em sua vida e propriedade, retirou sua família de casa e seguiu para a cidade de
Barras a fim de pedir providências ao governo, tudo isto ao mesmo dia [...]"252
.
A imprensa informou que a transferência da família foi para a casa de Dona Chiquinha
Torres, parenta e amiga de Antônio do Rego, residente no mesmo povoado253
. "Em Barras,
telegrafou aos amigos, comunicando o ressaltante [sic] ataque aos Exmo. Drs. Governadores e
Secretário de Polícia, pedindo providências"254
, conforme vemos abaixo:
BARRAS, 4 - Estou aqui foragido, um bando de ciganos invadiu a minha
loja no Peixe e, realizando verdadeiro saque, armado como se achava, de
rifles e facas, levantando ameaças de morte. Retirei a família. A população ali armada, sem a menor garantia de propriedade e vida, suporta, há um mês
penosas depredações e urgentes providências. Saudações: Antônio Rego255
.
BARRAS, 4 - Um bando de ciganos numeroso, superior a cem, está devastando a povoação Peixe, praticando ostensivamente fortes depredações,
ontem armados a rifles e punhais, foram à casa do nosso importante amigo
Antônio do Rego, fazendo saque em sua loja, com grandes ameaças,
determinando o fechamento da casa e a retirada da família, estando aqui para solicitar garantias. Pedimos remeter forças urgentes para enérgicas
providências. Pobreza ali sobressaltada. Impossibilitadas agir pelo grande
armamento dos ciganos, apelamos para a vossa justiça, sempre pronta. Saudações - José Felipe, Lincoln Correia, Luiz Fernandes, Antônio Fortes,
Silvestre Tito, José Fortes256
.
Nos arredores de Peixe e Marruás, a documentação oficial informa que ciganos teriam
cometido uma série de ataques a outros populares. Em geral, tratava-se de furtos de cereais e
animais, como galinhas, porcos [“capados”], cavalos e vacas. Os ciganos também negociavam
objetos com animais entre as pessoas desses povoados, usando a prática do escambo, eram
constantes os casos de engodos. Destaco a troca de um cavalo pertencente a Francisco Fortes
251 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02. [Antônio Silvino foi um
cangaceiro que atuou no Cangaço no final do século XIX]. 252 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Antônio do Rego Castelo Branco. Repressão dos ciganos. Diário do
Piauí. Teresina, ano 3, n. 294, 23 dez. 1913. p. 02.
253 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02 254 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02 255 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n.1256, 29 nov.1913. p.02. 256 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n.1256, 29 nov.1913. p.02.
72
Sampaio por um rifle e um trancelim de ouro. No momento da troca dos objetos, o cigano
Medrado teria entregado apenas o trancelim que, por sinal era de latão, e a justificativa de não
entregar a arma teria sido que o cigano seu proprietário estava chorando com pena de separar-
se dele257
. Segundo essa documentação, muitos dos animais eram arrebatados à força bruta e
quando seus proprietários manifestavam resistência, os ciganos agiam com violência.
Ainda com base nessas fontes, apresento o fato do cigano Rodolfo de Tal, que teria
exigido do senhor Francisco Calixto Gomes a venda de um porco. Calixto ter-se-ia oposto ao
negócio e Rodolfo teria puxado uma espada, cravado a ponta em cima de uma mesa e teria
feito ameaças de morte, amedrontando sua família. Sob esse clima de tensão, Calixto teria
entregado o animal258
. Esse mesmo cigano teria proposto ao senhor Mamede de Souza Vieira
a compra de uma vaca. Mamede a teria negociado por quarenta mil réis. No dia combinado da
entrega da rês, os ciganos teriam matado a vaca, fugido do povoado sem deixar nenhum
pagamento ao negociante259
. Outro caso semelhante aconteceu entre os ciganos Ataliba e João
que teriam proposto negociação com o senhor Antônio Gomes de Brito de um porco por
outro, velho e imprestável. Gomes ao suspeitar do suposto engodo, teria recusado o negócio.
O cigano João, enfurecido e supostamente armado de chicote e faca, só não agrediu o senhor
por causa da interferência de um terceiro. Porém teria alertado que quando o encontrasse
sozinho, lhe daria uma surra260
.
Além dos fatos citados, a documentação acusa que alguns jovens ciganos tentavam
raptar donzelas, no intuito de integrá-las ao grupo. O cigano Gaspar tentara raptar Rosina;
Mundico faz tentativas à moça Maria261
. Um dos casos mais curiosos foi o da jovem Maria da
Cruz de Medeiros, assediada pelo cigano Aguiar, filho do Rodolfo. O jovem cigano oferecia
presentes, dirigia-lhe gracejos e pedia-lhe insistentemente os cachos de seus cabelos. Como a
moça não correspondia a suas expectativas, Aguiar prepara-se para raptá-la, porém sem êxito
na empreita262
. Diante destas supostas tentativas de rapto de donzelas, a solução encontrada
257 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Francisco Fortes Sampaio. Repressão dos Ciganos. Inquérito Policial
feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 294, 23 dez. 1913. p. 02. 258 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Francisco Calixto Gomes. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 296, 15 dez. 1913. p. 02-03. 259 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Mamede de Souza Vieira. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial
feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí.Teresina, ano 3, n. 296, 15 dez. 1913. p. 02-03. 260 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Antônio Gomes de Brito. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial
feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 296, 15 dez.1913. p. 02-03. 261 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Antônio Martins Chaves. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial
feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 296,15 dez.1913. p. 02-03. 262 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Maria da Cruz de Medeiros. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial
feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 296, 15 dez.1913. p. 02-03.
73
pelas famílias dessas jovens, segundo as fontes, era escondê-las em casa de parentes em
outros povoados.
A rala documentação existente sobre essa correria de ciganos emana de uma única
“verdade”: a do centro, da dominação, a qual lança um olhar hostil, agressivo e coisificado ao
grupo nômade.
Em matéria publicada no jornal Piauí, havia a suspeita que “entre os ciganos andam
também facínoras acusados pela polícia de outros estados e que se aproveitam da companhia
desses bandos nômades de vagabundos para praticar verdadeiras depredações,”263
inclusive a
referida matéria questionou o acontecimento do povoado Peixe, que não passaria de mero
teatro. Essa suspeita também foi conferida pelo tenente da tropa policial que reprimiu o grupo
cigano: “[...] É certo, conforme verifiquei que nos bandos dos ciganos, existiam muitos
cangaceiros conhecidos, vindo de estados limítrofes”264
.
Na tarde de 04 de novembro, o governador Miguel Rosa recebeu os telegramas de
Antônio do Rego e de seus amigos, e imediatamente convocou ao palácio o Secretário de
Polícia, o Tenente-Coronel Comandante e Major Fiscal do Corpo de Polícia, Raimundo
Burlamaqui. Na reunião ficou deliberado seguir com urgência um contingente policial em
perseguição aos ciganos. Esse contingente, composto por 30 praças, ficou sob o comando do
2º Tenente Manoel da Cruz Oliveira, que partiu no dia seguinte, 05 de novembro, no vapor
Barão de Uruçuí para o posto Marruás, com destino à povoação Peixe. Essa deliberação foi
publicada no Diário do Piauí:
CONTIGENTE POLICIAL: Sob o comando do 2º Tenente Manoel
embarcou ontem no vapor „Barão de Urusshy‟ para o posto de Marruás, com
destinação à povoação Peixe do município de Barras, um contingente da força pública, a fim de perseguirem um vultoso bando de ciganos, que na
referida povoação, está cometendo depredações e saqueando casas
comerciais265
.
263 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n.1256, 29 nov.1913. p.02. 264 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 265 SECRETARIA DE POLÍCIA. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 253, 06 nov.1913. p. 02
74
Figura 02: Rota da tropa policial em perseguição aos ciganos266.
266 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit.1998.
75
A tropa policial partiu de Teresina na manhã do dia 05 de novembro e desembarcou no
porto de Miguel Alves na tarde do dia 07. É importante destacar que Teresina e Miguel Alves
são cidades quase vizinhas, mas naquela época a viagem de uma cidade à outra, tornava-se
demorada devido à precariedade dos meios de transportes. Nesse local, a tropa encontrou
alguns ciganos. No relatório do Tenente Manoel da Cruz Oliveira, enviado ao Major Fiscal
Comandante Interino Raimundo Mendes Burlamaqui, foi narrada minuciosamente a operação
à caça dos ciganos. O tenente relata:
[...] Ali encontrei o cigano conhecido pela alcunha de Seu Homem com o
seu pequeno bando. Intimei-o a se retirar do nosso território em virtude das ordens terminantes, por escrito, que vão juntas. O referido cigano mostrou-se
humilde e respondeu-me estar pronto a cumprir a que lhe determinara. Com
ele fui até o seu acampamento e procurei logo tomar-lhe todas as armas. Um dos seus companheiros, tomando de um rifle declarou não cumprir minhas
ordens ao que mandei agarrá-lo, resultando na sua resistência sair contuso.
Uma cigana, mais adiante que prorrompia em impropérios contra a força e
que se achava armada, foi ligeiramente contusa, devido ser necessário empregar a força para fazê-la abandonar nosso território. Meia hora depois
estavam todos os ciganos na outra margem do rio267
.
Os jornais do Estado informavam os acontecimentos e divulgavam as últimas notícias:
Continua o contingente sob o comando do valente oficial, 2º tenente Manoel
de Oliveira, perseguir os bandos de ciganos que infestam o norte do Estado,
praticando depredações. Os bandidos têm sido desarmados e acampados além da fronteira piauienses. Audaciosos, porém, como são estes bandidos
de nova espécie tem alguns bandos opostos resistências, ferindo soldados do
contingente, onde ainda não houve baixa a lamentar. A força tem respondido
na altura da agressão, saindo vitoriosa em todos os encontros [...]268
A tropa seguiu seu destino chegando a Marruás à noite daquele mesmo dia. A essa
altura, os ciganos estavam acampados no povoado Campo Largo. O corpo policial seguiu em
marcha de guerra à caça dos ciganos. Este povoado, que na época estava sob a jurisdição de
Barras, hoje é município e obedece ao mesmo nome.
Os soldados chegam ao povoado por volta da meia-noite, sob clima de guerra, “[...]
fazendo alto a uma distância de 60 metros do acampamento dos ciganos. Postei minha força
deitada em linha de atiradores [...]”269
.
Os ciganos andavam divididos em grupos, cada um desses grupos tinha um chefe.
Segundo a documentação, os chefes eram Liberato Guerreiro, Benjamim Medrado, Liberato
267 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 268 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n. 2155, 22 nov. 1913. p. 02. 269 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02.
76
Gama, Rodolfo de Tal e Pedro Ivo. O grupo de Campo Largo estava chefiado por Guerreiro.
Este chefe fez jus ao sobrenome diante de um aparato policial composto por 30 soldados,
quando “[...] apoderou-se do seu rifle, ao que o emissário o aconselhou a tal não fazer, no que
atendeu. Vindo a minha presença, intimei-o a se retirar do nosso território, ao que respondeu
arrogantemente que não se retiraria, fosse preciso lutar”270
. Em seguida foi preso, ficando sob
à guarda de um sargento e um cabo da tropa.
Os ciganos estavam acampados na casa de um senhor, que segundo o tenente, fora
obrigado a dar-lhes pousada e alimento. Naquela madrugada aconteceu um confronto entre
soldados e ciganos, a força avança em direção à casa onde estavam abrigados. Troca de tiros
partia de todos os lados, alguns ciganos fugiam atirando pela noite escura. Nesse clima de
guerrilha, uma mulher foi morta e também o hospedeiro
[...] viu-se mortalmente ferido no ventre, por uma bala de rifle, pois a bala
deixou um orifício de mais de 05 cm na saída, o que só acontece com balas
de chumbo e nunca com as de aço, como eram as nossas. Sou levado a crer que aquele infeliz fora vítima de seus hóspedes obrigados, no momento em
que se retiravam precipitadamente atirando a torto e a direito271
.
Em meio ao tiroteio, segundo o documento policial, Liberato Guerreiro, que ficara sob
guarda, ter-se-ia armado de um punhal na tentativa de matar o 1º sargento Anísio. Trava-se
uma luta corporal entre ambos, terminando na morte do cigano.
Esse incidente foi noticiado nas páginas dos jornais Piauí e Norte, conforme apresento
abaixo:
Das notícias telegráficas pelo tenente Manoel da Cruz Oliveira, deduzimos o
seguinte: No dia 07, a meia noite, no povoado Campo Largo o tenente Cruz
Oliveira encontrou os ciganos a postos. Mandou intimá-los à prisão e eles responderam a bala. O tenente estendendo os soldados em linha de atiradores
correspondeu com uma descarga. O tiroteio foi rápido, e tendo o inimigo
perdido o chefe e alguns companheiros, fugiu logo protegido pela noite272
.
Ainda naquela madrugada, a tropa regressou a Marruás chegando na aurora do dia 08.
Os grupos de ciganos vagavam espalhados pelos povoados no norte piauiense, assim um
pequeno grupo composto por nove ciganos foi encontrado a caminho. Não havendo
resistência dado o pequeno número perante a tropa, retiraram-se do território piauiense. Os
270 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 271 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 272 CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n. 2155, 22 nov. 1913. p. 03.
77
soldados chegam ao Peixe, no dia 09, e lá receberam a notícia de que os ciganos àquela altura
rumavam em direção ao povoado Retiro da Boa Esperança273
.
Os soldados partiram em direção ao Retiro, “[...] alcançando-os duas léguas antes de
chegarem àquela povoação. Procurei falar-lhes, mas a resposta que me deram foi um tiroteio
cerrado, que não se teve efeito, atribuo à distância em que estavam uns 400 m, e ao fato de
atirarem eles a cavalo e andando”274
.
O local de alcance teria sido o Pequizeiro da Areia, distante 12 km de Esperantina, onde
a polícia atira numa criança cigana. Tal fato é citado na literatura local:
Feitos os primeiros disparos, foi abatido um menino que caíra do meio de
uma carga, ficando o corpo estendido no chão. Mais tarde, Manoel
Quaresma, vaqueiro de Manoel Lages Rebêlo, na Fazenda Tucuns, passando pelo local, campeando gado, encontrou o garoto sobre a porção de sangue
coagulado. Depois de verificar que a criança estava morta, conduziu-a para
casa, dando no dia seguinte sepultura ao pequenino nômade, cujo lugar do sepultamento ainda é conhecido por Cemitério do Ciganinho
275.
Há versões sobre a morte desse menino, segundo o imaginário popular dos
esperantinenses: “Os soldados vinham atirando nos ciganos, e os ciganos correndo para cá
[...] e o Ciganinho tava trepado num pé de cajueiro. O soldado apertou o dedo, e ele caiu no
chão [...] o Ciganinho estava se mexendo e aí ele passou a faca na goela do cigano”276
. E
esta também:
E lá no primeiro tiroteio eles teriam abatido um jovem adolescente de 14 anos de idade que vinha montado num animal que trazia uma carga de
objetos de valor. Então, lá esse ciganinho foi abatido, e dizem que alguém
que passava pelas proximidades, que seria um morador de Esperantina, teria escondido parte dessa carga, e depois teria ficado com ela; que dentre esses
objetos tinha muitos objetos de valor, de metais preciosos: ouro e prata277
.
Numa conversa com Dona Raimunda Sabino, ela me falou que esse menino se chamava
Roldão, no entanto esse nome é desconhecido para as pessoas de Esperantina, em geral, é
conhecido popularmente como “Ciganinho”. Entre outras versões, existe até a de que esse
menino nem seria cigano:
273 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913 274 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 275 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 42. 276 PEREIRA, Francisco Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 08 out.
1997. Nascido em 04 out. 1909, tecelão, contemporâneo ao massacre dos ciganos. Faleceu em 08 set. 2008. 277 SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
01 dez. 1997. Nascido em 29 mai. 1957, esperantinense, bisneto de contemporâneos ao massacre, historiador,
professor do Departamento de Geografia e História da UFPI.
78
[...] esse menino estava trepado lá em cima dum pé que ainda hoje tem, um pé de jatobá. Agora, não sei se esse menino era cigano ou um menino
curioso d‟algum morador ali de perto. [...] e esse menino que tem enterrado
lá no cemitério [...], eu já ouvi por longe não era mesmo cigano não. Era de um morador vizinho que tava como curioso trepado olhando os ciganos...
porque os ciganos não iam deixar esse menino lá em cima e virem se
embora, não é? Por aí você tira que a história é toda mal contada278
.
