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Entre a paixão e o interesse – O amadorismo e oprofissionalismo no futebol brasileiro
Por
José Geraldo do Carmo Salles
_________________________________________
Tese Apresentada aoPrograma de Pós-Graduação em Educação Física da
Universidade Gama FilhoComo Requisito Parcial à Obtenção doTítulo de Doutor em Educação Física
Julho, 2004
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DEDICATÓRIA
Aos meus professores
Sílvia M. Saraiva Valente Chiapeta
Paulo Lanes Lobato
Pedro Alves Paiva
“Tu te tornas responsável por aquilo que cativas”.(Saint-Exupéry)
vi
“(.. .)Vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar
qualquer coisa,pois seus corações estavam programados para a alegria;
(. . .)”
(Carlos Drummond de Andrade ) 1
1 - Perder, Ganhar, Viver. Jornal do Brasil. Caderno de Esportes - 06 de julho de 1982
vii
AGRADECIMENTOS
À Deus
Aos meus Anjos da Guarda ( i nv i s í ve is e mate r ia l i zados )
Ao Pro f . D r . Antonio Jorge G. Soares , po r te r depos i tado tan ta con f iança em minhacapac idade, me mos t rado sempre os caminhos , as p i s tas e segu i r comigo. . . Obr igado meuamigo .
Ao meu amigo Adr iano Costa
Ao Pro f . D r . Manoel J . Gomes Tubino
Aos Pro f . D r . Lamar t ine Pere i ra DaCosta
Ao Pro f . D r . Hugo R. Loviso lo
A Pro f ª . D r ª . Vera L . Menezes Costa
Ao Pro f . D r . Rober to Ferre i ra dos Santos
Ao meu i rmão Dení lson V. do C. Sa l les
A minha i rmã Eva Inez do Carmo
A minha mãe Custódia Corrêa do Carmo
A minha cunhada Mar ia do Carmo P imente l
Aos meus sobr inhos : Ka l i l , Marcos e Lucas
Aos meus amigos : I l ane Mol ica e George Lodder L isboa
Aos amigo(a )s : Mara S i l va Iamim , Mara Denise R . Dias , Gera ld ine R . Dias (Ga l ) , RenatoCruz , So lange Brandão Star l ing , R i ta de Cáss ia S i lva , Le id ina He lena Si l va , Eve l ine TorresPere i ra , Eduardo José Ferre i ra Lopes , Mar ia Cecí l ia de Paula S i lva (C iça ) , Bruno O. LAbraão, Rosana Santos, V in íc ius de Ol ive i ra .
Aos meus amigos do handebo l de Ju iz de Fora . Em espec ia l a Cláudio H. D ias e sua famí l i a
Ao meu amigo Pedro Paulo Nunes
Aos meus p ro fessores UFV: José E l ias R igue ira , Mar ia Aparec ida Cordei ro , Ad i lson Oses ,Roseny M. Maf f ia , Anton io José Nata l i , Rannah Manezenco , José Car los de Paula , Adalber toRigue i ra V ianna , José Alber to P in to , Emmi Miot in , Mar is te la Moura S i l va , José de Fát imaJuvêncio , Ronaldo Sérg io Giannichi , Mar ia Tereza Böhme , Mar ia Tereza Saad Lopes
Aos Pro fessores : Rosa Ol ivera Fontes e Maur íc io Fontes – UFV
Aos func ionár ios do DES: Lúcia He lena Campos e José Franc isco Sobr inho DES-UFV
Aos novos amigos : Bianca B isso l i , Luciana Pe i l , Márcia Morel , Marco A. Santoro , EuzaGomes, Kát ia Passos , Regina Costa , Ana V i tór ia , Andréa Berga l lo
Aos Pro fessores da UGF: Helder G. Resende , Ni lda Tevês , Ludmi la Mourão .
Aos meus co legas p ro fesso res e a lunos da Univers idade Federa l de V içosa
Aos meus amigos ca r iocas : Bruno Far ias Dantas , Márcia D ’Ol i , Ana Paula Ramos , Márc iaMaia , Ricardo Menezes
A Pol lyanna P . Almeida , pe la p rec iosa rev i são o r tog rá f i ca
Aos func ionár ios do Programa de Pós-Graduação da UGF: Fabr i , Evel ine , Alan
A Margar ida , Perpétua e Suel i – Sec re tá r ia da Pró -Re i to r ia de Pós Graduação da UFV
As instituições: Univers idade Federa l de V içosa e Univers idade Gama F i lho
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SALLES, José Geraldo do C. (2004). Entre a paixão e o interesse – Oamadorismo e o profissionalismo no futebol brasileiro. Tese de doutorado.Programa de Pós-Graduação em Educação Física. UGF. Rio de Janeiro.
ResumoEste estudo tem como objetivo realizar uma análise do discurso circulante acerca dosdilemas entre o amadorismo e o profissionalismo no seio do futebol ao longo do seudesenvolvimento na sociedade brasileira. O esporte moderno nos termos de NorbertElias (1992) seria uma mimese da guerra, mas uma guerra sem os riscos diretos doconfronto com fim letal. Todavia, rapidamente tornou-se também um ramo de negóciona ordem capitalista, onde a lógica basal é o acúmulo. O esporte, ao ser governadopelos interesses, passou a ser um local de negócios, apostas e divertimentos, seafastou dos ideais da busca da honra e da glória, sem interesses pecuniários. Diantedesta transformação, a manutenção do ideal amador teria sido apenas uma brevereação das elites em manter as barreiras de distinção social e frear a popularizaçãoque, de certa forma feria, ou invadia, um de seus espaços para emulação de status.Entretanto, a partir do momento em que o esporte se tornou um dos principais meiosde entretenimento tanto na possibilidade da prática, quanto na esfera do consumo deespetáculo, novas demandas passaram a governá-lo, fazendo surgir o profissionalesportivo. Obviamente, o surgimento desta bifurcação amadorismo-profissionalismoprovocaria uma tensão entre os idealizadores do esporte, aqueles que o pretendiamapenas como um meio de distinção e refinamento, aliado aos ideais educativos ealguns praticantes que rapidamente demonstraram outros interesses relacionados aojogo, tais como ascensão social e sobrevivência. Ao admitir o profissionalismocolocava-se em jogo o ideal educativo e moral preconizado pelas elites, pois oesporte, como ramo do negócio, parecia macular a competição, que passaria a sergovernada pelo interesse. O interesse pecuniário do atleta passou a ser questionadodiante dos ideais civilizatórios do esporte. Observemos que a desconfiança sobre alegitimidade e moralidade desse interesse estava presente no início do debate entreamadoristas e profissionalistas desde a transformação do esporte na Inglaterra. Nofutebol brasileiro entre as décadas de 20 e 40, ocorria, por parte de algunsinteressados na manutenção do amadorismo, uma narrativa de que os interessesindividuais proporcionados pelo profissionalismo pudessem corromper os valoreseducativos e morais do esporte. Diante de tal desconfiança, como trabalhar com aidéia de transparência e credibilidade no esporte, se cada jogador persegue seu auto-interesse? Como manter o valor da honestidade, se o jogador de futebol pode sevender individualmente? Essas são possíveis questões que pareciam pairar sobre apossibilidade de profissionalização do esporte no final do século XIX e primeirasdécadas do século XX. Na atualidade, os termos amador e profissional no espaçoesportivo permitem ser utilizados para se qualificar positiva como negativamente ovínculo do atleta. São termos polissêmicos que apresentam fluidez de sentido econtradições, dependendo do contexto em que é empregado. Nossa principal hipóteseé que, a narrativa esportiva brasileira (dirigentes, torcedores, jogadores e da mídia)apresenta deslocamentos e ambigüidades entre o discurso romântico, cifrado pelosideais amadores, e o discurso profissional, em que a racionalidade econômica deveimperar. Todavia, nos anos de 1930 tensões e retóricas a favor ou contra aimplantação do profissionalismo estiveram presentes nas páginas dos periódicosnacionais, mas o profissionalismo se afirmou. Em contrapartida, o discurso amadorpermaneceu no seio dessa nova ética, com forte traço romântico, e passou a ser umaespécie de regulação, de freio, do interesse desmedido que pode ameaçar os valoresdo esporte no profissionalismo.
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SALLES, José Geraldo do C. (2004). Between the passion and the interest -the amateurism and the professionalism in the Brazilian soccer. Doctoratethesis of Program of Pos-Graduation in Physical Education. UGF. Rio deJaneiro.
AbstractThis objective of this study was to carry through an analysis of the circulating speechconcerning the quandaries between the amateurism and the professionalism soccerduring its development in the Brazilian society. According Norbert Elias (1992), themodern sport would be one “mimesis” of the war, but a war without the risks right-handers of the confrontation with lethal end. However, quickly became a branch ofbusiness in the capitalist order, where the basal logic is the accumulation. The sport,being ruled by interests, started to be a place business-oriented, appositive andamusements, it moved away from the ideals of the search for honor and glory, withoutpecuniary interests. Ahead of this transformation, the maintenance of the amateur idealwould have been only one brief reaction of the elites in keeping the barriers of socialdistinction and braking the population that, of certain form, wounded, or invaded, one ofits spaces for emulation of status. However, from the moment the sport became one ofthe main ways of entertainment, both in the possibility of the practice and in the sphereof the spectacle consumption, new demands had started to govern it, making to appearthe sportive professional. Obviously, the sprouting of this bifurcation amateurism-professionalism would provoke a tension enters the idealizers of the sport, those whoonly intended it as a way of distinction and refinement, ally to the educative ideals andsome practitioners who had quickly demonstrated other related interests to the game,such as social ascension and survival. When admitting the professionalism theeducative and moral ideal praised by the elites was observed; therefore the sport, asbranch of the business, seemed to stain the competition, which would be governed bythe interest. The pecuniary interest of the athlete passed to be questioned in relation tothe civil ideals of the sport. Let us observe that the diffidence on the legitimacy andmorality of this interest was present in the beginning of the debate between amateursand professionals since the transformation of the sport in England. In Brazilian soccerbetween the decades of 20 and 40, it occurred, on the part of some interested partiesin the maintenance of the amateurism, a narrative that the individual interestsproportionate by the professionalism could corrupt the educative and moral values ofthe sport. With such diffidence, how to work with the idea of transparency andcredibility in the sport, if each player pursues its auto-interest? How to keep the valueof the honesty, if the soccer player can sell himself individually? These are possiblequestions that seemed to hang on the possibility of professionalization of the sport inthe end of XIX century and first decades of XX the century. In the present time, theterms amateur and professional in sports can be used to characterize, both positive asnegative, the bond of the athlete. They are polissemic terms that present sensiblefluidity and contradictions, depending on the context where they are used. Our mainhypothesis is that the Brazilian sportive narrative (leading, fans, players and media)presents displacements and ambiguities between the romantic speech, ciphered for theamateur ideals, e the professional speech, where the economic rationality must reign.However, in the years of 1930 tensions and rhetorical pro or against the implantation ofthe professionalism had been gifts in the periodic pages of the national ones, but theprofessionalism has affirmed. On the other hand, the amateur speech remained in thisnew ethics, with strong romantic trace and e started to be a species of regulation,brake, of the measureless interest that can threaten the values of the sport in theprofessionalism.
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LISTA DE QUADROSQuadros Pág.
01 Ano de implantação do regime profissional em alguns países ........... 203
02 Manifesto dos Clubes da primeira divisão e do Clube dos 13 ............ 293
03 Número de atletas que solicitaram oficialmente a reversão deprofissional para amador entre 1992 e 1996 ...................................... 312
04 Números absolutos de jogadores que foram profissionalizados e dejogadores que solicitaram a reversão na CBF .................................... 313
05 Conceituações entre status do atleta, organização, práticas,competições e entidades esportivas nas leis esportivas nacionais daEra Vargas até os anos 80 .................................................................. 320
06 Conceituações entre status do atleta, organização, práticas,competições e entidades esportivas nas leis esportivas nacionais daConstituição de 1988 e suas regulamentações .................................. 321
07 Conceituações entre status do atleta, organização, práticas,competições e entidades esportivas nas leis esportivas nacionais daLei Zico a Lei Pelé ...............................................................................
322
08 Conceituações entre status do atleta, organização, práticas,competições e entidades esportivas nas leis esportivas nacionais daMaguito Vilela as leis atuais ............................................................... 323
09 Principais transações financeiras do futebol mundial até 2002 .......... 434
10 Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo antesda oficialização do regime profissional (até 1933) na percepção dosinteressados na manutenção do regime amador ................................ 458
11 Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo depoisda oficialização do profissionalismo, durante o período deimplantação do profissionalismo, na percepção dos interessadospela manutenção do regime amador.................................................. 459
12 Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo antesda oficialização do regime profissional (até 1933), na percepção dosinteressados pela implantação do profissionalismo............................. 459
13 Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo depoisda oficialização do regime profissional, na percepção dosinteressados pela implantação do profissionalismo ............................ 459
xi
LISTA DE FIGURASFigura
nºPág.
01 Equipe do Vasco da Gama – 1923....................................................... 130
02 Equipe do Vasco da Gama -1929........................................................ 170
03 Anunciando o surgimento de uma liga para os profissionais - Jornaldo F.F.C................................................................................................ 192
04 Anúncio da fundação do profissionalismo no futebol metropolitano -Jornal do F.F.C ................................................................................... 218
05 O profissionalismo no início de sua fase de realização - Jornal doF.F.C. ................................................................................................... 235
06 Porque a AMEA terá que ser desfiliada da CBD..................................245
07 1ª Partida entre profissionais do Rio de Janeiro e de São Paulo(Fluminense x Corinthians). Jornal do F.F.C........................................ 248
08 Bangu - 1ª Equipe campeã da Liga de Profissionais no Rio deJaneiro.................................................................................................. 249
09 Charge Políticos Futebol Clube – Bancada da bola - Folha de SãoPaulo.................................................................................................... 278
10 Jornal o Dia, 27 de abr/2001 – Capa.................................................... 331
11 Jornal Extra, 30 de mar/2001 – Capa .................................................. 333
12 Afonsinho no Botafogo em 1968 ......................................................... 344
13 Afonsinho ............................................................................................. 347
14 Charge de Henfil - Renovação de contrato de Jairzinho...................... 359
15 Afonsinho em 1972 jogando pelo Santos. F. C. Agachado.................. 371
16 Bebeto no Flamengo em 1986............................................................. 377
17 Bebeto – Copa América 1989 ............................................................. 381
18 Bebeto no Vasco da Gama -1990 ....................................................... 392
19 Um cartola acima de suspeitas ........................................................... 398
20 Entrevista David Fischel ..................................................................... 402
xii
21 Romário nos três clubes: Flamengo, Vasco e Fluminense ................. 411
22 Charge – Romário cortejado pelos clubes Flamengo e Fluminense ... 414
23 Ronaldo ingrato - Coluna Tabelinha..................................................... 416
24 Carteira Profissional do Ronaldo ......................................................... 418
25 Euronaldo ............................................................................................ 428
26 Ronaldo à venda ................................................................................. 431
27 Ronaldo à venda 2 ............................................................................. 433
28 Charge - Breve aqui, mais um fora de série ........................................ 435
29 Gradiente - Amadorismo e profissionalismo no futebol brasileirodesde o início do século 20.................................................................. 441
30 Entrevista com Felipe .......................................................................... 445
31 Entrevista com Liedson ....................................................................... 447
xiii
SUMÁRIO
Página
LISTA DE QUADROS ....................................................................................................... ixLISTA DE FIGURAS ......................................................................................................... x
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 01
PARTE 1O AMADORISMO E O PROFISSIONALISMO NO ESPORTE:MAPEANDO OS CONCEITOS .................................................................................. 34
Capítulo IA aproximação dos conceitos ....................................................................................... 34
Capítulo IIO amadorismo nos Jogos Olímpicos ............................................................................ 47
2.1 - O status do atleta nos Jogos Olímpicos Antigos ............................................. 542.2 - O status do atleta nos Jogos Olímpicos Modernos ......................................... 61
PARTE 2A PROFISSIONALIZAÇAO DO FUTEBOL ........................................................... 84
Capítulo IIIO processo de profissionalização do futebol na Inglaterra ........................................ 84
Capítulo IVA rápida difusão do futebol – Uma volta pela história do futebol brasileiro atravésdo Rio de Janeiro ............................................................................................................ 106
Capítulo VA tensão inicial do processo de profissionalização do futebol brasileiro ................ 115
Capítulo VIRegaste e reestruturação do futebol brasileiro: o amadorismo em crise................. 125
6.1 - A vitória do clube de Regatas Vasco da Gama em 1923 e a cisão naMETRO ........................................................................................................ 128
6.2 - A fundação da AMEA – A busca do controle planejada pelos grandesclubes............................................................................................................ 138
xiv
6.3 - As Leis de Inscrição e de Estágio implantadas pela AMEA ......................... 148
Capítulo VIIRussinho – Uma entrevista provocadora .................................................................... 167
Capítulo VIIIA tensão dos anos finais da década de 20 e anos iniciais da década de 30 – OJornal do Fluminense Football Club preparando o terreno para oprofissionalismo ............................................................................................................. 186
Capítulo IXO profissionalismo do futebol brasileiro ...................................................................... 202
9.1 - Argumentos favoráveis e contrários ao profissionalismo até sua instauração. 2089.2 - A instauração do profissionalismo ................................................................... 2179.3 - Argumentos após a instauração do regime profissional .................................. 224
PARTE 3A LEGISLAÇÃO ESPORTIVA BRASILEIRA: AMADORISMO,PROFISSIONALISMO E FUTEBOL ....................................................................... 251
Capítulo XDo Estado Novo a Constituição de 1988 ...................................................................... 256
10.1 - Decreto-Lei 3.199 de 1941 ........................................................................... 25810.2 - Lei 6.251 de 08 de outubro de 1975, regulamentada pelo decreto nº
80.228 de 25 de agosto de 1977 .................................................................. 26410.3 - Constituição de 1988 .................................................................................... 268
Capítulo XIOs alicerces recentes das leis atuais ........................................................................... 275
11.1 - O curto período do governo Collor ............................................................... 27511.2 - Lei nº 8.672 de 06 de julho de 1993 (A Lei Zico) .......................................... 27611.3 - Lei nº 9.615 de 24 de março de 1998 (A Lei Pelé) ....................................... 290
Capítulo XIIAs Leis atuais................................................................................................................... 301
12.1 - Lei nº 9. 981 de 14 de julho de 2000 (Lei Maguito Vilela) ............................ 30112.2 - Lei nº 10.672 de 15 de maio de 2003 ........................................................... 303
Capítulo XIIIA reversão do profissionalismo – Que historia é essa? ............................................. 306
xv
Capítulo XIVConsiderações acerca dos termos amador e profissional nas leis brasileiras ....... 316
PARTE 4A PERMANÊNCIA DAS NARRATIVAS AMADORAS NO CONTEXTO DOFUTEBOL PROFISSIONAL ....................................................................................... 328
Capítulo XVAfonsinho – Uma voz inquietante ou um mito da resistência? .................................. 343
Capítulo XVIReleitura do caso Bebeto – A transferência do Flamengo para o Vasco da Gama... 376
Capítulo XVIIDavid Fischel – Um dirigente modelo? ......................................................................... 396
Capítulo XVIIIRonaldo Nazário – O homem de 100 milhões .............................................................. 415
CONCLUSÃO ................................................................................................................... 438
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 462
1
INTRODUÇÃO
“A avareza, ou o desejo de ganho, é uma paixão universalque age em todos os tempos, em todos os lugares, esobre todas as pessoas”.
(David Hume)
O esporte moderno nasce no seio das escolas públicas inglesas
como meio de educar o gentleman (o gentil homem inglês). Neste contexto
educacional, o esporte passa a representar uma forma civilizadora de polir
os instintos humanos (agressividade, violência, paixão etc), tal como
concebe Norbert Elias (19921, 19932). O esporte nos termos de Elias é uma
mimese da guerra, mas sem os riscos diretos do confronto armado. Todavia,
rapidamente tornou-se também um ramo da ordem capitalista, em que a
lógica basal é o acúmulo. O esporte, ao ser governado pelos interesses
passou a ser um local de negócios, apostas e divertimentos. Diante desta
transformação, a manutenção do ideal amador teria sido apenas uma breve
reação das elites em manter as barreiras de distinção social e frear a
popularização que de certa forma, feria, ou invadia, um de seus espaços
para emulação de status, com descreve Veblen (1974)3. O esporte foi
1 - El ias , Norber t . (1992) . Ensaio sobre o despor to e a v iolência . In : Norbert El iase Er ic Dunning. A busca da exci tação. Lisboa. Disfel .
2 - El ias , Norber t . (1993) . Um ensaio sobre el deporte e la v iolência . IN: Norber tEl ias & Eric Dunning. Deporte y ocio en el proceso de la c iv i l ización. México.Fondo de Cultura Económica.
3 - Veblen, Thorstein . (1974). A teor ia da classe ociosa – Um estudo econômicodas ins t i tu ições . Os pensadores . Rio de Janeiro: Abri l Cultural . No capí tulo II I -
2
cultuado como um espaço propício para se demonstrar o ócio conspícuo,
necessário ao status da aristocracia e, conseqüentemente, o amadorismo
seria uma lógica desta predisposição de se fazer notar socialmente.
O modelo de esporte implantado pelos ingleses repercutiu mundo
afora e passou a ser uma referência para que as principais organizações
esportivas se pautassem. Entretanto, a partir do momento em que o esporte
se tornou um dos principais meios de entretenimento, rapidamente ocorreu
uma nova perspectiva ao surgir a possibilidade do profissional esportivo.
Obviamente, o surgimento desta bifurcação amadorismo/profissionalismo
provocaria uma tensão entre os idealizadores do esporte (aqueles que o
pretendiam apenas como um meio de distinção e refinamento, aliado aos
ideais educativos) e alguns praticantes que rapidamente demonstraram
outros interesses relacionados ao jogo. Parece que, ao se admitir o
profissionalismo, colocava-se em jogo esse ideal educativo e moral, pois o
esporte, como ramo do negócio, parecia macular a competição, que passaria
a ser governada pelo interesse. A competição passou a representar um local
de demonstração da capacidade de empreendimento do clube, inicialmente,
e mais tarde, também, dos seus patrocinadores. O tipo de vínculo do atleta
tornou-se o elemento basilar deste embate entre o interesse e os valores
morais educativos. O interesse financeiro do atleta passou a ser questionado
frente aos interesses da educação civilizatória do esporte.
Ócio conspícuo, Veblen argumenta acerca da necessidade de demonstrar asfaçanhas honoríf icas. “( . . . ) À medida que aumenta a densidade da população e asrelações humanas se tornam mais numerosas e complexas , todos os detalhes davida sofrem um processo de e laboração e seleção; e neste processo de e laboração,o uso de troféus se desenvolve num sis tema de posições, t í tu los graus e insígnias ,
3
Observemos que a desconfiança sobre a legitimidade e moralidade
deste interesse estava presente no início do debate entre amadoristas e
profissionalistas desde a transformação do esporte na Inglaterra.4 Tanto os
defensores do amadorismo, quanto aqueles que traçavam um novo modelo -
o profissionalismo -, utilizavam os argumentos da dúvida no
desenvolvimento de suas narrativas.
Essa velha desconfiança permanece mesmo na atualidade. Em
alguns momentos, ainda se questiona o interesse do indivíduo sobre o
esporte. Parece que o negócio no seio do esporte poderá corrompê-lo. Não
se pode admitir o esportista mercenário5, pois o homem que luta por dinheiro
está sujeito a se corromper. Parece que tal percepção se sustentava na
mesma linha de raciocínio utilizada por Maquiavel, quando alertara o Rei de
Florença no século XIV sobre a composição dos exércitos mercenários.6 No
futebol mantém-se uma narrativa sobre a desconfiança de que o interesse
do indivíduo, proporcionado pelo profissionalismo, possa corromper os
valores educativos e morais que foram implantados e refinados pelos ideais
amadores. Diante de tal desconfiança, como trabalhar com a idéia de
transparência e credibilidade no esporte, se cada jogador persegue seu
no qual os exemplos t íp icos são os emblemas heráldicos, as medalhas e ascondecorações honor íf icas .” (p .300)
4 - Na Inglaterra , quest ionava-se a credibi l idade do jogador que gostar ia de sededicar exclusivamente à prát ica do futebol. Murray, Bil l . (2000). Uma his tór iade fu tebol. São Paulo. Hedra.
5 - Na Par te 4 veremos como esta tensão ainda permanece presente na a tual idade.
6 - Maquiavel suger ia ao Rei que na composição do exérci to , não admit issesol tados contratados. Ele propôs a composição de um exerci to patr ió t ico sem oselementos mercenár ios , por acredi tar que o indivíduo lu tar por dinheiro estar iasujei to a se vender para as tropas in imigas. Maquiavel , Nicolau. (1999) . OPríncipe. São Paulo: Nova Cultural Ltda.
4
auto-interesse? Como manter o valor da honestidade, se o jogador pode se
vender individualmente? Essas são possíveis questões que pareciam pairar
sobre a possibilidade de profissionalização do esporte no final do século XIX
e primeiras décadas do século XX.
A permanência de valores do amadorismo parece funcionar como
uma espécie de contrapeso diante do medo de que o interesse individual (ou
interesses) do atleta no campo do negócio supere os valores morais na
competição. Há um medo explícito de que o negócio exacerbado faça com
que se perca a crença na competição. Se isso ocorresse, seria ruim para
todos, jogadores, dirigentes, patrocinadores e também a mídia. Essa tensão
desencadeada pela possibilidade de os interesses individuais (dos atletas)
tornarem superiores aos interesses coletivos foi, durante muito anos, uma
aflição dos idealizadores dos Jogos Olímpicos Modernos. A possibilidade de
se estabelecerem limites para os atletas de todas as nacionalidades filiadas
ao COI teria desencadeado vários transtornos no seio do movimento
olímpico desde o final do século XIX. Os praticantes, aqueles que se
destacavam pelas suas habilidades, passaram a buscar no esporte outras
possibilidades pessoais do que simplesmente os prazeres e os benefícios de
uma vida esportiva, como eram pretendidas pelos puritanos que fomentaram
a reestruturação do esporte moderno.
Inicialmente, o esporte com os ideais amadores mantiveram-se em
um local de honra e glória. Era um espaço de destaque, distinto do local de
interesse pela sobrevivência. Os indivíduos que o praticavam o faziam pelo
5
prazer, pelo reconhecimento, pela honra e glória. Todavia, ainda no século
XIX, o esporte atravessa as fronteiras das classes e passa a representar
outras possibilidades para os praticantes, principalmente para aqueles que
não poderiam continuar a praticá-lo descompromissadamente, tendo que
dividir o tempo de dedicação ao esporte com o trabalho pela sobrevivência.
Desta forma, o interesse individual frente ao esporte passou a substituir, em
parte, a honra e a glória nos termos aristocráticos. Obviamente que grande
parte dos atletas, inicialmente, conciliava tais propósitos, mas em períodos
mais recentes essa harmonia não parece tão clara, na percepção dos
torcedores, dirigentes e da mídia e freqüentemente torna-se questionada.
Possivelmente, Coubertin e seus aliados se sustentavam na perspectiva do
vínculo esportivo incondicional, embasado apenas nos benefícios heróicos e
de apuração humana, seja física, moral ou espiritual.7 Os ingleses
reformadores do esporte parecem ter bebido inicialmente nestas mesmas
fontes.
Como o esporte moderno rapidamente passou a se estabelecer na
lógica do interesse, um local de entretenimento coletivo, o treinamento e a
eficácia passaram a exigir tempo e dedicação. Mesmo a elite praticante logo
percebeu a dificuldade de se estabelecer em uma vida regrada exigida pela
competência esportiva (divisão do tempo entre os compromissos diários e o
treinamento necessário).8 O esportista pertencente a elite deveriam se
7 - Ver: DaCosta , Lamart ine P. (1999). O ol impismo e o equi l íbr io do homem. In :Tavares , Otávio & DaCosta, Lamart ine P. Estudos Olímpicos. Rio de Janeiro.Edi tora Gama Fi lho.
8 - Um bom exemplo deste fa to pode ser percebido no f i lme Carruagens de Fogo,que conta a his tór ia real de dois at le tas que par t ic iparam dos Jogos Olímpicos de
6
dedicar, ou contratar alguém para assim fazê-lo. Observemos que já estava
em questão o apreço público, o consumidor do espetáculo esportivo. O
praticante, aquele que o fazia por prazer e desinteressadamente, apenas
com a sua dedicação amadora não seria mais suficiente para sustentar o
anseio do torcedor que pagava para ver os jogos. Como adequar os
interesses e as paixões que afloram desta interação dos distintos
segmentos, em que cada qual busca sua própria lógica de vinculação? O
esporte gera a conciliação de lógicas e interesses distintos.
David Hume (1970)9 argumentou que era uma conseqüência
infalível de todas as profissões permitir que o amor do ganho prevalecesse
sobre o amor do prazer. O acúmulo de dinheiro através do trabalho tornou-
se uma ordem admitida como forma de substituição das paixões violentas. O
comércio passou a representar uma forma “douceur” 10 de conquista,
diferente da pilhagem que ocorria na época. Nesta perspectiva o acúmulo, o
ganhar dinheiro de forma doce, tornou-se uma diretriz freqüente na
Par is , representando a bandeira da Inglaterra. Segundo Si lva (1996), duasquestões centrais são abordadas no f i lme: a ident idade dos at le tas (HeroldAbrahams, era f i lho de um judeu, nascido na Ingla terra , e Er ic Liddell , que eraf i lho de missionár io escocês, nascido na China) e o amadorismo nos esportesingleses , pautado nos valores das classes de el i te . Ver: Si lva, Leidina Helena deO. (1998). Carruagens de Fogo: notas sobre a inst i tucional ização do esporte . In :Motus Corpores . Revista de d ivulgação cient íf ica do Mestrado e Doutorado emEducação Fís ica. V.5 . n .1 maio, 1998 Rio de Janeiro. Edi tora Central UGF.
9 - Hume, David. (1986) . Escr i tos sobre economia. São Paulo. Abri l Cul tural .
10 - Esta expressão ut i l izada por Hirschman (2000) remete a idéia de doçura, maso próprio admite a d if iculdade de se traduzir esta expressão, ut i l izada pelapr imeira vez como qualif icat ivo associado ao comércio por Jacques Savary, emsua obra La parfai t négociant ( l ivro dest inado aos homens de negócio do séculoXVII , escr i to em 1675). O comércio era v is to como uma forma doce de acúmulosem comparação com o acúmulo em forma de pi lhagem que acontecia em outrasépocas. Hirschman, Albert O. (2000) . As paixões e os interesses . Rio de Janeiro.Paz e Terra.
7
expansão do capitalismo (Hirschman, 2000) 11. O esporte, na esteira desta
expansão, também teve que se adequar a estas novas configurações
sociais. Como conciliar as apostas – que sempre estiveram associadas as
competições esportivas -, e o mercado de trabalho que surgia neste campo
com os ideais aristocráticos do amadorismo?
Hirschman (2000), ao apresentar os pressupostos políticos para o
capitalismo antes do seu triunfo, argumenta que, em algum momento da
idade moderna, o ganhar dinheiro passou a ser considerado superior ao
comportamento orientado pelas paixões. As análises de Hirschman
sustentam-se nos apontamentos de Hume, Smith, Mandeville, Santo
Agostinho, Rousseau, entre outros. Argumenta Hirschman que, o fato de a
humanidade ter passado a admitir a busca da satisfação no interesses
materiais (o acúmulo) e o papel de coibir as ingovernáveis e destrutivas
paixões do homem teria provocado o triunfo do capitalismo. Durante longo
tempo da história da humanidade, essas paixões foram colocadas como
pecado mortal da avareza. Hirschman argumenta que as transformações
sociais nascem da continuidade entre o velho e o novo, ao contrário de uma
ruptura brusca, como apontou Max Weber em A ética protestante e o espírito
do capitalismo.12
11 - Segundo Hirschman (2000) , para o surgimento do capi ta l ismo, foi necessár ioque o in teresse entrasse como moderador das paixões. Hirschman enfat iza umaespécie de ruptura social , onde o novo nasce do velho e essa quebra promove astransformações .
12 - Segundo Weber, o ganhar d inheiro dentro de uma ordem econômica moderna,legalmente, é f ruto do resul tado da vir tude e a prof ic iência de uma vocação. Estaidéia pecul iar do dever prof iss ional torna-se a maior caracter ís t ica da ét ica socialda cul tura capi tal is ta , sua base fundamental . (p .28) Weber , Max. (2001) A ét icaprotes tante e o espír i to do capi ta l ismo. São Paulo. Pioneira Thomson Learning.
8
No momento em que o futebol caminhava para o profissionalismo,
parece que o dilema principal se dava sobre o ganhar dinheiro no espaço do
jogo, o que a classe detentora do poder sobre a organização e controle do
esporte não queria admitir, julgando tal feito como perda dos ideais
civilizatórios do esporte. Possivelmente, os dirigentes esportivos
desprezavam a possibilidade de que alguém pudesse demonstrar interesse
econômico sobre um espaço que deveria ser destinado à confraternização
de cidadãos refinados. Portanto, parece que, quando o amadorismo
esportivo foi substituído pelo profissionalismo e evidentemente absorveu
princípios orientadores do capitalismo, o futebol e outros esportes foram
lugares de resistência à lógica do dinheiro, como princípio superior para os
dirigentes esportivos românticos e puritanos. Possivelmente em função da
própria estrutura de ‘guerra’ do esporte - uma guerra de infantaria e de
emulação entre comunidades -, a defesa do ideal de amor e paixão, da
honra do grupo, foi o argumento central das elites.
Segundo Weber (2001), a “ânsia por lucro”, o “impulso para a
aquisição”, “o quanto dinheiro melhor” tornaram-se a força mais significativa
da vida moderna - comum a todos os cidadãos. “Este impulso existiu e existe
(...) em todo tipo de gente e classe social, em todas as épocas e nações,
onde quer que, de alguma forma se apresentou ou se apresenta a
possibilidade objetiva para tal.” (p.9).
Apesar desta inquietude e repulsa quanto à possibilidade de ganho
no esporte, rapidamente os dirigentes ingleses perceberam que deveriam
ceder às pressões das classes operárias que pleiteavam as mudanças, sob
9
pena de perderem o comando do esporte. Desta forma, na Inglaterra
construiu-se um sistema dual: ligas amadoras e ligas profissionais. O sentido
pragmático da cultura inglesa separou e distinguiu as elites por este
mecanismo. Todavia, apesar da transformação exigida pelos operários
praticantes, o comando e controle do jogo permaneceram nas mãos das
mesmas elites dirigentes.
Observemos que o futebol que chegou ao Brasil pelos filhos de
imigrantes que estudavam na Europa foi aquele do modelo amador das
escolas européias.13 Contudo, o futebol rapidamente se populariza,
mantendo os ideais aristocráticos.14 Esta popularização se deu, no entanto,
para além das camadas privilegiadas da sociedade na época.15 Desta
forma, o futebol no Brasil tornou-se também um local de aposta, de
sobrevivência e de entretenimento, como ocorrera no velho continente,
13 - Pereira (2000) argumenta que os implantadores do futebol car ioca nãoobservaram a grande difusão do futebol no país que fo i seguido como modelo. “Ossportmen cariocas t ransformaram um espor te prat icado por operár ios das maisdiversas procedências em um símbolo de elegância e sof is t icação.” (p .40) Pereiraargumenta, a inda, que desde f ins do século XIX grande contingentes detrabalhadores foram atra ídos pelo fu tebol br i tânico e que estes indivíduos estavamlonge do ref inamento alardeado pelos esport is tas car iocas. Pereira , LeonardoAffonso de M. (2000). Footbal lmania – Uma his tór ia social do futebol no Rio deJaneiro, 1902-1938. Rio de Janeiro . Nova Fronteira .
Não é nosso propósi to polemizar acerca do mito fundador “Chales Mil ler” .Nosso in teresse recai sobre o fu tebol adotado pela população a part ir das úl t imasdécadas do século XIX. Uma abordagem diferenciada sobre a chegada do futebolno Brasi l pode ser observada em Santos Neto, José Moraes dos. (2002) . Visão deJogo – Pr imórdios do futebol no Brasi l . São Paulo. Cosac & Naify
14 - As denominações acerca do futebol mant inham até bem recentementeexpressões da l íngua inglesa, ta is como corner , back, offside, foot-bal l , Keeper ,l inesman, fu l l-back. Santos, José Rufino (1981). Histór ia Pol í t ica do FutebolBrasi le iro. São Paulo. Brasi l iense.
15 - Pereira (2000) argumenta que, a inda na pr imeira década do século XX, “ofutebol transformava-se num jogo prat icado por grupos de diversos perf issociais .” (p.72) Segundo Pereira , somente em 1907 apareceram nas páginas dosjornais mais de 40 novas associações dest inadas à prát ica do futebol, que selocal izavam nas mais d ist in tas regiões da c idade, do subúrbio ao centro .
10
mesmo que inicialmente cravejado de preconceitos por parte da elite, quanto
aos praticantes populares e seus interesses.16
O Brasil, nação em desenvolvimento, queria se repaginar sobre os
ideais da cultura européia e o futebol, pela sua rápida aceitação, passou a
ser colocado como um destes mecanismos de afirmação cultural.17
Entretanto, por que ao copiar um modelo de desenvolvimento do esporte,
optou-se pelo amadorismo, e não pelo profissionalismo que já estava
disseminado na Europa desde as décadas finais do século XIX? Obviamente
que esta interrogativa ingênua é de fácil resposta. Os primeiros dirigentes
brasileiros eram filhos das elites e para eles o que importava
primordialmente era o status social. O ganhar dinheiro no espaço do jogo
soava com uma desfaçatez para uma classe de privilegiados. O esporte
constituiu desde cedo um espaço apropriado para ancorar tradições
românticas.18
16 - Ao f inal do século XIX, o Brasi l havia abol ido a escravidão e sua populaçãoem expansão já era formada por união de diferentes raças: negros, índios,brancos. Essa fusão de indivíduos de or igens d iferentes t rouxe caracter ís t icasbem singulares a cul tura brasi le ira . O futebol, obviamente pela sua faci l idade deprát ica e necessidade de baixo custo, tornou-se rapidamente um elemento do lazerdesta população em expansão. (Ver Santos, 1981). Essa é uma hipótese d ifundidana sociedade bras i le ira.
17 - Wit ter , José Sebast ião . (1990). O que é fu tebol . São Paulo . Brasi l iense.
18 - O concei to de romantismo ser ia f ruto de um grande movimento in telectual ear t ís t ico surgido no f inal do século XVIII no ocidente , que segundo Campbell(2001) torna-se de d if íc i l def in ição, por três motivos: 1º) o fenômeno compreendeo desenvolvimento em quase todos os campos da vida in te lectual e cul tural ; 2º) asmais inf luentes def in ições ter iam sido formuladas por antagonistas; e 3º) deveser entendido como um impulso, e não como um sis tema unif icador de idéias .Ser ia um impulso para o caos. “Uma def in ição fechada do romantismo. . . não émuito românt ica”, como “se um importante aspecto do romant ismo é a rebel ião ,então rebelar-se contra o romantismo também podia ser romântico.” (p .252)Campbell . Colin. (2001) . A ét ica romântica e o espír i to do consumismo moderno.Rio de Janeiro. Rocco. Para nosso propósi to, sem, no entanto, ter a pretensão dese reduzir à dif iculdade apontada por Campbell , i remos adotá- lo , a grosso modo,como uma at i tude, um comportamento que desper ta o sent imental ismo exacerbado,
11
Entretanto, os dirigentes esportivos brasileiros perceberam que o
futebol, ao ganhar espaço social, fomentava novos mecanismos de
sustentabilidade. Não havia mais espaço apenas para aquele futebol de
refinamento e confraternização da classe endinheirada. O prestígio dos seus
clubes só seria possível através das vitórias. Essa necessidade de vitória
levou rapidamente à busca da competência, em que a valorização do
jogador passou a ser condicionada à sua capacidade de promover o
entretenimento. Nesta perspectiva, tornava-se necessário abrir as portas dos
clubes (mesmo que apenas do campo de futebol) para indivíduos de outras
classes, sem o rigoroso crivo social apregoado pelos associados. 19
Como veremos no desenvolvimento deste estudo, ainda na fase de
consolidação do futebol no Brasil (entre o final da década de 10 e década de
20 do século XX) os ideais amadores passaram a ser questionados.20 O
desenvolvimento do esporte e do futebol, aqui como em qualquer lugar, não
poderia se manter amador diante do processo de popularização e
consolidação em uma sociedade que tentava se estabelecer como
capitalista.
o individual ismo. Modo de ser do indivíduo que é muito sonhador, sent imental ,emotivo etc . Ati tude do indivíduo que é desprovido de prudência prát ica, de sensode real idade, aquele que se deixa guiar pela imaginação, se entrega ao devaneiode forma i r racional .
19 - Isso foi uma prát ica usual u t i l izada pelos pr incipais c lubes na época. Algunsjogadores de camadas populares almejavam jogar nos grandes clubes e , por isso,admit iam que seus v ínculos in icialmente se dessem apenas no espaço do jogo.Outra estratégia também ut i l izada fo i a cr iação de uma categoria denominada desócio-jogador. Uma espécie de autor ização para que es tes jogadores t ivessemalguma “l iberdade” nas dependências dos clubes (Santos, 1981).
20 - Santos (1981) argumenta que esse confl i to também ter ia ocorr ido nos rádios,ao trocar o s is tema de sócios pelos anúncios .
12
Desde os anos finais da década de 20 até o ano de 1933,
permanecia o debate acerca do perfil esportivo que deveria ser seguido no
Brasil. Interessante observar que, embora esta tensão pudesse ser fruto da
pressão das classes populares, era travada pelos membros da elite. De um
lado, os defensores do profissionalismo que acreditavam no
desenvolvimento do esporte e da ascendente indústria do entretenimento, e
do outro, os defensores do amadorismo que desejavam manter os ideais
aristocráticos e a adequada sociabilidade entre as “boas famílias”.
Naturalmente que os amadoristas saíram derrotados, pois a lógica do
desenvolvimento da indústria do futebol não deixava espaço para a
manutenção de todos os ideais. 21
Todavia, os argumentos dos pro-profissionalistas não excluíam os
ideais civilizatórios do esporte e também não perdiam de vista o temor que
as relações explícitas em termos financeiros poderiam provocar no
desenvolvimento do futebol em geral, bem como em seus respectivos
clubes. Tanto temiam, que algumas limitações desenvolvidas ainda no
período do amadorismo foram mantidas (como, por exemplo, ter sede social
e campo de futebol, arcar com jóia de admissão22, o jogador deveria saber
21 - Caldas (1990) relata que, a par t ir da implantação do prof iss ionalismo, osquadros amadores não conseguiam mais manter a a tenção dos torcedores quecompareciam aos campos para ver os quadros profiss ionais jogarem. Pagavamingressos para ver a equipe principal formada pelos prof iss ionais . Os jogos entreamadores eram apenas uma atração prel iminar aos jogos dos profiss ionais . Caldas,Waldenyr . (1990). O pontapé in ic ial – memória do futebol brasi le iro . São Paulo .Ibrasa.
Um cronista espor t ivo refer iu a ta is jogos como “amansa sol” , uma vez que osprof iss ionais somente jogavam ao f inal da tarde, depois que a temperaturaest ivesse branda e o efei to do sol já não provocasse tanto desgaste . (Revista Fon-fon , 03 de ago/1933, p .7)
22 - É um valor que o in teressado em se tornar sócio de um clube dever ia pagar .Hoje esta taxa é denominada de cota . Cada clube, em função da sua estru tura e
13
ler e escrever.) 23 e, posteriormente, ao processo de profissionalização
outras foram implantadas, tais como: valores máximos dos salários, tempo
mínimo de permanência no clube e exclusão da substituição aos jogadores
que iniciassem os jogos. Tratava-se de medidas que assegurassem a
ordem, evitando as querelas entre os clubes e os jogadores contratados. O
mercado profissional era regulado.
. . .
Hirschman (1992)24, ao analisar algumas transformações sociais
marcantes na história recente da humanidade em torno da cidadania 25,
propõe três teses para argumentar acerca da tensão provocadas por
algumas destas transformações: da perversidade, da futilidade e da ameaça.
Seus pressupostos são de que estas teses são utilizadas na retórica dos
conservadores e reacionários e também dos chamados liberais e
progressistas. Tais teses, em geral, são utilizadas no balizamento das
argumentações, mas não necessariamente as três seriam utilizadas em
todas as retóricas.
grupo social a que se dest ina tem um valor específ ico. É uma estratégia decontrole sobre o perf i l do associado.
23 - Veremos esses mecanismos de controle na Par te 2 no Capí tu lo IV.Na Inglaterra fo i acei to o prof iss ional ismo, mas aos jogadores prof iss ionais fo ivetada a par t ic ipação em qualquer comitê , bem como comparecerem às reuniõesda associação. Lever , Janet . (1983). A loucura do futebol . Rio de Janeiro . RecordS.A.
24 - Hirschman, Albert . O. (2000). A retór ica da in transigência . São Paulo.Companhia das le tras .
25 - Como exemplo para suas argumentações, Hirschman trabalhou com trêsmarcos sócio-pol í t icos: Revolução francesa (caracter izado pela ascensão das
14
Na tese da perversidade, ou do efeito perverso, o autor argumenta
que “qualquer ação proposital para melhorar um aspecto da ordem
econômica, social ou política só serve para exacerbar a situação que se
deseja remediar.” (p.15) Segundo Hirschman, a tentativa de conduzir a
sociedade à determinada direção fará que ela se mova a uma direção
contrária. Neste ponto de vista, a mudança proposta poderia provocar um
efeito perverso à aquele esperado.
Quanto à tese da futilidade, aponta Hirschman que os argumentos
utilizados são colocados na perspectiva da nulidade da ação esperada:
“sustenta que as tentativas de transformações social serão infrutíferas, que
simplesmente não conseguiram deixar sua marca.” (p.15) A tentativa de
mudança, neste caso, não teria o seu propósito satisfeito, pois seriam
mudanças de fachada, uma espécie de maquiagem ilusória, visto que as
estruturas profundas da sociedade permaneceriam intactas.
Finalmente, na tese da ameaça, Hirschman esclarece que o
argumento utilizado pelos atores é o do perigo eminente: “o custo da reforma
ou mudança proposta é alto demais, pois coloca em perigo outra preciosa
realização anterior.” (p.16) Nesta retórica, os atores argumentam que a
mudança proposta, mesmo que seja desejável em si, provocaria custos ou
seqüela intolerável. Portanto, mesmo que haja expectativa de mudança
satisfatória, deveria ponderar se tais mudanças se justificam em função do
custo de sua implantação. Hirschman trabalha no plano das idéias. Ele
apresentou as mudanças sociais e os argumentos utilizados pelos
l iberdades individuais) , Sufrágio universal ( relacionado à ascensão dademocracia) e Welfare State (Ascensão dos d ire i tos c iv is) .
15
reformadores e contrários a tais transformações. Sua intenção foi mapear a
intransigência praticada tanto por reacionários quanto pelos progressistas.
Diante deste modelo de Hirschman (1992), pretendemos
demonstrar que estas três teses por ele elaboradas também estiveram
presentes na retórica dos dirigentes do futebol brasileiro durante os anos
que antecederam o processo de profissionalização, e ainda permanecem,
em alguma medida, nos argumentos atuais. Veremos na Parte 2 deste
estudo que os pressupostos utilizados tanto pelos amadoristas, quanto pelos
pro-profissionalistas, são dotados de argumentos da intransigência acerca
do efeito perverso, de futilidade e da ameaça. Nas narrativas atuais
relacionadas às mudanças das leis esportivas (Lei do passe, Estatuto do
torcedor, responsabilidade fiscal dos clubes), também percebe-se que tais
argumentos surgem nos discursos tanto dos fomentadores das mudanças,
quanto daqueles que as combatem.26
Segundo Hirschman (1992), “a perturbadora experiência de ver-se
excluído, não só das opiniões, mas de toda a experiência de vida de grande
número dos nossos contemporâneos, é, com efeito, típica das sociedades
democráticas modernas.” (p.9) Possivelmente este sentimento quanto à
possibilidade de exclusão do espaço de jogo em detrimento à competência
dos jogadores remunerados tenha provocado descontentamento dos
jogadores da elite, aqueles que praticavam o esporte como lazer e/ou status
social, sem o interesse econômico sobre a atividade. Sentimentos similares
26 - Vejamos que as recentes mudanças nas le is esport ivas bras i le iras sãofreqüentemente quest ionadas. Alguns dir igentes espor t ivos combatem
16
também poderiam ter sido originados pelos dirigentes, para os quais as
mudanças oriundas com a chegada do regime profissional poderiam
provocar, principalmente, a perda do poder. Hirschman nos faz lembrar que
a própria democracia foi vista com suspeição no século XIX e no início do
século XX.
. . .
Os termos amador e profissional no espaço esportivo permitem ser
utilizados tanto para se qualificar positiva e negativamente determinados
vínculos do atleta. São termos polissêmicos e versáteis. Ser amador ou
profissional tornou-se valor que pode ser empregado conforme o contexto.
Todavia, a utilização dos referidos termos como critério para conceituar o
vínculo do jogador geralmente apresenta contradições.
Várias questões surgiram no decorrer do estudo. Qual é o
significado e valor atribuído ao termo amador na história do futebol
brasileiro? Quais implicações e dilemas o amadorismo e seus valores
criaram no desenvolvimento do futebol antes e depois deste profissionalizar-
se? Uma vez profissionalizado, como manter a emoção se o interesse
econômico passou a ser admitido? O que existe em comum nesse longo
processo de tensão nas narrativas produzidas pelo futebol brasileiro, que ora
valoriza o amadorismo, ora o desvaloriza, ora valoriza o profissionalismo, ora
o desvaloriza?
ferrenhamente os argumentos daqueles que tentam implantar novas d iretr izes parao espor te brasi le iro.
17
As narrativas acerca do profissionalismo esportivo e suas
transformações em espetáculo popular parecem admitir (ou compactuar,
mesmo que de forma pouco explícita) parte dos apontamentos realizados
por Santo Agostinho, quando, no início da Era Cristã, distinguia os três
principais pecados aos quais o homem estava sujeito: ânsia por dinheiro,
ânsia por bens materiais e o desejo sexual, conforme apontou Hirschman
(2000:18). Observemos que a transformação da estrutura esportiva para
concepções mais modernas, ao abandonar o amadorismo (como princípio
da ética e da moral) e encampar o profissionalismo, pareceu aproximar-se
deste dois primeiros pecados discriminados por Santo Agostinho. O desejo
de ostentação de bens matérias e a ânsia por dinheiro tornaram-se também
os referenciais das conquistas a serem almejadas pelos atletas, desde muito
cedo, onde já não se contentavam apenas com os prêmios simbólicos
(Mandell, 1986) 27 ou honoríficos (Veblen, 1974), como outrora. Essa lógica
foi utilizada como argumento contrário à profissionalização do futebol.
De acordo com Hirschman (2000), Santo Agostinho agia com
imparcialidade no julgamento destas três paixões humanas. Todavia, admitia
atenuante, quando alguma delas combinava com “um forte anseio por louvor
e glória”, da forma que agiam os primeiros romanos, “os quais
demonstravam amor babilônico por sua pátria terrestre, e que substituíram o
27 - Mandel l argumenta que, embora os at le tas vencedores em Olímpia e outrosfest ivais na Grécia , a inda nos Jogos Gregos Antigos, recebessem as dis t inçõessimbólicas (coroas de louro, c in tas e ramas de ol iva) , já buscavam sercontemplados com os prêmios em espécie e em metal concedidos pelas c idades eseus tr iunfadores . Prat icamente nenhum at le ta demonstrava interesse em compet irem eventos dotados exclusivamente por prêmios s imbólicos. (p .67/70) . Mandell ,Richard . D. (1986). Histor ia cul tural del depor te . Barcelona. Ediciones Bel laterra
18
desejo de riqueza e muitos outros vícios, por esse seu único vício: o anseio
pelo louvor,” (p.18)
“Santo Agostinho concebe a possibilidade de um vício exercer aação refreadora sobre outro. De qualquer maneira, a suaaprovação da busca da glória, ainda que limitada, abriu umabrecha que viria a ser aprofundada para além do que seusensinamentos autorizavam, pelos representantes do idealcavalheiresco e aristocrático; este transformou a busca da honrae glória no critério de avaliação da virtude e grandeza do homem.(...) O amor da glória, em contraste com a busca exclusivamenteprivada de riquezas, podia ter um valor social compensador.”(p.18)
Alguns historiadores, tais como Mandell (1986) e Diem (1966)28,
apontam que os jogos gregos representavam uma homenagem das cidades
e das famílias aos seus deuses e divindades como forma de agradecimento.
Eram cerimoniais sagrados. As competições se davam através da
confrontação de alguns indivíduos que fossem capazes de demonstrar
capacidade de superação, contudo, essa superação individual do atleta
recaia sobre valores coletivos, representados pela cidade e pela família. A
honra e a glória individual eram também a honra e a glória da sua
comunidade. Vejamos como esta situação recebeu novos valores na
atualidade; o jogador continua representando coletividades, porém uma
coletividade com contornos mais extensos. Passa a representar valores
coletivos em diferentes esferas sociais. Se antes ele representava núcleos
menores (famílias e cidades), os atletas atuais são representações de tribos
28 - Diem, Carl . (1966) . Histor ia de los deportes . Barcelona. Luis de Caralt . Vol I
19
mais numerosas.29 Essas tribos, no sentido de Mafessoli (1987),30 se
formaram de contorno bastante distinto dos princípios que sedimentaram as
coletividades sociais na antigüidade. Todavia, se a busca de honra no
esporte amador assemelhava-se ao ideal agostiniano, no esporte
profissional a honra não está associada somente aos feitos e às vitórias;
está ligada também ao valor de mercado, ao acúmulo de capitais seja pelos
jogadores ou pelos clubes. Geralmente, as vitórias e feitos correlacionam-se
com o valor da acumulação.
As transformações dos propósitos das competições originaram
novos valores, diferentes daqueles que caracterizavam os jogos em forma
de passatempo de outrora, bem como os rituais greco-romanos.31 A cultura
espiritual e de homenagem às divindades parece não fazer mais parte dos
rituais esportivos modernos, pelo menos de forma explícita, como apontou
29 - Os dois c lubes considerados de maiores torcidas no Brasi l (Flamengo eCorinthians) são denominados de nações. No s i te de busca google, existem 821home pages que fazem alusão à nação Rubro-Negra, a lém de dois recentes l ivroscom seus t í tulos relacionados a esta denominação: Alves, Ivan. (1989). Umanação chamada Flamengo. Rio de Janeiro. Edi tora Europa; e , Coutinho, Ediberto.(1990) . Nação Rubro Negra. Rio de Janeiro. Record.
No google, também podem ser encontrados 431 home-pages que se referem ànação Corinthiana. h t tp : / /www.google .com.br
30 - Maffesol i (1987) argumenta que exis te uma rede invis ível de l igação paraaf in idades de gostos, sent imentos e necessidades . O sujei to es tá l igado aos outrospor alguns sent imentos colet ivos, o que lhe faz compart i lhar nessa comunidade deforma pecul iar às ações colet ivas de cunho universal , conforme ocorre com ostorcedores das agremiações espor t ivas e tantos outros movimentos socia is .Maffesol i denominou de t r ibos essa comunidade formada por estes indivíduos degosto e af in idades comuns. Maffesol i , Michel . (1987). O tempo das tr ibos . Odecl ín io da individual idade na sociedade de massa. Rio de Janeiro. Forense.
31 - Segundo Yalour is (2004), não havia fest ival rel ig ioso que não incorporasse ocul to dos deuses a celebração dos jogos. “ . . . As c idades e os c idadãos competiamentre s i para ver que demonstrar ia de modo mais eloqüente, o seu respei to paracom os Deuses de Olímpia. . . .” Yalouris , Nicolaos. (2004) . Yalouris , Nicolaos(2004) . In : Tsirakis , Stykianos (Org.) Os jogos Olímpicos na Grécia Antiga. SãoPaulo. Odysseus Edi tora .
20
Mandell e Yalouris. A competição passou a se estabelecer sobre novos
sentimentos, uma paixão que a princípio parece não ter relação direta com
os jogos antigos.32 Entretanto, os aspectos em que se desenvolvem essas
paixões por um clube parecem ainda pouco claros em termos sociológicos.
Na sociedade brasileira, o ganhar dinheiro no futebol, ainda hoje,
apesar de já terem se passado sete décadas da regulamentação
profissional, em algumas situações parece não ser legítimo, principalmente
quando se ganha muito dinheiro. Portanto, o que parece gerar polêmica,
causar revoltas, não é o dinheiro que se ganha para a sobrevivência ou para
a boa vida, mas o excesso de capital envolvido nas negociações.33
Antes da profissionalização também existia uma inquietude devida
aos valores pagos a título de auxílio para o transporte, conforme denunciou
o jogador Russinho na década de 1930. O próprio Coubertin teria colocado
em dúvida se haveria a possibilidade de o atleta ser restituído de suas
despesas, ainda nos primeiros Jogos Olímpicos Modernos.34
32 - “Os helênicos ant igos acreditavam que a vi tór ia em Olímpia era devida aofavor dos deuses. O vencedor era o seu elei to , a quem eles ajudavam a conquistaro premio legendár io e cujo nome permanecia nos lábios de todos os homens atémesmo depois que o f io de sua exis tência fosse cortado.” (p .150) Pentázou, M.(2004) . Honras confer idas aos vencedores. In : Tsi rakis , Stykianos. (Org.) . OsJogos Olímpicos na Grécia Antiga . São Paulo. Odysseus Editora .
33 - Entretanto, apenas 3,57% dos jogadores recebem mais de 20 salár ios mínimos(SM) (O Globo, 25 de mai/2003, p .50) , num universo de 11 mil jogadoresfederados em 2003 (Home page da CBF, acessado em 10/05/2003). (1 SM, 240reais , corresponde aproximadamente a 80 dólares) .
34 - Relatou Couber t in que, na tentat iva de se def inir um concei to sobre amador ,em 1909 foi enviado a todas as federações dos países in tegrantes do COI umformulár io constando as seguintes questões:
“1 - O prof iss ional em um despor to poderia ser amador noutro? ; 2 - O professorpoder ia ser amador nos despor tos que não ensinava? ; 3 - O amador que se tornouprof iss ional não poder ia recuperar a sua qual idade de amador? Admite exceções aesta regra? Quais? ; 4 - Deveria se admit ir o pagamento de compensaçõeseconômicas aos amadores pelos gastos de transporte e de hotel? Até que l imite? ; e5 - O at le ta dever ia perder a sua qual idade de amador pelo s imples contacto com
21
Parece ainda que, no caso do futebol brasileiro, o fato de se ter
vinculado, ainda nas primeiras décadas do séc. XX, os valores pagos aos
jogadores, a título de gratificações, 35 com as simbologias do ‘jogo do bicho’
mostra a predisposição de macular tais ganhos. Paradoxalmente, a
ilegalidade do ‘jogo do bicho’ na sociedade brasileira apresenta-se de forma
contraditória, pois é legitimado pelo interesse popular na aposta, porém
mantém o ‘ranço’ de um produto da contravenção. O combate a este crime,
como é considerado pelas leis e autoridades, não apresenta eficiência, e a
sociedade convive pacificamente com os inúmeros anotadores36 que são
encontrados em praticamente todos os bairros da cidade do Rio de Janeiro e
outros Estados. Portanto, o futebol, ao vincular-se a esta contravenção37,
parece tornar-se impuro, questionado, colocando em evidência os valores
profanos.
. . .
um prof iss ional?” (p.119). Couber t in , Pierre de. (1997). Memorias o l ímpicas .España. Zimmermann Asociados SL.
35 - Bicho refere-se a um incentivo f inanceiro extra, com o qual os c lubesgrat if icam seus jogadores por vi tór ias ou resul tados necessár ios . Às vezes, umempate ou uma derrota por contagem mínima pode ser suf ic iente para umacolocação na tabela de classif icação. Também é um expediente u t i l izado quandose pretende incent ivar os jogadores de outra equipe, quando se está em jogo umresul tado que pode favorecer uma outra equipe. Ver sobre a or igem do termo em:Michel Herchmann e Kátia Lerner (1993). Lance de Sor te . O futebol e o jogo dobicho na Bel le Époque Car ioca. Rio de Janeiro . Diador im Ed.
36 - Nome que se dá ao encarregado de preencher a papeleta com a opinião e ovalor das apostas.
37 - Ver : Herschmann, Micael & Lerner , Kátia . (1993).
22
Depois de implantado o regime profissional, a crítica passou a se
estabelecer sob outros princípios, entretanto, quase sempre contrapondo o
interesse aos vínculos de pertencimento. A tensão provocada pelo interesse
financeiro, no período da implantação da profissionalização do futebol, ainda
permanece atual da mesma forma quando era empregado o amadorismo
marrom.38 Os valores morais e éticos, portanto, amadores, continuam sendo
focos das narrativas jornalísticas, mediadores entre o compromisso
profissional e os vínculos afetivos. Essas tensões serão observadas na Parte
4 deste estudo.
Tal engenharia, no plano argumentativo pode ser retirada da análise
de Hirschman (2000). Hirschman atribui a Montesquieu a idéia de uma ‘mão
invisível’; uma força que faz da busca das satisfações e das paixões
individuais uma canalização de força, mesmo que inconsciente para o bem
coletivo. (p.18)
Entretanto, as paixões foram questionadas por outros filósofos e
escritores religiosos que a combatiam, acreditando tratar-se de ocorrências
pecaminosas. As paixões heróicas passaram a ser apontadas de forma
distintas, tendo referências contraditórias em relação ao engrandecimento do
homem. Thomas Hobbes a colocava com simples autopreservação; La
Rochefoucauld a relacionava ao amor próprio; Pascal traduzia em vaidade e
fuga desesperada do verdadeiro autoconhecimento; e Racine descrevia as
paixões heróicas com degradantes (Hirschman, 2000 p.19). No século XVII,
coube ao Estado tentar manter o controle das manifestações e as mais
38 - Também denominado de amadorismo encober to , amadorismo cor-de-rosa,fa lso-amadorismo, pseudo-amadorismo, amadorismo canalha etc .
23
perigosas conseqüências das paixões, todavia, as repressões utilizadas
parecem não terem sido satisfatórias como aponta Hirschman (p.23).
A solução passou a ser mobilização das paixões, em vez da sua
repressão. Para Hirschman, o filósofo político Giambattista Vico39, no século
XVIII, era um dos preconizadores da transformação das paixões destrutivas
em algo construtivo, “as paixões dos homens inteiramente ocupados na
busca de sua vantagem privada são transformadas em uma ordem civil que
permitem aos homens viver em sociedades humanas.” (Vico, citado por
Hirschmam, 2000: 24). Observemos que Norbert Elias e Eric Dunning (1992)
sinalizam com a mesma lógica do deslocamento ao discorrerem sobre as
tensões no campo esportivo. Segundo Elias e Dunning, o esporte na
condição de lazer tem função de canalizar as tensões, isto é, o controle da
excitação. A excitação que se busca no espaço de lazer é considerada, de
certo modo, singular pelos autores. “Trata-se, em geral, de uma excitação
agradável. Embora possua algumas características básicas em comum com
a excitação que as pessoas experimentam em situações críticas sérias,
revela qualidades específicas.” (p.101)
Como manter os ideais educativos do esporte, preconizados pelo
ethos amador, na lógica do mercado onde a vitória se correlaciona com o
desenvolvimento do clube e com o acúmulo de capital? Qual seria o
contrapeso nesta nova dinâmica para mediar lógicas que à primeira vista
parecem contraditórias?
39 - Seu nome oficial era Giovanni Bat t is ta Vico.
24
O discurso do amadorismo é, de certa forma, a semântica
encontrada nas narrativas jornalísticas para falar de amor, paixão e
agressividade que o esporte solicita de seus protagonistas e expectadores.
Parece que, apesar da profissionalização é importante manter ‘vivas’ as
marcas que enfatizem o compromisso amador, como amor, paixão, raça,
onde o esporte seja um espaço capacitado para a mobilização de afetos.
Como combinar o “douceur” papel do capitalismo, do acúmulo de capital, em
um local que representa o esporte como mimese da guerra e espaço para
distinção da honra e da glória?
Os ideais românticos, estabelecidos por intermédio dos sonhos e
dos devaneios dos torcedores, parecem ser propulsores da ‘chama’ que
fazem do futebol este espaço de ancoragem de sentimentos paradoxais.
Como forma de passatempo, o futebol constituía-se em um espaço de festa
e confraternização que deveria ocorrer através da emulação desvinculada
dos interesses financeiros. Alguns cientistas sociais, cronistas, jornalistas e
torcedores, ainda hoje, apesar de todas as movimentações financeiras do
mundo esportivo, preconizam que o esporte deveria representar um espaço
sagrado, em que o dinheiro não deveria gerir os sentimentos, como lamenta,
por exemplo, o romântico Eduardo Galeano (1995), em seu livro El fútbol a
sol y sombra.40
40 - Galeano, Eduardo. (1995). El fú tbol a sol y sombra. Buenos Aires . Catálogos.
Galeano em entrevis ta ao jornal o Globo em 2003 reaf irma que “o fu tebolprof iss ional , o fu tebol como negócio , parece cada vez mais uma piada de maugosto”, cr i t icando o fato de a FIFA ter conduzido Ricardo Texeira ao cargo dedirei tor da just iça e do jogo l impo. Todavia, apesar de clamar por um esportesagrado, fora do espor te-negócio, admite que o futebol cont inua sendo o espor temais apaixonante, af irmando que até agora não se inventou nada digno decomparação. Casto , Lúcio. (2003, 6 de ju lho) . “Nada se compara ao fu tebol” –Entrevis ta com Eduardo Galeano. In: O Globo. Caderno Esporte , p 54.
25
Entretanto, outros acadêmicos acreditam que, apesar da
comercialização ‘dita’ exacerbada, ainda encontra espaço para o
romantismo e para manifestações sagradas, conforme aponta Helal
(1997:39). O espetáculo esportivo, apesar da desconfiança de que alguns
resultados possam ser fabricados, 41 ainda consegue se sustentar com
emoção, paixão e imaginação. O torcedor, mesmo aquele de clubes de
pequena expressão, acreditam (ou imaginam) que a vitória será possível.
Observemos que os devaneios são apropriados para sustentar o vínculo do
torcedor.
Pela sua própria dinâmica o esporte requer agressividade, paixão,
dedicação e amor à causa. É uma guerra simbólica onde tais valores devem
ser realçados. Ao se profissionalizar, estes sentimentos têm que ser
mantidos, mas a eles é agregado o comércio, uma racionalidade econômica.
Os interesses econômicos devem ser contrapesados pelos sentimentos de
amor ao clube, a comunidade. Portanto, cabe ao atleta agir centrado nesta
racionalidade, sem, no entanto, perder ou ignorar a imagem do vínculo
afetivo. Vejamos que os ideais amadores funcionam como uma espécie de
mecanismo regulador do comportamento que o profissional deverá
apresentar em suas ações.
Nossa principal hipótese é que, na narrativa esportiva brasileira,
seja dos dirigentes, torcedores, jogadores e da mídia, ocorrem
41 - Um exemplo recente desta desconf iança sobre a fabr icação de resul tados fo i af inal da Copa do Mundo de 1998, realizada na França, quando alguns cronis tas ,jornal is tas e torcedores suspei tavam (ou colocavam em dúvidas) que a v i tór ia daseleção francesa sobre a brasi le ira na f inal ter ia s ido favorecida por alguns
26
deslocamentos e fusões entre o discurso romântico, cifrado pelos ideais
amadores, e econômico, na perspectiva do ethos profissional.
Este estudo tem como objetivo realizar uma análise do discurso
circulante acerca dos dilemas entre o amadorismo e o profissionalismo no
seio do futebol, ao longo do seu desenvolvimento na sociedade brasileira.
Optamos por um “olhar etnográfico” dos conteúdos jornalísticos relacionados
ao futebol, prioritariamente na imprensa carioca.
O percurso analítico será o seguinte: 1) analisar a construção do
conceito de amador no seio do esporte brasileiro, por intermédio das leis
federais, bem como no seio do movimento esportivo internacional,
especificamente relacionado ao Comitê Olímpico Internacional - COI; 2)
analisar o período de profissionalização do futebol brasileiro, a transição
entre a fase amadora e profissional, sob as três teses propostas por
Hirschman: perversidade, futilidade e ameaça. Também trabalharemos com
um quarto argumento, que freqüentemente é utilizado na retórica dos atores
sociais, o romantismo; e 3) demonstrar que as narrativas atuais do futebol
ainda apresentam marcas do discurso amador.
O nosso texto terá a seguinte estruturação:
Na Parte 1 (O amadorismo e o profissionalismo no esporte:
Mapeando os conceitos)42 procuramos observar como os conceitos foram
jogadores e comissão técnica. Essa imagem de desconfiança permanece namemória social , quando a convulsão do Ronaldo Nazár io surge no embate .
42 - Sal les , José Geraldo do C & Soares, Antonio J . (2002) . Evolução da concepçãodo amadorismo no Movimento Olímpico Internacional: uma aproximaçãoconcei tual . In : Márcio Turini & Lamart ine P. Dacosta . (Orgs . ) . Coletânea detextos em Estudos Olímpicos. Vol 2 . Rio de Janeiro. Edi tora Gama Fi lho. A par t irdas cr i t icas e sugestões que recebemos no Fórum Olímpico 2002, buscamos re-processar este texto , acrescentando alguns argumentos que não estavam
27
apropriados ao longo do tempo, visitando a literatura nacional e
internacional. No capítulo I – A aproximação dos conceitos, realizamos uma
caminhada por enciclopédias e obras nacionais e internacionais onde os
termos começavam a ser utilizados e fundamentados. No capítulo II – O
amadorismo nos Jogos Olímpicos, procuramos entender como o termo foi
discutido e conceituado no seio deste movimento internacional.
Nossas apreciações começaram desde os Jogos Olímpicos Antigos.
Entretanto, estamos cientes de que o conceito de amador ainda não existia
naquele período, embora os comportamentos descritos de alguns atletas
possam se adequar aos princípios que mais tarde seriam considerados
amadores. Os autores de algumas destas obras que consultamos parecem
ter ignorado a temporalidade quanto à utilização deste conceito, referindo-se
a amadorismo e profissionalismo no esporte grego. Possivelmente seus
apontamentos estavam referiam-se a condutas e atitudes dos atletas
naquele tempo, a partir dos conceitos do século XIX.
Os jogos modernos passaram a sofrer transformações significativas.
Entretanto, as mais expressivas foram: o interesse da mídia que,
conseqüentemente, fomentou também o interesse de algumas das mais
conceituadas e ricas empresas multinacionais e os recordes (a instauração
de limites a serem atingidos como referência de competência).
Na Parte 2 (A profissionalização do futebol), buscamos
compreender o processo da profissionalização do futebol na Inglaterra e sua
contemplados no texto orig inal . Este estudo foi apresentado no Fórum Olímpico2002 – Rio de Janeiro. 25 a 28 de ju lho.
28
tardia aceitação no Brasil. Em alguns países esse processo ocorreu ainda
nos anos finais do século XIX.
Inicialmente, no capítulo III (O processo de profissionalização do
futebol na Inglaterra) realizamos uma incursão pelo profissionalismo inglês,
por acreditarmos que as modificações na estrutura geral da modalidade em
diversas nações tenham se dado com forte influência dos ingleses.
No capítulo IV (A rápida difusão do futebol – Uma volta pela história
do futebol brasileiro através do Rio de Janeiro), analisamos a trajetória da
implantação e sedimentação do futebol na cultura brasileira, onde
realizaremos uma contextualização partindo das querelas no Estado do Rio
de Janeiro, que naquele momento era a Capital Federal, 43 onde as
discussões tomavam forma.
No capítulo V (A tensão inicial do processo de profissionalização do
futebol brasileiro), observamos os embates que se davam entre os clubes,
federações e dirigentes sobre a expectativa gerada pela possibilidade de
adoção do profissionalismo.
No capítulo VI (Resgate e reestruturação do futebol brasileiro: o
amadorismo em crise), analisaremos o futebol carioca nos anos 20, onde
abordaremos outros três episódios: Na seção 6.1 - (A vitória do Clube de
Regatas Vasco da Gama em 1923 e a cisão na METRO), narraremos a
vitória do Vasco da Gama, no campeonato estadual de 1923, que ocasionou
uma ruptura na Liga Metropolitana de Esportes Terrestres - METRO entre os
principais clubes naquela época; Na seção 6.2 - (A fundação da AMEA – A
43 - O Rio de Janeiro per tencia ao ext into Estado da Guanabara .
29
busca do controle planejada pelos grandes clubes), observaremos a cisão
dos clubes e a fundação da Associação Metropolitana de Esportes Athléticos
- AMEA; e na seção 6.3 - (As Leis de inscrições e de estágios implantadas
pela AMEA), a intensificação do discurso anti-profissional na mídia carioca.
No capítulo VII (Russinho – Uma entrevista provocadora),
analisaremos as declarações contundentes e provocadoras do jogador do
Vasco da Gama “Russinho”, em entrevista ao jornal ‘O Globo’ nos primórdios
dos anos 30, período em que se preparavam a consolidação e o
reconhecimento do profissionalismo no futebol brasileiro. Russinho afirmava
naquele tempo que o amadorismo era uma farsa e que os jogadores já eram
profissionais da bola, ainda que marginalizados pelo fato de ter no esporte
sua fonte de renda e sustento.
No capítulo VIII (A tensão dos anos finais da década de 20 e os
anos iniciais da década de 30 – o Jornal do Fluminense Football Club
preparando o terreno para o profissionalismo), presenciamos como o veículo
informativo do clube tricolor tentava construir o terreno para a implantação
do profissionalismo, chamando a atenção dos seus leitores para as mazelas
que vinham ocorrendo no futebol carioca. Entretanto, observemos que o
próprio jornal dava voz aos descontentes com a possibilidade de mudança
do regime regente do futebol carioca.
Finalmente no capítulo IX (O profissionalismo do futebol brasileiro),
apresentamos os argumentos que foram utilizados pelas diferentes frentes
para justificar e negar a implantação do regime profissional. Este capítulo foi
30
dividido em três sessões: 9.1 - (Argumentos favoráveis e contrários ao
profissionalismo até sua instauração); 9.2 - (A instauração do
profissionalismo); e 9.3 - (Argumentos após a instauração do regime
profissional) Na primeira, recortamos argumentos favoráveis e contrários ao
profissionalismo até o período de sua instauração. Na segunda sessão,
tratamos da instauração do profissionalismo e dos embates entre os
dirigentes. E, finalmente, na terceira sessão, observamos os argumentos dos
pró-profissionalistas e dos inconformados com a adoção do novo regime.
Os argumentos aqui apresentados foram retirados de fontes
primárias, jornais de época. Presenciamos também que o embate se dava
entre os jornais e seus diretores que se posicionavam e defendiam de forma
parcial seus pontos de vista.
Na Parte 3 (A legislação esportiva brasileira: amadorismo,
profissionalismo e o futebol), realizamos um levantamento nos textos
constitucionais desde as primeiras leis que abordavam a prática esportiva no
Estado Novo até as leis atuais.
Nos capítulos X, XI e XII, mapeamos os conceitos à luz dos textos-
leis, os quais correlacionam ou diferenciam os limites entre as condições, os
direitos e princípios do atleta amador e do atleta profissional, bem como das
instituições esportivas.
No capítulo XIII (A reversão do profissionalismo – Que historia é
essa?), trataremos da possibilidade de o jogador de futebol retornar à
condição de amador após ter se profissionalizado dentro dos termos das leis
trabalhistas. Cabe à Confederação Brasileira de Futebol permitir, ou revogar
31
a sua condição de profissional. Ou seja, o jogador pode retornar ao status
amador sobre uma concessão oficial.
No capítulo XIV (Considerações finais acerca dos termos amador e
profissional nas leis brasileiras), procuramos através de quadros apresentar
as especificações codificadas nos textos-leis, quanto ao status do atleta, tipo
de prática, formas de organizações e quais modalidades recebiam
tratamento específico ou especial.
Observamos que os legisladores não conseguiam estabelecer
parâmetros de diferenciamento com clareza e precisão, onde os textos
constantemente deixam margens a questionamentos e dúvidas constantes,
o que os tornavam (e em certa medida ainda os tornam) inoperantes para o
Estado diante das instituições esportivas. As primeiras leis objetivavam
colocar o estado à frente das manifestações esportivas, que até então
apresentavam um caráter essencialmente privado (Negreiros, 2002)44,
entretanto, os mecanismos utilizados nem sempre conseguiam na prática
realizar este controle.
Negreiros argumenta que a ingerência do Estado nas atividades
esportivas não ocorrera simplesmente por desejo da nova estrutura do poder
editada pela era Vargas, mas porque a própria sociedade entendia que essa
intervenção seria benéfica naquele momento.45
44 - Negreiros , Pl ín io Labriola (2002). Ber l im – 1936 e o corpo a serviço da nação:organizando e d iscipl inando o fu tebol . In : Marcio Turini & Lamart ine DaCosta .(Org.) . Coletânea de textos em Estudos Olímpicos. Vol 2 . Fórum Olímpico. Rio deJaneiro. Edi tora Gama Fi lho. 239-268p.
45 - Negreiros aponta que a ingerência do Estado no espor te tenha se dado apedido dos próprios d ir igentes espor t ivos e pela pressão de alguns setores(Entidades estudant is e mil i tares) , em função da par t ic ipação da representaçãobrasi le ira nos Jogos Olímpicos de Berl im em 1936. Após a implantação do
32
Na parte 4 (A permanência das narrativas amadoras no contexto
do futebol profissional), selecionamos argumentos que enfatizam as
marcas que caracterizam a dificuldade de estabelecer os limites entre o
comportamento amador e envolvimento profissional presentes nas narrativas
da mídia brasileira acerca do fenômeno esportivo, principalmente no futebol.
Focamos nossas análises na tentativa de entender como estes
conceitos se fundamentaram (e ainda fundamentam) em um discurso
carregado de ambigüidades, ou contradições, e são re-adaptados a cada
momento que objetiva discutir o compromisso dos personagens que
sustentam as narrativas esportivas.
Os capítulos ficaram assim constituídos:
No capítulo XV (Afonsinho – Uma voz inquietante ou um mito da
resistência?), analisaremos o episódio do jogador “Afonsinho”, ocorrido nos
finais dos anos 60 e início dos anos 70, quando insatisfeito com sua
condição no elenco do Botafogo, rebelou-se aos mandos dos cartolas e
conseguiu na justiça o seu passe livre, abrindo um precedente que marcaria
determinantemente as relações trabalhistas, a partir daquele instante, entre
os jogadores e seus clubes. Ao re-visitarmos este acontecimento, deparamo-
prof iss ional ismo no futebol, duas organizações tentavam se estabelecer comoórgão máximo na direção do futebol brasi le iro: a Confederação Brasi le ira deDespor tos (CBD) e a Federação Brasi le ira de Futebol (FBF). O Comitê OlímpicoInternacional somente reconhecer ia uma ent idade por país , o que provocou grandetranstorno no espor te nacional que pretendia representar o Brasi l naquele evento.Estra tegicamente era prudente para o Governo Vargas enviar uma delegaçãorepresentat iva para os jogos organizados pelos nazis tas . Como o impasse entreCBD e FBF não foi solucionado, coube a Vargas mediar e in terfer ia nasorganizações espor t ivas. (Negreiros , 2002)
33
nos com outros episódios marcantes daquele período glorioso do futebol
brasileiro, a conquista do tricampeonato mundial no México;
No capítulo XVI (Releitura do caso Bebeto – A transferência do
Flamengo para o Vasco da Gama), analisaremos o episódio da transferência
do jogador Bebeto, que, nos finais dos anos 80, deixou o Flamengo e se
transferiu para a equipe arqui-rival Vasco da Gama, gerando um embate de
elevada simbologia dentro do campo esportivo. Esta transferência
impulsionou várias narrativas acerca do comprometimento e do vínculo entre
o jogador e o clube. Tal acontecimento foi estudado por Helal e Coelho em
1995 no texto denominado Modernidade e tradição no futebol brasileiro: O
“caso Bebeto”.46
No capítulo XVII (David Fischel – Um dirigente modelo?),
observaremos as declarações do Sr. David Ficher, presidente do Fluminense
Football Club, sobre as novas perspectivas que demandam para o esporte
em tempo de crise financeira e a contratação de Romário para a temporada
do ano comemorativo do centenário do Fluminense.
No capítulo XVIII (Ronaldo Nazário – O homem de 100 milhões),
narraremos a rápida trajetória da vida esportiva do Ronaldinho e
principalmente a sua transferência da Internazionale de Milão para o clube
espanhol Real Madrid após a Copa do Mundo de 2002, que gerou a
discussão acerca do envolvimento profissional.
46 - Helal , Ronaldo & Coelho, Maria Claudia. (1995). Modernidade e tradição nofutebol brasi le iro: O “caso Bebeto” In : Pesquisa de Campo – Revista do Núcleode Sociologia do Futebol; UERJ/Depar tamento Cultural /SR-3 nº 2 (1995). 91-99p
34
PARTE 1
O AMADORISMO E O PROFISSIONALISMO NOESPORTE: MAPEANDO OS CONCEITOS 47
“Não gostamos que países comprem desportistase dêem a eles um passaporte sem umajustificativa social”.
(Jacques Rogge)48
Capítulo IA aproximação dos conceitos
Faremos uma revisão conceitual, na qual se busca diferenciar os
conceitos, bem como aproximá-los ao campo esportivo através da literatura
e das enciclopédias.
Durante algum período, o conceito de amador parecia estar
vinculado a uma relativa incompetência ou, ainda, à incapacidade de
desenvolver uma tarefa de forma brilhante, conforme aponta o Dictionnaire
47 - Os apontamentos prel iminares deste estudo foram publicados na Coletânea detexto em Estudos Olímpicos. Sal les , José Geraldo do Carmo & Soares, AntonioJorge G. (2002). Evolução da concepção do amadorismo no movimento ol ímpicointernacional : uma aproximação concei tual . In : Turini , Márcio & DaCosta ,Lamart ine P. (Orgs.) . Coletânea de textos em estudos ol ímpicos. Rio de Janeiro .UGF. Vol 2 . p .437-453.
48 - Jacques Rogge é presidente do COI. Tal s i tuação tem ocorr ido inclusive entrepaíses onde os vínculos raciais não apresentam descendências . (Jornal Lance, 8 deoutubro de 2003, p .2) .
35
de la langue francaise, em 186349, quando coloca: “Ser amador é ser um
homem de um talento medíocre” (p.132). Todavia, esta percepção parece ter
sido referência para outras interpretações com a mesma perspectiva. O
Dicionário Universal da língua Portuguesa (1972)50 define amador como
“Aquele que entende superficialmente de alguma coisa.” (p.264)
O conceito de amador surgiu fora do campo esportivo, inicialmente
relacionado à arte em geral, no século XIX. Tais definições, no entanto,
parecem que, inicialmente, não se aplicavam ao esporte, o que somente
veio ocorrer a partir da tensão da profissionalização do futebol em alguns
países europeus, tais como Inglaterra e Escócia.51 Por analogia, pode-se
imaginar que o crescimento esportivo e as tensões ocorridas no seio do
esporte mundial na virada do século XIX para o XX tenham impulsionado a
discussão acerca da conceituação. À frente, veremos como este conceito
encontrou dificuldades para ser fundamentado mesmo no Comitê Olímpico
Internacional, instituição que tentava garantir um distanciamento entre o
esporte amador e profissional.
Entretanto, na primeira década do século XX, o Standard dictionary
(1906)52 trazia uma definição que se aproxima dos conceitos encontrados
49 - Dict ionnnaire de la Langue Française (1863). Londres. Librair ie de L.Hachet te. Et Cie . “Cest um amateur , e’es t um homme d’um talentmedíocre”.(p.132)
50 - Dicionár io Universal da Língua Portuguesa (1972). Vol 1 A-B. São Paulo.Comp. Melhoramento.
51 - O profiss ional ismo do futebol inglês e escocês ocorreu nos anos de 1885 e1893, respect ivamente.
52 - Standard Dict ionary (1906). London. Librar ies Rose“ (1) Pract ic ing an ar t or occupat ion for the love of i t , but not as a profession; as ,an amateur sculptor ; (3) – In ath let ic spor ts , an ath lete who has not engaged incontests open to professional a th lete , or used any ath let ic ar t as a l ivel ihood. The
36
ainda hoje, a qual será transcrita na íntegra. Inicialmente, a definição aplica-
se às artes e, posteriormente, aborda a questão esportiva:
“1 – Praticar uma arte ou ocupação somente por amor, mas não éum profissional, é um escultor amador.3 – Em esportes atléticos, um atleta que não tem comprometidoem competir aberto ao profissional atleta, ou usado alguma arteatlética como um encapuzado. O termo varia em emprego, e éusualmente melhor definido na regulamentação das associaçõesatléticas, mas a definição é passível de trocas.” (p.63)
Em 1935, a The Columbia Encyclopedia já apresentava um conceito
de amador relacionado ao campo esportivo, que era admitido pela Amateur
Athetic Union dos Estados Unidos, estabelecendo que “um amador esportivo
é aquele que engaja no esporte somente para o prazer e benefícios físicos e
mentais, ou os benefícios sociais derivado dele.” (p.59) 53 Esta definição
parece oportuna, na medida em que teria surgido em um período próximo à
profissionalização do futebol brasileiro. Possivelmente, a profissionalização
do futebol no Brasil tenha sido estruturada admitindo preceitos e
conceituação desenvolvidos pelos ingleses.
Recentemente, presenciamos o embate acadêmico e federativo em
tentar estabelecer uma definição do termo, entretanto veremos, na seção
relacionada aos Jogos Olímpicos, que esta situação não foi resolvida.
Segundo Hobsbawn (1989)54, o conceito de amador, na era dos impérios,
term varies in usage, and is usual ly more specif ical ly def ined in the regulat ionsof a th le t ic associat ions, but the def ini t ion is l iable to change”. (p .63)
53 - “an amateur spor tsman is one who engages in sports solely for the p leasureand physical , mental , or socia l benef i ts he der ives there f rom.”
54 - Hobsbawn, Er ic. (1989) . A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz eTerra.
37
aplicava-se a “aquele que dedicasse, mais tempo na prática de um esporte
que um operário poderia dedicar, entendendo que o tempo livre/disponível
para a burguesia na época era maior, então era considerada amadora.”
(p.233-270)
Tubino et al (1997)55 conceituam amadorismo como ‘Esporte como
competição, mas com a finalidade de proporcionar prazer, lazer, saúde e
educação.” Segundo os autores, isto teria sido proposto para extinguir “a
imagem de competição em que as apostas de dinheiro, comuns naquela
época, deturpavam os objetivos mais elevados do esporte.” (p.12) Buscavam
os ingleses um esporte livre das perversidades que o acompanhavam no
final do século XIX, principalmente a partir do ressurgimento dos Jogos
Olímpicos. Pretendiam os ingleses fomentar um esporte com base nos
preceitos do fair play, capaz de ressaltar as virtudes dos homens. Desta
forma, o fair play surge como uma característica do esporte moderno56
55 - Tubino, Manoel . J . G. e t a l l i . (1997). A evolução do espor te . In: Educaçãopara o espor te . Telecurso 2000. São Paulo: Edi tora Globo S.A.
56 - Par lebas, Pierre (1998), conceitua o espor te moderno como uma “si tuaçãomotr iz de enfrentamento codif icado”, que se caracter iza pela “presença defederações, instância de dir igentes , regulamentos legí t imos, competiçõesconsagradas, disposi t ivos de s tatus, calendár ios, recompensas e sançõesfor temente elaboradas” (p.40) Parlebas, Pierre . (1988). Elementos de sociologiadel depor te . Junta de Andalucia - Malaga (Spain) .Para El ias (1990), a inst i tucional ização dos espor tes modernos da forma que oconhecemos, ter ia surgido na Inglaterra no séc. XVIII , como fruto da conformaçãosocial que vinha se processando naquela sociedade desde há muito tempo.Segundo Elias , isso foi ref lexo de um processo de pacif icação pol í t ica e socialque ocorr ia em diversos setores , chegando até aos jogos e passatempos. El ias ,Norber t (1990). O processo civ i l izador . Uma his tór ia de costumes. Rio de Janeiro.Jorge Zahar Edi tor Ltda.Si lva (2002), argumenta que os valores do espor te moderno, suasregulamentações, o concei to de fair p lay e de amadorismo ter iam surgidoamplamente embasados e e ivados de valores e regulamentações da igreja catól ica .Si lva, Leidina H. de O. (2002). Igreja Catól ica, a t iv idades corporais e esportes:superando preconcei tos . (Tese de doutorado) . Programa de Pós-Graduação emEducação Física - UGF. Rio de Janeiro.
38
diretamente vinculado ao amadorismo. Conforme Tubino et al (1997), esta
“expressão pode ser entendida como uma atitude elegante, ética da
aceitação e respeito às regras e aos códigos esportivos, em que os
competidores devem ver seus oponentes apenas como adversários
esportivos, mas não inimigos.” (p.12)
Ommo Grupe (1988)57, em ‘O desporto de alto nível (ainda) tem
futuro?’, entende o amadorismo como um compromisso particular, e não
uma obrigação atribuída ao atleta. Constitui um apelo à consciência
desportiva do indivíduo. De acordo Grupe, o ideal do amadorismo está
relacionado “com um tipo de autocompromisso e destinava-se a preservar
um caráter nobre e cavalheiresco pela renúncia a todas as variedades de
profissionalização da atividade atlética.” (p.11)
Eric Dunning (1992) define ethos amador como a ideologia
desportiva dominante na Grã-Bretanha moderna, berço do esporte moderno.
Coloca, ainda, que o componente principal deste ethos é o ideal da pratica
de desporto ‘por divertimento’.
“esta mobilização dos valores amadores, com acento tônico noprazer, como um ingrediente essencial do desporto surgiu numestágio inicial do desenvolvimento das modernas formas dedesporto num tempo em que, acima de tudo, o desportoprofissional, tal como conhecemos hoje dificilmente existia.”(p.313)
57 - Grupe, Ommo. (1988) . O despor to de al to n ível (ainda) tem futuro? Umatenta t iva de def inição. Lisboa. Codex.
39
Segundo Dunning, desde muito cedo surgiam críticas ao perfil
amador implantado pelos ingleses. Trollope apresentou, em 1868, sua crítica
aos rumos que o esporte estava conduzindo os homens.
“[Os desportos] estão a tornar-se excessivos e os homens que ospraticam permitiram que lhes fosse lembrado que o sucessovulgar não vale nada... Tudo isso provém do excesso deentusiasmo sobre o assunto, do desejo de alcançar comdemasiada perfeição um objetivo que, para ser agradável, deveriaser um prazer e não um negócio... [Esta] é a rocha contra a qualos nossos desportos podem talvez naufragar. Sempre que setorne pouco razoável nas suas despesas, arrogante nas suasexigências, imoral e egoísta nas suas tendências, ou, pior do quetudo, pouco limpo e desonesto no seu movimento desencadearácontra si a opinião pública, face à qual será incapaz de semanter.” (Trollope apud Dunning, 1992, p.313) (grifos nossos)
Nota-se que Trollope parecia estar envolto a sentimentos
românticos, que colocava o esporte como um valor moral, um privilégio para
aquele que o praticava.
Dunning argumenta que possivelmente, estas críticas tivessem
como alvo o culto dos jogos nas escolas públicas inglesas, quando coloca
que este movimento possivelmente nasceu nas escolas da elite. Na maioria
dessas escolas, os alunos não necessitavam da formação acadêmica para
sua carreira profissional, visto que já eram indivíduos privilegiados
economicamente pela família, e o culto dos jogos era uma forma de
autopromoção e tornava-se um negócio. Este culto dos jogos nas escolas
públicas sustentava-se, principalmente, sobre cinco componentes:
“1) a tendência para nomear e promover pessoal de acordo comum critério desportivo mais do que segundo um critérioacadêmico; 2) a seleção de prefeitos, isto é, dos rapazes que
40
assumiam os comandos nas escolas, com base, em especial, nacapacidade demonstrada no desporto; 3) a elevação do desportoa uma posição dominante e, em certos casos, proeminente, nocurrículo; 4) a racionalização educativa do desporto, em particulardas equipes, como instrumento de treino do caráter; e, 5) aparticipação de membros do pessoal docente na organização enos jogos dos seus alunos.” (p.314)
Apontou Dunning que o ethos amador na Grã-Bretanha antes da
década de 1880 se encontrava de maneira relativamente incipiente. “A moral
amadora era um conjunto de valores amorfos, articulado de maneira vaga no
que diz respeito às funções do desporto e aos padrões que se acreditava
serem necessários a sua realização.” (p.314)
Com o prenúncio do surgimento do profissionalismo no futebol e no
rúgbi, as elites dominantes sentiram a necessidade de consolidar o perfil
amador, uma vez que sentiam como ameaça a tentativa de
profissionalização fomentada pela classe média e pelas classes
trabalhadoras. Portanto, a cristalização dos princípios amadores surgiu como
uma ideologia elaborada a partir do interesse da elite inglesa (Dunning,
1992:315).
Segundo Dunning (1992), estavam em jogo o prestígio e o privilégio
da elite das escolas públicas e, por isso, acreditavam que a fundamentação
dos ideais amadores poderia manter o domínio. Portanto, sob esta ideologia,
a moral amadora apresentava uma função determinante. Segundo Vinnai
(1974)58, as regras do amadorismo teriam surgido como mais um
mecanismo de fechamento do estrato superior inglês, não tanto por
58 - Vinnai , Gerhard. (1974). El fú tbol como ideología. Bueno Aires . Sigloveint iuno edi tores S.A.
41
idealismo, mas para manter as classes populares fora do esporte, que a elite
pretendiam reservar como seu espaço privado de diversão.
Deste modo, percebe-se que o conceito de amador, bem como a
sua derivação, amadorismo, foi elaborado desde o século XIX, período em
que se consolidavam as principais transformações esportivas no cenário
mundial. Todavia, podemos perceber, por meio das fontes acima
apresentadas, que o conceito originou inicialmente nas artes e sua adoção
no esporte parece ter sido implantada pelos ingleses no momento em que o
esporte assumia uma nova fase, considerada pelos historiadores como o
surgimento do esporte moderno. De uma concepção de incompetência, ou
mediocridade, passou a assumir novos valores, aplicados à nova dinâmica
social, vinculada ao perfil aristocrático, até que recebeu no esporte um
aparato romântico, que se aplicava a uma visão singular da classe
dominante, buscando atender a excentricidade dos indivíduos de tempo
disponíveis, conforme apontou Hobsbawm (1989).
A palavra profissional, pertinente à profissão, trata-se de “pessoa
que exerce por ofício uma profissão, um mister, por oposição ao amador”
(Delta Larousse, 1970). Observemos que o termo é conceituado como
oposição ao termo amador.59 A mesma referência coloca ainda que
profissionalismo refere-se à “dedicação profissional a uma atividade ou
carreira que outros cultivam com amadores.” (p.5552) Para a referida obra,
os termos são conceituados em oposição. Já o dicionário Houaiss (2001)
estabelece que profissional é aquele “que [m] exerce uma atividade por
42
profissão” (p.358), enquanto amador refere-se a “que [m] não é profissional –
apreciador.” (p.21) No esporte, como poderíamos entender esta diferença
embasada em tais conceitos? Pareceram bastante frouxas as conceituações
para conseguir englobar o esporte e suas variadas possibilidades. Hoje,
encontramos elevado número de atletas remunerados nas mais distintas
modalidades, todavia, alguns são conceituados com esportistas amadores,
outros como profissionais.
O Conselho Nacional de Desporto (CND), órgão criado em 1941 por
intermédio do decreto-lei nº 3.199 de 11 de abril, estabelecia, como suas
principais atribuições, estudar e promover medidas no sentido de garantir a
disciplina e a organização das associações e demais entidades desportivas
do país, bem como “incentivar o desenvolvimento do amadorismo”, opinando
quanto às subvenções que deveriam ser concebidas pelo governo federal as
organizações desportivas no país (Delta Larousse, 1970: p.2148). Portanto,
a organização do esporte amador estaria a cargo do CND, que deveria criar
mecanismos de desenvolvimento e difusão do esporte amador. Esta lei,
contudo, ficou praticamente vinculada ao processo de intervenção nos
clubes e associações, onde seu processo de apoio e incentivo financeiro
acontecia de forma diferenciada para cada modalidade. Vários esportes
olímpicos nacionais, até bem pouco tempo, só conseguiam apoio financeiro
para levar as equipes a algumas competições oficiais, não estabelecendo
uma política de apoio freqüente para intercâmbio (amistosos, torneios etc).
Muitos deles só sobreviveram devido ao interesse de clubes e empresas,
59 - Todavia, a refer ida enciclopédia não traz uma def in ição do termo amador, nemda palavra amadorismo.
43
bem como de alguns atletas que financiam a sua prática, como é o caso, por
exemplo, do handebol em diversos estados brasileiros. Veremos na Parte 3
deste estudo como estes conceitos são apresentados nas leis esportivas
brasileiras.
Embora, seja clara a tentativa de se definirem os espaços e as
competências, oficialmente as estruturas gerais de administração esportiva
demandam outros viés de análises que colocam a especificação das leis em
cheque, quanto aos significados atribuídos aos conceitos.
Maria Helena Diniz (1998), no Dicionário jurídico60, coloca os
esportes profissional e amador vinculados ao desporto de rendimento, que
são conceituados dentro do direito esportivo. Amador encontra-se definido
como “aquele que pratica desporto por prazer e não por profissão” (p.185) e
profissionalismo, como “situação do atleta que recebe remuneração para
prática do desporto” (p.780). Quanto ao desporto de rendimento, a obra o
conceitua da seguinte forma: “É o praticado com o escopo de obter
resultados e integrar pessoas e comunidades do país entre si e com outras
nações.” Nesta mesma definição, encontramos ainda uma subdivisão que
tenta esclarecer as situações possíveis no desporto de rendimento: a)
esporte profissional; b) esporte não profissional; e c) esporte amador,
conforme transcrevemos abaixo:
“a) Profissional – havendo remuneração pactuada em contratoformal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva(p.110); b) Não profissional – compreendendo o desportosemiprofissional: expresso em contrato próprio e específico de
60 - Diniz , Maria Helena (1998). Dicionár io Jur íd ico . São Paulo: Saraiva
44
estágio, com atletas entre 14 e 18 anos de idade, e pela existênciade incentivos materiais que não caracterizem remuneraçãoderivada de contrato de trabalho (p.110) e;61
c) Amador – identificado pela liberdade de prática e pelainexistência de qualquer forma de remuneração ou de incentivosmateriais para atletas de qualquer idade.” (p.110)
Editada em 193562, a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira
coloca que amador é “aquele que pratica o desporto apenas por amor ao
desporto, sem por seu intermédio alcançar direta ou indiretamente, qualquer
benefício”. A obra coloca ainda que esta conceituação pode ser diferenciada
em cada modalidade e de acordo com os regulamentos internacionais.
Todavia, “as leis só permitem, de um modo geral, o pagamento das
despesas exatas resultantes para o atleta das deslocações por motivo de
participação em provas.” A referida obra reafirma: “Os atletas amadores não
podem receber prêmios em dinheiro, exceto no hipismo, no tiro e na vela;
algumas modalidades como o foot-ball, admitem o regime da retribuição dos
salários perdidos.” (p.245) Por que naquela época o hipismo, o tiro e a vela
61 - Mesmo em competições of ic iais , no espor te de al to rendimento, é possívelencontrar dis t in tas formas de vínculo do at le ta , como, por exemplo, na Copa doBrasi l de fu tebol, quando ocorrem si tuações em que alguns clubes, pornecessidades momentâneas, recorrem à categor ia de base (*) , so l ic i tando at le taspara supr ir uma ausência ou def ic iência na equipe pr incipal . Isso acarreta naunião, em um mesmo espaço, de at le tas prof iss ionais e d i tos ‘não prof iss ionais’(**) . Tal constatação nos remete novamente para a necessidade de se anal isaremtais conceitos não somente re lacionados à modalidade, mas também aoenvolvimento do at le ta .(*) Em alguns momentos , na denominação popular , a categor ia de base éconsiderada amadora.(**) A equipe do São Paulo teve que recorrer à categor ia de base para conseguirum subst i tu to para o jogador Kaká, que estava contundido, v isando o jogo contrao Gama – DF pela Copa do Brasi l no dia 26 de março de 2003. Para seu lugar fo irequis i tado o jovem jogador Marco Antonio de 18 anos. (Jornal Lance, 26 demar/2003, p .3)
62 - Ju lgamos per t inente es ta def inição, por se tra tar de uma concei tuaçãodesenvolvida no per íodo em que o fu tebol brasi le iro se tornava profiss ional noBrasi l . Grande Enciclopédia Por tuguesa e Brasi le ira . (1935) Vol II . Lisboa: Riode Janeiro: Edi tor ia l Enciclopédia Limitada
45
já podiam ser remunerados contrapondo as referências morais do
amadorismo? Eles não pertenciam à elite? Ou será pelo fato de que, desde
muito cedo, já estavam articulados à bolsa de aposta? A enciclopédia tenta
explicar ou absorver a realidade, assim, acaba de surgir a contradição do
conceito amador com a prática dos esportes.
Bastos (1985)63 argumenta que foram inúmeras as solicitações do
Comitê Olímpico Internacional (COI) para que as nações buscassem a
unificação eficaz dos conceitos entre amadorismo e profissionalismo. Coloca
o autor:
“Nunca se pensaria na possibilidade de os clubes e associaçõesde desportos amadores, do tempo das ‘balizas as costas’ e dosjogos na ‘eira do trigo’, se transformarem nos mais poderososimpérios profissionais, multimilionários, capazes de pagar aosseus atletas importâncias superiores às de um ministro e derealizar transferências por somas elevadíssimas.” (p.10)
Segundo Bastos (1985), tal mudança se deu porque “o atleta tomou
consciência do valor de sua atividade” (p.10)64 e também por exigência do
público consumidor do espetáculo esportivo, conforme relata abaixo:
“(...), o público exige-lhe uma exibição cada vez mais perfeita, cujonível só é possível atingir quando se transforma a vida de o atletaem profissão. Poderá realizar-se então uma preparação metódicae consciente, dirigida a um fim que é distinto da simples euforia
63 - Esta obra foi f inal izada em maio de 1950, em Lisboa, conforme informaçõesna página 175. Esta edição foi produzida pelo Ministér io de Educação e Culturado Governo Por tuguês. Bastos , José Pereira . (1985). Desporto prof iss ional .Coleção Desporto e sociedade – Antropologia de textos – nº 4. Lisboa, MEC.
64 - Parece-nos que Bastos admite uma anál ise muito s implif icada do fenômeno.
46
pessoal e das vantagens higiênicas e salutares que podem advirdos jogos e desportos escolares e amadores.” (p.10)
Bastos (1985) coloca, ainda, que não é por exclusão de partes que
se conseguirá uma definição de esporte profissional, como é usualmente
feito. Afirma, ainda, que por intermédio da definição dada pela organização
do desporto amador, denominada Comitê Olímpico, é equivocado determinar
que os demais praticantes de esporte, que não se encaixam nesta definição,
sejam profissionais. Segundo o autor, o COI considerava amador “o
desportista que se entrega a prática de qualquer modalidade sem outro
interesse que não seja o do simples revigoramento físico, euforia da saúde e
passatempo higiênico.” (p.63)
Todavia, Bastos (1985) acusa o COI de nunca ter se aventurado na
definição do profissionalismo. Em primeiro lugar, “porque não podia reunir
idéias uniformes sobre a questão e, em segundo lugar, porque não lhe
interessava demasiado chegar a essa definição.” (p.83) As acusações de
Bastos centram-se na perspectiva político-econômica dos Estados-nação
aliados ao COI, uma vez que os interesses são distintos e as formas de
controle adotadas não permitem uma homogeneização universal.
Portanto, percebemos a dificuldade de entendimento do conceito
acerca do amadorismo e profissionalismo relacionados ao campo esportivo.
Os apontamentos dos autores são, na maioria das vezes, ineficazes para
responder pela diversidade de perspectiva. A dinâmica dos esportes é mais
plural e complexa que os conceitos de profissionalismo e amadorismo.
47
Capítulo IIO amadorismo nos Jogos Olímpicos
Como percebemos na seção anterior, o conceito de amadorismo no
esporte apresenta-se frouxo diante de variadas perspectivas em que se
pretende empregá-lo. Trata-se de um conceito fluido, dotado de polissemia e
ambigüidade, onde seus contornos tornam-se obscuros, não se afinam,
deixando margens para inúmeras possibilidades de interpretação. Desta
forma, o controle que se buscava exercer sobre os esportistas esbarrava em
questões específicas de cada esporte e suas associações, originando uma
discussão que o COI acabou por flexibilizar (ou fazer ‘vista grossa’), devido à
falta de critérios e argumentos que conseguissem uma definição que
encampasse todos os atletas e esportes e se aplicasse a todas as nações.
Simson e Jennings (1992)65 colocam em suspeição o real interesse do COI
em controlar o perfil dos atletas.
Parece que, inicialmente, se buscava relacionar o amadorismo com
sinônimo de olimpismo66, em que o amor desinteressado pelo esporte fosse
o valor vigente. Todavia, a definição de olimpismo admite muitas
65 - Simson, Vyv e Jennings, Andrew (1992). Os senhores dos anéis . Poder ,d inheiro e drogas nas Olimpíadas modernas. São Paulo. Edi tora Best Sel ler . Osautores argumentam acerca das t ransformações do mundo ol ímpico a par t i r dosinteresses dos dir igentes do COI e outras associações esport ivas que se in ter-relacionam. Apresentam pis tas de como os jogos são ut i l izados para cr iar umest i lo de vida fabuloso para um círculo res tr i to de dir igentes, que mantém ocontrole como forma de prest íg io, poder e , sobretudo, r iqueza.
66 - A Car ta Olímpica def ine Olimpismo como “uma f i losof ia de vida que exal ta ecombina em um todo equil ibrado as qual idades de corpo, espír i to e mente.”(p.11) .Comitê Olímpico Internacional . (1994) . Car ta Olímpica: Pr incípioFundamental nº 2 . Lausanne: COI
48
interpretações.67 Nosso interesse nesta seção é refletir sobre o conceito de
amadorismo no movimento olímpico. Devido à fluidez do conceito,
visualizamos a necessidade de fazer uma breve análise histórica através dos
Jogos Olímpicos antigos e modernos.
O conceito de amador inicialmente estabelecido relacionava-se com
a atitude do esportista; praticar esporte representava parte do estilo de vida
e do pertencimento social identificado com os valores da nobreza. No
entanto, para os Jogos Olímpicos Modernos reeditados ou reinventados pelo
Barão Pierre de Coubertin, tal conceito visava livrar o esporte da
“mentalidade do lucro”, uma vez que esta atitude se apresentava contra ao
processo de purificação, do exercício moral que se pretendia com os jogos
(Tavares, 1999. p.31). Hoje, tal preceito perdeu força e se tornou uma
espécie de fantasia, que é reinventado em algumas situações, uma espécie
de “dever ser” esportivo, que se fragmentou diante da dinâmica que o
esporte assume na sociedade. O status de atleta amador idealizado pelo
Barão perdeu-se com o tempo, onde outros fatores passaram a determinar a
condição esportiva adotada por cada Estado-nação. Portanto, os valores
estabelecidos sobre o amadorismo foram apropriados de diferentes formas
de acordo com as estruturas políticas e culturais dos diferentes contextos.
Diante deste campo fluido e ambíguo, como fundamentar um conceito que
se aplique em diferentes contextos políticos, econômicos, culturais e
históricos? Os ideais olímpicos para Coubertin deveriam estabelecer que “é
67 - Ver trabalho de Tavares , Otávio. (1999). Referências teór icas para o concei tode ‘Olimpismo’ . In: Otávio Tavares & Lamart ine P. DaCosta . Estudos Olímpicos.O autor apresenta no quadro 1 – Uma s ín tese dos valores, aspirações e objet ivosdo Olimpismo. (p .32) .
49
essencial no esporte não apenas ‘desenvolver o corpo’, mas cumprir a
‘tarefa da perfeição moral’, esforçando-se para que a realização atlética seja
um meio de formação e desenvolvimento.” (Tavares, 1999, p.31)
Esta perfeição moral a que Coubertin se refere deparou-se, na
atualidade, com novas especificidades não imaginadas naquele tempo, tais
como: mercados consumidores de eventos, bolsas de apostas, interesses
públicos, tvs etc, que dotam o esporte atual de valores que não eram
observados ao final do século XIX e início do século XX, quando o esporte
passava a despertar o interesse em escala planetária, recebendo a
denominação de esporte moderno. Todavia, observa-se que o processo de
incorporação destes novos valores no espaço esportivo não foge da
estrutura que ocorre em praticamente todos os outros espaços sociais (arte,
economia, ciências, religião etc). A transição ou mudança de comportamento
necessária para a evolução (ou renovação) das condutas humanas em
geral, em qualquer área de conhecimento humano, relaciona-se a entraves
temporais, onde as mudanças necessitam vencer alguns percalços, tais
como preconceito, medo, conservadorismo, entre outros. As transformações
sociais são reflexos de tensões travadas cotidianamente entre os
conservadores e os reformadores. Parece que no esporte ocorre da mesma
forma; o conservadorismo e a tentativa de manutenção de poder por parte
das elites dominantes permanecem criando uma barreira a novas reflexões e
mudanças (Elias e Dunning, 1992). Todavia, podemos pensar que os ideais
50
olímpicos de Coubertin teriam por intenção, já na época, coibir práticas de
apostas ou negócios que interfeririam no espírito olímpico ou aristocrático.
As “fraudes” detectadas a partir dos valores do amadorismo, desde
cedo passaram a margear o movimento olímpico. Cada Estado-nação
buscava ostentar seus ideais econômicos e políticos – reforçando a sua
ideologia mediante as provas esportivas -, colocando em xeque a moral
idealizada por Coubertin. Nos países soviéticos, os atletas eram
´funcionários´ do Estado, uma vez que o regime vigente naquela época era o
empregador. O esporte, entre outros objetivos sociais e políticos, funcionava
como meio de afirmação da URSS no cenário internacional. Com o mesmo
propósito nos Estados Unidos, o treinamento dos atletas era subsidiado pela
concessão de bolsas universitárias, no sentido de garantir total dedicação ao
esporte. Diante destas estratégias, como controlar os princípios amadores
estabelecidos perante os poderes dos Estados? Tal força ficou ainda mais
evidente, no período da guerra fria,68 na disputa esportiva entre o bloco
soviético e os Estados Unidos. As Olimpíadas de Moscou (1980) e Los
Angeles (1984) ficaram marcadas pelo boicote das principais forças
esportivas em apoio aos Estados Unidos e à URSS, respectivamente. Por
outro lado, como o esporte de rendimento poderia manter-se amador sem a
interferência do Estado, que cada vez mais utilizava o espaço esportivo para
sua auto-afirmação internacional? Estava em jogo a representação dos
68 - Tubino (1996), argumenta que, a par t ir de 1950 o espor te se transformou emmais um palco da guerra fr ia entre os blocos socia l is ta e capi ta l is ta . Tubino,Manoel J . Gomes (1996) . O esporte educacional como uma dimensão social dofenômeno esport ivo no Brasi l . In : Memórias – Conferência bras i le ira de esporteeducacional . Rio de Janeiro. Edi tor ia Central de UGF. 9-16p
51
poderes e das políticas sócio-econômicas de cada Estado-nação. A
representação esportiva participando deste amplo processo de emulação
deveria ser capaz de demonstrar a superioridade.
Desde 1986, o COI retirou o termo “amador” da Carta Olímpica, não
limitando a participação dos atletas a um tipo específico de vinculação.
Anteriormente, a Carta Olímpica estabelecia o seguinte conceito de atleta
amador:
“Amador é aquele que pratica esporte apenas por prazer e parausufruir tão somente dos benefícios físicos, metais e sociais quederivam dele, e cuja participação não é nada mais do querecreação sem ganho material de nenhuma natureza, direta ouindireta.” (Carta Olímpica, COI) 69
Tal concepção não se adequava à realidade esportiva, mas durante
muito tempo se tentou fazer valer deste princípio na narrativa oficial do
Comitê Olímpico Internacional. Como entender que desde cedo o COI
passou a permitir a abertura para algumas modalidades esportivas
profissionalizadas?
O Conselho da Europa (CE), em 198070, apresentou um extenso
relatório, onde defendiam a criação de um espaço olímpico definitivo, em
69 - Essa in terpretação da car ta ol ímpica deixava dúvidas em muitas organizaçõesesport ivas . Alguns at le tas t iveram suas medalhas caçadas por suspei ta de nãoserem at le tas amadores, como foi o caso do at le ta nor te-americano J im Thorpe,que foi obr igado a devolver duas medalhas de ouro conquis tadas em Estocolmoem 1932. Ele ter ia admit ido que recebera d inheiro (25 dólares) , como ajuda decusto, jogando beisebol por uma equipe de Fayet tevi l le – Carolina do Norte .Receber pela prát ica esport iva, mesmo em forma de ajuda de custos , era naquelaépoca uma at i tude grave contra as le is ol ímpicas .
70 - Conselho da Europa. (1986). Os Jogos Olímpicos e as suas perspect ivasfuturas . Lisboa. MEC. Desporto .
52
que as forças esportivas se encontrassem a cada quatro anos, acabando
com a mudança territorial para a realização dos jogos. Tal proposta
centrava-se no que eles chamavam de recuperação do espírito olímpico.
Mas que “espírito olímpico” era este? Pelo relatório apresentado,
poderíamos acreditar que este “espírito olímpico” se relacionava
prioritariamente ao ethos amador. Parece que insistiam em ignorar as
transformações e as novas dinâmicas sociais que já haviam sido
estabelecidas mundialmente, idealizando, desta forma, princípios
anacrônicos, para o campo esportivo, onde o ideal do “Barão” ainda era visto
como norte para as realizações e celebrações esportivas. Todavia, o
prefaceador da referida obra, João C. Boaventura, parece não comungar
com os propósitos do CE, deixando marcada a dificuldade de estabelecer
consensos sobre tais princípios: “o espírito olímpico não se perdeu. Afeiçou-
se ao tempo”. Seu prefácio pareceu-nos não estar em consonância com o
relatório do Conselho da Europa de 1980. Se o ‘espírito olímpico’ se
aperfeiçoou ao longo do tempo, como acredita Boaventura, parece-nos que
seria também natural que algumas modificações ocorressem quanto ao
vínculo dos atletas.
Juan Jose Sebreli (1998)71 aponta que, nos primeiros Jogos
Olímpicos, quando eram realizados em concomitância com feiras e
exposições internacionais, eram exibidas as mercadorias dos mais
importantes empreendimentos capitalistas do planeta. O esporte não era
mais que um simples meio de publicidade para o comércio mundial dos
71 - Sebrel i , Juan José. (1998 ) . La era del fú tbol . Bueno Aires. Sudamericana S.A.
53
produtos expostos nas feiras. Os Jogos Olímpicos rapidamente tornaram-se
um produto, e deixaram de ser apenas meio de propaganda para exposições
e feiras. Passou a ser um evento capaz de se autogerenciar, gerando seu
próprio interesse desvinculado da sua função de propaganda.
Possivelmente, os mais otimistas naquela época não apostariam no sucesso
alcançado e no montante financeiro que os jogos são capazes de gerar e
mover na atualidade. Também não poderíamos afirmar que transformar os
jogos neste mega evento financeiro tenha sido o propósito dos românticos,
seus puritanos idealizadores.
Observemos que intensas modificações na estrutura geral do
esporte internacional se deram neste último século, devido ao interesse da
mídia, principalmente a TV, o que acarretou o aumento do interesse público
pelos espetáculos esportivos. Presenciamos também o “casamento” do
esporte com algumas empresas multinacionais, que rapidamente
conseguiram perceber que este evento era um universo fecundo para a
comercialização de seus produtos, onde o mundo do negócio passou a ser
permeado por bens culturais na vida moderna (Ferreira e Costa, 2002).72
Vejamos o ponto de vista destas autoras acerca do comércio estabelecido
sobre a imagem do corpo: “Atletas, em suas mais diferentes atividades, com
seus corpos-emblemas, seduzem e vendem os mais variados produtos.
Como é possível calcular o lucro real extraído das imagens desses corpos
em movimentos?” (p.281)
72 - Ferreira, Nilda Tevês. & Costas , Vera L. M. (2002). O imaginár io dos at le tasOlímpicos brasi le iros: A Dança de Apolo e Dionísio. In : Turini, Márcio. &
54
A máxima do comércio capitalista, a obtenção de lucro, vem
assegurar no esporte sua possibilidade de presença em um espaço que
mantém freqüente uma massa de consumidores. Obviamente, nesta nova
conformação do esporte, o corpo do atleta (seus contornos, seus gestos,
seus equipamentos) passa a representar uma singularidade distinta
daquelas que foram preconizadas pelos idealizadores do esporte moderno
no final do século XIX, representado pela figura emblemática de Coubertin.
2.1 - O status do atleta nos Jogos Olímpicos Antigos
Inicialmente, incomodava-nos a utilização do termo amador
referente aos Jogos Olímpicos Antigos. Acreditamos inclusive que tal
terminologia não seja adequada àquele período histórico e poderíamos estar
caindo em um essencialismo ou anacronismo, ao forçar a utilização desta
especificação. Todavia, Richard Mandell (1986)73, quando publicou seus
apontamento históricos sobre a história mundial do esporte desde o período
Pré-helênico, em Historia cultural del deporte, utilizou o termo ao dizer que, a
partir do século V a.C., o nobre-esportista-amador-herói homérico por
excelência desaparece completamente da competição pública (p.76). Porém,
na seqüência de seus apontamentos, ele coloca como sinônimo de ‘amateur’
a expressão ‘aficionados’, quando afirma que
Dacosta , Lamart ine. Coletânea de textos em es tudos ol ímpicos . V.2 (CDRoom).Rio de Janeiro. Edi tora Gama Fi lho. 281-289p.73 - Mandel l , Richard. D. (1986). Histor ia cul tural del desporte. Barcelona.Ediciones Bal la terra .
55
“Na história das Olimpíadas daquela época as listas devencedores nos grandes festivais esportivos continham menosnomes de aficionados e mais de profissionais cuidadosamenteselecionados e treinados procedentes das províncias e maisespecialmente da Sicília e sul da Itália.” (p.76)
Esta explicação inicial se faz necessária por razões terminológicas.
Não gostaríamos de ser acusados de reducionismo histórico e, conforme já
apontamos alhures, o termo amador teria sido implantado pelos ingleses
somente na reformulação esportiva ocorrida no século XIX, quando
historicamente ficou conhecido como esporte moderno, e no ressurgimento
dos Jogos Olímpicos. Vimos também que este termo teria originalmente sido
utilizado para descrever o artista que apresentava relativa mediocridade em
suas artes, conforme apontava o Dictionnaire de la langue francaise, em
1863.
Portanto, utilizaremos este termo na mesma perspectiva apontada
por Mandell, entendendo o ‘amador’ daquela época como um apaixonado,
aquele que se dedicava ao esporte sem os interesses financeiros que
tentam descaracterizá-lo a partir do surgimento do esporte moderno.
Reportando ao CE, retomamos os argumentos apresentados em
seu relatório, referindo-se aos jogos antigos. Relatam que, nos primeiros
jogos, a vitória e os prêmios eram colocados como uma espécie de valor
espiritual.
56
Segundo Yalouris (2004)74, tanto as cidades quanto os cidadãos se
entregavam à competição tentando demonstrar de modo mais eloqüente a
sua reverência para com os Deuses do Olimpo.
Pentázou (2004)75 relata também a importância deste valor
espiritual e o que a vitória representava para o atleta:
“Os helênicos antigos acreditavam que a vitória em Olímpia eradevida ao favor dos deuses. O vencedor era o seu eleito, a quemeles ajudavam a conquistar o prêmio legendário e cujo nomepermanecia nos lábios de todos os homens até mesmo depoisque o fio de sua existência fosse cortado.” (p.150)
Referindo-se a recompensa, o CE relata a estrutura e o ritual de
premiação:
“Uma corroa de oliveira – oliveira, a arvore da paz – era toda arecompensa. Para a receber, os vencedores colocavam uma faixade lã vermelha envolvendo a fronte e levavam uma palma na mãodireita, dirigindo-se na alvorada para o templo de Zeus. Recebiamestes símbolos de distinção das mãos dos HELLANÓDICES,depois da vitória ter sido proclamada pelos arautos queanunciavam o seu nome, o nome do pai e o da cidade de ondeeram originários.” (CE, 1986. p.22)
Os relatores colocam ainda que os vencedores eram aclamados
como heróis em todo o território grego, prestígio que se estendia à sua
cidade de origem, onde virava uma espécie de Semi-Deus. Acreditava-se
74 - Yalour is , Nicolaos . (2004). A importância e o prest íg io dos jogos. In :Tsirakis , Stykianos. (Org.) . Os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga. São Paulo .Odysseus Editora. (p .81) .
57
que a honra máxima concedida ao esportista vencedor era o direito de ter
uma estátua em Altis com o seu nome. Nota-se, no entanto, que o próprio
CE se contradiz em relação ao prêmio na citação acima, pois desde aquele
tempo, alguns atletas poderiam ser recompensados pelos seus feitos
heróicos com valores financeiros, conforme o parágrafo 94 do relatório.
“Cidades houve que tributavam recompensas materiais, por vezes
substanciais, ao seu vencedor; essa recompensa que pode ter atingido os
500 dracmas...”76 (p.22)
O relatório apresenta argumentos quando se refere ao ‘Espírito dos
Jogos Olímpicos’, levando-nos a relativizar o ideal coubertiniano da
importância da participação como um valor situado acima do da vitória. No
parágrafo 80, ao mencionar sobre as eliminatórias dos jogos antigos, aponta
a exigência de um grau de performance para a participação em Olímpia77.
No parágrafo 95, coloca que
“nas competições desportivas os antigos nunca tiveram outrasambições que as do triunfo dos seus concorrentes. A noção derecorde era-lhes totalmente estranha. A performance, quecaracteriza o desporto moderno, não existia. Apenas eranecessário ser o melhor.” (p.23)
75 - Pentazou, M. (2004). Honras conferidas aos vencedores. In : Tsirakis ,Stykianos. (Org.) . Os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga. São Paulo . OdysseusEditora .
76 - Moeda grega na época, que até hoje ainda é referência das t rocas gregas. Estes500 dracmas correspondiam na época a 500 carneiros , conforme o CE.
77 “As el iminatór ias - Depois de tr in ta dias de preparação em El is , os juizes-árbi tros , os Hel lanódices , se lecionavam os concorrentes a f im de os apresentaremnum espetáculo perfei to , digno da reputação de Olímpia. Durante essasel iminatór ias , os at le tas eram julgados pelas suas prát icas , resis tência , técnica etambém pelo caráter e pelo valor moral” . (p .21)
58
Entretanto, não podemos ratificar a interpretação da CE, ao afirmar
que não havia performance. Sabe-se que a palavra performance, de origem
inglesa, se refere à atuação, ao desempenho e rendimento, contudo, tanto
os jogos modernos quanto os antigos tiveram a excelência e a maximização
do rendimento como ideal e objetivo de demonstração da superação
humana e das cidades às quais pertenciam os atletas na época. Os triunfos
dos concorrentes nos Jogos Antigos simplesmente parecem indicar a noção
de performance e a emulação entre cidades na época.
A remuneração ao atleta também já se fazia presente desde os
primeiros Jogos Olímpicos Gregos, conforme atesta o CE em seu relatório:
“Numerosos atletas optaram por um carreirismo de alto lucro na competição,
não hesitando mudar de cidadania, ou seja, alugarem-se à cidade que mais
lhes pagasse.” (p.24)78 A vontade de ver triunfar o nome da sua cidade fazia
com que alguns imperadores alugassem ou comprassem a atuação de
atletas de outras cidades, conforme lamentava o Filostrato de Lemnos, no
terceiro século d.C., quando deplorava a decadência dos costumes atléticos,
escrevendo a propósito dos heróis desportivos:
“O estado de regabofe em que os atletas vivem, libertinagem eimoderação de desejos ilícitos, induz neles a compra e venda devitórias. Uns fazem dinheiro com a glória, penso que para fazeremface a muitos e numerosos desejos... Outros compram vitóriasfáceis para enjeitarem a vida efeminada... Não exceptuo destacorrupção os treinadores que se tornaram preparadores físicos
78 - Esta af irmat iva acerca do al to lucro nos pareceu uma in terpretação forçada dorelatór io, pois não apresentaram nenhuma comparação com outras remunerações.Possivelmente es tamos diante de mais uma das cr i t icas dos pur i tanos em relaçãoaos indivíduos que optam por careira espor t iva patrocinada.
59
pelo desejo de lucros... não se importando minimamente com aglória dos atletas; são eles os conselheiros das maquinaçõesapostadas nos seus interesses privados. Isto tem que ser ditocontra esses mercadores, vendilhões do valor atlético.” (p.24) 79
Nos argumentos acima, poderemos vislumbrar dois tipos de crítica.
A primeira retrata ampla negociação e intercâmbios de atletas entre as polis.
Esse intercâmbio aponta para o fato de que as raízes ou o grau de
comprometimento dos atletas eram frágeis, pois bastava uma proposta
melhor para que ele trocasse a bandeira da cidade que defendia. A segunda
refere-se à decadência dos valores e à corrupção no espaço das
competições esportivas. Observemos que as críticas e o desgosto com o
esporte apresentam o mesmo tipo de retórica ainda em nossos dias.80
Percebe-se ainda que estava em jogo a idéia da corrupção, da
desvalorização moral e do amor provocado pelo dinheiro.
79 - Temos consciência de que es tamos l idando com fontes secundár ias e , portanto,sabemos que estas podem ter algum grau de deturpação.
80 - Tanto a FIFA quanto o COI tem demonstrado insat is fação com a troca decidadania de at le tas para representar outras nações d is t in tas à sua or igem. Opresidente do COI, Sr . Jacques Rogger , demonstrou indignação, ao se deparar coma transferência de a t le tas afr icanos que passaram a competir representando outrosEstados-nação. (Jornal Lance, 8 de out /2003, p.2) . O presidente da FIFA, Sr .Joseph Blat ter , af irmou ser contrár io à estratégia ut i l izada por alguns países embusca de at le tas prof iss ionais para sua representação em eventos espor t ivos. Essainquietude se deu em função da tentat iva da federação de fu tebol do Catar tentarcontratar jogadores in ternacionais para formar sua seleção. Três jogadoresbrasi le iros ter iam sido contratados pelo Catar , para que aquele pequeno paíschegasse à Copa do Mundo de 2006. (Jornal Lance, 9 de mar/2004, p .21) . Diantedesta possibi l idade, o Comitê de Emergência da FIFA resolveu agir , implantandonovas normas para a natural ização esport iva (Relatór io da Reunião da FIFA emZurique, 17 de mar/2004 – s i te da FIFA). Entretanto, essa possibi l idade denatural ização no futebol ter ia começado ainda na pr imeira Copa do mundo em1930, quando a equipe norte-americana esteve no mundial com seis jogadoresescoceses. Várias seleções que se tornaram campeãs mundiais o f izeram, tendojogadores importados, como foi o caso de João José Mazzola , campeão mundialpelo Brasi l em 1958 e na Copa do mundo de 1962 passou a representar a seleçãoi tal iana (Assaf , Rober to . & Mil ler , Oscar . (2004) . As muitas pátr ias do futebol .In : Revista Lance A+. Ano 4, nº 186. 20 a 26 de mar/2004. (p .40-41) .
60
Outro fato marcante relacionado à remuneração empregada nos
Jogos Olímpicos Antigos teria ocorrido diante da invasão da Grécia pelos
romanos em 456 a.C., destituindo os gregos de sua independência. Todavia,
interessou aos romanos manter a tradição dos jogos, quando passaram a
incentivar seus jovens a desafiarem os povos helênicos. Tal atitude
transformou os jogos em desavença e putrefação. Visando a superação dos
gregos, os romanos profissionalizaram81 os seus atletas. Mesmo assim,
quando estes não conseguiam suplantar os helênicos de forma competitiva,
tentavam suborná-los. A influência do dinheiro aumentou então a ira entre
invasores e dominados, provocando uma crescente tensão entre estas duas
nações.
Segundo Mandell (1986), foi esta desvirtuação dos ideais olímpicos
que provocou a sua abolição no ano 393 d.C. no império de Teodósio, por
este acreditar que há muito estava morto o ideal olímpico pretendido pelos
povos gregos. Tal descrição significa a desvirtuação dos ideais dos Jogos
Olímpicos Antigos ou demonstra a imposição de valores avessos às
dinâmicas sociais e culturais, que rapidamente perdem (e perderam) sua
força e funcionalidade diante das interações humanas? Poderíamos refletir
esta troca de cidadania por parte do atleta, onde se buscava, além do
prestígio moral e de status, sua realização financeira ou sobrevivência.
81 - A terminologia profiss ional ização é u t i l izada pelo CE, todavia, pensamos queo mais adequado ser ia u t i l izar o termo remuneração. Possivelmente fosse naturalut i l izar vários t ipos de remuneração entre os gregos, o que, no entanto, ta lvez nãopossa representar prof issão, na medida em que profissão na imagem moderna seassocia à idéia de trabalho com venda de mão-de-obra. Naquele momento, osescravos eram responsáveis pelo t rabalho e os cidadãos, pela polí t ica, pelas ar tese pelos esportes (Mandel l , 1986).
61
Parece uma ação normal que atravessa a história ocidental. O atleta se
colocava já naquele tempo sobre o ponto de vista da ação racional
individual, em que a glória de ser um atleta olímpico era prestígio para
usufruir alguns privilégios. Possivelmente seus interesses individuais já
apareciam em alguma medida, como superiores aos interesses coletivos,
conforme apontou Hirschman (2000).
2.2 - O status do atleta nos Jogos Olímpicos Modernos
A retomada dos Jogos Olímpicos em 1896, em Atenas, buscou
reativar ou reinventar as tradições esportivas gregas, promovendo os
encontros e as emulações esportivas entre os Estados-nação. Observemos
que os Jogos Olímpicos Modernos são uma típica invenção das tradições no
sentido de Eric Hobsbawm (1997)82, pois os jogos tornam os gregos o
argumento legitimador da busca de continuidade, como o berço da
civilização ocidental. O evento que se iniciou com a participação de apenas
nove Estados-nação rapidamente difundiu-se e despertou grande interesse.
Até Estocolmo (1912), os jogos não provocam uma adesão popular
significativa, o que se comprova pelo fato de os jogos acontecerem
geralmente vinculados a outros eventos - por exemplo, vinculados às feiras
internacionais. A partir desta data, os Jogos Olímpicos tornaram-se vulto de
82 - Hobsbawm, Ér ic . (1997). A produção em massa de t radições, Europa, 1870 a1914. In : Ér ic Hobsbawm & Terense Ranger . (Orgs.) A invenção das tradições.Rio de Janeiro. Paz e Terra.
62
mega-eventos para época, uma celebração de expressão mundial,
provocando modificações organizacionais e de caráter político-econômico.
Juntamente com o Campeonato Mundial de Futebol, tornaram-se os eventos
esportivos de maior interesse sócio-econômico mundial.
Os Jogos Olímpicos Modernos, que na sua gênese eram cultuados
como um espaço de confraternização entre atletas de ‘espírito amador’,
rapidamente se desvirtuaram dos ideais83 inicialmente propostos pelo Barão
de Coubertin. Desde suas primeiras edições, começaram a surgir atropelos
que provocassem incômodo aos organizadores, no tocante ao perfil dos
participantes.84 Coubertin, ao vincular os ideais olímpicos aos preceitos
ingleses, que fomentava um esporte de caráter aristocrático, fundamentado
nas atitudes morais da elite aristocrática, não via com ‘bons olhos’ a
83 - Em edição especial , O Globo 2000 coloca o desvir tuamento dos IdeaisOlímpicos nos Jogos Olímpicos de Par is em 1900, no texto Amadorismo, no mausent ido : “A desorganização das competições inf luenciou dire tamente osresul tados. Na maratona, por exemplo, vár ios at le tas estrangeiros se queixaramque o público francês não apenas torcia pelos seus compatr io tas , mas tambémsegurava seus concorrentes . O americano Dick Grant, que terminou a prova emsexto lugar , contou que um cicl is ta o derrubara quando ele estava preste aul trapassar o vencedor”. (p .32)
84 - Nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912, o americano James FrancisThorpe, campeão das provas da pentat lo e decat lo , foi acusado de ser umprof issional e o COI, em 1913, anulou todos seus fei tos o l ímpicos, a legando ofato de que es te ter ia recebido dinheiro para jogar beisebol, o que contrar iava osideais Olímpicos. (Folha de São Paulo. A Histór ia das Olimpíadas. 10 de jun/1996– São Paulo) . Entre tanto, o mesmo cri tér io não ter ia s ido apl icado para outrosat letas , como o caso do campeão de Ginást ica Olímpica, o I ta l iano AlbertoBragl ia - medalha de ouro em 1908 e 1912 - , que entre as duas ol impíadas seexibia em circos ganhando dinheiro. (ht tp/ /www. olympic games.coi .spc.html.dnk.)
No Brasi l , O Bi-campeão Olímpico de sal to Trip lo, Adhemar Ferreira da Si lva(Helsinque/1952 e Melbourne/1956) recusou uma casa que quiseram lhe dar comoprêmio, pois se a acei tasse corr ia o r isco de ser impedido de ir às o l impíadas, poistal premiação poderia comprometer seu perf i l amador . Prado, Renato M. (2003) .Santa Ignorância. In : O Globo. Caderno Especial Pan.03 de ago/2003. p .4
63
apropriação deste movimento por parte das classes trabalhadoras, conforme
relata Cardoso (1996)85:
“Os inventores do amadorismo queriam, em primeiro lugar, afastarda arena os trabalhadores, o esporte estava reservado a quempudesse se dedicar a ele em tempo integral edesinteressadamente, enquanto o comum dos mortais suava paragarantir o pão de cada dia. Este era o motivo oculto. Abertamentese temia que o dinheiro transformasse a competição esportiva emespetáculo de show-business.” (p.7)
Na concepção de Coubertin, segundo Cardoso (1996), “O
profissionalismo se constitui no pior inimigo dos esportes. (...) Os exercícios
físicos têm absoluta necessidade para prosperar de uma atmosfera de
desinteresse e de cavalheirismo.” (p.7) Entendia o Barão que o
profissionalismo traria perdas irremediáveis ao conceito esportivo que se
pretendia com os Jogos Olímpicos.
Valente (2002)86 argumenta que, desde o início do século XX, a
máxima Coubertiniana, compreendida em “Citius, Altius, Fortius”,87
começaram a retratar outras magnitudes relacionadas plenamente ao mundo
capitalista, tais como maior agilidade administrativa, financeira e de
marketing. O esporte passou a ser mais uma mercadoria, uma nova vertente
do capitalismo. Observemos que Valente opta por uma transposição
85 - Cardoso, Maurício. (1996) . 100 anos das Olimpíadas. De Atenas a Atlanta .São Paulo . Scri t ta .
86 - Valente, Edison Francisco. (2002) . O Ideal Olímpico e o Espor te Para Todos.In : Coletânea de textos em estudos ol ímpicos. V.2. Marcio Tur ini & Lamart ine PDaCosta . (Fórum Olímpico 2002). Rio de Janeiro . Edi tora Gama Fi lho.
87 - O mais veloz, o mais a l to e o mais for te.
64
mecânica da máxima de Coubertin. Tais valores, no entanto, podem ser
associados aos ritmos presentes nas grandes metrópoles capitalistas do
início do século XX (Sevcenko, 1992)88 ou apenas revelar valores do atleta
esportivo.
Bastos (1985) assinala que, embora seja articulado o envolvimento
de Coubertin com os ideais olímpicos, quanto ao amadorismo, ele “nunca
aprofundou a questão. Mal a conheceu, e nunca a compreendeu. Segundo o
autor percebe-se o fato porque Coubertain foi ‘sportman’ e ‘gentleman’.
Tinha recursos mais do que suficientes de vida e praticava o “desporto pelo
desporto” (p.79). Entretanto, pela própria descrição, o amadorismo para o
Barão era sua própria experiência. Neste ponto de vista, acusá-lo de não
conhecer o tema nos pareceu uma falta de cuidado de Bastos.
Bastos argumenta que, para se absorver da pouca importância que
se dava à definição do tema, o Barão teria comentado: “para mim, o
desporto é uma religião com igreja, dogmas e cultos..., sobretudo
sentimentos religiosos. Assim, julgo infantis todas estas “coisas grandes” o
fato de alguém ganhar uma moeda de cem francos...” (Coubertin, citado por
Bastos 1985. p. 79) Todavia, freqüentemente, o ‘Barão’ era solicitado a
apresentar uma intervenção neste sentido, quando julgavam que o ‘espírito
olímpico’ estava sendo ferido.
Parece-nos que a atitude de Coubertin de não se preocupar com
uma definição exata do termo era uma forma de evitar tensões entre os
Estados-nação e evitar o comprometimento de realização dos jogos, visto
88 - Sevcenko, Nicolau. (1992). Orfeu extát ico na metrópole. São Paulo.Companhia das le tras .
65
que, caso fosse definido o exato perfil do atleta, seria prudente realizar a
‘caça às bruxas’. Deveria aprofundar as investigações a partir das denúncias
apontadas e, caso fossem constatadas as irregularidades, deveriam haver
punições. Portanto, pareceu-nos que este acordo tácito em torno do conceito
visava a preservação dos jogos.
A preocupação com uma definição da categoria dos atletas dentro
do COI surgiu desde os primeiros jogos modernos. Coubertin (1997)89, em
suas memórias olímpicas, argumentou que, em 1902, foi enviado um
questionário em três idiomas a todas as sociedades que não haviam
produzido respostas claras sobre o assunto.
Admite Coubertin (1997) que a definição de amador, que até então
era sido o modelo utilizado, não mais era eficiente. Tratava-se de uma
definição elaborada pelos ingleses, estabelecida quando o atleta deixava de
ser amador. Portanto, a definição inglesa apresentada pelo Barão opera na
exclusão:
“1 – Quando se aceita um prêmio em metálico; 2 – Quando secompete com um profissional; 3 – Quando se recebe um saláriocomo professor ou monitor de exercícios físicos; 4 – Quando separticipa em concursos abertos a todos.” (p.116)
Relatou ainda Coubertin que, desde 1909, no Congresso Olímpico
de Berlim na Alemanha, na tentativa de se estabelecer um conceito
89 - Couber t in , Pierre de. (1997) . Memorias o límpicas . España. ZimmermannAsociados SL.
66
universal, haviam sido enviadas às federações de cada país integrante um
formulário contendo as seguintes questões:
“1 - O profissional em um desporto poderia ser amador noutro?; 2- O professor poderia ser amador nos desportos que nãoensinava?; 3 - O amador que se tornou profissional não poderiarecuperar a sua qualidade de amador? Admite exceções a estaregra? Quais?; 4 - Deveria se admitir o pagamento decompensações econômicas aos amadores pelos gastos detransporte e de hotel? Até que limite?; e 5 - O atleta deveriaperder a sua qualidade de amador pelo simples contacto com umprofissional?” (p.119)
Lamentou o Barão que, apesar do largo prazo concedido para os
colegas estudarem as respostas, eles não deram conta dos documentos
recebidos. As respostas eram disparadamente contraditórias e, nem mesmo
dentro de um país, as respostas se aproximavam. Coubertin conclui com
desânimo, lamentando que pelas conclusões não poderiam ser obtidas
respostas convergentes:
“Afirmações; nada de argumentos. Fantasias; nenhuma reflexãoautêntica” (...) Porem, desde então, os problemas do amadorismoperderam para mim o pouco de interesse que, todaviaconservavam. Estava convencido mais do que nunca de queprofessor e profissional não devem medir-se pela mesmaespumadeira; que o juramento, não é de palavra ou de desfile,senão o detalhado e firmado, e a única maneira de projetar umaverdadeira luz sobre o passado desportivo de um homem, postoque um falso juramento o desqualifica em tal caso para sempre eem todos os terrenos; que a distinção de castas não deve julgarnenhum papel no desporte; que passaram o tempo em que sepodia pedir aos atletas que se pagassem viagens ealojamentos; que a condição de amador nada tem que ver comos regulamentos administrativos de um determinado grupodesportivo, etc.; etc., e também que existem muitos falsosamadores que devem ser perseguidos e muitos faltos profissionaisa quem deve indultar, etc., etc. Porém, quem e isso que acabo deescrever? Que blasfêmia! Deveria exclamar, como o pároco de
67
Alfonso Daudet surpreendido em pela canção da bebida;Misericórdia! Se meus fregueses me escutaram!” (p.120) (grifosnossos)
Em 1914, no Congresso Olímpico de Paris, apesar da tentativa, não
foi possível estabelecer uma definição concreta para a palavra “amador”
conforme foi pretendido pelos dirigentes do movimento olímpico (Garcia,
citado por Bastos 1985. p.82).
No Congresso Olímpico de Praga, em 1925, buscou-se também um
entendimento da questão, quando foram estabelecidos dois critérios para
filtrar a participação de atletas que se beneficiavam direta ou indiretamente
das questões financeiras, conforme aponta Bastos (1985): “(a) aquele que
foi ou tenha sido profissional no seu sport ou noutro qualquer; b) aquele que
tenha recebido compensação por salário perdido.” (p.80)
Segundo Bastos (1985), o COI também nunca se aventurou em
buscar uma definição para o profissionalismo esportivo, fato que na
percepção do autor se deu por falta de idéias comuns, que representassem
os diversos Estados, e também porque parecia não interessar chegar a uma
clara definição.
Todavia, apesar da resistência e da tentativa em frear a participação
de atletas que não contemplassem os critérios estabelecidos para os
encontros, desde muito cedo, os jogos começaram a ter problemas em
controlar o que era ser amador. Por um lado, o COI tentava impor restrições,
mas esbarrava nos interesses dos Estados-nação em utilizar o esporte como
propaganda.
68
Os dois blocos econômicos em vigência durante a guerra fria (EUA
e URSS) utilizaram recursos para estabelecer sua hegemonia e propagar
sua concepção política via esporte, o mesmo teria acontecido com a
Alemanha em seu período de nazismo.90 Como exercer um controle que
conseguisse neutralizar a utilização do esporte para disseminar projetos
políticos? Como elaborar um mecanismo que conseguisse controlar todas as
nações em relação aos critérios do amadorismo? Estas podem constituir as
principais dificuldades encontradas pelo COI na vigilância da manutenção
dos ideais pretendidos para o amadorismo, pois não seria possível
contemplar todos os interesses particulares dos países participantes do
círculo olímpico.
Cada regime político admitia para si um formato de vinculação
esportiva. Em algumas nações, era o governo que patrocinava o treinamento
dos atletas, enquanto em outros o incentivo vinha da iniciativa privada
(empresa, instituições de ensino etc). Desta forma, exercer um controle geral
por parte do COI tornou-se praticamente inviável.
Segundo Cardoso (1996), o amadorismo teria caído no início dos
anos de 1980, quando o COI passou a entender que “o esporte era um bem
de imenso valor agregado e que o dinheiro gerado por ele era suficiente para
todos, inclusive para os atletas.” (p.8)91 Todavia, antes da década de 80,
90 - Holmes, Judi th . (1971) . Olimpíada 1936 – Glória do Reich de Hit ler . Rio deJaneiro. Edi tora Renes Ltda. A autora fa la da tentat iva de Hit ler em transformar oespetáculo em uma supremacia da raça ar iana.
91 - Holmes (1971) re la ta que algumas federações ut i l izavam seus at le tasol ímpicos para exibição, visando arrecadações f inanceiras: “Embora os at le tas nãofossem remunerados, a Associat ion Athlet ic Univers i ty - A.A.U. recebeu bomdinheiro, o que fez muita gente pensar que os at le tas amadores estavam sendoexplorados para supr ir de ouro os cofres da A.A.U” (p .135). Após suas v i tór ias
69
inúmeros foram os casos de atletas que feriram o conceito de amadorismo,
mas que os mecanismos não conseguiam os eliminar dos jogos. Cardoso
(1996) traz um relato da dificuldade de padronizar as exigências frente a
todos os competidores:
“Vasily Kusnetsov, medalha de bronze do decatlo em 1960, eraprofessor de anatomia numa escola. Mas ele só dava aulas demanhã. As tardes estavam reservadas para treinar. Enquantoisso, no ocidente, dito capitalista, um atleta era proibido de daraulas de educação física porque isso significava que ele estatirando proveito pessoal de atividade esportiva.” (p.8)
Algumas modalidades resistiram individualmente em admitir que os
atletas profissionalizados competissem até recentemente. Outras ainda
buscavam mecanismos específicos para regular a participação, para evitar
que as seleções principais participassem dos Jogos Olímpicos, como é o
caso do futebol.92 Ainda hoje se observa uma tensão entre os dirigentes da
FIFA e do COI.93
Também parece evidente a existência de um conflito de interesses
entre os organismos internacionais que controlavam algumas modalidades e
o COI, no sentido de flexibilizar o direito à participação, cujas federações já
o l ímpicas, Jesse Owens teve que percorrer vár ios países europeus, exibindo emnome da federação nor te-americana.
92 - Acredi tam alguns dir igentes da FIFA que, se fosse permit ido que as seleçõespudessem ir aos Jogos Olímpicos com suas equipes pr incipais , d iminuir ia aexpectat iva deposi tada sobre as Copas do Mundo. Isso poder ia representartambém redução nos valores ar recadados durante o per íodo da Copa do Mundo edas el iminatór ias cont inentais . (Fifa News)
93 - Para os Jogos Olímpicos de Atenas 2004, a FIFA não queira admit i r que osjogadores de fu tebol t ivessem, caso fossem pegos no exame ant idoping, asmesmas punições que os demais a t le tas (Jornal Lance, 11 de mai/2004).
70
apresentavam um grau de organização que não se relacionava
prioritariamente a alguns princípios do amadorismo adotados pelo COI.
Para a competição de futebol, por exemplo, presente desde 1900
(Paris), foram adotadas medidas diferenciadas quanto à participação das
equipes. Em 1984, o COI permitiu a inscrição de atletas profissionais, desde
que não tivessem competido em Copa do Mundo.94 A partir de 1992 (Jogos
Olímpicos de Barcelona), as seleções puderam contar com três jogadores
acima de 23 anos, independentemente de terem ou não disputado mundiais.
Desta forma, o regulamento específico do futebol passou a permitir que três
atletas integrantes das seleções pudessem ser selecionados entre os
principais ídolos da modalidade, independentemente de já serem atletas
consagrado como celebridade esportiva mundial, desde que fosse do
interesse da confederação do seu país. Interessante observar que, no caso
da seleção brasileira de futebol, que participara das últimas edições dos
Jogos Olímpicos (1996 e 2000), mesmo aqueles jogadores com idade
inferior aos 23 anos exigidos pelo regulamento já eram atletas
profissionalizados. Portanto, o conceito amador parece não ser apropriado
ao futebol olímpico. Até que ponto a FIFA teria interesse em que os
expoentes da modalidade participassem dos Jogos Olímpicos?
A vitória da equipe Uruguai nos jogos de 1924 e 1928 teria
provocado desconforto aos organizadores do evento que viram a hegemonia
da equipe latino-americana desbancar as forças esportivas européias.
Alegavam que a equipe uruguaia utilizava em suas equipes, naqueles jogos,
94 - Enciclopédia do futebol Brasi le iro - Lance. (2001). V 2. Arete Editor ial S/A.
71
atletas que eram semiprofissionais ou, ainda, atletas enquadrados em uma
espécie de profissionalismo marrom, contrariando os ideais esportivos.
Devido ao impasse de como coibir a participação dos atletas uruguaios e de
outras nações que se apresentassem da mesma forma, os organizadores
optaram por não realizar a competição de futebol nos Jogos de Los Angeles
em 1932 (Cardoso, 2000)95. Tal atitude, naquela época, teria sido apoiada
pela FIFA, que havia promovido, em 1930, o primeiro Campeonato Mundial
de Futebol no Uruguai,96 idéia que já vinha se arrastando desde 1905
(Duarte, 1994).97 O retorno do futebol aos Jogos Olímpicos se deu em 1936
nos jogos de Berlim, na Alemanha.
Esta primeira Copa do Mundo98 foi boicotada pelos ingleses e seus
apoiadores (Escócia, Irlanda e País de Gales), que ignoravam a criação da
FIFA em 1904. Para os ingleses era uma afronta à utilização de uma
denominação francesa para a associação: Fédération Internationale de
95 - Cardoso, Maurício. (2000). Os arquivos das Olimpíadas. São Paulo . PandaBooks.
96 - Somente em 1920, na gestão de f rancês Jules Rimet é que a FIFA começou ase organizar , o que conduziu à real ização do 1º Mundial de futebol no Uruguai . Ahis tór ia da Copa – 1º Fascículo - Folha de São Paulo , 15 de mai/1994. p .2.
97 - Duarte , Orlando (1994) . Todas as copas do mundo. São Paulo. Makron Books.
98 - Nenhuma das potencias do futebol europeu acei tou disputar a Copa deMontevidéu por três motivos pr incipalmente: (1) por razões pol í t icas , af inal osingleses ignoravam a FIFA; (2) os países do velho Continente prefer iam que otorneio fossem disputado mais próximo; e (3) razões f inanceiras , pois o p lanetavivia efei tos da Grande Depressão de 1929 e a v iagem a América do Sul era longae demorada, e n inguém t inha dinheiro suf iciente para gasta . Ainda não havia vôodireto da Europa para Montevidéu. Todavia, os organizadores uruguaios sedispusessem a pagar todas as despesas de traje to e es tada dos par t ic ipantes.Suplemento Especial Is to É. 30, a Copa sul-americana. Fascículo 2. (1982) . Riode Janeiro. Is to É. (p.19)
72
Football Association. Segundo Lancellotti (1982)99 a demora de três décadas
para a consolidação dos sonhos de Jules Rimet se deveu porque o Barão de
Coubertin, um de seus incentivadores, com seus ideais românticos pretendia
que o campeonato mundial fosse uma competição para amadores. Todavia,
na Inglaterra o futebol já havia se tornado profissional. E acreditavam alguns
(alemães, suíços e suecos) que a presença dos ingleses era imprescindível
para o evento. Por outro lado, franceses, belgas e espanhóis não tinham
interesse de serem “arrasados pela técnica superior dos ‘mercenários’ da
Ilhas.” (Lancellotti, 1982:14)
A exclusão dos atletas profissionais ocorreu também no
basquetebol. Somente em 1992, na XXV Olimpíada de Barcelona, os
Estados Unidos puderam incluir em sua equipe os principais atletas da Liga
Norte-americana de Basquetebol (NBA). Esportistas consagrados e
profissionais como Michael Jordan, Larry Bird, John Stochton e Magic
Johnson estiveram presentes, além das outras principais forças do
basquetebol mundial. No entanto, o basquetebol brasileiro, desde muito
tempo, já podia competir com suas principais forças, todos eles, desde cedo
“profissionais” na modalidade, embora o esporte fosse considerado
amador.100 Como entender esta lógica que admitia a participação dos
atletas profissionais brasileiros, mascarados como amadores, há muito
tempo, mas os diferenciava dos atletas norte-americanos? Parece que estes
99 - Mesmo sem a presença dos ingleses e seus irmãos de impér io, osorganizadores resolveram manter as regras da In ternat ional Football AssociationBoard . Lancel lo t t i , Si lv io (1982) . O sonho de Jules Rimet . Suplemento Especialde Is to É - Espanha 82 – Fascículo 1 . Rio de Janeiro . Is to É.
73
critérios diferenciados em cada modalidade revelavam uma tensão entre o
COI e as respectivas federações, confederações nacionais e internacionais.
O relatório do CE (1986) lamentava: “Não são os atletas, mas as
nações que se defrontam. A vitória torna-se mais uma conquista de um
Estado, cujas cores triunfam, do que a pertença atlética das equipas
vencedoras.” (p.33) O lamento parece desconsiderar a história dos Jogos
Olímpicos Antigos, conforme podemos encontrar em Mandell (1986). No
período grego-romano, as Polis não eram representadas pelos atletas?
Ainda que o COI tente abafar a competição entre nações, pois entendem os
organizadores que as vitórias são individualizadas, a própria estrutura dos
jogos favorece que a imprensa destaque essa emulação, apresentando o
quadro de medalhas e dando ênfase aos países vencedores do maior
número de provas. Outro exemplo que caracteriza essa emulação se dá
sobre as principais empresas fornecedoras de materiais esportivos para os
atletas, como a matéria do jornal Folha de São Paulo: “Reebock vence a
Olimpíada das multis”.101 Possivelmente, este comportamento de rivalidade
100 - Veremos essa especif icação na Par te 3 deste estudo, referentes às le isesport ivas brasi le iras .
101 Durante os Jogos Olímpicos de Seul , em 1988, o jornal Folha de São Paulo nãose l imitou a apresentar o quadro de medalhas re lacionado aos países . Apresentoutambém um ranking de medalhas re lacionado às pr incipais empresas de mater ia lespor t ivo. Em uma repor tagem cuja manchete fo i : Reebock vence a Olimpíada das‘mult is’ , coloca a empresa nor te-americana como vencedora do market ingespor t ivo em Atlanta . A repor tagem af irmava que os at le tas exclusivos daReebock ganharam mais medalhas de ouro do que das empresas concorrentes:Empresa Origem Ouro Prata Bronze TotalReebok USA 19 18 16 53Mizuno Japão 13,5 15 13,5 42Speedo USA 10 7 6 23Adidas Alemanha 9 1 0 10Asics Japão * * * 56Fonte: Folha de São Paulo, 11 de ago/1996, p.10. Números fornecidos pelasempresas . A Nike não divulgou seu balanço.
74
tenha sido fruto da tentativa dos principais Estados-nação de se fazerem
soberanos e superiores aos demais competidores, o que parece ter
reforçado, desta forma, o ‘espírito patriótico coletivo’. Poderíamos comparar,
desta forma, a estrutura dos Jogos Olímpicos como uma ‘mimese da guerra’,
na perspectiva de Elias (1992), todavia, uma guerra simbólica em que não
existem as destruições físicas, mas travada sobre o aniquilamento
emocional dos países concorrentes. A própria estrutura do esporte permite
este tipo de narrativa.102
A profissionalização parece ter atingido todos os níveis nos jogos.
Os aparatos tecnológicos e novos métodos de treinamento passaram a ser
empregados, desencadeando uma nova perspectiva para os encontros
esportivos. A cada Jogos Olímpicos, novas tecnologias são apresentadas,
elevando a expectativa de melhores rendimentos. Desta forma, calçados,
roupas, equipamentos de competição, instalações esportivas, entre outros,
são re-projetados, visando à ampliação do espetáculo esportivo.
Possivelmente, todas estas novas tecnologias comprometam os ‘princípios
amadores’, que poderiam ser preservados nos jogos.
102 - Embora possa parecer ingênuo, vem dotado de uma conotação quest ionávelem algumas s i tuações, como, por exemplo, a v ivenciada pelo jogador de futebolDenílson do clube espanhol Betis , que, na tenta t iva de demonstrar seuenvolvimento, acabou sendo tragado por uma narrat iva que lhe causou embaraçose contestação. Dení lson, sobre o encontro com uma equipe r ival , declarou “Temosde morrer para matá- los, massacrá- los no bom sentido da palavra”. Estadeclaração foi quest ionada pelo Comitê Antivio lência do fu tebol espanhol , queexigiu uma retratação (Veja, 12 de mar/2003, p .49) . Dení lson, no entanto , disseque apenas tentava incentivar os demais companheiros para o jogo. Observemosaqui uma narrat iva que caracter iza o esporte como mimese da guerra no sent ido deElias .
75
Como já sinalizamos anteriormente, as manifestações esportivas
passaram a representar uma fonte de propagação de poder, de
competência, de prestígio, não só pessoal, mas das coletividades. Os
Estados-nação devem permanentemente reforçar os laços de unidade e de
coesão interna para garantir sua autodeterminação. A nação tem que ser
permanentemente construída e o esporte neste sentido, tornou-se, ao longo
do século XX, um dispositivo importante na afirmação de laço de
pertencimento no interior dos Estados-nação, na medida em que o esporte
traz a emulação com os ‘outros’. Assim, o esporte forneceu a alteridade
necessária para formar laços de solidariedade e cumplicidade interna, na
perspectiva apontada por Hobsbawm (1990)103, onde argumenta que um dos
caminhos para a constituição da nação e do nacionalismo é a identificação
de opositores, seja interno ou externo, gerando coesão e agregação.
Os Estados apropriaram-se desta possibilidade de autopromoção,
através do esporte, sustentados na possibilidade de coesões fornecidas pelo
ambiente esportivo. Raymond Boudon (1995)104, em Tratado de sociologia,
chama de ‘socialidade’105 esta capacidade humana de manter coesos os
grupos e as redes. Alerta Boudon que, “para nos restringir ao essencial, a
103 - Hobsbawn, Er ic . (1990). Nações e nacional ismo desde 1780: programa, mito ereal idade. Rio de Janeiro. Paz e Terra.
104 - Boudon, Raymond. (1995). Tratado de sociologia . Rio de Janeiro. ZaharEditor
105 - Boudon dis t ingue sociabi l idade de social idade . Sociabi l idade é “a capacidadehumana de estabelecer redes, a través das quais as unidades de at iv idades,individuais ou colet ivas, fazem circular as informações que exprimem seusinteresses , gosto, paixões, opiniões” (p.65) , enquanto social idade é “a capacidadede manter coesos os grupos e as redes, de lhes assegurar a coerência e a coesãoque os const i tuem em sociedades: podemos designar por morfologias as formas desolidar iedade social que são a t r ibo, a c idade a nação. . .” (p .66)
76
nação, na medida em que é concebida, representada, desejada, sentida e
vivida como um organismo coletivo, tende a tornar obsoletos todos os
grupos sociais intermediários.” (p.66) Segundo esse autor, a nação coloca o
indivíduo como célula do organismo nacional. Nesta perspectiva, o esporte
parece ser um espaço ideal para fundamentar e desenvolver a imagem de
nação soberana e forte, para os de “dentro” e os de “fora”. Para Weber
(1974)106, nação “significa acima de tudo, que podemos arrancar de certos
grupos de homens um sentimento específico de solidariedade frente a outros
grupos.” Para ele, esse conceito pertence ao domínio dos valores. Como
manter o desinteresse dos indivíduos praticantes do esporte, quando os
Estados passam a ter grande interesse nesses eventos?
A união do Estado-nação com a iniciativa privada para a promoção
dos encontros esportivos também desencadeou uma contestação do CE. O
Conselho considerava esta apropriação comprometedora dos princípios que
deveriam ser observados nos eventos, visto que os interesses financeiros e
comerciais passaram a ser mais importantes do que as próprias
competições:
“Hoje em dia as mais importantes competições dos Jogosdeixaram de ser desportivas, tornaram-se financeiras, comerciaise publicitárias. Milhares de firmas de todo o gênero, desdeempresas de betão armado, fabricantes de cronômetros,companhias de eletrônica, cadeias de televisão, passando pelasindústrias de solas de borracha dos sapatos de desporto, estão namira dos lucros e da publicidade que podem fazer, graças aosJogos que cada vez mais se confundem com a feira comercial, deque se tornaram pretextos.” (p.34)
106 - Weber , Max. (1974) . A nação. In : Gerthe, H. H. & Mil ls , W. (Orgs.) . Ensaiosde sociologia . Rio de Janeiro . Zahar editora.
77
Observemos, mais uma vez, que a contestação do CE se vincula
principalmente à idéia de que o dinheiro corrói a moral e desvirtua o ‘espírito
olímpico’. Nota-se, no entanto, que estas feiras comerciais e exposições
apenas se adaptaram a nova realidade. Hoje as imagens de satélites levam
os produtos para dentro das casas dos potenciais consumidores.
A abdicação da concepção de amadorismo, diante da rápida
abertura ao profissionalismo, parece ter sido acompanhada pela influência
cada vez mais freqüente dos patrocinadores e pela vinculação aos meios de
comunicação, principalmente a TV, que projeta no evento uma forma
imediata de promoção de espetáculo em escala planetária, desencadeando
uma nova concepção dos eventos esportivos. Os atletas já não podiam
representar seus Estados-nações sem apresentarem alto grau de
performance (exigência de índice e apelo pela vitória), o que demandava
dedicação ao treinamento. Transformar estes homens comuns em ‘atletas’
com elevado grau de superação demandava um aparato de profissionais e
de tecnologias. Como exigir este elevado nível de exigência performática do
atleta sem que ele tivesse tempo para se dedicar? Nesta perspectiva, o
‘homem desinteressado’, aquele que idealizava o esporte com princípios
morais e éticos – o romântico, forçadamente teve que ceder espaço para o
‘homem atleta’, treinado, condicionado e respaldado pelos implementos
modernos. Pareceu que as lamentações do CE perdiam de vista estas
modificações, apesar de terem sido elaboradas já em 1986. Conforme
lamentava o CE, o ‘status’ de esporte amador perdeu o sentido, já não
interessava se não pudesse demonstrar e propagar valores econômicos. As
78
empresas e, especificamente, a TV trataram de fomentar um esporte capaz
de impulsionar o consumo. Diante disso, como manter uma estrutura
amadora para um evento que a cada nova edição se mostrava altamente
tecnológico e associado a produtos e a altos investimentos financeiros? 107
O 11º Congresso Olímpico, realizado em Baden-Baden na
Alemanha, em 1981, tentou novamente reacender a discussão sobre o
amadorismo, considerado por alguns representantes de Federações e
Comitês Olímpicos como fundamental para o resgate dos ideais olímpicos,
que, segundo eles, estaria se deteriorando. Todavia, mais uma vez, os
discursos a este respeito não se aperfeiçoaram (COI, 1982), deixando
frustrados seus defensores diante da força que o esporte passou a ter na
indústria do entretenimento.
O período de administração do COI pelo espanhol José Antonio
Samaranch começou logo após o Congresso Olímpico realizado em Baden
Baden, na Alemanha, em 1981. A partir desde momento, pode-se perceber
uma modificação na estrutura de gerenciamento dos esportes olímpicos,
onde os princípios até então relacionados ao amadorismo foram perdendo
espaço perante os elevados investimentos financeiros em todos os níveis.