Nas correrias de ciganos em Minas Gerais, era comum grupos ciganos deixarem
crianças e mulheres para trás diante da perseguição policial. Segundo a análise de Rodrigo
Teixeira:
Deixar mulheres e crianças para trás era talvez uma estratégia de sobrevivência dos bandos perseguidos, que facilitava a fuga dos homens,
tornando-a mais rápida. Sabia-se também que mulheres e crianças, mesmo
sendo ciganas, evocariam a piedade da polícia, pois eram consideradas frágeis. Portanto, não deveriam ser maltratadas
279.
Se isso de fato era uma tática utilizada pelos ciganos em perseguição, o recurso na
correria do Piauí não sortiu o objetivo esperado pelo grupo nômade.
A morte da criança cigana foi ignorada pelo tenente no seu relatório, porém foi
publicada nas páginas do Diário do Piauí: “No Retiro morreram nove ciganos e foi baleado
um menino cigano, duas ciganas e um homem do povo”280
. À expressão „baleado‟ subtende-
se que a criança não morrera, assim como as ciganas e o senhor do povoado.
Na tarefa de reconstituir a história do massacre em Esperantina, além das fontes
hemerográficas e oficiais, utilizei também as fontes orais como recurso da pesquisa. A
História Oral, entendida ora como uma técnica, ora como uma disciplina, ora como uma
metodologia da pesquisa em História, nas últimas décadas do século XX tem nos orientado e
proporcionado meios para obter um conjunto de propósitos, como buscar um melhor
conhecimento da história e sociedade contemporânea e poder contribuir para a modificação de
uma prática científica frequentemente ligada de seu entorno e dos sujeitos sociais com que
interage. Para Michel Pollack, a História Oral quando privilegia a análise dos excluídos, dos
marginalizados e das minorias, ressalta a importância de memórias subterrâneas que, como
278 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. 279 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte: Crisálida, 2007,
p. 70. 280 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02.
79
parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à „Memória oficial‟281
.
Dessa forma, ela apresenta uma proposta inovadora por seus objetos quando “[...] dá atenção
especial aos „dominados‟, aos silenciosos e aos excluídos da história (mulheres, proletários,
marginais), à história do cotidiano e da vida privada [...], à história local e enraizada”282
.
Então, em 1997 diante do labor de historicizar o massacre dos ciganos, saí à procura de
testemunhas sobreviventes ao fato, em Esperantina, de pessoas cujos pais, parentes ou
conhecidos fossem contemporâneos ao acontecimento, e que assim, talvez soubessem de
informações repassados por eles. Nessa caça, encontrei a última sobrevivente que fora
testemunha ocular da chacina, D. Raimunda Alves Pereira, conhecida por Raimunda Sabino,
hoje falecida, na época do massacre contava com 06 anos de idade. As informações desta
senhora foram substantivas para a minha pesquisa.
Ainda no Pequizeiro, os ciganos entraram na residência de Isabel Maria da Conceição e
tentaram ludibriar seu pai. Um bisneto de Isabel informou-me:
[...] os ciganos ali passaram e através de conversa conseguiram persuadir o pai dela que acreditava muito nesse lado místico, em feitiçarias – nesse tipo
de religiosidade – em curandeirismo. Então eles chegaram e invadiram a
casa, uma parte, e realizaram ali um certo ritual, dizendo que ele estava com feitiço e que teria conseguido tirar um besouro da cabeça dele, através do
ouvido. Em troca disso eles pediram pagamento, e conseguiram levar
galinha e quase à força bruta levar também algumas peças de vestuário. E a
mãe de minha bisavó, que era cega, ainda conseguiu tomar dos ciganos uma camisa e uma combinação – que era uma peça de vestuário feminino – que
tinha sido feita para o casamento dela. E que a mãe de minha bisavó teria
rogado praga neles dizendo que o fim deles haveria de ser bala283
.
Quando os ciganos chegaram ao Retiro, alguns deles foram acolhidos pelo comerciante
João Franco, que residia na entrada do povoado. Um sobrinho-neto de João Franco informou:
[...] então um tio meu, João Franco, procurou salvar algumas pessoas desta
turma, inclusive crianças, velhos e alguns jovens , sei que chegou a limite de
12 a 15 pessoas que ele salvou debaixo de um galpão de madeira que forrava a casa, que ele dava o nome de assoalho, que ali o pessoal vivia por cima,
mas por baixo eles tinham como um depósito de guardar utensílios de
animais, cangalhas, cambitos de carregar madeira, que ele juntava muito nos
interiores, nas fazendas. [...] O velho João Franco, onde ele colocou
281 POLLACK, Michel. Memória, Esquecimento e Silêncio. In: Estudos Históricos, vol. 2, n.3. Rio de Janeiro,
1989, p. 4. 282 FRANÇOIS, Etienne. A fecundidade da história oral In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína.
Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. 283 SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
01 dez. 1997.
80
esse pessoal. Portanto salvou uma parte desse pessoal e os outros foram
atacados, por sinal dizem que morreram bastante284
.
Sobre a acolhida de João Franco, Raimunda Sabino comentou: “Porque eles vinham
num afligido! Aí, o finado João Franco botou um bocado, os que vinham na frente, viu. Eles
se valeram dele, agora os outros...”285
.
Assim, “quando passou o reboliço, o finado João Franco levantou uma chave da casa e
eles fugiram”286
. Conta-se também que os ciganos passaram pela casa da senhora Maria
Riotinto, vizinha de João Franco, e uma cigana deu uma boneca de louça, para uma menina
sua chamada Ana287
.
A marcha policial seguiu em direção ao Retiro da Boa Esperança no encalço dos
ciganos. Era a manhã do dia 11 de novembro de 1913, parecia mais uma manhã normal no
cotidiano “retirense”: “O povo do vilarejo já começava a deixar as casas, rumo ao trabalho,
quando de repente, sem que ninguém esperasse, espalhou-se por todos os cantos do povoado
uma onda de terror. Todo mundo foi colhido de surpresa. O espanto foi geral”288
. Aquela
manhã tranquila acabava de ser alterada, quando entram em cena:
À frente, espavoridos, exaustos, uns a pé, outros a cavalo, vinham muitas
pessoas, homens, mulheres e crianças, em doida disparada, em desabalada
carreira: era o bando de ciganos que tinha por „capitão‟, o simpático cigano Medrado. Atrás, muitos soldados, avançando desordenadamente, disparando
as suas armas, cada qual querendo chegar primeiro na fúria de quem
persegue presa que não quer deixar escapar. Era uma força volante da Polícia do Estado, sob o comando do Ten. Belchior, que por ordem do Governador
do Estado, estava incutida de malbaratar o grupo nômade, que segundo
denúncias feitas ao governo do Estado, vinha praticando uma série de
pequenas irregularidades, ocorrências ainda tão comuns nos dias atuais, sempre verificadas por ocasião da passagem de remanescentes dos antigos
ciganos do Egito289
.
Na entrada do povoado disparos de tiros foram feitos entre soldados e ciganos:
“Chegando ao Retiro, já com minha gente reunida, fui novamente recebido à bala. O meu
284 FRANCO, Paulo Memória. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 06 dez. 1997. Nascido em 06 jun. 1909, empresário, sobrinho e filho adotivo de João Franco. Faleceu em 23 dez. 2004. 285 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07
out. 1997. Nascida em 07 jan. 1907, aposentada, testemunha ocular do massacre dos ciganos. Faleceu em 01 fev.
2000. 286 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. 287 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998. 288 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 40. 289 Ibidem, p. 41.
81
pessoal deitado e abrigado, respondeu ao fogo”290
. O povoado foi tomado de surpresa, pois
“[...] os ciganos chegaram sob fogo e a população desavisada não sabia do que se tratava,
desconhecendo por completo, os fatos antecedentes ao ataque291
. Sobre a chegada dos ciganos
no Retiro, informantes comentaram:
Era pela manhã! Pela manhã porque meu pai vinha do rio, tava carregando água pro pessoal aqui, tavam botando água e escutavam os tiros que vinham
da rua. O papai disse que passou uma bala pertinho dele, na hora que tavam
atirando, e correu pro rumo de casa com os „oi‟ de palha nas costas e aí chegou. E o pessoal só passando, correndo pro rumo da rua
292.
Seu Cazuza Norato, que é pai do finado Wagner, disse que quando levantou
neste dia, mais tarde porque estava com uma dor na coluna. Quando ele
abriu as portas da loja, tava abrindo, chegou quatro ciganos a cavalo apeado, numa mangueira que tinha ali em frente ao Hélio, amarram os cavalos. Aí a
Dona Sinhara, esposa dele, chama-o para tomar café. Quando ele entrou pra
tomar café, que senta na mesa, demorou um pouco, ele ouviu os tiros293
.
No tópico anterior apresentei o panorama urbanístico do povoado, com algumas casas
de telhas ao largo da igreja, e o restante de palha espalhadas e isoladas por um imenso
matagal. Por esse perfil, podemos imaginar o terror generalizado que o fato causou às pessoas
do povoado: “A finada Maria Cândida tava de resguardo, e aí saiu correndo pro rumo do
Morro da Chapadinha com o menino prá se esconder numa ladeira. E aí ficou até a boca da
noite, até calmar”294
.
Podemos concluir que o Retiro da Boa Esperança era um universo social isolado e
desconhecedor não só da conjuntura política nacional, conforme apresentei antes, como
também ignorava os fatos que ocorriam ao seu derredor. Se observarmos o mapa na página
72, os povoados Peixe, Marruás e Campo Largo são regiões limítrofes. Sobre esse
desconhecimento do que se passava na conjuntura dos povoados, um informante acrescentou:
O povo esperantinense, do Retiro da Boa Esperança, não estava entendendo
nada do que estava acontecendo, não houve tempo para que o povo pudesse
guardar, refugiar as pessoas, socorrer os ciganos, esconder os ciganos –
não houve tempo para isso! Não, eles é que foram invadir as casas,
290 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 291 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 41. 292 PEREIRA, Margarida Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 08
out. 1997. Nascida em 12 set. 1930, doméstica, aposentada, filha de contemporâneos ao massacre. 293 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. 294 PEREIRA, Margarida Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 08
out. 1997.
82
foram invadindo as casas para se refugiarem, e a própria polícia foi
invadindo as casas também, tentando matar, tentando prender295
.
No meio à troca de tiros, um senhor do povoado foi atingido por bala da polícia. Era o
Coronel Frederico Francisco de Carvalho, um das pessoas mais ilustres do Retiro, que
naquele momento:
[...] estava à porta de sua residência, situada no largo da Igreja, ultimando os
preparativos de uma viagem que faria à Parnaíba, [...]. No momento em que
ia firmar-se no estribo da montada, teve sua atenção despertada pela entrada
de muitas pessoas estranhas que vinham correndo, perseguidas por grande número de soldados que abriam fogo em todas as direções
296.
No relatório policial, o tenente Manoel da Cruz lançou a hipótese de que este senhor
saíra ferido devido a sua imprudência em conservar-se no meio dos ciganos. No inquérito
policial, o Coronel Frederico prestou queixa, e no texto essa informação foi convergente ao
relato de Manoel da Cruz. Ao perceber que estava ferido, gritou aos soldados dizendo que não
era cigano, que não fizessem fogo em direção de sua casa:
[...] Que julga casual o ferimento que recebeu, não pensando que houvesse propósito dos praças, tendo o fato sucedido, devido a confusão do momento,
pois achava cercado de ciganos, de partida como já declarou, já embotoado,
de sorte a ser bem possível o sucesso, pois que todos os ciganos chegaram montados em trajes de viagem [...]
297
Segundo o Senhor Dimas, o disparo que atingiu Frederico partiu do Soldado Barradas,
um dos componentes da tropa policial:
O Barradas disse que pensava que era um cigano quando ele meteu o pé no
estribo e passou a perna, o Barradas largou fogo nele de lá [...] pegou na
perna dele, cortou duas moedas de cruzado, a bala – e ficou na perna, morreu
com ela na perna298
.
Este senhor não era contemporâneo ao acontecimento, mas quando contava o
acontecimento falava como se realmente tivesse presenciado as cenas do massacre cigano.
295 CASTRO, Valdemir Miranda de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
10 out. 1997. 296 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965, p. 40-41. 297 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Frederico Francisco de Carvalho. Repressão dos ciganos. Inquérito
feito pela Polícia de Barras no Retiro da Boa Esperança. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 300, 31 dez. 1913.
p. 02. 298 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997.
83
Para Maurice Halbwachs:
Um homem, para evocar seu próprio passado, tem frequentemente
necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos de referência que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade. Mas
ainda, o funcionamento da memória individual não é possível sem estes
instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivíduo não inventou e que emprestou de seu meio. Não é menos verdade que não nos lembramos
senão do que vimos, fizemos e sentimos, pensamos num momento do tempo,
isto é, que nossa memória não se confunde com a dos outros. Ela é limitada muito estritamente no espaço e no tempo
299.
Assim ilumino meu objeto de estudo adaptando a teoria halbawchiana, entendendo que
o Senhor Dimas e demais entrevistados, que não são contemporâneos ao massacre, carregam
consigo uma bagagem de lembranças históricas, as quais podem ser ampliadas pela
conversação. Trata-se de uma memória emprestada, que não é deles.
Voltando à narrativa, quando Frederico percebeu que tinha sido atingido, pediu socorro
a sua esposa, que o conduziu para o interior da casa. Os animais de carga, arreados prontos
pra viagem, ficaram assustados com os tiros, e lançaram fora todos os volumes300
.
Os ciganos, encurralados pela polícia, procuraram refúgio na casa do comerciante
Manoel Lages Rebêlo, situada no largo da Igreja, em frente à Praça das Três Mangueiras. No
seu relato, o tenente citou que os nômades diziam serem “homens de bem”, e que ele
procurou “cercar a dita casa, auxiliado pelo seu valente proprietário, que um dos bandidos
quisera matar à pistola, quando ele procura arrancar um seu filho dos braços de uma
cigana”301
.
Esse comerciante fez o seu depoimento no inquérito policial e informou a chegada dos
ciganos na sua loja:
Respondeu que no dia onze do corrente mês às nove horas da manhã mais ou
menos, estava ele respondente em sua loja com diversos cidadãos deste
povoado e com o Capitão Francisco Borges Rebelo, de Barras, quando a sua casa foi repentinamente invadida por enorme grupo de ciganos, todos
armados a rifles, facas e garruchas, tomando conta de todas as dependências,
sobretudo do quarto de dormida onde se homiziaram muitos; que na ocasião
da chegada diziam que vinham perseguidos por caçadores; que logo depois entrava neste povoado o Tenente Manoel da Cruz Oliveira, comandando
uma força policial, o qual lhe fez ciente de que vinha em missão do governo,
para desarmar e expulsar os ciganos, pedindo-lhe que tivesse calma, que a
sua pessoa e a sua família estavam garantidas, que retirassem essa de casa,
299 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Ed. Revista dos Tribunais, 1990, p. 54. 300 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965. 301 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02.
84
o que ele respondente fez imediatamente entre a aflição que reinava302
.
Sobre a ameaça de morte por um cigano, Manoel Lages informou:
[...] encontrando uma cigana no corredor que leva à cozinha, puxou-a pela mão para conduzí-la fora de casa, tendo neste momento casualmente
segurado uma pequena trança, sem entretanto ter a mais leve intenção de
ofendê-la, quando um dos ciganos bota-se para ele respondente, armado de pistola, só não ofendendo por ter mostrado que contra a cigana nenhum mal
queria praticar303
.
Esse fato é desconhecido no imaginário das pessoas de Esperantina. Quando se referem
ao massacre e ao personagem Manoel Lages, elas contam que uma cigana teria implorado a
Manoel Lages um esconderijo pela dor do parto que sua mãe sentira, que não a entregasse à
policia. Manoel Lages acolheu a cigana, escondendo-a debaixo de uma cama. Porém, no
momento em que os soldados chegaram e perguntaram pela cigana, ele respondeu que a vira
passar apontando pra uma direção, mas na verdade, fazia gestos aos policiais indicando que
ela estava debaixo da cama. Os policiais dirigiram-se ao local e alvejaram a cigana304
. Sobre a
passagem dos ciganos pela casa de Manoel Lages, Dimas Amorim comentou:
[...] o resto correu para a casa do Manoel Lages, que era na esquina – a Dona
Matildes estava deitada adoentada, quando ouviu arrojo, correu, saltou uma cerca, rasgou a roupa, rasgou a perna, para fugir lá pros vizinhos. Aí os
soldados chegaram, não pediram permissão não, entraram, até quando não
acharam nenhum para fazer o serviço, e botando debaixo de um pé de amêndoa [os ciganos mortos]. [...] Foi invadindo a casa. Eu não estou lhe
dizendo que chegaram invandindo, [...] a casa estava aberta [...]305
.
No ataque à casa de Manoel Lages, segundo fontes oficiais, 10 soldados fizeram o
cerco, no intuito de intimar os ciganos para que se rendessem e entregassem as armas. Nessa
circunstância, o chefe Benjamim Medrado, conforme fonte policial resiste:
O chefe do bando respondeu: - Não se sujeitar a intimação e que o destino
dele era aquele, que não entregava as suas armas, sendo preciso invadir a
casa com o consentimento e auxílio de seu dono, ao que os bandidos
302 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Manoel Lages Rebêlo. Repressão dos ciganos. Inquérito feito pela
Polícia de Barras no Retiro da Boa Esperança. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 300, 31 dez. 1913. p. 02. 303 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Manoel Lages Rebêlo. Repressão dos ciganos. Inquérito feito pela
Polícia de Barras no Retiro da Boa Esperança. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 300, 31 dez. 1913. p. 02.
304 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998. 305 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997.
85
fugiram pelos fundo refugiando-se no mato próximo, de onde fizeram fogo
cerrado, a uma distância de 300m. Não tive mais contemplação e ordenei
fogo vivo sobre eles. Pouco resistiram os bandidos. Notando que eles esmoreciam pela diminuição dos tiros, ordenei uma carga de baioneta, que
determinou fuga precipitada306
.
Essa cena de “heroísmo” foi abordada também na literatura local:
O valente „capitão‟ Medrado que não abandonava o seu bando nem mesmo
no momento mais trágico da vida, já não podia controlar a situação. Dava
ordens e insinuava a maneira da melhor segurança, mas no momento de
grande nervosismo as suas ordens não podiam ser cumpridas, nem tampouco ouvidas, dado o clamor e o pânico causado pelo violento ataque, que muito
tinha de sádico e bestial. Era o momento do salve-se quem puder!307
.
O literato esperantinense critica o procedimento de guerrilha usado pelos soldados: “As
praças indisciplinadas, atiravam sem a mínima observância às regras que deviam regular a
segurança da população do povoado. Nem uma medida foi tomada pela força policial, no
sentido de evitar possíveis baixas nos habitantes do local”308
.
Segundo relatório policial, “morreram no tiroteio seis ciganos, inclusive o chefe
Benjamin Medrado, homem de uma audácia incrível”309
. Pereira e Dona Raimunda Sabino
apresentam mais detalhes sobre os ciganos mortos:
Findo fogo, cinco homens jaziam mortos. Um adolescente e duas mulheres
estavam feridos a bala. Uma das mulheres, a graciosa Roxinha, esposa do
„Capitão‟, morto durante o fogo, ficou em estado grave, morrendo depois. A
outra, uma cigana idosa e o rapazinho, tratados por pessoas caridosas, conseguiram escapar à morte
310.
Assim que calmou o negócio de tiro, eu fui com minha tia. Aí eu disse:
„Vamos Madrinha Chiquinha reparar? Aí, ela pegada na minha mão, e eu na dela, fomos lá. Já tinham endireitado os ciganos que estavam mortos, já
estavam todos assim... pegados uns nos dedos dos outros. Todos de braços
abertos! Cinco! [...] Foram os soldados que fizeram assim, entrelaçaram os
dedos, todos de braços abertos! Cinco! Cinco! Cinco! Aí tinha uma cigana, ela estava na porta do finado Zé Fortes, tava contaminado de cigano, cheio
de ciganinhos. [...] E uma cigana baleada nas calçadas no finado Zé Fortes.
Também não durou muito, quando foram levar eles pro cemitério, num carro de boi. Já tinham morrido muito: seis! Eu digo isso porque eu ví! [...]Era uns
„homão‟, eram bonitão! Tinha uma mulher que a boca era só ouro, a boca
306 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 307 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 43. 308 Ibid. Id. 309 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 310 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 43.
86
era só ouro, tanto os lados superior, quanto o inferior311
.
Os corpos dos ciganos mortos foram brutalmente arrastados e amontoados debaixo das
Três Mangueiras e, os animais dos ciganos também foram baleados sendo que alguns
chegaram a morrer312
.
No momento do confronto, muitos ciganos fugiam, o que levou o tenente Manoel Cruz,
conforme expressa em seu relatório, a “seguir uma força de 10 praças comandada pelo
intrépido cabo José Leandro em perseguição de um numeroso grupo que fugia a toda brida.
Esta escolta perseguiu os bandidos fazendo-os se internarem no estado do Ceará”313
.
No dia do massacre, 11 de novembro de 1913, uma manhã de terça-feira, estava tendo
aula na escola do povoado, que ficava ao lado da casa do Coronel Frederico. No momento do
tiroteio, o mestre mandara todos os alunos deitarem-se no chão para que evitasse acidentes de
bala de perdida. “Quando acalmou o tiroteio, ele despachou os alunos. Então, João Rego, um
dos alunos, vai passando e vê o monte de ciganos mortos”314
.
O bisneto de Isabel Maria da Conceição, em entrevista relatou :
E no caso da minha bisavó, ela teria dito que tinha fé em Deus que o fim deles haveria de ser bala. E um dos ciganos que estava baleado debaixo do
pé de oiti ao reconhecer o pai da minha bisavó teria dito: „Oh gajão, aquela
tua mulher tem a boca amaldiçoada!315
Segundo depoimento de Raimunda Sabino, também no momento do tiroteio, uma
cigana pôs o joelho em terra e amaldiçoou o povoado, vaticinando que ele nunca progrediria.
A própria entrevistada testemunhou a cigana praguejar: “Eu tava bem assim, e ela assim. [...]
Aí ela chorando e se maldizendo, que tinha muita fé em Deus e em Nossa Senhora, que o
Retiro, de Retiro, ele não passaria nunca, de ser perseguido de guerra e peste. Isso eu digo
porque eu vi!”316
. Sobre a praga, a própria entrevistada acredita que ela se concretizara em
seguida, quando, 04 anos após o incidente, o Retiro conheceu uma epidemia que as pessoas,
na época, chamaram de Peste. “Em 17, quase se acaba tudo por aqui, duma sezão que veio só
311 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07 out. 1997. 312 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965. 313 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 314 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. 315 SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
01 dez. 1997. 316 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07
out. 1997.
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do inferno, quase mata tudo. Foi o lugar que mais confusão já vi na minha vida”317
.
Para Lozano, “Abordar o fenômeno da oralidade é ver-se defronte e aproximar-se
bastante de um aspecto central da vida dos seres humanos: o processo de comunicação, o
desenvolvimento da linguagem, a criação de uma parte muito importante da cultura e da
esfera simbólicas humanas”318
. Diante dessa prática, conclui o historiador mexicano, “[...] a
História Oral, ao se interessar pela oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e
versão que dimanam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais”319
.
O entrevistado Dimas Amorim discorda da praga da cigana: “Sei disso não! Não deram
tempo nem pra falar, coitados. Isso é conversa de gente!”320
.
Sobre outra praga, uma entrevistada informou que muito tempo depois do massacre,
quando tinha a idade de 30 anos, foi vizinha de um soldado que fizera parte da tropa policial
que massacrou os ciganos. Este soldado, de nome Romão Dias Carneiro, pegou uma criança
cigana pela coxa, jogou-a para cima e aparou-a com uma espada. Dias Carneiro comentou
com Marina, na condição de vizinho, que a mãe da criança amaldiçoou-o, rogando que ele
chegaria a um estado de pobreza que não teria sequer um prato para comer. “Ele contou prá
mim. E eu emprestei minhas vasilhas para ele. Emprestei prato, rede, panela; quando chegava
pescador na casa dele, ele ia buscar vasilhas lá em casa”321
.
Outro personagem presente no imaginário popular é o Senhor Chico Fortes. No
momento do tiroteio, este cidadão, que trabalhava numa loja em frente às Três Mangueiras,
pegou uma toalha branca e montou-a numa cana, em forma de bandeira. Chico Fortes
começou a agitar a improvisada bandeira, pedindo com isso a suspensão do fogo, a fim de
evitar que outra pessoa saísse ferida. A polícia atendeu ao gesto322
.
Outra súplica também presente no imaginário coletivo teria ocorrido quando uma cigana
entrou correndo na Igreja e mostrou aos soldados uma imagem de Cristo crucificado, pedindo
humildemente que não atirassem em seu povo323
.
Essas imagens estão presentes no imaginário coletivo esperantinense, sendo repassadas
317 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07
out. 1997. 318 LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da História Oral. Rio de janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1999, p. 15. 319 Ibidem, p. 16. 320 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. 321 AMORIM, Marina do Carmo. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 13
fev. 1998. Nascida em 10 jan. 1926, doméstica aposentada, filha de contemporâneos ao massacre. 322 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit.,1998. 323 Ibidem.
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e reinventadas de geração a geração.
O imaginário como objeto histórico é menos auto-suficiente do que qualquer
outro; as representações de uma sociedade e de uma época formam um sistema, por sua vez articulado com todos os outros, classificação social e
religião, inclusive, é óbvio, mas também modos de comunicação324
.
Assim, “é preciso ir buscar o sentido de uma sociedade em seu sistema de
representações e no lugar que esse sistema ocupa nas estruturas sociais e na „realidade‟”325
.
À tarde, os corpos dos ciganos foram conduzidos ao cemitério, após ficarem expostos à
sombra das Três Mangueiras. Este fato é o mais presente no imaginário coletivo, é o momento
em que as pessoas de Esperantina hoje mais se reportam pelo fato dos cadáveres terem sido
conduzidos ao cemitério local num carro de boi e enterrados numa só vala.
Desde criança ouvia com freqüência meu avô materno, que era contemporâneo ao
massacre, narrar a condução dos corpos ao sepultamento. Aqui me reporto novamente a
Halbwachs: “Fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também para
completar, o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma forma,
embora muitas circunstâncias nos permaneçam obscuras”326
.
As pessoas costumam fazer referências como: “Jogaram eles num carro de boi como se
joga madeira, amontoaram, fizeram um buraco e jogaram dentro, numa só vala”327
, e: “O
enterro foi tudinho dentro de um carro de boi pro cemitério, enterrado de dois por riba do
outro, só numa cova”328
.
O carro de boi, que segundo os entrevistados pertencia a João Franco: “[...] e pediram os
carros do velho João Franco para transporte dos mortos para o cemitério”329
.
E um dos chefes lá, não sei se foi mesmo o Tenente Barradas ou foi o Juca
Fortes, disse que era para chegar na casa do João Franco, estava um carro de
boi do pai dele, que tinha vindo deixar babaçu, uns bagulhos e levar mercadoria pro Jatobá, Aí ele chama o carrego depressa, manda buscar os bois e meter no carro [...]
330
324 PATGLEAN, Evelyne. A História do Imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo:
Martins Fontes, 1995, p. 309. 325 Ibidem, p. 300. 326 HALBWACHS, Maurice. Op. Cit., 1990, p. 19. 327 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. 328 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07
out. 1997. 329 FRANCO, Paulo Memória. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 06 dez.
1997. 330 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997.
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Essas informações divergem da literatura local: “[...] os cadáveres foram conduzidos ao
cemitério, jogados num carro de boi de Laurentino Gomes Rebêlo, vulgo Lolô, cujo
transporte fora requisitado pela força, que mandou fazer o sepultamento em vala comum”331
.
Dona Raimunda Sabino comentou, expressando-se com emoção: “Meu avô foi quem foi
enterrar. Silvestre! Silvestre foi quem foi enterrar eles ali naquele cemitério!”332
Foi também “trabalho” da tropa policial dar “[...] socorro às mulheres que os bandidos
haviam abandonado. Seguiam para o Maranhão, para onde desejavam. Forneci-lhes montadas,
roupas, alimentos e algum dinheiro”333
. No entanto, este apoio foi limitado quando se referiu
aos filhos do casal Medrado e Roxinha, que “[...] deixaram duas crianças que foram levadas
para casa de Belarmino Machado que, contra a vontade de alguns soldados, ofereceu guarida
aos pequenos e inditosos órfãos”.334
Segundo um informante: “[...] os que puderam ir embora,
foram embora a cavalo, [...] e os que ficaram debaixo do subterrâneo do João Franco, quando
foi três dias depois, ele soltou”335
.
Os soldados permaneceram no Retiro até o dia 13 daquele mês. Sobre a permanência da
tropa, Raimunda Sabino confirmou a quantidade: “Só dois!”336
, e acrescentou que nesses dias
os policiais não fizeram nada no povoado, apenas ficaram “ [...] friviando os outros [ciganos]
pra ver se achava pra matar. Procurou mas não achou, já tinham saído, já tinham ido
embora”337
.
Em seguida, os soldados regressaram para o Peixe. Segundo relatório policial, por onde
a tropa passava, algumas pessoas vinham ao seu encontro no intuito de serem restituídos os
bens que, supõe-se, os ciganos tinham lhes arrebatado:
Chegando nesse dia no lugar Engano, onde restituí ao Sr. José Lopes um
jogo de malas que Benjamim Medrado havia roubado. Dali parti, chegando
ao Peixe dia 15, às 11h da manhã. Na tarde desse dia apareceu-me o Sr. Francisco Fortes Sampaio, pedindo para ser-lhe entregue um cavalo que
Benjamim Medrado se havia apoderado; e como ficasse provado por
331 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965, p. 44. 332 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07 out. 1997. 333 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03. 334 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965, p. 41. 335 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. 336 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07
out. 1997. 337 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07
out. 1997.
90
testemunhas e suspeitas, conforme documento junto, que era ele o legítimo
dono, fiz-lhe a entrega do mesmo animal338
.
Na localidade Peixe, foi aberto um inquérito pelo Promotor Público e Delegado da
Polícia de Barras, onde 26 pessoas depuseram, a maioria vítimas das depredações do grupo
nômade. Nas queixas arroladas, todas essas testemunhas mostraram-se indignadas com as
ações dos ciganos e foram unânimes em concordar com a atitude do governo no
aprisionamento do grupo. Com exceção do senhor José Félix da Costa, ao enfatizar que a
atitude do governo teria sido melhor se tivesse mandado fazer uma coivara de fogo, e nela
tivesse incendiado todos os ciganos339
. O referido inquérito foi realizado no Peixe, Marruás e
Retiro da Boa Esperança, e a maioria dos depoentes era formada por pessoas simples do povo.
O Jornal Diário do Piauí publicou em suas páginas um telegrama do promotor público
aludindo ao inquérito e ao trabalho eficaz do governo:
BARRAS, 10 – Tenho grandes inadiáveis ocupações aqui. Peço consentir demore minha ida ao Peixe para 15, quando partirei impreterivelmente.
Tenho o máximo empenho na repressão dos ciganos que são bandidos e
cangaceiros cearenses. Estando no Peixe o mês passado fui testemunha dos horrores praticados, do armamento que conduziam, do pânico da população
pobre. Requeri inquérito, então conseguindo com isso a entrega de muitos
animais furtados, e não fui avante por falta de garantias. O Delegado Lincoln está ausente por necessidade imperiosa, porém, chegará a 12 e seguirá
comigo. O povo está satisfeitíssimo com as providências do Governo.
Saudações: Arimatéia Tito (Promotor Público)340
.
O tenente da tropa policial, ao dar-se conta que os ciganos estavam refugiados no
Maranhão e outra parte no Ceará, e que, receosos de pisarem em solo piauiense, devido à ação
militar, solicitou ao governo o regresso dos soldados. No relatório foi citada a quantidade de
armas aprendidas no poder dos ciganos:
[...] entrego ao corpo o que apreendi em poder dos ciganos, os seguintes
armamentos: 32 rifles, 04 espadas e espadins, 15 garruchas e pistolas de
diferentes calibres e fabricantes, 11 facões e 34 punhais e facas; sendo 04 rifles, 03 espadas e espadins, 04 pistolas e garruchas, 04 facões e 05 punhais
em Miguel Alves, ao bando dos ciganos, conhecido por Seu Homem
constando-me mais que o dito cigano havia escondido 04 rifles, em um
capinzal, por ocasião que os fiz embarcar para o Maranhão [...] As outras
338 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03. 339 INQUÉRITO Policial. Depoimento de José Félix da Costa. Repressão dos ciganos. Inquérito feito pela Polícia
de Barras em Marruás. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 298, 28 dez. 1913. p. 01-02. 340 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 251, 11 nov. 1913. p. 02.
91
armas foram apreendidas em Campo Largo, Engano, Tanquinho, Peixe e
principalmente no Retiro da Boa Esperança341
.
A força policial conforme veiculava a imprensa, fora formada com o intuito de
aprisionar os ciganos e expulsá-los do território piauiense. O tenente da tropa apresentou
no relatório, o destaque dos soldados.