107 - . A mesma posição de lamentação do CE também foi colocada por Carvalho(2001) quando se refer ia ao abandono dos pr incípios do amadorismo, devido àaber tura ao prof iss ional ismo, que foi “acompanhada pela inf luência , cada vezmais acentuada, dos ‘patrocinadores’ f inanceiros e da in tervenção dos grandesmeios de comunicação (em especial da TV).” (p.5) . Cavalho, A. M. (2001).Contradições do Olimpismo. Disponível em: www.pcp.pt /avante/htm. (em 07 dejunho de 2002)
79
Segundo Fontenelle (1996)108, durante os 20 anos (1952-1972) em
que o norte-americano Avery Brundage presidiu o COI, ele resistiu à
admissão dos atletas profissionais nos modelos que são percebidos hoje,
onde não são mais camuflados os ganhos e as gratificações. Segundo
Fontenelle o Sr Brundage era muito conservador para admitir tal mudança.
Diríamos, um romântico que não cedia ao ritmo das transformações.
Sebreli (1998) também apresenta suas reflexões acerca dos
idealizadores dos princípios amadores:
“Os nostálgicos do esporte amador, incontaminados deinteresses econômicos, e inclusive opositores aos mesmos,duvidam e ocultam que o esporte de massa, já desde seucomeço amadorista, esteve indissociavelmente ligado ao mundodo comércio e da indústria.” (p.205)
Observemos que ambos Fontenelle e Sebreli apontam que os
conservadores e os nostálgicos pareciam esquecer que, desde o princípio
dos Jogos Olímpicos Modernos, o envolvimento com empresas privadas já
era evidente. As feiras e exposições eram exibições de mercadorias das
mais poderosas empresas capitalistas do mundo, no entanto, os primeiros
jogos tiveram que se aliar a elas para conseguir despertar o interesse
público; hoje ocorre o inverso.
Apesar de todas as transformações ocorridas no perfil dos atletas e
nas características dos Jogos Olímpicos perceptíveis, já na metade do
século XX, somente a partir de 1981 é que o COI passou a ter
108 - Fontenel le , André. (1996). Teatro amador . In : Folha de São Paulo . A histór iadas Olimpíadas. Fascículo 2 . 10 de jul /1996. p .8
80
responsabilidade de controle sobre o perfil dos praticantes para as
federações específicas109, bem como retirou da Carta Olímpica em 1986,
conforme já relatado, o termo amador.
Os argumentos estruturados por Pierre de Coubertin pareciam
relacionar-se a uma ideologia dominante, que via o esporte sob uma lógica
puritana, romântica e destinada à celebração de uma classe dominante.
Observemos que o amadorismo se respaldava a parâmetros que
impossibilitava a aceitação de atletas remunerados. O amadorismo
vinculava-se principalmente: a) ao estilo distinto de vida; b) ao desinteresse
pecuniário; c) à participação pela participação; e d) ao desejo da vitória nos
princípios do fair play.110 Isto é, como não havia ganhos pecuniários, já que
era pautado no respeito à vitória e na participação dentro das regras do jogo,
as competições podiam prevalecer demarcando um estilo de vida de caráter
nobre, o que também permitia a elevação espiritual e a prevalência da
competência humana.
Os conceitos sobre amador não conseguem abarcar de forma
satisfatória todos segmentos esportivos (federações, confederações etc),
109 - Data de inclusão de at le tas prof iss ionais nos Jogos Olímpicos.1984 – Futebol1992 – Basquetebol1996 – Cicl ismo1998 – Hóquei ( jogos de Inverso – Nagano – Japão)
A his tór ia das Olimpíadas – Folha de São Paulo, 10 de jun/1996, p .8
110 - Fair p lay refere-se ao valor moral ( individual ou colet ivo) de conduta naprát ica espor t iva. É considerado o jogo l impo.“A adesão voluntár ia as regras espor t ivas, pr incípios e códigos de conduta,zelando pelas regras , observando os princípios da just iça , renunciando avantagens injust içadas, decl inando ganhos mater iais , enf im, todos os meios deelevar o esporte a um nível cul tural realmente mais al to .” (Tavares , 1999:31) . In:Otávio Tavares & Lamart ine P. DaCosta . (1999) (Orgs.) Estudos Olímpicos. Riode Janeiro. UGF
81
bem como os interesses particulares dos praticantes, uma vez que podemos
perceber diversas formas de engajamento, deixando-os frouxos,
inoperantes, não atingindo ao longo da história os valores morais e distintos
pretendidos.
Parece que, nos Jogos Olímpicos Antigos, bem como nos Jogos
Olímpicos Modernos, o esporte sempre conviveu com a tensão entre os
sentimentos românticos de pertencimento e a luta pela sobrevivência de
indivíduos e/ou o processo de instauração de uma indústria de
entretenimento. Como separar o artista e o operário da lógica desta
indústria? Os ideais esportivos fragmentam-se nesta transição e confusão
entre o esporte espetáculo vinculado ao show-business e o esporte
idealizado como representação de caráter de identidade coletiva.
Portanto, podemos perceber que o conceito de amador que as
principais entidades desportivas internacionais tentavam seguir tornou-se
inoperante na atualidade. A própria dinâmica do esporte, em certa medida,
inibia o consenso quanto a esta definição. Naturalmente, que em um espaço
onde diferentes projetos políticos-sociais estão entrelaçados seria muito
complicado estabelecer uma rigidez para determinar o direito a participação.
A solução seria a busca de uma ética profissional esportiva, mas sem
romper por completo com os vínculos amadores, principalmente aqueles
relacionados aos princípios morais e éticos, necessários para a manutenção
dos padrões civilizatórios.
82
Também nos pareceu que os ideais esportivos reeditados pelo
Barão de Coubertin não tenham saído apenas da historiografia dos Jogos
Olímpicos Antigos. Suas concepções de esporte foram sedimentadas em
um espaço de indivíduos privilegiados, onde o romantismo era valorizado,
em que a competição se assemelhava muitos aos ideais de honra e glória
que alguns atletas demonstravam no passado. Coubertin parece ter
desprezado, no entanto, que o indivíduo pudesse competir também pela
necessidade de sobrevivência, algo que já ocorria desde os Jogos
Olímpicos Antigos. Os interesse financeiros do atleta não foram observados
pelo Barão. Idealizou o retorno dos jogos apenas como uma espécie de
confraternização para uma classe de indivíduos privilegiados. Entretanto,
paralelo a estes ideais românticos e civilizatórios do final do século XIX,
também já estavam presentes à luta pela sobrevivência e o campo esportivo
não ficaria fora deste contexto. O esporte, nessa versão moderna,
rapidamente se tornou envolto pelos interesses. Daí, a necessidade de uma
fusão entre o discurso romântico de pertencimento e econômico, onde ora
se tende para um dos lados.
O poder econômico ao perceber o espaço esportivo como um
eficiente local de divulgação de seus produtos acabou por transformá-lo
também em uma mercadoria. Essa talvez seja a maior crítica dos românticos
e puritanos. A partir da entrada das empresas financiadoras os valores
foram redimensionados sobre outros pontos de vista. Aquele espaço,
inicialmente destinado ao lazer e a recreação passou a representar uma
potente fonte de renda. Portanto, o esporte, como ramo do entretenimento
83
foi transformado também em um produto do trabalho humano. O jogador,
aquele que demonstrasse produtividade e competência passou a ser uma
mercadoria de grande poder nas relações de trocas, na perspectiva
apontada por Karl Marx.111 Obviamente, a magnitude desta transformação
provocaria uma tensão entre aqueles que entendiam a necessidade de
modificação das relações, entre jogadores e clubes, nesta nova perspectiva
que se desenvolvia e, aqueles que pensavam o esporte como um local de
distinção, de honra e de glória.
111 - Marx ao fa la da t ransformação do trabalho humano em mercador ia , quest ionase ser ia possível comparar os d iferentes gêneros de trabalho humano entre s i paraconduzi- los a uma medida comum. Para Marx, “A força de trabalho do homem é aforça única que cr ia valores, e as mercador ias só são consideradas valores porquecontêm trabalho humano”. (p.15) Marx, Kar l (2004). O capi ta l : extratos de PaulLafargue. São Paulo Conrad Editora do Brasi l .
84
PARTE 2
O PROFISSIONALISMO NO FUTEBOL
“O futebol estava em perfeita sintonia com o ritmo que arevolução de 30 empreendeu para realizar transformações nopaís. Não foi só a educação escolar, a produção científica, aliteratura, o cinema, o teatro e a música que reapareciamfortes. O futebol também. Revolucionando o seu própriouniverso, disposto a incrementar uma dinâmica profissionalque eliminasse definitivamente os resquícios do elitismoburocrático.”
Waldenyr Caldas, 1990112
Capítulo IIIO processo de profissionalização do futebol na Inglaterra
A crise por que passará a afirmação do futebol no Brasil parece não
ter sido tão original como se pensava após nos inteirarmos dos relatos da
época da sua implantação até se chegar a um esporte profissional. Ao
debruçar sobre a historiografia mundial do futebol, percebe-se que a saída
de uma condição de esporte amador para um esporte profissional
apresentou tensões também em outros países onde o esporte teria
aparecido inicialmente como passatempo das classes financeiramente
privilegiadas. Sua apropriação pelas classes populares pode ser
112 - Caldas, Waldenyr . (1990). O pontapé in icia l – memória do futebol brasi le iro .São Paulo . Ibrasa . (p .190)
85
compreendida pelo que Norbert Elias (1990)113 chamou de assimilação e
emancipação ao se referir sobre o processo de expansão de ações sociais.
George Balandier (1976)114 alerta para o fato de que a dinâmica das
grandes alterações sociais, em muitos casos, continua mal conhecida e
duvidosa. Essas tensões ainda encontram-se pouco conhecidas ou cravadas
de conjecturas pouco claras. Nota-se, na historiografia do futebol brasileiro,
que essa perspectiva apontada por Balandier parece adequada. Grandes
lacunas ainda merecem investigações.
O futebol difundiu-se em escala global desde o início do século XX.
Antes, restringia-se aos principais países europeus e alguns latino-
americanos. A conquista de outras nações ocorreu paulatinamente e,
atualmente, é o maior fenômeno esportivo mundial. Todavia, o processo de
massificação mundial dos esportes teria ocorrido devido à aliança com a
imprensa e a mídia em geral (Lovisolo, 2000)115. Foi por intermédio da
transmissão da imagem, a partir da década de 70 do século XX, que o
futebol pôde ser apreciado por todo o mundo, fazendo surgir em escala
amplificada os ‘ídolos’, as ‘estrelas’ e os ‘heróis’ esportivos (Helal, 1998)116.
113 - El ias , Norbert . (1990). O processo civ i l izador: uma his tór ia dos costumes.Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora.
114 - Balandier , Georges. (1976). As dinâmicas sociais – sentido e poder . SãoPaulo - Rio de Janeiro. Difel .
115 - Lovisolo, Hugo. (2000). Saudoso futebol, fu tebol quer ido: a ident idade dadenúncia . In : Helal , Ronaldo; Soares , Antonio, J . & Lovisolo , Hugo. A invençãodo país do futebol – Mídia, raça e idolatr ia . Rio de Janeiro. Mauad. Lovisoloargumenta que a popular ização do esporte fo i f ru to da al iança com a imprensa e ,por in termédio dos seus jornal is tas , contr ibuiu determinantemente para suaexpansão (p .83) .
116 - Helal , Ronaldo. (1998). Mídia, construção da derrota e o mito do herói . In :Motus Corporis . Rio de Janeiro, UGF v.5, n . 2 , p .141-155, nov. (p .145) .
86
As imagens transmitidas pelas TVs reforçaram esse gosto e envolvimento
popular e, hoje, a FIFA coloca-se entre as entidades de maior prestígio
mundial.
Em vários países, esta popularização se deu de forma rápida, ainda
antes da metade do século XX, como ocorreu em alguns países: Inglaterra,
Itália, França, Alemanha, Argentina, Uruguai, México, entre outros. Em
outros, no entanto, apesar de inúmeras tentativas da FIFA, o sucesso não foi
atingido conforme a expectativa, como é o caso dos Estados Unidos e do
Canadá, onde o futebol, pelo menos com o público masculino, não
conseguiu se estabelecer. À medida que se desenvolveu, nas principais
nações onde hoje é um esporte popular, observa-se que no passado era um
esporte de elite. Inicialmente utilizado como passatempo das elites, foi
cedendo lugar a um empreendimento financeiro que gera uma fortuna de
aproximadamente 250 bilhões de dólares por ano.117
Nesta seção, será apresentada uma breve descrição do processo
de profissionalização na Inglaterra. Optou-se por este país, pela importância
do desenvolvimento esportivo inglês no contexto mundial (Elias, 1992)118 e,
principalmente, pelo ao fato de ser este o país que oficialmente recebe o
título e os créditos de “criadores da modalidade”119, além de ter organizado o
117 - Site CBF News – www.cbfnews.bol .com.br 19k (Acessado em 20 de ago/2002)
118 - Fala des ta importância a par t i r da codif icação do esporte moderno no se iodas escolas inglesas . El ias , Norber t . (1992). A gênese do desporto: um problemasociológico. In : Norber t , El ias & Eric Dunning. A busca da exci tação. Lisboa.Disfel .
119 - Bi l l Murray re la ta que, a té a of ic ia l ização do futebol em 1863, havia vár iosjogos com as mesmas caracter ís t icas ( rugby, futebol americano e o fu tebol) e ,por tanto, “não há um pr imeiro fu tebol, pois a or igem de todos eles é muito ant iga,que desde o século XIX, na maior ia das faculdades e univers idades nor te-
87
esporte e sido a referência de aprendizagem para outras nações,
expandindo-o para além das fronteiras da Grã-bretanha.
O historiador inglês Bill Murray (2000) relata que o processo de
popularização e organização oficial da modalidade na Inglaterra teria sido
proveniente dos ex-alunos dos internatos ingleses, que, ao deixarem as
instituições, buscaram a continuidade da prática:
“Os internatos particulares ingleses não inventaram o futebol.Porém, foram seus old boys (ex-alunos) que – depois de entraremno comércio ou iniciarem a vida profissional, e ansiosos emcontinuar praticando os esportes favoritos da faculdade – deram oimpulso para a elaboração dos primeiros regulamentos nacionais.Antes disso, cada escola jogava segundo suas próprias regras.”(p.21)
As escolas inglesas também teriam funcionado como espaço de
conhecimento e dispersão do esporte moderno, por intermédio dos
estudantes de outras nações, filhos das elites, como também da burguesia
emergente mundial, que buscavam suas formações nestas instituições na
época (Bourdieu, 1983: 139)120. Ao retornarem, levavam-no aos seus países,
contribuindo, desta forma, para que o esporte se tornasse este fenômeno
popular. O futebol seria uma síntese desta expansão.
Na Inglaterra, teria sido o futebol, durante os primeiros anos após
sua oficialização, em 1863, um evento para a recreação da aristocracia e
elite burguesa, conforme relatara Janet Lever (1983)121, ao sinalizar que “o
americanas, ass im como na Grã-Bretanha, prat icava alguma forma de futebol” .Murray, Bi l l . (2000) . Uma his tór ia de fu tebol . São Paulo . Hedra. (p .20).
120 - Bourdieu, Pierre. (1983). Questões de sociologia . Rio de Janeiro. Marco Zero.
121 - Lever , Janet . (1983). A loucura do futebol . Rio de Janeiro. Record S.A.
88
futebol permaneceu como uma recreação aristocrática até o final da década
de 1870, quando foi ensinado às classes trabalhadoras industriais
emergentes pelos clérigos, homens de negócios e diretores de fábricas.”
(p.61)
Eric Robsbawn (1997)122 afirma que o futebol já era praticado por
integrantes das classes trabalhadoras, principalmente pela necessidade de
se recrutarem jogadores para formarem equipes, pois somente entre os
aristocratas e elites não era possível. “E altamente provável que os
jogadores de futebol tendessem a ser recrutados entre os operários
habilidosos.”(p.297) Essa apropriação operária possivelmente teria
provocado a sua difusão nos novos centros urbanos, deixando de ser um
privilégio das classes médias endinheiradas e da aristocracia.
Murray (2000) relata que alguns clubes surgiram no espaço do
trabalho e eram financiados pelos proprietários de indústrias, outros clubes,
no entanto, provenientes do empenho e da vontade dos próprios
trabalhadores, se auto-sustentavam. O autor deixa pistas da formação dos
clubes na época: “Quaisquer que sejam as origens, os clubes de maior
sucesso eram constituídos por jogadores da classe operária.” (p.26)
Marcelo Proni (2000)123 relaciona alguns fatores que contribuíram
para o sucesso alcançado pelo futebol junto aos operários das fábricas na
Inglaterra: a) os trabalhadores das industrias tinham folgas aos sábados à
122 - Hobsbawm, Er ic . (1997). A produção em massa de t radições: Europa, 1789 a1914. In : Hobsbawm, Er ic & Rangel Terence. A invenção de tradições . Rio deJaneiro . Paz e Terra.
89
tarde, ao contrário dos demais trabalhadores de outros setores; b) o futebol
funcionava como um canal alternativo de comunicação entre as classes
(aristocracia, burguesia e operários); e c) o surgimento de “um estilo de vida
mais amoldado as condições materiais das prósperas mais opressivas –
cidades inglesas.” (p.26)
Júlio Frydenberg (1998)124 constatou que, na Argentina, o
desenvolvimento do futebol apresentou características similares, onde o
processo de apropriação da modalidade teve uma trajetória bem próxima ao
que ocorrera na Inglaterra. Inicialmente, a modalidade vinculava-se ao
elitismo, tendo o fair play como a sustentação dos princípios esportivos.
Entretanto, “a prática do futebol foi disseminando entre os setores populares
portenhos desde os primeiros anos do século XX.” (p.51)
Richard Giulianotti (2002)125 afirma que, com a expansão da
modalidade no final do século XIX, na Inglaterra, ocorreram tensões entre as
classes e as regiões.(p.19) Tais conflitos teriam ocorrido dentro das classes
médias, divididas por regiões, sobre a aceitação do profissionalismo. No sul,
os resistentes à mudança do regime se manifestavam apoiados pela FA,
tendo como símbolo o Corinthians; no norte e na região central, as classes
médias trabalhadoras, os industriais e a pequena burguesia dominavam
123 - Proni , Marcelo Weishaupt . (2000) . A metamorfose do futebol . Campinas.Unicamp.
124 - Frydenberg, Júl io D. (1998). Redefin ición del fútbol af icionado e del fútbolof ic ia l . In : Pablo Alabarces , Rober to Di Gano & Júl io Frydenberg. (Orgs) Depor tey sociedad. Bueno Aires . Eudeba.
125 - Giul ianot t i , Richard . (2002). Sociologia do futebol – d imensões h is tór icas esociocul turais do esporte das mult idões. São Paulo Nova Alexandria .
90
grande parte dos clubes bem-sucedidos e defendiam a regulamentação do
regime profissional.
A criação da Football Association constituiu no final do século XIX a
principal força da corrente amadora na Inglaterra, que tentava neutralizar os
defensores do profissionalismo, considerados comprometedores dos valores
honrados e idealizados para a prática esportiva. Aidan Hamilton (2001)126
apresenta um relato de William Pickford, um jornalista engajado nos ideais
amadores, que defendia tais princípios para o futebol inglês. Observe como
Pickford representava seus ideais de esportista verdadeiramente amador:
“Os jogadores escolhidos para representar a nova associação empartidas contra os condados vizinhos iam a Brighton, Portsmouth,Salisbury e Reading pagando as próprias despesas. Além disso,compravam suas próprias camisas e, numa esplêndida ocasião,todo o time pagou solenemente sua entrada de seis pence para sever jogando!” (p.5)
Pela narrativa de Pickford. Pode-se perceber o perfil do praticante
delineado pela Football Association para o esporte britânico. Os ideais
estabelecidos pela classe burguesa ancoravam em um ‘estilo de vida’
articulado com o poder e as posses do indivíduo. Seriam amadores aqueles
que pudessem financiar suas atuações no momento de passatempo e não
vislumbrassem outras finalidades para a prática esportiva, a não ser o
compromisso com a própria atividade. O relato acima diz respeito do
envolvimento daqueles que se intitulavam verdadeiros amadores: “pela
seríssima convicção que tinha de que o football deveria ser apenas um
126 - Hamil ton, Aidan. (2001) . Um jogo in te iramente d iferente! Futebol : Amaestr ia brasi le ira de um legado br i tânico. Rio de Janeiro . Gryphus
91
passatempo.”(Hamilton, 2001:6). Observa-se que estavam em jogo a
representação, o pertencimento e a afirmação da comunidade.
Tais ideais respaldavam-se no compromisso e no pertencimento. O
jogador era um cavalheiro, um gentleman e, como tal, o esporte deveria ser
apenas uma forma de passatempo agradável na companhia de pessoas que
adotavam o mesmo princípio. O local de jogo representava o local de
afirmação destes valores.
Eric Dunning (1992)127 apontava que o ethos amador era a ideologia
eiva que dominava a Grã-Bretanha moderna, princípio observado em todo
mundo.
Ser amador no esporte, naquele momento, representava a ética
aclamada pela sociedade aristocrática e alta burguesia; em uma sociedade
onde se valorizava a acumulação proporcionada pelas indústrias e pelo
comércio, o esporte representava o não-trabalho, um espaço para emulação
desvinculada dos interesses. Também significava distinção que estabelecia
a diferença e o distanciamento entre os homens de posses e de prestígio em
relação aos demais cidadãos – os trabalhadores.
Desde cedo, o futebol tornou-se um espetáculo capaz de atrair a
atenção das pessoas que estavam dispostas a pagar para admirá-lo. Este
desejo, portanto, teria provocado a busca de desempenho, forçando as
equipes a mudarem sua postura em relação ao envolvimento dos jogadores
(Proni, 2000:27). Dessa forma, novos aspectos passaram a ser observados
127 - Dunning, Er ic . (1992) . A dinâmica do despor to moderno: notas sobre a lu tapelos resul tados e o s ignif icado social do despor to . In: El ias , Nobert . A busca daexci tação. Lisboa. Disfel . 299-326
92
na composição das equipes, visando melhorar a qualidade do espetáculo.
Os valores morais e éticos que fundamentavam o amadorismo não eram
mais suficientes para garantir a adesão dos espectadores. A competência
esportiva, desde aquele momento, já não era privilégio dos membros da elite
e, desta forma, na ânsia de ver o esporte triunfar em forma de ‘espetáculo
público’ mais atraente, as equipes tiveram que admitir a presença dos
jogadores populares das classes operárias capazes de melhorar a estética
do jogo, elevando, com isso, a possibilidade de rendas para o clube com a
venda dos ingressos.
Todavia, estas modificações estruturais, rapidamente, provocaram o
descontentamento dos dirigentes da Football Association, que passaram a
intensificar o combate aos jogadores remunerados, aqueles que jogavam por
interesse (Proni, 2000:27).
Interessante observar que os discursos relacionados aos princípios
amadores atacavam prioritariamente os jogadores que exigiam receber, mas
não questionavam os benefícios que essas bilheterias proporcionavam aos
clubes.128 Os dirigentes já compreendiam que a presença dos espectadores
e as rendas geradas eram benéficas para o engrandecimento do clube e do
próprio esporte. Proni (2000) argumenta que os defensores do amadorismo,
no entanto, não estavam preocupados apenas com os princípios amadores,
mas também com o controle da modalidade. “Estava em jogo não apenas a
128 - Observa-se que a lógica é semelhante à da re l igião. A igreja ar recadadinheiro, mas seus clér icos não estão lá para obter lucro ou salár ios.
93
preservação dos princípios éticos do esporte amador, mas o próprio controle
da modalidade.”(p.27)
Neste momento, seria possível especular sobre o pensamento dos
amadores daquela época: “vamos manter nosso passatempo somente entre
nós, onde buscaremos nossa diversão de forma exclusiva, ou vamos admitir
a inclusão de outros jogadores que venham a valorizar o espetáculo
esportivo?” Obviamente que a hipótese acima elaborada é contra-factual e
demasiadamente oportunista. Por hora, sugere-se apenas que os valores
morais se confrontavam com a busca pelo desenvolvimento do esporte e
com a acumulação.
Lever (1983)129 afirmou que o profissionalismo passou a ser uma
questão moral, que demonstrava a existência de um conflito de classes
através do futebol. Já em 1880, o futebol era capaz de atrair 10 mil
espectadores pagantes para uma partida, o que poderia reverter para
pagamento dos “jogadores para disporem de mais tempo para aperfeiçoar
suas habilidades.”(p.61) Se havia dinheiro, por que não utilizá-lo no
melhoramento da qualidade do jogo, buscar a excelência? Investir na
excelência dos jogos passou a ser um princípio sustentado por alguns
dirigentes e solicitado por parte dos jogadores.
De fato, esta atitude começou a mexer com as bases fundamentais
do amadorismo, onde o dinheiro passou a ser utilizado também na
remuneração do jogador que dedicava seu tempo para cumprir as
129 - Janet Lever aponta uma publicação de 1875 de James Walvin, The Peoples’sGame: A social History of Bris t ish Footbal l , onde já se relatavam os conf l i tos declasses , devido à prof iss ional ização do futebol.
94
exigências do clube. Parecia estar em jogo a competência necessária para
melhorar o espetáculo. Devido à busca da superação do rendimento,
procura pela eficácia atlética, foi possível a abertura de espaços para que os
operários se apropriassem do esporte e também passassem a ser “matéria-
prima” disponível no mercado esportivo que se formava.
Lever (1983) afirma que a remuneração provocou um impasse entre
os dirigentes ingleses e a resposta veio na ameaça dos clubes do norte (que
remuneravam seus jogadores) em abandonar a FA e criar sua própria
competição. A mesma constatação foi feita por Murray (2000), porém, coloca
que neste período ocorreram confusas restrições, que logo foram
abandonadas.
A aceitação dos jogadores profissionais pela Football Association
teria ocorrido em 1885. Conforme Lever, aqueles que detinham o poder
criaram barreiras:
“Chegou a um acordo em 1885, quando a Football Associationaceitou os profissionais, mas proibiu-os de servirem em qualquercomitê ou comparecerem às reuniões da associação. Ou seja, acompensação para a presença de profissionais no campo era ocontrole administrativo do futebol por amadores.”(p.61) 130
Entretanto, Murray (2000) coloca que a solução teria vindo com a
criação da Liga de Futebol (LF), a qual pretendia ter no seu gerenciamento a
participação também dos escoceses e, por isso, não foi adotada a
130 - Lever apropr iou dos apontamentos do l ivro de Gadner , Paul (1976) Thesimplest game: the intel l igente American’s guide to the world o f soccer . Boston.Li t t le Brown.
95
denominação de Liga Inglesa de futebol, que inicialmente havia sido
cogitada, mas não se adequava à inclusão dos clubes escoceses.
As argumentações de Murray (2000) apontam que, antes da
legalização do profissionalismo na Inglaterra, os salários pagos aos
jogadores eram insuficientes, fazendo com que buscassem outras fontes de
sobrevivência.131 Com a legalização, novos parâmetros de controle
passaram a ser utilizados, principalmente na relação trabalhista entre os
empregadores e seus funcionários. Essa situação foi defendida pelos
proprietários industriais do norte, que viam na profissionalização uma forma
de restauração das relações. Com a legalização profissional, o jogador
passaria a estar vinculado a um contrato, tendo seus salários definidos
nestes contratos (Murray, p.33).
Com a legalização estabeleceu-se o valor. Para os jogadores
ingleses a remuneração anual máxima estava fixada em 280 libras, inclusive
aponta Murray que se proibiam as bonificações, consideradas prejudiciais
ao esporte:
“Os grandes clubes desejavam oferecer salários maiores, maseram vedados pelos que queriam manter certa igualdade. Ojogador tinha pouco a dizer sobre o assunto. Pior ainda, era“preso” por um sistema de contratação e transferência, que davaao clube um controle praticamente total sobre ele. Com o contrato
131 - Observa-se que, no Brasi l , mesmo no f inal do século XX, 64 anos após aconcret ização do prof iss ional ismo, ainda ocorr ia o mesmo. A Folha de São Pauloapresentou em edições especiais , no ano de 1997, uma sér ie de repor tagensint i tulada “País do Futebol” , onde apontara os fatos e mazelas mais vis íveis dofutebol bras i le iro. Na edição de 23 de fevereiro, t rás uma reportagem sobre acondição do jogador , Abismo econômico cria mundo de mil ionários e miseráveis .A repor tagem aponta o percentual de jogadores que ganhavam 1SM(aproximadamente 80 dólares) , onde 50,8 % dos jogadores profiss ionaisbrasi le iros, regis trados na CBF em 1986, estavam nesta faixa salar ial . Folha deSão Paulo . Especial . País do Futebol . 23 de fevereiro de 1997.
96
assinado (com um pagamento máximo de dez libras), o jogadortornava-se propriedade do clube e não podia sair exceto com suapermissão. Se o clube oferecia ao jogador o mesmo salário pagono ano anterior, não tinha do que queixar.” (p.33)
Murray ironiza a atitude dos dirigentes, colocando que tal atitude era
uma variante do socialismo no campo esportivo, jamais tolerada fora de
campo.
Para assegurar suas resoluções, bem como evitar o êxodo dos
jogadores em busca de melhores salários, um acordo entre os dirigentes da
LF inglesa e seus pares na Escócia, Irlanda e País de Gales, bem como a
Liga do Sul da Inglaterra, proibia os jogadores de atuarem fora do Reino
Unido até 1920 (Murray, 2000). Nota-se que esta pressão dos dirigentes
visava coibir o êxodo dos jogadores em busca de melhor remuneração e,
por intermédio deste acordo, o jogador ficaria sem opção, sujeitos a
determinações dos dirigentes.
Até que o profissionalismo passasse a ter total aceitação pública, os
clubes britânicos que já adotavam em seus quadros os jogadores
remunerados os requisitavam das inúmeras associações de amadores,
geridas por órgãos municipais (igrejas, escolas, batalhões de brigada etc)
que promoviam torneios onde os rapazes podiam ser descobertos por
‘olheiros’132 dos times profissionais (Murray, 2000:32). Depara-se com uma
132 - Este termo está presente no l ivro de Murray, todavia , pode ter s ido opção dotradutor , pelo fato desta expressão ser conhecida na nossa l íngua e bastante atual .Entretanto, Penna o def ine como “aquele que descobre jogadores em clubes dointer ior” (p.158) . Penna Leonam. (1998). Dicionár io popular do futebol : o ABCdas arquibancadas. Rio de Janeiro. Nova Fronteira .São os chamados caça- ta lentos, que cot idianamente vis i tam os centro detreinamento , escol inha, c lubes, comunidades onde o fu tebol é prat icado,objet ivando selecionar os jovens at le tas que possam ser contratados ou
97
narrativa brasileira, quanto à forma de inserção e à apropriação do jogador
pelos clubes. Observa-se que esta dinâmica no esporte parece ter sido
muito semelhante em diversos países. Igrejas, escolas, militares foram
determinantes na confirmação do perfil esportivo em diversas nações.
Na Inglaterra, naquele período, as instituições de ensino eram os
organismos que sustentavam o amadorismo, enquanto alguns clubes já
demonstravam a possibilidade de se desenvolver o futebol, tendo em suas
equipes os atletas profissionais; para isso, pressionavam os órgãos
dirigentes que zelavam pelo amadorismo. Entretanto, alguns clubes
permaneciam empenhados e comprometidos com os seus ideais esportivos
amadores, como era o caso do Corinthians Sport Club133, que, inclusive, se
recusava a disputar campeonatos em que estivessem presentes equipes
profissionais. Segundo Nicolini (2000), o Corinthians da Inglaterra
permanece até hoje como um baluarte do esporte amador. Não foi possível
perceber como Nicoline se apropria do conceito de amador para afirmar que
esse clube permanece mantendo esse status.
Segundo Lever (1983), os amadores que dirigiam a associação
eram das elites inglesas, inclusive alguns deles membros da nobreza,
comercial izados. Sal les , José Geraldo do C. (2004). Escola de fu tebol : cr iação,seleção de a t iv idades, p lanejamento, organização e controle . (No prelo)
133 - Nicol in i , Henr ique apresenta um argumento carregado de folclore acerca doespír i to esport ivo, comprometido com os ideais amadores do Corinthians.“Segundo nos conta ( . . . ) , esse clube era tão puro e correto em seu cavalheir ismoque, se o Corinthians f izesse um pênal t i , o goleiro do t ime nem se mexia paradefendê- lo . A própr ia equipe se punia da fal ta cometida”. Nicolini , Henrique.(2000) . Tietê: o r io do esporte . São Paulo. Phorte Editora .Segundo Hamil ton (2001), o Corinthians, inclusive, recusava a adoção da regra dapenal idade máxima, por negar a admit i r que cavalheiros cometer iam fal tas . Nota-se aqui uma evidente marca romântica .
98
enquanto os dirigentes dos clubes eram provenientes da classe média e
também dos nouveau riche. Lever (1983) realizou sua análise apoiada
novamente em Walvin, ao apontar os fatos:
“Foi à comunidade dos industriais, empresários e comerciantesbem-sucedidos que se instituiu como a benfeitora do esporte; aoinvés de ganharem dinheiro, esperava-se que tais homensfizessem doações ou empréstimos sem juros aos clubes, nosmomentos de dificuldades. Esperava-se também queaproveitassem suas posições fora dos clubes para ofereceremaos jogadores empregos de tempo parcial e depois de encerradasas carreiras futebolísticas, como um meio de atrair os talentos deprimeira categoria para suas equipes. O que eles obtinham emtroca era o prazer de servir a suas comunidades, o poder decontrolar os times que amavam e a publicidade gratuita para atrairnovos negócios e promover ligações políticas.” (p.62)
O processo de profissionalização alcançado em 1885 teria surgido
pela constatação da inevitável transformação ocorrida no perfil do jogador,
que já entendia sua ação como força capaz de gerar lucros para os clubes e
federações e por perceber “o poder que residia em suas chuteiras.”(Murray,
2000. p.32) Diante da pressão dos jogadores e de alguns senhores
interessados, a FA não teve como negar o reconhecimento do novo regime.
Neste contexto, as argumentações eram colocadas buscando
justificar a forma de envolvimento entre os dirigentes e os jogadores com os
clubes. Os dirigentes queixavam-se do fato de os jogadores não
demonstrarem o mesmo tipo de envolvimento afetivo que eles, exigindo
dinheiro para jogar. Sustentavam-se na lógica do comprometimento
emocional, desvinculado do interesse pecuniário, entendendo que o clube
deveria ser um espaço de relações sociais e que o futebol deveria ser
99
entendido como uma complementação desta sociabilidade. Para os
dirigentes, os jogadores deveriam se enquadrar nesta mesma perspectiva.
De certo modo, queriam, inclusive, impor que os jogadores se
enquadrassem nesta mesma lógica e, portanto, não achavam legítima a
reivindicação do regime profissionalizante. Todavia, os argumentos de
alguns jogadores, principalmente os defensores da profissionalização,
evocavam outras questões.
Os jogadores argumentavam que os dirigentes usufruíam dos
benefícios proporcionados pelos cargos que ocupavam, adquirindo poder e
prestígio social e, obviamente, os ‘lucros indiretos’. Para os jogadores, no
entanto, restava apenas o prestígio esportivo, isto é, só teriam
reconhecimento público mediante as façanhas esportivas do clube.
Os jogadores questionavam, ainda, o fato de que os benefícios e o
vínculo dos dirigentes poderiam se estender por vários anos, o que
simbolizava uma maneira desigual de envolvimento, diferentemente dos
atletas que em pouco tempo encerravam sua carreira esportiva e
rapidamente perdiam sua estima perante a sociedade e os associados do
clube, ou seja, para o jogador, o prestígio era efêmero, enquanto a trajetória
do dirigente poderia ser duradoura. Devido a estes argumentos, observados
principalmente, pelos jogadores populares, surgia a simpatia pelo regime
profissional.
A não aceitação pelos clubes do sul impulsionou naquela região a
criação de uma nova entidade Associação de Futebol Amador, destinada a
100
manter firme os ideais amadores. Tal associação, no entanto, não obteve o
êxito esperado, durando menos de uma década (1907 a 1914).
A importância do futebol na nova cultura inglesa podia ser
constatada desde cedo pelo aumento do número de torcedores, bem como
pela composição desta torcida, formada por indivíduos de distintas classes
(Giulianotti, 2002. p.20). Desde 1888, a média de público nos jogos vinha
apresentando aumento substancial. No ano de 1888, a média era de 4.600
pessoas e, em 1895, já atingiria 7.900. Dez anos depois, chegaria a 13.200
pagantes, em média (p.20).
Os maiores clubes na época eram favoráveis a um mercado livre de
trabalho para os jogadores, mas alguns diretores apontavam que os salários
eram altos e comprometiam as finanças. A tentativa do teto salarial de 4
libras esterlinas, imposto pela FA em 1901, não era respeitada (Giulianotti,
2002. p.21). Para ludibriar as imposições da federação, os clubes efetuavam
pagamentos clandestinos e/ou arranjavam postos de trabalho falsificados,
como mecanismo para remunerar indiretamente os jogadores. Observa-se
que a idéia de limitação provavelmente se sustentava na prerrogativa de
tentar controlar o fluxo de jogadores entre os clubes e, desta forma, aliviar a
pressão que os dirigentes poderiam sofrer de forma generalizada.
Na Inglaterra, o rugby também teria passado por crises similares
durante o período de sua afirmação. A tensão entre o amadorismo e
profissionalismo também fizera parte da solidificação da modalidade,
101
conforme apontam Eric Dunning e Kenneth Sheard (1989)134, em La
séparation des deux rugbys, quando desenvolveram um estudo mostrando a
trajetória de afirmação da modalidade entre os praticantes do norte e do sul,
onde originaram duas ligas independentes: uma que manteve o vínculo
estritamente amador e outra que gerenciaria a modalidade
profissionalmente. As associações eram administradas por duas
organizações distintas: a l’Union – Rugby Football Union, que se refere
exclusivamente a um ethos puramente amador, e a Ligue de Rugby, que
admitia jogadores amadores e profissionais. Interessante observar que,
diferentemente do futebol, na Inglaterra, o rugby profissional, na atualidade,
não tem o mesmo prestígio, ficando a organização amadora como a
principal força da modalidade perante a população. As empresas que
patrocinam os eventos de rugby demonstram mais estima pela liga
amadora, uma vez que ela desperta mais a simpatia popular. Surge, então,
o paradoxo. Conseqüentemente, a organização amadora do rugby recebe a
atenção da mídia e dos principais investidores no campo esportivo.
Nota-se que as narrativas destes autores consultados (Lever, 1983;
Proni, 2000; Giulianotti, 2000; Murray, 2000; Hamilton, 2001; entre outros)
apontam para a tensão entre os indivíduos que queriam manter o futebol
como fonte de lazer, dentro do ‘espírito amador’- os românticos puritanos, e
os interessados em consolidar a remuneração oficializada, por intermédio do
regime profissional. Todavia, rapidamente viram surgir uma demanda
134 - Dunning, Er ic & Sheard, Kenneth . (1989). La separat ion des deux rugbys. In :Actes de la recherché en sciences socials . n º 79, septembre. Paris . College deFrance.
102
popular que ansiava por um esporte mais competitivo. Para os
conservadores, os valores éticos e morais foram desvirtuados daquilo que
Dunning (1992) chamou de ideologia elaborada e cristalizada,
“isto é, constituía uma representação coletiva, desenvolvida pelosmembros de uma coletividade em oposição aos membros de outraque consideravam uma ameaça, quer em relação à suaproeminência organizativa e de jogo, quer quanto às formas dedesporto, tal como entendiam que devia ser praticado.” (p.315)
Vejamos a idéia de que o profissionalismo era visto como uma
ameaça aos valores sociais. Os conservadores se pautavam nesta
perspectiva da ameaça para contra argumentar sobre as transformações
(Hirschman 1992).
A concepção romântica, visionária, que condicionava o futebol
inglês a um ethos de uma classe de privilegiados, onde os indivíduos de boa
família podiam ampliar seus contatos, criando elos de comprometimento,
respeitabilidade e prestígio, rapidamente tornou-se frágil, provocando uma
mudança estrutural no esporte dentro da sociedade inglesa. Desde os anos
finais do século XIX, a sociedade passou a valorizar o futebol como
espetáculo público.
Dunning argumenta que o ethos amador já estava presente na Grã-
Bretanha antes da década de 1880, mas de forma relativamente rudimentar.
Tratava-se de um conjunto de valores amorfo, “articulado de maneira vaga
no que diz respeito às funções do desporto e aos padrões que se acreditava
serem necessários a sua realização.” (p.314)
103
Parece que os atritos, os percalços, as desconfianças, as
prerrogativas que marcaram o processo da profissionalização inglesa
estenderam-se a outros países, como aconteceria mais tarde na Argentina,
no Uruguai e Brasil. Um esporte que, ao se tornar popular, necessitou da
reestruturação de suas bases organizativas, mediante a nova demanda
social que estabelecia, ao seu redor, uma tensão entre as classes que
dominavam a modalidade em conflito e as classes de baixo. Veblen
(1974)135, apontara este mesmo fato ao desenvolver seus estudos sobre a
estrutura econômica das instituições. Argumentou Veblen que se tratava de
uma tensão dos indivíduos de baixo, para ascender e conquistar o espaço
nas camadas superiores; em contrapartida, existem a desconfiança e o
fechamento dos indivíduos das classes superiores que queriam manter o
espaço de distinção.
Parece que os indivíduos que se colocavam como responsáveis
pela implantação do futebol, mesmo algumas décadas depois, não
imaginavam a crescente expansão da modalidade em praticamente todos os
espaços urbanos e sua aceitação em todas as camadas sociais. Pensavam
e tentavam manter o futebol como um espaço de diferenciação social. Nos
anos finais do século XIX e décadas iniciais do século XX, esta foi a tônica
135 - Veblen, ao real izar um estudo econômico das inst i tu ições, constatou que asclasses ociosas impunham às classes infer iores muitos traços de sua estru tura devida social , como resul tado do prolongamento cont ínuo, do cul t ivo mais ou menospersis tente dos traços ar is tocrát icos que propagavam. Segundo Veblen, na medidaem que as r iquezas foram acumuladas, desenvolveu-se uma classe ociosa, e oacesso a es ta c lasse se fazia por meio da demonstração pecuniár ia , is to é , acapacidade de ostentação pública. O ócio precisava ser v is to . Parece possível queo espor te tenha desempenhado este papel no f inal do século XIX e in íc io doséculo XX. Todavia, o espor te desde aquele momento poss ibi l i tava que osindivíduos de classes infer iores buscassem prest ígio , ao se aproximarem dasclasses super iores .
104
do debate – a idéia de diferenciação do espaço social – onde os “filhos de
boa família” pretendiam ter o clube como seu local de distinção em relação
às classes populares. Possivelmente, esta idéia de fechamento que
imperava nos principais clubes ingleses foi refletida também na formação
dos clubes de elite brasileiros, naturalmente tendo o ideal amador inglês
como pano de fundo.
Tendo em seus quadros de jogadores os “filhos abastados”, a idéia
da remuneração dos jogadores parecia inaceitável, por ser corrompedora
dos ‘valores do esporte’. Se o praticante tinha dinheiro, não havia
necessidade de remuneração. A partir do momento em que o futebol se
tornou um espetáculo, novos valores e aspiração passam a reger o
desenvolvimento da modalidade. A competência técnica e a habilidade eram
requisitadas independentemente da classe a que o jogador pertencesse,
obviamente, ainda com grande resistência de alguns conservadores.
Todavia, ficava difícil reservar espaço nas equipes para os jogadores das
‘elites’, se eles não fossem capazes de corresponder ao desempenho do
jogo. Portanto, o privilégio da prática passava a ser questionado, se o
praticante não respondesse com um futebol eficiente.
A competência esportiva individual (ou excelência esportiva) era a
força que os indivíduos das classes populares utilizavam neste combate e a
forma de pressionar a sua inclusão. Poderíamos aqui pensar nas análises
realizadas por Roberto DaMatta (1982)136 acerca do futebol brasileiro, ao
136 - Segundo DaMatta , o futebol é “uma forma de igualdade aber ta e al tamentedemocrát ica, pois que in teiramente fundada no desempenho” (p .39) . DaMatta ,Rober to. (1982). Espor te na sociedade: um ensaio sobre o fu tebol brasi le iro In:
105
apontá-lo como um espaço onde o desempenho é o fiel da balança.
Rapidamente os clubes perceberam a necessidade de ter em suas equipes
jogadores que correspondessem ao novo rumo do esporte. Ter os melhores
jogadores neste contexto passou a ser sinônimo de prestígio para os
associados e dirigentes do clube. Portanto, ostentar em suas equipes os
melhores jogadores, mesmo tendo que remunerá-los, representava uma
nova forma de poder, entretanto, não somente o poder simbólico da
representação esportiva, ao se ter uma equipe vencedora com jogadores
competentes, mas também os benefícios financeiros diretos que as
bilheterias favoreciam, provenientes dos reflexos despertados pela
excelência esportiva apresentada por estes jogadores.
Mediante as argumentações dos autores citados, ousamos, neste
momento, apontar algumas hipóteses que julgamos ter contribuído para a
implantação do profissionalismo na Inglaterra. Acreditamos, ainda, que tais
fatores possam estar inter-relacionados e se assemelham bastante aos
motivos que conduziram à profissionalização brasileira: a) a busca do
jogador da classe trabalhadora para melhorar a competência do jogo acabou
se tornando um local de ascensão social via esporte; b) a necessidade dos
clubes em melhorar suas equipes, mostrando-se competitivos e suplantando
os clubes rivais; c) a elevação do nível técnico do espetáculo; d) o atrativo
popular pelo espetáculo esportivo, inclusive pelo fato de que passou a ser
um espetáculo pago e, com isso, a cobrança do público pagante pelo
melhoramento da eficiência e qualidade; e e) o elevado envolvimento das
Rober to DaMatta , R. et al . Universo do futebol : espor te e sociedade brasi le ira .Rio de Janeiro. Pinalotheke.
106
classes populares na prática e, consecutivamente, a elevada demanda de
jogadores qualificados.
O levantamento da historiografia do futebol inglês foi realizado
objetivando-se o conhecimento dos percursos e tensões provocados pela
profissionalização do esporte, no país que serviu de espelho para o modelo
esportivo adotado no Brasil (Elias e Dunning, 1992), bem como em outros
países ocidentais. Observa-se que a tensão apresentada nas narrativas se
assemelha ao que se vivenciou aqui no Brasil nas décadas de 1920 e 1930
do século XX. Todavia, é interessante observar que, apesar de se ter
seguido o modelo inglês para a formação dos clubes brasileiros, o processo
de profissionalização encontrou forte resistência, mesmo após a
consolidação da profissionalização na Inglaterra.
Nos capítulos seguintes, objetivou-se analisar, no Brasil, o modo
como o terreno foi preparado e as tensões travadas entre os pró-
profissionalismo e aqueles que insistiam em manter o esporte como caráter
de distinção social e lazer.
Capítulo IVA rápida difusão do futebol - Uma volta pela história dofutebol brasileiro através do Rio de Janeiro
107
Conforme Pereira (2000), desde o início do século XX, o esporte
vinha sendo divulgado pelos jornais e periódicos da época. Nesta obra,
aparecem fotocópias de imagens jornalísticas datadas desde 1902. Embora
naquela época fossem informações que vinculavam o esporte ao modismo
elegante, já se presenciava maior atenção ao futebol, em detrimentos aos
demais esportes da época. O fato de o futebol ter adquirido prestígio nas
altas rodas cariocas despertou a atenção de comerciantes e empresários
que viam neste esporte uma grande possibilidade de lucro. Portanto, a idéia
do lucro e do interesse econômico já estava presente desde os anos
iniciais. Pode-se perceber que o mesmo teria ocorrido na Inglaterra, como
analisado anteriormente. Portanto, no Brasil, parece ter sido uma
conseqüência da expansão da modalidade em todos os sentidos. A partir
deste instante, “os jornais esportivos multiplicavam-se, tendo já no futebol
um de seus assuntos principais.” (Pereira, 2000. p. 77) 137.
Portanto, ao contrário da “profecia” de Graciliano Ramos, em 1921,
o futebol não se constituiu como “um fogo de palha”, um modismo
passageiro na cultura brasileira. Parece que Graciliano falhou em sua
profecia, pois Pereira nos demonstra que neste período o futebol já havia
ganhado a atenção popular.138
137 - Pereira coloca que mesmo os grandes jornais adotar iam a part i r de então umaati tude bem diferente com o jogo. Ao contrár io do desleixo de anos anter iores ,e les passavam a not ic iar cada uma das disputas do campeonato, chegando, porvezes, a desculpar-se com o público le i tor , quando, em ocasiões especiais como ocarnaval , precisava trazer a seção esport iva “mais reduzida e sem a ampli tude”habi tual . (Pereira 2000. p .77) .
138 - Ver Soares , Antonio, J . & Lovisolo , Hugo. (2001). O futebol é fogo de palha:a “profer ia” de Graci l iano Ramos. In : Ronaldo Helal , Antonio Jorge Soares &Hugo Lovisolo . A invenção do país do futebol . Rio de Janeiro. Mauad.
108
A modalidade alcançou praticamente todos os segmentos sociais.
Os jornais buscavam, desta forma, corresponder às expectativas dos seus
leitores e, portanto, o futebol tornou-se rapidamente um importante atrativo.
Pereira (2000) relata que, a partir de 1905, quando o futebol deixou
para trás sua feição de novidade, ganhou a marca de um esporte triunfante.
Por chamar a atenção de “uma mocidade dispersa”, o futebol dava motivo
para a formação de inúmeras associações. Segundo Pereira, ao final de
1906, já haviam sido fundados mais de 30 clubes. Essa popularização
crescente desencadeou um descontentamento por parte de alguns
segmentos, imprensa e jogadores dos clubes de elite, que começaram a
perceber a popularidade repentina do futebol como uma afronta ao
cavalheirismo e ao fair-play, desviando a modalidade dos princípios
pretendidos pelos verdadeiros sportsmen. (p.60)
Essa nova perspectiva deflagrada pela apropriação popular do
esporte impulsionou uma nova tentativa de se frear esse crescente avanço
de popularidade, que, segundo Pereira (2000), não se restringia apenas ao
futebol, uma vez que essa busca pela distinção de classes se aplicava
também ao remo. Um dos mecanismos utilizados para a contenção desta
‘invasão desqualificada’ se deu inicialmente por intermédio da cobrança de
taxas elevadas para o ingresso nas associações elitistas. Mais tarde,
quando perceberam que a medida ainda não estava filtrando alguns
indivíduos, criaram outras medidas de contenção (Caldas, 1990)139, que era
139 - A AMEA cr iava outros mecanismos de controle sobre o jogador:1) “Todo e qualquer jogador at le ta de fu tebol deverá apresentar à comissão desindicância , a cada noventa d ias , a prova de que trabalha”;
109
a necessidade de o pretendente a sócio mencionar, na proposta de filiação
ao clube, o posto que ocupava no trabalho. Estavam vetados aqueles que
porventura tivessem ocupado funções operárias: “não ser nem ter sido
profissional de qualquer serviço braçal.” (p.63) Observa-se como o
fechamento se dava diante do perfil elitista. Pretendiam com tal medida
coibir a presença de pessoas cujos trabalhos fossem sem qualificação
social, isto é, proibiam a prática de jogadores que se ocupassem de
trabalhos que não exigissem qualificação do indivíduo.
As análises de Pereira apontam que o esporte em determinado
momento exerceu a função de mecanismo de diferenciação, uma vez que “o
campo dos direitos civis não servia mais para distinguir os indivíduos.”(p.67)
A aparência (roupas e modos) passou a ser um dos mecanismos iniciais de
diferenciação. Portanto, vestir-se bem, comportar-se com bons modos, ter
gestos refinados constituíam o “cartão de visitas” do indivíduo,
indiferentemente de sua condição econômica, naquele espaço público em
expansão, onde os mecanismos de controle sobre os indivíduos eram
deficitários, pois não havia como controlar a origem, a procedência, os
vínculos dos indivíduos nos grandes centros urbanos. Observa-se que os
mecanismos de controle eram inoperantes, pelo menos no plano visual,
exceto quando se pertencia à raça negra, pois nesta condição os
2) “Na prova apresentada à comissão de s indicância deve constar o valor do seuordenado”;3) “Todos e qualquer at le ta do futebol devem ler e escrever corretamente”;4) “Antes do jogo, o at le ta deverá preencher a ‘papeleta de inscr ição’ para poderadentrar ao gramado, d iante do árbitro, do pres idente da Associação ou de umfiscal da Comissão de s indicância”. Caldas (1990) .
110
mecanismos de despistamentos perdiam, em parte, seu sentido. Disfarçar
as evidências da raça não era (e não é) possível.
Somente quando surgiram outros mecanismos de controle (carros,
relógios de marca, roupas de grifes) é que novamente outras estruturas de
controle foram apropriadas. Richard Sennett (1989)140 relata que Jean-
Jacques Rousseau, analisando as metrópoles, comparou a cidade a um
grande teatro, onde os indivíduos representam a vida pública. Segundo
Sennett, Rousseau lamentava que o surgimento das grandes metrópoles,
ainda no século XVIII, dificultou ou praticamente extinguiu o mecanismo de
controle sobre o cidadão, pois suas posições sociais ficaram camufladas.
Nesta nova cidade, com sua expansão, o indivíduo pode representar um
status incompatível com condição social. Devido à complexidade das
relações nas grandes cidades, não se pode ter certeza do tipo de homem
com o qual se está tratando. O homem tornou-se um ator, que representa o
perfil que lhe é conveniente em algumas circunstâncias. Sennett relata que
as pessoas manipulam suas aparências, buscando receber a aprovação
dos outros e, desta forma, sentir-se bem consigo mesma. É provável (a
certa medida até aceitável) que o jogador de futebol tenha agido com a
mesma estratégia.
Nicolau Sevcenko (1992)141 entendia a expansão do futebol
também como um embaralhamento das posições sociais:
140 - Sennet t coloca que as pessoas são dependentes das outras para conseguiremter uma percepção de s i próprias . Sennet t , Richard. (1989) . O declín io do homempúblico – as t i ranias da in t imidade. São Paulo . Companhia das Letras .
141 - Sevcenko, Nicolau. (1992). Orfeu extát ico na metrópole. São Paulo.Companhia das Letras.
111
“Fosse como fosse, visto pelo alto ou pela base da hierarquiasocial, no centro ou na periferia, o futebol propiciava oembaralhamento das posições relativas, suscitava identificaçõesdesautorizadas, invadia espaços interditos e desafiava tanto otempo do trabalho quanto o do lazer. Esse componenteindisciplinado, essa pressão insurgente contra espaços erestrições discriminadoras, se incomodava alguns grupos, poroutra lado atraia multidões.” (p.61)
Esta trajetória da incorporação do futebol na sociedade brasileira
modificou as estruturas gerais das organizações esportivas da época.
Quando a prática passou a ser difundida por praticamente todas as parcelas
populacionais, os clubes de menores expressões econômicas, os dos
subúrbios, começaram a reivindicar a participação nos principais eventos.
Essa busca de espaço comum provocou desestabilidade nas ligas que
gerenciavam o esporte dos clubes de elite. Diante desta pressão, tais clubes
buscavam manter seus distanciamentos, invocando outros mecanismos de
diferenciação, como pagamentos de elevadas taxas, exigência de
instalações esportivas modernas, entre outros (Pereira, 2000). Entretanto, as
pressões exercidas pelos clubes dos subúrbios e de menores expressões
funcionaram como propulsores das transformações políticas e gerenciais por
que o esporte foi passando.
As modificações, embora pareçam penosas, através de muitas
lutas, desmandos dos mais fortes142, repressão política, entre outros fatos,
142 - No Livro de Flor iano Peixoto Correa, aparece na página 120 uma foto ondedois pol ic iais es tão re t irando de campo um jogador negro. Abaixo da fo to , Corrêacoloca: “Um f lagrante t ípico do amadorismo: dois gr i los conduzem preso ojogador Nilo”. Pensamos que a fo to poder ia sugest ionar outras in terpretações.Todavia, é emblemática a forma com que o autor se apropr ia desta imagem para
112
ocorreu de forma bastante rápida. Os dados apresentados por Pereira
(2000) mostram que, em 1907, os jornais cariocas notificavam cerca de 77
clubes de diferentes condições sociais e, em 1915, este número era quase
três vezes maior. Pereira afirma ter realizado levantamentos diários no jornal
Imparcial, onde constatou que eram freqüentes os surgimentos de novas
associações, quando contabilizou a existência de 216 clubes.
Esse elevado número de clubes teria provocado,
conseqüentemente, o surgimento de outras ligas143 para que pudesse
organizar os campeonatos para todos estes novos clubes e suas demandas.
Todavia, tais associações não permaneciam ativas por muito tempo, em
razão de seu gerenciamento se tornar inoperante, devido a tensões entre os
clubes afiliados e seus distintos propósitos. Todavia, a cada temporada,
nova associação surgia e arrebanhava os dissidentes das outras
associações que se mostravam insatisfeitos com sua organização de
origem, bem como os novos clubes que surgiam. Segundo Melo (2000),
estas ligas populares eram denominadas de barbantes.144
apresentar sua argumentação sobre o racismo no futebol brasi le iro. Corrêa,Flor iano P. (1933). Grandezas e misér ias do nosso futebol . Rio de Janeiro . Flores& Mano Editores .
143 - Pereira (2000) relaciona inúmeras l igas que surgiram naquele per íodo: LigaSport iva Suburbana - 1912; Federação Brasi le ira de Foot-bal l - 1913; LigaSport iva de Foot-bal l - 1913; Liga Meridional de Foot-bal l - 1915; AssociaçãoBrasi leira de Sports At lét icos - 1915; Associação Carioca de Foot-bal l - 1915;Liga Sport iva Fluminense - 1915; Liga Municipal de Foot-bal l - 1916 e; LigaMetropoli tana - 1917. (p.121)
144 - Eram ass im denominadas “em referência às tampas de cerveja de baixaqual idade, produzidas no fundo dos quintais das residências car iocas” (p .23).Melo, Victor A. (2000) . Futebol: que his tór ia é essa?! In : Paulo Cesar R. Carrano.Futebol : paixão e pol í t ica . Rio de Janeiro. DP & A edi tora .
113
Outra possível hipótese referia-se à liberdade do jogador em se
mudar de equipe naquela época, uma vez que não havia nenhum regimento
que o obrigava a permanecer na mesma associação por determinado tempo
(Caldas, 1990:59). Poderia mudar por vontade própria ou por convite para
participar de outra liga que lhe parecesse mais interessante. Possivelmente,
os melhores jogadores que despontavam a cada temporada, desde aquele
período, já eram requisitados por outras equipes, o que poderia provocar o
desinteresse de alguns jogadores e do público por alguns clubes e ligas que
não apresentavam jogadores com bom nível técnico. O amadorismo marrom
poderia estar sendo cultivado por estes clubes periféricos, fazendo com que
a permanência do jogador em uma equipe fosse temporária. Diante das
possibilidades de melhoria (benefícios financeiros, prestígio, organizações
apresentadas por algumas das ligas etc), o jogador buscava o clube que lhe
fosse mais conveniente e lhe proporcionasse melhores perspectivas
financeira. Dessa forma, o universo de escolha dos jogadores já não mais se
limitava aos jogadores da elite. Tal situação pode ser entendida como
natural pela formação da população brasileira, que se encontrava em plena
expansão, onde a pobreza e a miséria já eram inquietantes.
A Liga Metropolitana fundada em 1917, a liga da elite, exigia que os
clubes que propusessem a filiação ao seu quadro que cumprissem algumas
exigências, tais como: possuir sede social, um campo de futebol, arcar com
uma jóia de admissão, pagar mensalidades e repassar a liga 10% da renda
bruta de seus jogos145. De acordo com Pereira (2000), estes requisitos não
145 - Os valores pagos como jó ia de admissão eram discrepantes e funcionavamcomo fator de controle para que os clubes pudessem per tencer às l igas e
114
eram possíveis para grande parte dos clubes menores. Conforme será
apresentado nos próximos capítulos, a ascensão do Vasco à primeira
divisão do futebol carioca provocou desestabilidade interna dentro da Liga
Metropolitana, devido à insatisfação das demais equipes frente ao sucesso
do Vasco na composição da equipe. A vitória do Vasco e outros problemas
fizeram surgir a AMEA e os desfechos subseqüentes.
Caldas (1990) afirmou que os demais times fundadores da AMEA
não teriam convidado o Vasco para integrar-se a eles. Todavia, coloca
Soares (1998146, 1999a147) que o Vasco teria sido convidado, mas o mesmo
se recusou a participar da AMEA, por sentir-se desprestigiado quanto a sua
representação, não tendo sido assegurado o mesmo poder de voto, em
relação aos demais clubes.
Observa-se que a divisão destas duas associações (METRO e
AMEA) se tornou um efetivo espaço de competição para o embate dos
dirigentes, onde a luta pelo poder era o principal fato. Naquele momento, os
princípios morais que fundamentavam as argumentações dos dirigentes
esportivos acerca do amadorismo já não se encontravam frouxos, sem as
fortes convicções que outrora valorizavam.
associações. Para se f i l iar à Liga Metropoli tana, o clube deveria pagar 2 :000$000,enquanto na Liga Municipal de Footbal l a jóia era de apenas 100$000. Apesar deser um valor bem menor , a inda assim, bastante elevado para inib ir que algunsclubes de condições econômicas infer iores se f i l iassem (Pereira , 2000. p . 121-122).
146 - Soares , Antonio Jorge. G. (1998). Futebol, raça e nacionalidade no Brasi l :re le i tura da his tór ia of icia l . (Tese de doutorado) . Programa de Pós-Graduação emEducação Física . UGF. Rio de Janeiro.
147 - Soares , Antonio J . G. (1999a) . Histór ia e invenção de tradições no campo dofutebol . In: Lúcia L. Ol iveira, Marieta de M. Ferreira & Celso Castro . Estudoshis tór icos: Espor te e lazer . Rio de Janeiro. Fundação Getúl io Vargas.
115
Segundo Soares (1998), a fundação da AMEA, a partir de novos
levantamentos, é mais bem explicada pela tensão entre a manutenção da
ética do amadorismo e a rápida popularização do futebol nos anos de 1910 e
1920 do século XX e pela dinâmica das instituições esportivas, ao contrário
da versão admitida por jornalistas e cronistas, que apontam ser o racismo a
principal razão da fundação da AMEA.
Parece que todos estes acontecimentos foram utilizados como
princípios norteadores para a discussão e o amadurecimento da proposta de
profissionalismo do futebol brasileiro. Se nos primeiros anos da década de
1910 os principais clubes de elite do futebol do Rio de Janeiro não admitiam
a possibilidade de profissionalismo, com as modificações ocorridas neste
período passaram a repensar suas opiniões.
Discutir o profissionalismo será o foco dos próximos capítulos.
Interessa-nos neste instante entender como o processo de massificação do
futebol se deu de forma tão rápida, observando-se as premissas de o futebol
naquela época ser considerado como um esporte para o lazer da classe de
elite, conforme apontamentos de Pereira, Caldas, Santos, entre outros.
Pareceu-nos que as barreiras impostas pela elite para barrar as camadas
socialmente menos favorecidas foram rapidamente quebradas. Qual seria o
motivo desta rápida abertura? Quais motivos passaram a dominar esta
mudança de perfil na aceitação dos clubes e seus associados? Estas
interrogativas passam a ser os balizamentos para futuras análises.
116
Capítulo VA tensão inicial do processo de profissionalização do futebolbrasileiro
A vivacidade para manter os princípios do ‘espírito’ amador no
esporte foi cultivada por vários clubes e seus dirigentes, durante as primeiras
décadas do século XX, pois acreditavam ser aquela a estrutura mais
apropriada para o gerenciamento e controle das agremiações, isto é, um
passatempo alegre e festivo, onde se reuniam os indivíduos socialmente
bem relacionados. Os associados dos clubes formados pelos burgueses e
elites buscavam atividades que pudessem refletir o seu estilo de vida, e o
esporte representava bem esta possibilidade. Veblen (1974) coloca no
capítulo XIV (A cultura superior como expressão da cultura pecuniária) que,
desde muito cedo, a vinculação aos esportes constitui uma forma de
refinamento aceito e de elevado prestígio social, pois, na sua percepção, o
mundo esportivo favorece o temperamento juvenil. Hobsbawm (1988)148
aponta a importância elementar do esporte no novo estilo de vida da classe
burguesa. O futebol parece ter correspondido a esta busca de um estilo de
vida jovial.
Fontes históricas retratam a tentativa em conservar o futebol como
esporte da elite, tentando coibir a presença de classes consideradas
inferiores do ponto de vista econômico e cultural (Pereira, 2000; Daólio,
2000; Caldas, 1990; Cunha, s/d). Os conservadores brasileiros buscavam
148 - Hobsbawm, Er ic . (1988). A era dos impér ios 1975 – 1914. Rio de Janeiro. Paze Terra.
117
um esporte com possibilidade de distinção social, possivelmente fruto da
influência da cultura européia, que praticava o esporte sem admitir outros
vínculos que não o prazer e o divertimento, conforme aportaram Elias e
Dunning (1992). Todavia, apesar desta constatação, quanto às tentativas de
exclusão das classes populares, parece que esta tentativa não foi eficiente,
pois não conseguiu frear o avanço do futebol nos mais distintos estratos
sociais. Ricardo Lucena (2002)149 argumentou que, no Brasil, a emergência
e difusão de práticas esportivas, que inicialmente surgiram como fruto de
uma classe, expandiram para outros segmentos, às vezes, de forma
involuntária e não planejada. Vejamos que em poucas décadas o futebol já
havia se tornado um esporte popular. Elias (1990)150 argumenta que
“Em todas as ondas de expansão que ocorrem quanto ao modelode conduta de um pequeno grupo se expandiu para classes maisnumerosas em ascensão, duas fase podiam ser claramentedistinguidas: uma fase de colonização, ou assimilação, na qual aclasse mais baixa e numerosa ainda claramente inferior e estavapautada no exemplo do grupo superior tradicional que,intencionalmente ou não, saturou-a com seu próprio padrão deconduta, e uma segunda fase de repulsão, diferenciação ouemancipação, na qual os grupos em ascensão aumentamperceptivelmente seu poder social e autoconfiança, enquanto ogrupo superior é forçado a uma maior moderação isolamento etornam-se maiores os contrastes e tensões na sociedade.” (p.268)
Talvez por falta de zelo dos narradores da época e apropriados por
alguns historiadores atuais, tenha ficado a falsa impressão da dificuldade de
149 - Lucena, Ricardo (2002). El ias individual ização e mimesis no esporte . In :Marcelo Proni & Ricardo Lucena. (Orgs) . Esporte : histór ia e a sociedade.Campinas – SP. Autores Associados.
150 - El ias , Norber t . (1990). O processo civ i l izador . Rio de Janeiro. Jorge Zahar .
118
inserção das classes economicamente menos favorecidas no futebol.151
Possivelmente, a barreira que sustenta a narrativa dos historiadores seja
observada pelos principais clubes elitistas, todavia em um período bastante
curto. Percebe-se, por meio de vários documentos (jornais e livros), que, já
no início do século XX, o futebol se tornara popular no Rio de Janeiro, capital
federal da época, sugestionando-nos algumas reflexões:
1ª - O fato de não pertencer à elite não significava o não direito à
prática do futebol. Acontece que, segundo as narrativas dos historiadores e
151 - Inclusive grande par te das narrat ivas e pesquisas apontava este processo deexclusão, refer indo-se à questão da raça, colocando-a como denúncia do racismona sociedade brasi le ira. Soares (1998) aponta , em sua tese História e invenção detradições no campo do futebol , uma cr í t ica àqueles pesquisadores em ciênciassociais e especif icamente no campo da his tor iograf ia do futebol, que debruçamsobre fontes sem anal isar ou invest igar a fundo os fa tos apresentados pelosautores. Soares constatou ta l real idade real izando uma rele i tura da his tór ia of ic ia ldo futebol no Brasi l e as questões raciais for temente colocadas pelos autores quepesquisam o racismo via fu tebol dentro da sociedade brasi le ira . Segundo Soares ,os autores , denominados por ele de “novos narradores” que se envolveram com otema, u t i l izaram como fonte pr incipal o l ivro de Mario Fi lho, denominado Onegro no fu tebol brasi leiro , edi tada pela pr imeira vez em 1947, contendo 5capí tu los, reedi tada em 1964 com dois novos capí tu los. Soares quest iona o fato deque “novos narradores” desenvolveram seus estudos, tendo a edição de 1964 comoprincipal fonte . Diante desta s i tuação, real izou suas invest igações e percebeu quea edição de 1947 apresentava dados que foram suprimidos na nova versão em1964, embora com dois capí tu los a mais . Coloca Soares que, ao se tomar a obra deMário Fi lho da forma que fazem os “novos narradores”, e les passam a confirmaras idéias do autor , b loqueando por d iferentes razões as pesquisas empír icas que sepoder ia real izar (p.6) . Coloca ainda que “a obra de Mario Fi lho é tomada comoprova para as in terpretações es tabelecidas a pr iori , sobre as re lações raciais nofutebol e na sociedade brasi le i ra” (p.7) . Aponta que as anál ises concordam acer ta medida, como uma espécie de denúncia do racismo: “o racismo no Brasi l é ,e sempre fo i , tão perverso e violento como em qualquer outro lugar . Assim,“racismo é racismo” (p.7) . Soares se repor ta a Hobsbawn (1997), para d izer que“as novas narrat ivas acabam por fazer par te da mitologia ou da invenção datradição do futebol brasi le iro” (p.120). A tese denominada ‘Futebol, Raça eNacional ismo no Brasi l: rele i tura da his tória o f ic ia l’ fo i defendida em março de1998, na Universidade Gama Fi lho no Rio de Janeiro . O debate or ig inado ocorreusobre o texto apresentado por Soares à Fundação Getul io Vargas, publ icado narevis ta Estudos histór icos em 1999, vol 13, p .119-146. Helal , Ronaldo & GordonJr . Cesar (1999). Sociologia, h is tór ia e romance na construção da ident idadenacional a través do futebol. In : Estudos his tór icos. Espor te e Lazer . Rio deJaneiro, Fundação Getúl io Vargas. vol 13, n .23. p .147-165p. Soares, Antonio J .(1999) . A modo de resposta . In : Estudos his tór icos. Espor te e Lazer . Rio deJaneiro, Fundação Getúl io Vargas. vol 13, n .23. p .147-165p.
119
cronistas, nas ligas fundadas pelos clubes de elite havia mecanismos de
proibição152 para que alguns seguimentos sociais pudessem fazer parte dos
seus eventos; fato comprovado pelos regulamentos das competições e dos
estatutos dos clubes, conforme argumentos desenvolvidos por Pereira
(2000);
2ª - Surgimento de outras ligas cujo objetivo era organizar o futebol
das classes periféricas, aquelas equipes que não encontravam espaço na
divisão principal do futebol brasileiro, que era formado pelos clubes de ‘elite’
(Pereira, 2000);
3ª - Quando sentiram a necessidade de se ter um futebol com
competência, os próprios clubes de elite criaram seus meios para reforçarem
suas equipes, ignorando parcialmente ou fazendo “vistas grossas” a alguns
critérios por eles mesmos adotados (Correa, 1933);153
4ª - Parece que, apoiados na tentativa dos primeiros praticantes
(filhos da elite aristocrata e economicamente favorecida), permaneceu por
muito tempo um discurso de discriminação e de exclusão, pelo fato de
quererem manter a prática somente entre eles, buscando referenciar a
modalidade como um critério a mais no processo de distinção social; e
152 - Pereira (2000) apresenta evidências da proibição que se fazia à par t ic ipaçãode alguns indivíduos nos clubes, d ivulgada no Jornal Gazeta dos Spor ts , Gazetade Notícias , (8 de março de 1907). O que era uma norma comum em associaçõescomo o Club Sport ivo dos Liberais – que, segundo os estatu tos aprovados em1906 acei tava um “i l imitado número de sócio de qualquer nacionalidade, excetopessoas de cor – tornava-se então uma norma geral a ser seguida por todos osmembros da l iga” (p.66) .
153 - Corrêa argumenta que, em 1915, já não causava espanto a grat if icação fei ta àsclaras aos jogadores em qualquer clube do Rio de Janeiro, São Paulo , Pernambucoe Rio Grande do Sul. Corrêa, Flor iano Peixoto. (1933). Grandezas e misér ias donosso futebol . Rio de Janeiro. Flores & Mano Editores .
120
5ª - O apelo social despertado pelo futebol154 o colocou em
destaque em praticamente todos os eventos sociais (religiosos, políticos,
entre outros) na época, demandando uma necessidade de melhorar a
organização e de se criar um compromisso formal dos jogadores.
Todos estes argumentos aparecem como indicativos da
transformação que ocorreria no perfil dos praticantes de futebol na
sociedade brasileira. Segundo Sevcenko (1992), os hábitos esportivos que
estavam presentes na sociedade desde o começo do século viriam
preencher o vazio da rotina cotidiana das comunidades; o esporte se torna a
‘moda’ pulsante das grandes metrópoles. “Assumir ostensivamente os sinais
associados ao novo ativismo atlético constitui um meio de patentear de
forma inequívoca à distância entre as gerações e a diferença entre as
mentalidades.”(p.49) Observa-se que a onda começava a ser formada. O
futebol assumia, de forma indireta, o papel de aproximação social através
desse tipo de socialização, isto é, indireta sem uma programação racional,
como mais tarde veio ser utilizado como mecanismo de aproximação política
por alguns governantes (Lever, 1983).
Os clubes desportivos que surgiram como modelo de
comportamento elitista, já na década de 1920, se expandem pelas periferias
e bairros e “se tornam em desdobramento natural das próprias uniões
operárias.” (Sevcenko, 1992, p.34-35) Por trás desta nova filosofia, estava o
154 - Alguns clubes pequenos (River . F.C. e 24 de Maio F.C.) já apresentavam asimpatia públ ica, sendo convidados para eventos fest ivos, colocando o fu tebolcomo atração em espaços mais amplos do que somente os estádios onde ocorr iamos jogos da l iga. (Pereira, 2000. p . 122)
121
perfil de jovialidade latente: “ser jovem, desportista, vestir-se e saber danças
os ritmos é ser moderno, a consagração máxima.”(p.34)
Esta nova conformação social, ampliada pela expansão urbana nas
grandes cidades (Rio de Janeiro, São Paulo etc), impulsionada pelo
crescente hábito esportivo (e principalmente pela massificação esportiva),
gerou uma nova dinâmica social. Antes, porém, o turfe e o remo eram as
modalidades que ocupavam o local de destaque no gosto esportivo do
carioca (Melo, 1999).155
A expansão urbana, devido ao deslocamento do espaço de trabalho
para regiões ou bairros afastados do local de moradia, provocou uma
modificação nos hábitos e, conseqüentemente, no perfil do lazer da
população. O tempo disponível fora do horário formal de trabalho possibilitou
o surgimento de uma vocação esportiva, seja na prática ou na apreciação de
eventos, como expectador. Especificamente no Rio de Janeiro, o turfe e o
remo, esportes preferidos até então, não permitiam o fácil acesso a todos os
interessados por diversos fatores, tais como: distância dos eventos
(geralmente localizados na zona sul), estrutura social que cercavam tais
modalidades (gramour), locais dos eventos (clubes sociais destinados à
elite) e necessidade de equipamentos e animais, que faziam destes esportes
um evento caro para as classes média e baixa. Desta forma, o futebol
encontrou um espaço na rotina diária da cidade; adequou-se a nova
estrutura urbana, criando possibilidades de prática nos mais distintos bairros
155 - Melo , Victor Andrade de. (1999) . Cidade ‘sport iva’ : o turfe e o remo no Riode Janeiro (1949-1903). (Tese de doutorado) . Programa de Pós-graduação em Ed.Fís ica –UGF. Rio de Janeiro.
122
e regiões. Pela simplicidade de sua organização e, principalmente, por não
demandar um investimento elevado para o indivíduo, acabava por atingir
diversos segmentos sociais.
Evidentemente que a organização estrutural primária, destinada a
gerenciar o esporte entre poucos clubes, passou a não corresponder às
exigências dos demais clubes, devido principalmente ao aumento do
público. A pressão dos praticantes dos clubes de menores expressões, os
de subúrbios, sobre os dirigentes provocavam desconforto e apontavam
para a necessidade de novas diretrizes. Todavia, diante das distintas
expectativas, a pressão dos indivíduos dos extratos sociais mais baixo sobre
as barreiras impostas pelos indivíduos das camadas sociais superiores fez
com que o espaço do futebol fosse tomado por diferentes embates. Veblen
(1974) argumentava que as classes superiores tendiam a impor às classes
inferiores parte de sua estrutura de vida, porém mantinham uma estrutura de
fechamento. Entretanto, a pressão das classes inferiores provocava a
abertura para sua inclusão nos status superior. Elias (1995)156 também
argumenta acerca da tensão das classes de baixo sobre as superiores, uma
vez que, nas sociedades modernas, “a força das camadas desfavorecidas
cresceu bastante em relação à das camadas afortunadas.”(p.68)
Consecutivamente, os indivíduos das camadas superiores tentam criar
outros mecanismos de fechamento, como pretendiam os dirigentes das ligas
de futebol destinadas à elite. Logicamente que esse processo é diferenciado
em cada evento e espaço social. Para o esporte, e especialmente no caso
156 - El ias , Norber t . (1995) . A sociedade de cor te . Lisboa. Edi tor ial Estampa.
123
do futebol, a busca da competência inerente ao esporte parece ter
viabilizado esta abertura, dificultando a implantação de outras estratégias de
bloqueio a jogadores de classes populares.
As ligas não apresentavam um regimento que conseguisse atender
a todas as exigências da dinâmica do esporte. Ainda hoje, nota-se que a
CBF e as federações estaduais continuam tendo problemas similares aos
anos de 1920 e 1930. A pressão dos grandes clubes para manter seus
privilégios e dos clubes menores para igualarem os direitos fazem parte do
freqüente debate jornalístico e popular. O discurso dos dirigentes dos
grandes clubes é de que a igualdade de direito seria uma ameaça aos
direito que outrora haviam conquistado. Nota-se aqui a retórica da ameaça
(1992).
Nesta perspectiva, os debates iniciais sobre o profissionalismo
surgiram de forma ambígua, onde os dirigentes se dividiram entre
interessados e contrários ao surgimento do regime profissional. Os discursos
geravam argumentos moralizadores que alimentavam ambos os lados.
Observemos esta tensão em consonância com as teses de Hirschman
(1992). Os dirigentes e jornalistas conservadores, aqueles contrários ao
regime profissional utilizavam a retórica da intransigência nas suas
argumentações. A) Alguns se sentiam ameaçados com a mudança, pois
acreditavam que seu espaço de distinção seria invadido por indivíduos que
não apresentavam o mesmo padrão social, e principalmente a eminência da
perda de poder (Tese da ameaça); b) outros argumentavam que a mudança
de regime poderia provocar um efeito contrário ao que alguns reformadores
124
acreditavam, pois a moralização através do contrato, mesmo que garantisse
o espetáculo poderia provocar uma despesa que o clube não teria condições
de arcar (tese do efeito perverso); e, c) outros apenas colocavam que tal
mudança não passaria de ilusão, pois não resultaria em nada e que tudo
retornaria ao que era anteriormente (tese da futilidade).
Apesar do discurso de ordem amadora, a remuneração aos
jogadores já era uma prática comum desde a primeira década do século XX,
conforme argumenta Corrêa (1933): “E o amadorismo” foi-se
desmascarando. Em 1915 já não era escândalo a gratificação aos jogadores
feita às claras...”(p.24).
O discurso do ‘espírito amador’, que fundamentava o argumento dos
conservadores, fragilizava-se quando o direito e o prestígio da
representação estavam ameaçados. Pretendiam manter o amadorismo,
todavia, os mecanismos utilizados para este propósito eram condicionados à
imposição e ao fechamento157, que só faziam sentido no regime profissional,
conforme abordaremos a frente. Os dirigentes que pleiteavam uma
modificação no quadro, isto é, a admissão do profissionalismo, no entanto,
buscavam conservar traços do regime amador.
Nos capítulos seguintes, veremos como se intensificou a campanha
pró-profissionalismo e o papel do Fluminense, clube que outrora lutava pelos
157 - Relembremos as imposições das l igas e dos clubes. Impunham sindicânciasvisando controlar o perf i l dos jogadores, le is de inscr ição que determinavam otempo em que o jogador dever ia permanecer o clube e a le i de estágio que proibiao jogador de par t ic ipar da equipe pr incipal por um ano, depois de conf irmada asua transferência. Observemos que ta is s i tuações eram contraditór ias para umespaço onde se valor izavam a l iberdade e o amadorismo. Ser ia natural que oprof iss ional ismo apresentasse alguns mecanismos de fechamento e controle, masno amadorismo isso era quest ionado.
125
ideais amadores teria começado esta discussão ainda nos anos finais de
década de 20 e anos iniciais da década de 30 do século XX. Veremos que o
clube utilizou seus espaços publicitários (Tricolor – Revista Sportiva do
Fluminense Foot-ball Club e Jornal Fluminense Football Club) para fomentar
o embate.158
158 - Apesar do empenho dos d ir igentes t r icolores e da representação que t iveramno processo de prof iss ional ização do futebol brasi le iro , o clube ainda é apontadopor torcedores e a lguns cronis tas como a agremiação que mais ter ia demorado aabandonar o perf i l amador. Por que o Fluminense ainda permanece até nossos d iascom o est igma de clube onde o amadorismo era cul t ivado efet ivamente até poucasdécadas a trás? Nossas argumentações tentaram apontar pis tas de que es tamit i f icação acerca do perf i l amador apresentado pelo Fluminense pareceequivocada.
126
Capítulo VIResgate e reestruturação do futebol brasileiro: o amadorismoem crise
“O pior era que Fausto não podia dizer nada. Para todosos efeitos era um amador, um empregado do comércio,vivendo de seu emprego, não jogando futebol por dinheiroe sim por amor ao clube. Tudo ao contrário: ele jogavafutebol por dinheiro e não por amor ao clube”.
(Rodrigues Filho, 1964, p.191)159
A década de 20 do século passado foi marcada pelos embates
acerca da modificação estrutural do futebol na cidade do Rio de Janeiro.
Estava em jogo a manutenção do esporte como princípio da distinção social
para uma classe de privilegiados, ou a abertura do espaço para a integração
de distintas camadas sociais. Neste período, dirigentes, jogadores,
torcedores e imprensa posicionavam-se com argumentos individuais,
defendendo-os com veemência acerca da moralidade esportiva que se
pretendiam para a capital federal. Entre os vários fatos que marcaram a
década no futebol, destacamos três: 1) a vitória do Clube de Regatas Vasco
da Gama no Campeonato estadual de 1923 promovido pela METRO160, que
desencadeou uma reviravolta entre os principais clubes; 2) a ruptura dos
159 - Rodr igues Fi lho, Mário. (1964) . O negro no futebol brasi le iro . Rio deJaneiro. Civi l ização brasi le ira edi tora.
160 - Liga Metropoli tana dos Despor tos Terres tres .
127
grandes clubes 161 com a METRO criando uma nossa entidade, a AMEA162;
e 3) a adoção das leis de inscrição e de estágio fomentadas pela AMEA,
apoiadas por alguns dirigentes e parte da imprensa carioca, que ansiavam
pela retomada da moralidade esportiva, considerada comprometida e
corrompida pela falta de controle dos clubes sobre a feição amadora dos
jogadores.
Neste capítulo, apresentaremos estas três narrativas, onde se
enfatiza enfatizamos o discurso que coloca em xeque a intenção entre
fomentar um esporte vinculado ao ethos amador e a crescente tensão que o
conduzia ao ethos profissional.
Os dois primeiros episódios (A vitória do Clube de Regatas Vasco
da Gama em 1923 e a cisão na METRO e A fundação da AMEA – A busca
do controle planejada pelos grandes clubes) se inter-relacionam, sendo o
segundo conseqüência do primeiro. A vitória do Vasco pareceu-nos ter sido
um dos pivôs das transformações que aconteceriam na administração do
futebol carioca, quando a METRO perdeu em parte o seu prestígio e surgiu a
AMEA, fundada pelos principais clubes que queriam retomar o poder no
esporte carioca.
Em “As leis de inscrição e de estágios implantadas pela AMEA”,
destacaremos a intensificação do combate ao amadorismo marrom e a
161 - Segundo Soares , “a designação de ‘grandes clubes’ , que perdura até osnossos dias, refere-se aos c lubes que possuem tradições de vi tór ias no campoespor t ivo – pr incipalmente no futebol - , instalações apropr iadas para a prát ica deesportes e um grande número de af i l iados e torcedores”. Soares , A. J . Racismo nofutebol do Rio de Janeiro nos anos 20: uma his tór ia de ident idade. In : Helal , R;Soares , A. J . & Lovisolo , H. (2001). A invenção do país do futebol – mídia, raçae idolatr ia . Rio de Janeiro. Mauad. Nota nº 4 , p .121.
162 - Associação Metropol i tana de Esportes Athlet icos.
128
abertura de diálogo sobre o profissionalismo no futebol, ocorridos nos
últimos anos da década de 20. O ponto que nos interessa são os discursos
desencadeados pela implantação das leis de inscrição e de estágio
adotadas pela AMEA.
Observamos que o discurso do ideal amador se encontrava
fragilizado naquele momento, devido principalmente aos mecanismos
adotados pelos clubes na composição de suas equipes. Os clubes
buscavam reforçar seus times com os jogadores de destaques, quer estes
despontassem em divisões de base dos clubes de elite, quer fosses
oriundos dos clubes do subúrbio. Essa busca de reforço provocava uma
inquietude nas discussões jornalísticas, quando acreditavam que esta
estratégia colocava em jogo o espaço destinado ao lazer e a distinção social
da elite carioca. Para os conservadores a composição das equipes com
jogadores de diferentes camadas sociais era uma ameaça aos clubes, aos
cidadãos de boa índole e também ao esporte, bem como poderia produzir
um efeito perverso ao que se esperava – que era a melhoria do esporte.
Observa-se que para condenar esta composição das equipes com indivíduos
de classes populares, utilizavam os mesmo argumentos apontados por
Hirschman (1992) sobre a retórica utilizada no embate das transformações
sociais.
Os dirigentes conservadores acreditavam que os jogadores
pertencentes às camadas populares, apesar de suas habilidades
futebolísticas, não tinham o refinamento necessário para serem
considerados sportmen.
129
Neste momento, não estaremos preocupados com o desfecho dos
episódios relatados; apenas os trataremos como suporte para alicerçar os
argumentos acerca da tensão entre as concepções amadoras e o
‘profissionalismo mascarado’. As discussões ora apresentadas têm como
propósito marcar as narrativas que emergiam por força de uma eminente e
explosiva necessidade de mudança do rumo esportivo carioca e ditaria
futuramente todas as mudanças no cenário esportivo brasileiro, em função
de o Rio ser um centro irradiador de idéias, modos e modas na época.
6.1 - A vitória do Clube de Regatas Vasco da Gama em 1923 e a cisãona METRO
No ano de 1922, o Clube de Regatas Vasco da Gama venceu o
campeonato estadual da segunda divisão, adquirindo pelo feito inédito o
direito de participação no campeonato oficial da primeira divisão do Rio de
Janeiro no ano de 1923. Composta por jogadores populares, a equipe do
Vasco, conforme relatara Mário Rodrigues Filho, “seguia a boa tradição
portuguesa da mistura” (Rodrigues Filho, 1964, p.119), formando um grupo
sem barreiras étnicas e sociais, onde se faziam presentes pretos, mulatos e
brancos.163
163 - Observe que esta imagem do por tuguês como assimilador de cul turas estavafor temente marcada no pensamento de Gilber to Freyre .
130
Esta equipe vascaína veio provocar um assombro na elite do futebol
carioca, ao conquistar também o campeonato carioca da primeira divisão,
suplantando os clubes de tradição na época. Este período da história do
futebol carioca tornou-se bastante fecundo na época e na historiografia do
futebol brasileiro nos últimos anos.164 Como poderia um clube de origem
popular, fora dos padrões estabelecidos pela instituição que organizava o
futebol do estado, a METRO, se tornar vencedor do campeonato, cujos
propósitos eram servir de divertimento e lazer para uma elite formada por
homens de ‘bom berço’? Alguma coisa estava errada, algo deveria ser feito,
não se podia conceber esta invasão das classes populares, pois como
conceber que indivíduos semi-analfabetos, sem status social, começassem a
participar do estilo de vida da elite esportiva carioca? Desta forma, o que
pesava para os ‘nobres cavalheiros’ da elite carioca era ver que seu esporte,
um dos espaços de distinção social, estava sendo apropriado por indivíduos
de comportamentos sociais questionáveis.
164 - Murad, Maurício . (1994) Corpo, Magia e Alienação – o negro no futebolbrasi le iro: por uma in terpretação sociológica do corpo como representação social .In : Pesquisa de Campo. n.0 Rio de Janeiro . UERJ/Depar tamento Cultural /SR, 3(71-78) ; Murad, Maurício. (1998) Futebol e v iolência no Brasi l . In : Pesquisa decampo. N.3/4. Rio de Janeiro . UERJ/Depar tamento Cultura l /SR-3, (89-103) ;Caldas Waldenyr . (1990) O pontapé inicial do fu tebol brasi le iro . São Paulo .Ibrasa; Leite Lopes, José. (1994) ; Gordon Jr . César . (1995) . Histór ia social dosnegros no futebol brasi le iro. In : Pesquisa de Campo. n .2 Rio de Janeiro .UERJ/Depar tamento Cultural /SR-3, (71-90); Gordon Jr . César . (1996) “Eu já fuipreto e sei o que é isso”, Histór ia social dos negros no futebol brasi le iro : segundotempo. In : Pesquisa de Campo. n.3 /4 Rio de Janeiro. UERJ/Depar tamentoCultural /SR-3, (65-78); Santos, Joel Ruf ino dos. (1981) Histór ia pol í t ica dofutebol brasi le iro . São Paulo. Brasi l iense; Aquino, Rubim Santos Leão de. (2002)em Futebol - uma paixão nacional . Rio de Janeiro. Zahar Ed. , entre outros.
131
Figura 01 – Vasco da Gama – Equipe campeã em 1923
Soares (1998), ao estudar aquele período da história do futebol
carioca e do clube Vasco da Gama, aponta-nos algumas pistas inquietantes
sobre a tensão que dominava no seio do futebol. Soares alerta que, embora
os eixos das análises exploradas sobre o futebol carioca naquele período
estejam centrados principalmente sobre as tensões raciais – em que é
questionada a forma como os pesquisadores trataram as fontes -, outros
conflitos em torno da ética do amadorismo pareciam mais marcantes.
Parecia estar em jogo o conflito entre a elites e populares, brancos e negros,
times de subúrbio e time da cidade, amadorismo e profissionalismo (p.3),
embora o tema que englobaria essas tensões seria o último.
A vitória do Vasco no campeonato de 1923, além de outras lutas
internas na instituição, teria levado os ‘grandes clubes’ a romperem com a
132
METRO. O argumento presente na historiografia, questionado por Soares,165
é que a saída dos grandes clubes da METRO foi motivada pelo racismo da
elite carioca. Segundo Soares, a tensão entre o amadorismo e
profissionalismo talvez pudesse ser mais abrangente para se explicarem os
motivos da crise ocorrida na METRO. Quanto à composição da equipe
Vascaína naquela época, Soares nos deixa uma pergunta: “o Vasco teria
aberto as portas para pretos e mulatos seguindo a boa tradição da mistura”,
conforme ressaltou Rodrigues Filho “ou pela lógica do mercado?” (p.55)
Poderíamos imaginar que a competência esportiva era cobiçada por todos
os clubes, torcedores e dirigentes, e que a inclusão de indivíduos de classes
populares foi a alternativa encontrada pelo Vasco para se ter uma equipe
vitoriosa; uma equipe que aproveitasse o que havia disponível e
apresentasse competência sem discriminar ou impor barreira ou exclusão.
Para as outras equipes, este critério adotado pelo Vasco comprometia a
instituição que ‘tentava’ manter um esporte compromissado com os valores
de distinção social. O problema teria sido que esta estratégia adotada pelo
Vasco se tornou explícita, todavia, a história registra que, naquele período,
os clubes de elite também utilizavam essa estratégia de forma mais
dissimulada.
165 - Segundo Soares, a referência básica, na maior ia dos estudos, tem o l ivro ‘ONegro no Futebol Brasi le iro’ , de Mário Rodrigues Fi lho, cuja pr imeira edição foipublicada em 1947 e a segunda, acrescida de dois capí tu los, em 1964. Esta ú l t imaedição foi a mais consul tada, pelo fáci l acesso, e tornou-se um ‘manancialinesgotável’ de dados para os pesquisadores que estudam a his tór ia do futebolbrasi le iro, pr incipalmente a par t ir da década de 80. Ele coloca que o l ivro deMario Fi lho se tornou um bloqueio para as pesquisas empír icas (p.6) . Soarescoloca que a h ipótese do seu estudo é demonstrar que a maior par te das atuaisnarrat ivas acadêmicas sobre futebol , ao nutr irem-se acr it icamente dos dados dol ivro de Mario Fi lho, acaba tragada pela força mít ica , da narrat iva do autor .(p.10)
133
Para esta seção utilizaremos uma estrutura um pouco diferenciada
da que utilizamos para a construção das outras seções deste estudo.
Seguiremos as pistas argumentativas de Soares, por julgarmos fecundos as
hipóteses e os temas que dão vazão às nossas pretensões. Foram suas
análises que nos fizeram para vasculhar as fontes. Não estaremos
discutindo a questão racial, como foi o foco principal de Soares, mas sim a
tensão entre o ethos amador e o ethos profissional.
A tensão provocada pela vitória do Vasco foi apontada pelos
cronistas da época, e mesmo das décadas seguintes, que utilizaram os
argumentos da vitória vascaína para fundamentarem suas crônicas. O maior
expoente dentre eles teria sido Mário Filho.166 Sobre a vitória do Vasco ele
colocou que foi uma verdadeira revolução no futebol brasileiro. Vejamos
como Rodrigues Filho descreve a situação:
“Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de serestudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, obranco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto para ver quemjogava melhor.
Era uma verdadeira revolução que se operava no futebolbrasileiro. Restava saber qual seria a reação dos grandes clubes.”(Rodrigues Filho, 1964, p.73)
166 - Mario Fi lho foi um jornal is ta que esteve presente nos pr incipais embatesacerca da es tru turação do futebol bras i le iro na época, inclusive com umideal izador de uma sociedade brasi le ira h igienis ta , acredi tando no poder doespor te para esta função, cr iando argumentos e d ifundindo-os , fazendo f lorescer oorgulho da raça nacional . Para d isseminar suas idéias , u t i l izou dos seus prest íg iose do seu jornal .
134
Rodrigues Filho aponta, em seu comentário, que uma tensão
provocada pela vitória vascaína estava por vir e a invasão de jogadores
populares seria um desconforto para os jogadores de boa família,
representados pelos ‘grandes clubes’. Rodrigues Filho insinuava que tal
situação provocaria uma reação.
Os principais clubes (América, Botafogo, Flamengo e Fluminense)
exigiram mudanças no estatuto da METRO. Reivindicavam alguns critérios
para a participação dos clubes e seus respectivos jogadores na liga. Os
grandes clubes, igualados aos pequenos na engenharia de poder da
instituição, protestavam contra a administração populista que a instituição
vinha adotando (Soares167, 2001b, p.106). A proposta tinha como objetivo
reforçar o poder decisório dos ‘grandes clubes’ em relação aos demais.
Pesava também sobre a instituição a efetiva falta de controle sobre a
condição amadora dos jogadores, devido à política adotada pelo presidente
Sr. Agrícola Bethem.
O jornal Correio da Manhã divulgou as exigências propostas pelos
clubes: 1) formar um conselho deliberativo; 2) adotar o sistema de
eliminatória olímpica na definição dos clubes, visando à participação do
campeonato da primeira divisão; e 3) fixar em cinco anos o prazo para
reforma e construções das instalações apropriadas ao futebol e demais
esportes (Correio da Manhã, 13 de fev/1924, p.4). O mesmo jornal dias
depois esclareceu que a proposta não foi bem vista pelos demais clubes –
167 - Soares , Antonio Jorge G. (2001b). O racismo no futebol do Rio de Janeiro nosanos 20: uma his tór ia de ident idade. In : Ronaldo Helal , Antonio Jorge Soares &Hugo Lovisolo . A invenção do país do futebol : mídia , raça e idolatr ia . Rio deJaneiro. Mauad. 101-122p
135
os pequenos clubes -, que rapidamente se mostraram contrários às
exigências, pois desta forma ficariam sujeitos às decisões dos ‘grandes
clubes’ (Correio da Manhã, 15 de fev/1924, p.5).
Os ‘pequenos clubes’ não admitiram as cotas de poder
diferenciadas, sugeridas pelos ‘grandes clubes’, bem como não admitiam a
eliminatória olímpica, uma vez que estava fora dos planos de muitos destes
clubes o envolvimento com outras modalidades que não o futebol. Naquele
momento, os times pequenos, unindo suas forças, conseguiram neutralizar
qualquer tentativa de mudança desfavorável, em razão de terem mais votos
disponíveis do que os clubes refinados. Este fato foi um dos agravantes na
composição de força dentro da METRO, visto que os principais clubes
queriam ter privilégios diferenciados, tomando para eles o controle da
instituição e estabelecendo os rumos do futebol. A vitória do Vasco abriu um
precedente que, segundo os ‘grandes clubes’, poderia comprometer o local
de prestígio que ocupavam. Vejamos mais um indício da ameaça sobre o
rumo do futebol carioca (Hirschman, 1992). Ao reivindicarem mais poder, os
clubes baseavam-se nas estruturas que já apresentavam em relação aos
demais. Julgavam merecedores de regalias, pois apresentavam as melhores
instalações esportivas e ainda se envolviam com outras modalidades que
atendiam ao apelo da formação de uma cultura esportiva brasileira mais
ampla. Portanto, suas reivindicações ajustavam-se à tentativa de manter o
poder decisório e não admitiam ter votos igualitários com os demais clubes.
Soares (1998) aponta que as reivindicações dos principais clubes seguiam
136
“a lógica da sociedade brasileira que vivia sob um regime republicano, mas o
espírito oligárquico era ainda a forte marca.” (p.258)
O jornal O Paiz, do dia 14 de fevereiro de 1924, criticou o teor das
reformas propostas pelos ‘grandes clubes’, julgando que estes passariam a
ter o poder quase que supremo, e os demais clubes ficariam sujeitos ao
sabor das decisões ´dos grandes`. A formação de um novo conselho
deliberativo tinha como proposta assegurar a maioria de votos a favor dos
clubes reformadores: América, Botafogo, Flamengo e Fluminense168 (Correio
da Manhã, 13 de fev/1924). Entre as propostas de reforma, propunham
também a implantação de um diretor que seria responsável pelo controle do
perfil dos jogadores. Este diretor teria amplos poderes para realizar
sindicâncias sobre os jogadores inscritos pelas equipes, objetivando
estabelecer um controle rígido sobre as condições de amadorismo dos
mesmos. A presença de jogadores remunerados no Vasco teria sido uma
das argumentações dos clubes reformadores quanto à necessidade de
controle sobre o perfil dos jogadores. Inclusive a sindicância teria sido um
dos motivos de descontentamento do clube português que não via o
amadorismo como algo essencial.
O articulista do jornal O Paiz, apesar de criticar as reformas, julgava
que seria salutar o controle sobre a condição amadora dos jogadores e a
sindicância seria uma boa medida (O Paiz, 16 de fev/1924, p.7). Todavia, o
168 - O novo conselho deliberat ivo ser ia composto por nove membros, onde cincoser iam representantes dos pequenos c lubes, a lém de um representante de cada umdos clubes reformadores. Todavia, os representantes dos pequenos estar iam acargo dos quatro clubes reformadores, onde eles escolher iam os membros que lheinteressassem. (Correio da Manhã, 15 de fev/1924, p .5)
137
mesmo colunista, dias depois, alfinetava os clubes reformadores, acusando-
os de ignorar o fato de que em seus clubes também havia jogadores que
apresentavam uma condição amadora sob suspeita (O Paiz, 20 de fev/1924,
p.7).
O jornal Correio da Manhã, do dia 22 de fevereiro de 1924, trouxe
uma matéria que apoiava a causa dos reformadores, entretanto mostrava-se
preocupado que tais medidas poderiam afetar a condição financeira da
METRO. Nota-se que novamente a idéia da ameaça e/ou do efeito perverso
(Hirschman, 1992) aparecem nas argumentações do Correio da Manhã.
Apesar de retomarem o controle do futebol carioca, corria-se o risco de ter
as finanças comprometidas. Mário Rodrigues, apoiando a causa dos
‘grandes clubes’, sinalizava que esta proposta viria restaurar a moral
esportiva carioca:
“Os grandes ora afastados da Liga estão senhores demuitíssimos outros elementos de sucesso. Eles também podemvencer, não porque sejam apenas grandes e ricos, mas porque,principalmente, abraçaram uma causa veladamente simpática,como seja essa restauração moral do nosso nível sportivo. Ofootball, ultimamente, no Rio, desceu muito no apreço de todagente, e uma prova eloqüente dessa afirmação está no fato deque, via de regra, os clubes cuidavam mais da bilheteria do quepropriamente da cultura sportiva.
Este detalhe vinha sendo observado e não podia mesmo deixarde sê-lo, porque cada ano que passava, se notava ao lado dodesprezo pela sorte sportiva o interesse pela sorte financeira.
Do choque desses dois interesses tão distintos, nasceu um malestar oculto que pouco e pouco se foi avolumando no espírito dequem observava as coisas de um ponto de vista elevado.”(Correio da Manhã, 22 de fev/1924, p.5)
138
Mário Rodrigues aponta o interesse financeiro como fator de
deterioração da estrutura esportiva carioca. Destaca que a ´causa
simpática` dos grandes era a restauração da moral do esporte carioca,
referindo-se à recuperação da ética do amadorismo. Observemos que neste
momento Mário Rodrigues se colocava como um dos defensores do espírito
amador. Tempos depois, seu filho Mário Rodrigues Filho utilizaria a
empresa da família para conclamar a adoção do regime profissional.
Os ‘grandes clubes’ reivindicavam para si os privilégios de jogos em
dias especiais, garantindo a bilheteria mais gorda, o que também parece
estar de olho mais no interesse financeiro do que na cultura esportiva. O
que significa esse resgate da moral?
Diante da impossibilidade de acordo entre os interesses dos
‘pequenos clubes’ e dos ‘grandes clubes’, a solução foi a saída destes da
METRO. Estavam insatisfeitos com a condição de igualdade imposta pelo
regimento. A saída foi criar uma associação que respeitasse os seus direitos
e privilégios e obedecesse aos princípios do amadorismo, da moralidade
esportiva. Nota-se que o abandono da METRO estava mais relacionado ao
poder e controle que reivindicavam do que propriamente a moralização do
amadorismo, que já encontrava-se fragilizado. Fundaram para esse fim a
Associação Metropolitana de Esportes Athleticos – AMEA, no dia 01 de
março de 1924.169 O debate acerca da moralidade do esporte na capital
federal não parou por aí, conforme apresentaremos a seguir.
169 - A fundação da nova ent idade ter ia ocorr ido no dia 29 de fevereiro, mas comose t ratava de um ano bissexto, optaram por estabelecer o d ia 1º de março de 1923como o dia of ic ia l de implantação.
139
6.2 - A fundação da AMEA – A busca do controle planejada pelosgrandes clubes
O Correio da Manhã do dia 1º de março de 1923 trouxe a
manchete que anunciava o surgimento de uma nova entidade: “Os
dissidentes do football carioca fundaram hontem a Associação
Metropolitana de Esportes Athleticos” (p.5). Diante deste fato, a METRO
perdeu o prestígio e se viu sem o apoio dos principais clubes da época.
Desta forma, América, Botafogo, Flamengo e Fluminense saíram
fortalecidos, ditando o rumo que o futebol carioca apresentaria nos próximos
anos.
O Correio da Manhã, no mesmo dia, questionava como ficaria o
Vasco, caso este entrasse para o quadro da nova entidade. Portanto,
pareceu-nos que não havia indisposição quanto ao clube português, mas
sim sobre o controle dos seus jogadores, conforme colocara o jornal: “É voz
corrente – e nós podemos afirma que isso é verdade – que se o Vasco da
Gama entrar para a nova entidade, o que ainda é uma incógnita, o seu time
terá que sofrer tais reformas que dificilmente constituirá o mesmo forte
adversário do ano passado.” (p.5)
Soares (1998) também acredita que esta matéria jornalística
deixava dúvidas sobre a possível barreira contra o Vasco. Por que motivo a
equipe vascaína deixaria de ser forte como no ano anterior? “Por possuir
negros ou por possuir uma estrutura semiprofissional?” (p. 246)
A presença do Vasco com seus jogadores semi-profissionais, após
a criação da AMEA, pareceu ser o estopim inicial da cisão dentro da
140
METRO. A nova instituição não colocava objeção à presença do Vasco,
embora exigisse o cumprimento de algumas especificidades quanto ao
controle dos jogadores. Diante dos argumentos jornalísticos, pareceu-nos
que a condição dos jogadores semiprofissionais do Vasco apresentava
menor importância, tornando-se secundário, diante da busca de poder dos
clubes reformadores. Eles queriam o controle do futebol carioca, e a nova
instituição, a AMEA, favorecera isto. A condição do jogador passou a ser
apenas mais um dos fatores articulados para dar vazão à busca de
privilégios e poder. A partir do momento em que o poder é recuperado,
novos diálogos seriam admitidos para ter os principais clubes filiados à nova
instituição, e o Vasco já representava uma força que não poderia ser
desprezada.
Devido à retirada dos ‘grandes clubes’ da METRO, o Vasco também
solicitou o seu desligamento da entidade. Quais motivos levaram ao clube
português a ter esta atitude? Seria um indício de que sozinho não teria
condição de sustentar uma competição fadada ao fracasso, sem as
bilheterias dos jogos contra as principais equipes? A atitude do Vasco já
demonstrava a tentativa de aproximação com a AMEA, quando formou uma
comissão de três membros destinada a acompanhar os propósitos da nova
associação em relação ao clube, inclusive a comissão teria plenos poderes
para optar por uma filiação, caso os membros integrantes julgassem
proveitoso (O Paiz, 01 de mar/1924, p.10).
Divulgados os estatutos da AMEA, observou-se que o documento
buscava manter o poder dos reformadores, ao se instituírem quatro
141
categorias de membros: os fundadores, cujos membros seriam os
reformadores (América, Botafogo, Flamengo e Fluminense), os efetivos, os
especialistas e os honorários.
Naquele momento, o artigo 5, parágrafo 10, que se referia à forma
de vinculação do jogador, era o que apresentava maior controvérsias para a
inserção de outras agremiações, uma vez que buscava o controle rígido dos
integrantes de cada clube. Tratava-se de uma verdadeira inquisição sobre a
vida dos atletas. Os clubes deveriam apresentar o nome do jogador por
extenso, o local de moradia atual e anterior, a ocupação profissional atual e
anterior, bem como o endereço de ambas e, ainda, o nome dos
responsáveis pelos vínculos empregatícios. Pretendia-se com tal medida ter
um geral controle sobre a vida do jogador e também dos dirigentes
esportivos, conforme estabelecia o artigo 4, ao exigir que a diretoria do clube
também deveria apresentar sua ficha contendo as mesmas informações
exigidas dos jogadores (Correio da Manhã, 29 de mar/1923, p.5). Segundo
Soares (1998), os fundadores da AMEA temiam que houvesse abertura para
a profissionalização. Para o autor, o que se estava em jogo nesses artigos
era a vigilância ostensiva da ética amadora, “ética que sempre esteve
associada à distinção social e ao pertencimento desinteressado” (p. 248).
Nota-se que esse controle era um mecanismo para se evitar a ameaça de
ser ver o esporte invadido pelos indivíduos que não apresentassem um
comportamento social compatível. A historiografia do futebol brasileiro nos
demonstrou que esse filtro não teve a eficiência esperada.
142
Este controle foi aprovado e elogiado pelos jornais que passaram a
ver na nova associação o retorno aos princípios morais do esporte carioca.
O jornal O Paiz acreditava que a nova entidade teria uma importância
extraordinária para aqueles que se interessavam por um esporte sadio e
bem cultivado. Relembremos que este mesmo jornal se posicionara contra
as proposta de modificações elaboradas pelos clubes dissidentes, quando
estes ainda pertenciam à METRO. Todavia, naquele momento, o jornal se
aliara à AMEA, acreditando na retomada da estrutura esportiva carioca
sobre o princípio do compromisso e engrandecimento moral, vinculado à
ética do amadorismo:
“... para aqueles que se interessam vivamente por um sportsadio e bem cultivado, a nova entidade é de importânciaextraordinária. Exercer uma vigilância desta ordem é pugnar peloengrandecimento moral dos exercícios atléticos. O progresso deum ramo de atividade esportiva não reside somente na forçamaterial e no dinamismo físico de quem pratica. Não é o ser fortee pujante que demonstra a superioridade. Longe disto. Emprimeiro plano, constituindo o alicerce seguro está a moral.” (OPaiz, 12 de mar/1924, p.7)
No dia 7 de abril, o jornal O Paiz noticiou que o primeiro
campeonato estadual organizado pela nova instituição teria a presença de
dez clubes, em uma única série, contrário ao que havia sido cogitado
inicialmente quando teria duas divisões. A medida foi devida à pressão de
alguns clubes associados querendo participar da primeira divisão. O jornal já
trazia o Vasco como um dos clubes relacionados para esta competição.
Como entender este interesse pela participação do clube vascaíno, já que
boa parte da historiografia aponta ser este clube o responsável pela principal
143
tensão na METRO, ao vencer o campeonato do ano anterior com sua equipe
formada por jogadores populares, semi-profissionais? O Vasco não podia
ser ignorado, pois havia despertado o interesse popular e,
consecutivamente, capaz de gerar bilheterias para a nova associação.
Dentre as várias proposições da AMEA, tornaram-se alvo de críticas
as reservas de datas especiais para os ‘grandes clubes’, ao ser estabelecido
que somente jogariam entre si aos domingos170, o que pesou sobre o acordo
com os demais clubes. Entendiam estes que esta reserva era prejudicial e
só beneficiava os clubes fundadores. A partir daquele momento, os clubes
insatisfeitos começaram a deixar a AMEA. Os jornais da época apontavam
que vários clubes recusavam a aceitar as imposições da direção da
Associação diante dos privilégios estabelecidos aos clubes fundadores. A
diretoria do Vasco enviou um comunicado à AMEA, onde dizia que “pela
dignidade e pelo passado do clube, ele não podia sujeitar-se a tais
imposições, e por isso, deixava de fazer parte da nova agremiação.” (O Paiz,
09 de abr/1924, p.7)
O clube Andarahy também alegara que não poderia se integrar ao
campeonato, pois seus jogadores trabalhavam aos sábados, inviabilizando a
participação (O Paiz, 17 de mar/1924, p.8). Observemos que as
argumentações tanto do Vasco como do Andarahy se posicionavam
contrárias aos privilégios dos fundadores. Estava em discussão o fato de
170 - O Paiz anunciou que os clubes fundadores em uma del iberação conjuntaresolveram que não ter iam jogos entre eles aos sábados, reservando os domingospara seus encontros. Tal s i tuação não ser ia observada pelos demais clubes nãofundadores que t iveram sua f i l iação após a fundação da AMEA (O Paiz , 07 deabr /1923, p .2) .
144
que os jogos realizados aos sábados possivelmente teriam públicos
reduzidos em relação aos jogos de domingo. Observemos que, em sua
insatisfação quanto à reserva de datas, o Andarahy questionava o princípio
do amadorismo, ao alegar a impossibilidade de jogos aos sábados, em
razão de seus jogadores serem trabalhadores e nestes dias não terem
folgas. A interpretação de Soares (1998) foi neste mesmo sentido, quando
apontou que ficava evidente na alegação do Andarahy “a utilização de
argumento afinado com a ética do amadorismo”, todavia, o que causava
revolta era o fato de os clubes fundadores reservarem para si os dias de
melhores rendas. (p.253)
O Correio da Manhã, entendendo que os clubes menores estavam
sendo prejudicados, também criticou a atitude da AMEA, dizendo que as
promessas de transformações estavam condicionadas ao interesse
financeiro, tal qual os clubes fundadores criticavam antes. Em uma matéria
denominada “Pau que nasce torto”, analisava que as mudanças esperadas
não passavam de doces ilusões:
“As doces ilusões que o esporte alimentava desfizeram-se nosopro das primeiras realizações. Tudo que era uma promessatransformou-se na expressão do mesmíssimo interesse financeiroe egoístico que os movia, anos atrás, no meio daqueles que aseveridade exterior procura agora hostilizar por todos os modos.”(Correio da Manhã,17 de abr/1924, p.8)
No dia 16 de abril, O Paiz anunciou ao seu público os motivos que
fizeram o Vasco recusar o campeonato da AMEA, onde três pontos
constituíram as causas do descontentamento: 1) o clube não aceitava a
145
condição de inferioridade perante os demais fundadores, em função da falta
de infra-estrutura, das deficiências do seu campo de futebol e da condição
modesta dos seus associados; 2) rejeitava os privilégios dos fundadores
quanto à forma de distribuição dos votos; e 3) não admitia a sindicância
sobre as posições sociais ocupadas pelos seus jogadores, uma vez que não
havia participado da reunião que determinava esta investigação (O Paiz, 16
de abr/1924, p.8). Observemos que as exigências do clube português
centravam-se no fato de ter os mesmos direitos que os clubes fundadores,
quanto ao direito de votos e privilégios especiais; não se questionavam os
privilégios, mas os queria também. Todavia, o único ponto de real discórdia
do Vasco com os fundadores era a sindicância sobre a vida dos jogadores,
fato que o clube português não admitia.
O presidente da AMEA, Sr. Arnaldo Guinle, respondeu às
inquietudes do Vasco, dizendo que o clube conhecia, antes de se filiar, os
seus direitos e deveres, em função da sua qualidade de sócio, e faz questão
de ressaltar o compromisso com as condições legais do amadorismo, as
quais o Vasco parecia não querer observar:
“Declaramos então que uma vez filiado, o Clube de RegatasVasco da Gama entraria com um novo ofício, demonstrandosatisfazerem, os seus jogadores, todas as condições legais doamadorismo e que, uma vez provada a improcedência dasindicância feita pela AMEA, as respectivas inscrições seriamconcebidas.
Diremos mais, que se havia, naquele momento, discrepânciaentre informações fornecidas por esse clube e a sindicância pornós realizada, a responsabilidade daí decorrente caiaexclusivamente sobre o C. R. Vasco da Gama, e que, como omesmo acontecia com os demais clubes, tornava-se impossíveldiscutirmos todos esses particulares naquele momento, dado aexigüidade de tempo que nos separava do início do campeonato
146
oficiais da atual temporada.” (O Paiz, 19 de abr/1924, p.11) (grifonosso)
O presidente da AMEA, por intermédio deste comunicado, tentou
deixar pública a condição de descomprometimento dos dirigentes vascaínos
com os ideais amadores, dizendo que, em certa ocasião, havia comentado
com o presidente vascaíno que ficaria feliz de um dia poder ver os
portugueses jogando futebol, já que se tratava de um clube fundado pelos
imigrantes. Ironicamente, reproduz a reposta do dirigente vascaíno, quando
colocou que o trabalho no comércio era árduo e pesado, o que não permitia
que seus compatriotas pudessem jogar deixando seus afazeres (p.11).
Ironias à parte, a tensão em torno dos ideais amadores aparece
caracterizada no debate da época.
Segundo Soares (1998), esta argumentação do Sr. Arnaldo Guinle
tinha como intenção demonstrar publicamente que, no Clube Vasco da
Gama, era freqüente e corriqueira a prática do semiprofissionalismo ou
amadorismo marrom.
As argumentações, as evidências e os pontos apresentados pelos
jornais facilitam a compreensão da trama que envolveu a cisão dentro da
METRO, o que conduziu à criação da AMEA, proveniente das tensões entre
os clubes de elite e os clubes populares. A METRO perdeu força e prestígio
ao ter o abandono dos principais clubes da época, que a acusavam de
manter uma política populista. Para os ‘grandes clubes’, a AMEA surgiu
como uma possibilidade de resgate dos valores norteadores que almejavam
para o futebol carioca. Todavia, ao contrário do que esperavam alguns
147
dirigentes e jornalistas, a moralização e a implantação de uma política
esportiva igualitária na capital federal não foram fomentadas. Os clubes
fundadores da nova instituição procuravam, explicitamente, com tais
medidas a retomada do poder, buscando para si o controle e a hegemonia
do esporte. Entretanto, além de manterem o poder, ditando os rumos dos
acontecimentos, precisavam ter a afeição popular. Interessavam-lhes as
rendas proporcionadas pelas bilheterias e, para isso, os cidadãos comuns,
os torcedores deveriam prestigiar os eventos, pois somente os associados
não gerariam as receitas necessárias para os compromissos financeiros e o
engrandecimento dos clubes.
Vejamos o paradoxo: pretendiam os fundadores retomar a moral do
esporte comprometida com os ideais amadores, portanto, um esporte para a
elite, livre dos populares, que utilizavam a prática do esporte como forma de
sobrevivência; em contrapartida, também necessitavam da popularização do
esporte para gerar público e receitas para desenvolver o esporte.
No ano de 1924, foram realizados dois campeonatos estaduais,
sendo um organizado pela antiga associação, a METRO, com a presença do
Vasco, e outro organizado pela nova entidade, a AMEA, onde participaram
os ‘grandes clubes’ da época. As narrativas dão a entender que ambos os
campeonatos foram monótonos e com baixo interesse dos torcedores, se
comparados aos anos anteriores.
Por hora, acreditamos que as argumentações que nos interessam
se encontram caracterizadas nesta narrativa. Por trás de todo estes
argumentos estava a tentativa de prestígio e poder, onde vários argumentos
148
foram utilizados como ‘pano de fundo’ para as discussões. O discurso
amador pareceu-nos ser um dos principais argumentos que fizeram encorpar
a trama entre os clubes elitistas e os clubes populares, em que os primeiros
buscaram estabelecer suas forças, tomando para si o domínio do futebol
carioca. Aos pequenos restava lutar contra a hegemonia dos grandes,
entretanto, atendendo em parte aos seus caprichos para sobreviverem. Se
por um lado os principais clubes queriam estabelecer o domínio do esporte
dentro de uma ordem amadora, a presença dos clubes populares poderia
comprometer explicitamente tal ordem, por julgarem que estes
apresentavam equipes incompatíveis com tais princípios, por outro,
precisavam manter alguns destes clubes pequenos (ou populares) em seu
domínio, como forma de legitimar os eventos, criando um espaço de
aproximação com os torcedores periféricos.
No ano de 1925, o Vasco da Gama já integrava a AMEA com os
seus jogadores populares. As narrativas apontam que a popularidade
adquirida pelo clube português o colocava em igualdade de prestígio perante
os demais clubes de elite. Portanto, eram legítimas as pressões exercidas
pelo Vasco, em busca da igualdade de direito com os demais clubes
fundadores da AMEA. A história seguiria, contando os feitos esportivos que
consagraram o clube português como um dos mais prestigiados e
respeitados clubes esportivos carioca e brasileiro. Entretanto, ao contrário da
saga do clube que queria lutar pela moralidade esportiva, presenciamos nos
jornais a luta do clube português para se integrar à elite. Não nos pareceu
que o clube de São Januário estava muito preocupado com os direitos dos
149
demais clubes, mas sim em se estabelecer no grupo de privilegiados e ser
uma potência no esporte. 171
A seguir, buscaremos relatar os discursos da imprensa que deram
os contornos das transformações que ocorreriam no futebol carioca na
próxima década, a década de 30, acerca do perfil e comprometimento dos
jogadores com seus clubes. A imprensa intensificava o debate acerca do
pertencimento amador no futebol. Os discursos ora se convergiam, ora se
distanciavam, mas, indiferentemente às posições estabelecidas, já começam
a preparar o terreno para uma nova era no esporte carioca e nacional.
6.3 - As Leis de Inscrição e de Estágios implantadas pela AMEA
Nos anos finais da década de 20, o discurso do ideal amador
encontrava-se fragilizado, devido à competição dos clubes pelos melhores
jogadores. Já existia um ‘mercado de jogadores` mesmo sobre a égide do
regime amadorístico do esporte.
171 - Soares (1999b) argumenta acerca da h is tór ia da identidade do Clube deRegatas Vasco da Gama como clube de res is tência e lu ta de c lasses (negros,brancos pobres e mest iços) ser ia mais uma tradição inventada na perspect iva deHobsbawm Em 1997, o vereador Antonio Pi tanga, af irmou que pretendia elaborarum projeto de le i que tornar ia obr igatór io o ensino da his tór ia do Vasco nasescolas municipais do Rio de Janeiro . Acredi tava o vereador , que o clube é umdos marcos da lu ta dos negros por igualdade na sociedade brasi le ira . Todavia, aonos in te iramos das tramas do futebol car ioca nas décadas de 20 e 30, percebemosque o c lube português não demonstrava toda essa preocupação com as c lassesexcluídas , mas, se es tabelecer como um dos grandes do futebol car ioca. Quer iasimplesmente assegurar os mesmos direi tos dos clubes de el i te . (Soares , AntonioJorge (1999b). O racismo no futebol do Rio de Janeiro nos anos 20: uma his tór iade ident idade. In : Revis ta Paul is ta de Educação Fís ica. São Paulo 13(1) . Jan/ jun.119-129p USP
150
Para contornar este mal-estar, a AMEA resolveu implantar novas
regulamentações para o enquadramento dos jogadores aos clubes, criando
as leis de ‘inscrição’ e de ‘estágio’. Tal postura gerou um discurso corrente
acerca do perfil dos esportistas cariocas.
A discussão acerca do amadorismo invadia os jornais. Alguns meios
de comunicação intensificaram a guerra contra o estilo de desenvolvimento
esportivo cultivado na sociedade carioca. A idéia crescente de se oficializar o
profissional esportivo causava espanto e incômodo às principais instituições
esportivas (clubes e associações). Não era possível conceber um esporte
desvirtuado dos valores éticos que acreditavam ser cruciais para o
desenvolvimento pessoal e moral de uma sociedade civilizada. O esporte
deveria representar uma projeção de valores civilizatórios. Os
acontecimentos no meio esportivo carioca e as modificações que estavam
por vir geravam grande incerteza.
Acompanhando alguns periódicos que destacavam este debate,
presenciamos que os ideais ‘ditos’ amadores, na maioria das vezes, se
relacionavam prioritariamente em conflito com interesse financeiro que o
meio esportivo parecia querer manter camuflado. Estavam em jogo os
interesses individuais do jogador versus os interesses coletivos na
perspectiva de Hirschman (1995).
A ‘lei de inscrição’ de quatro anos e ‘de estágio’, proposta pela
AMEA, delineou diferentes opiniões nos meios jornalísticos. Enquanto
alguns as entendiam como salutar à imagem do esporte carioca, outros
151
percebiam uma norma ilegítima diante dos homens de boa fé, aqueles
indivíduos de ilibada reputação na sociedade que buscavam no espaço
esportivo o seu refinamento social e físico. Mesmo alguns jornais que
combatiam ferrenhamente o profissionalismo mascarado não compactuavam
com as novas leis, julgando-as ineficazes a tal combate, como acreditavam
os diretores da AMEA.
O novo estatuto da instituição estabelecia as seguintes
determinações para a Lei de Inscrição (Art.76): após assinar sua inscrição
por um clube, o jogador deveria permanecer por quatro anos vinculado a
este, sem poder se transferir ou exibir seus predicativos esportivos em nome
de outra agremiação. Quanto à Lei do Estágio (Art. 77), o estatuto
estabelecia que, depois de deferida a transferência pela comissão executiva,
o amador só poderia tomar parte em competições, partidas ou provas pelo
clube que o inscreveu depois de um ano de estágio a contar do último dia da
inscrição anterior.
O jornal A Noite anunciou que teria ocorrido uma reunião de alguns
jogadores, a fim de discutirem as novas determinações da AMEA, as quais o
jornal denomina ironicamente de “Lei da canga”, afirmando que esta
exigência não “condiz absolutamente com os princípios do amadorismo” (A
Noite, 26 de nov/1928 p.7, 2ª ed.).
Na matéria denominada ‘O justo protesto dos amadores’, o
articulista apontava sua crítica à nova lei e questionava a subordinação dos
jogadores a este imperativo código comprometedor do esporte, dizendo que
tal exigência só faria sentido, se os jogadores fossem profissionais:
152
“A entidade brasileira exige um prazo de quatro annos comotempo de inscripção dos amadores de moda que o athleta, quejoga por prazer - não por obrigação – (pois somente umcompromisso de ordem moral o obriga a qualquer espécie desacrifício), passa a ser considerado um subordinado, não somentea esse mesmo compromisso moral, mas a prisão por um prazotão absurdo quão prejudicial ao próprio sport. Vejamos: o jogador“A” tem suas sympathias por um determinado club e por ele o faz,como exige a Amea sua inscripção pelo prazo de quatro annos.No fim, de algum tempo muda-se a diretoria e é eleito para o logarde director sportivo um desaffecto seu ou, na melhor dashypotheses, um cidadão que, querendo proteger outro player desuas sympathias profundas, risque o nome de “A” trocando-o peloseu preferido “B”. Surge do fato um aborrecimento (se nãodeterminar complicações maiores...) e o jogador “A”, optimo enecessários às competições, precisando mesmo estar sempre emboa forma, fica à margem na “cerca”, como se diz não somentecom prejuízo do grêmio a que pertence, mas de todo o sport. Issosenhores da Amea, pelo espaço de quatro annos.” (A Noite, 26 denov/1928 p.7, 2ª ed.).
Observemos que, embora as tentativas fossem eliminar as
permutas dos jogadores após o final de cada temporada, quando os clubes
reforçam seus elencos com os jogadores que haviam se destacado na
temporada anterior em outras agremiações, os acarretamentos provocados
pela lei não surtiam o efeito esperado e poderiam aniquilar, por desavenças
internas, o direito esportivo do amador.
O articulista aponta ainda a perversidade encontrada em tal
determinação:
“Ahi fica um argumento poderoso em desfavor da lei prejudicialque acaba de ser decretada pela entidade carioca, dando umaimpressão de que ella lida apenas com profissionaes e nãocom amadores. Porque na verdade é mais natural que sequeiram prender elementos subordinados a um compromisso de
153
ordem material, do que a amadores legítimos, que só se prendemcom os compromissos pessoaes, de ordem moral.”( A Noite, 26de nov/1928 p.7, 2ª ed.) (Grifos nossos).
No dia 27, o jornal A Noite retornava ao caso, falando sobre a
postura do jogador. Afirma o articulista que nenhum jogador deixou de fazer
ou assinar a inscrição, comprometendo-se com o seu clube, apesar de
questionarem a necessidade deste compromisso forçado. Os jogadores,
“Apenas acharam desmedida tolice a exigência do tempo e reclamam contra
o mesmo prazo que os prejudica de qualquer modo, moral ou
sportivamente.” (p.7)
Observemos como o articulista colocava os prejuízos morais e
esportivos aos quais os jogadores estariam sujeitos:
“Moralmente porque o “arrocho” indica desconfiança de que oelemento, uma vez livre, mude de club com mais facilidade. Masisto é, lá coisa que se possa impedir a quem joga sem aobrigação do profissionaes?
Sportivamente, ora pode club algum – e a elle próprio,intimamente, deve repugnar, a pressão de um elemento que nãoo queira ou não o possa defender mais – deter os passos de umamador, que não deve obrigações de “pontos assignados” nempode estar sujeito a compromisso maiores que os compromissosmoraes – e estes dependem dos próprios amadores e nunca dasleis do arrocho.” (A Noite, 27 de nov/1928, p.7)
O jogador Hélcio do Flamengo também colocou como incômoda a
desconfiança do clube em relação aos jogadores, embora admita a
assinatura da inscrição pelo envolvimento que apresentava com o clube: “De
vinte annos que fosse o prazo e eu assignaria a inscrição pelo meu club,
154
mas discordo dessa desconfiança ‘que meu clube tenha a meu respeito.”
(p.7)
Enquanto condenavam as novas leis, os jornais mantinham acesas
as denúncias ao profissionalismo. O jornal Correio da Manhã, que não se
envolveu, pelo menos no período pesquisado com os desdobramentos das
leis, continuava, no entanto, combatendo o falso-amadorismo apresentando
argumentos e fatos que denunciavam a situação. Em uma coluna
denominada ‘A campanha contra o profissionalismo’, apresentou uma
insinuação desenvolvida em forma de conto:
“Da Inglaterra chegou ao Brasil, importado directamente por umpoderoso club, um optimo jogador inglês. Qual o contrato feitoentre o club e o excellente center-forward ignoro até hoje.
O certo porém, é que o rótulo que mascarava o profissionalismodo jogador era de professor de inglêz de um grande e importantecollegio. Enquanto o inglez, era o grande center, sabia sua línguae como professor della, ganha um ordenado esplendido.
Um dia, porém, em uma partida, o Back contrário, numa entradaviolenta inutilizou o joelho do terror dos keepers, e elle, não maispode tomar parte em jogos de football.
Não sei que transformação houve no cérebro do homem, o fatoé que o collegio não o quis mais para professor de inglez, pois elletinha machucado o joelho e não podia continuar a jogar football.
E o nosso heroe, passou de professor de língua, a empregadode um grande club, e segundo parece foi esta sempre suaprofissão. Apenas mudou de club, e de jogador, passou aentreinaur.” (Correio da Manhã, 27 de nov/1929, p.9) (grifosnossos)
O jornal deixa explícito que a profissão de professor era apenas
fachada para esconder sua relação profissional com o clube. O ótimo
ordenado parece ser o mote da inquietude do narrador. Parece interessante
o fato de o jornal estar se referindo a Welfare, jogador do Fluminense, e
155
temporadas depois passar a ser técnico do Vasco (Hamilton, 2001). Este
episódio de Welfare será abordado no capítulo VIII referente à
profissionalização do futebol no Brasil. Observemos que o futebol já neste
ano passa a ter um modesto intercâmbio de jogadores estrangeiros, ainda
sob a ética amadora. Que outros ideais estariam sucumbidos quando o fator
financeiro desponta como o maior incômodo?
O jornal O Paiz também se apresentava como um severo
combatente ao profissionalismo encoberto, dedicando quase que
diariamente um espaço a este fim. A coluna ‘Duas Palavras’, assinada pelo
jornalista Carlos Nery Stellino, portava-se como uma frente de denúncia e
combate aos princípios da imoralidade que assolavam o esporte da capital
federal.
“Tão mal é comprehendido actualmente no Brasil, oamadorismo, que vimos um campo aberto para dentro em brevenão haver um verdadeiro amador”.
(...)Quase todos os nossos ‘amadores’ recebem, após um treino ou
um jogo, a titulo de pagamento de viagem, uma determinadaquantia. E recebem-na como se estivessem fazendo a coisa maisnatural deste mundo. Muitos deles, temos a certeza se seconvencessem de que se tornando com isso, profissionaesmascarados, recusariam promptamente, mas elles vêem osdemais jogadores receberem, com a maior naturalidade!...”(OPaiz, 3 de nov/1928, p.8)
O articulista considera que alguns jogadores, ao receberem esta
ajuda, estão ferindo os preceitos morais do amadorismo. Para o cronista, se
alguns jogadores soubessem disto, recusariam prontamente os proveitos
156
financeiros. Ora, quem era ingênuo: o cronista ou o jogador? Ou
simplesmente o cronista é irônico. O articulista de O Paiz divulgou, no dia 7
de novembro, as medidas que seriam adotadas pelo Flamengo,
consideradas fundamentais para a moralização do futebol carioca. Colocou,
ainda, que a mesma atitude já havia sido tomada pelo Fluminense alguns
dias antes:
“O C. R. Flamengo acaba de dar o primeiro passo official em proldessa campanha, declarando que no próximo dia 15 do corrente,anniversário do club, communicará aos seus amadores adeliberação de não fazer despesa alguma com o quadro defootballers.” (O Paiz, 07 de nov/1928, p.10)
O mesmo articulista, em forma de desafio, conclama o público a não
se iludir com a fundação de uma liga profissional, visto que não acreditava
que esta pudesse despertar o interesse público, diante do prestígio que os
principais clubes já apresentavam. Na sua percepção, uma liga de
profissionais seria fundada por novos clubes:
“Não temam as sociedades sportivas que se funde uma liga deprofissionaes, porque para que ella se fundasse era mister terpúblico para suas reuniões. Esse público não abandonariam assuas cores predilectas para assistir um jogo de clubs que ainda seiriam formar.” (p.10)
O articulista acredita que o pertencimento do torcedor ao clube não
se deslocaria para novos clubes que viessem a se tornar profissionais. O
157
esporte, assim, alimentava-se dos vínculos do torcedor com as cores de seu
clube; como parece ser até nossos dias.
Dias depois, a coluna ‘Duas Palavras’ de O Paiz reclama dos
demais clubes que não aderiram as atitudes de combate ao amadorismo
marrom, como fizeram Fluminense, Flamengo e S. C. Brasil, quando haviam
anunciado que não mais teriam despesas com seus jogadores. Diante dos
elogios a estas agremiações, acusa os demais clubes de permanecerem em
silêncio e sentencia: “quem cala consente!” (O Paiz, 15 de nov/1928, p.11).
A altivez com que se debatia o problema da remuneração indireta
com relação aos jogadores dava indícios de que alguma medida estava por
vir. Desta forma, as resoluções da AMEA estavam sendo aguardadas e os
jornais já demonstravam a inconformidade com a atitude consentida e
camuflada pelos clubes. Embora as acusações fossem indiretas, sabiam
que a ferida estava aberta em praticamente todos os clubes. Acusar seria
colocar o dedo na própria ferida. A remuneração, que acontecia para alguns
jogadores, soava como uma insinuação, conforme aponta o articulista de O
Paiz: “Certo jogador de importante clube, apontado como um desses
profissionaes acaba de adquirir uma casa. O seu pseudo emprego não lhe
daria a casa que conseguiu por intermédio do football.” (O Paiz, 07 de
nov/1928, p.10)
Nota-se que o interesse pessoal sobre questões básicas, como
moradia era questionado. Embora se recebesse para jogar tudo deveria ser
as escondidas.
158
Criticando a contratação de jogadores de outras agremiações, o
articulista sugere que os dirigentes deveriam se preocupar com os
elementos jovens que pretendiam ingressar em suas equipes, mas não
conseguiam espaço, os quais eram os verdadeiros apaixonados pelas cores
dos clubes. O amor e vínculo do jogador ao clube estão fortemente
presentes nas narrativas. Afirmou ainda que a inclusão de jogadores jovens
seria o meio mais eficaz e a solução para se combater o profissionalismo, e
algumas agremiações já haviam percebido a força dos jovens jogadores (O
Paiz, 10 de nov/1928, p.10).
No dia 17 de novembro, a coluna ‘Duas Palavras’ de ‘O Paiz’ se
propôs a discutir a alegação da necessidade de remuneração feita por
alguns jogadores. Inconformado com a situação, o articulista dizia que as
despesas de transporte e de alimentação após os treinos e jogos deveriam
ser pagas pelos próprios jogadores, afinal, estavam jogando futebol pelo seu
próprio interesse, como um amador, e, portanto, o clube não deveria arcar
com o ônus. Vejamos suas argumentações:
“De fato não duvidamos ou até mesmo estamos proptos aaffirmar que os jogos de football acarretam despesas ao amador.
Mas quem o pratica não é elle?Porque elle o pratica, não é para o bem de sua saúde, pelo
gosto das competições, por uma distração?Não é elle que quer praticar, seja por divertimento, remédio ou
vaidade?O amador de football não há de ser differente dos amadores de
outros sports, nem quererá negar a própria significação da palavra‘amador’. Assim sendo, elle tem a obrigação de arcar com todasas despesas, todos os gastos que o sport lhe acarreta.
O amador não tem obrigação de jogar football ou treinar,porque se a tiver, deixa de ser um amador, para ser umprofissional.
159
Assim, as despesas que os amadores fazem na pratica dofootball competem-lhe, com é a elle que compete pagar o cinemaou o theatro, se se quer divertir; o anel com brilhantes se évaidoso; os xaropes da phamarcia, se está enfermo.
O clube não tem obrigação nenhuma disso.” (O Paiz, 17 denov/1928, p.10) (Grifos nossos)
Após a determinação das leis de quatro anos e do estágio, as
narrativas de O Paiz, passaram a ser destinadas ao combate das medidas
implantadas pela AMEA. Pediam mudanças, clamavam por uma moralização
do futebol carioca, mas consideravam que as soluções adotadas foram
perversas aos amadores, indivíduos que não poderiam ser policiados por
incompetência da ineficiência de fiscalização da associação responsável. O
colunista denominou as novas medidas de ‘lei da algema’, considerando que
estas exigências aniquilavam o jogador e colocavam em dúvida suas
virtudes morais.
Questionando a legalidade e moralidade da lei dos quatro anos,
apresentou os seguintes argumentos:
“Somos nos do que, além de não acreditarem que a lei dasalgemas, como é chamada, seja capaz de impedir oprofissionalismo, julgam-na ostensiva e vexatória aos amadores.Sim porque, se existem profissionaes entre os nossos footballersnão se deduz que todos o sejam, e a lei em questão é das queferem direitos dos verdadeiros amadores.
Se esta medida, tomada, aliás, com fim nobre, é um freio aoprofissionalismo que se ameaça alastrar e previne as deserçõessúbitas de jogadores de um clube, por outro lado é um atentadoaos princípios do amadorismo.
O amador é um indivíduo que prática sport por sport, e que,por isso mesmo, tem o direito de fazel-o pelo club que lhe aprovir.
O amador é assim completamente independente, e não estáobrigado a defender as cores de um club determinado.
160
Com a lei ‘das algemas’, o amador fica impedido de continuarsua carreira sportiva, se acontecer qualquer incidente entre elle ea diretoria do seu grêmio, ou com o diretor de sport, ou mesmocom outra pessoa influente do clube! Queremos impedir oprofissionalismo? Haja optima fiscalização.
Se essa fiscalização é em parte burlada por haver indivíduoscujos nomes figuram como empregados de casas comerciaesonde realmente não prestam o seu auxílio, e se há motivos outrosque possam comprovar esse facto, não aceitem suas inscripções.
Mesmo porque, há sempre muita calumnia a respeito de grandeparte dos players apontados como profissionaes.
Geralmente, quando um jogador é bom, os freqüentadores doscampos de football chamam-no profissional e a caluminia vaecorrendo até o ponto de pessoas que o conhecem ficarem nadívida se é ou não amador.” (O Paiz, 24 de nov/1928, p.11) (grifosnossos)
Dando seqüência às suas argumentações contra a lei adotada pela
AMEA, o colunista desliza em suas inferências e passa a valorizar o que
anteriormente teria denominado de pseudo-emprego. Para ele existiam
jogadores que, apesar de trabalharem em firmas de diretores dos clubes,
não poderiam ser considerados como jogadores profissionais, embora as
suas insinuações acabam por denunciar a sua dúvida sobre os valores
amadores. Ou seja, em algumas situações, permite-se que o jogador seja
empregado pelo patrão-diretor, que lhe facilitará cumprir os horários de
treinamentos, conforme transcrevemos abaixo:
“Outro fato natural e que é muito commum: um jogador trabalhaem uma casa cujo patrão não lhe deixa sair para os ensaios. Umcomerciante, sócio do club por onde joga propõe-lhe a ida para oseu negócio; vai realmente para trabalhar, e lhe é concedidalicença para deixar o trabalho e ir aos ensaios: perguntamos: essejogador é um profissional. Evidentemente não.” (O Paiz, 24 denov/1928, p.11)
161
Nesta mesma edição, o colunista que se manifestou contrário à lei
dos quatro anos estranhamente elogiou a atitude dos jogadores vascaínos,
por terem assinado a inscrição dentro dos novos termos da lei propostos
pela AMEA, dizendo que “eles deram uma prova de lealdade para com o
clube que defendem e que este gesto era digno e merecedor dos elogios”
(O Paiz, 24 de nov/1928, p.11). Ficamos por entender quais os motivos que
conduziram o colunista a dedicar esta homenagem aos jogadores
vascaínos. Pareceu-nos contraditório, uma vez que acreditava o articulista
que a suposta lei seria uma ‘algema’ para os jogadores. Se realmente
acreditava nisto, não seria propício discordar dos jogadores que se
submetessem a elas, mesmo que pudessem estar demonstrando sua
afeição e compromisso com o clube?
O jornal O Paiz voltou a criticar as determinações do novo estatuto
da AMEA no dia 30 de novembro, dizendo que as medidas implantadas
estavam fracassadas, porque eram vexatórias e humilhantes para os
amadores, e que o profissionalismo continuaria vitorioso. Para confirmar a
sua hipótese de humilhação e vexame, criou uma história para dar suporte
as suas percepções:
“Supponha o leitor que, havendo uma festa em uma casa defamília, a qual compareceu, e onde houve um furto qualquer, eexaminem na saída, na presença do dono da casa que oconvidou. Naturalmente, o leitor se revoltará diante de vexação,por que passa, embora acreditando que tenha havido o furto doobjeto e, portanto, crê que necessariamente dentre os presentesestá o ladrão.
A humilhação é a mesma que a lei dos quatro annos para overdadeiro amador, com a única diferença da gravidade dos
162
casos, nos quaes no da ‘lei da algemas’ é suspeitado de ser umprevaricante moral, e no do furto um criminoso punível por lei.” (OPaiz, 30 de nov/1928, p.9).
As pressões sobre as novas leis propostas pela AMEA resultaram
na renúncia do Sr. Rollim Pinheiro, que ocupava a presidência da
instituição. Pairavam sobre ele a acusação de proteção sobre os clubes
pequenos, conforme divulgou O Paiz: “Sempre procurou fazer justiça, como
sempre procurou proteger os clubs mais fracos e pobres.” (O Paiz, 09 de
dez/1928, p.21). Embora não tenhamos conseguido maiores informações
acerca do seu afastamento, acreditamos que, pela afirmação de O Paiz, sua
renúncia pudesse ter sido fruto dos descontentamentos dos principais
clubes, por verem sua administração prestigiando os clubes fracos e pobres.
Findado o ano de 1928, os clubes começavam a estruturar suas
composições para a nova temporada. Os jornais mostravam-se atentos aos
indicativos de mudanças de equipes por alguns jogadores. Salientamos que
o novo estatuto da AMEA só começaria a ser adotado a partir desta nova
temporada, quando, após assinar a inscrição, os jogadores ficariam
comprometidos por quatro anos e, para serem transferidos de outros
Estados, deveriam permanecer por um ano cumprindo o chamado estágio.
Neste período, o jogador ficaria jogando no segundo quadro da equipe.
O colunista de O Paiz alertava para que a AMEA observasse as
transferências e negasse a inscrição dos jogadores que fossem confirmados
como infratores dos princípios amadores:
163
“Eis que termina a temporada última, e com o aproximar da quese annuncia, começam a surgir boatos das passagens de algunsplayers para outros clubs: e isto acompanhado de informações ao‘quantum’ estabelecido para a assignatura de inscripção.
A maioria dos casos não passa de boatos, mas a verdade é queinfelizmente nem todos os casos o são.
A Amea que tem na mão esses pedidos de inscripção, cabeinquerir sobre a veracidade dos boatos que correm e no caso deser apurada a sua veracidade negar inscripções a esses players.
Isso poderia e deveria fazer a entidade máxima do sport cariocase é que está disposta a trabalhar em prol do verdadeiroamadorismo.”(O Paiz, 5 de jan/1929, p.9)
O jornal Imparcial também se posicionava como um dos
combatentes à legalização profissional no esporte e, para marca sua
posição, conclamava seus leitores a aderirem à causa, convocando-os a
lutar por um esporte livre dos indivíduos que maculavam a imagem dos
sportsman. Em janeiro de 1929, o articulista do jornal vibrava com a medida
adotada pela AMEA.
O jornal em sua frente de combate ao profissionalismo abre a
matéria registrando a boa expectativa que se tinha desta nova lei: “Nos que
sempre propagamos pela guerra ao profissionalismo, sentimos prazer em
registrar tão auspiciosa expectativa” (Imparcial, 16 de jan/1929, p.9).
Na perspectiva de se analisar a nova determinação da AMEA, o
Imparcial divulgou uma entrevista do Sr. Antonio Gomes de Avellar, dirigente
do América, que compactuava com as mesmas ânsias daquele meio de
comunicação e acreditava que a nova lei iria moralizar o futebol, embora
reconhecesse a dificuldade de se combaterem os maus elementos:
164
“O problema do amadorismo será resolvido fácil. Brilhantementedesde que as ligas confederadas appareçam enérgicas punindoos criminosos sem dó nem piedade”.- Mas será fácil descobrir esses criminosos?Ahi reside o ponto transcendental do problema. Que existe oprofissionalismo mascarado é público e notório. Que se aponteeste e aquelle como profissional camuflado, nas rodas de esporteé fóra de dúvida.Que se suspeite, com muito fundamento, nas espheras directoras,que A e B exigiram e exigem dinheiro para jogar, não é segredopara ninguém. Agora, que se consiga prova comprovada,bastante e capaz de justificar uma punição é o que me parece,impossível, salvo raríssimas excepções. Foi thilhando por estaordem de idéias que produz, ao ser elaborado o projecto dosactuaes estatutos da Amea o que, depois de pequena alteração,se consubstanciou nos arts. 76 e seguintes:“O art. 77 é, no meu fraco entender, o mais efficiente golpe dadocontra o profissionalismo, em suas modalidades maiscaracterísticas: os borboletas que nos finais das temporadas seofferecem a todos os clubes e a cantado passado nos elementosdos clubes secundários.” (Imparcial, 16 de jan/1929, p.9)
Relembramos que, de acordo com os regulamentos dos clubes,
naquele período, o jogador que assinasse sua inscrição em um clube
deveria permanecer nele por quatro anos. Ao final deste período, se
quisessem mudar de clube, deveriam permanecer durante um ano inteiro em
completa inatividade, cumprindo o estágio estabelecido em lei. “Como se vê,
é diffícil arranjar offertas para um anno de inactividade. Não lhe parece?”,
comenta o dirigente americano (p.9). O Sr. Avellar lamentava que o
regimento anterior da AMEA permitia que os jogadores dos pequenos clubes
passassem com muita facilidade para os ‘grandes clubes’, o que provocava
uma constante troca de jogadores que não recusavam os convites dos
principais clubes. Para ele esta nova lei frearia esta situação e agora “os
165
clubes modestos têm a certeza de contar com os seus athletas por quatro
annos.” (p.9)
Apesar de o jornal Imparcial deixar marcada a sua posição contrária
ao profissionalismo esportivo, no dia 17 de janeiro, coloca-se favorável a
uma discussão, dizendo estar interessado em esclarecer os fatos, conforme
declaração:
“Acontece, porém que há uma série de circunstâncias moraes emateriaes, prós e contras que tornam a questão positivamentedelicada, exigindo que se trate della com o máximo cuidado etrato.
É o que procuraremos fazer proximamente, examinando todosos aspectos e conseqüências da inscripção por quatro annos quetanta agitação provocou nos círculos esportivos dacidade.”(Imparcial, 17 de jan/1929, p.9)
Para os articuladores do jornal Imparcial, a Lei de inscrição dos
quatro anos implantada pela AMEA acabaria com o ‘condenável hábito’
adotado pelos clubes ao final de cada temporada, reforçando suas equipes
com jogadores de outros clubes:
“Não há como negar que, de um modo geral, a Lei de Inscripçãopor quatro annos, agora em vigor na Amea, acabará com ocondennável habito em que estavam os nossos centros defootball de procurar melhorar os seus teams, finda a temporada,com elementos de outros clubs
Esse pernicioso viso está virtualmente extincto.” (Imparcial, 18de jan/1929 p.9) (Grifos nossos)
166
Observemos que o próprio jornal deixava mais uma vez a dúvida da
eficiência de controle sobre a condição amadora do jogador, ao dizer
virtualmente extinto. Reconhecia, desta forma, que o controle ainda não
seria suficiente para frear as contratações de jogadores de outros clubes
para reforçarem suas equipes.
Outro fator apontado pelo jornal Imparcial que julgava comprometer
a Lei da Inscrição era a exigência de apenas um ano de estágio, para os
jogadores de outros Estados, desde que o jogador não participasse de
nenhum esporte em competição oficial. Acreditava que, desta forma, este
seria o mecanismo de reforço a ser adotado pelos clubes.
Todavia, em 19 de janeiro, o Imparcial reconhece a dificuldade em
se estabelecer a ‘moralidade’ no futebol, quando alertava para as manobras
que poderiam ser realizadas contornando as exigências das leis, embora o
jornal não deixasse claras as manobras às quais estava se referindo.
Observemos que a Lei, apesar de coibir a troca de equipe dos
jogadores após o término de uma temporada, não conseguiria evitar as
remunerações que ocorriam nas equipes e pareciam ser as mazelas que
gostariam de ver combatidas, conforme aponta o jornal:
“Os que sinceramente se empenham em ver o footballreintegrado nos sãos princípios do amadorismo esportivo, devemestar attentos as manobras de alguns maos elementos que secontam no meio do sportsmen carioca
A nova lei dos quatro annos não conseguiu extirpar do quadrode amadores os que ahi figuram indevidamente pois não passamde mal disfarçados profissionaes. Com esta gente, ainda emactividade não será difficil outra forma de suborno, qual seja oque visa remunerar o jogador que se não esforce para avictoria de seu team.
167
Esse um dos aspectos mais repugnantes do profissionalismo econtra o qual, infelizmente nada pôde a lei dos quatro annos.
Vê-se, assim, que o problema só foi resolvido em parte e nadadesculpar-a que se não complete a iniciativa de saneamentoposta em prática com tanto enthusiasmo e esperanças.
Appellamos, pois, para que se exerça um rigorosa vigilância emtorno dos suspeitos, afim de conseguirmos a suprema ventura devermos extirpados por completo esse cancro do esporte.”(Imparcial, 19 de jan/1929, p.9) (Grifos nossos)
Observemos, pela veemência narrativa do articulador do jornal, que
ele reconhece e lamenta que, mesmo com as leis (da inscrição e do
estágio), ainda não se conseguiria coibir a presença de falsos amadores,
pois a lei não tinha dispositivos para controlar este perfil de jogadores.
Entretanto, apesar das lamentações, mesmo percebendo a
fragilidade da Lei, o jornal reconheceu pelo menos duas vantagens:
“1 – a obrigação em que estarão os clubes, de fomentar apratica esportiva entre os infantis e juvenis, que naimpossibilidade de caçar jogadores nos finaes de cadatemporada, é desses reservas que terá que tirar reforços parasuas equipes; 2 – a possibilidade de formarem teams poderososnos clubes pequenos.” (Imparcial, 31 de jan/1929, p.9)
A impossibilidade de troca de equipes por parte dos jogadores aos
finais de temporada, na percepção do articulista, forçaria os clubes a
investirem em categorias de base, visando reforçar futuramente as equipes
principais. Desta forma, novos valores estariam sendo preparados para
engrandecer o futebol carioca, não simplesmente aproveitando os jogadores
que se encontravam formados em outras equipes, o que era o hábito
168
naquele momento, ao assinarem a inscrição pela equipe que poderia lhe
conduzir ao deslocamento social. De fato, não parecia fazer sentido para os
principais clubes o investimento em formação de atletas, já que, pela
dinâmica esportiva daquele período, ficava facilitada a contratação de
jogadores de clubes periféricos sem expressão. O prestígio e o privilégio de
se jogar nos ‘grandes clubes’ já eram almejados por praticamente todos os
jogadores das classes populares.
Outro fator apontado pelo articulista como benéfico ao esporte nesta
nova lei era a possibilidade de formação de equipes poderosas nos
‘pequenos clubes’, já que deveriam permanecer vinculados por quatro anos.
Não podendo trocar de clubes, os próprios jogadores interessariam em
formar equipes competitivas. Será?
Capítulo XVIIRussinho – Uma entrevista provocadora
“Se o público me perguntasse se eu sou profissional ouamador eu não saberia responder com segurança. PorDeus, eu não saberia responder.”172
(Russinho em 1931)
Nos meses finais de 1931, o jornal O Globo intensificava uma
campanha a favor da profissionalização no futebol brasileiro173, desenvolvida
172 - Jornal o Globo, 30 de set /1931, p .8
169
desde o momento em que os principais jogadores do futebol brasileiro
passaram a firmar contratos em clubes europeus e latinos, principalmente na
Espanha, Itália, Uruguai e Argentina.
Adotando a estratégia de divulgação do ponto de vista de jogadores,
dirigentes, torcedores e profissionais da imprensa, o jornal realizava
entrevistas publicadas diariamente. Dentre as várias entrevistas, destacou-
se a que foi concedida pelo jogador Moacyr Siqueira Queiroz - o Russinho,
como popularmente ficou conhecido. A repercussão provocada na época da
sua primeira entrevista desencadeou o interesse público pelas informações
apresentadas, o que lhe gerou convites de outros jornais. Todos queriam
saber as contundentes opiniões do jogador acerca do amadorismo e
profissionalismo no futebol carioca.
Russinho era considerado pelos jornais (A Noite, Diária da Noite, O
Globo, Jornal dos Sports, entre outros), na época, um dos principais
jogadores do Clube de Regatas Vasco da Gama, embora os anais da
história não tenham registrado as glórias dos seus feitos esportivos. O
jogador, em sua entrevista, revelara, de forma objetiva, a condição de
vínculo dos jogadores cariocas com seus clubes, afirmando que o ‘bicho’,
uma remuneração a título de ajuda de custo e/ou gratificações, era um
costume normal e corriqueiro em todos os clubes, inclusive admitido pelos
dirigentes e, também, por todos os jogadores. Suas informações provocaram
intenso alvoroço no ciclo esportivo carioca. Russinho argumentou que se
encontrava qualificado e com direito para falar abertamente sobre os
173 - O jornal is ta Mário Rodrigues Fi lho era o responsável pelas not íciasespor t ivas .
170
assuntos, porque teria recusado um interessante contrato fora do Brasil. “Eu
posso falar porque recebi uma proposta de meia centena de contos para
tornar-me profissional e recusei.” (O Globo, 03 de out/1931, p.8)
As contundentes declarações de Russinho provocaram uma
inquietude da mídia, alimentando os jornalistas de argumentos que faziam
intensificar o debate acerca do falso amadorismo presente nos clubes
cariocas. Enquanto para alguns jornais suas declarações vieram reforçar as
suas empreitadas em busca da consolidação do profissionalismo, para
outros vieram como insulto à desordem, atitude de um jogador desprezível
sem compromisso com os ideais esportivos civilizatórios. A divulgação de
suas declarações efervesceu o debate acerca do amadorismo. Para os
editores do jornal O Globo, a entrevista foi um marco, em que todos os
jornais da época teriam aberto espaço para comentar as revelações
realizadas pelo jogador, conforme argumenta o jornal:
“Nunca uma entrevista provocou tanta ceulema. Todos os jornaesabriram colunnas para commental-a, e em todas as esquinas, emtodos os cafés onde se reúne a mocidade sportiva, o assunto ésempre o mesmo. Um matutino de sports pergunta, hoje: quemnão leu a entrevista de Russinho? Todos a leram, todos acommentaram. Elogios, ataques, provocaram as declarações dogrande condutor da ofensiva carioca. E nenhuma vos officialrebateu qualquer affirmações de Russo. A C.B.D. nada disse. DaAmea não partiu uma voz. E os clubs estão silenciosos.” (OGlobo, 03 de out/1931, p.8).
O jornal O Globo, ao se vangloriar com a sua reportagem sobre a
entrevista de Russinho, condenava a atitude de silêncio das instituições que
171
dominavam o esporte carioca e também dos clubes. Pareceu-nos que este
seria também um dos objetivos do jornal, intrigar as instituições e os clubes
para o debate, pois se fazia nítida a luta dos interlocutores do jornal pela
implantação do regime profissional no futebol.
Figura 02 – Equipe do Vasco da Gama -1929Russinho a direita
Todavia, a entrevista de Russinho recebeu críticas de diversos
cronistas de alguns jornais cariocas, que interpretaram suas informações
como prejudiciais ao esporte, colocando em cheque suas informações,
inclusive alguns sugeriam que se tratava de um artifício utilizado pelo
jogador em busca de autopromoção.
Russinho declarou que todos os jogadores recebiam o ‘bicho’,
considerando uma hipocrisia este ‘jogo de fazer de conta’ de que nada
acontecia. Acusava as instituições organizadoras do esporte e os clubes
172
como responsáveis por este fingimento, conclamando-os a responderem por
suas acusações:
“Eu recebo conducções de cem mil reis, de cincoenta e de trinta...Eu recebo e todos recebem. Quem dá a conducção é a C.B.D. Éa Amea, são os clubs. Contra os Uruguaios os brasileirosreceberam cem mil reis de conducção, contra os Paulistas, nadecisão do campeonato Brasileiro, os cariocas receberamcincoenta, contra o Botafogo eu recebi trinta mil reis. Veja bem asdifferenças. Depende da importância do jogo, da renda que o jogoproduz, e eu me pergunto: Se eu não gasto nem cem mil reis,nem cincoenta, nem trinta de conducção em dias de jogo, a quetítulo nos dão o resto? Sim a que título? Só poderia ser comogratificação e convenhamos que se for assim é pouco e irrisório...Por isso não sei o que sou, não sei o que somos os jogadores doRio de Janeiro. Não será profissionalismo, mas tenhamosfranqueza: isso não é amadorismo! Eu queria que os diretores daC.B.D., da AMEA, dos clubs, respondessem a essa minhapergunta: a que título o jogador recebe mais vinte, mais quarenta,mais oitenta mil reis de conducção?” (O Globo, 30 de set/1931,p.8)
Em outro momento da sua entrevista, ele se dizia em dúvida ao não
saber informar se era um amador ou um profissional: “Eu mesmo estou em
dúvida, serei amador? Serei profissional? Já não digo profissional, mas serei
amador, na mais justa accepção do vocábulo?” (p.8). Nota-se o tom
questionador que Russinho utiliza para denunciar a falta de coerência dos
valores recebidos pelos jogadores com pagamento de transporte nos dias de
jogo, pois, se fossem realmente para o transporte, esses valores seriam
exagerados, parecendo ser gratificações, o que não fazia sentido perante os
princípios do amadorismo. Caso fossem realmente gratificações, tais valores
então seriam irrisórios. Observa-se que Russinho argumenta e contra-
argumenta, deixando aberta a possibilidade da remuneração indireta que os
173
clubes pagavam aos seus jogadores, mas que deveriam ser camufladas
sobre outras receitas, no caso, o pagamento dos transportes.
Russinho disse ainda que o público que prestigiava o futebol
gostaria de saber onde ia parar o dinheiro que pagavam para ver os jogos e,
ainda, por que os principais jogadores brasileiros estavam abandonando o
país para jogar na Europa.
“O público quer saber porque os grandes “cracks” estão indo paraa Hespanhã. Se elle paga, se ele assiste a um match por preçosabsurdos, porque Fausto174 se foi? O público paga e nãocompreende que por causa de dinheiro um jogador brasileiro fiquena Hespanha. Nós não pagamos bastante?” (p.8)
Afirmou Russinho que o público ‘ingenuamente’ acreditava que o
dinheiro deixado nas bilheterias dos estádios seria para pagar os salários
dos jogadores: “O público só sabe de uma cousa: que paga e que o seu
dinheiro vai parar em algumas mãos. E a sua ingenuidade é lógica: eu pago
para ver os “cracks”, logo os “cracks” recebem...” (p.8)
Seus apontamentos balizaram as crônicas esportivas naqueles dias,
dando o tom do debate que vários cronistas esportivos buscavam respaldo.
As afirmativas de um jogador seriam o argumento oportuno para confirmar a
presença do amadorismo marrom tão criticado, mas que as vozes se
silenciavam, deixando os articuladores sem força para combater
174 - Fausto – O ‘Maravi lha Negra’ . Castro e Máximo (1965), argumentam quepara Fauto ter ia ido para a Espanha pelo fa to de o Brasi l não ter a indaof icia l izado o prof iss ional ismo. Pela sua condição social não podia ignorar aspesetas oferecidas pelos espanhóis . Castro , Marcos de. & Máximo. (1965) .Gigantes do futebol bras i le i ro. Rio de Janeiro . Lidador.
174
efetivamente o fato. A partir desta entrevista, as portas estariam abertas,
para outras denúncias e declarações. Russinho funcionou para a imprensa
como o ‘pavio’ necessário para estourar a bomba do debate em torno do
profissionalismo.
Em outro momento da entrevista, Russinho sugeriu que o esporte
fosse categorizado como divertimento, como são as casas de diversões, os
cinemas, o teatro e o circo. Para ele está seria uma boa saída para legalizar
o futebol brasileiro. Suas argumentações centravam-se no interesse do
público pelo futebol, como por outras diversões. Russinho já anunciava que
o futebol fazia parte da indústria do entretenimento, para usar o jargão de
hoje: Observemos suas palavras:
“Isso seria o certo. Proporcionamos um divertimento. A prefeiturataxa o campo de football, como uma casa de diversões, como umcinema, um theatro, um circo de cavallinhos, só com umadifferença: a estrella da tela, ganham ordenados principescos.Procópio175 recebe uma fortuna e os “cracks” constroem estádios,sustentam banquetes e os sports parasitas, e não recebem nadaa não ser um excesso de conducção e um ponta-pé quando a suaestrella se apaga.” (p.8)
Russinho argumentava que o dinheiro proveniente do futebol era
empregado em esportes secundários e no investimento de infra-estrutura
dos clubes. Seu ponto é que os recursos deveriam ser revestidos para o
próprio futebol e, desta forma, não precisariam ficar recebendo apenas as
‘gratificações excessivas’ supostamente destinadas ao transporte.
175 - Procópio Ferreira era naquele momento o pr incipal nome do teatro brasi le iro.