[...] a força do meu comando fez na diligência para a qual fui escalado. O
modo por que se portou a força foi o mais digno, não havendo nenhuma
violência, que não fosse perfeitamente justificada pelas circunstâncias,
muitas vezes extraordinárias, em qual nos colocaram os ciganos. [...] Não tivemos nenhuma baixa a lamentar e somente dois homens foram feridos
levemente, os quais continuaram a cumprir seus deveres pontualmente342
.
No trecho acima o tenente enfatiza a ausência de violência policial no combate ao grupo
nômade, justifica que os incidentes de Campo Largo e Retiro da Boa Esperança devem ser
entendidos como respostas à violência, à resistência e ataque por parte dos ciganos. Porém, se
atentarmos ao trecho abaixo, no qual o tenente descreve o aparato da tropa, bem como suas
munições, posso concluir que a caça aos ciganos pretendeu muito mais que aprisionamento e
expulsão do grupo nômade de terras piauienses.
O armamento mauser, que pela primeira vez entrou em ação, é de superior
qualidade, permitindo, conservar os ciganos a uma grande distância, fora do
alcance útil dos seus rifles. A munição é de excelente qualidade, não me tendo falhado um só tiro. Os homens portaram-se em geral com muita
disciplina e valentia, marchando bem, suportando todas as fadigas, com
aquela boa vontade e entusiasmo que é própria do nosso soldado343
.
Pela dimensão do aparato policial, da quantidade de soldados, disciplinados e
conhecedores de táticas de guerrilhas, se compararmos ao dos ciganos, embora estes fossem
numericamente mais expressivos que a tropa, suas armas não passavam de facas, garruchas,
espingardas, facões e punhais. Mais uma vez considero que a perseguição aos ciganos não
poderia resultar senão em um trágico massacre.
Como já destaquei anteriormente, uma das dificuldades em reconstituir a história de
grupos marginais, advém da escassez ou ausência de documentos por eles produzidos. Como
recurso, o historiador utiliza como fontes os documentos emanados dos donos do poder, da
repressão a esses atores sociais, desta forma é possível “ouvir” tais personagens. Esses
341 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03. 342 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03. 343 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03.
92
ciganos, assim como os demais que atravessaram a história, ocupando-se em negociar animais
e mercadorias diversas, foram anônimos, sem vez ou voz, não produziram documentos
escritos, não ocuparam cargos políticos ou eclesiásticos, não deixaram rastros. Remeto-me ao
pensamento de Michel de Foucault, quando discute a vida dos homens infames do século
XVIII (loucos e prisioneiros), o qual afirma que, para que algo deles chegasse até nós:
[...] foi porém necessário que um feixe de luz, ao menos por um instante, as
viesse iluminar. Luz essa que lhes vem do exterior. Aquilo que as arranca à noite em que elas poderiam e talvez devessem sempre, ter ficado, é o
encontro com o poder: sem este choque, é indubitável que nenhuma palavra
teria ficado para lembrar o seu fugidio trajeto. O poder que vigiou aquelas vidas, que as perseguiu, que, ainda que por um só instante, prestou atenção
às suas queixas e ao seu leve burburinho e que as marcou com um golpe das
suas garras, foi também o poder que suscitou as poucas palavras que delas nos restam: quer porque se lhe tenham querido dirigir para denunciar,
apresentar queixa, solicitar, suplicar, quer porque ele tenha pretendido
intervir e que com algumas palavras tenha julgado e decidido. Todas
aquelas vidas, que estavam destinadas a passar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sido ditas, não poderiam deixar traços –
breves, incisivos, enigmáticos muitas vezes – senão em virtude do seu
contato momentâneo com o poder344
.
Embora esses „homens infames‟ e os ciganos estejam inseridos em contextos – tempo,
espaço e realidade social diferentes – a teoria foucaultiana adequa-se como chave de
discussão teórica sobre o massacre dos ciganos: o encontro desses ciganos com o poder que
resultou em chacina e aprisionamento do grupo, fez com que esses homens infames que
historicizo, chegassem até nós.
Ainda me apropriando do pensamento de Foucault, concluo que seria impossível reaver
a vida desses homens infames – os ciganos – em si mesmas, em estado livre, não se poderia
recuperá-las a não ser fixadas nas declamações, nas parcialidades tácitas, nas mentiras
imperiosas que supõem os jogos do poder e as relações com ele345
.
A tropa policial partiu para Teresina no dia primeiro de dezembro de 1913. A imprensa
na capital divulgou o trabalho dos soldados destacando a ação como uma tarefa de bravura e
heroísmo:
Voltou de sua execução pelo interior do Estado, o contigente de trinta
praças, sob o comando do valente oficial, segundo tenente Manoel de
Oliveira, que tinha ido em socorro das pessoas atacadas pelos ciganos. O
contingente voltou bem disposto. Ao seu encontro foi o estado maior da
344 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens/veja, 1992, p. 97-98. 345 Ibidem, p. 98.
93
polícia. Ao chegar ao quartel, foi indiscutivelmente a alegria no encontro das
praças que vinham da luta, vitoriosas e altivos, com os seus camaradas e
famílias. Uns bravos daqui mandamos ao denodado oficial, segundo tenente Manoel Oliveira e aos seus comandados, pela galhardia com que se
houveram nos repetidos tiroteios que travaram com os bandidos346
.
O Diário do Piauí também divulgou matéria com teor parecido:
Acaba de regressar ao seu quartel, a força que sob o comando do 2º tenente
Manoel da Cruz Oliveira daqui partira no vapor de 05 mês passado a fim de bater os ciganos que cometiam tropelias no Peixe e arredores, alarmando a
população, em bando armado. Felizmente, porém, a nossa força, chegou a
tempo de resguardar a propriedade dos nossos patrícios, seriamente
ameaçada por aqueles bandoleiros. Os homens que regressaram nas melhores disposições, foram recebidos na entrada da cidade, pelo Estado
Maior do Corpo, atravessando o luzido esquadrão, as nossas ruas, sob a
simpatia do povo. Daqui enviamos, aos valentes soldados os nossos votos de boas vindas
347.
Sobre a destinação dos bens dos ciganos, o imaginário coletivo esperantinense é
povoado por lendas e fantasias. Uma delas é que os ciganos eram ricos e tinham ouro: “Dizem
que tinham ouro! Os ciganos eram, tinham muito ouro! Eram ciganos que tinham ouro!”348
.
No imaginário coletivo, aparecem duas mulheres, que teriam se apropriado de pertences
dos ciganos. Maria Pinga-Fogo e Maria Cobrinha, ambas empregadas domésticas. A primeira
teria delatado à polícia o esconderijo de uma cigana:
Tinha uma mulher aqui, que chamavam de Pinga-Fogo – apelido – eu não
sei como era o nome dela, ela trabalhava nas cozinhas desse povo. Lá já nos últimos ela foi mostrar aonde estavam escondidos [...] e os soldados
mataram e tiraram um cordão de ouro com a medalha ou era crucifixo, e
deram pra ela – ela morreu com ele no pescoço349
.
Tinha uma cunhã véia aqui, uma Maria Pinga-Fogo. Essa deu de garra: ela
tirou colar de ouro, ela tirou cordão de ouro, ela tirou medalha de ouro, ela
tirou coração de ouro, tudo isso ela tirou! [...] Só ouro! Dinheiro, essas
coisas. Era muita coisa bonita que eles traziam! Olha foi muita gente que roubou, o povo roubando, dizem que havia ouro
350.
Dona Marina Amorim contou que quando criança costumava brincar na casa de Maria
346 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n. 1257, 06 dez.1913. p. 04. 347 CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, n. 277, 04 dez.1913. p. 02. 348 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07
out. 1997. 349 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. 350 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05
out. 1997.
94
Cobrinha. Ela frequentemente estendia, no varal de sua casa, umas saias que dizia terem
pertencido às ciganas que morreram no Retiro. “Eu ví mais de uma saia, eram umas saias bem
bonitas, roxas, muito bem cheias de pérolas”351
. Maria Cobrinha estendia essas saias no sol
frequentemente para evitar o mofo e, em seguida, guardava-as numas malas de couro352
.
Essas apropriações carregam uma natureza lendária e mística, encontram-se no
imaginário coletivo e acredito que continuará sendo transmitido de geração a geração.
Para Pereira, apenas a tropa policial ficou com os pertences: “É fato verídico que os
soldados despojaram os ciganos de todos os seus pertences, incluindo-se jóias, ouro e prataria.
Até roupas, redes e animais foram levados. Além da chacina, o saque!”353
.
Uma semana depois do massacre, o governo lançou edital de convocação para as
pessoas reclamarem seus pertences que foram arrebatados pelos ciganos. O edital foi
publicado no jornal O Piauí:
A Secretaria de Polícia Civil está publicando edital com o prazo de 30 dias,
chamando as pessoas que se julgarem interessadas para reclamarem animais
que lhes foram roubados pelos ciganos e foram apreendidos pela Polícia Militar na exerção (sic) que acaba de fazer pelo norte do Estado. O prazo
referido é contado de 5 deste mês. As partes interessadas deverão dar todos
os sinais dos animais que lhe foram roubados. Terminado o prazo, serão os ditos animais arrematados em hasta pública, como bens de evento
354.
A correria cigana em terras piauienses foi muito similar às que ocorreram com
frequência em Minas Gerais entre o final do século XIX e início do XX. Seria uma extensão
ou uma continuidade? Algumas características são comuns nos estudos, como a perseguição
policial com a simples intenção de “expulsá-los” do território onde estavam “pertubando”.
Recordemos a velha política anticigana colonial importada da Europa, que era de colocar os
ciganos em “movimento”, o melhor lugar para eles era sempre o mais distante355
. Outras
características comuns às correrias eram: tiroteios travados entre as duas forças que
resultavam em mortes dos dois lados, expulsão e aprisionamento, e também a presença da
imprensa que diariamente, em seus periódicos, veiculava notícias rechaçando os ciganos
como “bandidos”, “vadios”, “ladrões” e informava ao público leitor os “problemas” causados
por ciganos. As ações do poder instituído acabavam por reforçar um estereótipo construído
social e culturalmente ao longo de três séculos. A imprensa também elogiava a tarefa da
351 AMORIM, Marina do Carmo. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 13
fev. 1998. 352 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998. 353 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965, p. 44. 354 OS ROUBOS dos Ciganos. Piauí. Teresina, ano 23, n. 1258, 13 dez. 1913. p. 02.
355 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007.
95
polícia. “A intenção era contrastar a „crueldade‟ dos ciganos com a „coragem‟ da Força
Policial. Ao festejarem a debandada geral dos ciganos impostas pelas autoridades, acreditam
que isto tem o „sentido de sanear moralmente o Estado”356
. Na correria piauiense, a imprensa
destacava que:
Foi sobremodo alvissareiro o encontro da força policial com os malfeitores em Miguel Alves e Marruás, neste último conseguindo os nossos soldados
fazer retirar-se do território piauiense em bando. [...] Ainda mesmo que a
corrente de ciganos aumente, formando uma grande e municiada quadrilha, em nossos sertões nada conseguirá além de terror súbito. O corpo Militar de
Polícia, um verdadeiro punhado de bravos instruídos como se acha, contra o
elemento preciso para fazê-lo recuar de qualquer posto que ocupem357
.
O papel da imprensa se completava quando divulgava os avisos e editais da Secretaria
de Polícia sobre as apreensões de animais que estavam em posse dos ciganos. Para a imprensa
e “donos” do poder, se tais bens estavam em poder dos ciganos, eram produtos adquiridos
pelo roubo. Era como se para o cigano fosse negado o direito de posse.
Na correria de ciganos no Piauí, os nômades “errantes” são acusados de cometerem
saques, depredações, engodos e ataques à propriedade privada nos pequenos povoados por
onde passavam. Logo, levantou-se uma volante policial para perseguí-los sob o intuito de
apenas expulsá-los do Piauí. Porém a ação resultou em trágica chacina. A perseguição já
começou no Município de Miguel Alves, distante poucas léguas da capital. Seguindo um
itinerário, onde em alguns pontos ocorriam expulsão, aprisionamento e até mesmo confrontos,
como foi o caso de Campo Largo, onde os grupos começaram a se dissipar e minguar a
quantidade de ciganos.
Restou um grupo avultado que na impossibilidade de atravessar o Rio Parnaíba porque a
tropa cortara-lhe a retirada, os ciganos tomaram outra direção, procurando despistar a força
policial e atravessar o rio em lugar mais seguro e em ocasião mais propícia358
. Chefiados por
Medrado, o grupo migra em direção ao Retiro da Boa Esperança. Já sabemos o desfecho desse
acontecimento, o Retiro serviu de palco para a tragédia cigana. Consumada a chacina: ciganos
mortos, feridos e aprisionados. O velório representou um gesto contrário à fé e piedade cristã:
sob a sombra de três mangueiras, sem mortalha e sem caixão. Os corpos jogados num carro de
boi como se fossem madeira ou entulho a caminho do sepultamento, e feito em vala comum.
Os ciganos mortos, outrora qualificados como bandidos, ascenderam à condição de
356 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p.76. 357 BANDITISMO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 258, 12 nov. 1913. p. 02. 358 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965.
96
mártires. Os supostos crimes foram perdoados pela brutalidade de suas mortes. O sentimento
de piedade desencadeou-se numa devoção popular à alma dos ciganos e do Ciganinho.
Entender as razões históricas que favoreceram a ressignificação destes sujeitos e compreender
os signos, sentidos e significados das práticas de religiosidade popular entre as pessoas de
Esperantina é o tema do capítulo que segue.
97
CAPÍTULO 3
CIGANOS: da tragédia à religiosidade popular
3.1 Dia de finados: gestos de fé e devoção
Os ciganos personagens dessa narrativa, que erravam em terras nordestinas no início do
século XX, não se diferenciavam quanto ao estereótipo construído em torno da etnia. Assim,
como os outros grupos, esses também eram rechaçados como bandidos, trapaceiros,
malfeitores, vagabundos.
Esses ciganos, ao exercerem suas atividades de compra e venda de mercadorias em
terras piauienses, foram acusados de praticarem delitos contra cidadãos com os quais
negociavam. Como apresentei no capítulo anterior, uma perseguição policial foi organizada
no intuito de bani-los do território, porém essa ação resultou em aprisionamento e morte de
alguns ciganos. Após a chacina, os corpos dos ciganos, expostos a “velório” não
convencional, não seguindo o rito católico, à sombra das “Três Mangueiras”, foram
conduzidos ao cemitério para sepultamento.
Os ciganos mortos, outrora representados como bandidos ascenderam à condição de
mártires, dada a tragicidade de suas mortes. Quase um século após do massacre, um
sentimento de piedade toma conta do esperantinense quando o assunto é o massacre dos
ciganos. Este sentimento é também acompanhado por um gesto de solidariedade às suas
almas, quando no dia de finados, as pessoas acendem velas no cemitério onde estão
enterrados. Movidos por uma solidariedade nessa data litúrgica, os ciganos e o acontecimento,
são lembrados em orações pelos fiéis católicos da cidade. O sentimento religioso é mais forte
em torno do menino cigano, conhecido popularmente como “Ciganinho”, que passou a
intervir junto a Deus nos momentos difíceis. Percebe-se aí, uma ressignificação dos sujeitos:
de salteadores errantes, agora representados como mártires e milagreiro. Trata-se de uma
transformação no plano do imaginário coletivo que se processou do terreno histórico para o
mítico.
98
A proposta deste capítulo é abordar a prática de devoção popular construída pelas
pessoas de Esperantina, em torno da alma dos ciganos, que agora são lembrados em orações
pelos católicos fiéis, em especial no dia de finados, e o sentimento de fé em torno da alma do
Ciganinho milagreiro.
Para a construção deste capítulo saí à “caça” de devotos do Ciganinho, pessoas que,
diante de aflições ou necessidades, fizeram promessas e tiveram graças alcançadas por
intercessão do menino cigano. Utilizei novamente a metodologia da História Oral, fiz
entrevistas com os devotos e, no dia de finados, dirigi-me aos cemitérios dos Ciganos e do
Ciganinho, no intuito de fotografar, de observar o fluxo de fiéis, e na oportunidade acabei
colhendo depoimentos de visitantes e de devotos. Usei também como fontes, algumas das
entrevistas colhidas durante minha pesquisa de monografia realizada em 1997.