175
Ao ser questionado pelo repórter sobre a proposta que havia
recebido do Barcelona F. C., para juntar-se a Fausto e Jaguaré, Russinho
afirmou que não havia interesse em deixar o Brasil. “Disse que não me
interessava o negócio. Interessa-me o profissionalismo, mas no Brasil” (O
Globo, 05 de out/1931, p.8). Colocara, ainda, que sua situação era diferente
dos outros dois jogadores:
“O caso de Fausto e Jaguaré é differente. São solteiros, livres equizeram melhorar de sorte. Aqui em qualquer ramo de atividadea que se dedicassem, as suas possibilidades eram escassas.Nunca pensaram em chegar a situação de conforto a quechegaram. Fizeram bem, e eu nas mesmas situações faria omesmo. Mas o meu caso é diferente, sou casado e trabalho comsuccesso. Não sei somente football... Se eu fosse apenas umjogador de football a história seria outra.” (p.8)
Russinho lamentava e queixava-se da falta de clareza na definição
da condição do jogador no Rio de Janeiro. Afirmou, ainda, que não saberia
dizer se tornaria um profissional, caso a regulamentação profissional fosse
implantada, mas que seria sensato que fosse definida a situação:
“Se viesse o profissionalismo honestamente, civilisadoramente,eu saberia dizer: sou um amador, ou sou um profissional, e mesentiria tão orgulhoso de uma cousa como de outra. Como ascousas estão é que não pode continuar. Não há amadorismopuro, não há profissionalismo limpo, descoberto. Há um meiotermo. Para o público todos recebem.” (p.8)
Devido às impetuosas críticas que lhe foram proferidas, embora
nem todas tenham sido publicadas, conforme colocara em outras
176
entrevistas, o jornal O Globo abriu novo espaço para que pudesse contra
argumentar as depreciações que lhe estavam sendo aplicadas. Nesta nova
reportagem, desenvolveu sua defesa diante de alguns pontos selecionados
das críticas que recebera, no entanto, sem apontar diretamente seus
detratores. Entretanto, ao pesquisarmos nos jornais da época, encontramos
a quem Russinho dirigia seus argumentos e críticas.
O jornal A Noite, um dos combatentes ao profissionalismo, diz que a
atitude do jogador não somente o colocou mal perante a comunidade
esportiva, como também comprometeu as instituições (AMEA, FIFA e o
Vasco). Russinho esperava ver uma retratação dos envolvidos na sua fala:
“De qualquer modo, não fica mal somente o player que deu com a língua nos
dentes. Mas ficam a C.B.D., a Amea, e o C. R. Vasco da Gama, que devem,
por seu turno declarar, também, em que lado da dúvida se encontram.” (A
Noite, 01 de out/1931, p.8)
Rebatendo estas acusações, Russinho argumentou que o fato de
ter declarado que receberia gratificações apenas deu voz àquilo que todos
sabiam, mas era camuflado. Contesta ainda que não era apenas o Vasco da
Gama que teria ficado mal com suas declarações, mas todos os clubes que
estavam na mesma situação:
“Eu confessei que recebia 30$, 50$, 100$ de accordo com aimportância do jogo, mas frizei que todos encobriam. Se euestivesse sujeito as leis da Fifa, todos os nossos jogadoresestariam, e também a Amea e a C.B.D. E pergunta se eu possoreceber a medalha de campeão da cidade. Por que recebi obicho? Então não se cunhariam mais medalhas para oscampeões do nosso foot-ball. O chronista individualista demaisdizia que eu fiquei mal e que deixei mal a C.B.D., a Amea e o
177
Vasco! E não deixei mal os outros clubs? Se todos dão o ‘bicho’,sé todos os jogadores recebem o ‘bicho’.” (p.8)
O jornal A Noite ainda colocou em dúvidas os reais interesses do
jogador com sua denúncia, já que o próprio confessou ter recebido
vantagens nos jogos:
“Moacyr é francamente pelo profissionalismo e mais, paradesfazer a impressão má da attitude desassombradas, declara-seem dúvida quanto sua verdadeira situação sobre o proteccionismoda “Fifa”. Mas confessa as vantagens obtidas de acordo com osjogos em que intervem, tanto mais valendo a gorjeta, quanto maisimportante é o jogo.” (A Noite, 01 de out/1931, p.8)
Em sua resposta, o jogador salientou que, quanto à sugestão do
crítico, este deveria ser punido pelas instituições competentes, no caso a
FIFA, a qual esclareceu que, para puni-lo, teria que reprimir os demais
jogadores, bem como a AMEA e a Confederação Brasileira de Desportos.
“Se me fossem punir, seriam punidas a C. B. D., a Amea, os clubes, os
jogadores e não ficaria ninguém para contar como foi...” (O Globo, 03 de
out/1931, p.8)
Russinho ainda rebateu a acusação que lhe fora feita acerca do
recebimento de valores elevados para o transporte nos dias dos jogos.
Lembremos que, em sua primeira entrevista, o jogador afirmara que todos
recebiam gratificações, um expediente considerado corriqueiro:
“Não sou eu somente: todos re-cebem conducções exaggeradas.O Chonista ao atacar-me, devia atacar também todos os nossos
178
clubs, a própria Amea, a própria Confederação. Se o ataque meatinge, vae direto a todo do nosso football. E o chonista diz: ‘nãosão os proffissionaes, mas amadores que recebem certasindennizações”. Agora sou eu que dizia: “Oh! A ingenuidade dochonista! Amadores que recebem certas indennisações... Entãoum amador pode receber certas indenizações? São esses quedefendem o amadorismo. Ficam satisfeitos só com o rotulo.Podem receber, conquanto se chamam amadores. E diz: “Oplayer não é obrigado a receber”. Eu não disse que era obrigado areceber. Nem que esse dinheiro me queimava a mão. Esclareciuma situação. Disse somente uma verdade. E o chonistapergunta: “Se não dessem aos amadores (sempre esta palavra!)essa indennizações, poder-se-ia contar com o seu concurso? Euresponderei por todos os jogadores do Rio: em nenhuma parte domundo se pratica football com maior espírito de sacrifício. Porisso, os jogadores, aqui, duram somente quatro annos,geralmente. Os casos não são poucos e illustram perfeitamente aminha affirmativa. Pernas quebradas, rótulas fora do lugar,carreira cortadas no apogeu. Não será por causa de trinta nem decem mil réis que um jogador arrisque a vida, a sua carreira, ofuturo de sua família, mesmo porque elle sabe o que o espera.” (OGlobo, 03 de out/1931, p.8)
Observemos que Russinho se aproveitou dos argumentos utilizados
pelo cronista, ao acusá-lo, para questionar o conceito de amadorismo,
colocando em dúvidas o que o cronista entendia como amador, e ainda
ironizara, chamando-o de ingênuo, devido à contradição nas suas
argumentações: Como podem amadores que recebem ‘certa indenizações’?
Questionava o jogador sobre o amadorismo defendido pelos jornalistas que
o atacavam, indagando se eles ficavam satisfeitos somente com o rótulo de
amador.
Em outro momento, o jornal A Noite o chama de ‘mau elemento’ e
afirmou que somente a ele interessava o profissionalismo no Brasil. Para o
jornal, Russinho se colocava em uma espécie de leilão, aguardando a
179
melhor oferta, já que havia recusado a proposta do Clube Barcelona da
Espanha:
“Uma cousa ampara o “mau elemento” que se descobriu dehontem para cá: Moacyr interessa-se pelo profissionalismo, masno Brasil. Isto é como quem diz que elle se apresentará ao toquede reunir dos profissionaes e estará sujeito ao martello... de quemder mais.”(A Noite, 01 de out/1931, p.8)
Aqui parece ficar evidente a idéia de que a possibilidade de vender
a mão-de-obra neste espaço de representação de identidades, que é o
esporte, era visto como risco pelos amadoristas. Essa imagem parece ainda
permanecer nas narrativas atuais.
Russinho respondeu às acusações utilizando as argumentações de
recusa da proposta do clube espanhol, dizendo ainda não ter certeza se
tornar-se-ia um profissional, caso o regime fosse implantado no Brasil:
Outro chonista diz que eu estou sujeito: “ao martello... de quem dámais...”. No dia em que eu dei a entrevista ao Globo tinharecusado uma proposta de meia centena de contos de reis. Eestou sujeito ao martello... Eu nem disse que vindo oprofissionalismo, seria profissional. Disse que queria poderresponder de cabeça erguida: “Sou um profissional!” Disse quequando viesse o profissionalismo escolheria a minha sorte. Nuncavivi de football. Não preciso delle para viver. Se for fazer umbalanço só verei prejuízo...” (O Globo, 3 de out/1931, p.8)
As acusações do jornal A Noite sugeriam que, diante de seus
apontamentos, Russinho queria se ajeitar ante as Leis da AMEA e da
C.B.D., conforme argumenta o articulista:
180
“Deante, porém, de sua attitude, franca de mais, para amascarada do amadorismo eis que Moacyr acaba de crear umaposição nova para se ageitar ante as Leis ameanas, cebedensese fifenses: - Moacyr deverá ficar de fora, a espera desse toque dereunir, do lado dos profissionaes. Moacyr nesse ponto é que deixauma dúvida... se elle poderá receber mais para merecer ... amedalha de campeão da cidade...” (A Noite, 01 de out/1931, p.8).
Respondendo a esta crítica, Russinho ironizava o apontamento do
cronista e a situação do futebol brasileiro, dizendo que, caso fossem punir
como se estava sugerindo, não haveria mais futebol no Brasil, pois todos
seriam punidos:
“E o chonista diz que eu devo ficar de fora porque criei uma‘posição nova para ageitar-me ante as leis ameanas ecebedeneses’. Só achando graça! Então não se jogaria mais foot-ball no Brasil. Ficariam de fora, ‘a espera do toque de reunir dosprofissionais’, todos os jogadores, todas as ligas, todos asentidades!” (O Globo, 03 de out/1931, p.8)
O Jornal dos Sports de 01 de outubro de 1931, em tom de
lamentação disse que o ‘amadorismo’ teria levado um rude golpe, devido às
declarações de Russinho, o qual afirmava que se encontrava em dúvidas e
não saberia informar se era um amador ou profissional do futebol, pois
achava estranho que recebia dinheiro excessivo para o transporte. Para o
jornal, não havia o que acrescentar diante de tão claras denúncias
apontadas pelo jogador do Vasco e conclamava para que trocassem logo a
camisa do amadorismo pela do profissionalismo:
181
“Deante dessas declarações francas, cathegoricas, formaes, nadahá a accrescentar. Dispamos de vez as falsas roupagens doamadorismo e enverguemos logo, a camisa do profissional, tãodigna, tão honrada, como a de qualquer outra profissão lícita.”(Jornal dos Sports, 01 de out/1931, p.2).
Para o Jornal dos Sports o futebol deveria ser enquadrado como as
outras profissões, e tal atitude deveria ser uma honra. Entretanto, para os
defensores do regime amador, os ideais de honra não deveriam ser
comercializados.
No dia seguinte, o Jornal dos Sports prossegue, em sua cobertura,
com as repercussões das declarações do jogador, colocando, em letras
destacadas como primeira manchete da capa, parte de suas afirmações e
as penalidades que poderiam ser proferidas pela Fifa, caso as acusações
fossem levadas à instância superior. Todavia, o jornal não se aprofundou
nas análises dos fatos nesta edição:
“Russinho declarou que tem recebido ou da Amea, ou daConfederação, 100$, 50$ e 30$ para a conducção. O artigo 4º dosestatutos da Fifa é taxativo ao comminar penalidades para osamadores que assim procedem.” (Jornal dos Sports, 02 deout/1931, p.1)
Nota-se que o Jornal dos Sports se pautava no estatuto da FIFA
para questionar o perfil amador diante da remuneração que os jogadores
recebiam.
182
Os debates foram intensificados e outros jogadores foram
entrevistados, objetivando-se comentar as declarações de Russinho. Muitos
deles compactuaram com as opiniões emitidas pelo companheiro, dizendo
que ele foi sincero e honesto em suas afirmativas, conforme reconheceu
Martin, jogador do Fluminense:
“A entrevista de Russo agradou-me plenamente. O que elle dissefoi uma verdade que muita gente tinha vontade de dizer e nãodizia, por falta de coragem. Quantos jogadores não terão dirigidoa si mesmos, nos exames de consciência a pergunta que ocommandante da offensiva vascaina fez com bravura,publicamente. “Sou amador?” “Sou profissional?” Russo está naverdade com toda razão. As bases em que se apóia são sólidas,as suas affirmações são indestructiveis. ” (O globo, 03 deout/1931, p8)
Domingos Antonio, jogador do Bangu, colocou-se com a mesma
perspectiva diante da implantação do profissionalismo considerada seria
fundamental para o progresso do futebol brasileiro:
“O profissionalismo é uma necessidade inadiável para oprogresso do nosso football e a honestidade dos nossos rapazes.Nesse regimem de gorgetas é que não devemos continuar. Os“cracks” se amofinam. Perdem o incentivo. Descuidam-se até dasua própria forma.” (Jornal dos Sports, 03 de out/1931, p.1)
O repórter indagou sobre a possibilidade dele se tornar profissional,
caso o regime fosse inserido no futebol brasileiro. Domingos respondeu que
certamente se engajaria e, inclusive, não ficaria esperando pela implantação,
183
pois pretendia até mesmo sair do Brasil para buscar remunerações
vantajosas, conforme declarou:
“Certamente. Estou disposto agora a sair da própria terra natalpara jogar football com remuneração, caso encontre boasvantagens. Irei para a Hespanha, para a Itália, para a China! A“plata” é quem manda a gente seguir a trajetória da vida. Ojogador de football deve aproveitar o momento de sua grandezatechnica, do contrário, ficará esquecido. Como um pobre cãovadio, quando a decadência bater a sua porta.” (p.4) (grifosnossos)
Vejamos que o jogador Domingos estabeleceu o interesse
financeiro como o determinante da sua trajetória de vida. Para ele, a “plata”,
como denominou o dinheiro, era que determinaria suas ações. Portanto, as
marcas do discurso de pertencimento, de vínculo afetivo-emocional, são
colocadas pelo jogador em segundo plano. O jogador admite, mesmo que
indiretamente, que a ‘lei do mercado financeiro’ ditava a sua permanência,
seja no Brasil, na Espanha, na Itália e até mesmo na China. Essa ironia ao
citar a China caracterizou bem a intenção do jogador. Sabe-se que, naquele
período, a China não apresentava uma cultura esportiva que se interessava
pelo futebol, mas mesmo assim, se fosse para “encontrar boas vantagens”,
para o jogador não fazia diferença.
O jogador Preguinho do Fluminense, considerado pelos
companheiros e pela mídia, na época, como um verdadeiro sportmen, foi
outro convidado a comentar a entrevista de Russinho. Ele também teceu
elogios às argumentações de Russinho e compactuou com algumas de suas
análises, mas considerou que Russinho não foi feliz em parte das suas
184
declarações. Segundo Preguinho, ele não deveria generalizar sua
experiência para todos os jogadores, pois Preguinho diz não vestir a
carapuça. Preguinho, no jornal Diário da Noite de 06 de outubro de 1931,
diz:
“Sou de opinião que Russo disse a verdade. Elle não se afastounem um millimetro do que todos nós sabemos. Falou com a vozdo coração. Porque, realmente a situação é esta: o amador quegasta três ou cinco mil reis de conducção e recebe trinta, oucincoenta, ou cem para indemnizal-o destas despesas, não é tãosomente um amador. Vae alem, pois se excede, ferindo o que deconvencionou chamar a Lei do amadorismo. Russo teve razão. Sónuma parte das suas declarações elle não foi feliz. Naquella “nósrecebemos” generalizou demasiadamente a questão, pois nãosão todos os que “recebem”. Pode ser, acredito, que todos“tenham direito” a receber e em face do que os clubes, a Amea, ea própria confederação tomaram por naipe nesta questão deconducção. Entretanto, não vai nisso nenhuma velleidadedescabida, mas seja permitido que eu diga: jamais recebi umtostão se quer como verba de conducção.” (Diário da Noite, 03 deout/1931, p.2)
Em entrevista concedida ao Jornal Diário da Noite, Russinho se
colocou como representante da classe de jogadores que se sentia explorada
pelos dirigentes, denominados pelo jogador de ‘Senhores de Engenho’.
“Minha attitude de hoje, tem maior significação do que parece àprimeira vista. Falei como delegado de grande núcleo dejogadores que sentem a exploração de senhores de engenho. Osdiretores dos clubs, em sua maioria, são os exploradores dosportmem. Há sempre interesses indiretos explicando essa forçade sacrifico feitos pelos clubs.” (Diário da Noite, 06 de out/1931,p.6/7)
185
Russinho desafiou os dirigentes a provarem que as quantias pagas
a título de transporte estavam de acordo com o que era estabelecido pelo
regulamento da Fifa, como haviam dito no clima do debate pelos jornais.
Russinho clama por relações trabalhistas modernas no futebol, opondo-se
ao modelo patriarcal das relações trabalhistas.
“Falam por ai que as quantias pagas pelos clubs e pelasentidades o são de acordo com o regulamento da Fifa. Desejariaver onde se acham tais dispositivos regulamentares. A Fifa,segundo estou informado, admite indenizações pelo tempoperdido por quem ausenta do país na defesa das cores sportivasde uma instituição. Isto é coisa substancialmente diferente dessapouca vergonha de ser formada uma fileira de jogadores dentrodos vestiários dos clubs, após treinos e jogos, para receber dasmãos dos tesoureiros um pagamento que avilta.” (Diário da Noite,06 de out/1931, p.7)
Russinho voltou a comentar sobre o valor exagerado que os
jogadores recebiam como cota de condução nos dias de jogo e de treino,
dizendo ainda que não poderiam ser considerados amadores aqueles que
recebiam duplamente pelas horas de trabalho.
“O amador quando deixa a casa em que trabalha para treinar oujogar, só o faz com licença do patrão. Não perde dinheiro comisso. Nada há, portanto, que justifique ser indenizado em dinheiro,por tempo que já está pago. Ou seremos amadores prestigiadospelos nossos dirigentes, ou profissionaes com deveres contratuaisa cumprir.” (p.7)
O embate se estendeu por vários dias. Poderíamos estender estas
ricas narrativas até os anos seguintes quando se oficializou o
186
profissionalismo, mas o faremos em outro momento. Por hora, interessava-
nos este fato, como pontapé das transformações, e as narrativas que se
deram em torno dele.
Observemos que as argumentações de Russinho eram irrefutáveis e
marcantes para aqueles que pretendiam combater a manutenção do regime
amador naquela época, diante da estrutura presente nos principais clubes do
futebol do Rio de Janeiro. O desfecho das suas acusações não lhe resultara
nenhuma punição, como também não resultou para o Vasco, a AMEA e a
CBD. Todavia, diante destes argumentos, os defensores da implantação do
profissionalismo se reforçaram, acarretando tensão no quadro de dirigentes
das principais entidades nacionais e também nos clubes. Muitos dirigentes já
se mostravam favoráveis às mudanças e começavam a encampar as
campanhas pró-profissionalismo, pressionando os demais dirigentes que
preferiam manter a estrutura vigente camuflada nas concepções do esporte
amador.
Esta tensão quanto ao profissionalismo teria provocado uma
inquietude em outros setores sociais brasileiro, chegado ao espaço da
música. O já consagrado cantor e compositor Noel Rosa lançou, em 1932, a
música “Quem dá mais?”, onde ironizava o que Russinho vinha exigindo, de
forma sigilosa, para permanecer no atuando pelo Vasco nas temporadas
seguintes (Assaf, 2003). 176 Esta situação parece nos dar mais uma
evidência de que o amadorismo, da forma que se encontrava estava
desacreditado:
176 - Assaf , Roberto. (2003) . Sete décadas de futebol prof iss ional . In: JornalLance. 18 de fevereiro, p .14.
187
“Cinco mil réis, 200 mil réis, um conto de réis? Ninguém da mais de um conto de réis?O Vasco paga o lote na batatae em vez de batata oferece ao Russinho uma mulata”.
(Quem da mais? – Noel Rosa 1932)
Capítulo VIIIA tensão dos anos finais da década de 20 e anos iniciais dadécada de 30 – O Jornal do Fluminense Foot-ball Clubpreparando o terreno para o profissionalismo
“Os jogos entre teams do Rio, S. Paulo e Minas, são comdificuldade combinados, por causa do tempo que perdem oscomponentes dos diversos Clubs, deixado seus affazeresabandonados, prejudicando-os por 3 e 6 dias seguidos.
Não é commum que um quadro carioca se locomova daqui parao Espírito Santo, Bahia ou Pernambuco, para a disputa de um sójogo.
Fazem-se, em “tournée”, 5 e 6 jogos, geralmente disputados aosdomingos, que demanda 5 a 6 semanas, tempo precioso de queum amador não pode dispor.”(p.13) 177 (Grifos nossos)
Desta forma, a Revista Tricolor relatava e lamentava a dificuldade
de manter um campeonato interestadual, queixando-se do tempo que os
jogadores deveriam dispor para cumprir a agenda de jogos. Em primeiro
177 - Os jogos nocturnos e sua conveniência – Os jogos in ternacionaes e ocampeonato brasi leiro . In : Tricolor - Revista Sport iva do Fluminense Foot-BallClub . (1929). nº14, jan. p .13
188
plano, as lamentações referem-se ao tempo perdido, mas a própria narrativa
da revista deixou clara a dificuldade de se terem equipes representativas
para eventos interestaduais apenas com jogadores amadores. Em outras
palavras, apenas os jogadores que não precisam trabalhar podem compor
as equipes para estas ‘tournées’.
Esta lamentação dos responsáveis pela matéria, não assinada,
mesmo sem julgar suas intenções, nos remete a analisar o processo da
relação do atleta com o clube. O tempo disponível para a viagem retirava o
jogador dos seus compromissos profissionais.178 Parece que, devido ao
apelo do amadorismo pela narrativa acima e aqui reproduzida “tempo
precioso de que um amador não pode dispor”, poderíamos imaginar que
nem sempre as equipes viajavam com seus melhores jogadores, uma vez
que, dependendo do seu trabalho, poderiam não dispor de tempo para as
viagens.
Talvez, pudéssemos começar a perceber uma pista da necessidade
dos principais clubes de ter em suas equipes jogadores disponíveis, sem os
vínculos de trabalho rígidos. Jogadores que fossem contratados por
empresas que possibilitassem a sua ausência do trabalho por alguns dias,
para honrar seu compromisso de “amador”, representando o clube. Parece-
nos um ponto fundamental refletir se o empresário, naquela época, estaria
disposto a flexibilizar o tempo de trabalho para que o seu empregado,
jogador amador, pudesse cumprir o cronograma de viagem de jogos do seu
clube.
178 - A nova ‘el i te’ geralmente trabalhava em seus próprios negócios ou namáquina es ta ta l .
189
Esta mudança no perfil do jogador já se fazia necessária para que
pudesse levar a frente o processo de esportivização que pretendiam os
dirigentes. Parece que não fazia sentido ter uma representação esportiva, se
ela não fosse capaz de marcar de forma heróica as façanhas dos clubes e
de seus associados. O processo de popularização do esporte, mesmo para
os torcedores, provocou as mudanças singulares na relação do jogador com
o clube. As cobranças externas e a necessidade de performance para
suplantar os clubes adversários conduziram alguns dos dirigentes a
repensarem o papel e a importância do jogador diante das aspirações dos
clubes. Não mais poderia valorizar o esporte apenas como um espaço de
confraternização social dos associados endinheirados. Alguns dirigentes
rapidamente perceberam as necessidades de mudanças. Outros, no
entanto, lutavam contra ela, acreditando ou invocando para o esporte uma
moralidade romântica que já não era mais propagada e cultivada por parte
de alguns clubes, dirigentes e jogadores, principalmente para aqueles
jogadores que buscam no futebol a possibilidade de ascensão social e/ou
sobrevivência.
Outro benefício apresentado pela reportagem da Revista Tricolor
quanto à iluminação dos estádios estava relacionado aos lucros obtidos pela
Confederação Brasileira de Desportos (CBD) ao realizar os jogos em
horários noturnos.
190
“A C.B.D. gastou, na disputa do último campeonato, cerca de 220contos de reis, com uma receita de 300 contos que lhe permittiuquase 100 contos de lucro; sem calcular o prejuízo, evitado aosjogadores, afastados de seus affazeres, por menos dias, ella teriaconseguido um bem maior lucro, se houvesse feito realizar jogosnocturnos.” (p.13) (grifos nossos)
Vejamos que a intenção da matéria era sugerir a iluminação dos
campos de futebol para a realização dos jogos à noite, diminuindo o tempo
em que os clubes deveriam ficar viajando em turnês, conforme a citação da
página anterior. Desta forma, reduziriam também as despesas de
permanência da equipe visitante em hotéis com valores elevados, bem como
as despesas com diárias dos jogadores. Todavia, a matéria vem reforçar o
tema da indisponibilidade dos jogadores amadores frente aos compromissos
dos clubes, conforme esclarece o recorte a seguir: “Se houvesse feito
realizar alguns desses jogos á noite, no meio da semana, a despesa se teria
reduzido, sem diminuir a receita e sem prejudicar os interesses de cada
amador afastado tantos dias de seu trabalho.”179 (grifos nossos)
Percebe-se, por trás das lamentações da matéria “os jogos
nocturnos e sua conveniência”, que já havia se estabelecido uma
comparação (direta ou indireta, proposital ou ingênua) da necessidade de se
repensar o mecanismo de sustentação esportiva, não somente dos clubes,
mas também da CBD. Demonstrava o esporte, já naquele instante, ser
necessária a readaptação à nova realidade, isto é, como combinar o
179 - Os jogos nocturnos e sua conveniência – Os jogos in ternacionaes e ocampeonato brasi leiro . In : Tricolor - Revista Sport iva do Fluminense Foot-BallClub . (1929). nº14, jan. p .13
191
desenvolvimento do esporte com a profissionalização do jogador. Nesta
perspectiva, estava a dúvida: como gerenciar um campeonato interestadual
mantendo o jogador como um simples amante esportivo? A justificativa da
distância entre os estados e o tempo disponível para a realização dos
encontros alertava para uma rotina que não poderia durar por muito tempo, e
o jornal questionava o modelo e a estrutura do momento. Ou se mudava a
estrutura ou não seriam viáveis alguns eventos esportivos.
O articulista justificava ainda como vantagem a iluminação dos
campos como meio de facilitar “os treinos de seus amadores, geralmente
rapazes que labutam de 8 e 9 às 17 e 18 horas,...” (p.14) (grifos nossos)
Nota-se que, se por um lado, os argumentos alertavam para a
necessidade de mudança, devido aos novos perfis dos eventos e a
fragilidade da condição esportiva da época (ano de 1929), por outro,
observa-se que os dirigentes tentavam manter o futebol como espaço de
distinção social, o futebol dominado e gerenciado por um grupo de
privilegiados.
“É caso resolvido a implantação do Football profissional”. Esta é a
manchete da primeira página do Jornal do Fluminense Football Club (F.F.C.)
do dia 4 de setembro de 1932.180 A matéria ressaltava a importância da
profissionalização, argumentando a queda da eficiência dos jogadores
brasileiros. Naquele momento, o Fluminense se colocava vangloriante de
seus feitos como iniciador do movimento pró-profissionalismo. Nesta mesma
edição, trouxe parte da notícia, que foi vinculada no Jornal do Commércio,
180 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 04 de set /1932. n .47. Todavia, o regimeprof iss ional só v ir ia a ser implantado no ano seguinte ,como veremos a frente .
192
por ocasião da reunião dos dirigentes esportivos cariocas, a favor da
implantação do novo regime:
“Nós mesmos, em differentes tópicos temos chamado a attençãodos nossos grandes clubs para a responsabilidade que lhes cabenessa queda da efficiencia de nossos footballers.
Essa advertencia, de que nós nos faziamos simplesintermerdiarios, porque todos sentiam, como sentem, ophenomeno, foi meditada e, afinal, concretizada pelo Fluminensee pelo Vasco da Gama na iniciativa de se criar uma entidadecapaz de estabelecer entre os clubs e athletas a necessariareciprocidade de direitos e deveres.” (p.1)
O jornal relatara que, após expor em síntese o seu pensamento, o
presidente do Fluminense, Dr. Arnaldo Guinle solicitou que os demais
representantes se explanassem sobre a consonância da criação da entidade
de jogadores profissionais. Entretanto, parece que a proposta não conseguiu
assegurar a coesão de todos, conforme coloca o Jornal do Commercio:
“A maioria dos presentes deu-nos a impressão de que vacillavaquanto a opportunidade da implantação do profissionalismo, quetodos os convencionaes, aliás, acceitavam em princípio, tendo-semanifestado o presidente do América, do Flamengo, do Bangu, doBotafogo e, por fim, o Dr. Arnaldo Guinle.”181 (p.12)
Embora a manchete inicial do jornal do F.F.C. tenha colocado como
certa a implantação do novo regime, a impressão que o Jornal do
Commércio deixa é de que não havia um consenso entre todos os membros.
181 - Jornal do Commercio , 29 de ago/1932.
193
Figura 03 – Jornal do Fluminense Football Club, 4 de set/1932, anunciando osurgimento de uma liga para os profissionais
O jornal do F.F.C. trás uma coluna denominada “O profissionalismo
– Contradição e ingratidão”, onde “J.K.”182 destacou a dificuldade dos
grandes clubes de implantarem algumas modificações no gerenciamento do
182 - JK é o responsável pela matér ia . Jornal do Fluminense Football Club , 04 desetembro de 1932. Em nossos levantamentos, não conseguimos identi f icar quem éo cronista JK.
194
futebol, devido à barreira apresentada por alguns clubes considerados
pequenos. O articulista acusa estes pequenos clubes de comprometerem as
mudanças proposta pelos grandes clubes. Nota-se como a idéia da ameaça
(Hirschman, 1992) surge nesta narrativa do Sr. J. K:
“É tempo de, uma vez por todas, pôr-se um paradeiro áverdadeira tutela que os pequenos clubs exercem, de facto, sobreos grandes.
Estes não podem tomar nenhuma medida de ordem particular,que acautele os seus interesses, sem, preliminarmente, indagarse ella collide com os interesses dos que desejam e ainda nãopuderam se tornar grandes.
Estamos num regime de facto, em que, para dar um passo nasua vida íntima, os clubes grandes, os clubs organizados, de vidaindependente, têm de pedir licença áquelles que só conseguemviver á sombra ou á custa do seu tutelado. É a inversão da ordemnatural das coisas. É o emancipado sujeitando-se ao pátrio poderde pessoa incapaz, situação absurda e aberrante, tolerada comose fosse o resultado de um pacto gerado de qualquer princípiolegal.
Ainda agora, os pequeno clubs se agitam e “reclamam” contra adecisão dos grandes clubs.” (p.6)
Meio a todas estas situações, o Sr. Rivadávia Correa Meyer,
Presidente da AMEA, em entrevista a um jornal da época, tece uma série de
argumentos contraditórios combatendo o profissionalismo. O Jornal do
F.F.C, do dia 11 de setembro de 1932183, reproduz partes desta entrevista
com os seus argumentos, criticando-os e demonstrando pesar pela atitude
do Sr. Presidente.
“Em que pese a autoridade official do presidente da Amea, aentrevista concedida a um matutino pelo illustre Dr. Rivadária
183 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 11 de set /1932.
195
Corrêa Meyer sobre o profissionalismo causou a maior decepção,tanto pela falta de serenidade na exposição dos conceitos, comono desconhecimento, que SS. revela de assumptos inherentes ávida intima dos clubs superintendidos pela entidade que o temcomo presidente. E poderíamos acrescentar: pela maneira rude einjusta por que trata a maioria dos presidentes dos nossosgrandes clubs.
SS não estudou a evolução do football em nenhum paiz domundo, para fundamentar a sua formal condenação.” (p.7)
Este tom de crítica apresentado pelo jornal do F.F.C. sobre a
entrevista do Sr. Rivadavia demonstra a tensão da implantação no novo
regime. O que se questionava era o fato de Rivadavia ser o representante
dos principais clubes e adotar um discurso contrário aos princípios
fomentados por alguns dos clubes que o havia elegido para representá-los.
Nitidamente existia uma tensão dentro da AMEA. O Presidente demonstrava
ser contrário à mudança do regime, o que causava a indignação dos
dirigentes tricolores. Incomodava a estes dirigentes o fato de que as críticas
realizadas pelo Presidente poderiam comprometer o processo de transição,
como veremos posteriormente. Em uma de suas falas, Rivadavia se mostra
taxativo, quando apresentou o seguinte argumento:
“Sou radicalmente contra a implantação do profissionalismo emnossa terra, por julgal-a um erro e erro grande”. (...) “Se assim é,teremos que convir que o profissionalismo a ser implantado,relegará para plano secundário a educação physica dosbrasileiros.” (p.7)
Observa-se que o Rivadávia elaborou suas argumentações
sustentadas na corrosão dos valores que o esporte deveria representar. Isto
196
é, a mudança poderia provocar um efeito perverso ao contrário do que se
esperava os pro-profissionalistas (Hirschman, 1992). Era um discurso que
interessava aos dirigentes que lutavam pela manutenção do amadorismo.
Por que o Sr. Rivadávia se posicionara contra o interesse de seus
partidários? O contra-argumento do jornal do F.F.C. tentava demonstrar
quais eram as reais preocupações do Sr. Presidente, sugerindo que outros
propósitos estariam camufladas nas suas intenções:
“O exemplo das grandes nações do mundo, em que háprofissionalismo, não no football apenas, mas em diversos ramosesportivos, prova a falsidade dessa these, apresentando osmelhores resultados em matéria de cultura physica, exhibidos,ainda recentemente, nos Jogos Olympicos, nos quaes o Brasilfigurou em último lugar.(...)
A cultura physica assenta essencialmente nos esportesathleticos propriamente ditos. Estes, entre nós, ainda precisampara se desenvolverem, da “renda” do football. Essa é que é averdade que o presidente não quiz por em evidência, antesprocurou esconder...” (p.7)
O futebol era a alternativa financeira para o desenvolvimento de
outros segmentos esportivos e, portanto, caso admitisse a
profissionalização, como seriam gerenciadas as outras modalidades. Nota-
se que a argumentação colocava que o profissionalismo do futebol
ameaçava o desenvolvimento dos outros esportes.
Em outro momento, o Sr. Rivadávia demonstra a preocupação com
as dívidas de alguns clubes, acreditando que o regime profissional iria
complicar ainda mais a condição financeira destes, seria uma ameaça, pois
não havia dinheiro para sustentar as despesas provenientes do
profissionalismo, conforme argumentara:
197
“Realmente, se com o amadorismo, os clubs do Rio vivemendividados, o que será com o profissionalismo que acarretadespesas immensas?
O Fluminense, o Vasco e o Botafogo, possuidores de dívidasnão pequenas, se não as resgatarem sob o regime doamadorismo, como vão solve-las sob o do profissionalismo, fonteperenne de gastos e despesas?” (p.7)
Entre os vários combatentes ao profissionalismo, posicionava o Sr.
Marcos de Mendonça, ex-jogador jogador do Fluminense e um dos mais
prestigiados sportsmen carioca. O jornal do F.F.C184 veicula uma matéria
onde Marco Mendonça apresenta seus argumentos favoráveis à
manutenção do regime amador no esporte. De acordo com Marcos, a
mudança de regime seria uma catástrofe de ordem moral, onde
“pateticamente” compara o profissionalismo esportivo ao vício do cigarro:
“Mas há para a mocidade de agora um perigo maior, ameaçandode um mal mais grave aquelles que não tem em si a energia e aserenidade necessária para enfrental-o Refiro-me à desgraçadaavalanche que ameaça os alicerces moraes de todas asorganizações esportivas do mundo: o profissionalismo, resultanteda substituição gradativa dos princípios idealistas pelos utilitaristasentre as classes moças das sociedades universaes.” (p.1)
Marcos Mendonça finaliza seu texto destilando toda sua inquietude
frente à nova possibilidade de surgimento do jogador profissional. Na
tentativa de frear a mudança, conclama a todos a resistirem a esta
alteração.
184 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 31 de ju l /1932.
198
“É indiscutivelmente tentador para qualquer athleta moço figurarnas equipes representativas de nossos clubs de nossas cidades,ou de nosso paiz, mas eu os concito a cerrarem fileiras epropaganda intensa em prol do puro amadorismo, certo de que,dentro de pouco tempo, terão voltado à época em que o esporteera praticado a bem do corpo e do espírito, trazendo assim aosseus adeptos todos os benefícios que decorrem de uma vidaphysica e moralmente sadia.” (p.1)
Observemos que para Marcos Mendonça o profissionalismo era
uma futilidade e que não teria conseqüências maiores, pois tudo retornaria
ao normal em pouco tempo.
A matéria é a expressão da resistência interna que os dirigentes
pró-profissinalistas tricolores encontravam em seu próprio clube na tentativa
de se promover às mudanças na estrutura administrativa do futebol carioca
e nacional. A princípio, poderíamos considerar as opiniões do Sr. Marcos de
Mendonça como um fato isolado dentro do quadro de associados, mas
certamente uma idéia representativa, visto que sua matéria ocupara a
primeira página do jornal do clube.
Às vésperas da reunião destinada a implantar o novo regime, o Sr.
J. K publica185 um texto onde insinua que os fundadores da AMEA teriam
articulado contra o profissionalismo:
“Com effeito, a constituição do Conselho de Fundadores daentidade carioca deve ter tido em mira congregar os grandesclubs, numa assembléia à parte, para melhor se acautelaremcontra os males que acarretaram a decadência da antiga LigaMetrolopitana; para pugnarem pelos interesses communs e,
185 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 22 de jan/1933.
199
assim, unidos e fortalecidos, desempenharem a alta missão demanter, intacta e prestigiada, a Associação que fundaram.” (p.2)
A luta pelo poder de gerenciamento do futebol carioca permanecia
presente na AMEA. Alguns dirigentes entendiam que a mudança do regime
poderia representar perda de prestígios perante os demais clubes. E perder
o prestígio seria uma ameaça que não poderiam admitir. Nesta perspectiva,
logicamente, dentro da instituição haveria vozes descontentes.
O Sr. J. K. continuava a apresentar argumentos favoráveis ao novo
regime:
“Com a iniciativa tomada pelo Fluminense, de moralizar o footballpela implantação do profissionalismo real e declarado, emsubstituição a um amadorismo mascarado, que nos envergonhae avilta, os fundadores da Amea se dividiram e a maioria, se nãoautorizou a campanha que se passou a desenvolver contra nós eos nossos mais acatados consocios, pelo menos recolheram-se aum significativo mutismo, quebrando apenas depois de decorridosquasi cinco mezes da data da reunião, em que todos acceitaramem princípio a nova idea.” (p.2) (grifos nossos)
Segundo o articulista, o objetivo dos contrários à profissionalização
era criar uma atmosfera de conflito, provocando um descrédito das forças
que se articulavam para a moralização do futebol e do Fluminense, clube
que assumira a frente de luta:
“Allega-se, à última hora, que a implantação do profissionalismono Distrito Federal é inconveniente aos interesses e as tradiçõesdos clubs de football e do esporte carioca.
Esta confissão vale por toda a campanha.De facto, não convém a certos clubs quebrar a tradição do
amadorismo “marrom” ou do profissionalismo “cor de rosa” (como
200
queiram), porque seria attentar contra os seus inconfessáveisinteresses.” (p.2)
Waldo Barvél, em matéria denominada O Profissionalismo,
publicada na mesma edição do jornal do F.F.C.186, posicionou-se a favor da
moralização do futebol, argumentando sobre as mazelas atenuantes
naquele período:
“Já as grandes assistências não mais se viam por melhores quefossem os jogos e suas equipes; o padrão de jogo viu-sesacrificado pela paixão e deslealdade dos que o praticavam: osseus orientadores afastavam-se de suas obrigações; a “qualidade”de torcedores diminuía assustadoramente, tirando o brilho e acordialidade que havia dantes; appareceram o ódio, o despeito, aindisciplina, a desorganização, o distúrbio, o vício, a corrupção,enfim, a desmoralisação!... Esse, o estado actual do nossofootball, e dahi para peior, se não vencer a idéia salvadora doprofissionalismo, agora o melhor meio de se expurgar as ‘pragas”e de salvar-se o pouco que resta do amadorismo.” (p.2)
Observemos a idéia de conciliação proposta pelo dirigente.
Pretendia-se a profissionalização com mecanismo de salvação do futebol
carioca e o próprio amadorismo, expulsando as pragas que estavam
disseminadas no seu meio. O que significa salvar um pouco do
amadorismo? Talvez aqui o significado seja o do amor ao esporte. Sabe-se
que o amor não parece conviver bem com a mentira, pelo menos em termos
do ideal.
A idéia do profissionalismo já vinha se arrastando fortemente entre
os associados do Fluminense. Entre defensores e contrários às idéias,
186 - Jornal do Fluminense Footbal l Club , 22 de jan/1933.
201
muitos foram os embates produzidos. Entretanto, a possibilidade de
discussão do tema estava eminente desde o final dos anos 20. O
Fluminense, que, na maioria das vezes, se posicionava defendendo a
mudança parecia que encontrava resistências internas, ou ingenuamente
deixava que seus veículos informativos apresentassem argumentos que
fragilizavam sua empreitada em defesa à oficialização do
profissionalismo.187
Esse tipo de embate estava nas páginas do jornal do Fluminense.
Por exemplo, em 1928, uma matéria no jornal enfatizava que seu ex-jogador
Harry Welfare188 jogou pelo Fluminense sob a condição de amador, já que
pairavam denúncias ou comentários dos clubes rivais de que esse jogador
era profissional.189 Na mesma matéria em que Welfare era considerado
187 - A Revista Sport iva Tricolor nº 5 de 1928 trouxe uma matér ia que colocava emcheque o amadorismo e prof iss ional ismo no tênis . Através do l ivro “Confissões deuma jogadora de tennis” , escr i to pela espanhola Alvarez, e de um episódio com atenis ta Lenglen, in t i tu lado “O caso de Suzanne Lenglen”, a revis ta trouxe à tona adiscussão. Enquanto Alvarez apontava em suas confissões que o “tennis não ésempre tão amador como parece” (p.18) Lenglen veio requerer junto à AssociaçãoFrancesa de Tennis a permissão para vol tar a a tuar como amadora, pois , segundoela , as somas que ter ia recebido pela famosa tornée, na condição de prof iss ional ,não a recompensara dos prejuízos de ordem moral que ter ia sofr ido, em relação aoprest íg io , g lór ias e sat isfações que teve como amadora. Observemos que a matér iacolocava em confronto os prejuízos morais e as somas recebidas pela tenista .Através da própr ia argumentação de Lenglen, percebe-se que, para assimilar osprejuízos morais , os benef íc ios f inanceiros dever iam ter s ido sat is fa tór ios , is to é,se t ivesse conseguido bons prêmios na condição profiss ional , ta lvez suaslamentações não fossem as mesmas. Interessante observar que, embora oFluminense t ivesse lu tando pelo prof iss ional ismo no futebol , mesmo assim abr iuespaço em seu veículo jornal ís t ico par t icular para quest ioná- lo em outramodal idade. Como entender es ta dubial idade dos edi tores dos dir igentest r icolores? Quais ser iam suas in tenções em denunciar o prof iss ional ismo no tênis ,já que levantavam fervorosamente a bandeira do profiss ional ismo no futebol?
188 - Revis ta Spor t iva Tr icolor . Fluminense Footbal l Club . n º 7. (p .6) . 1928
189 - O clube apresentou um ofício que ter ia recebido da Liga Metropol i tana,quest ionando sobre a dúvida que pairava sobre a condição de Welfare, bem comooutro of íc io resposta enviado pelo Liverpool Footbal l Club , a pedido do próprioclube, onde o clube inglês destaca a idoneidade do jogador.
202
amador no Fluminense, surge a denúncia acerca do seu vínculo com o clube
Cruzmaltino:
“Agora que Welfare é de facto um profissional, agora que oamador de outr’ora se fez ‘entraineur’ do Vasco, apresentaremosaos nossos leitores algumas provas, segundo as quaes podemose temos o direito de affirmar de voz bem alta e de cabeça erguida:“Sob a bandeira do Fluminense Harry Welfare foi sempre umamador.” (p.6)
Parece que a tentativa do Fluminense, refletida nas páginas de sua
revista e jornal, antes de prestar a homenagem ao ex-jogador, era denunciar
em ‘tom enciumado’ que o Vasco estava contrariando os princípios
amadores.
Essas cartas, que acima reproduzimos, seriam o bastante parademonstrar que o Fluminense só acceitou Harry Welfare depoisde decididamente provada a sua qualidade de amador. E ahi temos leitores a prova de como age o Fluminense. O nosso club éantes de tudo, respeitador da sociedade que o freqüenta e clubde bons amadores, e esta homenagem que hoje prestamos aWelfare, elle a merece como benemérito do Fluminense ondeconta um admirador em cada consocio.” (p.6) (grifos nossos)
Portanto, entre denúncias e lamentos, nota-se que o embate já se
fazia freqüente no final da década de 20 e início dos anos 30. Parece que as
narrativas acerca do envolvimento de Welfere com os clubes por onde
passou ajudaram a acentuar o debate. A condição de Welfere bem servia
para alimentar o debate entre amadorismo e profissionalismo no futebol
carioca.
203
As argumentações utilizadas pareciam a preparação do terreno para
a mudança. Todavia, tais mudanças gerariam o descontentamento de alguns
que lutariam para manter firmes suas convicções esportivas. Apesar dos
percalços, o profissionalismo chegou e novas fronteiras foram abertas para o
futebol e demais esportes no Brasil, a partir deste marco.
No capítulo seguinte, serão analisados o profissionalismo brasileiro
e os discursos originados a partir desta nova perspectiva.
Capítulo IXO profissionalismo do futebol brasileiro
O profissionalismo foi oficializado em alguns países europeus ainda
no final do século XIX. Esse processo somente migrou para os países sul-
americanos a partir da 3ª décadas do século XX, quase 50 anos depois,
conforme Quadro 01. Com isso, criou-se um mercado de jogadores. Os
principais clubes que aderiram ao regime profissional buscaram reforçar
suas equipes com jogadores estrangeiros. Os sul-americanos passaram a
ser requisitados para os principais clubes europeus. Leite Lopes (1999)190
190 - Lei te Lopes, José Sérgio . (1999) . Considerações em torno das transformaçõesdo prof iss ional ismo no futebol a par t i r da observação da Copa de 1998. In: LúciaL. Oliveira , Marieta de M. Ferreira & Celso Castro. Estudos his tór icos: Espor te elazer . Rio de Janeiro. Fundação Getúl io Vargas. vol 13, n .23. p .175-191p.Segundo Lei te Lopes, os clubes i ta l ianos, durante o regime de Mussol in i , queestava se preparando para sediar a Copa de 1934, foram incent ivados afor ta lecerem suas equipes de futebol e por isso passaram a contratar jogadoressul-americanos de or igem i ta l iana, no Brasi l , Argent ina e Uruguai.
204
atribui que a profissionalização do futebol brasileiro teria sido impulsionada
pela circulação internacional de jogadores no início dos anos 30, devido às
primeiras copas do mundo.
Quadro 01 – Ano de implantação do regime profissional em algunspaíses
PaísesEuropeus
DataOficial
PaísesSul-americanos
DataOficial
Inglaterra 1885 Argentina 1931Escócia 1893 Uruguai 1932Áustria 1924 Brasil 1933Hungria 1924Tchescoslovaquia 1925França 1932Itália 191 1898
Fonte: Formado a partir da obra de Murray, Bill. (2000) Uma história de futebol. São Paulo. Hedra.
No Brasil, bem como em outros países vizinhos, ainda não existia
uma lei ou algum mecanismo que determinasse o compromisso de vínculo
do jogador com os clubes. De fato, sob o regime amador, o controle do
vínculo não fazia sentido. Desta forma, alguns jogadores sentiram-se
tentados pelas propostas dos europeus em se tornarem profissionais, pois
receberiam um salário mais vantajoso e poderiam livrar-se dos
moralizadores do esporte nacional. Tal situação teria ocasionado o
desfalque dos principais clubes brasileiros na época, pois parte dos seus
jogadores de destaque percebeu que a transferência para o futebol europeu
ou sul-americano era a solução para suas realizações pessoais.192 É bem
191 - S i te of ic ial da FIGC – Federazione I tal iana Giuoco Cálcio. www.f igc. i t
192 - Fausto e Jaguaré do Vasco da Gama foram para o Barcelona da Espanha;Ministr inho, Demóstenes e Fernando do Fluminense foram para a I tá l ia ; Para a
205
verdade que o regime amador se encontrava fragilizado, pois, como já dito,
muitos jogadores viviam do futebol e escondiam-se na fachada do
amadorismo, conforme afirmou Corrêa (1933):
“O meio futebolístico estava, positivamente corrompido. Fazeresporte disinteressadamente, era um mito. O futebol foi invadidopelo profissionalismo, mas por um profissionalismo canalha,usurpador, trapaceiro, ladrão, que só dava dinheiro aos dirigentese explorava os jogadores com gorgetas.” (p.26-27) 193
Aquino (2002) aponta que, somente em 1931, cerca de 30
jogadores foram para clubes italianos. Comparado ao êxodo da atualidade,
este número parece insignificante, se pensarmos em termos absolutos, mas
gerou tensões e incômodos entre os dirigentes nacionais e a imprensa. O
incômodo talvez se desse ao fato de tais jogadores pertencerem aos clubes
de elite ou interessarem a esses mesmos clubes, já que este número
naquele período era irrisório, se pensarmos que na década de 10 já havia
um número superior a duzentos clubes (Pereira, 2000).
Observa-se que, na atualidade, temos um discurso da mídia e dos
Argent ina foram: Tuf i , Vanim, Ramon, Teixeira e Petroni lho e para o Uruguai,Congo, Magno Mart ins (Caldas, 1990) .
193 - Corrêa apresenta dois episódios ocorr idos no Rio de Janeiro nas pr imeirasdécadas do século XX, denunciando a fal ta de compromisso dos amadores:(1) “No Rio, um domingo, o centro médio de um clube da zona nor te , só porquenão recebeu 200$000 que havia pedido à tesourar ia , abandonou o campo na horaprecisa de enfrentar o adversár io, o Andaraí , pulando o muro do clube, e vest idocom a camisa do seu quadro foi cavar um jogo suburbano.”(2) “Os casos de Esquerdinha e Surica chegaram as raias do semvergonhismo noCarioca F. C. , da es trada D. Castor ina, principalmente quando esses e lementosforam com outros companheiros mandados a Niterói , para passear ,proposi tadamente, no dia do jogo, que o clube encarnado e branco devia ter com oVasco da Gama para disputa da vaga na 1º d ivisão da Metro . O dire i tor PauloCannogeas, que hoje se diz um dos ‘puros amadoris tas’ esteve envolvido nasujeira , onde o quadro car ioca fo i subornado pelo dinheiro do Vasco da Gama.”(p.25)
206
dirigentes esportivos que se assemelha à tensão gerada pela migração dos
jogadores naquela época. O Brasil é considerado, “e cantado com orgulho e
prosa”, como um grande celeiro de jogadores, onde a matéria-prima parece
perene, jorrando de cada canto. A imprensa freqüentemente exalta essa
capacidade brasileira. Entretanto, os clubes nacionais não conseguem firmar
contratos que sejam capazes de manter os grandes jogadores, que acabam
sendo contratados pelos principais centros de futebol do mundo, muitas
vezes até mesmo países sem tradições, considerados periféricos no cenário
do futebol mundial. Todavia, o discurso parece ignorar que o fator
econômico força essa rápida transferência dos jovens jogadores que
despontam periodicamente.194
Apesar de os dirigentes e parte dos jornalistas defenderem a
manutenção do amadorismo naquela época, por que lamentarem as saídas
destes supostos profissionais? Não seria esta uma boa saída para manter a
“pureza” do espírito amador? A ida desses jogadores para outros países
deveria ser um alívio, uma vez que não precisariam mais promover por aqui
194 - A Revis ta Lance A+ apresentou uma repor tagem acerca de um jovem jogadorAlexandre Si lva de Souza (Dudu Cearense) , de 20 anos, que se desponta comouma promessa do futebol brasi le iro. Após uma exibição elogiável pela crônicaespor t iva brasi le ira e in ternacional , devido ao seu desempenho no mundial Sub-20e Pré-Olímpico 2004, fo i contratado pela equipe japonesa Kashiwa Reysol . Atransferência para o Japão dif icul tar ia a sua observação pela comissão técnicabrasi le ira , podendo deixar de se lembrado nas convocações. Esta possibi l idade deesquecimento pela Comissão técnica brasi le ira levou o jornal is ta BernardoFerreira, responsável pela matér ia , a quest ioná- lo sobre este fato, onde coloca queo jogador ter ia af irmado que dinheiro está acima da Seleção . Vejamos como foiconstruída a questão:Bernardo Ferreira perguntou- lhe:A sua vida f inanceira es tá acima da Seleção?Respondeu Dudu:- Posso dizer que s im. Minha vida f inanceira vai melhorar .(Revis ta Lance+, 14 a 20 de fevereiro de 2004, Ano 4, nº 181. (12-15p) (gr i fosnossos)
207
a ‘caça às bruxas’, já que os próprios jogadores que se interessavam pelo
profissionalismo abandonavam os clubes. Todavia, os dirigentes e jornalistas
ficaram inquietos.
Observa-se que, apesar de seguirem o modelo inglês no campo
esportivo, naquele momento, os dirigentes brasileiros não queriam seguir os
mesmos passos já implantados por lá, desde 1885, quando o futebol inglês
passou a conviver com ligas amadoras e profissionais. Os dirigentes
brasileiros defendiam a unidade em torno do amadorismo.
A saída de jogadores em busca de salários e/ou prestígio
internacional poderia representar uma morte simbólica da constituição do
esporte brasileiro. O jogador se vendia para os clubes europeus e latinos,
todavia, ainda não havia os controles internacionais que hoje legalizam as
transações, assegurando direitos e deveres das partes. A idéia da defesa
dos interesses nacionais mesmo no campo esportivo parecia estar presente
entre os argumentos de defesa do amadorismo.
Naquele período, os nossos vizinhos, argentinos e uruguaios,
também perderam vários de seus jogadores, devido a esta mesma
conjuntura, todavia, antes do Brasil, implantaram o regime profissional na
modalidade, amenizando o êxodo dos principais jogadores, inclusive abrindo
espaço para vários brasileiros que assinaram vantajosos contratos com
clubes uruguaios e argentinos (Aquino, 2002). Os jornais de época
anunciavam várias propostas de contratos dos jogadores brasileiros pelos
clubes argentinos e uruguaios, como, por exemplo, noticiou o Jornal dos
Sports “Dentro de dez dias Domingos partirá para ingressar no
208
profissionalismo uruguaio” (Jornal dos Sports, 10 de jan/1933, p.1). As
vitórias conquistadas sobre os países vizinhos ampliaram o interesse deles
pelos jogadores brasileiros. Observemos que o ponto central parece ser o
orgulho do Estado nacional. A rivalidade entre o Brasil e os países vizinhos
já está sedimentada no futebol desde os anos de 1910 e 1920 com os
campeonatos sul-americanos. Portanto, perder os ídolos poderia não ser o
fato mais agravante, mas tê-los nos campos rivais provavelmente gerava um
conflito interno de comprometimento aos ideais patrióticos, o qual o esporte
estava ajudando a solidificar.
Nos anos iniciais da década de 30, o Brasil passava por intensas
transformações políticas. Neste período, o presidente Washington Luís foi
destituído e o país passou a ser comandado pelos militares, sendo instituído
o governo provisório de Getúlio Vargas, iniciando um período denominado
de segunda República (Freire, 1971).195
Foi neste período de turbulência nacional que se travaram as
principais tensões entre os pro-profissionalistas e os que queriam manter o
perfil amador no esporte.
No programa apresentado pelo presidente Getúlio Vargas
(Programa de Reconstrução Nacional), foram implantadas as novas
diretrizes para o desenvolvimento do país, onde, segundo Caldas (1990)196,
195 - Freire, Gilber to (1971). Novo mundo nos trópicos . São Paulo: Cia EditoraNacional .
196 - Calda (1990), na par te VI o seu l ivro, faz um passeio pela his tór ia pol í t icadeste período, onde relaciona o envolvimento do poder pol í t ico ao fu tebol.
209
o futebol passaria a se beneficiar, devido à instauração do Ministério do
Trabalho, que viria a impulsionar o profissionalismo no futebol brasileiro.
É oportuno destacar que, as forças que se opunham, no tocante ao
amadorismo e profissionalismo, naquele período estavam representadas nos
principais jornais da época, 197 como veremos a seguir nas próximas seções,
as tensões e as batalhas travadas na imprensa entre os defensores do
profissionalismo e aqueles que o julgavam uma perdição para rumo
esportivo brasileiro.
9.1 - Argumentos favoráveis e contrários ao profissionalismo até suainstauração
O Jornal do Brasil foi um dos mais aguerridos combatentes ao
regime profissional, principalmente durante os anos em que a tensão pela
mudança de regime adquiria força. Como arma, diariamente apresentava
uma coluna denominada ‘A praga do profissionalismo no football carioca’, a
qual, diante da eminente possibilidade de implantação do regime
profissional, durante o mês de janeiro, intensificou sua ação em combate ao
que chamou de praga.
197 - Um dos mais concei tuados defensores fo i o jornal is ta Mario Fi lho, queut i l izou o prest íg io do seu jornal e passou a mil i tar a favor da causa doprof iss ional ismo. Ver : Soares , Antonio Jorge. & Mourão, Ludmila . (1999). MárioFilho: Romancis ta , Jornal is ta e Inventor de Tradições no Esporte . In : Tavares ,Otávio & DaCosta , Lamart ine P. (Orgs.) . Estudos Olímpicos. Rio de Janeiro.Edi tora Gama Fi lho.
210
O Jornal do Brasil 198 havia acusado de arbitrária a determinação
dos dirigentes que pretendiam romper com os demais clubes e propunham
uma nova entidade, colocando ainda várias dúvidas sobre o rumo desta
nova liga. Vejamos o tom de agressividade no discurso do articulista acerca
do regulamento da ligas de profissionais que foi divulgado:
“Deve ter sido enorme a decepção dos poucos adeptos dessaterrível praga com que se ameaça o football carioca.
Quando se mostrara de modo claro e insophismavel aimpossibilidade prática da implantação do profissionalismo, ospoucos arautos dessa calamidade vinham a público affirmar queo caso era líquido e certo, porque a comissão dos três199 estavaultimando a regulamentação e por ella se veria com a suaadopção que nenhuma dúvida poderia suscitar, como se fossepossível arranjar-se dinheiro como simples regulamentos.
Pois bem, surgiu o tal estatuto e todos ficaram na mesma. Nãose sabe quanto vae ganhar o profissional mensalmente, quaesas gorgetas por jogo ou semanas, se há seguro contraaccidentes de jogo, se há contrato e por quanto tempo e quaes oscaus que sobre elles vão pesar, etc, etc.
O “malandro”, o “sabido” e os “casquinhas”, quando chegaremao fim de tal regulamento perguntarão logo onde está o dinheiro?
É de facto que estatuto não quer dizer dinheiro, mas tratar delle,e foi proclamado aos quatro ventos que tudo ficaria esclarecidoquando elle fosse conhecido.
Ora, nada mais escuro do que o regulamento que acaba de serpublicado. Nota-se apenas o mesmo espírito odioso de immoralmonopólio, ainda mais accentuado que o existente da AMEA,mas quanto a possibilidade materiais ficasse na mais completaignorância.
Felizmente para o Sport carioca essa calamidade não passaráda tentativa.” (p.17) (grifos nossos)
Observa-se que neste recorte acima aparecem evidências que
caracterizam a similaridade narrativa em relação as três teses desenvolvidas
198 - Jornal do Brasi l , 13 de jan/1933.
199 - Ary Franco, Antonio Avellar e Arnaldo Guinle
211
por Hirschman (1992): ameaça, futilidade e perversidade. Vejamos que o
articulista combatente ao regime profissionalista colocava que era explícita a
ameaça que a novo regime traria ao futebol carioca. Também o classificou
de terrível praga, e que todos ficaram na mesma (perversidade e futilidade).
Os grifos que fizemos no texto do articulista demonstram, em alguma
medida, como esta retórica tentava desarticular e colocar desconfiança
sobre a mudança. Segundo Hirschman esta estratégia retórica tornou-se
comum como manobra política dos conservadores em combate as idéias e
movimentos progressistas que surgiam em algumas sociedades.
Vejamos que, no final da matéria, o articulista afirmou que,
felizmente, o projeto não passaria de uma tentativa, acusando-o de imoral.
Esta argumentação se assemelha à tese da futilidade desenvolvida por
Hirschman.
No dia 14 de janeiro de 1993, o Jornal do Brasil trouxe em letras
destacadas a seguinte manchete: “A ridícula impressão que o regulamento
da liga de profissionaes causou em São Paulo”. Nesta matéria, apresentou
os argumentos do Sr. Paulo Várzea publicados na Revista Olympia do dia
anterior, quando acusava os três dirigentes (Ary Franco, Antonio Avellar e
Arnaldo Guinle) de terem cometido um grande equívoco.
“Li o tal projecto! Um bisonho ensaio, cheio de alejões, sobre oespírito do verdadeiro profissionalismo. Foi o parto não de umamontanha, mas de três montanhas, para no fim os três colossosexpelirem um monstrengo dessa natureza que mal se apresenta,logo revela asneira grossa e abundante ignorância de parte deseus elaboradores.
(...)
212
Enfim, esses erros podem ser sanados e devem ser sanados edevem ser perdoados, uma vez que reconheço ser das melhoresa intenção dos três autores do aleijadinho...” (p.16) 200
Observemos que a opinião do dirigente paulista auxiliava a cruzada
do jornal contra este regime que deveria ser combatido, utilizando também o
argumento da futilidade, similiares ao que argumentou Hirschman (1992) em
suas teses.
Os defensores do profissionalismo contra-argumentavam as críticas
afirmando que o objetivo da implantação do regime profissional era a
moralização, a legitimidade da atitude que todos admitiam às escondidas – a
remuneração dos jogadores, a qual parecia uma contravenção vergonhosa
(O Globo, 15 de janeiro/1933).
Entretanto, os argumentos dos combatentes inflamavam-se cada
vez mais, creditando a falta de dinheiro como fator responsável pelo
fracasso da tentativa de implantação do profissionalismo, conforme
argumentava o Jornal do Brasil:
“Os poucos arautos do profissionalismo, essa triste idea quetodo o bom sportman deve combater, como uma falta deargumentação lamentável levam a propalar que a implantaçãodessa praga e seu successo não soffrem a menor dúvida, com apublicação do projeto de tal Liga Carioca com se a solução desseabastardamento do sport dependesse apenas de leis e deregulamentos.
Foi propalado aos quatro ventos que a commissão estavaestudando os estatutos das ligas ingleza, italiana, hungara,argentina, hespanhola, uruguaia etc., para fazer um trabalhomonumental que não pudesse deixar dúvidas no espírito deninguém. De uma feita foi noticiado que o sistema preferido seriahúngaro. Agora dizem que é um mixto [sic] anglo-italiano, etc.
200 - Jornal do Brasi l , 14 de jan/1933.
213
Nada disso vem ao caso, por que o regulamento podia ser dafirma existente na Conchiachina, na Senegambia ou naGroelândia, se é que o football existe nessas regiões, o resultadoaqui no Rio seria o mesmo: fracasso.
Profissionalismo quer dizer dinheiro e é exatamente isso quefalta em nosso meio sportivo.
Só um visionário, um teimoso, um papalvo ou alguém ávido degorgetas, será capaz de dizer com convicção que uma liga deprofissionaes, mesmo com o immoral e indecoroso propósito domonopólio por parte dos clubs “fundadores” da Amea, será capazde dar algum lucro monetário.
Dizer-se como alguns dizem que a adoção do profissionalismoficou definitivamente resolvida só porque foram publicados oscelebres estatutos e pretender zombar da credulidade alheia.
(...)Os partidários dessa praga, para causar algum effeito entre os
que ainda não conhecem bem o assumpto, levam a espalhar quetodos os clubs ou a quasi totalidade estão a favor doprofissionalismo, quando a verdade é muito outra, uma vez que aquase totalidade é fracamente contrária a esse malefício. Dizer ocontrário é querer illudir-se e illudir o próximo.
Repetimos hoje o que escrevemos há dias: sobre prova, emcontrário, continuamos a affirmar que apenas o Fluminense e oAmérica poderão apoiar essa calamidade.” (p.17) 201
Observemos como o jornal tentava desarticular as mudanças,
acusando de ingênuos e tolos os que acreditassem no sucesso financeiro
que pretendiam os pró-profissinalistas. O jornal acusava ainda os clubes e
seus seguidores de tentarem fundamentar verdades não existentes. Para o
articulista não era verídico que quase todos os clubes estivessem a favor do
profissionalismo. Observemos, ainda, como o principal argumento recaia
sobre a condição financeira. Vejamos nessa narrativa acima do articulista do
Jornal do Brasil, como as teses descritas por Hirschman (1992) sustentam
os argumentos dos anti-profissionalistas. A idéia da calamidade colocava em
dúvidas os benefícios da mudança.
214
Aqueles que defendiam a oficialização do profissionalismo
apontavam e articulavam suas argumentações sobre o “falso amadorismo”
como atitude mais grave e mais perversa que a legalização, uma vez que
ninguém oficialmente ganhava nada, porém os mais famosos e requisitados
jogadores conseguiam uma série de regalias por intermédio do clube. Vimos
no Capítulo VII os argumentos do jogador Russinho acerca do pagamento
dos jogadores, que era camuflado em forma de auxílio-transporte, que
ocorria desde há muito tempo, conforme noticiou o jornal O Globo na época.
Observa-se que estavam em confronto também os principais jornais
naquele momento. O Globo e o Jornal dos Sports defendiam a adoção do
regime profissional, acreditando que somente com este novo regime seria
capaz de moralizar o esporte carioca, enquanto o Jornal do Brasil, Jornal do
Commércio e o Correio da Manhã se opunham, combatendo-o diariamente,
acreditando que o profissionalismo disvirtualizaria o espírito amador que
deveria ser respeitado. Este embate entre os jornais foi bastante intenso
neste período. Parece-nos estar em jogo o poder e a tentativa destes jornais
em se estabelecerem frente ao perfil esportivo da capital federal, bem como
o prestígio frente aos leitores.
Já se sabia de antemão que o Botafogo, o Flamengo e o São
Cristóvão se rebelariam contra o novo regime. Todavia, a posição do Vasco
ainda era cercada de mistério, da mesma forma que ocorrera no período da
implantação da AMEA, em 1924, quando o clube se posicionava de ambos
os lados. Pelas narrativas, parece que neste novo embate teria ocorrido o
201 - Jornal do Brasi l , 17 de jan/1933.
215
mesmo. A posição dos dirigentes vascaínos não estava clara, o que permitia
aos jornais utilizarem diferentes especulações sobre o posicionamento clube
português no conflito. Por exemplo, no dia 19 de janeiro, o Jornal o Brasil
relatou, em uma matéria denominada ‘O combate a praga do
profissionalismo’, que uma reunião teria ocorrido na sede do Botafogo, cujo
objetivo era o acerto das bases de uma ação conjunta contra a implantação
do profissionalismo. O jornal noticiara que o Vasco era um destes
participantes:
“Essa reunião transcorreu na maior cordialidade e harmonia devista, chegando todos os presentes a convicção de serimpraticável o profissionalismo no Rio de Janeiro.Nessa conformidade o Vasco, o Flamengo, o Botafogo e o SãoChristovão não apoiaram a creação de qualquer liga deprofissionais.” (p.16) 202
Os articulistas do Jornal do Brasil divulgaram, ainda, que as diretorias
do Botafogo e do Flamengo repudiavam e condenavam a implantação do
profissionalismo. Vejamos os argumentos acerca da determinação do
Flamengo:
“Confirmado o que temos noticiado sobre a attitude do Club deRegatas do Flamengo contrário a implantação do profissionalismono football carioca, podemos adeantar que a directoria do gloriosorubro-negro, em reunião extraordinária convocada especialmentepara tratar desse caso, resolveu, por unanimidade repellir oprofissionalismo, contrário as suas tradições e aos seus fins e sedesinteressar por completo da fundação de qualquer entidadepara a mercantilisação do popular sport.
Ficam, assim, terminadas de uma vez as expirações que vinhamsendo feitas em torno da possibilidade do campeão da terra e mar
202 - Jornal do Brasi l , 19 de jan/1933.
216
collaborar na triste idea do profissionalismo.” (p.16) 203 (grifosnossos)
Quanto ao Botafogo, o jornal divulgou uma notificação oficial
assinada pelo secretário geral Roberto Lyra, quando afirmou que o
compromisso do clube era fundamentado nas tradições esportivas:
“A directoria do Botafogo F. C., em reunião realizada no dia 17 docorrente, depois de examinar o projecto de implantação doprofissionalismo, no Distrito Federal, deliberou, por unanimidadede votos, manifetar-se irreductivelmente contrária áquellainiciativa, por julgal-a inconveniente aos interesses e as tradiçõesdo club e do sport carioca.” (p.16) 204
Todavia, as narrativas daquele período evidenciavam que não
somente no Vasco, mas em outros clubes, havia debates acerca da adesão
ao novo regime que estava para ser implantado. Mesmo no Flamengo, onde
os conselheiros reprovaram a mudança de regime, alguns dirigentes se
posicionavam favoravelmente ao profissionalismo, conforme podemos
perceber na carta de renúncia do Presidente do clube rubro-negro, que ficou
inconformado e ressentido pelo fato de o Flamengo não aderir ao novo
modelo, conforme noticiou o Jornal do Brasil, na reportagem intitulada “A
renúncia dos irmãos Segreto”:
“Cordeaes saudações.Em virtudes da situação embaraçosa creada pela vossa últimadecisão contra o profissionalismo honesto e a favor do
203 - Jornal do Brasi l , 19 de jan/1933.
204 - Jornal do Brasi l , 19 de jan/1933.
217
amadorismo duvidoso, a actuação aos rumos que desde há muitovem norteando os meus esforços em prol da grandeza eprosperidade do Club de Regatas do Flamengo, para cujapresidência fui elevado há muito pouco tempo, sinto-me nadolorosa contingência de, em vossas mãos, depor o honrosoencargo, renunciando irrevogavelmente á elle. Acreditae que sintoprofundamente o imperativo dessa minha attitude, principalmentequando me vejo, enhibido de chegar a conclusão da obra em prolde que, há três annos, vimos envidando os melhores esforçoscom estima e apreço de VV.” - Pachoal Segreto Sobrinho. ( p.16)205
O Sr. Luiz Segreto também entregou seu cargo de Diretor Social,
apoiando a atitude do irmão, pois também acreditava na necessidade do
regime profissional rejeitado oficialmente por seu clube. (Diário de Notícias,
21 de jan/1933, p.7)
O debate prossegue, tendo o descontentamento dos clubes que
pretendiam se manter firmes nos seus princípios amadores. Todavia, sob
quais princípios estariam lamentando estes dirigentes? As evidências
caracterizavam que os clubes, apesar de não admitirem o profissionalismo,
não se opunham determinantemente em remunerar os jogadores, desde que
indiretamente, sem compromisso formal, isto é, ‘às escondidas’. Parece que
os incomodava apenas o fato de conceber o título de trabalhador ao
‘funcionários da bola’. O esporte deveria manter o status de virtudes para os
praticantes. Admití-los como profissionais estaria possibilitando a
fragmentação dos valores morais que acreditavam ser a base de
sustentação do esportista e dos associados do clube.
205 - Jornal do Brasi l , 24 de jan/1933.
218
9.2 - A instauração do profissionalismo
Apesar da oposição de alguns clubes cariocas que pretendiam
manter o status amador, a transformação foi sedimentada. Me smo com uma
forte resistência da principal associação esportiva do Distrito Federal na
época, a AMEA, conforme noticiaram os jornais da época, foi criada a Liga
Carioca de Football (LCF), objetivando a consolidação do profissionalismo
no futebol carioca, que resultaria na concretização deste fato em todo o
Brasil.
O Jornal dos Sports trouxe de forma comemorativa em destaque, na
sua primeira página, a notícia: “Implantado, finalmente, o profissionalismo
honesto” (Jornal dos Sports, 24 de jan/1933, p.1).
O Jornal do Brasil destaca em sua primeira página, do dia 23 de
janeiro, a oficialização da nova profissão, com a manchete “Uma nova
profissão: jogador de futebol”. Na reportagem, reforçava a idéia do ‘amor à
camisa’, que parecia já se encontrar corrompida pelo dinheiro:
“Jogar futebol é oficialmente uma profissão. Não que antes osjogadores se esforçassem apenas por amor à camisa. Os clubesdo Rio decidiram somente oficializar uma prática usual: pagar aosatletas para jogar e recompensá-los de acordo com os resultados.A medida criou um novo racha no futebol carioca, que terá doistorneios: uma para os profissionais, com América, Bangu,Fluminense e Vasco, e outro para os amadores, no qual jogarãoBotafogo, Flamengo e São Cristóvão.” (p.16)206 (Grifos nossos)
206 - Jornal do Brasi l , 23 de jan/1933.
219
Vejamos que esta narrativa do amor à camisa ainda permanece nos
discursos e narrativas jornalísticas atuais. Em 1933, queixava-se da falta de
compromisso dos jogadores, retórica que já se sustentava na falta de amor.
Na reportagem, o jornal apontou sua lamentação quanto aos acontecimentos
no futebol carioca, ao declarar que os clubes apenas estavam oficializando o
que já era um fato corriqueiro.
Figura 04 – Jornal do Fluminense Football Club, 29 de jan/1933 – Anúncio dafundação do profissionalismo no futebol metropolitano
220
Nos clubes, a liderança do grupo interessado na legalização
profissional foi encampada pelos dirigentes do Fluminense, tendo como
principal opositor o Botafogo, que tentou até o último instante vetar a
oficialização. Como a AMEA se posicionou favorável aos clubes contrários à
implantação do regime profissional, os três clubes interessados na
profissionalização (Fluminense, América e Bangu) 207 tiveram que criar uma
nova entidade, denominada de Liga Carioca de Football (LCF)208 (Aquino,
2002). A co-irmã paulista da AMEA, a Associação Paulista de Esportes
Atléticos (APEA), aderiu ao grupo da LCF, o que consolidou o movimento
pró-profissionalismo nos dois Estados. Caldas (1990) coloca que o
profissionalismo poderia ter ocorrido antes de 1933, mas isso só não
aconteceu porque, em São Paulo, o Clube Paulistano e a Liga de Amadores
de Futebol (LAF) mostraram-se resistentes. Sem o apoio dos paulistas, o
movimento não teve a força necessária para impulsionar a mudança.
Entretanto, apesar da instauração do regime profissional, havia
ainda um problema a ser resolvido, o reconhecimento da CBD, órgão do
207 - Segundo Aquino (2002), es tes três clubes foram os fundadores e ,poster iormente, contaram com a adesão do Bonsucesso Futebol Clube. Entretanto,repor tando aos jornais da época, encontramos informações contrar iando asaf irmativas de Aquino. Aquino, Rubim Santos Leão de (2002) em Futebol - umapaixão nacional . Rio de Janeiro. Zahar Ed.O jornal do Fluminense Footbal l Club do dia 29 de jan/1933, nº 68, Ano I Iesclarece que A Liga Carioca de Footbal l foi fundada pelos clubes Fluminense,América Bangu e Vasco, enquanto o São Cris tóvão ser ia contrár io aoprof iss ional ismo, juntamente com Botafogo e Flamengo.
208 - Fundada em 23 de janeiro de 1923, na sede do Fluminense Football Club ,tendo a presença dos seguintes clubes: Fluminense, América, Vasco, Bangu, SãoCris tóvão, Flamengo e Botafogo. (Jornal do Commercio , 24 de jan/1932) .
221
governo que gerenciava o esporte nacional. Devido à pressão exercida pela
AMEA para o não reconhecimento da nova entidade, os dirigentes da LCF e
da APEA fundaram a Federação Brasileira de Futebol (FBF).
Antes, porém, de o Fluminense se tornar defensor do
profissionalismo, mantinha uma estreita relação com os princípios do
amadorismo fundamentados nos valores que correspondiam ao interesse
dos seus associados. Lembremos que, devido à vitória do Vasco no
Campeonato Estadual de 1923, o Fluminense resolveu, juntamente com
outros clubes, fundar a AMEA, em discordância ao perfil dos jogadores
vascaínos e à atitude do clube em remunerá-los. Observemos que tal
situação teria ocorrido em 1923. Portanto, 10 anos após, os mesmos
dirigentes estavam dispostos a modificar a feição do esporte carioca, em que
a remuneração deveria ser transparente.
Também é oportuno relembrar que, em 1913, havia indícios de que
o Fluminense, o baluarte do esporte amador carioca no início do século, teria
admitido em seu quadro um jogador de origem inglesa, Henry Welfare. Tal
jogador veio para o Rio de Janeiro contratado como professor do Gymnásio
Anglo-Brasileiro. A historiografia põe em dúvida o amadorismo deste jogador
do Fluminense, pois o clube era acusado de remunerá-lo clandestinamente
pelos seus feitos esportivos (Hamilton, 2001). Oficialmente nada ficara
comprovado, mas pairavam suspeitas sobre a condição de vínculo de
Welfere com o clube, pois o mesmo era cercado de regalias, inclusive com
moradia e refeições diárias oferecidas pelo clube (p.168)209. Naquele
209 - Em sua revis ta, o Fluminense pres tava uma homenagem ao ex- jogador HarryWelfare, que ter ia s ido quest ionado quanto à sua condição esport iva no per íodo
222
momento, o Fluminense contestou a acusação que lhe era imposta sobre a
condição do seu ex-atleta.
Hamilton (2001) relata, ainda, que também o Flamengo, um dos
últimos a admitir o profissionalismo, teria contratado um treinador
profissional em março de 1911, o inglês Charlie Willians, “numa descarada
contravenção às regras do futebol amador da liga carioca, Willians passou a
receber um salário de 18 libras por mês e todas as despesas pagas” (p.119).
As interrogativas parecem pertinentes: quais as bases de
sustentação dos princípios amadores destes dois clubes que anos depois
teriam reagido às condições de recrutamento de jogadores adotado pelo
Vasco? Seria a origem inglesa de Henry Welfare e Charlie Willians mais
compatível com a feição dos demais associados? Entretanto, quais
conseqüências teriam levado a busca do profissionalismo no futebol
brasileiro por alguns dirigentes? Em quais modelos se pensava este
profissionalismo? Alguns jornais da época surgem como suporte para se
entender o processo de justificativa e discórdia na implantação do
profissionalismo brasileiro.
em que chegou ao Rio e se in tegrou à equipe de futebol do c lube. Em 1915, a LigaMetropoli tana ter ia fe i to vár ias s indicâncias , com o objet ivo de saber se orefer ido at le ta era de fato um amador. Entre of íc ios e dúvidas, o Fluminensealegara na época que só acei tou o jogador depois de decididamente provada a suaqual idade de amador: “Como era natura, o grande club das 3 côres jámais deu ouvidos a esses boatosporque não devia se envolver em questões de ta l jaez e mesmo porque o accusadorinfame não tem convicção do que aff irma, nunca aparece. Agora que Welfare é defacto um profiss ional , agora que o amador de outr ’ora se fez ‘entraineur’ doVasco, apresentaremos aos nossos le i tores algumas provas, segundo as quaespodemos e temos o d ire i to de af irmar de voz bem al ta e de cabeça erguida: “Sob abandeira do Fluminense Harry Welfare foi sempre um amador .” (Tr icolor -Revis ta Sport iva do Fluminense Foot-Ball Club . 1928. nº 07, fev . p .06) .
223
O Jornal do Commércio, do dia 24 de janeiro de 1933, relata a
tensão na reunião que instituiu o regime profissional para os jogadores.
Arnaldo Guinle, o articulador das idéias, ao perceber a inquietude de alguns
fundadores da AMEA no início da reunião, resolveu submeter à assembléia
uma ‘questão de ordem’, que objetivava esclarecer o ponto de vista dos
representantes dos clubes sobre as propostas recebidas anteriormente,
evitando uma reunião prolongada, sem que houvesse o interesse de todos.
Os representantes do Botafogo (Dr. Paulo Azevedo) e do Flamengo (Dr.
Oliveira Santos) colocaram-se contrários à proposta, alegando que os
respectivos conselhos deliberativos dos clubes não concordavam com a
adoção do novo regime.
Diante das argumentações dos representantes do Botafogo e do
Flamengo, o representante do América, Dr. António Gomes de Avelar,
solicitou um esclarecimento dos opositores. Gostaria que colocassem aos
demais membros quais aspectos da proposta não interessavam aos seus
clubes, se o projeto era da forma que fora redigido ou se era
especificamente a implantação do profissionalismo. O representante do
Flamengo afirmou ser o profissionalismo em si. A mesma opinião foi também
confirmada pelo representante do Botafogo.
Apesar deste desconforto, o Sr. Guinle colocou a proposta em
votação, que foi aprovada por 4 votos (América, Bangu, Fluminense e
Vasco), contra 3 votos da oposição (Botafogo, Flamengo e São Cristóvão).
Entretanto, apesar da vitória nos números, a situação inibia o avanço do
processo dentro da AMEA, uma vez que a votação teria sido insuficiente em
224
relação ao estabelecido em sua regimentação, exigindo um “quorum”, 210
que não foi atingido.
Nesta mesma reunião, após a retirada voluntária dos dissidentes
contrários às mudanças na estrutura esportiva da associação, os
idealizadores do novo regime permaneceram reunidos quando optaram por
fundar uma nova entidade, que pudesse conduzir o processo de transição
entre o regime atual e o que era pretendido. Acreditavam os reformulares
que não seria mais possível manter o amadorismo com os desgastes que
vinham ocorrendo. Portanto, mediante tal argumento, em 23 de janeiro, foi
criada a Liga Carioca de Football. Naquele momento, o presidente propôs
que a Assembléia continuasse em sessão permanente até que fossem
cumpridas as formalidades e todas as leis para a implantação da nova liga.