Reportando-me ao sentimento de piedade aos ciganos mortos, o fato mais presente no
imaginário das pessoas de Esperantina foi a maneira pela qual os corpos foram sepultados:
jogados num carro de boi, sem caixão, sem mortalha e enterrados todos em única vala, prática
condenável pela tradição católico-cristã. Segundo depoimentos de entrevistados: “[...]
mataram eles como que matavam uns bichos brutos [...], dizem que jogaram num sei quantos
num buraco [...], dizem que tomaram as jóias de ouro deles tudim, dizem que tinha até
bengala de ouro”359
. Outra entrevistada acrescentou: “Eu sei que eles foram mortos, dizem
que foram, trouxeram eles num carro, parecia uns bichos brutos, e sepultaram”360
. “Minha vó
sempre contava que eram, momento eles passavam, depois que se acabou o massacre, dentro
da carroça [...]. Várias pessoas, senhoras já de idade [...], criança mortas para levar para jogar
lá no cemitério”361
.
Há quem lamente o fato, apontando uma possibilidade da tragédia ter sido evitada:
Ao mesmo tempo a gente fica assim é pensativo [...], que talvez se tivesse
agido de forma diferente [...], não teria tido tanta morte, tanto sangue
derramado na nossa terra. A gente se pergunta [...], será que foi correto da
forma com que aconteceu [...] do momento. Poderia ter sido diferente [...] se
tivesse deixado eles entrar na cidade como eles já vinham já passando por
outras cidades e nada aconteceu. Por que Esperantina? Será se estava
359 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
16 jun. 2010. Servidora pública municipal aposentada, 74 anos, devota do Ciganinho. 360 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.
2010. Aposentada, 71 anos, devota do Ciganinho 361 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
15 jun. 2010. Professora aposentada, 50 anos, devota do Ciganinho.
99
predestinado a acontecer isso?362.
Os corpos dos ciganos foram sepultados no cemitério, que na época do massacre, em
1913, era o do povoado. Hoje encontra-se desativado, é reduzido a um pequeno espaço ao que
fora no início do século e é conhecido como “Cemitério dos Ciganos”. O local onde os
ciganos foram enterrados, já não existe mais, foi tomado por construções. “Ali era o
cemitério. Depois o Senhor Manoel Lages foi intendente363
aqui [1921-1924], foi que ele fez,
aquele que hoje nós temos: Cemitério São João Batista”364
.
Localizado na rua Coronel José Fortes, no centro de Esperantina, o “Cemitério do
Ciganos”, permanece com o portão sempre fechado, tornando-se inacessível a visitas, exceto
no dia de finados quando é aberto. Uma entrevistada comentou: “Nunca entrei lá não, só vive
fechado”365
. No dia de finados, o cemitério é aberto pela Prefeitura Municipal de Esperantina,
para visitas. Nesse momento, os fiéis católicos da cidade acendem velas no cruzeiro do
cemitério para as almas dos ciganos, relembram o acontecimento e fazem orações.
Essa data litúrgica, 02 de novembro, entendida pela Igreja Católica como o dia da
celebração de vida eterna das pessoas queridas que já faleceram, consiste na visita aos
cemitérios, acender velas, orar por estes entes, celebrar missas em sufrágio de suas almas e
depositar flores nos seus túmulos. Trata-se de uma prática tradicional.
[...] a Igreja dedica um dia por ano para rezar por todos os mortos, pelos
quais ninguém rezava e dos quais ninguém se lembrava. Desde o século XI,
os Papas Silvestre II (1009), João XVIII (1009) e Leão IX (1015) obrigam a
comunidade a dedicar um dia por ano aos mortos. Desde o século XIII, esse
dia anual por todos os mortos é comemorado no dia 2 de novembro, porque
no dia 1º de novembro é a festa de „Todos os Santos‟. O Dia de Todos os
Santos celebra todos os que morreram em estado de graça e não foram
canonizados366
.
Assim, trata-se de uma celebração a todos os que morreram e não são lembrados na
oração. Essa prática milenar cristã também é estendida aos ciganos mortos em Esperantina
362 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 15 jun. 2010. 363 Responsável pela administração de um povoado. Os intendentes existiram no Brasil até 1930, quando surgem
as figuras dos prefeitos. 364 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.
1997. Nascido em 01 nov. 1920, quando jovem testemunhou comentários sobre o massacre dos ciganos entre os
contemporâneos da época. Faleceu em 19 out. 2009. 365 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 14 jun. 2010. Doméstica, aposentada, 71 anos, devota do Ciganinho. 366 Disponível em http://www.velhosamigos.com.br/DatasEspeciais/diafinados.html. Acessado em 22 set. 2010
100
pelos fiéis católicos da cidade. No dia de finados, no cemitério, alguns visitantes
informaram suas razões de acenderem velas para os ciganos: “[...] tem muitas almas que
são esquecidas e a gente precisa dar uma luz pra eles, pra lembrar que eles existem”367
. E
também: “[...] todos os anos eu gosto de acender velas porque a gente tem essa
consideração, tem sempre essa penitência de fazer isso pra eles”368
. Uma senhora
comentou:
[...] a gente, a gente vem aqui acender velas, porque tem muita gente que não
tem parente, por exemplo num caso desses, né? Não tem uma pessoa que,
então todo mundo vem naquela intenção de, de acender vela pra eles, porque
toda alma precisa de luz. Então, estamos aqui pra isso369
.
Outros visitantes comentaram: “Vontade até que eu tenho, mas pela primeira vez que
eu achei esse portão aberto foi hoje”370
.
Eu só venho dia de finados porque é só quando eu vejo aberto. Mas eu gosto
de vir porque eu acho que eles são assim esquecidos, é tão tal que a gente tá vindo aqui, eu acho que eles não têm família aqui [...]. Porque nos outros
cemitérios, tem os parentes. E eles porque eu acho que morreram muitos, eu
acho que os que têm ainda num podiam nem conhecer371
.
Além da inacessibilidade a visitas durante o ano, o Cemitério dos Ciganos também
encontra-se “abandonado” pelo poder público no tocante à limpeza, é comum o matagal
tomar de conta do ambiente. Essa informação converge com o lamento de uma devota:
Eu sempre falava [...] que um dia tivesse assim uma condição melhor, fazer
um ambiente que marcasse, pois Esperantina hoje de uma certa forma, ela é conhecida como época, como a questão do massacre dos ciganos, então não
é que a gente tivesse assim, mas que o cemitério tivesse, é, fosse mais
zeloso, era no centro da cidade. Mas é incrível a gente vê assim o abandono por parte da gestão pública, o matagal é demais, a gente percebe que, é, num
tem, se não for o período de finados, outro momento ele não é visitado. Ele
é, a gente sabe, que além dos ciganos, existe outras pessoas [...] de famílias
367 SILVA, Antônia da. (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a Maria
Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 368 PEREIRA, José. (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a Maria
Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 369 SOUSA, Maria Carmelita (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a
Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 370 LEAL, Maria de Fátima. (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a
Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 371 CARVALHO, Rosa (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a Maria
Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009.
101
renomadas de Esperantina que têm túmulo lá naquele local [...], mas a gente
percebe assim o abandono por parte também dos próprios familiares [...], não
só da gestão pública, os próprios familiares, os túmulos quebrados [...]. Já existe outras residências, já existe comércio no local onde a gente sabe que
ali tem túmulo372
.
Figura 03: Cemitérios dos Ciganos
Figura 04: Cemitério dos Ciganos (vista interna)
372 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
15 jun. 2010.
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Figura 05: Visitantes acendem velas no cruzeiro do
cemitério no dia de finados
3. 2 Ciganinho Roldão: o errante milagreiro
A visita dos fiéis católicos ao Cemitério dos Ciganos estende-se também ao
Cemitério do Ciganinho, localizado no povoado Pequizeiro da Areia, zona rural de
Esperantina, distante 06 km do centro urbano. Muito mais que uma simples visita de dia de
finados, a devoção ao Roldão assumiu maiores proporções que aos ciganos adultos
enterrados no cemitério no centro de Esperantina. A criança é conhecida popularmente por
“Ciganinho”, mas aqui passo a chamá-lo de Roldão, o nome informado por Dona
Raimunda Sabino.
Nos momentos de dificuldade muitas pessoas apegam-se com fé à alma do menino
cigano, acreditando que este passa a interceder junto a Deus. Partindo do princípio e da
piedade, por ter a condição de criança à época do massacre, um inocente que se escondera
numa árvore na tentativa de escapar à morte, segundo o imaginário popular, o Ciganinho,
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do plano espiritual é capaz de obrar milagres: “Acredito, só pelo sofrimento de merecer
uma criança. Acho que tem aquela graça, né que Deus permite”373
. Uma devota relatou:
Eu acho assim, por conta de ter sido um jovem, a distância que eles estavam
e onde ele percorreu, correndo, se escondendo dos policiais, tentando fugir,
eu acho que foi quem mais sofreu aflição. [...] Eu vejo assim: meu Deus ele correu tanto para tentar fugir da morte [...], tentando se defender das balas e
lá tão distante, porque leva assim 2 ou 3 horas para chegar no local [...] a pé,
uma distância até boa, e ele correndo [...], tentando se defender e ainda terminou morrendo. Então eu sempre lembro só dele do Ciganinho
374.
O reconhecimento de que a devoção ao Ciganinho é mais forte é percebida na fala de
devotos: “Eu nunca penso assim nesses outros [ciganos adultos], não. É eu penso mais no
Ciganinho lá, não sei se existe outras pessoas que têm devoção aos ciganos. Eu falo desse
da zona rural, do Ciganinho”375
. “Ninguém conta história deles não. Mas, lá não falta
coroa, num falta vela. Mas, a história das graças é com o Ciganinho”376
.
Olha, com relação à alma dos ciganos, porque eles não veem os ciganos como pessoas santas. O povo em si, principalmente as pessoas mais recentes,
veem os ciganos mesmo até como bandidos, mas dentro dessa história dos
ciganos existe um menino cigano, ciganinho, que morreu no lugar do
Pequizeiro da Areia e tá enterrado lá na Carraspanha – que esse menino sim – um vaqueiro à tarde, encontrou o menino morto numa poça de sangue e
enterrou o menino num cemitério, que esse cemitério foi enterrado, foi
iniciado com essa criança [...]. Hoje são muitas pessoas enterradas lá, nesse cemitério, lá nas Carraspanhas; e que as pessoas fazem promessas pra esse
cigano, o menino, e levam até ex-votos, levam, se você for a esse cemitério,
você vai encontrar la, peito de pessoas, pernas, pés, então, lá tem alguns ex-
votos de madeiras, que as pessoas fazem promessas com esse Ciganinho e
alcançam milagres, a religiosidade do povo, né? Mas, os ciganos mesmos, os adultos, não têm referência nenhuma na religião [...]377.
Roldão foi morto pela polícia militar que estava em perseguição aos ciganos, quando a
tropa os alcançou no povoado Pequizeiro da Areia. Segundo o imaginário popular, o menino
desgarrou-se do grupo nômade na tentativa de fugir para escapar do aprisionamento, refugiou-
373 SANTOS, Pedro Araújo dos. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 374 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
15 jun. 2010. 375 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
15 jun. 2010. 376 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.
2010. 377 CASTRO, Valdemir Miranda de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
10 out. 1997. Nascido em 21 ago. 1969, é escritor, poeta, professor, pesquisador da História de Esperantina.
104
se num jatobazeiro, ainda hoje vivo. No entanto, foi visto pela polícia que o alvejou da própria
árvore. Roldão caiu e terminou de morrer com a queda. O Senhor Antônio André informou:
“A caravana ia passando. Dizem que a criança tava trepada aí, eles atiraram e derrubaram a
criança, o que eu sei é isso. Aí pegaram, enterraram aqui”378
.
Esse jatobazeiro que serviu de esconderijo pra o menino Cigano, é cultuado pelos
devotos, e muitas pessoas quando acendem velas no túmulo do Ciganinho, costumam também
acender velas ao redor da árvore. Entendo com essa prática, que o jatobazeiro constitui-se
uma hierofania379
. Segundo Mircea Eliade, o homem ocidental moderno experimenta um
certo mal-estar diante de variadas hierofanias:
[...] é difícil para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa
manifestar-se em pedras, ou árvores, por exemplo. (...) porém, não se trata de
uma veneração de pedra como pedra, de culto da árvore como árvore. A
pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque „revelam‟ algo que já
não é nem pedra, nem árovre, mas o sagrado [...]380
.
Adoto o pensamento desse historiador das religiões para iluminar a veneração ao
jatobazeiro como hieorofania. Ao manifestar o sagrado, a árvore torna-se outra coisa, e
portanto continua a ser ela mesma, porque continua a participar do meio cósmico envolvente.
Por ser uma árvore sagrada, não vai ser menos árvore, nada a distingue de outros jatobazeiros.
Para os devotos, cujos olhos a veem como sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa
realidade sobrenatural.
378 NASCIMENTO, Antônio André. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento
concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 379 Termo criado para designar algo sagrado que se manifesta. Ver ELÍADE, Mircea. O sagrado e o profano: a
essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 380 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fonte, 1992, p. 17-18.
105
A ação de esconder-se na árvore, ser alvejado pelos policiais, cair e morrer com a queda
serve de justificativa para as pessoas apegarem-se à alma da criança cigana em momentos de
dificuldade ou aflição. “É porque o seguinte, ele foi judiado, ele foi atirado bem aqui, nesse
pau, nesse galho aqui assim, foi hasteado. Aí a negrada faz aquela promessa com ele, diz que
ele é muito milagroso. E é muito valido, graças a Deus. Eu mesmo tenho muita fé”381
.
Roldão foi a primeira pessoa a ser sepultada no lugar que mais tarde passou a ser um
cemitério, que é conhecido como o “Cemitério do Ciganinho”. Nas histórias presentes no
imaginário local, um vaqueiro que campeava pela região do Pequizeiro da Areia (também
chamada por outras pessoas de Carraspanhas), encontrou o corpo do menino cigano
ensanguentado, caído no chão, levou-o para casa onde fez velório e no dia seguinte, o
sepultamento. O menino foi enterrado próximo ao local que caíra do jatobazeiro. Roldão, ao
contrário dos seus parentes que morreriam horas mais tarde no Retiro, teve velório em
residência e foi sepultado no dia seguinte à sua morte.
381 CRUZ, Francisco das Chagas (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento
concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009.
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Figura 06: Jatobazeiro, local onde o Ciganinho teria buscado esconderijo.
106
Figura 07: Cemitério do Ciganinho – dia de finados
Por ser o primeiro “habitante” do cemitério, o pequenino errante é considerado pelos
moradores do Pequizeiro e entorno, como o “dono” do cemitério, razão pela qual, as primeiras
velas são acesas pra ele:
Em primeiro lugar ele que é o dono. Acendi já. Tá lá dentro queimando lá.
[...] Logo pra ele que é o dono, é dono daqui, de tudo, do quadro aqui o dono
é ele. [...] Porque foi o primeiro, começou foi por ele. Foi matado junto a esse jatobazeiro aqui. E sepultado ali. Uns dizem que foi aqui, outros dizem
que foi ali, num sei, não é do meu tempo, eu num sei nem a era, não sei se
foi em 10 ou se foi em 05382
.
A visita ao Cemitério do Ciganinho, ao contrário das visitas ao Cemitério dos Ciganos,
não acontece somente no dia de finados, mas são visitas diárias e constantes ao túmulo da
criança nômade: “Olha, dia de segunda-feira, tem tanta gente que vem de fora. Olha, veio uma
senhora de Teresina, mandou fazer uma latada. Foi tanta gente, teve um leilão. Olhe, vem
gente de Teresina pagar promessa aqui”383
. A devota conclui: “Eu freqüento sempre,
frequento sempre, sempre entro lá, acendo velas pra todas as almas, eu tenho muita fé na alma
dele, todas as agonias, assim, qualquer aperreio me tenho com a alma dele e sou valida”384
.
As visitas não têm dia nem hora para acontecerem, segundo esse visitante: “Sempre
quando passo ali, entro aqui. [..] E muitas vezes a gente chega aqui 10 horas da noite e tem
382 SOUSA, Antônio Gonçalo de. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento
concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 383 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 14 jun. 2010. 384 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 14 jun. 2010.
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gente aqui[...]”385
.
A imagem dos ciganos, mesmo diante do sentimento de piedade, devido à
barbaridade de suas mortes e da forma como foram conduzidos ao sepultamento, ainda
é negativizada no imaginário coletivo: “E são, são cristãos, cristãos, embora errados,
mas, são cristãos, mataram, e a gente lamenta contar a história deles e rezo pra eles,
acendo velas [...]”386
.
Eu sei que, o que ficou bem foi a questão do massacre [...], do poder, da
aquisição dos pertences que eles tinham, eles estavam trazendo bastante ouro [...], e também o medo que as pessoas tinha [...], deles saquearam as
casas por conta da própria cultura que eles tinham de tirar os animais se
apossar [...] das terras, é o que a gente sabe um pouco da história dos
ciganos387
.
O Ciganinho ficou isento dessa imagem negativa no imaginário popular, não
somente pela barbaridade praticada em sua morte, mas pelo fato de ser uma criança:
“[...] porque mataram um inocente, uma criança, né?”388
.
Em torno dele, floresceu uma devoção popular mais intensa e visível. As
pessoas costumam se apegar à alma da criança cigana em momentos de aflição e
dificuldade, para que, no plano espiritual, possa interceder junto a Deus. A
religiosidade popular católica de Esperantina tornou-se mais expressiva a partir da
ressignificação dos papéis dos ciganos diante do massacre.
É importante neste trabalho apresentar algumas reflexões sobre a religiosidade
popular. Nas últimas décadas, especialmente a partir da década de 80, alguns
historiadores no Brasil têm realizado pesquisas no campo da religião e da
religiosidade, até então objeto de pesquisa da sociologia, da teologia, da filosofia e
também da antropologia389
.
Se antes, o interesse dos historiadores se detinha na história das relações
políticas e institucionais da Igreja, priorizando as relações entre Igreja e
385 CASTRO, Solange. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 386 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.
2010. 387 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
15 jun. 2010. 388 CONCEIÇÃO, Francisca Maria da. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento
concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 389 ANDRADE, Solange Ramos de. O catolicismo popular no Brasil: notas sobre um campo de estudos. In:
Revista Espaço Acadêmico, n. 67, dez. 2006.
108
Estado, a partir da década de 80, surgem trabalhos que enfatizam os
comportamentos a atitudes de determinados grupos religiosos. A
antropologia religiosa passa a ser o referencial para o estudo dos rituais e das práticas religiosas. O interesse está em analisar como as pessoas se
comportam diante do fenômeno religioso390
.
A temática da religiosidade teve influência da nouvelle histoire, surgida na
França na década de 1920, mais tarde chamada de Escola dos Annales. Este campo de
estudo deve muito a seus fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch.
Defensores de uma história abrangente e totalizante, rejeitaram as premissas
de uma história política marcada pelos feitos dos grandes homens em momentos de guerra ou decisões político-institucionais. Ao redescobrirem o
„homem comum‟ como elemento fundamental no desencadeamento de
transformações históricas, tanto na curta quanto na longa duração, propuseram uma abordagem problematizada dos processos históricos
globais391
.
A partir desta perspectiva, o estudo das religiosidades, especificamente das
crenças religiosas, percebidas na sua dupla determinação – religiosa e política -,
recebeu a atenção dos fundadores dos Annales, cujos estudos se mantiveram como
referências obrigatórias para a compreensão e análise das crenças coletivas, embora
tenham permanecido por muito tempo como iniciativas isoladas, já que muito
recentemente esta temática foi retomada pela historiografia contemporânea392
.
A valorização deste campo, enquanto temática fértil de pesquisa em História,
deu-se a partir da confluência da História com a Antropologia. Segundo a historiadora
Jacqueline Hermann, “[...] propostas gerais de estudos das religiosidades populares e também
análises mais específicas que começam a ganhar espaço, como por exemplo, trabalho sobre
festas religiosas, demonstram uma gama de temas e questões que começam a ser
investigadas”393
. Numa sociedade como a brasileira que, por quase quatro séculos, teve o
Catolicismo como religião oficial, seja da Colônia seja do Império, a religião é definida em
termos cristãos. Seus símbolos, suas crenças, seus personagens, sua hierarquia são cristãos, e
religião no senso comum significa basicamente “acreditar em Deus”. Entretanto, o
sincretismo religioso também está presente entre os fiéis, fruto da diversidade cultural
390ANDRADE, Solange Ramos de. Op. Cit., 2006, p.15. 391 HERMANN, Jacqueline. História das Religiões e Religiosidades. In: CARDOSO, Flamarion Cardoso;
VAINFAS, Ronaldo (organizadores.). Domínios da História: ensaios sobre teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997, p. 341. 392 Ibidem. 393 Ibidem, p. 351-352.
109
formadora do Brasil394
.
A religiosidade popular, na compreensão de João de Deus Góis “[...] é uma
expressão privilegiada de inculturação da fé. Não se trata só de expressões religiosas, mas
também de valores, critérios, condutas e atitudes que nascem do dogma católico e
constituem a sabedoria do nosso povo, formando-lhe a matriz cultural”395
.
A religiosidade popular, com frequência, não se apresenta purificada de elementos
alheios à fé cristã. A religiosidade existe em todo ser humano, é uma motivação e até
necessidade para celebrar essa religiosidade em alguns momentos da vida; é herança
transmitida de geração a geração. A tradição do povo pode enriquecer muito a vida
religiosa, elos da corrente que o ligam à fé cristã, como acender velas, fazer novenas para
conseguir a solução de problemas, buscar água benta, fazer correntes, participar de
procissões396
.
Esses elementos da religiosidade popular são encontrados no contexto da cultura, e
correspondem ao conhecimento da realidade que finda por justificar o comportamento social.
As culturas sendo singulares e plurais fazem parte de um contexto instrumental que permite
ao indivíduo ter um encontro em melhor posição para afrontar os problemas sociais os quais
se encontram na busca da satisfação de suas necessidades397
. A cultura se apresenta
constituída por mecanismos como instituições, mitos, organizações, leis e tecnologia, pelos
quais o indivíduo adquire características mentais, como valores, crenças ou hábitos, que lhe
possibilitam participar da vida social. Assim, é um componente do sistema social que também
inclui estruturas socais e mecanismos de adaptação para conservar o equilíbrio com o
contexto sócioambiental398
.
A religiosidade católica popular é um terreno fecundo, que emerge de um grupo social
apresentando traços culturais diferentes dos aspectos lineares inerentes à doutrina cristã
ortodoxa e tradicional399
. É uma das características mais importantes da cultura das classes
populares latino-americanos no século XX, podendo ser descrita como uma forma particular e
394 HERMANN, Jacqueline. Op. Cit., 1997. 395 GOIS, João de Deus. Religiosidade Popular: pesquisas. Edições Loyola: São Paulo, 2004. p.07. 396 Ibidem. 397 OLIVEIRA, José Clerton & LEITE, Liliana. Pagando promessa, buscando esperança percepções sobre a
romaria e religiosidade popular. In: FOLKCOM. Do ex-voto à indústria do milagre: a comunicação dos
pagadores de promessas. DOURADO, J.L.; GOBBI, M. C. , MELO, J.M. (organizadores). Teresina, Halley,
2006. 398 Ibidem. 399 Ibidem.
110
espontânea de expressar os caminhos que as classes populares escolhem para enfrentar suas
dificuldades no cotidiano400
.
Dentre a diversidade de práticas de religiosidade popular, a mais frequente é o ato de
fazer promessas e o seu devido pagamento. Pode-se questionar: o que motiva uma pessoa a
fazer uma promessa? A resposta pode estar em uma necessidade do fiel, que se materializa em
um pedido feito por ele, ou em um pedido feito por alguém a um ser superior, mediante um
juramento de uma recompensa a este Ser pelo êxito, conforme a solicitação401
. A promessa
pode ser definida como, “[...] um acordo que resulta numa negociação entre os dois planos
envolvidos: o superior e o terreno. Em termos reais nada mais é que uma relação de troca”402
.
Tomo como ilustração do ato de fazer promessa, meu objeto de estudo: a devoção
popular em torno do Ciganinho. Dentre os devotos entrevistados, todos relataram experiências
de promessas com graças alcançadas. Uma senhora devota me contou: “[...] eu tive um
problema nos meus pés, e o médico falou que eu teria que fazer uma cirurgia nos meus pés.
Eu falei que não, que não ia fazer a cirurgia, eu ia fazer a promessa com o Ciganinho. Quando
eu fiz essa promessa, com ele Ciganinho, logo com dias eu estava curada”403
. Uma devota que
estava acendendo velas no túmulo do menino cigano comentou:
[...] eu tive um sobrinho que tava preso, aí no momento eu me vali pela alma
dele, do Ciganinho para que ele me ajudasse, conseguir sair daquele
sofrimento que meu sobrinho tava passando naquela prisão. Aí ele me valeu,
e consegui... aí de lá pra cá sempre ele vem me socorrendo quando sempre
preciso dele ele me ajuda404
.
A palavra promessa, definida pelo dicionário como “ação ou efeito de prometer,
promissão; aquilo que se promete; juramento”405
, já carrega em seu significado etimológico a
responsabilidade de um compromisso, principalmente, quando ela é firmada no momento do
pedido a um Ser superior. Independente do contexto, a promessa sugere uma troca, e surge na
vida de uma pessoa a partir de um fato que interfere no ciclo normal do cotidiano de alguém.
Assim, ela raramente procede dentro da normalidade406
.
400 VALLA, Victor Vicent (org.) Religião e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 401 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Promessas: contrato individual e social com seres superiores. In: FOLKCOM. Do ex-voto à indústria dos milagres: a comunicação dos pagadores de promessas. DOURADO,
J.L.; GOBBI, M.C.;MELO, J. M. (organizadores). Teresina: Halley, 2006, 402 Ibidem. 403 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,
11 ago. 2010. Empresária, 50 anos, devota do Ciganinho. 404 SOUSA, Marlene. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia finados). Depoimento concedido a Maria
Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 405 XIMENES, Sérgio. Dicionário da Língua Portuguesa. 3 ed. São Paulo: Ediouro, 2001, p. 706. 406 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 36.
111
Essa característica demonstra um ato de „arbitrariedade‟ e de „oportunismo‟ por parte do ser humano, que vai resultar num processo de negociação
(troca) entre ele e um ser superior. O primeiro no mundo real, do
firmamento, com outro de um mundo incognoscível e talvez inexistente, que
estaria no plano psicológico do fiel. Plano este que nada mais é que a crença
depositada no indivíduo que o carrega por um ser de devoção407
.
Émile Durkheim define os seres espirituais como “sujeitos conscientes, dotados de
poderes superiores àqueles que o comum dos homens possui. Essa qualificação convém pois
às almas dos mortos, aos gênios, bem como as divindades propriamente ditas”408
. O sociólogo
francês admite que a única relação que podemos manter com esses seres é determinada pela
natureza que lhes é atribuída:
São seres conscientes, não podemos agir sobre eles senão da maneira como
se age sobre as consciências em geral, ou seja, por procedimentos
psicológicos, procurando convencê-los ou emocioná-los, quer através de
palavras (invocações, orações), quer através de oferendas e de sacrifícios409
.
Uma vez que a promessa vai resultar num ato de negociação entre o fiel e o ser
espiritual, ilustro como exemplos o „diálogo‟ que uma devota teve com o Ciganinho sobre a
maneira pela qual a promessa seria paga. “Eu fiz uma promessa com ele, mas foi logo
conversado para eu pagar no outro cemitério, que eu não ia lá. [...] Eu pedi uma graça e rezava
pra ele, acender vela lá na família dele, onde são sepultados os outros. Minha promessa foi
assim, o pagamento da promessa”410
.
Dona Maria referia-se à impossibilidade de pagar a promessa no Cemitério do
Ciganinho, negociando o lugar do pagamento, de acender velas e orar pela alma dele no
Cemitério dos Ciganos. Outra devota, Dona Bernadete:
Eu fiz uma cirurgia por volta de 1970 [...]1977. E por conta da cirurgia,
minha mãe e outras pessoas fizeram é, bastante promessas [...]. E essas promessas era pra que a gente visitasse lá o túmulo do Ciganinho, levasse
água benta, levasse flores, depositasse lá o coração, [...] de madeira. Foi uma
cirurgia cardíaca, de ponte safena. Hoje eu sou portadora de 3 pontes
safenas. E por conta disso, a gente tem continuado a frequentar. E num tem assim um período determinado, sempre a gente combina, passa assim 2
407 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 36. 408 DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo:
Ed. Paulinas, 1989, p. 60. 409 Ibid. Id. 410 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.
2010.
112
meses, 3, a gente retorna lá o ambiente. Sempre tendo aquele carinho [...], de
zelar todas as vezes que a gente vai [...]411
.
A preferência coletiva em depositar fé e devoção em um ser, o qual o povo lhe atribui a
patente de “ser superior”, é marcada por vários fatores. Um deles, segundo a análise de
Pereira Filho, é definido
[...] pelo espaço ao qual o fiel está mais próximo como os santos padroeiros
das cidades, as entidades religiosas como um todo, que foram condicionadas
as pessoas desde cedo, pelos seus descendentes através da ritualização típica
das relações coletivas e individuais estabelecidas no lugar, eventos estes que reforçam sua fé
412.
Aproximo a explicação deste cientista social com meu objeto de estudo, ilustrando com
o depoimento de uma devota sobre o começo de sua devoção ao Ciganinho:
Assim, por mais freqüência, há 30 anos atrás, por conta de acompanhar a nossa mãe que, muito devota, tinha muito respeito assim dos ciganos em si, a
gente frequentava fazendo companhia [...], ia, não tinha assim aquela fé que
nós, né, éramos todos crianças. Sempre ela levava todos os filhos [...], lá [...]
Hoje a gente já faz com mais fervor do que antigamente. Antigamente a gente ia com aquela coisa de acompanhar [...], fazer companhia daquele
momento, de acompanhar as orações, fazer a limpeza no ambiente, levar
flores [...] A gente achava assim, achava assim, mais por aquele esporte, sua companhia. Mas hoje a gente já percebe assim com mais seriedade [...], o
que a gente tá fazendo, o momento que a gente visita o túmulo do
Ciganinho413
.
Pereira Filho esclarece que a fé e devoção que os fiéis católicos carregam por
“seres superiores”, primeiramente é em Jesus Cristo ou Deus. Trata-se de uma “[...]
consciência de poder de um ser superior universal supremo. Mas que se permite a
crença em seres de poder secundário, mesmo sabendo da sua “inferioridade” de
poder”414
.
O ato de fazer promessas a seres superiores não consiste em religião individual,
são aspectos da religião comum a toda igreja e não a sistemas religiosos distintos e
autônomos415
. É a igreja da qual ele é membro que ensina ao indivíduo o que são deuses
pessoais, qual é o seu papel, de que maneira deve entrar em contato com eles, de que maneira
411 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
15 jun. 2010. 412 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 36. 413 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
15 jun. 2010. 414 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 36. 415 Ibidem, p, 37.
113
deve honrá-los416
.
Desta forma, a promessa acontece na consciência coletiva dos membros sociais, mas é
na consciência do indivíduo que ela se manifesta. Não se trata de uma religião independente,
há uma obediência hierárquica e isso é evidente nos participantes417
.
Diante dessa hierarquização, os seres superiores desempenham um papel de mediador
para o devoto, de intercessão entre o indivíduo e o ser superior universal (Deus). “Para o fiel,
o mediador advogará em seu nome perante o Deus às solicitações feitas no momento da
firmação do „contrato‟ estabelecido na promessa”418
.
Essa hierarquização e o poder de mediação são compreendidos entre os devotos do
Ciganinho: “[...] ele tem o poder, né, junto com Jesus Cristo, Deus nosso pai, né, ele ajudar a
gente. Com a ajuda de Deus nosso pai, de Cristo nosso irmão, Maria Santíssima nossa mãe
porque ele sofreu demais”419
; “Oh! Alma do Ciganim, favorecei que eu tô tão aperreada
[...]”420
.
Uma devota falou-me sorrindo sobre sua súplica ao Ciganinho como mediador a Deus:
“Diariamente, por tudo o que tenho, eu ponho minhas mãos pra cima: „Meu Deus, meu
Ciganinho, me ajuda!‟ Todos os dias eu peço pra ele, incrível, incrível!”421
A forma cruel como Roldão foi morto, no imaginário coletivo, fê-lo conquistar um
poder na hierarquia espiritual entre Deus e os homens, conforme relatos destes visitantes no
dia de finados: “Porque lá do jeito que ele foi morto, né, e a gente pede a ele, ele pode obrar
milagre”422
.
Ah num sei, eu acho assim pelo jeito que ele sofreu na hora da morte [...],
pelo jeito [...], eu acho que se existe assim o perdão de Deus, deu aquela
força pra ele lá onde ele está pra ele fazer o milagre [...] quando a
gente [...], eu acho que esse é o momento [...] quando a gente conversa
com ele, pede, faz o pedido, aí a gente recebe a benção423
.
Numa visita também, registrei uma oração proclamada espontaneamente por uma
416 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 30. 417 Ibidem. 418 Ibidem, 37. 419 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 16 jun. 2010. 420 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 14 jun. 2010. 421 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 11 ago. 2010. 422 SILVA, Maria do Socorro. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento concedido a
Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 423 CARVALHO, Maria da Conceição. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento
concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009.