A idéia de se constituir uma nova entidade, pelas narrativas, parece
que já havia sido articulada mesmo antes desta reunião, em que se
apontaram as dissidências. Os dirigentes interessados na profissionalização
pretendiam o apoio da AMEA, mas já estavam cientes de que, devido aos
fatos ocorridos naqueles dias anteriores, seria difícil conseguir os apoios
necessários. Já havia um desgaste do presidente da AMEA, que afirmava
publicamente ser contrário ao novo regime; portanto, seu apoio não seria
possível. O objetivo era criar a liga de profissionais dentro da AMEA, o que
acabou não obtendo sucesso.
210 - O “quorum” estabelecido pela AMEA para as resoluções era de cinco votosdos sete possíveis . (Jornal Imparcial , 25 de jan/1923, p .11)
225
9.3 - Argumentos após a instauração do regime profissional
Uma vez implantado o novo regime, coube aos inconformados
tentar desestruturar o profissionalismo, bem como promover acusações aos
responsáveis pela mudança. Vejamos que, novamente as teses apontadas
por Hirschman (1992) aparecem como eloqüências dos dirigentes e
articulistas que se posicionavam contrários ao regime que acabara ser
implantado, o profissionalismo.
No dia 24 de janeiro de 1933, o articulista do Jornal do Brasil
acusou o Vasco de ter sido o responsável pela vitória dos dirigentes que
queriam o regime profissional. Colocou que, se não fosse a mudança de
lado do Vasco, dificilmente o regime seria aprovado e implantado (p.16). É
interessante observar o prestígio do Vasco. O clube que teria
hipoteticamente provocado o encerramento da METRO,211 acusado de
descaracterizar o modelo esportivo carioca dentro da AMEA, mais uma vez
apareceu como responsável pela nova mudança – a implantação da nova
liga. Relembremos os discursos travados entre os dirigentes da AMEA e do
clube Vasco da Gama nos meados dos anos 20, quando acusavam o clube
português de financiar a entrada de jogadores populares e sem status
naquela associação.
Segundo o Jornal do Brasil, o novo regime não se sustentaria.
Tratava-se de uma tentativa mal planejada e sem ratificação necessária para
211 - A METRO – Liga Metropol i tana de Esportes Athéticos, fundada em 1917, fo iencerrada no ano de 1924 (Caldas, 1990).
226
conseguir se estabelecer. Era um blefe de alguns dirigentes insatisfeitos.
Nota-se neste argumento a estratégia de desqualificação da mudança, mais
um indício da futilidade na narrativa.
No dia 25 de janeiro de 1933, o Jornal do Brasil acusa os
dirigentes da LCF de estarem promovendo a discórdia entre os clubes que
se posicionavam na defesa do regime amador:
“O assumpto de todas as palestras nos meios sportivos é aimplantação da praga do profissionalismo no football cariocapor intermédio dos 4 clubs que, trahindo as suas finalidadessportivas, querem á viva força, abastardar o popularíssimofootball, transformando-o em balcão de negócios.
(...)Os agentes dos mercatilisadores do popular sport procuram
agora lançar a discórdia no seio dos clubs contrários a sua açãomaléfica, espalhando notícias mentirosas, adulterando factos eattribuindo declarações inverídicas a pessoas de destaque e ajogadores do clubs visados.” (p.17) (grifos nossos)
Observa-se claramente a retórica agressiva que o articulista
desenvolvia.
O Jornal do Brasil212 divulgou no dia 28 que os clubes: Flamengo,
Botafogo, São Cristóvão e Vasco teriam enviado uma carta ao Presidente do
Fluminense, demonstrando estarem contrários ao profissionalismo. Esta
carta, no entanto, não foi publicada pelo jornal. Todavia, pareceu-nos
contraditório que esta carta pudesse ser assinada pelo Vasco, pelo fato de
ter sido este clube um dos responsáveis pela nova Liga. Se realmente
assinou tal documento, não conseguimos encontrar evidências. A dúvida,
neste caso, era entender quais seriam os propósitos do Vasco?
212 - p .18
227
O Jornal do Brasil colocou que os moralizadores já tentavam fazer
economia frente ao trabalho dos “artistas”. Para o articulista, os dirigentes da
LCF estavam criando este mecanismo, com o objetivo de diminuir os
salários dos jogadores, e começavam por suprimir os reservas. A
denominação de artistas assumia um tom pejorativo, colocando-os como
boêmios (Jornal do Brasil, 28 de jan/1933, p.17).
Na reportagem “o amadorismo há de triunphar sobre os mercadores
do sport”, do dia 31 de janeiro do Jornal do Brasil, o articulista coloca que os
clubes encontrariam dificuldades para cumprirem seus encargos, pois os
clubes em comum acordo resolveram determinar que 600$000 seria o valor
pago a cada jogador (p.17). Observemos que os clubes tentavam limitar um
teto para os salários dos jogadores. A partir deste momento, a oposição ao
profissionalismo passou a se sustentar pelas dificuldades financeiras
decorrente do novo regime. Nesta direção, o articulista analisou o clube
Bangu. Vejamos a maneira apelativa e agressiva nas referências usadas
pelo jornal para se referir ao jogador:
“Como o Bamgu, um clube pobre conseguirá saldar as dividasdemandadas pela inclusão na liga?
1º - Seguro dos malandros; 2º - Assistência médica; 3ºAssistência hospitalar; 4º - Despesas de pharmacia; 5º - Despesasde conducção; 6º - Salários dos juízes; 7º - Salários dostreinadores; 8º - Propaganda dos espetáculos; 9º- Cota da liga;10º - Matérias sportivos; 11º – Despesas de bar; e 12º - Impostoda prefeitura.
Não sabemos o quanto montarão esses gastos, mas como sãoimportantes, devem attingir a uma quantia elevada, não seráexagerada orçar-se a despesa total em 150:000$000. Quem nãopaga o que deve, como poderá sustentar essa despesa?
228
16 x 600$000 = 9:600$000 mensaes, equivalente a 115:200$000annuaes sem luvas nem gratificações extras. (11 titulares e 5reservas). Como poderá o Bamgu pagar?” (grifos nossos) (p.17)213
No dia 01 de fevereiro de 1933, os clubes pertencentes à AMEA
reforçaram o apoio ao presidente Sr. Rivadavia Correa Meyer, que se
posicionava como um dos mais determinantes combatentes da
‘mercantilização do esporte’, como denominavam o profissionalismo. Foi
votada em assembléia geral da entidade uma moção de solidariedade ao
dirigente. O Jornal do Brasil noticiou que este documento teria sido assinado
pelos clubes fundadores (Botafogo, Flamengo e São Cristóvão), além dos
clubes Brasil, Carioca, Andarahy, Bomsuccesso e Olaria, “e pela totalidade
ou quase totalidade dos clubs que constituem a 2ª divisão. Foi uma bela
lição e que alto fala do verdadeiro sentir da entidade carioca, contra a
mercantilização do sport.” (Jornal do Brasil, 01 de fev/1933, p.17).
Observemos como o jornal buscava construir o apoio dos clubes
aos dirigentes da AMEA. Interessante como o jornal se deixa deslizar pela
narrativa ambígua, ao dizer totalidade ou quase totalidade. Parecia estar em
jogo o prestígio da AMEA e, como defensor desta instituição, o jornal se
encarregou de interferir a favor da entidade.
O jornal tentava desmentir o que fora noticiado em São Paulo
quanto ao sucesso do profissionalismo no Rio de Janeiro. Argumentou que
eram palavras destinadas a criar uma boa aceitação e minimizar as crises
que ocorreriam. Para o articulista carioca, em São Paulo, a única
213 - Jornal do Brasi l , 31 de jan/1933.
229
preocupação era o receio de perder jogadores para os clubes profissionais
cariocas:
“Apesar de todas as notícias espalhadas aqui no Rio de que SãoPaulo recebeu com enthusiasmo a implantação doprofissionalismo no Fluminense, no Vasco, no América e oBamgu. Todos os clubs de São Paulo são contra oprofissionalismo e só o adoptarão como medida capaz de impediro êxodo de seus jogadores para aqui.
Como no Rio, os clubs de São Paulo estão em situaçãofinanceira bem crítica e não podem supportar os pesado ônusdo profissionalismo.
Fora disso, só palavras bombásticas e nada mais. Não há oprincipal que é o dinheiro...” (p.17) (grifos nossos)214
Para o articulista, o profissionalismo em São Paulo teria sido uma
estratégia contra o êxodo dos seus principais jogadores. Nota-se que o
articulista acreditava que se a profissionalização fosse implantada corria-se
o risco de perder alguns jogadores. Isto é, a profissionalização já estava
provocando um efeito perverso, que seria a saída de alguns jogadores em
busca de melhores salários. Finalizando sua argumentação continuou
sustentando que a profissionalização era uma futilidade que não teria
condição de avançar sem dinheiro.
No dia 2 de fevereiro, o Jornal do Brasil continua acusando os
dirigentes da LCF de plantarem notícias falsas em outros jornais, para
ludibriar a opinião pública e promover discórdia entre os associados dos
clubes que ainda não haviam aderido ou simpatizado ao profissionalismo.
Acusam ainda os dirigentes de divulgarem propagandas telegráficas e
214 - Jornal do Brasi l , 1 de fev/1933.
230
jornalísticas falsas sobre a boa aceitação do profissionalismo em São Paulo.
Afirmou também que isso tudo foi um recurso utilizado para tentar mascarar
o fracasso que os esperava:
“(...)Já antevendo o fracasso que os espera, os mercadores do
football mandam os seus agentes espalhar as mais optimistasnotícias a respeito da “estrondosa victoria”, procurando fomentar adiscórdia entre os associados dos clubs mais visados pela suacobiça.
São Paulo é outro ponto importante e agora o principal alvo dosnegociantes.
Para o Rio são mandadas notícias formidáveis que sãorepartidas todos os dias mas que não se confirmam e para lá sãotambém transmittidas notícias visivelmente tendenciosas.
Apesar de tudo quanto se diz a verdade é que os clubs de SãoPaulo só entrarão no “brinquedo” se a cousa pegar aqui no Riode modo perfeito e acabado, o que não acontecerá”.
Há mezes que os interessados vivem a dizer que o Palestra, oSão Paulo, o Corinthians, o Santos, etc., são pelo profissionalismoe vão abraçal-o e nada disso se confirmou. Propagandatelefráphica e jornalística e... nada mais.
Deante do ruidoso fracasso que os aguarda, os paulista sãomais cautelosos.” (p.17)215 (grifos nossos)
Observe que o articulista utilizava um argumento da futilidade,
dizendo que já poderia antever o fracasso que os esperava.
Apoiando o empenho dos clubes que optaram por manter o regime
amador, o Jornal do Brasil divulgou uma nota oficial emitida pelo Botafogo,
que negava o profissionalismo e se colocava compromissado com os ideais
amadores, conforme reproduziu:
“O Botafogo F. C., em nome de todos os seus amadores defootball, tennis, basketball, Volleyball e athetismo, dispeza as
215 - Jornal do Brasi l , 02 de fev/1933.
231
insinuações do “sem trabalhos” do sport, já de certo desapontadoscom o desinteresse público com ou mesquinhez dos salários, comas exigências inherentes á precária condição do profissional.
Ahi está o primeiro resultado da innovação. Por interessepecuniário, offende-se a honra pessoal de grandes nomes dofootball nacional.
(...)O Botafogo F. C. se mantém na enabalavel disposição de
praticar e diffundir o amadorismo, de accordo com o compromissode sua fundação e a vontade expressa no seu corpo social.” (p.17)216
Observemos que o jornal se aliava aos dirigentes botafoguenses na
empreitadas contra o regime profissional. Travavam juntos o combate,
invocando a honra de algumas personalidades do futebol nacional.
No dia 04 de fevereiro, o Jornal do Brasil trouxe uma manchete
lamentando: “Pobre Bamgu!”. Nesta reportagem, colocou os pontos
negativos da inclusão da equipe suburbana na nova liga, quando utilizou as
declarações de um dos diretores do clube para argumentar contra sua
aceitação do novo regime:
“Quando affirmamos, mais de uma vez, nesta columnas, queserá impossível ao sympathico club suburbano, supportar asdespezas com o profissionalismo, não exageramos, masdissemos uma verdade incontestável.
O Bamgu não tem capacidade financeira, como muitíssimosoutros não têm, para fazer parte da Empreza Esploradora deMalandros Remunerados.
Quem affirma é um próprio director do club. O Sr. AmandioMartins como se vê do incluso tópico da entrevista dada aonossos prezados collegas de “A Noite”.
Agradecemos ao conhecido sportman, as suas declarações eprocuramos ouvir algo sobre a situação financeira do clubsuburbano. O Sr. Amandio Martins, mostrou-nos, então, o relatórioda thesouraria, que traz todas as despezas do club no anno findo.
216 - Jornal do Brasi l , 02 de fev/1993.
232
As mensalidades sociaes que attingiram em 1931 a 19:055$000desabaram para 14:470$000. Em resumo, o Bamgu não foi felizfinanceiramente no anno passado. As contas a pagar importamem 24:045$528.
Será preciso melhor argumento contra o profissionalismo noBamgu do que esse relatório?Quem dispõe de menos de 60:000$ annuaes e deve 24:000$ decontas, como poderá contratar “artistas” a 600$ mensaes, ou seja,o total de 115:200$000 annues?
E as outras despezas?Respondam os sábios da escrupturas...” (p.18) 217 (grifos
nossos)
Vejamos que o Jornal do Brasil combatia os opositores,
apropriando-se de expressões agressivas. Poderíamos pensar se tais
expressões utilizadas seriam apropriadas a quem lutava pelos princípios
éticos do amadorismo, aquele que defendia o esporte como meio de
valorização dos princípios morais e da formação do caráter do homem. Para
o articulista, a capacidade financeira do Bangu não o permitiria integrar a
“Empresa Exploradora de Malandros Remunerados”. Essas suas revoltas
parecem nos mostrar o nível dos embates e da tensão estabelecida na
sociedade esportiva carioca. A diplomacia parece ter perdido o espaço, uma
vez que os argumentos eram as armas nesta guerra de interesse entre as
duas correntes, onde os princípios do cavalheirismo perderam força. É
importante observar que o esporte não era representado como trabalho.
Essa imagem dificultava vê-lo como um negócio ou meio de
sobrevivência.218
217 - Jornal do Brasi l , 4 de fev/1933.
218 - Essa imagem não era só do esporte , como também de outras a t iv idadescul turais .
233
Na sua empreitada em desmoralização aos dirigentes que fundaram
a LCF, o Jornal do Brasil passou a atacar os regulamentos propostos pela
nova entidade. Colocou-se surpreso com a exclusão do artigo que permitia a
substituição dos jogadores no decorrer das partidas. Para o articulista, isto
refletia em uma medida de ordem financeira, pois, evitando a substituição o
elenco da equipe, poderia ser reduzido o custo de manutenção da equipe.
“Já se tornou público que a Liga dos Profissonaes não permittirásubstituições de jogadores como a Amea faz e como outrasinstituições estão adoptando.
Poderá parecer a primeira vista que essa medida seja de ordemtechnica, baseada na opinião dos que entendem que os jogadoresnão devem ser substituídos porque a regra foi feita assim e dessamaneira deve permanecer inalterada. Mas a verdade é muitooutra. Não se trata de razão technica e sim de ordem econômica.
Não havendo substituições o elenco não precisará seraugmentado. Os artistas substitutos podem ser em número maisreduzido e conseqüentemente menor o prejuízo que já estãolobrigando apesar de todas as declarações em contrário.” (p.18)219
O Jornal do Brasil alertou aos jogadores interessados em se
profissionalizarem para não caírem na armadilha do contrato de trabalho.
Acreditava o articulista que a forma de recrutamento dos clubes deixava
dúvidas quanto ao compromisso do clube com o jogador:
“Os amadores devem estar alertas contra a acção dos agentesdos “moralizadores”, afim de não cahirem em logro e perderem asua qualidade de amador.
Fomos sabedores de que um agente que figura como 1º tenordo “elenco” com que o Fluminense F. C. pretende-se habilitar aosespetáculos de foot-ball anda a cata de “artistas” com promessasfalazes. Para esse fim as “figuras” preferidas devem assegurar
219 - Jornal do Brasi l , 7 de fev/1933.
234
um papelacho qualquer, a guisa de antecontrato, no qual secompromettem tornar-se “profissionaes” do F. F. C. e sem saberquanto vae ganhar de accordo com leis e regulamentos que serãoopportunamente adoptados pela Liga Carioca de Football.
Como se vê isso é uma espécie de armadilha em que o menosesperto pode cahir e depois amargar bastante.” (p18) 220 (grifosnossos)
Nota-se, novamente que o argumenta da ameaça é utilizado para
alertar aos jogadores que poderiam perder a condição de amador se
aderissem ao regime profissional. Também utiliza a retórica da futilidade ao
dizer que os contratos seriam promessas falazes.
O Jornal do Brasil acusou ainda os presidentes dos clubes
(América, Fluminense e Vasco) de não terem idoneidade financeira pra
servirem de garantia ao empréstimo que o Sr. Arnaldo Guinle disponibilizou
para a LCF. Afirmava o jornal que as enormes dúvidas destes clubes eram
públicas e notórias e não eram devidamente quitadas. Desta forma,
acreditava o articulista que, por este motivo, esses ficariam impossibilitados
de garantir a legalidade da nova empresa:
“É publico e notório que esses clubs têm enormes dívidas enão pagam o que devem. Como falar em garantias aos outros?Não estamos affirmando uma inverdade, pois a imprensa temtratado do assumpto.
Quem deve e não paga não pode servir de fiador. Agora mesmo,o Sr Arnaldo Guinle, uma das grandes fortunas do Rio, com odireito que ninguém lhe pode contestar, deu ou emprestou aquantia de 200:000$000 para sustentar o capricho da fundação daLiga e isso porque os clubs fundadores dessa emprezaexploradora do foot-ball não dispunham de dinheiro para ainstallação.” (p.19)221 (grifos nossos)
220 - Jornal do Brasi l , 8 de fev/1993.
221 - Jornal do Brasi l , 9 de fev/1933.
235
Na matéria denominada “A causa sã do amadorismo há de
triumphar sobre a praga do profissionalismo” do dia 15 de fevereiro, o Jornal
do Brasil retornou a discutir acerca do valor que o Sr. Arnaldo Guinle teria
disponibilizado para o gerenciamento da nova liga. Segundo a articulista,
ventilava-se nas rodas sociais que o Sr. Arnaldo Guinle havia doado os
200:000$000 à LCF e os clubes se beneficiariam dos mesmos direitos nesta
nova instituição. Todavia, o articulista voltou a questionar sobre a condição
de igualdade entre os fundadores:
“Chegou hontem ao nosso conhecimento a história dos200:000$000 dado a Liga Carioca de Profissionaes. O caso é bemdifferente do que se faz propalar pelos interessados. Não houvedádiva alguma, mas sim empréstimo.
Os endossantes para os saques sobre essa quantia são osClubs Fluminense, Vasco da Gama, e América, sendo que oBamgu foi julgado como não tendo capacidade financeira, tantoassim que a sua quota para a installação da Empreza tem agarantia de seus companheiros de aventura.
Em tudo isso há uma coisa deveras interessante. É facto que oBamgu de grande só tem o nome, pois é pobre e bem pequenoquanto ao seu quadro social, o que, aliás, não o desdoura, mastambém a dar-se credito á entrevista do seu thesoureiro,concedida aos nossos collegas de “A Noite” apenas tem dívidasno total de 24:000$000 com a sua recita anula de 58:000$000.Financeiramente falando o Bamgu está muito superior aos seusfiadores. Estes estão em peores condições, uma vez que épúblico e notório o alto valor de suas dívidas em títulos jávendidos e não pagos.
Mas a isso responderão logo os agentes do profissionalismo: avictoria é certa: o triumpho é formidável; vem ahi o scratchpaulista, logo a seguir os teams de Congo e da Groelândia e vaechover dinheiro. Aguardemos a chuva.” (p.19) 222 (grifos nossos)
222 - Jornal do Brasi l , 15 de fev/1933.
236
Observemos como o articulista desenvolve seus argumentos com o
intuito de ironizar o regime profissional. Uma argumentação que se
assemelha ao que Hirschman (1992) denominou de tese da futilidade. Trata-
se de um contraponto daqueles que se posicionam contrários a
implementação de uma nova medida social. Uma argumentação que
demonstra que tudo não passará de uma frivolidade.
Figura 05 – O profissionalismo no início de sua fase de realização - Jornal doFluminense Football Club, 12 de fev/1933
237
Dando prosseguimento à sua ofensiva contra o profissionalismo, o
Jornal do Brasil entrevistou o Sr. Amador Bianco, dirigente do Sport Club
Brasil, considerado pelo jornal um dos baluartes do verdadeiro amadorismo.
Logicamente que, diante das perspectivas apontadas pelo jornal, o
entrevistado também colocou sua revolta contra o novo regime, lamentando
a sua implantação:
“Sou radicalmente contrário ao systema que se pretendeimplantar, disse-nos o conhecido player. Não comprehendomesmo como cavalheiros de responsabilidade e alguns comserviços prestados ao sport, possam abastardal-o a ponto detranformarem em transacção.
Lamento que se pretenda implantar aqui o profissionalismo. Nãoacredito que elle vingue em nosso meio, ainda muito pobrepara supportar os pesados ônus que elle acarreta. Amercatilisação do sport não pode ser um bem como propalam osinteressados na adopção de tal medida.
O profissional de football será um homem honesto e não ficarádeshonrado em receber as suas propinas e salários, mas narealidade nunca passará de um indivíduo socialmente inferior.O profissional, queiram ou não queiram, há de ser sempre umsubalterno dos associados do seu club, um indivíduo a quemmuitas vezes será atirada a cara, com razão ou sem ella, a pagade sua habilidade.
(...)Com o advento do profissionalismo cahirá bastante o nível
moral e social do nosso football.” (p.18) 223 (grifos nossos)
Vejamos como o discurso do ethos amador aflorou em seus
argumentos. Um discurso de ordem moral, em que o trabalhador na sua
percepção teria uma colocação inferior nas rodas sociais, tendo o seu nível
moral abalado. O articulista do jornal continuava a apregoar em tom
223 - Jornal do Brasi l , 18 de fev/1933.
238
agressivo e de insulto, atiçado pela entrevista do dirigente Amador Bianco.
Afirmava o articulista que não havia motivos para os profissionalistas
comemorarem: ‘não há motivos para foguetório que soltaram os arautos da
malandragem remunerada” (p.18) (Grifos nossos). Parecia estar em
questão a desconfiança sobre o jogador que admitisse o profissionalismo. O
profissional seria sempre subalterno, logo, poderia ser pressionado pela
necessidade. Entretanto, pareceu que ao Sr. Bianco causava incômodo a
possibilidade de queda do nível social do clube, ao admitir estes novos
integrantes. Observemos como em sua fala surge o argumento da futilidade:
“Não acredito que elle vingue em nosso meio, ainda muito pobre para
supportar os pesados ônus que elle acarreta.”
A briga entre os jornais passa a ser travada de forma pública. O
Jornal do Sport afirmou que os quatro clubes profissionalistas
representavam a força máxima do futebol carioca e, sem a presença destes
clubes, a AMEA desapareceria, pois a renda sem estes seria um fracasso
(Jornal dos Sports, 18 de fev/1933, p.7).
O Jornal do Brasil apresentou argumentos contradizendo as
afirmativas realizadas pelo Jornal dos Sports, colocando que:
“Os nossos prezados collegas do ‘J dos S’, querendo noscontraditar ainda contribuíram com os algarismos que publicarampara demonstrar que a razão está do nosso lado. Dizem elles queos clubs que ficaram na A.M.E.A., produziram entre si apenas193:000$000, o que é verdade, mas como não é menos verdadeque os outros quatro somente renderam cento e quinze contos,segue-se que aquelles que elles dizem nada valer, produzirammais do que os outros cerca de 80:000$000. Dahi não há comofugir.
O nosso intuito é claro e insophismavel. Os quatro clubs isoladosnão representam a força máxima do football carioca como
239
assoalham, e a sua ausência da A.M.E.A., por si só não ébastante para destruil-a, como foi totalmente affirmado por um dospróceres do profissionalismo.” (p.17) 224
A pressão dos clubes dentro da AMEA tornou-se insuportável.
Apesar de terem fundado a LCF, os clubes profissionalistas continuavam
vinculados à antiga instituição. Participavam das reuniões e tentavam vencer
os bloqueios impostos pelos clubes da AMEA. Esta situação tornou-se
complicada, em conseqüência das discórdias entre as principais diretrizes da
associação. Os clubes fundadores da LCF votavam em bloco, gerando um
racha entre os dois segmentos, os contrários e os favoráveis à
profissionalização. Tal situação impossibilitava a aprovação dos assuntos
votados, pois eram necessários os votos da maioria absoluta dos clubes
fundadores, conforme estabelecia o regimento. Diante de tais situações, os
clubes leais à AMEA, em reunião extra, propuseram modificações no
estatuto que viabilizassem suas determinações (Jornal do Sport, 22 de
fev/1933, p.13)
No dia 24 de fevereiro, o Jornal do Brasil argumentou que a LCF
tinha como finalidade destruir a AMEA e, por isso, os clubes que
pertencessem a esta Liga deveriam abandonar a AMEA, desfiliando-se. Sob
o título ‘Os profissionalista em desespero de causa, estão lançando mão de
todos os recursos’, o jornal acusa os quatro clubes de não abrirem mão dos
seus direitos na AMEA.
224 - Jornal do Brasi l , 20 de fev/1933.
240
“Os clubs que se transformaram em negociantes do footballatiram-se furiosamente contra aquelles que honrando as tradiçõesgloriosas do sport carioca, as nobres finalidades para que sefundaram, reuniram-se para defender o pavilhão da Amea, queneste momento encarna a causa sã do amadorismo, amparadapor todos quanto repellem, altivamente fazer do football um balcãode negócios.
Fundando uma Liga de Profissionaes para combater e matar aAmea, os quatro clubs que se transformaram em commerciantesdo sport, depois de arrotarem grande força, de fazer ameaças detoda a sorte, em vez de se retirarem da instituição a que sepropõem destruir, estão pleiteando essa cousa indecorosa que épermanecer na própria Amea para matal-a mais depressa,gritando por um direito que não mais lhes assiste pela sua acçãocontrária as leis fundamentaes e os sagrados interesses dessaAssociação.
(...)Se a Amea não lhe serve mais, porque não se vão embora?
Porque querem ficar agarrados como ostras a casco de navios?Haverá alguém de boa fé que seja capaz de dizer que é digno,que é decente, que é esportivo o que os profissionalistas queremfazer da Amea?” (p.17) 225 (Grifos nossos)
Em reunião no dia 24 de fevereiro de 1933, em Assembléia Geral,
os clubes que permaneciam leais às causas defendidas pela AMEA
resolveram expulsar os clubes América, Bangu, Fluminense e Vasco da
Gama. Tal medida foi aprovada por unanimidade, todavia, o impasse do
desligamento se deu pelo fato de os quatro clubes pertencerem ao conselho
de fundadores. Da mesma forma que não puderam implantar o
profissionalismo, tendo que criar uma nova liga, não poderiam ser expulsos,
já que pertenciam ao conselho e o quorum deveria ser observado.
Entretanto, esta situação não foi observada e o desligamento dos referidos
clubes foi aprovado. Nesta mesma sessão, foi votada uma moção de
225 - Jornal do Brasi l , 24 de fev/1933.
241
aplausos aos jornais Correio da Manhã e Jornal do Brasil, pelo apoio à
causa amadora (Jornal de Sports, 25 de fev/1933, p.7).
Em 18 de março, o Jornal do Brasil divulgou a transcrição de uma
conferência pronunciada pelo Sr. Luiz Vianna, redator esportivo do Jornal
Correio da Manhã, quando este colunista se colocou descrente do sucesso
da liga de profissionais. O título da matéria dizia “Os clubes profissionalistas
já estão baixando os salários dos jogadores.” Segundo Luiz Vianna,
“Ninguém de boa fé pode confiar no êxito dessa iniciativa,porque os homens que a tomaram são precisamente os mesmosque já tendo passado pelos altos postos da administraçãoesportiva, nelles fracassaram, porque com a visão estreita que oscaracterisa, só cuidaram de fazer obra inferior de clubismo epoliticagem nefasta.Como acreditar nessa gente? Como acreditar que a projectadamercantilisação venha resolver o grande problema sportivonacional, sabendo-se – como todos sabem – que essa reformacontraria visceralmente as leis naturaes da evolução e, sabendo-se finalmente, que essa maldicta reforma forca demasiado omecanismo e a entrosagem da organização sportiva brasileira,que tem o ideal como base e como finalidade essencial a culturaphysica na verdadeira accepção do termo?Assim tem sido atravez de muitos annos. O sport no Rio,especialmente, tem sido uma escola sadia de educação, eenvergadura moral, de tenacidade e sim um celleiro dehomens limpos.” (p.16) 226 (grifos nossos)
Observemos que o Sr. Vianna invocava os ideais educativos que
deveriam guiar o esporte. Conclamava as virtudes morais da formação do
homem. Parece ser esta mais uma das imagens produzidas na luta entre os
moralizadores esportivos. É oportuno relembrar que ambos, profissionalistas
e defensores do amadorismo, batalhavam por virtudes morais, onde o que
226 - Jornal do Brasi l , 18 de mar/1933.
242
um apontava como desgraça o outro entendia como solução. O Sr Vianna
parecia não querer admitir que o amadorismo praticando, era o amadorismo
marrom. Observemos ainda o tom romântico com o qual conclui sua fala.
No dia 21 de fevereiro, o Jornal do Brasil ironizou quanto ao valor
dos salários pagos pelos clubes profissionalistas: “Profissionais a 120$000
com direito a café pela manhã!!!”. O jornal questionava ainda: “isso é
profissionalismo?”
“Quando dissemos e repetimos que os clubs que abraçaram oprofissionalismo não tem capacidade financeira para semelhanteempreitada, não nos falta razão.Os chamados grandes estão oneradíssimos e os dous pequenosBangu e Bomsuccesso não tem recursos e o resultado é a cousasofrida que terão de fazer para fingir de profissionalismo.Acabam de assignar contrato com o Bomsuccesso os jogadoresHeitor, Cozinheiro, Carlinhos e Miro pela miséria de 300$000 eVareta pela cousa profundamente ridícula de 120$000 com direitoa café da manhã, sem almoço, nem jantar.Isso chama-se moralizar?!!!Esses profissionalistas são uns pândegos... Ainda há quem osleve a sério.” (p.16) 227
Através dos nossos levantamentos nos jornais, conseguimos
entender o que representava essa ironia do Jornal do Brasil, ao
constatarmos que este valor não permitia uma vida tranqüila a um
trabalhador. Nos jornais, era possível encontrar empregadas domésticas228
que se anunciavam por 130$000 reis mensais. Encontrava-se também nos
227 - Jornal do Brasi l , 22 de fev/1933
228 - Jornal do Brasi l , 23 de mar/1933, p 25.
243
classificados a oferta de quarto mobiliado para aluguel na Rua Marechal
Floriano229 no valor de 150$000 reis por mês. Um apartamento em
Copacabana, na Rua Barata Ribeiro, estava anunciado a 245$000 por mês.
Observemos que a ironia do Jornal do Brasil se dava sobre a dificuldade de
se viver como profissional do futebol, com os miseráveis salários que lhe
eram impostos. Parece óbvio que os salários dos jogadores naquele
momento não eram superiores ao dos demais trabalhadores em funções
subalternas. Todavia, o que interessava aos combatentes do
profissionalismo era descaracterizar a expectativa que havia sido aberta para
melhor condição de vida dos jogadores, diferentemente das possibilidades
oferecidas indiretamente pelo regime amador.
Em uma matéria do dia 06 de abril, o articulista do Jornal do Brasil
destina sua lamentação à CBD, denominando de inqualificável a postura da
confederação diante dos fatos que ocorriam sem intervenção. Acreditava o
articulista que o fato de a CBD permitir os encontros esportivos entre os
profissionais do Rio de Janeiro e de São Paulo estava ferindo seus próprios
regimentos. O jornal cobrava que os dirigentes da confederação tomassem
alguma atitude punitiva:
“A imprensa há dias consecutivos, vem anunciando a realização,domingo próximo, de um jogo entre profissionaes do Rio e de S.Paulo.Isso nada teria de extraordinário se os profissionaes de São Paulonão fossem dos clubs que dominaram illegalmente a AssociaçãoPaulista e adoptaram a mercantilisação do football, contra as leis
229 - Rua local izada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Jornal do Brasi l , 02 deabr /1933, p .35.
244
da própria Associação e o que é mais grave, contra os daConfederação Brasileira de Desportos, que é a máxima entidadeesportiva e essencialmente amadora.É tão publico e notório esse caso que se torna altamentelamentável que a Confederação não tenha tomado uma attitudeenérgica, prohibindo a sua filiada de S. Paulo de praticar desemelhante jogo com uma entidade não confederada.(...)É inqualificável a tristissima attitude dessa autoridade, rasgandoas leis da confederação que são claras e positivas nessa matéria,lançando mão de um recurso hypocrita de consultar o Conselhode Julgamento como se fosse possível haver dúvidas sobredisposições de Leis tão cristalinas.(...)A indignação contra o proceder francamente faccioso dopresidente da Confederação é enorme e na realidade mereceessa repulsa dos verdadeiros sportmen.” (p.16) 230
A pressão dos dirigentes da AMEA e dos jornais combatentes fez
com que a CBD oficializasse uma consulta ao seu Conselho de Julgamento.
Esta atitude de consulta foi criticada pelo articulista, que a julgava
desnecessária, visto que as leis eram claras quanto a tais encontros. Para
ele a CBD estava se esquivando dos confrontos.
Em São Paulo, parece que a chegada do regime profissional
encontrou menor resistência, pelo menos no início, quando foi aceito dentro
da própria instituição que já cuidava do esporte amador, a Associação
Paulista de Esportes Amadores – APEA (Caldas, 1990).231 Todavia, Caldas
230 - Jornal do Brasi l , 6 de abr /1933.
231 - Caldas , Waldenyr . (1990) af irma que, desde 1928, já se fa lava aber tamentesobre o prof iss ional ismo em São Paulo, quando neste mesmo ano surgiu a LigaPaul is ta de Prof iss ionais do Futebol - LPPF, mas que a CBD não reconhecia ecombatia (p .129) .
245
coloca em outro momento da sua obra que, por falta de apoio dos paulistas,
somente em 1933 o futebol assumiu a profissionalização.232
O articulista do Jornal do Brasil mantém firmes suas argumentações
contra o profissionalismo. Vejamos que, no dia 07 de abril, ele ainda
lamentava a mudança no modelo esportivo, acreditando que o novo sistema
administrativo representaria a decadência do nosso esporte:
“O profissionalismo representa a decadência do nosso football, aderrocada criminosa de um idealismo são, destuante de vida,posto em prática, entre nós, com êxito e orgulho, para odesenvolvimento physico da nossa moçada.A sua implantação reflecte, a triste expressão de um declíniosensível no nosso meio desportivo.Trata-se do desvirtuamento inconcebível de uma escola deeducação e civismo, que se quer transformar no maisgrosseiro agrupamento de vadios.Entre o Amadorismo e o profissionalismo vae a distância de umabysmo. Amadorismo tem como base o princípio da cultura raciale cívica, enquanto profissionalismo é arrigimentação de ociosos,inúteis a sociedade, que vivem dos pés, negando-se a si mesmo,capacidade para ganhar a vida com a superioridade natural ecommum dos homens.” (p.18) 233 (Grifos nossos)
Vejamos que o ataque se dá de forma determinante sobre o estilo
de vida que o profissionalismo poderia favorecer. Homens que deixariam o
trabalho formal (ou o trabalho produtor de bens visíveis) para se
232 - Em seus apontamentos f inais , Caldas coloca que “o advento doprof iss ional ismo no futebol brasi le iro poder ia ter ocorr ido um pouco antes de1933. Só não aconteceu porque o Club Athlét ico Paulis tano e a LAF retardaram-noao resis t irem até 1929. Essa cisão em São Paulo impediu o apoio maciço aomovimento prof iss ional is ta que acontecia no Rio de Janeiro”. (p .228)
233 - Jornal do Brasi l , 07 de abr /1933.
246
enquadrarem em uma atividade que, segundo o articulista, deveria ter outros
princípios, embasados na moral e na cultura cívica.
Figura 06 – Porque a AMEA terá que ser desfiliada da CBD - Jornal doFluminense Football Club, 19 de mar/1933
247
No dia 13 de abril, o Jornal do Brasil noticiou com alegria a recusa
da CBD em aceitar a filiação da LCF. Para o jornal, a CBD, ao não aceitar a
filiação da liga de profissionais, deu uma prova de honestidade e respeito
para os verdadeiros esportistas. Para o articulista, a confederação não
poderia compactuar com esses mercenários.
No dia seguinte (14 de abril), o jornal volta a elogiar a CBD, dizendo
que não se esperava outra coisa da instituição que não cumprir os seus
estatutos:
“A Confederação Brasileira de Desportos, negando filiação a LigaCarioca de Profissionaes, cumpriu rigorosamente com o seu deverporque acatou o princípio legal de seus Estatutos que são a sualei, mantendo com altivez, as inflexíveis e honrosas tradições dodesporto nacional.” (p.15) 234
As dúvidas quanto à consolidação do novo regime continuavam, os
combatentes apropriavam-se de todos os detalhes para fundamentarem
suas argumentações de descrédito aos profissionalistas e suas medidas.
Observemos que as palavras ficavam cada vez mais ríspidas, demonstrando
a intolerância diante do regime implantado.
Noticiando o encontro entre as equipes profissionais, o jornal
demonstrou de forma explícita sua ironia na forma como anunciava os jogos.
É obvio que os anúncios do jogo foram pretextos utilizados para o
rechaçamento.
234 - Jornal do Brasi l , 14 de abr /1933.
248
“O Bangu e o Bomsuccesso os dous pequenos clubs que semetteram na aventura do profissionalismo vão ver se conseguemarranjar algum dinheiro, amanhã, no campo do América, fazendoa primeira exhibição dos seus quadros de profissionaes.” (p.18) 235
“O Fluminense está muito esperançado em ganhar dinheiro nessejogo, que tem como – novidade – ser um jogo Rio x São Paulo,muito do agrado dos torcedores quando se trata de rivalidadesportiva entre os dous maiores centros de foot-ball, do paiz.Agora, porém, o resultado nenhuma outra significação tem doque as cifras do lucro, pouco importando qual o vencedor ouo vencido. Num desses jogos de profissionaes, aquella ânsiacuriosa do “quem ganhou?”, é substituída pela pergunta maisprática “Quanto rendeu?” (p.29) 236 (Grifos nossos)
Os embates prosseguiram por mais alguns meses dentro das
instâncias gerenciadoras do esporte nacional. A mídia imprensa era o
termômetro destes embates. Os jornais contrários ao regime profissional
mantinham o tom de denúncia e de desconfiança. Apropriavam-se dos fatos
que gerassem impasses frente à nova entidade para questionar e professar
o retorno ao regime amador. Por outro lado, os favoráveis ao
profissionalismo exaltavam o novo sistema, acreditando na transparência
entre os clubes e seus jogadores, o que favoreceria o resgate da moralidade
no esporte, conduzindo seu crescimento e ampliando o seu prestígio perante
aos torcedores.
235 - Jornal do Brasi l , 12 de abr /1933.
236 - Jornal do Brasi l , 16 de abr /1933.
249
Figura 07 – 1ª Partida entre profissionais do Rio de Janeiro e de São Paulo(Fluminense x Corinthians). Jornal do F.F.C., 23 de abr/1933
Vejamos que os argumentos dos combatentes ao regime
profissional tentavam colocar em desconfiança o êxito da mudança. Esses
combatentes utilizavam argumentos praticamente semelhantes aos que
Hirschman (1992) desenvolveu para explicar a retórica utilizada pelas forças
250
opositoras (conservadores e liberais, reacionários e progressistas) em
relação às transformações sociais: ameaça, efeito perverso e futilidade.
Também pode-se notar uma predisposição a argumentação romântica como
contra-ordem ao abandono do amadorismo.
Segundo Hirschman (1992) é fundamental para o desenvolvimento
social (a estabilidade e o funcionamento adequado) que os indivíduos se
alinhem em alguns poucos grupos importantes, que detenham opiniões
distintas. Isso fortalece a base democrática da sociedade.
Figura 08 – Bangu - 1ª Equipe campeã da Liga de Profissionais no Rio de Janeiro
Durante os primeiros anos, após a implantação do profissionalismo,
os principais clubes tiveram que conviver com equipes profissionais e
amadoras em suas dependências. Os encontros esportivos entre jogadores
amadores já não conseguiam manter o interesse do público como outrora.
251
Mais tarde, os jogos das equipes de amadores passaram acontecer antes
dos jogos das equipes profissionais. Entretanto, poucos torcedores estavam
dispostos a ir aos campos ver apenas as exibições dos amadores; queriam
mesmo é ver a exibição dos principais jogadores dos clubes e, desta forma,
os profissionais despertavam o maior interesse, conforme argumentou o
cronista e historiador Mário Rodrigues Filho:
“O amador, com todo o chiquê, fora relegado para um segundoplano, virara jogador de preliminar, enchendo o tempo que faltavapara começar o jogo principal.
Aos poucos o estádio ia se enchendo.Quanto mais enchia, pior para o amador. O amador correndo em
campo, molhando a camisa, se matando, o torcedor nem prestandoatenção. Queria que aquilo acabasse depressa, logo de uma vez,não respeitando ninguém. Nem mesmo os ídolos de ontem. Outrosjogadores tinham tomado o lugar deles.” (p. 226) 237
As lamentações dos descontentes com o novo regime foram
enfraquecendo com o passar do tempo, principalmente por perceberem que
não havia mais como ignorar o que já estava consolidado desde 23 de
janeiro de 1933. Embora muitos saudosistas mantivessem suas críticas e
desconfiança sobre os jogadores que assumiram sua condição de
profissional (Mazzoni, 1939)238, logo tiveram que se render ao novo regime,
ou então deveriam abandonar o esporte.
237 - Rodr igues Fi lho, Mário. (1964). O Negro no futebol brasi le iro . Rio deJaneiro. Edi tora Civi l ização Brasi le ira .
238 - Mazzoni, Thomas. (1939) . Problemas e aspectos do nosso futebol . São Paulo .A Gazeta.
252
PARTE 3
A LEGISLAÇÃO ESPORTIVA BRASILEIRA:AMADORISMO, PROFISSIONALISMO E O FUTEBOL
“O Sport Club Corinthians Paulista é uma sociedade civil,de fins não econômicos e duração por tempoindeterminado.”“O C. R. do Flamengo é uma sociedade civil sem finslucrativos e de utilidade pública.”“O C. R. Vasco da Gama é uma entidade desportivarecreativa, educacional, assistencial e filantrópica deutilidade pública sem fins lucrativos.”
(Unzelte, 2002, p.864) 239
A massificação do futebol brasileiro seguiu o rastro do processo de
industrialização dos grandes centros urbanos. Da condição de esporte
utilizado e cultivado como passatempo para uma classe em seu momento de
tempo livre, ou momento do não-trabalho, rapidamente passou a despertar
um imenso interesse popular, assumindo a condição de principal elemento
no processo de ludicidade da população, o principal veículo de permanência
de valores sociais no Brasil (Neves, 1979 240; Daolio, 1992 241, Da Matta,
239 - Unzel te , Celso . (2002). O l ivro de ouro do futebol . São Paulo . Ediouro.
240 - Neves, Luiz Fel ipe Baêta . (1979). O paradoxo do coringa e o jogo do poder esaber . Rio de Janeiro. Ed. Achiame Ltda.
241 - Daol io , Jocimar . (1992). A violência no futebol brasi le iro. In : RevistaBrasi le ira de Ciências e Movimento. 6 (1) p .59-62/
253
1995 242), inclusive aliado às festas populares (Meihy, 1982).243 Hoje, além
de permanecer como uma das principais preferências de lazer dos
brasileiros, nas mais distintas classes, assume a condição de produto da
indústria do entretenimento e, conseqüentemente, gera empregos em vários
setores.244
O futebol não tem hoje apenas as mesmas funções que
apresentava no seu surgimento na Inglaterra e na sociedade brasileira.
Desde cedo (as primeiras décadas do século XX), foi se transformando,
devido ao apelo popular, em uma indústria de entretenimento. 245 A elite
desenvolvia a modalidade no Brasil e logo se deu conta de que somente
com os próprios recursos ficaria inviável administrar e manter a infra-
estrutura dos clubes (equipamentos, instalações etc). As contribuições dos
sócios não eram suficientes. Diante desta constatação surge o primeiro
dilema: ao admitir a entrada de recursos via bilheterias, estariam afrouxando
a ética do amadorismo, na medida em que os eventos se tornavam negócio?
242 - Da Matta , Roberto. (1995) . Brasi l : Futebol te tracampeão do mundo In :Pesquisa de campo. Revista do Núcleo de sociologia do Futebol / UERJ. Nº1.Deptº Cultura l /SR 3
243 - Meihy, José Car los Sebe Bom (1992). Para que serve o fu tebol? In : MeihyJosé. C. S. B. & Wit ter , José S. (Orgs) . Futebol e cul tura – Coletânea de estudos.São Paulo . Imesp/Daesp
244 - DaCosta , Lamart ine P. (Org.) Atlas do esporte, educação f ís ica e a t iv idadesf ís icas de saúde e lazer no Brasi l . Rio de Janeiro . Consórcio CONFEF / SESI /SESC / FENABB /ACM / CBC / COB / MESP (No prelo) .
245 - Hoje, as TV’s bancam grande par te dos custos dos pr incipais eventosespor t ivos. Os dire i tos de imagens da Copa do mundo de fu tebol de 2002 (Japão eCoréia do Sul) foram vendidos por US$ 1,04 bi lhão. Os direi tos te levis ivos daCopa do mundo de 2006 na Alemanha foram comercial izados em US$ 1,2 bi lhão.(Folha de São Paulo – Especial Ano 2000, 23 de maio de 1999, p .7)
254
246 Os clubes bem cedo teriam suas arquibancadas, mesmo que somente
nas arenas esportivas, abertas aos interessados que estivessem dispostos a
pagar pelos espetáculos. O dinheiro como critério de acesso já retirava a
imagem da permanência de um ideal de distinção social aristocrático, de
natureza quase estamental, como a historiografia do futebol brasileiro não se
cansa em marcar.
Atualmente, o futebol brasileiro não somente se popularizou, como
também se articulou como abrangente indústria do lazer, da mídia, dos
equipamentos esportivos entre outras, destinadas a diferentes modalidades
de consumo (produtos variados), alavancando negociações milionárias.247
Porém, a impressão que temos é que as leis e as regulamentações ainda
permanecem incipientes diante da complexidade da inserção deste esporte
em nossa sociedade. Ainda hoje, no início do 3º milênio, permanece a
246 - Caldas (1990) argumenta que o surgimento da Associação Paulis ta deEsportes Athlét icos em 1913 teve como propósi to a organização do futebolpaul is ta e também a cobrança de ingresso nos estádios. Tal propósi to também foiobjet ivado pela cr iação em 1908 da Liga Metropoli tana de Spor ts Athlét icos noRio de Janeiro. “As arrecadações, na verdade, v isavam manter autônomo oDepartamento de Futebol de cada clube. Se no in íc io as grat i f icações eram dadaspelos sócios r icos, agora elas ser iam ret iradas das vendas do jogo. Esseprocedimento, como veremos, cr iar ia sér ios problemas ao fu tebol brasi le iro e seusdir igentes” . (p .38) O torcedor que pagava ingressos exigia um futebol de melhorqual idade (p.67) .
247 - A FIFA considera que o número de prat icantes de fu tebol no Brasi l es teja naordem de 7 ,5 milhões . A CBF, no entanto, contabil iza os seguintes números: onzemil jogadores federados, 800 clubes federados e mais de dois mil a t le tas a tuandoem todo o mundo, a lém de cerca de t reze mil t imes amadores par t ic ipando dejogos organizados; tr in ta milhões de prat icantes; e 300 estádios, com mais decinco milhões de lugares . Para a CBF, dos US$ 250 bi lhões anuais que o futebolmovimenta no mundo, est ima-se, que o Brasi l contr ibui com US$ 32 bi lhões.Anualmente são fabr icadas no país 3 ,3 milhões de chute iras para fu tebol decampo; se is milhões de bolas de couro, 32 milhões de camisetas , sem contar asdest inadas aos jogadores profiss ionais . Helal , Ronaldo, Soares , Antonio J . &Salles , José Geraldo do C. (2004) In : Lamart ine P. DaCosta . (Org) . At las doesporte, educação f ís ica e a t iv idades f ís icas de saúde e lazer no Brasi l . Rio deJaneiro. Consórcio CONFEF / SESI / SESC / FENABB /ACM / CBC / COB /MESP (No prelo)
255
tensão entre um modelo de administração amadora do esporte e o modelo
de gestão empresarial, este último está presente nas formulações das
propostas de lei geradas nos últimos dez anos. Talvez a análise de Bourdieu
(1983)248 nos auxilie na reflexão acerca desta tensão. Segundo esse autor, o
esporte tem sua história relativamente autônoma, que mesmo articulada com
os grandes acontecimentos político-econômico “tem seu próprio tempo, suas
leis de evolução, suas próprias crises, em suma, sua cronologia específica.”
(p.113).
Como sabemos, ainda permanece fortemente agregada a alguns
dos principais clubes uma estrutura em forma de “castas”, onde o poder
parece um dote de família, em que os dirigentes permanecem como donos
dos clubes em um modelo patrimonialista de administração. Professor
Manoel Tubino (1991)249, em seu relato no Fórum – Futebol, o desafio dos
anos 90, apontou este fato, quando colocou que “o sistema do futebol
brasileiro é feudal, pré-capitalista, visto que quatro ou cinco pessoas
comandam-no em cada região do país.” (p.7)
Apesar das tentativas, desde o início dos anos 90, ainda não foi
possível implantar mecanismos legais que dêem transparência
administrativa ao futebol. É necessário apontar que essa situação não ocorre
somente no futebol. Outras modalidades enfrentam tensões no processo de
gerenciamento que parecem entravar o seu desenvolvimento. Este processo
248 - Bourdieu, Pierre (1983). Como é possível ser espor t ivo? In : Questões desociologia. Rio de Janeiro. Ed. Marco Zero.
256
tem sido tenso e, conseqüentemente, pouco consensual. Fervorosas
discussões são apresentadas na mídia e em fóruns específicos sobre as
propostas de legislação esportiva.
Os anos 90 também foram marcados pela tensão gerada pelo
questionamento da legitimidade da ‘Lei do Passe’. A quem interessava o fim
da desta lei na estrutura do futebol profissional brasileiro? Quando o embate
se intensificava, as frentes se posicionavam - cada qual buscando seus
argumentos justificativos. A Lei Pelé propunha modificar essa estrutura
administrativa, extinguindo o que alguns chamavam de semi-escravidão,
conforme afirmou o próprio Pelé, na época ministro dos Esportes ao Jornal
Folha de São Paulo em 22 de setembro/1995: “O que ocorre hoje é
escravidão” 250 Antônio Carlos Caruso Ronca, reitor da PUC - SP, também
apresentou seus argumentos contra essa lei:
“Passados 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares,continuamos a acha natural a existência de uma categoriaprofissional que ainda vive sob o regime de semi-escravidão. (...)A Lei do Passe é perversa e ardilosa. Quando atende aosinteresse dos que dela se beneficiam, permite que o jogador sejatratado como um profissional. Quando não, o atleta é o objeto cujodono detém o passe, versão moderno do “dono de almas”. Termoque antigamente designava o senhor de escravos.” (Folha de SãoPaulo, 22 de set/1995, p.2)
249 - Tubino, Manoel J . Gomes. (1991). (Resumo de relatos) In : Fórum Futebol , odesaf io dos anos 90. Por to Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul ,Pró-Reitor ia de Extensão. 28 e 29 de nov/1990. 5-8p.
250 - Jornal Folha de São Paulo. 22 de setembro de 1995. Caderno 4, p . 4 . Essatambém é a opinião do ex-jogador Afonsinho, conforme sua entrevis ta para aRevista Liberdade em 1989. Revista Liberdade, agosto de 1989. O craque escravodo car to la . p .6
257
Retornaremos a Lei Pelé em uma seção à frente, respeitando a
cronologia dos fatos.
Nos capítulos seguintes, parte da estruturação esportiva brasileira e,
especialmente, a que determina a existência do termo amador nos textos-
leis, bem como as discussões originadas a respeito do futebol, será
analisada. Portanto, realizaremos alguns recortes nos textos-leis da
constituição brasileira que sirvam para dar suporte às nossas análises.
Capítulo XDo Estado Novo a Constituição de 1988
Segundo Tubino (2002)251, foi no Estado Novo, sob o pretexto da
necessidade de organização nacional, que surgiu a primeira lei do esporte
brasileiro – o decreto-lei nº 3.191/1941. O governo de Getúlio Vargas, por
intermédio da criação do Conselho Nacional de Desportos (CND), assumiria
a tutela do esporte, o que prevaleceu até 1985.
“(...). E foi justamente no futebol que começaram os grandesconflitos esportivos no Brasil. Esses conflitos levaram mais tardedurante o Estado Novo, à intervenção do Estado no esporte. Aintenção do Estado, embora tenha sido romper com os indícios de‘desordem’ existentes, não deixou de ser o início da
251 - Tubino, Manoel J . (2002). 500 anos de legis lação espor t iva brasi le ira – DoBrasi l-Colônia ao in ício do século XXI . Rio de Janeiro . Shape.Neste momento, temos que ressal tar a importância da obra do Prof . Dr. ManoelJosé Gomes Tubino em nosso encontro com as le is . Esta obra apontou oscaminhos que nos d irecionaram ao foco de nosso in teresse.
258
regulamentação ou normatização do esporte brasileiro.” (Tubino,2002. p.21)
Torna-se importante entendermos como a Lei nº. 3.191/41 se
posicionava frente ao esporte nacional.
O governo de Getúlio Vargas parece ter entendido desde cedo o
grande alcance social do esporte e, provavelmente, por isso percebeu ser
fundamental para o seu programa governamental o controle deste espaço,
pela própria ideologia de controle e organização dessa época. Até então não
se viu uma interferência do Estado no esporte, já que os clubes e as
federações se auto-gerenciavam. As federações estaduais adotavam leis
diferenciadas, atendendo os interesses próprios de seus filiados.
Com a implantação desta lei, o Estado buscou estabelecer três
pontos básicos de controle: 1) a indicação de como deveria ser gerenciada a
prática esportiva; 2) a regulamentação das atividades esportivas; e 3) a
definição do papel do Estado diante das manifestações esportivas.
Observa-se que o Estado centralizador de Getúlio Vargas entendia
que o esporte era uma das faces da identidade nacional, ao mesmo tempo
que representava o espírito de modernidade a ser implantado no Brasil.
Caberia ao esporte, nesta perspectiva, a função de elemento de
fortalecimento das relações entre o povo e o Estado.
Entretanto, a fundamentação desta lei de 1941 trazia possivelmente
marcas dos conflitos ocorridos no futebol no processo de profissionalização.
Tubino (2002) afirma que: “os conflitos ocorriam, geralmente, na área do
futebol, por causa do inicio do profissionalismo.” (p.25)
259
A desorganização do esporte nacional era explícita no início dos
anos 30 do século XX e, neste contexto, segundo Tubino (2002), a
participação do Brasil em eventos internacionais foi acentuada. A lei de
1941, ao criar o CND, instituiu que este órgão deveria dar prosseguimento
ao processo de regulamentação do esporte brasileiro, modernizando-o e
fazendo-o progredir. Portanto, a Lei 3.199/41 passou a determinar todas as
diretrizes de gerenciamento do esporte nacional.
A adoção do futebol como cultura de massa pela população
brasileira passou a ser o parâmetro para a intervenção estatal. Observa-se
no estudo destas leis, embora não apareçam de forma explícita, distinguindo
ou diferenciando nenhuma prática, que os legisladores parecem ter
desenvolvido os textos-leis, tendo o futebol como plano de referência.
Entretanto, somente nas leis mais recentes é que o futebol passa a ser
contemplado com artigos específicos.
A seguir, realizaremos uma análise dos capítulos e artigos destas
leis e das subseqüentes que se relacionam ao amadorismo, profissionalismo
e à especificidade do futebol.
10.1 - Decreto-Lei 3.199 de 1941
260
Este decreto-lei recebeu, durante os 44 anos de sua vigência várias
ementas através de outros decretos-leis. Tubino (2002) analisou estes anos
como um período de tutela do estado sobre o esporte brasileiro.
Realizaremos uma análise dos pontos em que os termos amador e
profissional são colocados no texto-lei.
No capítulo I – Do conselho Nacional de Desporto e dos Conselhos
Regionais de Desportos, no Art. 3º - Compete precipuamente ao CND:
“b) incentivar por todos os meios, o desenvolvimento doamadorismo, como prática de desportos educativa porexcelência, e ao mesmo tempo exercer rigorosa vigilânciasobre o profissionalismo, com o objetivo de mantê-lo dentro deprincípios de estrita moralidade.” (grifos nossos).
Observar-se no artigo 3º, que já se fazia distinção oficial entre
esporte amador e esporte profissional. Observemos que o amadorismo era
visto como educativo. Parece que estamos diante da idéia latente de que o
dinheiro corrói o espírito do esporte, embora o trabalhismo do Governo
Vargas reforçasse positivamente a organização das profissões. O fato de o
futebol e os esportes em geral não serem vistos como qualquer outra
profissão no seio da valorização do trabalho pareceu-nos uma questão
interessante. O texto-lei traz a idéia do valor educativo do esporte em
contraposição à profissionalização esportiva.
Vejamos a idéia de controle no texto-lei ao estabelecer uma rigorosa
vigilância sobre o profissionalismo. Entretanto, sob quais aspectos estariam
voltadas as lentes do controle? Seria sob a possibilidade de ganhos
elevados pelos jogadores e dirigentes?
261
Observemos que o futebol naquele momento já era um esporte de
massa e possuía sua própria organização, embora com freqüentes tensões
entre os organizadores paulistas e cariocas, na tentativa de se estabelecer
como principal responsável pelo gerenciamento da modalidade.252 Todavia,
a formalização do profissionalismo colocava a modalidade em patamar
distinto de outras organizações esportivas naquele período.
No Capítulo III – Das confederações desportivas, no Art. 15º, no
parágrafo único, estabelecia-se que o futebol estaria vinculado à
Confederação Brasileira de Desportos – CBD, juntamente com outras
modalidades que não tinham confederação especializada (tênis, atletismo,
remo, natação, saltos, water-polo, volley-ball, o hand-ball, entre outros).
Portanto, cabia ao CBD o gerenciamento de todas estas práticas no território
nacional, pelo fato de que estas ainda não haviam se organizado
individualmente. Naquele período, outras modalidades já apresentavam suas
próprias confederações e, por isso, a lei lhes facultava o direito e a
competência de suas próprias determinações.253
252 - Um exemplo dessa tensão pode ser constatado na composição da seleçãobrasi leira que fo i ao Uruguai para a 1ª Copa do Mundo. A Confederação Brasi le irade Despor tos – CBD, entidade car ioca, havia se desentendido com a AssociaçãoPaul is ta de Esportes Atlé t icos – APEA. A APEA quer ia incluir um dir igente nacomissão técnica da seleção, mas, a CBD não concordou. Tal s i tuação culminouno fato de alguns dos pr incipais jogadores paul is ta não terem par t ic ipado doevento no Uruguai, enfraquecendo a equipe brasi le ira . Os paulis tas reiv indicavamuma vaga na comissão, pelo fa to de entre os 26 at le tas convocados, 15 serem declubes paul is tas . Saldanha, João (1963) . Os subterrâneos do futebol . Rio deJaneiro. Edições tempo brasi le iro .A ausência mais lamentada foi de Artur Fr iedenreich, considerado o melhorjogador brasi le iro daquele tempo.
253 - Naquele momento, outras cinco confederações foram rela tadas no texto- lei :Confederação Brasi le i ra de Basket-ball ; Confederação Brasi le ira de Pugil ismo;Confederação Brasi le i ra de Vela e Motor; Confederação Brasi le ira de Esgrima; eConfederação Brasi le ira de Xadrez. (Capítu lo II I , Art . 15, da Lei 3 .199, de14/04/1941) .
262
Observemos que o futebol, naquele momento, já tinha sua
importância solidificada no cenário nacional. Entretanto, a APEA e a CBD
continuavam seus embates. Os paulistas reivindicavam equilíbrio de poder
entre as duas entidades. Para a APEA, a força de representação do futebol
brasileiro deveria ser equivalente entre as duas entidades, pois a CBD
sempre privilegiava os cariocas na montagem das comissões que se
relacionavam ao futebol, seja no campo ou no plano administrativo (Caldas,
1990). Estavam em jogo o privilégio e prestígio da representação oficial do
futebol brasileiro junto à FIFA, e os paulistas queriam também este espaço.
Devido à pressão dos dirigentes deste Estados, não coube
alternativa aos legisladores; criaram o CND, que deteve o controle do
futebol, bem como de outras modalidades.254
O controle que a lei estabelecia sobre o esporte nacional fica
evidente na descrição do Art.16º do capítulo III:
“Periodicamente, de três em três anos, contando da data de suainstalação, o Conselho Nacional de Desporto, por iniciativa própriaou mediante proposta da confederação ou da maioria dasfederações interessadas, examinará o quadro das confederaçõesexistentes e julgará da conveniência de propor ao Ministro daEducação e Saúde, quer a criação de uma ou mais confederaçõesnovas, quer a suspensão de qualquer das confederaçõesexistentes.”
Fica explícito o poder de intervenção que a lei confere ao Estado.
254 - Essa tensão foi apresentada na Par te 2 , que trata da prof iss ional ização.
263
Ainda no Art. 16º, no parágrafo 2, estabelecia-se a diferença do
futebol para as outras modalidades, ao relatar que “o futebol constitui o
desporto básico e essencial da CBD”. Nota-se que esta determinação
estabelece uma prioridade oficial para a modalidade, colocando-a em um
patamar de destaque nas políticas esportivas governamentais. Isto indica o
reconhecimento do futebol pelo Estado Novo como um elemento cultural
altamente disseminado e, portanto, de interesse estratégico.
Outro fato de destaque aparece no Art. 32º do capítulo VI, ao admitir
a condição profissional do atleta: “Nas exibições desportivas públicas de
profissionais, nenhum quadro nacional poderá figurar com mais de um
jogador estrangeiro.” Embora não deixasse claro a que modalidade
estivesse se referindo, compreendemos que tal ressalva estivesse
direcionada ao futebol, uma vez que o debate sobre a importação de
jogadores naquele período já se fazia bastante intenso, inclusive com vários
defensores da valorização dos jogadores brasileiros. Um Estado
nacionalista, com as características da época, era, em geral, xenófobo.
Cunha (s/d)255 argumenta que, no início da década de 40, os jogadores
argentinos estavam em alta e alguns clubes brasileiros passaram a requisitar
os argentinos em suas equipes de futebol, como teria ocorrido com o
Fluminense, que contratou, de uma única vez, quatro jogadores.256
255 - Esta obra é uma produção independente , real izada sem vínculos com aprodução acadêmica. Uma obra r ica de p is ta e argumentos para estudos his tór icosno futebol. Cunha, Loris Baena (s /d) . A verdadeira h is tór ia do futebol brasi le iro .Rio de Janeiro. Edi tora Public i tár ia , Comunicação e Market ing Ltda.
256 - O Fluminense contratou Spinell i , Mallazo, Reganeschi e Rongo. O jornal AGazeta de São Paulo, publ icou uma repor tagem denominada "Sinal aberto . . .Jogadores estrangeiros. . .”, assinada pelo seu correspondente car ioca, JoséSi lver ia . A matér ia quest ionava a importação dos jogadores argent inos pelos
264
No capítulo IX – Disposições gerais e transitórias, no Art. 53º,
estabelece-se o dever das entidades desportivas, quando esta apresenta em
seu quadro a prática profissional: “É dever das entidades desportivas, que
abranjam desportos de prática profissional, organizar a superintendência
técnica das atividades amadoras correspondentes e realizar torneios e
campeonatos exclusivamente de amadores.” Observemos que a distinção
entre práticas profissionais e amadoras sinaliza para a diferença
estabelecida pelo Estado; por esta razão, os jogadores não podiam disputar
uma mesma competição. Todavia, o que distinguia este dois princípios não
nos pareceu explícito no texto-lei. Quais os motivos de se proibir a
competição em que amadores e profissionais pudessem estar presentes?
Seria a diferença técnica? Ou pelos objetivos educadores atribuídos ao
amadorismo? Quais as finalidades apresentadas pelo Estado para que fosse
dever das entidades desportivas a realização de torneios e campeonatos
exclusivamente para amadores? Seria um mecanismo de incentivo à
massificação esportiva e à modificação do perfil de homem que o governo
pretendia para a nação? Vejamos que as intervenções seguintes
sinalizavam para a necessidade de abrir espaço ou incentivar outras formas
de vínculo esportivo da população.
c lubes brasi le iros. “Uma vis ta de o lhos pela l is ta das importações nestes úl t imosdez anos, chegaremos faci lmente à conclusão de que recebemos mais “mercadoriases tragadas” do que craques de fu tebol. . . ( . . . ) const i tu i uma dolorosa amostra deque não possuímos mater ial humano, valendo-nos da importação demediocr idades. . .”(A gazeta , 12 de ago/1944. p .2) Mazzoni (1939), tambémassinala es ta indisposição frente a contratação de jogadores estrangeiros para osclubes brasi le iro. Argumenta Mazzoni que o nosso prof iss ional ismo não estava emmesmo patamar econômico que em outros lugares , e , portanto , d if icul tando nossascontratações.
265
10.2 - Lei 6.251 de 08 de outubro de 1975, regulamentada pelo decretonº 80.228 de 25 de agosto de 1977
A revogação do Decreto-lei nº 3.199/1941 ocorreu em 1975, durante
o período do governo militar de Ernesto Geisel, por intermédio da Lei nº
6.251/1975.
Segundo Tubino (2002), no ano de 1971, um minucioso
levantamento da realidade esportiva nacional, coordenado por Lamartine
Pereira da Costa, apontou três conclusões primordiais:
“(1ª) foi possível comprovar um crescimento de importância nosetor Educação Física/Desportos; (2ª) o crescimento ocorreu comdistorções regionais e setoriais; (3ª) os maiores efeitos dadeficiência qualitativa incidiram nos meios educacionais, nacirculação e transmissão de conhecimento técnicos, nosrelacionamentos entre as organizações e na ação governamentalrepresentada pela legislação em vigor.” (p.40)
Tubino argumenta que, devido a essas conclusões, ficou claro que o
esporte brasileiro deveria se modernizar, fato que poderia ser concretizado
com a Lei 6.251 embora ainda com forte ingerência do Estado.
Essa lei, no entanto, não fazia referência ou classificação quanto ao
status dos atletas. Os termos profissional e amador, que outrora eram
tratados como tipos de vínculos, no escopo dessa lei não apresentavam
distinção. Pareceu-nos que esses conceitos não causaram celeuma para os
legisladores.
Esta nova lei, no entanto, passou a estabelecer, no Art. 10º, quatro
conceituações quanto à forma de organização do sistema esportivo nacional,
266
a saber: I - Comunitário; II - Estudantil; III - Militar; e IV - Classista. Esta lei
veio ainda fixar o período de vigência dos mandatos para os cargos de
presidente e vice-presidente das confederações, federações e ligas
desportivas, que não poderão exceder três anos, todavia, permitida a
recondução por mais uma única vez (Art. 19º).
Especificamente sobre o futebol, somente havia alusão no Art. 48º,
quando se referia a um concurso da loteria esportiva, consoante ao
atendimento do preparo e participação das delegações brasileiras nos anos
de Campeonato Mundial de futebol. Observemos que o financiamento por
parte do Estado sobre os eventos esportivos se encontrava respaldado em
leis. Apesar de todas as receitas proporcionadas pelos eventos esportivos
(bilheterias dos campeonatos estaduais, nacionais e internacionais),
patrocínio, porcentagens sobre as transações dos passes dos jogadores etc,
ainda existia um mecanismo de incentivo estatal.
Ainda no mandato do presidente Ernesto Geisel, em 1977, foi
instituído o Decreto nº 80.228, que regulamentou a lei nº 6.251/1975. Este
novo decreto especificava detalhadamente outras questões que se faziam
ausentes na versão de 1975.
No Livro II – Dos Recursos para a Educação Física e os Desportos,
estabeleceu-se a obrigação das associações que mantêm desporto
profissional: “As associações desportivas que mantenham desporto
profissional, ficarão impedidas de receber recursos financeiros federais, se
não praticarem, no mínimo, três desportos olímpicos”. Observemos a
tentativa governamental de impulsionar o desenvolvimento esportivo
267
brasileiro com a possibilidade de os clubes somente terem recursos da
união, se incentivassem a prática de modalidades olímpicas. Provavelmente,
pretendia-se com tal medida a construção de um modelo esportivo do
Estado brasileiro nos moldes de auto-afirmação já presentes em outros
países desenvolvidos. O esporte representa no imaginário social a
capacidade de desenvolvimento da nação.
No Capítulo X – Do Desporto Profissional, constituem-se pela
primeira vez os esportes profissionais no Art. 69º – “É admitida a prática do
profissionalismo no futebol, no pugilismo, no golfe, no automobilismo e no
motociclismo.” Em contrapartida, o Art. 70º veta a prática do profissionalismo
em quatro tópicos:
“I – nas associações desportivas com sede em municípios demenos de cem mil habitantes, ressalvadas as que na data desteregulamento já o pratiquem;II – nas associações desportivas que não integrarem o SistemaDesportivo Nacional;III – no desporto estudantil, militar e classista e;IV – nas categorias infantil e juvenil de qualquer ramo desportivo.”
No tópico I, parece provável que desde aquela época já se percebia
que o esporte ou uma associação esportiva poderia ser um bom caminho
para aumentar a participação política. Entretanto, devido ao excessivo
número de pequenas cidades, sem este veto perder-se-ia o controle. No
tópico II insere-se também sobre o controle necessário, pois o sistema era
centralizado. No tópico III, parece que a proibição ao profissionalismo
justificava-se pelo fato desta possibilidade corromper as atividades de lazer
268
ou educativas, necessárias para manutenção do status social de imagem do
governo.
No Art. 71º, encontramos ainda a condição de vinculação do atleta
profissional: “Observada a legislação trabalhista, a prática do
profissionalismo pelas entidades desportivas será realizada de acordo com
as normas expedidas pelo Conselho Nacional de Desportos.”
Especificamente sobre o futebol, encontramos o Art. 77º, onde se
determinam as relações de trabalho entre os atletas profissionais e as
entidades desportivas, que deveriam ser pautadas em uma lei implantada
um ano antes, a Lei nº 6.354 de 2 de setembro de 1976.257
Em 1978, um novo decreto-lei determinou que a renda de um
concurso da loteria esportiva deveria ser para o custeio do Campeonato
Brasileiro de futebol (Decreto-Lei nº 1.617 de 03 de março de 1978).
Até esse período, conforme estas leis e decretos, havia intervenção
direta do Estado na organização esportiva nacional, todavia, já começava a
florescer uma nova perspectiva, onde o processo de democratização por que
passavam grande parte da estrutura administrativa social brasileira chegaria
também ao esporte, visto que esse já se encontrava em plena expansão e
desenvolvimento, principalmente do futebol. “O País caminhava para uma
reestruturação democrática e, como não poderia deixar de ser, um novo
257 - A lei nº 6 .354 de 2 de setembro de 1976 dispunha sobre as relações detrabalho do at le ta prof iss ional de fu tebol. Em seus 33 ar t igos, essa le i reza osdire i tos e deveres dos a t letas prof iss ionais e seus contratantes. Na real idade essalei buscava adaptar a Lei de Consol idação do trabalho às especif ic idadesnecessár ias ao jogador de fu tebol. O texto revela alguns pontos bastantequest ionáveis .
269
período de reflexões e discussões do esporte brasileiro viria junto com a
desintoxicação autoritária do Brasil.” (Tubino, 2002, p.87)
10.3 – Constituição de 1988
No final da década de 80 do século XX, foi implantada a constituição
de 1988. O novo texto-lei, no tocante ao andamento do esporte nacional,
tentara corrigir distorções interpretativas impostas pelas leis anteriores.
Tubino (2002) denominou esta nova fase da legislação esportiva brasileira
de O período da ruptura e da constitucionalização do esporte brasileiro, que,
segundo o autor, a partir de 1985, devido à chegada da “Nova República”,
teria ocorrido uma ruptura do status quo na ordem jurídica esportiva
nacional.
“Neste período, o Brasil conseguiu eliminar a defasagem com orenovado conceito de esporte, já aceito nos países de graucivilizatório mais adiantado. Os passos que iniciaram amodernização do esporte brasileiro e o desmanche dos nósautoritários foram, sem dúvida, a ação renovadora do ConselhoNacional de Desporto (CND), até então o centro irradiador datutela estatal no esporte, e a Comissão de Reformulação doEsporte Brasileiro, instituída pelo Ministério da Educação (MEC),em 1985.” (p.91)
Todavia, antes da Constituição de 1988, o Decreto nº 91.452, de 19
de julho de 1985, por iniciativa do MEC, instituía uma comissão que seria
270
responsável pela reformulação do esporte nacional. Esta comissão,
presidida pelo Dr. Manoel Tubino, teria impulsionado as renovações do
esporte brasileiro, sendo a base de sustentação para os argumentos
relacionados ao esporte na Constituição de 1988.
O texto constitucional de 1988 apresentava apenas três artigos
destinados ao esporte (Art. 24º)258, (Art. 50º)259 e o (Art. 217º)260. As
informações contidas nestes artigos tratavam-no de forma geral, não
determinando nenhuma especificidade. Todavia, distinguiam práticas
desportivas formais e não-formais261, além de estabelecer um diferenciado
tratamento para o desporto profissional e o não profissional. Melo Filho
(1990)262 argumentou que era louvável a percepção dos constituintes ao
substituir a expressão amador pela expressão não profissional. Para esse
258 - Art . 24º – Compete à União, aos Estados e ao Dis tr i to Federal legis larconcorrente sobre:IX – educação, cul tura, ensino e desporto .
259 - Art . 50 – Inciso XXVIII , le tra “a”“A proteção às par t ic ipações individuais em obras colet ivas e à reprodução daimagem e voz humana, inclusive nas at iv idades despor t ivas”.
260 - Ar t . 217 – É dever do Estado fomentar prát icas despor t ivas formais e não-formais , como direi to de cada um, observados: I I I – O tratamento diferenciado para o desporto prof iss ional e o não-prof iss ional .
261 - Esses termos (formais , não-formais) são de cunho universal na educação,ut i l izados pela UNESCO. A opção por ta is terminologias nos textos- leis se deucomo palavra do jargão técnico tradicional em educação, que pode encampardist in tas explicações. O espor te no mundo in te iro tem grande dif iculdade de seestabelecer uma pol í t ica bem defin ida, o que parece começar pelas concei tuações.Si lva (2004) argumenta que Formal “tem que se calcar ou se modular na formaindicada ou preconizada por le i ( . . . ) Indica tudo que se refere à forma prescr i ta ouindicada.” (p.632) Não Formal , é u t i l izado para assinalar “o que não tem forma ounão esta sujei to a forma.” (p.941) Si lva, De Plácido e . (2004) . Vocabulár ioJur ídico . Rio de Janeiro. Edi tora Forense . Veremos, na Lei Zico, uma def iniçãodos termos para o espor te nacional .
262 - Melo Fi lho, Álvaro . (1990). Desporto na nova const i tu ição. Porto Alegre.Sergio A. Fabris Edi tor .
271
autor, o termo amador era hipócrita e irreal, e que já estava morto e
fossilizado, pois era parte da filosofia idealista do Barão de Coubertin, parte
da história dos Jogos Olímpicos. Melo Filho argumenta ainda, que um dos
grandes equívocos do esporte nacional e que prejudicava, sobretudo, o
futebol era a existência inexplicável e descabida de uma legislação unificada
para o esporte profissional e não profissional. Era necessário tratamento
distinto em função das especificidades de cada esporte.
No ano de 1989, uma lei complementar veio estabelecer as
condições de benefícios ficais, visando favorecer o esporte amador. A Lei nº
7.752 de 14 de abril de 1989 (Lei Mendes Thame) buscava incentivar
pessoa física ou jurídica a destinar parte da sua contribuição do Imposto de
Renda ao esporte amador. Observemos que aqui o amador significa o
esporte que não gera recursos para seu próprio desenvolvimento.
O referido texto-lei não especificava com clareza a quais
modalidades esportivas pretendiam beneficiar, apenas determinava ser um
beneficio concedido para incentivo do esporte amador. O Art. 2º em seus 11
tópicos relatava o que considerava como atividade esportiva. Interessante
observar que apenas uma modalidade recebe tratamento diferenciado, como
foi o caso do xadrez.
“Art.2º - Para os objetivos da presente Lei, consideram-seatividades desportivas:I – a formação desportiva escolar e universitáriaII – o desenvolvimento de programas desportivos para o menorcarente, o idoso e o deficiente físico;III – o desenvolvimento de programas desportivos nas própriasempresas em benefícios de seus empregados e respectivosfamiliares;
272
IV – conceder prêmios a atletas nacionais em torneios ecompetições realizadas no Brasil;V – doar bens moveis ou imóveis a pessoa jurídica de naturezadesportiva, cadastrada no Ministério da Educação.VI – o patrocínio de torneios, campeonatos e competiçõesdesportivas amadoras;VII – erigir ginásio, estádio e locais para prática de desporto;VIII – doação de material desportivo para a entidade de naturezadesportiva;IX – prática do jogo de xadrez;X – doações de passagens aéreas para que atletas brasileirospossam competir no exterior;XI – outras atividades assim consideradas pelo Ministério daEducação.”
Nota-se que a manutenção do termo amador propiciou aos clubes a
possibilidade de adquirirem recursos financeiros empresariais para a
manutenção das equipes ditas “não profissionais”, embora que alguns
destes atletas, considerados como amadores, eram atletas remunerados,
semelhantemente ao que ocorria com atletas amadores do futebol antes de
1933, jogadores remunerados, todavia rotulados de amadores. Retomamos
a idéia de que amador neste contexto significava os esportes que não
geravam recursos.
Observemos que sobre o rótulo de esporte amador, desde os anos
80, diversos clubes e empresas implantaram equipes competitivas nas
modalidades consideradas olímpicas. Esta denominação amador, no
entanto, se relacionava à modalidade, e não à vinculação contratual dos
atletas, pois, por intermédio das aberturas da lei, inúmeros ídolos esportivos
eram contratados por essas equipes, que os mantinham com elevados
salários.
273
Empresas privadas nacionais e internacionais nos mais distintos
ramos econômicos perceberam ser este espaço uma forma benéfica de
publicidade de seus produtos, aliando a imagem de sucesso e prestígio dos
ídolos nas mais diversas modalidades. Observemos que muitos eventos
passaram a permitir o nome (denominação fantasia dos produtos da
empresa) como denominação das equipes, em detrimento do nome da
agremiação a qual se vinculara. Os clubes ofereciam sua estrutura e as
empresas entravam como gestoras dos recursos. Vários clubes de
expressão e tradição esportiva emprestavam seus nomes a este tipo de
vínculo.263
O governo de José Sarney regulamentou a Lei nº 7.752 de 14 de
abril de 1989, através do Decreto-Lei nº 98.595 de 18 de dezembro de 1989,
que dispunha sobre os benefícios fiscais, na área do imposto de renda,
concedidos ao desporto não profissional e dá outras providências.
Entretanto, nesta nova descrição, o termo amador aparece substituído pelo
termo não profissional. Observemos que o conceito ainda é problemático.
263 - Supergásbras , Pirel l i , Lei tes Nestlé , Sadia , Banespa, BCN, Unimep, Rexona,Laqua de Fior i , Olimpikus, Unibam, Report Suzano, Atlânt ica Boa Vista , entreoutros. Observemos que, d iante destas marcas, o nome do clube era ignorado ousecundar izado. O voleibol fo i a pr incipal modal idade a usufruir destapossibi l idade, o que permanece a té nossos dias, como as equipes de voleibolfeminino BCN – Osasco, Rexona – Paraná, MRV – Minas, embora, nestas úl t imastemporadas, o nome do clube Minas venha à frente da empresa patrocinadora, aconstrutora MRV. As empresas BCN e Rexona cont inuam sendo prest ig iadas emdetr imento aos clubes ou cidades de or igem. Observemos que os clubes doFlamengo e do Vasco não t iveram como manter as equipes de voleibol feminino,que f izeram a f inal da l iga 2000/2001, pois não conseguiram empresasinteressadas em manter o patrocínio. Nestes c lubes, os nomes da empresa nãoapareceriam nos not iciár ios , como acontece quando se patrocinam outros clubesem que o nome não tem expressão pública.
274
No Capítulo I – Das disposições preliminares, o Art. 2º, estabelece-
se que “ao CND caberá, no âmbito administrativo, dirimir dúvidas conceituais
suscitadas pela legislação de desportos, para fins de benefícios fiscais.”