114
devota diante do túmulo do Roldão:
Deus, Nosso Senhor e Nossa Senhora, vós, que a gente fazer a promessa
com ele [Ciganinho] e é de achar valido, como eu fiz. Deus Nosso Senhor, Nossa Senhora e ele consegui pra um bom lugar, salve as almas todas, em
paz em salvamento. Amém!
Nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo. Amém Deus Nosso Senhor, Nossa Senhora, vós que me daí forças, vós me daí
coragem, vós me daí uma boa salvação. Como eu desejo as almas se salvar
pra bom lugar, pedindo a Deus, de bom coração, que eu seja muito feliz assim mesmo doente, mas Deus Nosso Senhor consegui eu viver muitos
anos de vida e felicidade e fortuna. Amém. Em nome do Pai, do Filho, do
Espírito Santo. Oh meu Jesus, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus
Nosso Senhor e Nossa Senhora, a bênção meu pai do céu, a bênção minha mãe do céu e da terra, como minha já faleceu, noutro mundo em paz
salvamento. Deus salve todos, eu peço a Deus de bom coração. Amém!424
.
Através do fenômeno da mediação, especula-se a dimensão da fé do fiel conforme o
resultado da negociação. Mesmo que a crença seja compreendida como algo incalculável, sem
medida concreta, deve-se considerar o caráter de satisfação perante o desfecho do caso. A
graça alcançada faz o fiel reforçar sua fé no ser evocado425
.
Percebi nas falas dos devotos que a fé em Roldão, enquanto ser espiritual milagreiro, é
reforçada a partir de uma experiência de graça alcançada.
Ah! Por que ele, todas as graças que pedi a ele, eu fui concedida com a graça
dele. Já tive bastante frágil de saúde e ele me ajudou. Pedi ajuda e ele me
ajudou. Todas as pessoas que vêm aqui pedir ajuda em sufrágio à alma dele,
ele ajuda. E é assim426
.
Uma senhora comentou: “Ah! porque tudo que eu peço a ele, ele me dá, com a força de
Deus”427
. Ainda sobre a questão da fé reforçada ao Ciganinho, uma devota relatou: “Pela
minha própria experiência, que tive comigo, e com outras pessoas que lá estão dando seu
depoimento”428
.
O procedimento do pagamento de promessa ou quitação do “débito”, em geral, é
estabelecido no momento da realização, como forma de garantia no processo de negociação
424 SILVA, Maria de Deus. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento concedido a
Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 425 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006. 426 SILVA, Maria José. (Visitante ao Cemitério do Ciganinho dia de finados). Depoimento concedido a Maria
Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 427 SANTOS, Juracy Pereira dos. (Visitante ao Cemitério do Ciganinho dia de finados). ). Depoimento concedido
a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 428 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,
11 ago. 2010.
115
entre as partes envolvidas429
. As promessas podem ser pagas sob várias formas. Destaco aqui,
o sacrifício físico (autoflagelo e esforço), por abdicação (espiritual) de algo que a pessoa tem
muito apreço e resiste ao prazer que isso proporcionava; sacrifício material (oferendas) ao ser
ou a alguém. Este último é chamado de beneficiário de terceiro grau. Outra forma de se pagar
promessa é através de preces e orações ao ser solicitante430
.
Essa forma de pagamento foi a mais presente entre os devotos do Ciganinho: “Eu
acendi umas velas e rezei um padre nosso pra alma dele”431
. “Eu peço, a minha graça é pra
rezar pra eles, nunca fiz pra visitar, eu faço é pra mim rezar. E assim eu rezo na intenção dele,
e rezo, sem ir lá. E alcanço minhas graças”432
. “Não há uma noite que eu não reze pra alma
dele, agradecendo tanta coisa que ele já tem me mostrado, assim, milagres, sou muito devota a
ele”433
.
429 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006. 430 Ibidem. 431 SILVA, Antônio Francisco da. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento
concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 432 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.
2010. 433 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 14 jun. 2010.
116
Foto
: M
aria
Auxil
iadora
Figura 08: Fiéis acendem velas no túmulo
do Ciganinho no dia de finados
117
Figura 09: Fiéis acendem velas no Jatobazeiro
Além das preces e orações, o pagamento se estende também a visitas ao cemitério, onde
no túmulo do Roldão, os fiéis depositam flores, acendem velas, e em muitos casos essas
visitas chegam a ser frequentes, transformando-se em devoção: “Fiquei todo tempo
frequentando, acendendo vela pra ele, pro Ciganim”434
.
Eu, numa dificuldade, muito aperreada, eu me apeguei com a alma do
Ciganinho, pra mim ir pagar a promessa de pé e rezar um terço e colocar
vela, aí fui valida. E eu alcancei a minha promessa, o que eu alcancei foi uma graça, pra mim. Quando eu alcancei, eu fui pagar, paguei minha
promessa. Aí depois, outros tempos, de novo eu estava também aperreada,
eu me apeguei de novo com a alma do Ciganinho e fazer a mesma coisa e pagar a promessa, rezar um terço pra ele, deixar vela aí eu fiz de novo,
quando eu alcancei, eu obtive a graça aí eu fui pagar a promessa. Aí eu
paguei a promessa e até hoje eu gosto de ir lá fazer minhas preces [...]
434 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 14 jun. 2010.
F
oto
: M
aria
Auxil
iadora
118
Quando estou assim com dificuldade eu rezo pra ele [... ]eu rezava todo
santo dia pra alma do Ciganinho [...]435
.
Eu frequento é 04 vezes no ano, na época em que ele faz, completa, é, a data
do falecimento que consta lá, tem a data. No mês de setembro, quando no festejo de Esperantina, eu vou até lá. No festejo de janeiro, também em
Esperantina, eu também chego até lá no cemitério. E normalmente são
quatro vezes. Tudo que eu peço, que eu quero, conseguir alguma coisa eu sempre coloco o Ciganinho, faço minhas promessas. Minha fé é tão grande
que realmente tem dado certo436
.
Já as visitas de Dona Bernardete não são fixadas pelo calendário:
E num tem assim um período determinado, sempre a gente combina, passa
assim 2 meses a 3, a gente retorna lá o ambiente. Sempre tendo aquele
carinho [...], de zelar todas as vezes que a gente vai [...], frequentar [...] lá o
local onde está o túmulo, levar flores, zelar pelo ambiente e aquele cuidado [...] de frequentar para não deixar abandonado, o ritual de costume [...],
retirar a sujeira [...] lá no cemitério, mas logo logo a gente vai estar
retornando [...], com fé no Ciganinho437
.
A devoção de ir com frequência ao Cemitério representa um exercício de afirmação de
fé no Ciganinho: “Marcar presença, agradecer de corpo ali presente, dizer minhas palavras
bonitas, rezar, acender velas e fortalecer mais diante dele, presente, levar minha fé”438
. Para
Dona Bernardete Rodrigues, a devoção significa “[...] a questão da fé [...], da nossa
religiosidade, de levar luzes, levar flores, lembrar o momento do massacre”439
.
Outras formas de pagamento de promessas encontrada por devotos do Ciganinho foi o
zelo pelo santuário. Cito o exemplo da capela restaurada por Dona Jesus Carvalho: “Coloquei
até lá a plaquinha com meu nome, incrementei a plaquinha no túmulo, tudo recuperado, teto,
paredes, juntei aquelas peças [ex-votos] que estava tudo, pegando sol, chuva, que não tinha
mais local”440
. E também a reconstrução da cerca do cemitério por Maria das Graças,
conhecida em Esperantina como Dona Gracy:
435 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
16 jun. 2010. 436 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 11 ago. 2010. 437 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
15 jun. 2010. 438 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,
11 ago. 2010. 439 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
16 jun. 2010. 440 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,
11 ago. 2010.
119
Porque eu já fiz uma promessa. Aquele cemitério quando chegamos aqui, a
cerca estava toda quebrada. E aí aconteceu um caso na minha família, aí eu
tava desesperada, como era que, como era que eu via aquela fé ali me peguei com a alma dele, mandei cercar todim de arame, pegou 14 dias de serviço, só
com meu suor e do José. Só teve uma senhora que me deu uma ajuda, a D.
Maria, a mãe do Pe. Jurandir, ela era muito religiosa, ela vinha muito aí
pagar promessa aí eu falando: „Oh! Maria, Maria agora tô mandando fazer um serviço lá no Ciganinho!‟ „Oh! D. Gracy, como é?‟. Aí eu disse:
mandando cercar tudim. Pois eu vou lhe dar uma ajuda. Aí parece que ela
me deu um dinheiro, pagar um trabalhador ou foi 2. Todo dia o José ia. Nós pagamos o trabalhador, fizemos, compramos o arame, fizemos
441.
No universo da religiosidade popular, ainda no que se refere ao pagamento de
promessas, destaco a figura do ex-voto, que significa quadro, pintura ou objeto, representando
partes do corpo, que se colocam em um santuário, para o pagamento de uma promessa ou o
agradecimento de um favor ou uma graça concedida por um santo, ou seja, um voto que foi
alcançado. Os materiais dos ex-votos são variados, entre eles: madeira, cera, gesso, papelão,
441 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 14 jun. 2010.
Fo
to:
Mar
ia A
ux
ilia
dora
Figura 10: Placado túmulo restaurado pela devota Maria de Jesus de Sá
Carvalho
120
tecido, geralmente das partes enfermas do corpo humano442
. Assim, “[...] constituem uma
forma de expressão singular de religiosidade, e no caso do Nordeste do Brasil, um catolicismo
rústico”443
.
Embora o valor artístico do ex-voto esteja no artesanato, pois a peça é laboriosamente
trabalhada, muitas das vezes pelo próprio beneficiado da graça, que intenta caprichar na
modelagem, para demonstrar ao santo da sua devoção o quanto está agradecido. O seu valor
documental é bem mais amplo. Além dos objetos votivos (partes do corpo humano
modeladas), o ex-voto abrange também:
[...] os zoomorfos, representando miniaturas de bois, cavalos, jumentos, porcos, carneiros, galinhas. E ainda, os simbólicos – fitas que têm a medida
da cabeça, velas do tamanho de uma criança, miniaturas de embarcações,
casas, máquinas de costura, pilões debarro, instrumentos de trabalho, e aqueles em objetos, como jóias, peças de vestuário, mechas de cabelo,
garrafas, cachimbos, baralhos, dados, bozós, muletas, óculos444
.
O termo ex-voto é uma abreviação latina de „Ex Voto Sucepto‟ („por um voto
alcançado‟, em consequência de um voto). Sua origem é desconhecida, mas, sabe-se que eram
muito usados na Antiguidade, sendo uma prática tão antiga quanto a história da
humanidade445
.
Nas Escrituras Sagradas há presença de relatos que explicitam promessas da cultura
hebraica, onde os homens, quando estavam em desespero ou dificuldade, formavam pactos
com as divindades (Gênesis 28: 20), logo era estabelecida uma aliança entre homens e
divindades, culminando com a realização de um ato religioso446
.
Os ex-votos contam sempre uma história particular, de um indivíduo ou grupo. Como
também, ao mesmo tempo, revelam uma outra história, a das crenças e devoções das
populações que os utilizam447
.
442 FERRETTI, Sérgio e LINDOSO, Gerson. O ex-voto e sua dimensão simbólico-comunicativa no festejo do
padroeiro do Maranhão: São José de Ribamar. In: FOLKCOM. Do ex-voto à indústria dos milagres: a
comunicação dos pagadores de promessas. DOURADO, J. L.; GOBBI, M. C.;MELO, J. M.(organizadores).
Teresina: Halley, 2006. 443 SABBATINI, Marcelo. O museu de ex-votos de Padre Cícero: um olhar museológico sobre o turismo
religioso em Juazeiro do Norte. In: FOLKCOM. Do ex-voto à indústria do milagre: a comunicação dos pagadores de promessas. DOURADO, J. L.; GOBBI, M. C.; MELO, J. M.(organizadores). Teresina, Halley,
2006, p. 249. 444 BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes dos meios populares de informação de fatos e
expressão de idéias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. 445 FERRETTI, Sérgio e LINDOSO, Gerson. Op. Cit., 2006. 446 Ibidem. 447 NEVES, Guilherme Pereira. Milagres do cotidiano.
http://revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2218>. Revista de História da Biblioteca Nacional.
Acessado em 16 out. 2010.
121
Para Gerson Lindoso & Sérgio Ferreti, “os santuários são os locais sagrados em que
os religiosos depositam seus ex-votos, em tom de agradecimento por um feito divino”448
.
Ilustro como santuário, o túmulo do Ciganinho Roldão, onde é comum a presença de uma
variedade de ex-votos – cabeças, pernas, pés, braços moldados em madeira ou barro –
como símbolos que lembram as graças alcançadas por Deus e por sua intercessão.
Dona Bernardete Rodrigues, ao submeter-se a uma cirurgia cardíaca, sua mãe fez uma
promessa ao Ciganinho que, se tivesse êxito na cirurgia, depositaria um ex-voto em forma de
coração no túmulo do cigano. Em outra circunstância de aflição da família de Dona
Bernardete, sua mãe novamente apegou-se à alma do Ciganinho, cuja gratidão seria também
expressa em ex-voto.
[...] teve um acidente de um conhecido nosso, um acidente de moto e aí eu
pedi muito assim que retornasse à vida, a gente tinha medo que ele ficasse
com sequelas e, graças a Deus, ele voltou tá uma pessoa muito boa de saúde não ficou com nenhuma sequela, a mãe mandou fazer a cabeça depositou lá
448 FERRETTI, Sérgio e LINDOSO, Gerson. Op. Cit., 2006, p. 617.
Figura 11: Ex-votos depositados ao lado do túmulo do
Ciganinho
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122
no local [...]449
.
Figura 12: Ex-votos de pernas
Figura 13: Ex-votos de seios
449 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvaho e Silva. Esperantina,
15 jun. 2010.
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Figura 14: Ex-voto de uma mão
Figura 15: Ex-votos variados
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124
Muito além de simples objetos nos seus variados tipos de matérias-primas, os ex-votos
têm a função de expressar alguma idéia, mensagem ou comunicação. São classificados
também como símbolos padronizados, que transmitem informação no domínio público, sendo
as relações dos símbolos asserções arbitrárias de similaridade450
. Assim, “os ex-votos são
ferramentas importantes de mediação simbólica entre o profano e o sagrado e cada um deles
vai conter um significado diferenciado de acordo com as pretensões de cada devoto sendo as
formas testemunhais de que uma intercessão divina foi efetuada”451
.
Como abordei anteriormente, as promessas só acontecem num momento de
necessidade. Para Durkheim, “[...] se é verdade que o homem depende dos seus deuses, a
dependência é recíproca. Os deuses, também, têm necessidade do homem; sem as oferendas e
os sacrifícios eles morreriam”452
. Sob esse aspecto, existe apenas um plano – o que o homem
está, o outro plano, é criação que está na imaginação. E é nesse último onde estão situados os
fenômenos religiosos. As promessas como rito fortalecido pelas crenças é de cunho
meramente subjetivo ou de opinião:
[...] é mais uma manifestação exercida pelos seguidores religiosos que se
processam de acordo com suas regras. E num jogo de razão e fé, dão continuidade à religião. Que provavelmente está aqui antes da filosofia e da
ciência, de quem ambas podem ter nascido, e permanecerá por muito tempo.
Pois é na ausência da filosofia e da ciência que o homem busca respostas
para suas inquietações diárias. E mesmo quando as duas não mais existirem para alguém ou para o homem, talvez a religião seja o refúgio das suas
angústias e das suas realizações 453
.
Entendo essa relação de reciprocidade presente entre o Ciganinho e seus devotos. Nas
entrevistas colhidas, percebi que o êxito de graças alcançadas reforçou a fé dos fiéis no
menino Cigano. Foi comum ouvir relatos como esse: “Eu tenho muita fé nele porque já obtive
as graças que eu pedi”454
, “Minha fé é dobrada. Sempre sou acolhida”455
.
Esses devotos passaram a buscar continuadamente a mediação do Ciganinho em seus
momentos de aflição, dirigindo-se até o túmulo do Roldão: “Vou com fé na alma dele”456
,
como afirmou D. Gracy ao comentar sobre a motivação de suas idas constantes ao Cemitério.
450 FERRETTI, Sérgio e LINDOSO, Gerson. Op. Cit., 2006. 451 Ibidem, p. 617. 452 DURKHEIM, Émile. Op. Cit., 1989, p. 69-70. 453 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 35. 454 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
16 jun. 2010 455 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,
11 ago. 2010. 456 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 14 jun. 2010.
Figura 16: Ex-votos variados
125
Dona Durvalina também tem a mesma prática: “Eu tenho muita fé, por qualquer coisa eu vou
lá, eu peço e alcanço a graça, viu, tenho muita fé nele”457
. Em suas casas, nos momentos de
orações, também são espaços onde devotos reforçam sua fé: “Toda coisa assim que tá um
assim um pouco difícil assim, aí, coisa assim, uma doença, uma coisa assim, eu me pego com
a alma do Ciganinho: „Oh! Alma do Ciganim, favorecei que eu to tão aperreada‟”458
.
Essas experiências de graças alcançadas, fazem o menino Cigano ser uma presença
constante da vida dos fiéis, que para muitos, tornou-se já uma relação de afeto: “Mas, eu gosto
dele! Ave-maria! Adoro o Ciganinho!”459
. As experiências são repassadas para outras pessoas,
e a procura ao Menino Cigano Milagreiro vai aumentando, como foi o relato de Dona Jesus:
“[...] pessoas também que eu contei minha história e passaram a frequentar também levando
sua história que conseguiu, é, recuperar alguma coisa”460
, e Dona Durvalina, quando pela
primeira vez apegou-se à alma da criança:
Aí eu com dificuldade, aí uma pessoa me disse assim: „Oh, Durvalina! A alma do Ciganinho é tão forte, Ave-Maria!‟. Eu disse que já tinha feito
promessa com santo [...], mas não tinha alcançado ainda. Ela disse: „Oh!
Meu Deus do céu, a alma do Ciganinho é tão forte, faça uma promessa com ele, se apegue com ele!‟. Aí eu peguei
461.
Entendo aí uma relação de dependência destes fiéis ao Menino Cigano. É no momento
de suas aflições que buscam o Ciganinho como mediador entre os homens Deus. A
dependência é também recíproca, pois são esses devotos, suas experiências de graças
alcançadas que fazem do Ciganinho um ser espiritual milagreiro, um inocente que teve uma
morte cruel, um mártir, e por isso alcançou um espaço de “poder” no mundo espiritual. Mas, é
através das orações, promessas, graças atendidas, visitas ao túmulo do Ciganinho, ex-votos
que se dá o reconhecimento do Roldão diante de Deus. Assim, o Ciganinho também precisa
dos devotos para se afirmar nessa posição de destaque.
457 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
16 jun. 2010. 458 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 14 jun. 2010. 459 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
16 jun. 2010. 460 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, Teresina, 11 ago. 2010. 461 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,
16 jun. 201
126
Os devotos esperantinenses costumam andar com fé no pequeno errante. As visitas ao
Cemitério acontecem com freqüência, ex-votos são depositados no túmulo em agradecimento
às graças alcançadas, os pedidos a ele são renovados em momentos de orações. Assim a fé
destes devotos no Menino Cigano não costuma falhar.
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os ciganos historicamente são representados sob formas múltiplas, de alegres,
aventureiros, misteriosos a velhacos, astutos e trapaceiros. Vindos ao Brasil banidos pelo
degredo colonial, integraram-se na nova pátria como mercadores ambulantes, artistas
circenses, fazendo a buena-dicha, comerciando escravos, e demais ocupações para garantir a
sobrevivência numa terra onde a ordem social do trabalho já estava rigorosamente
estratificada.
Mesmo integrados na nova sociedade pelo critério da utilidade social, condição que não
lhes foi dada nas sociedades européias, os ciganos ainda eram vistos sob o signo da
desconfiança. “Bandidos”, “ladrões”, “sujos”, “vagabundos”, “desordeiros”, eram alguns dos
adjetivos com que lhes qualificavam. A boa sociedade que necessitava dos seus serviços,
como rezas para recuperar escravos fugidos, leitura de cartas e das mãos para prever o futuro
e comprar escravos a baixo custo, rechaçava-os como indivíduos, qualificando-os com tais
adjetivos. A elite incomodava-se com o modo pelo qual os ciganos dispunham do seu tempo:
ignoravam tarefas mensuradas e realizadas de forma cíclica e rotineira, desconheciam o
controle da égide do relógio, como também o tempo linear e uniformemente dividido. Por
conta disso, os ciganos eram vistos como ociosos, em uma sociedade em que o ócio era um
privilégio que deveria ser exclusivo da elite. Os demais elementos sociais deveriam trabalhar
para manter a tríade: trabalho, ordem e progresso. Por essa perspectiva, os ciganos eram um
péssimo exemplo para os trabalhadores. A solução encontrada pela classe dominante para
livrar-se desse povo “incorrigível” foi a expulsão: o lugar ideal para os ciganos era sempre o
lugar mais distante. Em outro momento, essa expulsão é efetuada com mais violência através
da perseguição policial. As correrias de ciganos formaram o ápice de perseguição e violência
policial, que resultavam em aprisionamentos, tiroteios e morte de grupos, entre o final do
século XIX e início do século XX.
Uma dessas correrias aconteceu em terras piauienses. Ciganos armados, acusados de
práticas de delitos aos cidadãos com os quais negociavam, são perseguidos pela polícia militar
com o intuito de bani-los do nosso território. Muito mais que uma simples expulsão, a correria
piauiense terminou em um trágico massacre no povoado Retiro da Boa Esperança. Os corpos
dos ciganos massacrados após velório inconvencional, sob a sombra de três mangueiras,
seguem para sepultamento amontoados num carro de boi e são jogados em vala única, uns
128
sobre os outros. O sentimento de piedade diante da morte trágica, a ausência do ritual cristão
diante do velório - sem mortalha e caixão, e a animalização do sepultamento, transformaram
esses errantes “errados” em mártires, segundo o imaginário coletivo. Mesmo tendo suas falhas
suavizadas por esta compaixão, os ciganos ainda são relembrados como “errados” pelos
esperantinenses. O ciganinho Roldão, por ser um inocente, ficou isento de imagem negativa.
A morte trágica, acompanhada da condição pueril, fizeram-no conquistar um espaço de poder
no mundo espiritual, segundo o imaginário popular. Daí, as pessoas se apegam à sua alma nos
momentos de dificuldade, e o pequeno nômade passa a interceder por elas junto a Deus.
Promessas, visitas ao cemitério, ex-votos, são algumas das práticas de devoção religiosa ao
menino cigano.
Os ciganos que erravam em terras piauienses eram adjetivados como trapaceiros,
ladrões, bandidos, desordeiros: salteadores errantes. Violentamente perseguidos foram
desrespeitados como indivíduos, após mortos, foram desrespeitados enquanto cristãos. Mas, o
sentimento de piedade daqueles que, culturalmente rechaçavam-nos de bandidos, acabou por
ressignificá-los em mártires e milagreiro, agregando assim novas representações sociais e
culturais ao grupo errante.
129
REFERÊNCIAS E FONTES
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02 nov. 2009.
PEREIRA, Margarida Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 08 dez. 1997.
PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 07 out. 1997.
RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e
Silva. Esperantina, 15 jun. 2010.
136
SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Teresina, 01 dez.1997.
SANTOS, Pedro Araújo dos. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
SOUSA, Antônio Gonçalo de. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
SOUSA, Marlene. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
SOUSA, Maria Carmelita. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
SILVA, Antônio Francisco da. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
SILVA, Antônia da. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
SILVA, Maria de Deus. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
SILVA, Maria do Socorro. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 17 jun. 2010.
SILVA, Maria José. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
SANTOS, Juracy Pereira dos. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.
Esperantina, 02 nov. 2009.
VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora
Carvalho e Silva. Esperantina, 14 jun. 2010.
137
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
Nome do devoto:
Idade:
Profissão:
1. O senhor [a] já visitou o cemitério onde os ciganos estão enterrados? E o cemitério onde
o ciganinho está enterrado?
2. Com qual freqüência o senhor [a] visita esses lugares [o cemitério onde estão enterrados
os ciganos e o cemitério onde está enterrado o ciganinho?].
3. O senhor [a] visita o cemitério sempre ou somente no dia de finados? Por quê?
4. O que senhor [a] sabe sobre a história da morte dos Ciganos em Esperantina?
5. Há quanto tempo o senhor [a] conhece essa manifestação de fé [essa piedade, as
promessas que as pessoas fazem aos ciganos [ou ao ciganinho]?
6. O que motiva o senhor [a] a vir ao cemitério visitar o túmulo dos ciganos [e o túmulo do
ciganinho]?
7. Há quanto temo o senhor [a] vem a este lugar?
8. Conte a sua experiência nessas vindas ao cemitério [ao túmulo do ciganinho]?
9. O senhor [a] já fez alguma promessa ao ciganinho?
10. O senhor [a] acredita que os ciganos são milagrosos? Por quê?
11. O senhor [a] acredita que o ciganinho é milagroso? Por quê?
12. O senhor [a] já fez alguma promessa para os ciganos ou ciganinhos? [e outras pessoas já
fizeram? Que tipo de promessa?]
13. O senhor [a], depois da graça alcançada, mantém alguma devoção aos Ciganos ou ao
Ciganinho?
14. O senhor [a] fez [ou faz] promessas ou se “apega” [se vale] dos ciganos ou ciganinho
em momentos difíceis?
138
139
1) Você já visitou o cemitério onde os ciganos estão enterrados, aquele perto do S. Chico
Quaresma?
Já, várias vezes.
2) E o cemitério do Ciganinho?
Também, muitas vezes.
3) Qual a freqüência que você visita esses lugares, tanto o cemitério dos Ciganos, como
o do Ciganinho?
Olha, dos ciganos ali na Cel José Fortes, geralmente é no período de finados, em
novembro. Agora o do Ciganinho, já na zona rural é com mais freqüência [...], não tem assim
um período determinado.
4) O que você sabe sobre a morte dos ciganos em Esperantina?
Eu sei que, o que ficou bem foi a questão do massacre [...], do poder, da aquisição dos
Ficha Técnica
Tipo de entrevista: Temática
Entrevistador: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
Entrevistado: Bernadete da Silva Rodrigues
Idade: 50 anos
Profissão: Professora
Levantamento de dados: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
Pesquisa e elaboração do roteiro: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
Transcrição: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
Conferência da transcrição: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
Copidesque: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
Técnico de gravação: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva
Local: Esperantina
Data: 15 de junho de 2010
Duração: 11 min 22 segundos
Mp4 do áudio
Páginas: 04
A escolha da entrevistada se justifica por ser devota do Ciganinho há 30 anos
Temas: Piauí. Memória. Religiosidade. Devoção Popular.
140
pertences que eles tinham, eles estavam trazendo bastante ouro [...], e também o medo que as
pessoas tinha [...], deles saquearam as casas por conta da própria cultura que eles tinham de
tirar os animais se apossar [...] das terras, é o que a gente sabe um pouco da história dos
ciganos.
5) Há quanto tempo você conhece essa manifestação de fé em que as pessoas se apegam
à alma dos Ciganos e do Ciganinho?
Assim, por mais freqüência, há 30 anos atrás, por conta de acompanhar a nossa mãe
que muito devota tinha muito respeito assim dos ciganos em si, a gente freqüentava fazendo
companhia [...], ia não tinha assim aquela fé que nós temos hoje [...]. Hoje a gente já faz com
mais fervoroso do que antigamente. Antigamente a gente ia com aquela coisa de acompanhar
[...], fazer companhia daquele momento de acompanhar as orações, fazer a limpeza no
ambiente, levar flores [...]. A gente achava assim, achava assim mais por aquele esporte [...]
éramos todos crianças. Sempre ela levava todos os filhos [...], na sua companhia. Mas hoje a
gente já percebe assim com mais seriedade [...], o que a gente tá fazendo o momento que a
gente visita o túmulo do Ciganinho.
6) Que motivo lhe leva a visitar o túmulo dos Ciganos no Centro e do Ciganinho na Zona
Rural?
Mas assim [...], a questão da fé [...], da nossa religiosidade de levar luzes, levar flores,
lembrar o momento do massacre. Ao mesmo tempo a gente fica assim é pensativo [...], que
talvez se tivesse agido de forma diferente [...], não teria tido tanta morte, tanto sangue
derramado na nossa terra. A gente se pergunta [...], será que foi correto da forma com que
aconteceu [...] do momento? Poderia ter sido diferente [...] se tivesse deixado eles entrar na
cidade como eles já vinham já passando por outras cidades e nada aconteceu. Por que
Esperantina? Será se estava predestinado a acontecer isso?
7) Há quanto tempo você vem a esses cemitérios?
Como eu estava falando [...], há 30 anos atrás, a gente tem freqüentado mais. Eu fiz
uma cirurgia por volta de 1970 [...]1977. E por conta da cirurgia, minha mãe e outras pessoas
fizeram é, bastante promessas [...]. E essas promessas era pra que a gente visitasse lá o túmulo
do Ciganinho, levasse água benta, levasse flores, depositasse lá o coração, [...] de madeira.
Foi uma cirurgia cardíaca, de ponte safena. Hoje eu sou portadora de 3 pontes safenas. E por
conta disso, a gente tem continuado a frequentar. E num tem assim um período determinado,
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sempre a gente combina, passa assim 2 meses, 3, a gente retorna lá o ambiente. Sempre tendo
aquele carinho [...], de zelar todas as vezes que a gente vai [...]. A gente fica triste [...], porque
a outra vez agora no mês de maio, nós estivemos lá no ambiente e ficamos assim receosos
[...], por conta de uma pessoa que freqüenta lá o ambiente danificou, queimou o mausoléu, é
os ex-votos que tinha lá, os ex-votos muito milagre, perna, cabeça, braços, que as pessoas
levavam [...], depositavam lá. A gente observa que foi danificado [...], é, ficamos surpresos
porque eu não sabia que estava acontecendo isso nesse momento, [...]. E passava um pouco
tempo que a gente retornava a gente fazia o ritual de costume [...], retirar a sujeira que tinha lá
no cemitério, mas logo logo a gente vai estar retornando [...], com fé no Ciganinho.
8) Mas você mesma já fez promessa pro Ciganinho?
Já . Já, assim [...], de colocar [...], pedir por conta [...], de tratamento de saúde, teve um
acidente de um conhecido nosso, um acidente de moto e aí eu pedi muito assim que retornasse
à vida, a gente tinha medo que ele ficasse com sequelas e, graças a Deus, ele voltou tá uma
pessoa muito boa de saúde não ficou com nenhuma sequela, a mãe mandou fazer a cabeça
depositou lá no local [...]. E sempre a gente tem muita fé, eu falo assim com toda franqueza
[...], sempre que estou precisando conseguir alguma coisa eu me pego ao Ciganinho [...], e sou
sempre valida.
9) E você acredita que os Ciganos adultos são milagrosos?
Eu nunca penso assim nesses outros não. É eu penso mais no Ciganinho lá, não sei se
existe outras pessoas que têm devoção aos ciganos. Eu falo desse da zona rural do Ciganinho.
Eu acho assim, por conta de ter sido um jovem, a distância que eles estavam e onde ele
percorreu, correndo, se escondendo dos policiais, tentando fugir, eu acho que foi quem mais
sofreu aflição. Minha vó sempre contava que eram momento eles passavam, depois que se
acabou o massacre dentro da carroça né, várias pessoas, senhoras já de idade né,
criança...mortas para levar para jogar lá no cemitério.
Eu vejo assim...meu Deus ele correu tanto para tentar fugir da morte né, tentando se
defender das balas e lá tão distante porque leva assim 2 ou 3 horas para chegar no local né a
pé, uma distância até boa, e ele correndo né, tentando se defender e ainda terminou morrendo.
Então eu sempre lembro só dele do Ciganinho.
10) Você já fez alguma promessa pros Ciganos adultos?
Não. Não. Nunca fiz.
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11) Depois dessa graça alcançada você mantém alguma devoção aos Ciganos e ao
Ciganinho?
Ao ciganinho [...], de fazer, frequentar [...] lá o local onde está o túmulo, levar flores,
zelar pelo ambiente e aquele cuidado [...] de frequentar para não deixar abandonado. Eu
sempre falava [...] que um dia tivesse assim uma condição melhor, fazer um ambiente que
marcasse, pois Esperantina hoje de uma certa forma, ela é conhecida como época, como a
questão do massacre dos ciganos, então não é que a gente tivesse assim, mas que o cemitério
tivesse, é, fosse mais zeloso, era no centro da cidade. Mas é incrível a gente vê assim o
abandono por parte da gestão pública, o matagal é demais, a gente percebe que, é, num tem,
se não for o período de finados, outro momento ele não é visitado. Ele é, a gente sabe, que
além dos ciganos, existe outras pessoas [...] de famílias renomadas de Esperantina que têm
túmulo lá naquele local [...], mas a gente percebe assim o abandono por parte também dos
próprios familiares [...], não só da gestão pública, os próprios familiares, os túmulos
quebrados [...]. Já existe outras residências, já existe comércio no local onde a gente sabe que
ali tem túmulo