Conforme já argumentamos anteriormente, parece que, imbuídos
pelos artigos das referidas leis, havia predisposição por parte dos dirigentes
em manter o termo amador e, desta forma, justificar a presença de equipes
competitivas em diversas modalidades. Embora tenha ocorrido a
substituição do termo “amador” pela expressão “não profissional” no
enunciado do Decreto-Lei 98.955, ainda continuava possível usufruir os
benefícios da lei. Poderíamos refletir se não seria por este motivo que até
hoje alguns clubes (e mesma parte da crônica esportiva) ainda se referem a
algumas modalidades, em que a competição já se estabelece em alto grau
de organização financeira, com atletas remunerados, como esporte amador.
Parece que amador ou não-profissional significa, no contexto
discursivo das leis e dos clubes, a dificuldade da modalidade esportiva gerar
receitas para seu próprio sustento, desenvolvimento e, especificamente, o
peso da folha de pagamento dos atletas “amadores” em relação às receitas
geradas por estas modalidades. O investimento em tais modalidades
funciona como filantropia dos clubes e das empresas, apesar de, no
contexto do Estado Novo, o conceito ter outros contornos, como já vimos.
A Lei 7.752/1989 e o Decreto-Lei 98.595/1989 não se referiam
especificamente sobre o futebol. As descrições relacionavam-se ao esporte
de uma forma geral, não gerando favorecimento nem limitações a qualquer
modalidade.
275
Apesar da substituição do termo amador pelo “não profissional”,
percebe-se que ainda não foi possível entender claramente esta distinção
conceitual no esporte brasileiro. Até mesmo no futebol, esporte que se
consolidou como profissional nos anos de 30, ainda podia perceber uma
freqüente dificuldade de conceituação, principalmente relacionada ao perfil
do atleta. Ser amador ainda deixava diferentes possibilidades de
significados, pelo menos no discurso da imprensa e do cidadão, como
podemos constatar nos primeiros capítulos deste estudo. Ser amador
poderia representar não somente uma pureza em relação ao vínculo e
comprometimento com o esporte e o clube (amor, dedicação, vestir a camisa
etc), como também a falta de competência, aquele que prática o esporte de
forma pouco eficiente (a prática do jogo em descompasso com o padrão do
esporte de rendimento, uma prática pouco racional).
Observemos que apenas o texto constitucional e seus respectivos
ajustes (Lei nº 7.752 de 14 de abril de 1989 e Decreto-Lei nº 98.595 de 18
de dezembro de 1989) não conseguiram abarcar os anseios dos esportistas
e dirigentes. Tornava-se necessária a modernização. Com a abertura
proporcionada pela Constituição de 1988, novas fundamentações foram
tramitadas e novas perspectivas foram colocadas à prova, conforme se
seguiu.
A seguir, analisaremos os textos-leis Zico e Pelé, por percebermos
o interesse e a polêmica provocados por estes documentos.
276
Capítulo XIOs alicerces recentes das leis atuais
11.1 – O curto período do governo Collor
O início do governo de Fernando Collor de Mello em 1990 seria
marcado por mudanças significativas na economia nacional. Medidas
drásticas para o controle inflacionário foram implantadas, gerando graves
crises internas.
Quanto ao esporte, uma de suas primeiras medidas foi a suspensão
da Lei nº 7.752 (Lei Mendes Thame), que tratava dos benefícios fiscais
destinados ao esporte amador, o que pareceu um retrocesso para
esportistas e amantes do esporte.
A primeira lei destinada ao esporte neste novo governo foi a da
regulamentação da profissão de treinador de futebol. A Lei nº 8.650 de 22 de
abril de 1993 dispunha sobre as relações trabalhistas do treinador e seus
contratantes. Esta passaria a ser a primeira lei que especificaria uma
profissão relacionada ao esporte no Brasil.
De acordo com Tubino (2002) o governo Collor promoveu uma
destruição da boa perspectiva traçada para o esporte nacional, embora
ressalte as importantes contribuições do ministro do esporte daquele
governo (Ministro Arthur Coimbra – Zico), que deixou um projeto de
reformulação do esporte nacional, que viria se concretizar nos governos
posteriores.
277
11.2 - Lei nº 8.672 de 06 de julho de 1993 (A Lei Zico)
Arthur Antunes Coimbra, o famoso jogador ‘Zico’, foi nomeado
Secretário Nacional de Esporte no governo Fernando Collor, no ano de
1990. O ex-atleta de futebol formou uma equipe destinada a traçar os novos
rumos do esporte brasileiro, visando à modernização de toda a estrutura
administrativa e, inclusive, à ingerência estatal. Esta equipe propunha-se
também gerar o arcabouço que determinasse todas as diretrizes esportivas,
atribuindo a função de cada seguimento (Estados, municípios, instituições de
ensino, federações, confederações, clubes, associações etc).
O governo Collor foi destituído por impeachment e, em seu lugar,
assumiu o vice-presidente Itamar Franco. Devido a esta situação, não foi
possível a permanência do secretário Zico e sua comissão à frente das
reformas esportivas que vinham sendo gestadas. O novo presidente indicou
novos nomes para dar seqüência às modificações em curso. Aproveitando a
mudança de governo a pressão da ‘bancada da bola’264 foi intensa, alterando
as diretrizes que a equipe de Zico estava traçando. Entretanto, parte das
idéias do projeto de Zico foi acatada pelos novos encarregados em conduzir
as reformas esportivas, que teve como redator o deputado federal carioca,
Arthur da Távola. Alguns críticos, no entanto, julgam que as propostas
deixadas por Zico tenham sido desfiguradas pela nova comissão, inclusive o
264 - Bancada da bola é a denominação que a imprensa espor t iva deu aospar lamentares que, de uma forma direta ou indireta, têm envolvimento comfederações ou clubes de futebol .
278
próprio Zico teria declarado: “Não chama essa lei de Zico porque ela não
tem nada a ver comigo.” (Kfouri, 2000) 265
Em 1990, Zico apresentou as propostas ao governo para a
reformulação do esporte nacional no Fórum – Futebol, o desafio dos anos
90, em Porto Alegre. Dentre estas propostas, ele apresentou a polêmica
tentativa de transformar os clubes em empresas privadas, justificando que
tal situação apresentava resultados satisfatórios em alguns países das
Europa. Apontou naquele momento três possibilidades para os clubes
brasileiros:
“1)Transformar-se em sociedade comercial de naturezadesportiva; 2) Constituir sociedade comercial de naturezadesportiva independente, controlando a maioria do capital comdireito a voto; 3) Contratar sociedade comercial para gerir suasatividades profissionais. (Fórum – Porto Alegre – RS, 1990, p.17)”266
Ao finalizar seu discurso no Fórum, Zico conclamou que o futebol
deveria “ser tratado e administrado de forma profissional, deixando de lado o
amadorismo e o paternalismo que existem hoje em dia.” (p.18) O
amadorismo aqui significa atividade rudimentar e pouco racional praticada
pelos amantes do esporte. Assim, nota-se que o conceito é um
desqualificativo.
265 - Gomes, Marcos & Carrano, Paulo César R. (2000). O futebol entre palco ebast idores – Entrevista com o jornal is ta esport ivo Juca Kfour i . In : Paulo Cesar . R.Carrano. Futebol : paixão e pol í t ica . Rio de Janeiro. DP&A Editora.
266 - Coimbra, Artur A. (1991). Palestra. Fórum – Futebol, o desaf io dos anos 90.Resumos dos re la tos. Porto Alegre, RS. Universidade Federal do Rio Grande doSul .
279
Figura 09 – Charge Políticos Futebol Clube – Bancada da bola - Folha de SãoPaulo. 23 de fev/1997. Caderno Especial: País do futebol
O Projeto Zico foi estudado por Ronaldo Helal (1997)267 em Passes
e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil, e por Marcelo Proni
(2000268), em A metamorfose do futebol. Apresentaremos parte dos
argumentos destes autores nos nossos apontamentos.
No capítulo 5 de sua obra, Helal realiza uma análise de como a
imprensa carioca, representada pelos jornais O Globo e o Jornal do Brasil,
267 - Helal , Ronaldo (1997) . Passes e impasses . Petrópol is , RJ. Vozes.
268 - Proni , Marcelo Wishaupt (2000). A metamorfose do futebol . Campinas, SP.Unicamp.
280
realizou a cobertura sobre a repercussão da lei proposta por Zico. Em seus
apontamentos, Helal colocou que a ‘resistência da tradição’ fez com que o
projeto fosse descaracterizado principalmente pela pressão exercida pelos
dirigentes que julgavam as diretrizes sugeridas pelo projeto prejudiciais aos
seus interesses. Segundo Helal, concluiu-se “que a sua aprovação na
íntegra mudaria a estrutura básica da administração do futebol, alterando
profundamente, o sistema de poder que governava as relações entre clubes,
federações e CBF.”(p.108) Helal indicou alguns pontos que comprometeriam
a sua aprovação: a modificação do sistema eleitoral da CBF; a redução do
poder das federações passaria aos grandes clubes a autonomia de
gerenciamento dos eventos e negócios; a extinção do Conselho Nacional de
Desporto e, com isso, o fim da interferência do Estado; a adoção do modelo
‘clube-empresa’; e o fim da ‘lei do passe’.
Helal analisou que “o projeto representava o fim dos métodos
tradicionais de administração baseados na política de troca de favores,
interferência política e na contraditória relação entre dirigentes amadores e
jogadores profissionais.” (p.108)
Helal, em suas análises também apontou os motivos pelos quais as
federações e a CBF opor-se-iam ao Projeto Zico’. Argumentou que estava
em jogo o fato de a nova estrutura programada pelo projeto mudar
determinantemente o poder que estava nas mãos dos dirigentes e a
resistência destes pautava na perda do poder.
Conforme Proni (2000), o contexto brasileiro da época não estava
preparado para as mudanças propostas no projeto inicial de Zico, pois
281
apresentava muitas propostas revolucionárias. “Na verdade, a maioria das
equipes ditas profissionais não estavam preparadas para transitar para um
novo status jurídico que implicaria um maior transparência nos suas
negociações comerciais.”(p.166) Interessante observar que a análise de
Proni segue no mesmo sentido do discurso elaborado pelos dirigentes dos
principais clubes que, mais tarde, devido à pressão, conseguiram frear parte
das reformas. Realmente não poderiam estar preparados para a mudança,
pois de acordo com Proni, seria exigida maior transparência nas
negociações. Pensamos que não se tratava de estarem ou não preparados,
mas a perda do poder e a necessidade da transparência constituíram os
principais motivos de revolta dos dirigentes.
Vejamos que Proni sinalizou no mesmo sentido de Helal, ao colocar
que os poderes da CBF e das federações constituíram entrave para as
propostas de Zico, pois o sistema eleitoral pretendido “transferia para as
grandes equipes o controle sobre o futebol brasileiro.” (p.167) É interessante
notar que os clubes podiam não estar preparados para a mudança
administrativa, passando a empresas comerciais, mas a CBF e as
federações entendiam que esta reforma passaria aos grandes clubes o
controle sobre o futebol brasileiro. Todavia, os grandes clubes também não
estavam a favor das reformas.
Para os pequenos clubes, principalmente, o que parecia inviável era
a “perda de regalias legais e isenções fiscais”, o que poderia provocar o
fechamento de muitos clubes, ou teriam que se “transformar em equipes
amadoras.” (Proni, 2000, p.166) O que significa amador neste contexto?
282
Quanto à ‘Lei do Passe’, o projeto Zico propunha sua total extinção,
deixando o jogador livre para firmar seus futuros contratos. O artigo 32º
estabelecia que: “ao término do contrato de trabalho, o atleta de futebol
estará livre para celebrar um novo contrato com qualquer entidade.” Não
seria nenhuma novidade que os interessados em manter este vínculo
protestariam criando uma barreira a sua aprovação. Diante desta
possibilidade, os membros da ‘bancada da bola’ argumentavam que isso
representaria a morte da iniciação esportiva que era tradicionalmente
desenvolvida pelos clubes. Alegavam que se não houvesse a Lei do Passe,
dificilmente as grandes equipes iriam investir na formação, pois não lhes
seria garantido o retorno do investimento.269 Para os principais clubes, os
clubes já consagrados do futebol brasileiro, seria mais prudente contratar os
atletas já formados em outros centros de desenvolvimento esportivo. Neste
contexto, nota-se que a suspensão da Lei do Passe provocava um
desconforto no seio do futebol brasileiro, onde os dirigentes dos clubes que
sentiam prejudicados utilizavam os mesmos argumentos que Hirschman
(1992) mapeou nas retóricas das transformações sociais. Para os dirigentes,
tal suspensão seria uma ameaça e provocaria um efeito perverso, ao
contrário do que acreditavam os fomentadores da lei. Ou seja, a extinção
seria um mecanismo inibitório da formação de jogadores para o futuro (tese
269 - Edmundo Si lva (Presidente do Clube de Regatas do Flamengo) e DeputadoEurico Miranda (Presidente do Clube de Regatas Vasco da Gama), debateramsobre o f im da “lei do passe”. Para eles o f im da le i do passe representar ia amorte da in iciação espor t iva nos clubes. Ambos demonstravam suas apreensões,ao projetarem as d if iculdades pelas quais passar iam os clubes sem o retorno doinvest imento real izado na formação de base. A le i do passe segundo eles , era asegurança que o c lube t inha para manter a estru tura de in ic iação. ProgramaDebate Esport ivo da Tv Educat iva (TVE), no 26 de março de 2001.
283
do efeito perverso), bem como provocaria a redução do número de clubes
empenhados em desenvolver o futebol em categorias de base, portanto,
uma ameaça (tese da ameaça) não só aos clubes, mas também à
renovação do capital esportivo brasileiro. Outros dirigentes, aqueles mais
céticos, no entanto, acreditavam que esta mudança não ocorreria, pois, logo
perceberiam que nada seria diferente, seria uma tolice (tese da futilidade).
Este embate pôde ser acompanhado cotidianamente nos principais jornais
durante o tramite da lei.
Helal (1997) argumenta que obviamente os clubes, as federações e
a CBF se posicionaram contra esta modificação. Observemos como Helal
analisava a ‘Lei do Passe’, que estava em vigência:
“O passe nada mais é do que um contrato de vinculação exclusivade um atleta profissional a um clube. Porém, esta vinculação, nocaso do futebol, atrelava o jogador ao clube mesmo após otérmino de seu contrato, impedindo-o de trabalhar em outraentidade esportiva. Apenas quando completasse 32 anos e casoestivesse atuando por mais de dez anos ininterruptos em ummesmo clube podia um atleta ter o direito ao ‘passe livre’.” (p.112)
Observemos como este texto comprometia os direitos do jogador.
Ele era um funcionário de vínculo permanente forçado, conforme colocou
Ricardo Benzaquen Araújo (1980) 270 :
“uma carta que assegura ao clube direitos absolutos sobre atransferência do jogador (...) Conseqüentemente, para mudar declube, de emprego, o jogador terá que ser vendido ou trocado, em
270 - Araújo, Ricardo Bezenquen de. (1980). Os gênios da pelota: um estudo dofutebol como prof issão. (disser tação de mestrado). Rio de Janeiro , UFRJ.(Programa de pós-graduação em antropologia social)
284
negociações nas quais, embora consultado, nunca possui apalavra final.” (p.75)
Segundo Proni, ao suprimir a ‘lei do passe’, provocava temor
principalmente nos pequenos clubes, que os levariam à falência, acreditando
que tal medida causaria desempregos entre técnicos e jogadores e também
provocaria a elevação dos salários e as reivindicações dos jogadores já
contratados. Para os grandes clubes, estava em jogo a perda da
possibilidade de lucro com as transferências de jogadores para o exterior
(Proni, 2000, p.167). Podemos ver na lei do passe uma das confusões de
igualação da vida profissional de um jogador a qualquer profissional liberal
na época. A lei proporcionava um forte desequilíbrio de poder entre os
jogadores e o clube. Este último tinha poderes de excluir o atleta do cenário
do futebol, caso tivesse algum tipo de conflito.271
Os lobbys políticos exercidos pela CBF e pelas federações sobre os
legisladores intensificaram-se, tentando frear o andamento das reformas. A
CBF não abriria mão do gerenciamento arbitrário que vinha exercendo,
apesar da força eminente do ‘clube dos 13’.272 Para manter seus direitos, a
271 - Veremos es te exemplo no capí tu lo XV, sobre o jogador Afonsinho.
272 - O ‘Clube dos 13’ é uma associação autônoma que surgiu, no ano de 1987, dajunção dos t reze pr incipais c lubes brasi leiros em cinco Estados (Rio de Janeiro:Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco; São Paulo: Cor inthians, Palmeiras ,Santos e São Paulo; Minas Gerais : Atlét ico e Cruzeiro; Rio Grande do Sul :Grêmio e In ternacional ; Bahia: Bahia) . Naquele momento, es te grupo f icouresponsável pela organização do campeonato brasi le iro, que foi denominado CopaUnião, com o objet ivo de controlar o futebol nacional , quando os clubesquest ionavam a atuação da CBF. In icialmente , negociava de forma colet iva oscontratos , como ocorreu com a parceria com a Rede Globo de televisão e com opatrocínio da Coca-Cola e da Var ig . Com o passar dos anos, a ent idade foicrescendo até que, em meados dos anos 90, chegasse aos 20 clubes a tuais . Hoje, oclube dos 13 é apenas uma agência de intermediação de contratos , pois seupr incipal produto, o campeonato brasi le iro, é organizado pela CBF.
285
CBF utilizava seu prestígio e também a força das federações, que, diante as
mudanças propostas, se encontravam receosas da perda de poder.
Segundo Proni, tal tensão resultou em uma alteração do estatuto da
CBF, em 1991, quando assegurou a continuidade Ricardo Teixeira por mais
quatro anos. Pretendiam evitar com tal medida a interferência do Estado
(p.167).
Com a saída do Ministro Zico e sua equipe, não foi possível ao
governo sustentar todas as reformas pretendidas e, possivelmente, alguns
legisladores também não o queriam. Durante o trâmite do texto, várias
ementas foram apresentadas pela ‘bancada da bola’, bem como vetos e
alterações em parte do texto original. Apesar disso, para muitos analistas,
apesar de tudo, a Lei Zico foi um avanço, alavancando as discussões que
presenciaríamos durante toda a década de 90. Para outros analistas, no
entanto, as interferências e pressões ocorridas deixaram escapar a
possibilidade de uma ampla reformulação da estrutura esportiva nacional.
Conforme Pozzi (1998)273, “o progresso do esporte brasileiro não será tão
rápido como poderia ser, porque a Lei Zico não conseguiu acabar com a
estrutura paternalista e corporativista das confederações que regem o
esporte.” (p.208)
Os clubes, a CBF e as federações conseguiram barrar a extinção da
Lei do Passe, proposta por Zico. Tratava-se de um ponto crucial do embate
entre os legisladores, devido às intensas pressões.
273 - Pozzi , Luís Fernando. (1998). A grande jogada: Teor ia e prát ica do market ingespor t ivo. São Paulo . Editora Globo.
286
Apesar das várias críticas das equipes de assessores de Zico, o
novo texto substituto foi aprovado em 06 de julho de 1993 e sancionado pelo
presidente Itamar Franco e pelo ministro da Educação Murílio de Avellar
Hingel; em homenagem ao idealizador, recebeu o seu nome: Lei Zico.
Passaremos agora a analisar os termos estabelecidos na Lei nº
8.672/1993 (Lei Zico), principalmente no que diz respeito ao perfil do jogador
e da conceituação proposta para definir o esporte.
As disposições iniciais do Capítulo I estabeleciam os preceitos
iniciais, em que seriam pautadas as novas determinações, estipulando que
se obedeceria às normas gerais inspiradas nos fundamentos constitucionais
do Estado Democrático de Direito, todavia, mantinham o argumento já
implantado em leis anteriores, referindo-se a desporto formal e desporto
não-formal.274
O Capítulo II – Dos princípios fundamentais estabelecia no Art.2º
item VI que haveria diferenciação no tipo de tratamento dado ao desporto
profissional e não-profissional.
274 - Prát ica formal é aquela “regulada por normas e regras nacionais e pelasregras in ternacionais acei tas em cada modal idade.”(§ 1º) Prát ica “não-formal écaracter izada pela l iberdade lúdica de seus prat icantes .”(§ 2º) Lei 8.672 de 06 dejulho de 1993 - Diár io Oficial da União.
Segundo Da Costa (1988) as expressões formal , não-formal foram uti l izadastendo como base o modelo de def inições da UNESCO relat ivas à educaçãopermanente. Todavia, adquir iram configurações e conteúdos próprios devido anecess idade e coerência da prát ica do espor te denominado não-convencional . DaCosta , Lamart ine Pereira (1988). Educação Fís ica e Espor te Não Formais . Rio deJaneiro. Ao Livro Técnico S.A. Os concei tos que foram ut i l izados na car ta magnat iveram essas perspect ivas.
Segundo Bramante , e t a l (2002), a expressão esporte não formal ter ia surgidocom um sent ido mais técnico, enraizada na t radição da recreação e do lazer ,devido à d if iculdade de fechamento do concei to. Bramante , Antonio C. et a l(2002) . Brazi l : Developing Spor t for All From Public Recreat ion (1920s) toLeisure (1970s) and Heal th Promotion (1990s) In : Lamart ine, P DaCosta & AnaMiragaya. (Eds.) Worldwide Exper iences and Trends in Sport for All . Rio deJaneiro . Taf isa/Unesco/ UGF
287
No Capítulo III – Da conceituação e das finalidades do desporto, Art.
4º, parágrafo único, ao especificar sobre a forma como o desporto de
rendimento poderia ser organizado e praticado, conceitua os dois graus de
pertencimento (profissional e não-profissional), embora tenha acrescentado
outra categoria na categoria não-profissional, conforme reproduzimos:
“O desporto de rendimento pode ser organizado e praticado:I – de modo profissional, caracterizado por remuneraçãopactuada por contrato de trabalho ou demais formas contratuaispertinentes;II – de modo não-profissional, compreendendo o desporto:
a) semi-profissional, expresso pela existência de incentivosmateriais que não caracterizem remuneração derivada de contratode trabalho;
b) amador, identificado pela inexistência de qualquer forma deremuneração ou de incentivos materiais.”
Observemos que estas conceituações tentavam abarcar e distinguir
as inúmeras possibilidades de vínculos esportivos existentes no Brasil. A
definição propunha definir os critérios de participação e organização,
entretanto, pareceu-nos ainda que não tiveram alcance suficiente para
delimitar os vínculos esportivos. Observemos que ainda se referia, naquele
momento, a algumas modalidades como esporte amador, mesmo para
alguns clubes e equipes que já apresentavam o esporte com contratos de
trabalho. As modalidades de voleibol e basquetebol, por exemplo, firmavam
seus contratos com os alguns jogadores cujo perfil poderia ser denominados
de profissionais.
288
No Capítulo IV – Do sistema Brasileiro do Desporto, estabelecia-se
a criação de um Conselho Superior de Desporto, que seria o órgão instituído
para ser o instrumento representativo da comunidade desportiva brasileira
junto ao governo e responsável, entre outros fatores, por fazer cumprir e
preservar os princípios e preceitos desta lei. A formação deste conselho275
se deu pela nomeação do Presidente da República de 15 membros
pertencentes a diversos setores relacionados ao meio esportivo.
No Capítulo VI – Da Prática Desportiva Profissional, apresentam-se
os Art.18º a Art.29º relacionados aos mecanismos gerenciadores do
desporto profissional e do tipo de vínculos dos atletas, bem como os
dispositivos de transferência de clubes. Todavia, os artigos 22º e 23º são
específicos quanto ao vínculo à categoria profissional e ao tempo de
determinação do contrato, conforme reproduzimos a seguir:
275 - Art . 6º - O Conselho Superior de Desporto será composto de 15 membrosnomeados pelo Presidente da República, d iscr iminadamente:I – o Secretár io de Desporto do Ministér io da Educação e do Despor to, membronato que o preside; I I - dois , de reconhecido saber despor t ivo, indicados peloMinistér io da Educação e do Despor to; I II - um representante do Comitê OlímpicoBrasi le iro; IV - um representante das ent idades de adminis tração federal dodespor to profiss ional; V - um representante das ent idades de administraçãofederal do despor to não-prof iss ional ; VI - um representante das entidades deprát ica do despor to prof iss ional ; VII - um representante das ent idades de prát icado despor to não-profiss ional ; VIII - um representante dos at le tas prof iss ionais ; IX- um representante dos a t le tas não-profiss ionais ; X - um representante dosárbi tros; XI - um representante dos t reinadores despor t ivos; XII - umrepresentante das inst i tu ições que formam recursos humanos para o desporto; XIII- um representante das empresas que apóiam o despor to; XIV - um representanteda imprensa despor t iva. § 1º A escolha dos membros do Conselho dar-se-á poreleição ou indicação dos segmentos e se tores in teressados, na forma daregulamentação desta Lei . § 2º Quando segmentos e setores despor t ivos tornarem-se re levantes e inf luentes, o Conselho, por deliberação de dois terços de seusmembros, poderá ampliar a composição do colegiado a té o máximo de vinte enove conselheiros. § 3º O mandato dos conselheiros será de t rês anos, permit idauma recondução. § 4º Os conselheiros terão dire i tos a passagens e d iár ias paracomparecimento às reuniões do Conselho. (Seção II do Conselho Superior deDesportos , Lei Zico 8.672, de 06 de julho de 1993).
289
“Art. 22º. A atividade do atleta profissional é caracterizada porremuneração pactuada em contrato com pessoa jurídica,devidamente registrado na entidade federal de administração dodesporto, e deverá conter cláusula penal para as hipóteses dedescumprimento ou rompimento unilateral.
§1º A entidade de prática desportiva empregadora que estivercom pagamento de salários dos atletas profissionais em atraso,por período superior a três meses, não poderá participar dequalquer competição, oficial ou amistosa.
§2º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais dalegislação trabalhista e da seguridade social, ressalvadas aspeculiaridades expressas nesta Lei ou integrantes do contrato detrabalho respectivo.
Art. 23º. O contrato de trabalho do atleta profissional terá prazodeterminado, com vigência não inferior a três meses e nãosuperior a trinta e seis meses.
Parágrafo único. De modo excepcional, o prazo do primeirocontrato poderá ser de até quarenta e oito meses, no caso deatleta em formação, não-profissional, vinculado à entidade deprática, na qual venha exercendo a mesma atividade, pelo menosdurante vinte e quatro meses.” (grifos nossos)
Observemos que aqui a lei expressa o desejo de equilíbrio de forças
entre o clube e o atleta. O atleta já não é visto como uma propriedade do
clube, e sim como um profissional que firma um contrato de trabalho da
mesma forma que qualquer profissional liberal, de acordo com a legislação
trabalhista.
Tubino (2002), em suas análises finais acerca da Lei Zico,
apresenta 11 pontos que considerou como avanço em relação às leis
anteriores. Dentre estes pontos fundamentais, destacamos dois, por
julgamos pertinentes à discussão sobre o vínculo e a definição do
profissional.
O 3º ponto colocado por Tubino diz respeito “às possibilidades de
modernização do esporte de rendimento através de gerencias empresarias”.
290
Esta nova perspectiva, segundo esse autor, abria a possibilidade de, em
curto prazo, conduzir o Brasil a um novo modelo de gerenciamento esportivo
em todos os níveis, por intermédio do Art. 11, Seção III, do Capítulo IV
(p.143).
Outro aspecto destacado por Tubino (7º ponto) é que a Nova Lei
passou a distinguir a prática desportiva profissional pelo atleta. Na Lei
6251/75, o esporte é que era profissional, por intermédio do reconhecimento
do CND, e a partir do novo texto o atleta passou a ser a referência para a
definição. Segundo Tubino, o Art. 22º do Capítulo VI desta nova lei encerrou
a hipocrisia até então reinante; o novo texto determinava ainda “novas e
saudáveis perspectivas de relações entre entidades e atletas.” (p.144)
Observemos que Tubino aponta uma mudança estrutural na
conceituação esportiva, em que devemos passar a considerar o atleta como
profissional, e não mais a modalidade como freqüentemente ainda
presenciamos nas narrativas jornalísticas.
Veremos ainda no Capítulo III desta parte do estudo, na seção 3.2
(Lei 10.672 de 15 de maio de 2003), que estas observações realizadas por
Tubino recebem novas especificações, onde a denominação profissional
passou a ser utilizada também para a competição e os clubes esportivos.
Observamos ainda que, embora a cultura esportiva brasileira esteja
preponderantemente vinculada ao futebol, a Lei Zico não fez nenhuma
alusão específica a modalidade, mas acreditamos que todos os pontos re-
elaborados e implantados tenham sido refletidos sobre esta modalidade,
como primeiro plano da nossa cultura esportiva.
O Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto – INDESP,
vinculado ao Ministério da Educação e do Desporto, no uso de suas
291
atribuições, editou uma regulamentação para o Art. 26º da Lei Zico, em que
se tratava do passe do jogador.276 A pressão dos dirigentes esportivos e dos
parlamentares vinculados ao futebol provocou a implantação da resolução nº
1 de 17 de outubro de 1996, que criava novos mecanismos regimentais para
especificar a conceituação de atleta profissional e determinar as condições
dos contratos de trabalho.
O Capítulo I – Da conceituação de Atleta Profissional e do Contrato
de Trabalho, na realidade, não conceitua o atleta, conforme parece ter sido a
intenção dos relatores da lei. Entretanto, neste tópico, passa a utilizar outras
nomenclaturas para conceituar os atletas, referindo-se ao atleta
semiprofissional (Art.2º § 6º) e retorna a expressão amador ao se referir ao
atleta (Atleta amador - Art. 3º alinea II).
Duas observações se fazem necessárias neste momento: 1ª – A
preocupação aparente desta nova resolução se acentuava em assegurar
aos clubes o direito sobre a Lei do Passe, criando mecanismo de inibição de
troca de clubes; 2ª – A referida resolução INDESP legislava apenas sobre a
modalidade de futebol.
11.3 – Lei nº 9.615 de 24 de março de 1998 (A Lei Pelé)
A Lei nº 9.615 foi sancionada em 24 de março de 1998, no primeiro
mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, recebendo o nome de
Lei Pelé, em homenagem ao mais conceituado atleta brasileiro de todos os
276 - No capí tu lo VI – Da prát ica desport iva prof iss ional .
Art . 26º – Caberá ao Conselho Super ior de Desporto f ixar o valor , oscr i tér ios e condições para o pagamento da importância denominada passe.
292
tempos, Edson Arantes do Nascimento. Sua regulamentação se deu por
intermédio do Decreto nº 2.574 de 29 de abril de 1998.277
Segundo Proni (2000), a Lei Pelé originou-se das dificuldades
encontradas para restaurar o futebol brasileiro, inclusive por falha ou
brechas no texto da Lei Zico, onde o Estado pretendia recuperar parte do
controle perdido sobre as entidades esportivas.
O Senador Artur da Távola, um dos pareceristas da Lei, argumentou
que “a nova medida propunha a reestruturação do sistema desportivo
brasileiro sob bases que pregam sua descentralização, um maior
desintervencionismo estatal no setor e o respeito à autonomia das estruturas
associativas.” (Tavola, 1998, p.5) Observemos que, enquanto Proni
argumentou que a proposta da Lei Pelé era restaurar parte do controle pelo
poder governamental, já Artur Távola sinaliza o contrário, ao colocar que o
objetivo era coibir a intervenção estatal. Segundo Pozzi (1998), a Lei Pelé
buscava recuperar os principais temas suprimidos da Lei Zico, por falta de
interesse de fazê-lo sair do papel. Enquanto a Lei Zico estabelecia a
obrigatoriedade a entidade de praticas desportivas e as entidades federais
de administração de modalidades profissional tornarem-se empresas, a Lei
Pelé flexibilizava esta intervenção. Pelo texto da Lei Pelé tornava-se
facultativa que o clube optasse pelo registro de sociedade civil com fins
comerciais (clube-empresa).278
277 - Este Decreto-Lei a l terou alguns capí tu los e seções da Lei Pelé.
278 - Ver Celidonio Neto , Lauro, et a l . (2002). Parecer jur íd ico sobre as a l teraçõesda Lei Pelé. In : Antonio C. Kfouri Aidar , Marvio Pereira Leoncini & João JoséOliveira . (Orgs) . A nova gestão do futebol . Rio de Janeiro. FGV Editora.
293
As entidades esportivas, ao tomarem conhecimento do projeto
apresentado no Congresso Nacional, rapidamente apresentam seus
argumentos de repúdio ao novo texto. As críticas foram similares às sofridas
pela Lei Zico no momento de sua discussão, todavia, a Lei Pelé foi
considerada ‘autoritária’, ao não ouvir as partes interessadas (CBF,
federações, associações de atletas etc). Segundo Aidar (2002)279, apesar da
grande inovação, com a extinção do passe esta lei teria causado um enorme
prejuízo às entidades de práticas esportivas formadora de atletas, uma vez
que, não mais seriam detentoras do direito sobre o passe dos atletas
formados nas equipes de base. Observemos que esta era a preocupação de
alguns dirigentes quando a lei encontrava-se em tramite.
Dias após o conhecimento do texto do projeto, o ‘clube dos 13’,
juntamente com outros clubes da primeira divisão, apresentaram um
manifesto contendo 9 pontos de crítica ao texto proposto. Nestes pontos,
criticavam a forma de condução do projeto, ressaltando o seu caráter
autoritário. Observemos como alguns dos pontos assemelham aos
argumentos apontados por Hirschman em suas teses.
Ogawa (1999), em reportagem para a revis ta Exame, apresenta um balançoacerca do dinheiro que circula no mundo do futebol , enfat izando a importância daLei Pelé quanto às novas exigências aos clubes. Ogawa, Alfredo. (1999, 14 dejulho) . Bola S.A. – Porque o fu tebol está atra indo tanto d inheiro. In : Revis taExame. 97-106p.
279 - Aidar , Car los Miguel . (2002) . Desmist i f icando a Lei Pelé . In : Antonio C.Kfour i Aidar , Marvio Pereira Leoncini & João José Oliveira (Orgs) . A novagestão do futebol . Rio de Janeiro. FGV Editora.
294
Quadro 02 – Manifesto dos Clubes da primeira divisão e do Clube dos 13 280
Os clubes integrantes da 1ª Divisão (Série A) do futebol brasileiro, reunidos no Rio deJaneiro, tornam público o seu posicionamento diante da divulgação do projeto da LeiPelé:
a) Preliminarmente, acolhem e apóiam todos os dispositivos da Lei Zico (8.672/93)reproduzidos, na íntegra, no projeto de lei Pelé, e que, percentualmente, correspondema 51% da proposta de lei remetida ao Congresso Nacional, surpreendentemente, emregime de urgência.
b) Aprovam, igualmente, os outros 30% de dispositivos “clonados” da Lei Zico, objetode mínimas alterações formais e redacionais.
c) Estranham a ideologia autoritária de “estatização do desporto”, que se coloca nacontramão do processo de privatização, quando, contrariamente, se exige “maissociedade, menos Estado”, num evidente retrocesso e deslegitimação da regulaçãojurídico-desportiva projetada nos restritos 19% de inovação.
d) Rejeitam a obrigatoriedade dos clubes transformarem-se em sociedades comerciais,seja por afrontar os direitos de associação, seja por malferir a autonomia desportiva,asseguradas constitucionalmente.
e) Reiteram que a faculdade de transformação dos clubes em empresas, sabiamenteprevista no art. 11 da Lei Zico, configura-se como modelo ideal, porque é harmônico como espírito democrático da Constituição e porque ajustado à realidade sócio-economico-desportivo do país.
f) Sublinham que a pura e simples extinção do passe implicará no êxodo crescente deatletas para o exterior, sem qualquer indenização para o clube formador, o queprovocará, certamente, a desertificação das torcidas nos estádio, a fuga depatrocinadores e a falência irreversível dos clubes.
g) Realçam, outrossim, a necessidade de humanização da “lei do passe”, de modo atornar os atletas sócios, parceiros, e beneficiários direito de qualquer transformação queos envolva, sobretudo, agora, quando a MP n. 1523, de 11 out.96, extinguiu, semmanifestação contrária, a vintenária aposentadoria especial dos atletas profissionais.
h) Os clubes signatários destacam que representam quase um milhão de associadosestatutários e, pelo menos, 90% (noventa por cento) da torcida brasileira, sendoresponsáveis diretos pela cessão de atletas para as constantes conquistas mundiaispela Confederação Brasileira de Futebol, inclusive nas categorias de base.
i) Finalmente, com lastro nesta legitimidade de representação, expressam irrestritaconfiança no Congresso Nacional, convictos de que, após democráticos debates,resultará uma lei que reflita as peculiaridades nacionais, engrandeça o desportobrasileiro e fortaleça sua maior paixão – futebol.
Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1997Clube dos Treze, Abracef e Clubes da 1ª Divisão
Segundo Proni, os clubes demonstravam que os principais
dirigentes esportivos do país estavam contrários à interferência do Estado,
bem como à modificação do modelo de gerenciamento (p.199).
280 - Folha de São Paulo , 15 de set /97
295
Antes da aprovação, vários vetos foram feitos ao texto original,
suprimindo especificações que não resultaram em consenso pelos
legisladores. Alguns capítulos sofreram pequenas modificações, que
descaracterizaram a força do texto-lei, o que Tubino (2002) chamou de
desfiguração da Lei Pelé. Abordaremos as considerações de Tubino, depois
de examinarmos os tópicos que julgamos necessários para nosso estudo, ao
final desta seção.
A desorganização das principais entidades gerenciadoras do futebol
brasileiro parece ter sido um dos pivôs que desencadearam a necessidade
de reformulação de toda a estrutura administrativa, todavia, os perfis dos
dirigentes e os mecanismos de manutenção adotados pelos clubes são
favoráveis à permanência dos perfis administrativos destes indivíduos.
A pressão exercida pela ‘bancada da bola’ foi que provocou as
principais mudanças, bem como os vetos institucionais. Praticamente todos
os principais Estados que apresentam um futebol competitivo têm seu (ou
seus) representante (s) nas Câmaras e no Congresso Nacional, defendendo
os interesses dos seus correligionários. Esta atuação efetiva não permitiu
que a Lei Pelé fosse aprovada na íntegra, pois julgavam que seria prejudicial
aos seus clubes e às federações. O deputado federal Eurico Miranda, vice-
presidente do Clube Vasco da Gama na época, durante o trâmite do projeto,
apresentou 16 emendas ao projeto na Câmara Federal. Proni argumenta
que o propósito do deputado era “abrir brechas que desvirtuassem o texto
original.” (p.198)
296
Todavia, apesar de vetada em partes, a Lei Pelé tratou de assuntos
que outras leis não propunham legalizar. Observamos que várias partes dos
seus artigos foram reproduções de parte da Lei Zico, embora a maioria
destes artigos tenha sido colocada em outros capítulos ou seções diferentes
do texto desenvolvido pela equipe de Pelé.
Focalizando nosso objetivo, observaremos nas leis apenas os
tópicos que se relacionam ao perfil de distinção da forma de vinculação do
atleta e, especificamente, algumas seções que tratam do futebol.
O capítulo II – Dos princípios fundamentais no Artigo 2º, alínea V,
relata acerca “do direito social, caracterizado pelo dever do Estado em
fomentar as práticas desportivas formais e não formais”. Na alínea VI, trata-
se “da diferenciação, consubstanciado no tratamento específico dado ao
desporto profissional e não profissional.”
Observemos como os conceitos são colocados no texto-lei, no
entanto, não ficam claros os limites de sua abrangência.
No Capítulo III - Da Natureza e das Finalidades do Desporto, no
Art.3º, discorre-se a respeito do desporto de rendimento, legislando quanto a
sua organização e ao nível de vínculo do praticante. Esta lei estabelece as
mesmas especificações que a Lei Zico, no seu Capítulo III, Art.4º, parágrafo
único, quanto à classificação profissional e não-profissional. Todavia,
modificou o texto relacionado ao esporte semiprofissional, conforme
especifica o item A: “Expresso em contrato próprio e específico de estágio,
com atletas entre quatorze e dezoito anos de idade e pela existência de
297
incentivos materiais que não caracterizam remuneração derivada de contrato
de trabalho.”
Quanto ao item B, relacionado à característica do atleta amador, fica
estabelecido que seria: “identificado pela liberdade de prática e pela
inexistência de qualquer forma de remuneração ou de incentivos materiais
para atletas de qualquer idade”. O mesmo dispositivo da lei anterior não se
referia à idade do atleta, o que foi acrescentado nesta nova descrição.
Observemos que as especificações destinadas à conceituação do
atleta amador estabelece que os atletas não poderão receber nenhuma
espécie de remuneração ou incentivo. Parece que esse texto novamente
não conseguia estabelecer os limites, uma vez que mesmo esportes
considerados amadores tinham seus principais atletas firmando vantajosos
contratos. Atletas de distintas modalidades (voleibol, basquetebol, futsal,
entre outros) já vinham sendo requisitados pelos principais clubes do país.
Sob quais princípios estes atletas estavam enquadrados que os permitiam
manter a conceituação de atleta amador? Sob que égide se dava essa
distinção?
Aqui, como na lei Zico, há um equilíbrio das relações entre clube e
atleta, mas também é expressa uma ressalva para que não fosse
desestimulado o investimento de formação de atletas pelos clubes, seja nas
divisões de base na Lei Pelé, seja no primeiro contrato do atleta na lei Zico.
Pareceu-nos ter sido este texto lei o único que se ocupou especificamente
em legislar sobre o futebol e, provavelmente, tenha sido este o motivo que
levou a ‘bancada da bola’ a se mobilizar, bloqueando as implantações que
298
julgavam comprometedoras dos seus privilégios administrativos, bem como
a eminente possibilidade da perda de poder.
O Art. 92º, do capítulo XI, Disposições transitórias, estabelecia que:
“os atletas profissionais de futebol, de qualquer idade, que, nadata da vigência da Lei nº 9.615, de 1998, tiveram assegurado odireito de passe livre, permanecerão nesta situação, assim comotodos os atletas das demais modalidades de prática desportiva,cuja rescisão unilateral de seus contratos de trabalho dar-se-á nostermos dos arts. 479281 e 480282 da Consolidação das Leis doTrabalho – CLT.”
Até que esta lei entrasse em vigor, as determinações eram
generalizadas a todas as modalidades esportivas, não ressaltando ou
legislando especificamente sobre nenhuma delas. Observemos que, apesar
das variadas modalidades praticadas no Brasil, apenas o futebol recebe este
tratamento diferenciado.
281 - Art . 479. Nos contratos que tenham termo est ipulado, o empregador que, semjusta causa, despedir o empregado, será obr igado a pagar- lhe, a t í tu lo deindenização, e por metade, a remuneração a que ter ia d ire i to até o termo docontrato .Parágrafo único. Para a execução do que dispõe o presente ar t igo, o cálculo dapar te var iável ou incer ta dos salár ios será fei to de acordo com o prescr i to para ocálculo da indenização referente à rescisão dos contratos por prazoindeterminado.
282 - Art . 480. Havendo termo est ipulado, o empregado não poderá se desl igar docontrato , sem justa causa, sob pena de ser obr igado a indenizar o empregador dosprejuízos que desse fa to lhe resultarem.§ 1º A indenização, porém, não poderá exceder àquela a que ter ia d irei to oempregado em idênt icas condições. (Renumerado pelo Decreto- lei nº 6 .353/44)§ 2° Em se t ra tando de contrato de ar t is tas de teatros e congêneres , o empregadoque rescindi- lo sem justa causa não poderá trabalhar em outra empresa de teatroou congênere, salvo quando receber atestado l iberatór io , durante o prazo de umano, sob pena de f icar o novo empresár io obr igado a pagar ao anter ior umaindenização correspondente a dois anos do salár io est ipulado no contratorescindido. (Acrescentado pelo Decreto- lei nº 6 .353/44 e revogado pela Lei nº6.533/78)(CLT, Capítulo I - Do contrato Individual do Trabalho - Disposições Gerais .1998)
299
Outras modalidades como o voleibol, basquetebol e futsal, apesar
de já demonstrarem naquele momento forte estrutura administrativa, de
certa forma observada como exemplo pelos legisladores,283 não conseguiam
manter uma competição com vínculos clubísticos, o que seria fundamental
para obter o interesse popular. Os principais clubes sociais de prestígio
nacional não se envolvem com estas modalidades da mesma forma que se
dedicam ao futebol.284
Observemos que, nas outras modalidades, é de certa forma comum
que algumas equipes sejam temporárias e os atletas ao final das
temporadas sejam requisitados por outras, inclusive equipes internacionais.
Vejamos o exemplo do voleibol, que, na Liga Feminina Nacional de 2001 o
Estado do Rio de Janeiro teve duas equipes que participaram do
campeonato (Clube de Regatas do Flamengo e Clube de Regatas Vasco da
Gama), disputando entre si as finais. Todavia, o bom resultado não foi
suficiente para manter as equipes na temporada seguinte, quando ambas as
equipes foram desfeitas.
No basquetebol também ocorreu o mesmo. Nas temporadas de
2000, os quatro ‘grandes clubes’ cariocas (Botafogo, Flamengo, Fluminense
283 - Car los Arthur Nuhzman, em entrevis ta ao Programa do Jô, da rede Globo deTelevisão do dia 25 de abr i l de 2003, colocou que após a Olimpíada de Moscouem 1980, quando era presidente da Confederação Brasi leira de Voleibol ,estabeleceu que nenhum contrato in ternacional poder ia ser f i rmado com at letascom idade infer ior a 18 anos. Tal medida evi tava a in terferência de empresár iosque quer iam levar os jogadores brasi le iros para c lubes europeus e as iá t icos.Vejamos que o d ir igente do voleibol adotou uma postura de controle in terno,quando percebeu que estava perdendo seus at le tas a inda em formação para clubesinternacionais .
284 - Observemos, no entanto, que muitos destes clubes que hoje sãotradicionalmente conhecidos como clube de fu tebol, sua or igem ocorreu em outrasprát icas esport iva.
300
e Vasco) estiveram presentes no Campeonato Brasileiro Masculino, todavia
na temporada seguinte, o Botafogo e o Fluminense desfizeram-se de suas
equipes, alegando falta de recursos financeiros que sustentassem a
modalidade. No ano de 2004, apenas o Flamengo manteve sua equipe na
competição nacional.
O Art. 45º – Da Prática Desportiva Profissional, Capítulo V, também
especifica referências ao tratamento diferenciado dado aos atletas
semiprofissionais de futebol, conforme reproduzimos na íntegra:
“A atividade do atleta semiprofissional de futebol é caracterizadapela existência de incentivos materiais que não caracterizemremuneração derivada de contrato de trabalho, pactuado emcontrato formal de estágio firmado com entidade de práticadesportiva, pessoa jurídica de direito privado, que deverá conter,obrigatoriamente, clausula penal para as hipóteses dedescumprimento, rompimento ou rescisão unilateral.
§1º Estão compreendidos na categoria dos semiprofissionaisos atletas com idade entre quatorze e dezoito anos incompletos.
§2º Só poderão participar de competições profissionais osatletas semiprofissionais com idade superior a dezesseis anos.
§3º Ao completar dezoito anos de idade, o atletasemiprofissional de futebol deverá ser obrigatoriamenteprofissionalizado, sob pena de, não o fazendo, voltar à condiçãode amador285, ficando impedido de participar em competiçõesentre profissionais.
§4º Do disposto neste artigo estão excluídos os desportosindividuais e coletivos olímpicos, exceto o futebol de campo.”(grifos nossos)
Observemos que, apesar de o Art. 45 se destinar a legislar sobre o
futebol, o § 4º ainda reforça o objetivo da lei.
285 - Essa vol ta à condição de amador é denominada de reversão. Discut i remos areversão no capí tu lo XIII desta par te do estudo. Aqui amador s ignif ica oprat icante sem contrato of ic ia l .
301
Pareceu-nos evidente que praticamente todos os tópicos da Lei
Pelé pautavam prioritariamente o futebol como referência e as outras
modalidades viriam a reboque neste conjunto de especificações.
Retornemos às interpretações de Tubino (2002), quando apontou
que a Lei Pelé (Nº 9.615) foi desfigurada com a nova Lei 9.981 (Lei Maguito
Vilela), implantada em 14 de julho de 2000. Segundo Tubino, quando se
esperava a aprovação tranqüila da Lei Pelé, já que haviam ocorrido as
modificações polêmicas do documento, ainda no primeiro mandato do
Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), o texto foi novamente
modificado. Acreditava Tubino que tudo seria facilmente encaminhado, pois
o governo FHC entrava em seu segundo mandato. Todavia, com a entrada
do novo ministério, presidido por Rafael Greca, o texto foi modificado:
“alterando substancialmente as tendências do futebol brasileiro, uma vez
que o novo texto incidiu primordialmente sobre os negócios deste esporte,
sem dúvida o primeiro no interesse nacional.” (p.239)
Entretanto, Tubino reconhece que muitos pontos da Lei Pelé eram
extremamente polêmicos e de difícil execução. Por esse motivo, juntamente
com o quadro conjuntural naquele momento, a Lei foi re-encaminhada para o
debate no Congresso Nacional, originando novas discussões e fortalecendo
vários interesses que nem sempre levavam em conta as necessidades da
modernização do esporte.
Apesar da desfiguração dos textos-leis propostos por Zico e Pelé,
tais tentativas de organização provocaram uma inquietude no processo de
302
gerenciamento do esporte nacional, levando a inúmeros debates e críticas
do modelo esportivo vigente. Segundo Tubino (2002), ambas as leis abriram
novas perspectivas para o esporte nacional, embora os interesses plurais
pudessem provocar modificações que comprometessem a concretização de
um esporte transparente.
Capítulo XIIAs Leis atuais
12.1 - Lei nº 9.981 de 14 de julho de 2000(Lei Maguito Vilela) 286
A Lei 9.981 de 14 de julho de 2000 provocou profunda alteração nos
preceitos da Lei Pelé, principalmente nos tópicos relacionados ao futebol
profissional brasileiro, conforme relatou Tubino (2002).
A denominação Maguito Vilela se decorre da homenagem ao
senador relator desta lei por sugestão de membros da ‘bancada da bola’.
Maguito Vilela que foi, em períodos anteriores (1992-1995), vice-presidente
da Confederação Brasileira de Futebol – CBF, em que Ricardo Texeira já era
o presidente da entidade. Esta informação por si só, já demonstra o grande
envolvimento (ou comprometimento) do relator com os dirigentes esportivos
brasileiros.
286 - Luiz Alber to Maguito Vilela , natural de Jata í (GO), é advogado e pecuaris ta .Entrou para a v ida pol í t ica desde 1975, quando se elegeu como vereador em suacidade. Ocupa o cargo de Senador da República desde 1995.
303
Tubino (2002) acredita que a Lei 9.981 de 14 de julho de 2000 tenha
sido aprovada recebendo forças dos descontentes com a Lei Pelé, que
aproveitaram o fato de as lentes sociais (Imprensa e Ministério Público)
focarem, naquele momento, as questões das casas de bingo. Aproveitando
o deslocamento desta atenção, alguns membros da “bancada da bola”
conseguiram rapidamente retomar as discussões acerca do esporte,
especificamente o futebol no Congresso Nacional.
O Projeto Maguito Vilela pode ser entendido como um documento
proposto pelos principais dirigentes do ‘clube dos 13’ e da CBF que visava
manter ou resgatar alguns privilégios que julgavam ter perdido com a
aprovação da Lei Pelé. Portanto, esta lei surgiu em um momento de grande
tensão nas esferas que governavam o país.
Inúmeros foram os debates que provocavam a inquietude da
imprensa e alguns políticos que pretendiam conduzir o esporte nacional a
uma nova vertente.
Relembramos que nosso foco de análise está centrado na
denominação do perfil dos atletas e como a Magna Carta os reconhece.
A princípio, percebe-se que a Lei Maguito Vilela foi um reajuste da
Lei Pelé nos tópicos que pareciam comprometer os interesses dos dirigentes
esportivos e seus correligionários.
Em relação ao nosso foco principal, que é à conceituação e status
dos atletas, constatamos que a Lei Maguito Vilela não apresentou alteração
diferenciada das que constam no texto da lei anterior.
304
12.2 – Lei 10.672 de 15 de maio de 2003
Em 2003, na gestão do Presidente Luis Inácio Lula da Silva foi
aprovada a Lei nº 10.672, que altera dispositivos da Lei Pelé (Lei nº 9.615,
de 24 de março de 1998).
Estas novas disposições estabeleceram no Art. 2º as normatizações
acerca da exploração e gestão do desporto profissional, que passaram ainda
a ser consideradas como exercício de atividades econômicas.
Tubino (2002) argumentava que as novas diretrizes do esporte
passavam a conceituar o atleta como profissional, e não mais as
modalidades. Neste novo texto-lei, ocorre o retorno das especificações
destes conceitos, conforme o Art. 2º, inclusive criando outras especificações,
como competição profissional, conforme rege o Art. 26º, parágrafo único:
"Considera-se competição profissional para os efeitos desta Lei aquela
promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais cuja
remuneração decorra de contrato de trabalho desportivo." (grifos nossos).
Relembremos que a Lei Pelé, em seu Art. 3º 287, marcava este
conceito apenas sobre o desporto. Agora a conceituação retorna sobre a
287 Lei Pelé , Art . 3º .Capí tu lo I II - Da natureza e das f inal idades do desporto ,es tabelecia três formas de reconhecimento do esporte : I - Desporto Educacional ;II - Despor to de Par t icipação de modo voluntár io ; e , I II - Desporto deRendimento . Na especif icação do Desporto de Rendimento apareciam: I - Demodo prof iss ional; e I I - De modo não prof iss ional : a) Semi-prof iss ional ; e , b)amador) .
305
condição do atleta, onde se refere ao atleta profissional e atleta não-
profissional, evitando o termo amador.
No Art. 27º, determina ainda a existência das entidades desportivas
profissionais, conceituando-as no parágrafo 10:
“§ 10 - Considera-se entidade desportiva profissional, para finsdesta Lei, as entidades de prática desportiva envolvidas emcompetições de atletas profissionais, as ligas em que seorganizarem e as entidades de administração de desportoprofissional.”
Vejamos que a nova determinação no que se refere à entidade
desportiva profissional parece não deixar claros (ou explícitos) os limites a
serem estabelecidos. Algumas federações esportivas estaduais que
implantaram as ligas ainda não conseguiram constituir uma política de
profissionalização capaz de assegurar o direito de todos os atletas
envolvidos, bem como alguns clubes que permanecem fora desta
especificação no tocante ao parágrafo 10, sobre entidade desportiva
profissional. Em algumas destas ligas, mesmo nas principais equipes, é
possível encontrar atletas com status diferenciado (amadores,
semiprofissionais e profissionais). Como exemplo desta situação, observa-se
a modalidade de handebol, que nestes últimos anos também implantou as
ligas (estaduais e nacional)288 como mecanismo de promoção e divulgação
288 - Essas l igas in iciaram-se anos f inais de 1990, gerando uma expectat iva demelhor ia do desenvolvimento da modal idade. No handebol, a pr imeira l igaocorreu em 1997.
306
do esporte. Entretanto, a condição de desenvolvimento destas ligas ainda
não poder se fundamentar no que determina as leis.
Na modalidade handebol, embora algumas equipes apresentem
elevado grau de profissionalismo de seus atletas, inclusive com
patrocinadores de credibilidade e tradição no campo esportivo, 289 outras
ainda são deficitárias, 290 necessitando de subsídios públicos para
manutenção das equipes.
Em algumas ligas estaduais, estes exemplos tornam-se mais
evidentes. Algumas equipes participam dos eventos recebendo de seus
clubes e/ou patrocinadores apenas os valores para o custeio das despesas
relativas a esta participação (transporte, alojamento e alimentação), não
conseguindo receitas para remunerar seus atletas e comissão técnica. Em
outras equipes, as despesas gerais são rateadas entre os próprios atletas.
Observemos que a modalidade ainda não conseguiu atingir um grau de
prestígio suficiente para que as equipes, mesmo nos seus principais
eventos, tenham as condições ideais para se manterem em igualdade
perante as exigências da lei.
Pareceu-nos que os legisladores operam em níveis macro, onde
suas fundamentações são observadas no esporte de alto rendimento, tendo
sempre o futebol como balizamento. Obviamente que seria difícil
289 - A equipe Metodista São Bernardo Handebol é patrocinada pela Petrobrás epela Univers idade Metodis ta.
290 - A equipe do Ipat inga - 7 de outubro, par t ic ipante da Liga Nacional de 2003,necessi tava de subsídios da prefei tura municipal da c idade de Ipat inga, em MinasGerais .
307
fundamentar as leis observando todas as querelas das distintas federações
e confederações, bem como os percalços das equipes nas distintas regiões.
No próximo capítulo, analisaremos a possibilidade de retorno à
condição de atleta amador permitida por determinação da CBF, o que é
denominado de reversão.
Observemos que, nas leis federais, essa possibilidade de reversão
é garantida apenas aos atletas de futebol considerados como
semiprofissional, conforme determinado pela Lei Pelé em seu artigo 45º,
parágrafo 3º.291
Todavia, essa reversão tem sido permitida ao atleta de futebol já
profissionalizado, independentemente de sua idade, desde o início dos anos
90, mas a lei federal apenas legislou parcialmente sobre esta possibilidade
em 1998 por intermédio da Lei Pelé.
Capítulo XIIIA reversão do profissionalismo – Que história é essa?
291 -“Ao completar dezoi to anos de idade, o at le ta semiprofiss ional de fu teboldeverá ser obrigator iamente prof iss ional izado, sob pena de, não o fazendo, vol tarà condição de amador, f icando impedido de par t ic ipar em competições entreprof iss ionais .” (Lei Pelé , nº 9 .615, 24 de março de 1998)
308
No ano de 1997 o Jornal Folha de São Paulo divulgou em Cadernos
Especiais uma série de reportagens denominada de País do Futebol.292
Nessas reportagens, veiculadas diariamente, apresentaram-se inúmeros
dados do alcance do futebol na sociedade brasileira, tais como:
envolvimento econômico em torno do jogo; número de clubes que surgem
pelo Brasil anualmente; salário dos jogadores; comportamentos de
torcedores, entre outros.
Em uma destas reportagens, Marcelo Damato demonstrava que o
abismo econômico criava um mundo de poucos milionários e milhares de
miseráveis.293 Vejamos que, na memória do cidadão comum, os dados
apresentados parecem diferentes diante da expectativa e da falácia popular
de que os jogadores de futebol são cidadãos muito bem sucedidos
economicamente.
Entre inúmeras discussões, gráficos, números comparativos,
chamou-nos a atenção a manchete da página 3: “Atleta voltam a ser
amadores em busca de melhores salários.” A princípio, pareceu-nos mais
uma frase de efeito para receber a atenção dos leitores, uma estratégia do
292 - Folha de São Paulo , 23 de fev. de 1997. Caderno Especial : País do futebol .(p.3)
293 - Referências salar iais dos jogadores brasi le iros através dos contratosregis trados na CBF.
Valores de referências(Em salár ios mínimos) 1996 (*) 2000 (**) 2002 (**)1 SM 50,8 44,91 47,291 a 2 SM 30,2 41,63 35,122 a 5 SM 8,2 5,82 8,45 a 10 SM 4,1 2,79 3,5410 a 20 SM 2,4 1,5 2,05+ de 20 SM 4,3 3,35 3,57
Fontes: (*) Folha de São Paulo: País do Futebol. Encar te Especial 23 de fev/1997. p .2 (**) O Globo: O retrato de uma i lusão chamada futebol. 25 de mai /2003. p .21
309
editor. Afinal, como conseguir melhores salários no espaço amador?
Vejamos o paradoxo: o jogador retorna ao status amador para conseguir
melhores salários. Nota-se que a batalha encampada pelos percussores do
profissionalismo nas décadas de 20 e 30 surge diante desta reportagem na
contra-mão da história, conforme pretendemos argumentar nas linhas
seguintes.
A reportagem demonstra em número reais que, a cada ano no
Brasil, milhares de jogadores abandonam a profissão. “Cerca de mil deles
fazem isso de forma oficial” (p.3), solicitando a CBF um novo registro de
amador, o que é chamado de “reversão”. Essa possibilidade é
fundamentada pela própria CBF, em suas Normas Orgânicas do Futebol
Brasileiro (NOFB), resolução nº 01/91, do livro IX, Capítulo I – Da
Transferência de Atletas Profissionais.294 O site oficial da instituição traz a
informação de que essa reversão está sobre a responsabilidade do
Departamento de Registros e Transferência. Quais seriam as justificativas
para um jogador optar por essa situação, uma vez que sabemos das
dificuldades de entrar para o seleto grupo de profissionais do futebol?
Faz-se necessário relatar que, sobre essa possibilidade de retorno à
condição de amador, não encontramos nenhuma procedência no estatuto da
FIFA.
294 - A seção IV (Da Reversão) per tence ao Tí tu lo IV (Das Transferências,remoções, reversões, contra tos , regis tros e inscr ições) das Normas Orgânicas doFutebol Brasi le iro , resolução aprovada pela d iretoria , em 21 de fevereiro de1991, e sancionada pelo Presidente Ricardo Terra Teixeira.
310
A reportagem colocava que essa reversão “significa quase sempre
o abandono de um sonho – conquistar fama e fortuna no futebol.” (p.3) Mas
por qual motivo abandonar os sonhos?
O editor da reportagem diz acreditar que esse abandono se dê na
perspectiva de buscar “uma renda estável em outra profissão ou até um
salário informal num clube de amador.” (p.3)
Por que então solicitar o desligamento oficial, uma vez que
juridicamente o jogador de futebol não é proibido de exercer outra profissão
de forma regulamentar pelas leis do trabalho? Uma das justificativas desta
reversão estaria nas ligas de futebol amador, que em algumas regiões do
país apresentam maior interesse dos que os campeonatos oficiais. Estar
liberado, através da reversão, pela CBF significa o direito de jogar nestas
ligas, representando uma empresa que poderá lhe oferecer um emprego
estável. O artigo 255º da NOFB estabelece as condições necessárias para
que se possa processar esta reversão:
“Art. 255º - A reversão com transferência, para integrar quadro deassociação de futebol classista, far-se-á com imediata condição dejogo, desde que:
a) Haja concordância da associação com a qual o atletamanteve o ultimo contrato;
b) O contrato tenha terminado, por decurso de prazo ou porresilição, há mais de trinta ou há mais de noventa dias,respectivamente;
c) Prove o atleta, com carteira de trabalho regularmente anotadae assinada, ser empregado da empresa há mais de 180 dias.”
Outros atletas, no entanto, recorrem à reversão acreditando que
com este retorno a classe amadora poderá estar liberada para firmar novo
311
contrato. Neste caso, reversão permitiria abandonar o vínculo com o clube
que o mantém preso ao seu quadro de atletas, que muitas vezes não o
utilizará como membro da equipe de competição295, inviabilizando, desta
forma, a realização de uma transferência ou um contrato mais vantajoso. A
reversão para alguns poderá tornar-se uma nova perspectiva profissional
dentro do esporte, não ficando no ostracismo, sem boa remuneração (ou
nenhuma), apenas numa equipe de treino. Significaria a possibilidade de
continuar sonhando e estar em alguma vitrine no mundo do futebol.
O artigo 258º estabelece o prazo de 720 dias contados da data de
reversão para que o atleta profissional revertido a amador possa novamente
integrar uma equipe de profissionais. Vejamos que permanece o sonho de
conseguir uma nova equipe e se estabelecer no futebol profissional.
Entretanto, o atleta deverá esperar quase dois anos sem poder fazer parte
de competições oficiais. Para os atletas mais novos, talvez esta solução seja
a possibilidade de retorno ao esporte. Aos jogadores considerados
veteranos,296 talvez o tempo que deverá permanecer fora dos gramados
seja crucial.
295 - Exemplo deste v ínculo pode ser v is to no quadro de at le tas regis trados na CBFpelo Palmeiras e Vitór ia - BA. No dia 6 de abr i l de 2004 a CBF divulgou que oclube mantém o regis tro de 140 at le tas , sendo que outros o i to (3 novos contratose 5 a t le tas emprestados) não apareciam nesta l is ta . O Clube Vitór ia – BA mantém104 at le tas sob contrato . (Jornal Lance, 23 de abri l de 2004. p . 6)Uma equipe de “ponta” no futebol brasi le iro geralmente u t i l iza , em média, 30at le tas por competição. (Jornal dos Sports , 19 de fevereiro de 2002, p . 13)
296 - No futebol , o a t le ta que se aproxima dos 30 anos passa a ser consideradoveterano.
312
Alguns atletas que solicitam a reversão sonham poder firmar um
contrato internacional em países que ainda não apresentam grandes
tradições no futebol, conforme relata o agente Viana297:
“Inúmero jogadores decepcionados com as possibilidades deconseguirem um bom contrato no Brasil, buscam a solução empaíses sem expressão no mundo da bola. Após a reversão muda-se para alguns países onde o sonho possa continuar.”
O diretor do Departamento de Registro e Transferência da CBF, Sr.
Luiz Gustavo Vieira, disse que, geralmente, a idade elevada é o fator que
mais influenciava na reversão, porém, muitos jovens também solicitavam a
volta à condição de amador. Sr. Luiz Vieira justificava que essa contra-mão
do profissionalismo se devia ao baixo salário e também às brigas dos
jogadores com seus clubes.
Segundo Sr. Luis Vieira, embora os clubes possam questionar essa
reversão, argumentando acerca do direito adquirido sobre a compra do
jogador e/ou sobre sua formação, os jogadores sempre têm os pedidos
atendidos.
Antonio Galante, agente da FIFA, argumenta que
“infelizmente os clubes, em sua grande maioria, não preparam osjogadores que não são aproveitados. Muitos foram tirados desuas famílias, muitas pobres e vêem-se da noite para o dia semcasa, comida e convívio social.” (p.50)298
297 - Viana, Marco Aurél io (2000). Ainda há esperança. . . O sonho não acabou!Si te: www.gabineteesport ivoglobal .com.br /not iciar iobrasi l
298 - Awi, Fel l ipe & Castro Lúcio de. (2003) . O retrato de uma i lusão chamadafutebol . In : Nos porões do futebol . Jornal o Globo, Pr imeiro Caderno. Rio deJaneiro. (p .50)
313
O desligamento da condição de profissional do futebol abre as
portas para que alguns jogadores sejam contratados por empresas em
diversos segmentos econômicos que estão “mais interessadas em seu
futebol do que na sua competência na nova profissão” (p.3). A reportagem
afirmava que as indústrias os contratavam preocupadas com a disputa dos
Jogos Operários, “no qual o título rende prestígio para o dirigente da
empresa que o conquista.”(p.3) Vejamos que essa situação também era
comum nos anos 20. Os sócios endinheirados dos principais clubes
empregavam em seus estabelecimentos comerciais os jogadores que faziam
parte da equipe de futebol do seu clube. (Cunha s/d: 83) Todavia, naquele
momento, o emprego destes jogadores era uma forma de encobrir a farsa e
burlar as leis que proibiam que pessoas desempregadas pudessem
participar das competições oficiais (Pereira, 2000). Agora o processo é
inverso. Se por um lado o jogador revertido vê neste retorno a condição de
amador a possibilidade um emprego estável em uma empresa, por outro, a
empresa que o contrata quer mesmo é a sua competência esportiva.
Esse processo de reversão tornou-se um comportamento muito
comum, embora pareça despertar pouca importância. Vejamos os números
nos quadros abaixo:
Quadro 03 - Número de atletas que solicitaram oficialmente a reversão deprofissional para amador entre 1992 e1996 299
299 - Folha de São Paulo , 23 de fev/1997. Caderno Especial : País do futebol . (p .3)
314
1992 1993 1994 1995 1996 2002300
1091 1225 1318 993 1010 1034
Fontes: Folha de São Paulo - Especial País do Futebol, 23 de fevereiro/1997, p.3
Os dados de 1997 foram apresentados detalhadamente por região e
por Estado (Quadro 04):
Quadro 04 – Números absolutos de jogadores que foram profissionalizadose de jogadores que solicitaram a reversão na CBF
Sul
Profissionalização ReversãoParaná 122 75Rio G. do Sul 199 81Santa Catarina 91 89
Região Norte
Profissionalização ReversãoAcre 30 0Amazonas 62 0Amapá 1 7Pará 72 4Rondônia 18 0Roraima 57 0Tocantins 50 9
Nordeste
Profissionalização ReversãoAlagoas 82 0Bahia 140 29Ceará 204 20Maranhão 55 0Paraíba 28 0
300 - Relatór io Anual da CBF - Ano 2002.
315
Pernambuco 242 11Piauí 36 0R.G. do Norte 94 85Sergipe 76 1
Centro-Oeste
Profissionalização ReversãoDistrito Federal 98 40Goiás 99 16Mato Grosso 24 11Mato.G.do Sul 45 11
Sudeste
Profissionalização ReversãoEspírito Santo 45 31Minas Gerais 140 96R. de Janeiro 418 68São Paulo 683 333
Fonte: Folha de São Paulo - Especial País do Futebol, 23 de fevereiro/1997, p.3
Observemos que nas regiões economicamente mais desenvolvidas
do Brasil (Sudeste e Sul), onde estão os principais clubes profissionais de
futebol, também estão os principais parques industriais. De acordo com os
quadros apresentados, constata-se que nestas regiões também ocorriam os
maiores números de solicitações de reversão. Vejamos que, no Estado de
São Paulo, ocorreu 48,75% de reversão em relação ao número de jogadores
que se profissionalizaram. Em Santa Catarina, o número foi ainda mais
expressivo, onde a proporção profissionalização e reversão foi de 97,80%.
316
No ano de 2002,301 4.778 jogadores foram registrados como
profissionais e 6.529 rescindiram o contrato com seus clubes. Neste mesmo
ano, também 1.034 jogadores solicitaram a reversão para o amadorismo.
A reportagem da Folha de São Paulo traz ainda como ilustração a
trajetória de Reinaldo Xavier, que foi jogador do Palmeiras nos anos de 1982
e 1983. Reinaldo foi um destes atletas que, após percorrer alguns clubes do
interior Paulista e ser vendido para uma equipe do Oriente Médio, solicitou a
CBF a reversão do seu status de profissional e retornou oficialmente à
condição de amador, colocando fim em uma carreira iniciada nos juniores do
Coritiba do Paraná, em 1980. Revelou o ex-profissional que inclusive foi
cogitada a sua convocação para a seleção brasileira no período em que
estivera jogando na equipe do Palmeiras.
Antes de conseguir a reversão, porém, havia solicitado o passe livre
acreditando que pudesse se transferir para outras equipes. O passe livre
seria a sua possibilidade de continuar sonhando com o mundo da bola,
buscando um novo contrato profissional que pudesse atingir suas
expectativas de atleta. Entretanto, como não obteve êxito e estava
desempregado, teve que se mudar para Taubaté, cidade de origem da
família de sua esposa, localizada no interior paulista. Desfeito o sonho de
continuar como profissional esportivo através do passe-livre, Reinaldo via a
oportunidade de trabalho em uma montadora da Volkswagen e sabia que
essa possibilidade seria viável pela sua habilidade com os pés. Todavia,
ainda registrado como profissional na CBF, não poderia jogar pela equipe da
301 - Relatór io Anual da CBF. Depar tamento de Regis tros e t ransferências.
317
Volks na Liga Amadora de Taubaté, fato que motivou o pedido de reversão.
O próprio Reinaldo declarou não saber como se processava essa situação
e, por isso, um diretor da Liga de Taubaté cuidou de tudo. Reinaldo passou
a ser um operário da empresa multinacional, que passou a representar a liga
amadora.
Essa é mais uma demonstração dos problemas em torno do
conceito. A partir do momento em que, na condição profissional, o jogador
não está conseguindo rendas suficientes para sua manutenção, recorre à
condição de amador para conseguir via futebol um melhor salário.
Obviamente ele não estará enquadrado como um profissional da bola na
folha de pagamento da empresa que o contratar. Sua força de trabalho
inicialmente deverá ser estabelecida pela sua competência esportiva, ou
pela competência específica para a indústria?
Capítulo XIVConsiderações acerca dos termos amador e profissional nasleis brasileiras
O objetivo deste capítulo não foi o questionamento da validade ou
aplicabilidade das leis implantadas ao longo da história do esporte nacional.
Sua aplicabilidade e validade foram funcionais a alguma medida que se fazia
necessária em determinado momento da história política nacional, buscando
atender os anseio e o interesse de variadas espécies, tais como: a melhoria
do esporte; a criação de uma cultura esportiva internacional; a educação via
318
esporte; as expectativas dos dirigentes; controle político sobre as
manifestações esportivas etc.
Nossa intenção estava voltada para entender como os conceitos
que determinam o status de engajamento ao esporte são apropriados pelos
textos leis.
Portanto, compreender este processo de consolidação das leis que
gerenciam o esporte nacional, bem como os embates originados durante a
consolidação de algumas destas, torna-se útil uma vez que nossa
perspectiva é a compreensão dos conceitos e das articulações estabelecidas
no seio do esporte brasileiro.
Vejamos que, apesar de as leis determinarem o status de vínculo do
atleta e das atividades, elas não conseguem uma definição que se possa
apontar com clareza os limites de abrangência promulgados nas definições
de algumas delas.
Podemos perceber, ainda, que o debate, as mudanças, as querelas;
praticamente todas estavam relacionadas ao futebol. Portanto, os textos-leis
que regem o esporte nacional sustentam-se nessa modalidade como
referência para quase todos os embates. Ser profissional ou amador no
esporte estabelece-se sobre os parâmetros utilizados para avaliar o
pertencimento ao futebol.
Vejamos no quadro comparativo (Quadros 05, 06, 07 e 08 nas
páginas seguintes), como as denominações e conceituações aparecem na
redação dos textos-leis, criando aberturas e fechamentos que dificultam uma
apuração de julgamento de algumas situações e de status de alguns atletas,
319
até mesmo aos jogadores de futebol, para os quais a maioria das leis foi
fundamentada.
Pareceu-nos que o conceito acerca de amador perde força nos
textos-leis, visto que a legislação, na maioria das vezes, direciona seu foco
de análise para o vínculo profissional. As querelas do esporte nacional dizem
respeito principalmente ao compromisso profissional no futebol. O conceito
amador neste contexto aparece marginal, como um enclave que deve ser
referendado, mas que não sabem muito bem o que fazer dele. Afinal o que é
ser amador diante das novas diretrizes do esporte mundial? Em que medida
os legisladores conseguem entender as abrangências desta especificação?
Na Parte 1 deste estudo, apresentamos as dificuldades encontradas
pelos principais órgãos esportivos internacionais e seus dirigentes em
determinar os limites para essa conceituação, mesmo em períodos onde o
interesse econômico parecia não ser tão acentuado. Vimos, ainda, que a
tensão entre os comportamentos dito amadores e o vínculo profissional vem
se arrastando nos movimentos esportivos internacional. O próprio COI
realizou varias tentativas de controle sobre o perfil amador, mas percebeu
que os novos rumos do esporte não permitiam a determinação, inclusive
optou por retirar o termo amador dos seus textos mais recentes.
Portanto, a legislação esportiva brasileira, embora tenha sido em
algum momento traçada e orientada por competentes profissionais do
esporte, no momento da sua tramitação e aprovação ficavam à mercê dos
parlamentares que não conseguiam sustentar uma discussão muito
profunda. As leis, em geral, são oficializadas na tentativa de agregar os
320
interesses dos grupos envolvidos com o futebol, ‘a bancada da bola’, que
muitas vezes não estão preocupados com o desenvolvimento do esporte em
geral, mas simplesmente manter a estrutura do futebol que os beneficia.
As novas tentativas sugeridas por algumas leis (Lei Michel Theme,
Lei Zico e Lei Pelé) desnortearam grande parte dos interesses dos principais
dirigentes esportivos, seus clubes e também do órgão de maior prestígio do
esporte brasileiro, a CBF. Desta forma, as pressões políticas evitaram (e
ainda evitam) uma reforma estrutural ampla no esporte nacional, embora
muito já tenha sido feito, como apontou Tubino (2002).
Podemos perceber ainda na atualidade, que, na eminência de
modificação das leis, alguns legisladores e personalidades do mundo
esportivo deslizam nas argumentações, quando da utilização do termo
amador, que originalmente teria sido adotado como valor e status social para
uma classe de privilegiados. Como exemplo, podemos perceber a
declaração de Zico302, no “Fórum: Futebol, o desafio dos anos 90”, em Porto
Alegre, quando conclamou que o futebol deveria “ser tratado e administrado
de forma profissional, deixando de lado o amadorismo e o paternalismo que
existem hoje em dia.” (p.18) Observemos que o termo amadorismo na sua
declaração assumia uma função desqualificativa, significando uma atividade
rudimentar e pouco racional.
Vejamos que Bebeto de Freitas, presidente do Botafogo, ao
anunciar a criação da empresa Futebol S.A. para gerenciar a modalidade,
302 - Coimbra, Artur Antunes. (1991) . (Resumos dos rela tos) . In : Palestra . Fórum –
Futebol, o desaf io dos anos 90. Por to Alegre, RS. Universidade Federal do RioGrande do Sul .
321
também trabalha com a idéia do conceito de amadorismo como
desqualificativo. Para ele, o funcionamento do Botafogo Futebol S.A.
“significa profissionalismo, transparência, credibilidade e dedicação. Todos
vão ser remunerados e trabalhar 24 horas em função do clube. O Botafogo
dá adeus ao amadorismo.” (p.27) 303
Estes exemplos visam apenas exemplificar a dificuldade que os
conceitos provocam em diferentes contextos e análises.
Na seqüência apresentaremos 4 quadros comparativos das leis
abordadas, onde o propósito é observar a flutuação dos conceitos nos
textos-leis.
Quadro 05Conceituações entre status do atleta, organização, práticas, competições eentidades esportivas nas leis esportivas nacionais da Era Vargas até os anos 80
LEISLei nº 3.19114 /04/1941
Lei nº 6.25108/10/1975
Lei nº 80.22825/08/77 304
Status dosatletas:
Art. 3º:AmadorismoProfissionalismo
Art. 42º:Amadores e Profissionais
Art. 69º:Refere-se aprofissionalismo nasseguintes modalidades:Futebol, automobilismo,motociclismo, pugilismo egolfe.
Art. 75º:Atletas profissionais
Tipos depráticasesportivas:
Art.64ºPrática profissionalPrática amadorista
Art. 23º: Art. 30º:
303 - Penido, Marcos. (2004). Aper tem os cin tos, vamos decolar . Entrevis ta deBebeto de Frei tas - Presidente do Botafogo. In : Jornal o Globo. Pr imeiro Caderno.01 de janeiro de 2004. p . 27
304 - Regulamentação da Lei nº 6 .251 de 08/10/1975
322
Quanto à formade organização:
Art. 3º:Desporto educativo
Desporto amador, sobreresponsabilidade doCOB
Art. 10ºResponsabilidade doSistema DesportoNacional:I – ComunitárioII – EstudantilIII – MilitarIV – Classista
I – ComunitáriaII – EstudantilIII – MilitarIV – Classista
Art. 21º:Desporto de MassaDesporto de Alto Nível
Tratamentoespecial àmodalidade:
Nenhuma Futebol Futebol (CBD)
323
Quadro 06Conceituações entre status do atleta, organização, práticas, competições eentidades esportivas nas leis esportivas nacionais da Constituição de 1988 esuas regulamentações
LEIS Constituição de1988
Lei 7.752Lei Mendes Thame14/04/1989
Decreto-Lei nº 98.59518/12/1989 305
Status dos atletas: Não há referência Não há referência Não há referência
Tipos de práticasesportivas:
Art.217º:FormaisNão-formais
Título da Lei:Desporto Amador
Art.2ºFormação desportivaescolar e Universitária.Programa desportivopara: menor carente,Idosos, e deficiente físico
Título da Lei:Desporto não-profissional
Quanto à forma deorganização:
Art. 217º:Desporto profissional enão-profissional
Desporto educacional
Desporto de altorendimento;
Manifestação desportivade criação nacional
Não há referênciaArt. 27º:Esporte amador
305 - Esse decreto regulamenta a Lei nº 7 .752 de 14 de abr i l de 1989.
324
Quadro 07Conceituações entre status do atleta, organização, práticas, competições eentidades esportivas nas leis esportivas nacionais da Lei Zico a Lei Pelé
LEISLei nº 8.672Lei Zico06/07/1993
Decreto 981Regulamenta a LeiZico 11/11/1993
Lei nº 9.615Lei Pelé24/03/1998 306
Status dos atletas:Art.5º:ProfissionalNão-profissional
Art.20º:Profissional
Art.7º:Profissional
Art. 36:Semi-profissional
Art. 43:Amador
Tipos de práticasesportivas:
Art. 2º:Desporto profissionalDesporto não-profissional
Art.28º:Desporto EducacionalDesporto militar
Art.1º:Práticas formaisPráticas não-formais
Art. 2º:Desporto profissionalDesporto não-profissional
Art. 6º:Desporto educacional
Art.2º:Práticas formais;Práticas não-formais.
Desporto profissional;Desporto não-profissional.
Quanto à forma deorganização:
Art.3º:Desporto de rendimento
I – ProfissionalII – Não profissional: a) Semi-profissional b) amador
Art. 22º:Entidade de práticadesportiva empregadora
Art. 42:Esporte amador
Art. 3º:Desporto de rendimento:I - Modo profissional;II – Modo não-profissional: a) semi-profissional; b) amador.
Art.7º:Desporto educacional;Desporto de criaçãonacional;Desporto para portadoresde deficiência.
Art. 44º:Desporto militar
Tratamentoespecial àmodalidade:
Nenhuma Nenhuma Art. 36º:Futebol
306 - Regulamentada pelo Decreto nº 2 .574 de 29 de abr i l de 1998. Este Decretodemonstra um tra tamento diferenciado ao Futebol.
325
Quadro 08Conceituações entre status do atleta, organização, práticas, competições eentidades esportivas nas leis esportivas nacionais da Maguito Vilela as leis atuais
LEISLei nº 9.981Lei Maguito Vilela14/07/2000
Medida ProvisóriaNº 2.141-3 307
21/06/2001Lei nº 10.67215/05/2003 308
Status dos atletas:
Art. 30º:Profissional
Art. 38º:Não-profissional
Art. 84º:Atleta servidor públicocivil ou militar
Art. 46º:Profissional
Art.29º:ProfissionalNão-profissional
Tipos de práticasesportivas:
Art. 27º:Competiçõesprofissionais
Art. 3º:Não-profissional
Art.2º:Desporto profissional
Desporto não-profissional
Quanto à forma deorganização:
Art. 26º:Entidade de práticadesportiva participante decompetições profissionais
Art. 29º:Entidade de práticadesportiva formadora
Art. 26º:Competição profissional
Art. 27º:Entidade de práticadesportivas participantesde competiçõesprofissionais
Art 29º:Competição oficiais nãoprofissionais
Tratamentoespecial àmodalidade:
Futebol Futebol Futebol
Vejamos que a primeira lei esportiva brasileira, Lei nº 3.199/41,
provavelmente fortemente influenciada pelo futebol, como esporte de
primeiro plano na cultura nacional, estabelece uma distinção entre amadores
307 - Essa medida provisór ia al terou novamente a Lei nº 9 .615 (Lei Pelé) de 24 demarço de 1998
308 - Essa le i a l terou disposi t ivos da Lei nº 9 .615 (Lei Pelé) de 24 de março de1998.
326
e profissionais. O amadorismo deveria estar vinculado aos valores
educativos, ao mesmo tempo em que se buscava uma vigília sobre o
profissionalismo, sobre a égide do princípio da moralidade.
Tais conceitos nos textos-leis mantiveram-se até 1975, apesar da
dinâmica do desenvolvimento esportivo em geral. Com a edição da Lei
6.251/75, novos conceitos foram agregados quanto à forma de organização
do esporte nacional (Comunitário, Estudantil, Militar e de Classe). Surgiu
também uma subvenção destinada ao futebol, quando se estabeleceu que
um dos concursos da loteria esportiva seria destinado à preparação a
delegação brasileira nos anos de campeonatos mundiais (Art. 48º).
Observemos que a vigilância e desconfiança sobre o esporte profissional
desaparecem desta nova lei. É como se as tensões oriundas da instauração
do profissionalismo nos anos de 1930, que permaneceram recorrentes até a
implantação da Lei 3.199/41, já tivessem sido dissipadas (ou encerradas) no
processo de instauração da Lei 6.275/75.
A Constituição de 1988 e a Lei 7.752/89 não fazem mais referência
ao status dos atletas. Passa a existir uma nova conceituação sobre o tipo de
prática esportiva denominadas de formais e não-formais. Essas novas
denominações parecem expressar a dificuldade de se encontrar uma
terminologia que consiga balizar todas as manifestações. Desta forma, a
utilização destas expressões facilitaria as divagações necessárias para não
colocar um gesso no cumprimento da lei.
327
A Constituição de 1988 implantou novas diretrizes quanto à forma
de organização esportiva, que poderia ser: profissional, não profissional,
educacional, de alto rendimento e manifestações desportivas de criação
nacional. Observemos que o termo amador foi suprimido do texto-lei. A
instauração da Constituição de 1988 consolidou a abertura de espaço para a
discussão do esporte nacional. Embora o tema esporte não despertasse
grande interesse naquele momento, observou-se que os debates foram
intensos nos anos seguintes.
Na Lei 7.752/89 e sua regulamentação por intermédio do Decreto-
Lei 98.595/89, a palavra amador retorna na definição do tipo de prática e
também quanto à forma de organização esportiva. Neste momento, pareceu-
nos que o interesse governamental era subsidiar apenas o esporte de
caráter educativo e de lazer. Observemos que a definição de amador se deu
com o estrito interesse de se definir o que deveria ter o incentivo fiscal.
Nesta perspectiva, não havia a preocupação com o status do atleta.
Na Lei Zico (8.672/93) e no decreto que a regulamentou (Decreto nº
981/93) a expressão amador para determinar o status do atleta também não
apareceu nos textos-leis. Todavia, o Art. 42º volta a conceituar o esporte
amador quanto à forma de organização. A Lei Zico e sua referida
regulamentação classificavam o esporte como: profissional, não-profissional,
educacional, militar e de rendimento. Vejamos que a expressão não-
profissional surge como oposição ao profissionalismo, pois parece que os
legisladores já percebiam que o termo amador não era suficiente para
328
determinar todas as manifestações que poderiam ocorrer fora do limite do
esporte profissional.
A lei Pelé (9.615/98) fez retornar o termo amador referindo-se ao
status do atleta. Surgiram três possibilidades de prática esportiva:
profissional, semi-profissional e amador. Esta lei passou a apresentar o Art.
36º específico acerca do futebol, o que havia sido descartado desde a
Constituição de 1988.
As leis subseqüentes (Maguito Vilela, Medida Provisória nº 2.141-
3/2001 e a Lei nº 10.672/2003) foram reflexos das tensões provocadas pelas
Leis Zico e Pelé. A “bancada da bola”, atendendo a exigências e solicitações
dos principais clubes de futebol brasileiros que julgavam impertinentes as
referidas leis, buscou novas medidas para manter o controle do futebol
brasileiro, em detrimento à tentativa de moralização que os textos das leis
Zico e Pelé objetivavam alcançar. Nota-se que os novos textos-leis se
estabeleciam praticamente sobre a modalidade de futebol.
Nesta parte do estudo, tentamos demonstrar as dificuldades de se
estabelecer em conceituações apropriadas para o termo amador nas leis
brasileiras. Constatou-se que, pela falta de clareza em alguns momentos, a
opção foi a retirada do termo no que se referisse ao status do atleta,
transferindo-o ora para o tipo de prática, ora para a forma de organização.
Os legisladores em alguns momentos optaram por realizar uma
conceituação de amadorismo de forma invertida, inserindo as expressões:
não profissional, semiprofissional e modo não-profissional, utilizadas nas leis
329
mais recentes - Lei Zico e sua regulamentação e também na Lei Maguito
Vilela.
As modificações implementadas nos textos-leis parecem ter sido
embasadas nas querelas particulares do futebol, que, em alguma medida,
mesmo de forma tácita, passaram a de determinar o que deveria prevalecer
em outras modalidades. Desta forma, o futebol no curso de seu
desenvolvimento na sociedade brasileira apesar de não ser citado
explicitamente em todas as leis, encontrava-se presente nas entrelinhas,
como caráter central.
330
PARTE 4
A PERMANÊNCIA DAS NARRATIVAS AMADORAS NOCONTEXTO DO FUTEBOL PROFISSIONAL
“Dodô, seu pipoqueiro, eu to sabendo que seu negócio esó dinheiro.”309
Nessa parte do estudo será apresentada marca da permanência de
alguns valores do amadorismo que são freqüentemente empregados no seio
do esporte profissional. Em contrapartida, se pode constatar que em
algumas situações o discurso profissionalista é enfatizado no sentido de
contrapor-se ao comportamento dos atletas que tomam o esporte, o jogo,
sem a seriedade requerida. Nota-se que, o discurso que aborda o
amadorismo e o profissionalismo tem uma estrutura pendular, tendendo-se
para o lado que no momento da discussão em questão for capaz de
309 - Programa Globo Esporte – TV Globo. Repor tagem veiculada no dia 19 desetembro de 2002 acerca do jogo entre Palmeira x Ponte Preta , real izado no dia 18de setembro de 2002.
331
corresponder ao apelo emocional e às expectativas dos atores envolvidos
(torcedores, dirigentes, imprensa e jogadores). Ambos, amadorismo e
profissionalismo sustentam-se numa demanda de cunho emotivo.
O jogador de futebol é, por excelência, uma figura pública e célebre
na sociedade brasileira. Freqüentemente, encontra-se diante da
necessidade de explicar suas ações e comportamentos na esfera pública ou
privada - efeitos das mudanças sociais apontadas por Richard Sennett
(1988).310 Seus momentos de intimidade são constantemente monitorados
pelos dirigentes, pela mídia e pelos torcedores. Seu lazer deve adequar-se
aos ideais ascéticos do esporte, representando a disciplina e a retidão de
caráter para bem representar o clube, a pátria e os valores morais para
juventude.
Durante a eliminatória para a Copa de 2002, após um empate entre
o Brasil e o Peru (Jornal Extra - Caderno Jogo Extra, 27, abr/2001), os
jogadores Vampeta, Romário e Edílson foram repreendidos pela imprensa,
por terem ido a uma boate naquela noite após o jogo. O Brasil vinha
acumulando resultados negativos nas eliminatórias e também em jogos
amistosos. Pelas eliminatórias, perdeu para o Chile e o Paraguai, gerando a
incerteza de que o Brasil ficaria com uma das quatro vagas destinadas aos
países sul-americanos. Aquele empate com o Peru teria deixado os
torcedores e a imprensa desacreditados. Inclusive Zico (ídolo do futebol
brasileiro nos anos 80) dizia estar em dúvida quanto à classificação (Jornal
310 - Sennet t , Richard. (1989). O decl ínio do homem público – As tiranias daint imidade. São Paulo . Companhia das le tras .
332
Extra - Caderno Jogo Extra, 30, mar/2001, p.6).311 O Jornal O Dia trouxe em
sua capa em letras destacadas a frase FALTA VERGONHA, tendo quatro
fotos ocupando 2/3 da página (Vampeta, Edílson, Romário e o Senador
Antonio Carlos Magalhães - ACM), onde criticava a atuação da seleção
brasileira e do Senador da república:
“Depois do vexame, a festa. Em meio ao escândalo, agargalhada. Os torcedores ainda estavam em choque com o 1 a 1entre Brasil e Peru, quando Romário, Edílson e Vampeta acharamque já era hora de se divertir. Mesmo com a classificação para aCopa ameaçada, foram badalar na madrugada paulistana.Deixaram o campo sob vaias e entraram aos risos na nova boatede Vampeta. ‘O negócio é aproveitar a noite. A Seleção jápassou’, minimizou Edílson.” (p.1)
O Senador ACM naquele dia havia admitido que mentiu por três
vezes sobre a violação do painel eletrônico na cassação do colega Luiz
Estevão.312 Finalizando a matéria, o jornal acrescenta:
311 - A revis ta Época também veiculou uma matér ia denominada O Racionamentoda Bola , af i rmando o desapontamento do torcedor brasi leiro com a seleção quecorr ia o r isco de pela pr imeira vez, não disputar uma Copa. Paulo Rober to Falcão,ex-jogador da seleção argumentou que “qualquer t ime com um pouco detreinamento tem chance de jogar de igual para igual com o Brasi l” . (p .78) .Vejamos que a argumentação do pess imismo era moeda corrente no per íodo dasel iminatór ias . Cardoso, Maurício , Padil la , Ivan Saint-Clair e Mendonça Martha.In : Revista Época, 11 de jun/2001, Ano IV nº 160. 76-83p
312 - Luis Estevão foi senador da república pelo Distr i to Federal . Envolto aescândalos f inanceiros com dinheiro públ ico, fo i dest i tu ído do cargo, a través deuma CPI.
334
“O plenário mais elevado da Nação, o Senado, e a maior paixão doPaís, o futebol, padecem da mesma carência: vergonha. Ahumilhação nos campos e a quebra das regras na política parecemnão provocar nem mesmo constrangimento. Viram cenascorriqueiras, risíveis. Só que eles não estão rindo a toa. Estãorindo da nossa dignidade. Estão rindo desavergonhadamente dosbrasileiros. Mas, do lado de cá, ninguém acha graça.” (Jornal ODia, 27 de mar/2001, p.1)
Observemos como o policiamento acerca do cotidiano do jogador é
acirrado tal como na vida política. Vejamos a comparação que se tentou
estabelecer entre a atitude da violação ao painel da câmara federal, tendo o
Senador ACM como cúmplice, e o empate da nossa seleção de futebol com
o Peru. A seleção de futebol peruana é colocada como força menor dentro
das narrativas esportivas dos brasileiros. Portanto, um empate com esta
seleção desagrada a todos e coloca em cheque o estilo e a glória do futebol
brasileiro. Observemos que sair com os amigos, ter uma noite de
confraternizações, ir a uma boate, por exemplo, para profissionais das mais
distintas áreas, são ações recomendadas como atenuantes dos estresses
diários. Todavia, para os jogadores que perdem ou empatam um jogo
decisivo, a atitude deve ser de luto, pois estão em jogo a morte coletiva
(Vogel, 1982)313 e os valores ascéticos do esporte que se confundem com os
ideais profissionais do esporte. No contexto do esporte amador, as
confraternizações entre as equipes adversárias eram regradas por uísque e
313 - Vogel , Arno. (1982) . O momento fe l iz , ref lexões sobre o futebol sobre oethos nacional . In : DaMatta , Rober to . (Org) . Universo do futebol : espor te esociedade brasi le ira . Rio de Janeiro. Pinakotheke.
335
outras bebidas (Mário Filho, 1964). O que está em jogo quando os jogadores
de futebol estão fora do jogo?
Figura 11 – Jornal Extra – 30 de mar/2001 – Capa
Um discurso amador tende a emergir para ressaltar os vínculos
afetivos do jogador com o clube e a seleção nacional, entretanto, em outros
momentos, este compromisso é cobrado a partir de uma ética profissional.
Portanto, como o jogador opera nestas duas lógicas? Deve demonstrar em
suas narrativas marcas do vínculo, amor e pertencimento ou apresentar a
336
responsabilidade e a disciplina profissional em relação aos seus
empregadores? Talvez, a resposta seja ambígua em relação a essas éticas.
No entanto, quando assume a ética do profissionalismo e opta racionalmente
pela melhor oferta, a imprensa aciona o tenso debate entre o amor e o
interesse. De fato, o jogador deve se portar como um profissional, mas deve
demonstrar amor e vínculos sentimentais acima de seus interesses.314 O
amor e o pertencimento devem prevalecer sobre o interesse financeiro. O
pertencimento, o vínculo dever ocorrer de forma desinteressada, como um
elemento de distinção social do indivíduo. (Elias, 1993315; Bourdieu, 1983316)
Nosso propósito nesta parte do estudo é apresentar argumentos de
como estes discursos interagem e se distanciam dependendo do interesse e
do ponto de vista dos atores envolvidos (jogadores, torcedores, dirigentes e
a imprensa).
Partimos do pressuposto de que a tensão na narrativa midiática
entre os valores e comportamentos identificados como amadores ou
profissionais confunde-se com a popularização do esporte moderno.317 As
314 - Kastrup, Paulo. (2003) . O úl t imo vôo: Cast i lho o herói ant i -macunaíma dofutebol . (Disser tação de Mestrado) . Programa de Pós-Graduação em EducaçãoFísica. Rio de Janeiro. UGF. Em seu estudo, assume uma perspect iva em que ojogador, ou melhor , o verdadeiro herói do espor te , é o paradigma, deve ser umprof iss ional que coloque seus v ínculos afet ivos com o clube acima de seusinteresses econômicos ou prof iss ionais .
315 - El ias , Norbert . (1993). O processo civ i l izador: formação de Estado ecivi l ização. Rio de Janeiro. Jorge Zahar .
316 - Bourdieu, Pierre . (1983) Questões de sociologia . Rio de Janeiro . Marco Zero.
317 - Lovisolo comenta que não se pode pensar a popular ização do espor te modernosem a imprensa. Lovisolo , Hugo. (2001). Saudoso futebol , fu tebol quer ido: aideologia da denúncia. In : Ronaldo Helal , Antonio. J . Soares & Hugo Lovisolo. Ainvenção do país do futebol – Mídia, raça e idolatr ia . Rio de Janeiro . MauadEditora .
337
rápidas transformações ocorridas no campo esportivo (desempenho técnico
e tático, tecnologias, industrias de entretenimento e de matérias) e sua
autonomização como indústria do entretenimento, o conflituoso processo de
formação de ligas profissionais e amadoras, logo ainda em seu início,
culminaram com a afirmação do profissionalismo como tendência
hegemônica e democratização do acesso a esse esporte. Todavia, esse
processo não se deu sem lutas e vozes dos valores identificados como
amadores no seio de uma ética profissional. Pareceu-nos que, diante das
tensões entre os ideais amadores e profissionais, que o discurso de ordem
amador é utilizado como um contrapeso para se discutir e frear alguns dos
efeitos perversos que afloram devido ao comportamento profissional, sobre o
ponto de vista dos conservadores e românticos. O amadorismo, neste
aspecto, torna-se um contraponto para se discutir e questionar valores
sociais, tais como dedicação, empenho, competência, ganhar dinheiro e,
sobretudo, o pertencimento.
O debate acerca do vínculo do jogador já se fazia bastante intenso
no meio jornalístico desde as primeiras décadas do século XX, conforme
apontou Pereira (2000)318. O período de pré-consolidação319 do
profissionalismo foi rico em argumentos que caracterizavam a dicotomia
318 - Pereira , Leonardo A. de M. (2000) . Footbal lmania – Uma his tór ia social dofutebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro . Nova Fronteira .
319 - Chamamos de per íodo de pré-consolidação do futebol os anos f inais dadécada de 10 e todos os anos 20 do século XX. Neste per íodo, o debate acerca doenvolvimento do jogador de fu tebol com seus clubes tornava-se marcante nosjornais que cobriam os eventos espor t ivos.
338
existente entre os termos amadorismo e profissionalismo,320 como estrutura
de vínculo do jogador, conforme se pretendeu apontar no decorrer deste
estudo.
Mesmo depois de o futebol profissionalizar-se e ficar explícita a
importância do interesse financeiro no desenvolvimento do esporte e na
manutenção da vida econômica dos jogadores, o valor do ‘amor’ e da
‘paixão’ não poderia, pela própria estrutura de vínculo do esporte, neste
curto século e meio de existência, ser transformado em simples atividade
racional, em que apenas admiramos a competência atlética, assim como
admiramos a precisão de máquinas e computadores. O discurso do
amadorismo é de certa forma, a semântica encontrada nas narrativas para
falar de amor, paixão e agressividade que o esporte solicita de seus
protagonistas. Mesmo no profissionalismo, devem-se manter ‘vivas’ estas
marcas que enfatizem o comprometimento amador. Parece que os jornais
entendem que essa manutenção é necessária para a sobrevivência do
esporte.
Em nosso país a grande maioria das lentes da mídia esportiva,
principalmente a escrita, focaliza o futebol. E pelo interesse popular pelos
320 - Helal (2001) propõe que observemos que, à medida que o espor te fo i seprof iss ional izando e t ransformando em indústr ia , tornou-se “maior a necessidadede se entender o amadorismo e a paixão dos torcedores” como di lemas damodernidade:b “Do ponto de vis ta sociológico, estes confrontos entre oprof iss ional e o amador , entre o lucro e a paixão, entre o sagrado e o profano,t ransformam o universo espor t ivo em um emblema da convivência de sent imentosantagônicos re levantes para se compreender os di lemas da modernidade.” (p .153)Helal , Ronaldo (2001). Mídia , Construção da derrota e o mito do herói . In : Helal ,Ronaldo; Soares , Antonio J . & Lovisolo , Hugo. A invenção do país do futebol –Mídia , raça e idola tr ia . Rio de Janeiro . Mauad. 149-162p.
339
clubes e seleção nacional de futebol que se faz circular os periódicos
cotidianamente.321
Freqüentemente, a mídia322, diante de situações de desempenho
fraco ou apático de algumas equipes de expressão, correlacionadas com
problemas extrajogos (salários, competição interna de jogadores da mesma
equipe etc), invoca em suas análises valores traduzidos como amadores
(amor à camisa, raça, sangue) ou valores da relação profissional
(responsabilidade com os consumidores do espetáculo). Os fatos a serem
narrados são, de certa forma, condicionados pelos interesses dos
torcedores323 e/ou consumidores do esporte. Freqüentemente, os ideais de
amor, dedicação, cumplicidade em confronto como os compromisso
profissional são reeditados ao longo da história do futebol brasileiro.
Vejamos por exemplo à argumentação do ex-jogador Gaúcho,324 acerca da
‘honra’ e do ‘espírito de luta’, no jornal Lance, acerca do período de
turbulência por que passava o Botafogo ao ser rebaixado para a 2ª Divisão
321 - Observemos como exemplo os dois pr incipais jornais espor t ivos. No jornalLance, das 28 páginas d iár ias , 22 delas são dest inas ao fu tebol. O Jornal dosSports , d iar iamente são 12 páginas, sendo que 9 delas dest inada ao fu tebol . Essaproporção é mantida freqüentemente , exceto quando algum evento em outramodal idade receberá uma atenção especial , como Jogos Olímpicos, Jogos Pan-americanos etc . Mesmo nestas ocasiões, o espaço dest inado ao futebol é sempremaior .
322 - Jornalis tas aqui entendidos também como: cronis tas, comentar is tas ,ar t icul is tas , redatores etc .
323 - Ver : Damo, Arlei Sander (1998). Bons para torcer , bons para se pensar – osclubes de fu tebol no Brasi l e seus torcedores. In : Motus Corporis . Revista deDivulgação Cient íf ica do Mestrado e do Doutorado em Ed. Fís ica. Rio de Janeiro .Edi tora da UGF. Vol 5. n .2 11-48p
324 - Gaúcho – Ex-zagueiro do Botafogo nos anos de 1981 e 1983, per íodo em quea equipe não chegou a conquistar nenhum t í tu lo de expressão, Jornal Lance, 25 dejan/2002. Repor tagem: Botafogo – Era melhor ou pior? - Saudade do je jum (p.18) .
340
do Campeonato Brasileiro em 2002. “Na minha época qualquer jogador tinha
honra de defender o Alvinegro. O nosso time era fraco tecnicamente, porém
tinha alma, coração, espírito de luta (...) O Bota atual é um cabide de
empregos para incompetentes, sem identificação.” Oportuno lembrar que no
período em que Gaúcho jogava no Botafogo (1981-1983) o clube não
conquistou nenhum título de expressão. Vejamos que essa imagem
apontada pelo ex-jogador torna-se emblemática, oportuna para o período de
crise. Essa identificação a que o jogador refere margea a análise entre a
competência e o sentimento, o compromisso profissional e a dedicação
incondicional, os envolvimentos financeiros e os ideais de amor etc., que
freqüentemente são imagens adotadas no campo esportivo. A mídia em
suas inclusões diárias na vida dos principais clubes brasileiros e da seleção
invoca esses dilemas como uma retórica de seus argumentos.
Lovisolo (2001), questiona a atitude dos jornalistas ao argumentar
acerca da roupagem que eles utilizam em suas matérias esportivas, dizendo
que para causar o interesse do leitor, as notícias são “tendenciosas, estão
preocupadas demais por refletir o extraordinário, o ‘acredite se quiser’ e
esquecem do comum, do ordinário, daquilo que para eles não é notícia.”
(p.91).
Segundo Toledo (2002)325, a mídia constrói e formata o discurso
acerca do futebol embasado nas falas dos profissionais e torcedores e o
fazem utilizando estratégias técnicas e ideológicas do discurso. Toledo
coloca que é por meio da mídia que o futebol alcança efetivamente a massa
325 - Toledo, Luiz Henr ique de. (2002) . Lógica no futebol . São Paulo. Huci tec,Fapesp.
341
de torcedores, se compararmos com o público que comparece ao estádio e
afirma que:
“ainda que a mídia filtre este futebol e estabeleça com ostorcedores uma relação mediatizada por discursos e aparatostecnológicos persuasivos, a construção de tais relações entreestes atores só pode ser compreendida porque este futeboltambém é de domínio de uma semântica popular, de sensocomum.” (p.18)
Souto (2002)326, argumenta que os jornais são responsáveis por
construir a memória sob uma ótica singular, atuando como um dos senhores
da memória da sociedade. Ao selecionar uma matéria, eleva-se “o
acontecimento a categoria de fato memorável, imutável, retransmitindo pela
fixação de seus aspectos destacados na narrativa.” (p.35). Este processo de
seleção dos fatos relega outros acontecimentos ao esquecimento, ou
mesmo determina sua circularidade, ao optar pelo local que o texto ocupará
nas páginas. Este processo de escolha do local e do enfoque estabelece a
dialética de lembrar e esquecer. “Os periódicos possuem em sua gênese o
caráter de transportar para a lembrança aquilo que figuraria no lugar do
esquecimento.” (p. 35)
326 - Souto, Sérgio Montero . (2002) . Imprensa e memória da Copa de 50: A glór iae a tragédia de Barbosa. (Disser tação de mestrado) . UFF. Niterói – Rio deJaneiro. O autor real iza um estudo acerca do papel da imprensa na construção damemória a par t ir do jogador Barbosa, ex-goleiro da seleção bras i le i ra quepar t ic ipou da campanha brasi le ira da Copa do Mundo de fu tebol de 1950, em queo Brasi l perdeu a f inal para a equipe uruguaia .
342
Le Goff (1984)327, denomina de ‘monumento de memória’, o fato de
o jornalista assumir uma forma de redação, transforma o documento numa
espécie de memória coletiva válida. Conforme Le Goff, ao se determinar o
fato que será publicado o jornalista estará domesticando e selecionando a
memória que será armazenado nos registros da eternização do fato.
Portanto, o jornalista e seu editor, ao viabilizarem uma notícia, estarão
colaborando para seu redimensionamento em outros momentos de análises.
Partes dos fatos são desprezadas ou condenadas ao esquecimento, o que
poderia provocar dificuldade de construção da história pelos novos
narradores.
Portanto, no futebol como em qualquer outro fato social, alguns
acontecimentos são sucumbidos pela falta de interesse despertado no
momento da sua ocorrência. Muitos fatos esquecidos nos “cantos” da
memória escrita, todavia, são capazes de auxiliar-nos na elaboração de uma
narrativa contemporânea, que por alguns motivos nem sempre tiveram
registros demarcados atentamente.
Partimos desta perspectiva para re-visitar alguns acontecimentos,
sabedores das limitações imperadas pela falta de interesse que alguns deles
possam ter ocasionado a imprensa naquele período, todavia esclarecemos
que nossa pretensão não é questionar a fidelidade das notícias com os
fatos, mas sim, analisar os discursos e seus fragmentos utilizados para
registrar a memória do presente e do passado.
327 - Le Goff , Jacques . (1984). Memória . In : Enciclopédia Einaudi . Memória -Histór ia . Vol. I . Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da moeda.
343
Na seqüência, apresentaremos quatro episódios que, durante
alguns períodos, forneceram argumentos às narrativas da mídia esportiva
brasileira sobre a tensão entre o amadorismo e profissionalismo no futebol, e
servem de suporte para nossas perspectivas analíticas.
Optamos por um “olhar” etnográfico dos conteúdos jornalísticos
veiculados, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro, acerca de alguns
fatos que julgamos estarem relacionados ao nosso contexto. Estes foram
divididos em dois momentos, sendo os dois primeiros ocorridos no final da
década de 60 até o ano de 1980. Os outros dois episódios são fatos que
passamos a acompanhar na imprensa carioca nos primeiros anos deste
novo século.
Como chegamos a tais episódios? Os capítulos XV e XVI decorrem
da leitura da historiografia do futebol brasileiro, quando percebemos que tais
acontecimentos parecem ter sido marcantes e provocaram efervescência na
imprensa esportiva nacional, gerando inclusive interesses da sociedade
acadêmica, como veremos no decorrer dos capítulos. Os capítulos XVII e
XVIII surgiram através do acompanhamento diário da mídia escrita nos
primeiros anos deste novo século.
No capítulo XV (Afonsinho – Uma voz inquietante ou um mito da
resistência?), analisaremos o episódio do jogador “Afonsinho”, ocorrido no
final dos anos 60 e início dos anos 70, quando, insatisfeito com sua condição
no elenco do Botafogo, se rebelou aos mandos dos cartolas e conseguiu na
justiça o seu passe livre, abrindo um precedente que marcaria
344
determinantemente as relações trabalhistas, a partir daquele instante, entre
os jogadores e seus clubes. Ao re-visitarmos este acontecimento, deparamo-
nos com outros episódios marcantes daquele período glorioso do futebol
brasileiro, a conquista do tricampeonato mundial no México.
No Capítulo XVI (Releitura do caso Bebeto – A transferência do
Flamengo para o Vasco da Gama), analisaremos o episódio da
transferência do jogador Bebeto, que, no final dos anos 80, deixou o
Flamengo e se transferiu para a equipe arqui-rival Vasco da Gama, gerando
um embate de elevada simbologia dentro do campo esportivo. Esta
transferência impulsionou várias narrativas acerca do comprometimento e do
vínculo entre o jogador e o clube. Tal acontecimento foi estudado por Helal e
Coelho em 1995, no texto denominado Modernidade e tradição no futebol
brasileiro: O “caso Bebeto”.328
Em um segundo momento analisaremos outros dois episódios:
No capítulo XVII (David Fischel – Um dirigente modelo),
observaremos as declarações do Sr. David Ficher, presidente do Fluminense
Football Club, sobre as novas perspectivas que demandam para o esporte
em tempo de crise financeira e a contratação de Romário para a temporada
do ano comemorativo do centenário do Fluminense;
No capítulo XVIII (Ronaldo Nazário – O homem de 100 milhões),
narraremos a rápida trajetória da vida esportiva do Ronaldinho e
328 - Helal , Ronaldo. & Coelho, Maria Claudia. (1995). Modernidade e t radição nofutebol Brasi le iro : O “Caso Bebeto no futebol brasi le iro . In: Pesquisa de Campo –Revista do Núcleo de Sociologia do Futebol; UERJ nº 2 (1995). 91-99p
345
principalmente a sua transferência da Internazionale de Milão para o clube
espanhol Real Madrid, após a Copa do Mundo de 2002, que gerou a
discussão acerca do envolvimento profissional.
346
Capítulo XVAfonsinho – Uma voz inquietante ou um ‘mito’ daresistência?
“O problema da barba é apenas um pretexto para metirar do time. Se eu fosse um jogador indispensável,não teriam me emprestado ao Olaria, sem nadareceber em troca.” 329
(Afonsinho)
Afonsinho330 surgiu ao final da década de 60 como uma promessa
do futebol brasileiro. Paulista do interior que aos 18 anos, recebeu “uma
proposta para realizar um período de experiência no futebol carioca”
(Florenzano, 1998, p.24). Passara, então, a partir daquela proposta, a
pertencer à equipe do Botafogo, que naquele momento representava uma
das mais expressivas forças do futebol brasileiro.331 Uma equipe formada
por Garrincha, Nilton Santos, Didi, Zagallo, Gerson, entre outros; jogadores
já consagrados e que estiveram presentes nas principais conquistas do
futebol brasileiro (Copas de 58 e 62). Para um jovem atleta, pertencer àquele
seleto grupo de atletas e ídolos bem sucedidos do futebol brasileiro poderia
329 - Jornal dos Sports , 28 de ago/1970, p .4.
330 - Uti l izaremos na tess i tura de nossas anál ises algumas falas de Afonsinho(Afonso Celso Garcia Reis) , da entrevista concedida em 1997, que estãopublicadas no l ivro de Florenzano, José Paulo (1998). Afonsinho & Edmundo – Arebeldia no futebol brasi le iro . São Paulo. Musa Editora.
331 - Na década de 60, juntamente com o Santos de Pelé, as duas equipesmantinham a hegemonia do futebol brasi le iro. Nesta década, o Botafogoconquis tou os seguintes t í tu los: Campeonato Car ioca 1961, 1962, 1967 e 1968;Torneio Rio-São Paulo: 1962, 1964 e 1966; e Taça Brasi l em 1968. In :Enciclopédia do futebol brasi le iro I – Lance. (2001). Rio de Janeiro/São Paulo.Arete Edi tor ia l S/A p.136
347
significar prestígio e dinheiro. Entretanto, ofuscado pelas demais estrelas
alvinegras, Afonsinho não teve uma passagem tranqüila pelo clube. Durante
sua carreira, que durou cerca de 20 anos, transitou em diversas equipes de
expressão nacional. Além do Botafogo, atuou pelo Santos (1972), Flamengo
(1973 e 1974) e Fluminense (1981 e 1982). Na Enciclopédia do futebol
brasileiro I, em sua seção destinada ao histórico dos jogadores, relata-se
que Afonsinho conquistou apenas um único título como jogador pelos clubes
por que passou, o de Campeão Carioca de 1967 pelo Botafogo. Todavia, a
mesma obra relaciona que o jogador pertencia ao elenco do Botafogo em
1968, ano em que o clube se tornou vencedor do Campeonato Carioca e da
Taça Brasil. A mesma obra também menciona que o jogador esteve
presente na equipe do Flamengo no ano 1974, quando a equipe rubro-negra
se sagrou campeã estadual.
Figura 12 – Afonsinho no Botafogo em 1968 – Em pé - Penúltimo à direita
Afonsinho se tornou, em sua época, um nome emblemático do
futebol brasileiro, mesmo sem ter em seu currículo grandes conquistas.
348
Como este jogador tornou-se emblemático? Afonsinho tornou-se conhecido
mais pela resistência aos desmandos dos cartolas do que por seu
desempenho em campo. Tal notoriedade se deu ao ter conseguido o passe
livre na justiça depois do duelo jurídico que travou com o Botafogo.
Afonsinho mostrou desde cedo grande capacidade de organização, pois,
durante o litígio com o Botafogo, criou uma equipe que denominou de Trem
da Alegria, a qual excursionou pelo Brasil e pelo mundo no período de 1976
a 1979.332
A trajetória esportiva de Afonsinho no Botafogo teve início na
categoria amadora333, quando conquistou em 1966 o título de campeão
estadual. Devido a suas atuações, foi convocado para a seleção carioca de
amadores, quando participou intensamente da campanha carioca, que
resultou na conquista do tetracampeonato brasileiro de amadores.
Florenzano (1998) relata que, devido a estas conquistas, passou a ter boas
perspectivas na ascensão profissional, inclusive no ano de 1967 já
participava de alguns jogos da equipe profissional, principalmente, devido à
ausência dos jogadores da equipe principal que integravam a seleção
brasileira.
332 - Lance - Enciclopédia do Futebol Brasi le iro (2001). Rio de Janeiro . AreteEditor ia l S/A. Vol I . p .19
333 - Amadores naquele tempo s ignif icavam um estágio “pré-prof issional” para osjovens at le tas que buscavam espaço na equipe pr incipal . A categor ia amadora eras imilar ao que representa hoje a categoria de base. Hoje , as categor ias se dividem,em função da idade, em infant i l , infanto- juveni l , juveni l , juniores . Atualmente,acontecem os campeonatos es taduais em todas as categor ias , mas a CBF ainda nãoorganiza campeonatos brasi le iros of icia is para as categor ias de base. Ospr incipais eventos para as categor ias “pré-profiss ionais” são organizados pelaFPF (Copa São Paulo de Juniores) e pela FMF (Taça BH de futebol) .
349
Entretanto, a confirmação como titular da equipe não se efetivou de
acordo com o prestígio alcançado na categoria de amadores. Passou a
travar uma competição interna pela vaga no meio campo da equipe
Botafoguense com Gerson334, onde fora preterido, em função da opção
tática de incorporar volantes de marcação no meio campo, empregada por
Zagalo, que passou a ser a tendência a partir de 1966 em nosso futebol
(Florenzano, 1998, p.45). Afonsinho naquele momento tinha a preferência de
parte da imprensa esportiva e de dirigentes como substituto ideal, quando
Gerson abandonasse o clube. Entretanto, até a saída de Gerson, tal disputa
pela posição foi se arrastando por alguns anos.
O jogador, em entrevista concedida no ano de 1997, reafirmava a
angústia e a insatisfação que viveu naquele período:
“... na época da renovação de um contrato, ou da mudança dediretoria, foram acontecendo crises porque eu tinha propostas,queria sair, gostava demais do Botafogo, até hoje souBotafogo, mas eu precisava jogar, era hora de jogar, (adquirir)amadurecimento, vivência da situação... era óbvio que euprecisava jogar. Ao Botafogo interessava um jogador que estavase destacando como uma opção ali...” (Florezano, 1998, p.45).(grifos nossos)
Observemos que uma relação de afeto foi construída por Afonsinho,
ao dizer que apesar de tudo, gostava do clube, e que mesmo após o
desfecho do episódio, permanecia o sentimento.
334 - Gerson de Oliveira Nunes, conhecido como “Canhotinha de Ouro”. Um atletade prest íg io que vir ia a se consagrar como um dos pr incipais jogadores brasi le irosde todos os tempos após in tegrar a Seleção Brasi le ira que venceu a Copa doMundo de 1970. Gerson par t ic ipou também da Copa de 1966.
350
O discurso de pertencimento ou vínculo afetivo se contrabalança
com a insatisfação apresentada por Afonsinho provocando uma freqüente
tensão, como o ex-jogador revive em sua memória: “... foram acontecendo
atritos, crises... que eu fui sempre tentando resolver cara a cara. Ou com a
direção, quando mudava a direção eu dizia: “Olha a minha intenção é jogar...
Ou quando acabava meu contrato, eu dizia: Olha, eu quero me transferir...”
(p.45)
Figura 13 – Afonsinho
A memória de Afonsinho revela que, embora amasse o Botafogo,
seu desejo era ser titular. Não se sentia útil ao grupo estando na suplência.
Observa-se que amor ao clube não é o do soldado servindo subserviente a
pátria, seus desejos revelam seu interesse pelo desenvolvimento
profissional, nada mais justo. Estar na equipe titular simbolizava para
Afonsinho a valorização financeira e o prestígio.
351
Com a saída de Gerson em meados de 1969, o conflito parecia ter
chegado ao fim, mas isso não ocorreu. Histórias de perseguição e
resistência foram construídas em torno de Afonsinho.
Florenzano (1998) interpreta que “a trajetória de Afonsinho revela-
nos a luta da resistência dos jogadores brasileiros à disciplinarização militar
adotada nos clubes brasileiros.” (p.50) Tal interpretação torna-se o motivo e
a justificativa para Florenzano biografar Afonsinho.
Devemos situar a biografia de Afonsinho, escrita por Florenzano, já
que esta é uma de nossas fontes. Uma biografia recorta e re-elabora fatos e
interpretações do passado no presente. Segundo Souto (2002), “é
necessário perceber a memória como um conjunto de relações, de
acumulação de fatos e, sobretudo, como uma dialética entre lembrança e
esquecimento: só é possível lembrar porque é permitido esquecer” (p.39).
Portanto, as memórias de Afonsinho devem ser encaradas no jogo do
lembrar e esquecer, pois “[A] memória não preservaria o passado, mas o
adaptaria, para enriquecer e manipular o presente.” (Souto, 2002, p.39).
A partir desta ponderação, revisitamos as narrativas jornalísticas
construídas em sincronia aos eventos nos quais Afonsinho foi o
protagonista. Neste levantamento, obviamente achamos que os fatos
narrados pelos jornais da época diferem e não possuem o peso colocado
nas análises de Florenzano. O primeiro e segundo planos na mídia
obedecem ao que é estabelecido pela conjuntura. Os fatos são explorados
ao sabor das hierarquias que a dinâmica social apresenta e a mídia prioriza.
Boa parte dos conflitos vividos por Afonsinho foi contemporânea aos eventos
352
da Copa 70, assim, as notícias sobre os conflitos de Afonsinho podem ter
sido secundarizadas por este motivo ou pela censura imposta à imprensa da
época. Souto (2002) nos alerta que o jornalista, ao selecionar alguns fatos,
relega outros ao esquecimento (p.35).
Afonsinho declara que foi perseguido e relegado por Zagalo, em sua
biografia. Os levantamentos das edições do Jornal dos Sports, entre agosto
e dezembro de 1969, indicam que Afonsinho foi titular em quase todos os
jogos neste período em que o Botafogo disputava a Taça de Prata.335
Portanto, nos pareceu que Afonsinho era um jogador importante para a
equipe, principalmente, após a transferência de Gérson para o São Paulo. O
dado não pode aqui ser encarado como uma evidência que desmentiria os
sentimentos subjetivos de Afonsinho, seja em relação ao Botafogo, seja em
relação ao Zagalo. Contudo, a narrativa de Florenzano, por ser uma
biografia, dá uma ênfase aos sentimentos do biografado.
Zagalo admitiu a importância de Afonsinho dentro do seu esquema
tático, mas pedia cautela ao jornalista que o entrevistava no ano de 1969:
“- A passagem de Gerson para Afonsinho ainda não se deutotalmente porque a readaptação da equipe exige tempo nessescasos. – esclarece Zagalo.- Afonsinho é o novo Gerson?- Prefiro não colocar as coisas sob essa comparação. Os estilosdiferem, o que não importa quando se trata de trabalho coletivo.Ao Botafogo interessa a produtividade de Afonsinho, que,acredito, já está a altura do que realizava Gerson. Garanto que
335 - O atual Campeonato Brasi le iro veio subst i tu ir o torneio Rober to Gomes dePedrosa, o “Rober tão”, (Taça de Prata) que até 1970 era a pr incipal competiçãonacional entre clubes. Em 1971, o evento cedeu lugar ao modelo de CampeonatoBrasi leiro que temos hoje, embora o modelo tenha s ido modif icado comfreqüência . Em nenhum dos anos de sua real ização até a presente data (2003), oCampeonato Brasi le iro teve a mesma fórmula.
353
dentro em breve, os torcedores do Botafogo não se lembrarãomais de Gerson. Afonsinho é craque, tanto que, embora decaracterísticas diferentes tem podido atender em parte ao papelanterior que Gerson executava, e ao qual Jairzinho e Robertoestavam muito condicionados.” (Jornal dos Sports, 12 deset/1969, p.12)
Zagalo no texto acima faz declarações prudentes que protegem o
jogador. Em outras palavras, diz que não podemos comparar e nem colocar
uma carga excessiva de cobranças ao Afonsinho. A idéia de perseguição
construída pela biografia perde um pouco sua força, quando observamos as
narrativas da época. Por exemplo, após a Taça de Prata, Afonsinho foi
convocado por Zagalo para a Seleção Carioca de 1969.336
A cautela de Zagalo indica que a saída de Gerson gerou matérias
para os jornais. A substituição do ídolo dava novos contornos ao episódio da
mesma forma como aconteceria nos últimos anos da década de 80, no caso
Bebeto ao substituir Zico, por exemplo. Os jornais dramatizam as
substituições e trocas de grandes ídolos, na verdade maximizam os
sentimentos dos torcedores sobre o conturbado processo de amar um ídolo
e perdê-lo para a equipe adversária, por razões financeiras. Os jornalistas
esportivos, por vezes, apresentam-se como apaixonados por seus clubes.
Essa é uma posição que vai de encontro à ideologia da objetividade
jornalística (Souto, 2002).337
336 - Afonsinho só par t icipou do pr imeiro jogo, quando a seleção car ioca foiderrotada pela seleção mineira por 4 a 0 , pois sofreu dis tensão e não pôde jogarcontra os paul is tas . (Jornal dos Spor ts , 15 de dez/1969, p .4) .
337 - Entre tanto, a memória midiát ica, a lgumas vezes é dotada de facetas epreâmbulos que buscam sustentar a ‘verdade’ contextual do jornal is ta . Trata-se deum ponto de vis ta , uma visão pessoal que pode estar condicionada a pactosexternos, conforme apontou o jornal is ta Juca Kfouri acerca do comprometimento
354
Vejamos que Hugo Lovisolo (2001) também questiona a atitude dos
jornalistas ao argumentar acerca da roupagem que eles utilizam em suas
matérias esportivas, dizendo que as notícias para causar o interesse do
leitor assume uma feição “tendenciosas, estão preocupadas demais por
refletir o extraordinário, ‘o acredite se quiser’ e esquecem do comum, do
ordinário, daquilo que para eles não é notícia.” (p.91) 338
Na biografia, a história de perseguição é reforçada a partir de um
novo acontecimento: os valores financeiros que haviam sido prometidos. Em
1969, durante o Campeonato Brasileiro, os jogadores resolveram negociar o
‘bicho’ com a direção do clube. O contexto era de um importante jogo contra
o Santos. Antes do embarque para São Paulo, os jogadores procuraram os
dirigentes para negociar a premiação sobre a vitória. Entretanto, a
negociação não teve solução até minutos antes da partida (Florenzano,
1998, p.46). Afonsinho foi encarregado como porta-voz pelos demais
jogadores e procurou a direção para que prestasse esclarecimento sobre a
reivindicação dos jogadores. Sua posição de porta-voz foi rotulada de
da imprensa, onde lamenta a forma de ação dos alguns de seus companheiros naatual idade: “Na imprensa espor t iva brasi leira , hoje não sabemos se o cara é garotopropaganda, promotor de eventos , empresár io de a t le tas , assessor de imprensa, setrabalha para um clube ou para uma mídia . Você não sabe se o jornal is ta recebeda CBF ou do jornal . ( . . . ) Raramente você encontra , na TV, um programaespor t ivo que seja independente. Sob a desculpa esfarrapada de que otelespectador quer ver gol , quer ver o jogador , e não quer grandes d iscussões nemsaber de bas t idores, não se conta nada. ( . . . ) porque não se faz jornal ismoesport ivo, na te levisão bras i le i ra , faz-se entretenimento” (p .50)Gomes, Marcos. & Carrano, Paulo Cesar R. (2000). O futebol entre palcos ebast idores . – Entrevis ta com o jornal is ta espor t ivo Juca Kfouri . In : Paulo Cesar R.Carrano, Futebol : paixão e pol í t ica . Rio de Janeiro. DP & A. Editora. 45-64 p
338 - Lovisolo (2001) .
355
“mercenária”, segundo os dirigentes botafoguenses, como descreve sua
biografia.
Na final da competição, o Botafogo teria crescido de rendimento e
parece ter atendido a reivindicação na época. A diretoria sinalizara com
premiações elevadas para a época, conforme divulgou o Jornal dos Sports
em uma reportagem em que o editor ironiza o assunto “No tempo das vacas
gordas bicho é o assunto do dia”:
“- É... entramos novamente na época da vagas gordas. A frase foipronunciada por diversos jogadores do Botafogo após o treino deontem, quando obtiveram a confirmação do prêmio de NCz$700,00 pela vitória contra a Portuguesa e ainda souberam que, sevencerem o Fluminense no domingo, a gratificação deverá sersuperior a um milhão de cruzados antigos, fato apontado pormuitos sócios como prenúncio de uma nova vitória.” (Jornal dosSports, 18 de nov/1969, p.4)
O ‘bicho’ seria prenúncio de uma vitória; os jornais diziam que o
desempenho e a dedicação dos jogadores podem se modificar em função
do interesse pela partida. O discurso do incentivo da produtividade está
explícito no texto acima. O ‘bicho’ é a marca do profissionalismo, em uma
versão moderna da empresa capitalista, ainda quando o futebol era
formalmente considerado amador.
O técnico Zagalo, questionado sobre o assunto, tentou atenuar os
fatos, ao justificar que a atuação não poderia ser creditada somente ao
incentivo financeiro. Para ele, o dinheiro teria a função de “deixar o jogador
satisfeito”, poderíamos entender motivados:
356
“O técnico Zagalo, entretanto, não atribui a boa atuação da equipeno jogo contra a Portuguesa a possibilidade de uma vultosagratificação. Segundo ele, é lógico que o jogador sendoprofissional quanto mais ganhar mais satisfeito fica. Eacrescentou: - Eu já fui jogador e por isso digo tranqüilamente.Quando se entra em campo, pensa-se exclusivamente na vitória,seja qual for a gratificação.” (Jornal dos Sports, 18 de nov/1969,p.4) (grifos nossos)
Observemos que Zagalo atribui importância à gratificação, “quanto
mais ganhar mais satisfeito fica”, mas diz que ela não é fundamental para
atuação em campo. Observemos que a narrativa de Zagalo é sutil, fala de
motivação proporcionada pelo dinheiro, mas relativiza sua influência.
O ‘bicho’ tornou-se um tema central no final da competição. Os
jornais anunciavam que os clubes teriam iniciado uma competição de quem
pagaria mais pela motivação de seus próprios jogadores e dos jogadores de
outras equipes. O presidente do Atlético mineiro, clube com expectativa de
classificação, teria oferecido um prêmio de NCz$ 5 mil a cada jogador do
Santos339 por uma vitória sobre o Botafogo (Jornal dos Sports, 25 de
nov/1989, p.2). Somente com uma vitória do clube santista é que o Atlético
teria condições de estar na próxima fase. Naquele período, o Santos já se
encontrava sem chances de se classificar para a próxima fase e, portanto, o
Atlético tentava reativar, com o ‘bicho’ prometido, o ânimo dos jogadores
santistas. O presidente do Atlético, Carlos Alberto Naves, coloca a sua
atuação da seguinte forma: “Guerra é guerra e eu vou entrar nesta, com as
armas que tenho.” (p.6)
339 - Apesar do fracasso na Taça de Prata , o Santos vivia naquele momento aeufor ia do milésimo gol de Pelé , que ter ia ocorr ido contra o Vasco.
357
Em contrapartida, o vice-presidente do Botafogo, Xisto Toniato,
indignado com a promessa atleticana, reafirmou seu compromisso com o
prêmio para os jogadores:
“- Por empate ou por vitória no jogo contra o Santos, cada umreceberá NCr$ 3 mil, como eu havia prometido”.- E só não dou mais que isso porque é impossível. A nossa folhade pagamento é alta, e depois, é bom não esquecer que não sãosomente os titulares que recebem as gratificações. Há o técnico, omédico, o preparador físico, enfim muita gente”. (Jornal dosSports, 25 de nov/1989, p.6)
Interessa-nos até o momento observar as tensões que o contexto
vivido por Afonsinho coloca em relação ao ser profissional no futebol.
Sabemos que Afonsinho, posteriormente, foi um dos articuladores do
sindicato dos jogadores e tornou-se seu presidente. Mas continuemos
explorando sua trajetória e olhando para seus contemporâneos.
Florenzano narra sobre a excursão do Botafogo ao México e à
Venezuela nos meses iniciais de 1970, como o caso definitivo para o
afastamento de Afonsinho da equipe alvinegra. Após uma contusão que o
afastou dos treinos já na excursão, mesmo depois de recuperado, o jogador
perde a posição de titular e inconformado questionou ao técnico o motivo da
exclusão da equipe titular. Segundo Afonsinho, o técnico teria alegado a falta
de condicionamento físico. Descontente com a condição de reserva, ao
chegar no estádio Asteca na cidade do México, minutos antes de um jogo,
resolve não ficar e retorna ao hotel, abandonando a equipe. O jogador
alegou que nunca mais foi escalado pelo técnico.
358
Este fato não foi noticiado com detalhes no período de sua
ocorrência pelo Jornal dos Sports. Naquele momento, as principais atenções
do jornalismo esportivo estavam voltadas para outros quatro eventos
marcantes: 1) a preparação brasileira para a Copa do Mundo de 70, bem
como todas as expectativas e prognósticos de técnicos quanto à
participação brasileira; 2) o problema relacionado à cirurgia oftálmica de
Tostão; 3) a renegociação do contrato entre Jairzinho e o Botafogo; e 4) a
tentativa de uma política de limitação salarial modificando a Lei do Passe.
Relembremos Souto (2002) sobre como a imprensa seleciona as matérias.
O motivo da seleção de uma notícia relaciona-se ao impacto que esta pode
causar sobre os leitores. Os fatos acima relacionados absorveram o
interesse jornalístico daquele período, relegando a segundo plano outros
assuntos que aconteceram no mesmo período.
O Botafogo estava disputando torneios internacionais, mas as
dificuldades de renovação do contrato de Jairzinho340, durante todo o mês de
janeiro, superavam as notícias sobre as façanhas da equipe.
Nos primeiros dias de janeiro da década de 70, o Jornal dos Sports
divulga a tensão entre os dirigentes dos clubes frente aos valores das luvas
e dos ‘bichos’ exigidos pelos jogadores. O Sr. Aníbal Pelón do CND, na
tentativa de estabelecer limites para os salários, luvas e prêmios, propunha
um adendo a Lei do Passe. Tal proposição provocou imediata reação dos
jogadores e do sindicato da categoria. (Jornal dos Sports, 03 de jan/1970,
340 - O clube oferecia 188 mil ao jogador e e le es tabelecia 220 mil . Uma chargede Henf i l caracter izava o impasse da renovação de Jairzinho. (Jornal dos Spor ts ,08 de jan/1970, p .3) Figura 14
359
p.2). Alegara o Sr. Pelón que “A imaturidade do jogador brasileiro é
constatada nos desejos constantes de se transferir só por causa dos
15%”.341 Xisto Toniato teria proposto uma reunião com todos os dirigentes
cariocas para que juntos fixassem uma política salarial (Jornal dos Sports,
06 de jan/1970, p.2). Por outro lado, o sindicato dos jogadores prometeu
reagir, caso as novas diretrizes fossem prejudiciais aos atletas. Uma
entrevista do jogador Samarone do Fluminense foi publicada como contra-
argumento do que pretendiam os dirigentes:
“Eu tenho certeza de que, no momento em que entramos emcampo todos os problemas são esquecidos e o jogador só pensana vitória do seu time. Acredito que o interesse do jogador emgarantir o futuro não pode ser confundido com falta de amor acamisa ou com imaturidade. Eu pelo menos, tenho autocrítica, seiquando rendi durante o ano e peço, para renovar, aquilo queacredito valer. Então o que acontece é que alguns jogadores sedestacam mais do que outros. Ou sejam são mais úteis aos seusclubes que os demais. Passam, então, a ser cobiçados por outrosclubes e seu valor cresce. Na época da renovação do contrato ojogador pede aquilo que acha merecer. Se o clube, concordar,não há problema. Porém, se após várias tentativas de acordo oclube decide que aquele determinado jogador não vale o quepede – que é melhor cedê-lo, não vejo nada mais normal do que atransferência para outro clube que se dispõe a pagar o que ojogador pretende. Afinal, alguns clubes são mais ricos e maispoderosos que outros, assim como há pessoas mais ricas epoderosas que outras. Os mais ricos pagam melhor e,naturalmente, contratam os melhores jogadores. Isso é muitonatural. Talvez a nova lei do passe venha a ser boa. A atual é, etenho confiança que os legisladores tratarão com atenção osproblemas do jogador. Mas talvez a iniciativa de limitar ossalários dos jogadores traga, ao invés de vantagens, umdesestimulo aos melhores e isso seria prejudicial para opróprio futebol brasileiro. Afinal, em todas as profissões omelhor ganha mais. Porque não no futebol? – ConcluiSamarone.” (Jornal dos Sports, 03 de jan/1970, p.2) (Grifosnossos)
341 - 15% era o valor que o jogador ter ia d ire i to sobre o preço da sua venda.
360
A fala de Samarone estabelece as diferenças entre a venda da
mão-de-obra do trabalhador e o amor à camisa, que pode ser lido como
dedicação e compromisso. Argumenta que, em todas as profissões, os
valores são diferenciados em relação à importância e à competência,
dizendo que não havia motivos para o futebol não observar esta lógica de
mercado. Samarone assume uma postura tipicamente liberal e moderna, ao
defender os interesses da livre negociação. A intervenção dos dirigentes é
vista com suspeição. É interessante observar que estávamos em pleno
período de ditadura e no futebol tínhamos conflitos que, em outras esferas,
poderiam resultar em perseguição política. Vejamos que Samarone
acreditava que a limitação salarial poderia provocar um efeito perverso, o
desestimulo dos melhores, portanto, seria uma ameaça ao futebol. Mais um
ator utilizando os argumentos apontados por Hirschman, (1992).
Voltemos ao nosso personagem. Na primeira partida do Torneio
Pentagonal Internacional342, realizado no México contra a Seleção Mexicana,
Afonsinho não pode estar em campo, conforme noticiou o Jornal dos Sports
do dia 13 de janeiro de 1970, afirmando que o único problema da equipe
alvinegra no torneio internacional era a distensão muscular de Afonsinho,
todavia, o Dr. René Mendonça esperava recuperá-lo para o próximo jogo,
que só aconteceria no dia 22. Portanto, um período hábil para a recuperação
do jogador. No dia do jogo contra o Spartak, Afonsinho foi testado e liberado
342 - Equipes par t ic ipantes do evento: Seleção Mexicana, Botafogo, Part izan(Iugoslávia) , Spartak e Guadalajara .
361
pelo médico para participar da partida, inclusive a imprensa dava como certa
a escalação do jogador (Jornal dos Sports, 25 de jan/1970, p.2). Todavia, na
edição seguinte, não apareceu a informação da presença do jogador na
partida. Para o jogo final do torneio, contra o Partizan da Iugoslávia, o jornal
noticiou como certa a entrada de Afonsinho na equipe. “Para o próximo jogo
Zagalo está com algumas dúvidas conseqüência das substituições que
efetuou no jogo contra Guadalajara. O retorno de Afonsinho é praticamente
certo, embora Nei venha jogando bem.” (Jornal dos Sports, 27 de jan/1970,
p.2).
Somente no dia 29 é que pela primeira vez o jornal dos Sports
coloca a situação ocorrida no dia 22, mesmo assim, de forma resumida,
parecendo tratar-se de um problema sem grande importância. “A situação de
Afonsinho, multado em 60% do salário por não aceitar ficar no banco de
reservas está praticamente contornada e se retorno ao time pode ser no
domingo.” (Jornal dos Sports, 29 de jan/1970, p.2) A indisciplina é cobrada
na lógica profissional. O resultado da partida foi a derrota do Botafogo por 1
a 0 para a equipe iugoslava, ficando a equipe alvinegra em terceiro lugar no
torneio. Na coluna destinada a comentar sobre a atuação de cada jogador
na partida, não apareceu o nome de Afonsinho. Portanto, parece que ele
não foi escalado, conforme apontara o jornal.
Ainda nesta mesma excursão, no Torneio Triangular343 promovido
pela Federação Venezuelana, o Botafogo foi o vencedor e, mais uma vez, o
343 - Par t ic iparam do evento: Seleção da União Soviética, Spartak Trnava eBotafogo.
362
nome de Afonsinho não aparece na coluna que descreve atuação dos
jogadores na partida.
Figura 14 - Charge de Henfil - Jornal dos Sports, 08 de jan/1970, sobre arenovação de contrato de Jairzinho
Somente após o retorno da delegação botafoguense ao Brasil é que
o Jornal dos Sports publicou o ponto de vista do técnico Zagalo, que
inclusive, em várias passagens, coincide com os apontamentos de
363
Afonsinho na entrevista editada por Florenzano. Transcrevemos na íntegra o
texto divulgado pelo Jornal dos Sports acerca deste episódio na versão de
Zagalo:
“Nota-se no técnico muita preocupação com o caso de Afonsinho,considerado por ele um dos maiores casos de indisciplina que eujá vi na minha longa vida de jogador.- Olha, foi uma surpresa. Desde que Gerson saiu ele é o titular,não sei o que acontece. Afonso saiu daqui como titular. Chegouno México e se queixou de dores nas costas na véspera do jogo.Fui ao Dr. René Mendonça que me disse: - Olha ele está vetado.Melhor guardar para o próximo jogo.Zagalo prossegue:- Fui ao seu quarto e perguntei com jeito: Dá para jogar? ‘Não sei’,respondeu e fez uma careta de dor. Em vista disso avisei: vocêfaz tratamento, são onze dias até o segundo jogo, e quem vaijogar é o Nei. Não me disse nada. Passou uma semana semtreinar. Dois dias do jogo é que voltou ao treinamento sério.Pensei bem e resolvi botá-lo na regra 3. Ora, afinal de conta eu jájoguei em aspirantes, depois de bicampeão do Mundo. Nãodiminui ninguém com isso. Na entrega do material ele já sabia quenão ia jogar, pois o roupeiro lhe deu a camisa 13 ou 14, ou 15, seilá menos a 8 de titular. No ônibus, estava alegre e comandou abatucada que os jogadores sempre fazem fora do Brasil, aindamais na época de carnaval. Para surpresa minha, disse que nãosentaria no banco bem na hora do time entrar em campo, o quecriou um mal estar. – ‘O Afonso não joga’ diziam baixinho quandoentrei no vestiário.Zagalo continua:- Tem mais. Trocou de roupa e saiu do estádio. Eu nunca vi isso.Tremendo mau exemplo. Nem falou comigo. Imediatamente foipunido com 60% por Marinho e agora vou falar com Toniato.- E depois vocês não falaram mais?- Bem, ele veio discutir comigo com argumento que não cabe emquem está no segundo ano de medicina. Disse que eu sempre fuicontra ele, profissionalmente. Eu disse então que nesse caso euprejudicava todos que não escalava. “É isso mesmo” respondeuele. Nem havia mais o que dizer.” (Jornal dos Sports, 12 defev/1970, p.6)
Zagalo, ao retornar da excursão, declara que objetivava novos
rumos para o Botafogo: “Daqui pra frente tudo vai ser diferente. Estou
364
disposto, a transformar o Botafogo numa equipe moderna, jogando futebol
solidário que eu vi lá fora, com as nossas características é claro” (Jornal dos
Sports, 12 de fev/1970. p.6). Nestas transformações, já não pretendia incluir
Afonsinho, quando propôs sua troca por um jogador do Flamengo. Pelas
narrativas do Jornal dos Sports, Afonsinho já apresentava problemas para a
direção do clube há muito tempo. O desentendimento da viagem apenas
reforçou a dificuldade de relacionamento entre ambos, conforme noticiou o
jornal no dia 15 de fevereiro de 1970, na matéria intitulada Zagalo propõe
troca de Afonso por Dionísio:
“O Botafogo já pretendia negociar o passe de Afonsinho mesmoantes dos acontecimentos no estádio Asteca. Para os dirigentesalvinegros, Afonsinho não vinha se empenhando como deveria notreinamento. Varias vezes ele foi chamado a atenção, mas nãocorrigiu. Ao lado da indisciplina continua de Afonsinho, Neidemonstrou grande forma e vontade de ser titular.” (p.11)
Todavia, a tentativa de troca com o Flamengo não foi frutífera,
devido ao desinteresse do Flamengo em negociar o jogador Dionísio:
“Admiro o futebol de Afonsinho, mas no momento o Flamengo não pensa em
se desfazer de qualquer de seus jogadores, muito menos de um elemento
utilíssimo como o Dionísio” - Declarou George Helal. (Jornal dos Sports, 17
de fev/1970, p.2)
Após esta tentativa fracassada, Afonsinho continuava indo ao clube
para realizar seu treinamento, o que fazia isoladamente do restante dos
jogadores. Questionado sobre sua situação, ele colocou: “Vamos ver o que
365
eles resolvem. Eu não quero mais falar no assunto para evitar polêmicas, e
conseqüentemente novela.” (Jornal dos Sports, 14 de fev/1970, p.1)
Devido às tensões que envolviam a permanência do jogador no
clube, a direção do clube demonstrava a possibilidade de negociá-lo pelo
valor de NCr$ 500 mil, mas que não existia nenhuma proposta oficial até
aquele momento: “Eu quero deixar claro que o Botafogo vende Afonsinho,
mas que nem por isso seu passe está à venda. Ele, por enquanto, é jogador
do clube e só sai se aparecer uma boa proposta”, declarou o vice-presidente
Xisto Toniato (Jornal dos Sports, 14 de fev/1970, p.1).
No dia 28 de fevereiro, foi noticiado o empréstimo do jogador para
um clube de subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, o Olaria344, até o final da
temporada de 70, sem que nenhuma exigência financeira fosse feita por
parte do Botafogo (p.4).
Também neste clube, em uma excursão à Ásia no mês de junho de
1970, Afonsinho foi afastado do grupo por desentendimento com um diretor
e recebeu a passagem de volta para o Brasil. Na época, o Jornal dos Sports
deu pouca importância a este novo transtorno envolvendo o jogador,
possivelmente por ser o Olaria um clube considerado pequeno do futebol
carioca e pelos interesses que despertavam a Copa do México, em plena
realização, e, naquele momento, era o acontecimento que mais despertava
atenção.
Vencido o período de empréstimo ao Olaria, Afonsinho deveria se
reapresentar ao Botafogo, clube que continuava a ser proprietário do seu
344 - O Olar ia Atlét ico Clube foi fundado em 1915. Recebeu este nome devido àfábrica de t i jolos que se local iza no bairro Olar ia , no subúrbio car ioca.
366
passe e onde deveria cumprir o restante do contrato. Em função do impasse
ocorrido entre ele e Zagalo, caberia ao clube resolver tal situação, uma vez
que a comissão técnica dirigida pelo referido técnico reassumiria o comando
do Botafogo depois do encerramento da Copa do Mundo, de onde Zagalo
retornou mais fortalecido, colhendo os ‘louros’ da conquista mundial, após
substituir João Saldanha no comando técnico brasileiro.
Entretanto, quando Afonsinho se reapresentou ao clube, na
tentativa de reintegração, foi questionado sobre a adoção de um novo visual
– ‘barba e cabelos compridos’. Este novo fato passou a dominar o embate
entre o jogador e a direção do clube.
Percebe-se, por intermédio dos nossos levantamentos, que, durante
este período - junho 1970 -, o Botafogo passara por diversos transtornos
internos, fruto do retorno dos sete integrantes da seleção brasileira que
haviam conquistado o título mundial (O técnico Zagalo, o preparador físico
Admildo Chirol, o médico Lídio Toledo e os jogadores Jairzinho, Paulo
César, Roberto e Rogério), que, ao retornarem prestigiados, exigiam
melhores salários. Parece que, em função destes fatos, o caso de Afonsinho
não tenha causado na época os apelos midiáticos que poderia ter absorvido,
se ocorressem em outro período.
Afonsinho, para o Botafogo, era um assunto menor em relação aos
problemas que estavam enfrentando, como pareceu-nos menor também
para a imprensa.
367
Os espaços de mídia destinados ao Botafogo eram ocupados
principalmente com assuntos das renovações dos principais contratos, da
glória dos jogadores, da comissão técnica e também do campeonato
carioca, que já estava começando. Jairzinho345, aclamado pela imprensa
brasileira e internacional, apesar de já ter renovado o seu contrato poucos
meses antes da Copa, ao retornar, exigia mais dinheiro, uma vez que trazia
da Europa uma proposta de empréstimo do Sporting Lisboa de Portugal no
valor de NCr$ 700 mil por seis meses (Jornal dos Sports, 01 jul/1970, p.3).
Paulo César, que também já havia renovado, solicitava um reajuste.
Todavia, isso não ocorreu somente no Botafogo, pois praticamente todos os
jogadores que estiveram na Copa, ao regressarem aos seus clubes,
travaram intensos diálogos por reajustes salariais.346 Observemos que todos
estes personagens, hoje, relatam que jogavam com mais amor à camisa que
os atuais jogadores.
Os valores exigidos para renovação do contrato, bem com de outros
que também estavam vencidos geraram uma intensa preocupação dentro do
Botafogo. O vice-presidente do clube desabafa publicamente: “Eles pediram
uma quantia que nenhum time do Brasil poderá dar. O Botafogo é um clube
que deve 800 mil cruzeiros e está com suas rendas de jogos penhoradas
345 - Jair Ventura Fi lho ganhou o apel ido de “Furacão da Copa de 70”, devido aoímpeto com que enfrentava as defesas adversár ias . Apesar de não ter s ido oart i lheiro da competição, com sete gols fo i o ar t i lheiro da seleção brasi le ira . Atéhoje, é o único jogador a marcar gols em todas as par t idas de um CampeonatoMundial .
346 - Pelé no Santos, Tostão no Cruzeiro, Gerson no São Paulo etc , todosrenegociavam seus salár ios após a conquista mundial .
368
pelo BEG. Ninguém tem condições de dar o que eles estão pedindo.” (Jornal
dos Sports, 01 de jul/1970, p.3)
Pela pressão que estava recebendo dos dirigentes alvinegros e de
parte da torcida, Toniato resolveu tornar público os valores e as exigências
que Zagalo, Chirol e Roberto apresentavam para consolidar a renovação de
seus contratos:
“- O Zagalo quer um total de 340 mil por dois anos, assimdistribuídos: 30 mil no ato da assinatura mais uma quantiaidêntica dentro de três meses e duas prestações de 20 mil emigual período, salário de 10 mil, multa rescisória de 50 mil efinalmente, bicho, igual ao do jogador mais categorizado.- O Chirol pede 25 mil de luvas, sendo 10 mil na mão, e mais trêsprestações de 5 mil de dois em dois meses, salário de 5 mil, multarescisória de 10 mil e, também, bicho nunca inferior ao do jogadormais categorizado do Botafogo.- Roberto continua irredutível na sua proposta: 300 mil de luvas,sendo 100 mil no ato da assinatura e mais 200 mil junto com osordenados por dois anos.” (Jornal dos Sports, 02 de jul/1970, p.4)(grifos nossos)
Observemos que, apesar de proporem luvas e altos salários para
aquela época, o dirigente e o preparador físico estipulam que ainda
deveriam receber as gratificações (bichos) a que todos os demais jogadores
tivessem direito, todavia não inferior ao jogador que recebesse o mais
premiado. Mais uma vez, temos um passado onde muitos destes
personagens agiam como profissionais, legitimamente, mas hoje declaram
que na sua época a relação era mais pautada na dedicação e ‘no amor à
camisa’.
369
Como já apontamos anteriormente, devido ao interesse pela
conquista da copa, as notícias sobre Afonsinho ficaram relegadas a
pequenas notas inclusas nos noticiários do Botafogo e de seu prestigiado
elenco. Após vários dias sem que fosse dada importância ao assunto, surge
uma nota sobre a solicitação do Botafogo para que fosse prorrogado o
período do contrato do jogador até que este retornasse ao clube. Havia
rumores de que Afonsinho estivesse com problemas no serviço sanitário
francês e, por isso, ainda não havia retornado ao Brasil após a excursão que
estivera com o Olaria. Mediante o sumiço de Afonsinho, o Botafogo solicitara
a intervenção da Federação Carioca de Futebol (FCF), julgando-se lesado
pelo não cumprimento do contrato, devido ao abandono do jogador:
“Afonsinho que continua ausente do Rio desde que sai emexcursão com o Olaria, teve ontem o seu contrato com o Botafogosuspenso, até que se reapresente ao clube. A decisão foi tomadapela FCF, que julgou procedente a acusação do Botafogo, eassim o apoiador teve o seu vínculo com o clube prorrogado pelomesmo prazo de sua ausência.” (Jornal dos Sports, 03 dejul/1970, p.3)
O clube, com esta atitude, buscava acelerar o retorno do jogador e
demonstrava a postura que tomaria na negociação com Afonsinho. Segundo
o dirigente Toniato, “o destino dele só será selado, depois que se
reapresentar e justificar sua ausência.” (p.3)
No dia 04 de agosto de 1970, o Jornal dos Sports divulga nova
informação do caso. Observemos que, durante o mês de julho inteiro, o
jogador permaneceu ausente do clube.
370
“O Botafogo continua aguardando a apresentação a Afonsinho.Os dirigentes informam que o apoiador não está oficialmente emlitígio com o clube. Frisam apenas que o Botafogo suspendeu oseu contrato por precaução. Mas como o próprio jogador afirmouantes de ser emprestado ao Olaria que “jamais voltaria a trabalharsob as ordem de Zagalo”, o seu passe é negociável e estáestipulado em 300 mil.” (p.3)
Conforme já antecipamos acima, a reapresentação seria marcada
por um novo embate, o episódio da barba e dos cabelos compridos. O
jogador teria sido discriminado e reprimido pela adoção de um visual que
incomodava os dirigentes esportivos na época, pois essa nova aparência
lembrava a contracultura ou o estilo visual dos integrantes da esquerda; o
Brasil vivia um intenso período de repressão.
Segundo Florenzano (1998), o cabelo e a barba de Afonsinho
tornar-se-iam emblemáticos na luta entre o profissional e o desmando dos
dirigentes, mas apresentava ressalvas sobre o próprio impacto na época:
“A barba e os cabelos compridos de Afonsinho entraria nos anaisda história do futebol brasileiro como símbolos da luta pelaliberdade dos atletas profissionais, mas essa imagem veiculadana imprensa esportiva induz ao equívoco que a foto guardadapelo jogador desfaz. Pois o retrato que o jogador possui em suasala, feito no dia da proibição, mostra-nos Afonsinho com umabarba que mal pode ser notada e com o cabelo cujo comprimento,para os padrões atuais, dificilmente seria considerado longo.”(p.87)
O jogador teria sido intimado a modificar o visual para que se
reintegrasse à equipe em treinamento. Um dos títulos destinado ao fato
divulgava a exigência do clube: Afonsinho só volta com cabelo raspado:
371
“O Vice-Presidente de futebol do Botafogo informou ontem que ocontrato de Afonsinho continuará suspenso enquanto ele nãocorta o cabelo e fazer a barba. “Se ele fosse artista de novela,poderia andar assim. Mas ele é profissional do Botafogo e temque enquadrar-se nas normas do clube” – Frisou o Vice-Presidente.” (Jornal dos Sports, 14 de ago/1970, p.5)
Por trás do problema da barba e dos cabelos compridos apareciam
outros fatos que agravavam a situação do jogador e a sua permanência em
General Severiano347. Os dirigentes questionam sua disciplina, que, segundo
a direção do clube, já vinha sendo motivo de descontentamento. O clube
admite que a crise entre o jogador e o clube estava fundamentada na
indisciplina e no desacato a Zagalo, quando o jogador teria afirmado que não
jogaria mais com o referido técnico. (Jornal dos Sports, 28 de ago/1970, p.4)
O jornal relatou pontualmente as razões do clube para proibir que Afonsinho
participasse dos treinamentos:
“1 – No jogo com o Atlético Mineiro, em 1967, Afonsinho não tinhapegado na bola e, aos 13 minutos, Zagalo o substituiu, sendoofendido pelo jogador.2 – Em uma excursão ao México, em fase má, foi novamentesubstituído e, no jogo seguinte, recusou-se a entrar em campo.Na volta conversou com dirigentes antes de ser punido, e,recentemente, declarou que não jogaria com Zagalo.3 – Terminado o seu emprestamos ao Olaria, não se apresentouno dia marcado, só o fazendo muito tempo depois, de barba.”(p.4)
347 - Nome da sede of icial do clube, local izada no bairro de Botafogo, zona sul doRio de Janeiro.
372
A matéria coloca ainda que o clube não tem nada contra Afonsinho,
que “é só ele aparecer sem barba – símbolo da sua indisciplina – para voltar
aos treinamentos e lutar pela posição” e que considerava o jogador como
‘patrimônio do clube’ e “um jogador de excelente qualidade.” (grifos
nossos) (p.4)
Observemos que a idéia de propriedade sobre o jogador é a
justificativa do clube sobre o direito de exigir que ele seja disciplinado. Como
empregado do clube, deveria se sujeitar às determinações da diretoria e
comissão técnica, ainda que fossem ditatoriais e invadissem a esfera privada
do jogador. Contudo, este era um comportamento comum dos
empregadores até recentemente. Por exemplo, os bancos exigiam que seus
funcionários não usassem barba. Ao jogador caberia aceitar a ordem e
retornar ao clube sem a barba e com os cabelos cortados, afinal o esporte
sempre carregou consigo traços de uma moral ascética.
Neste mesmo dia, o jornal divulga também o ponto de vista do
jogador. Para ele, todas as acusações apresentadas pelo clube não
passavam de um motivo utilizado como fachada para excluí-lo da equipe.
“O problema da barba é apenas um pretexto para me tirar do time.Se eu fosse um jogador indispensável, não teriam me emprestadoao Olaria, sem nada receber em troca. Já cedi duas vezes emcaso criado pela diretoria. Se eu cortar a barba, vão procuraroutra razão para me prejudicar. Eles acham que eu exerço umaliderança negativa, prejudicial. Se eu voltar, vão arranjar novoproblema. Por que o caso da barba, só comigo? Eu sou umprofissional do clube, quero treinar e eles não deixam. Sobre oque afirmarem que eu disse – que não jogo com Zagalo – volto adizer que sou um profissional do clube e jogo com qualquer um.”(Jornal dos Sports, 28 de ago/1970 p.4)
373
O jogador coloca-se como profissional que deve obedecer às
determinações do clube contratante, indiferente ao comandante da equipe;
ele parece não concordar é com a invasão de sua privacidade.
A coluna ‘Jogo Perigoso’ do jornal, em forma de anedota, apresenta
uma crônica denominada ‘A barba’, que reforça a acusação de Afonsinho
sobre Zagalo.
“A nova fisionomia de Afonsinho – cabelos compridos e barba demuitos meses está assustando. Zagalo não permitiu que eletreinasse assim no Botafogo. Como ele se recusa a cortar ocabelo e fazer a barba, criou-se o impasse para sua volta aoclube. Um amigo lembrou então Zagalo que ele havia permitidoque Brito jogasse barbado na seleção.- O caso de Brito foi diferente – ponderou Zagalo, – foi caso depromessa.O amigo não conformou:- Quem sabe se o Afonsinho não faz promessa também?Como Zagalo não percebesse a história, o amigo completou:- Alguma promessa para você sair do Botafogo.” (Jornal dosSports, 13 de ago/1970, p.2) (grifo nosso)
Observemos que o próprio cronista reforça a idéia do visual
diferenciado, ao dizer que os cabelos e a barba de Afonsinho causavam
susto e não eram o principal motivo para o conflito.
374
Figura 15 – Afonsinho em 1972 jogando pelo Santos. F. C. Agachado – 2º dadireito para a esquerda. Este visual passou a ser adotado por Afonsinho a partir do
embate com o Botafogo
Este impasse entre o jogador e a direção do Botafogo arrastou-se
até que o jogador resolveu questionar a ‘Lei do Passe’ na Justiça Desportiva.
Quando finalizou o período de vigência do contrato, o jogador recorreu à
justiça requisitando o direito de se transferir para outra equipe, uma vez que
no Botafogo não havia mais como continuar vinculado. Todavia, o clube
negava a permissão.
A ‘Lei do Passe’ era um instrumento que os clubes utilizavam para
manter seus direitos sobre o jogador. Tal lei funcionava como uma
imposição que aprisionava o jogador ao clube ao qual estava vinculado. A lei
não apresentava um dispositivo que operasse no sentido de divisão de
direitos, entre jogador e clube, conforme salienta Florenzano (1998), ao
afirmar que ela “constitui-se num mecanismo jurídico que aprisiona o atleta
profissional em relação trabalhistas de caráter servil, submetendo-o a
condição de depender do consentimento do clube para poder prosseguir na
carreira.” (p.96)
375
Portanto, Afonsinho, um profissional que buscava romper com o
vínculo empregatício, estava preso pelo dispositivo da lei que não lhe
facultava a opção de buscar um novo empregado. Embora considerado um
profissional nos princípios modernos, em partes, a ‘Lei do Passe’ relembrava
o regime servil, em que a força de trabalho do jogador não poderia ser de
outro clube sem o consentimento daquele a que estava vinculado
anteriormente.
Ricardo Melani e Ronaldo Negrão (1995)348 apontam os alicerces do
contrato, ao analisarem a conexão entre jogador e clube: “No ato da
assinatura do contrato profissional, o jogador entra para um mundo no qual
ele não é mais dono de si.” (p.63)
A “desobediência” de Afonsinho – seu novo visual e a indisciplina –
foi apropriada para gerar um discurso acerca da quebra do acordo entre as
partes. Por trás do debate existe um perfil do jogador reivindicador. Por um
lado, Afonsinho mantinha-se irredutível ao seu direito de opção pelo visual
que queria adotar, sem se curvar às normas do clube sobre a aparência do
seu empregado. Os mandos e desmandos dos dirigentes botafoguenses não
poderiam ser ignorados pelo jogador. Parece que, neste embate, o que
menos se questionava era a competência esportiva, a condição de produção
do jogador, a sua função profissional. Os feitos esportivos cediam lugar a um
padrão estético, mas não da estética do jogo. Melini & Negrão (1995)
apontaram que “qualquer reivindicação interpretada como ousadia por parte
348 - Melani , Ricardo & Negrão, Ronaldo.(1995). Passe para a servidão. In :Revis ta do Departamento de Educação Fís ica e Esportes da PUC-SP, São Paulo.4(2) . 61-69.
376
do clube pode causar uma situação pior que o desemprego: sem salário,
sem trabalho e sem poder procurar trabalho.” (p.65) Florenzano analisou que
a ‘Lei do Passe’ “constitui num importante instrumento de dominação, à
medida que restringe consideravelmente o campo de ação do jogador no
quadro de relações de poder, fazendo pesar sobre ele (...) a ameaça do
interdito da profissão.” (p.97)
Mesmo com a transferência de Zagalo para o Fluminense em 1971,
quando Paulinho de Almeida assumiu a equipe, não houve um acordo para a
reintegração de Afonsinho. O novo técnico não se opunha à presença do
jogador na equipe. É oportuno lembrar que Paulinho já havia sido seu
técnico no curto período em que esteve no Olaria e na excursão a Ásia,
onde o jogador foi desligado, por problemas com um dos dirigentes.
Entretanto, para o jogador já não estava mais em questão a sua
permanência no Botafogo. Queria ter direito a exercer sua profissão em
outro clube, solicitando nos tribunais esportivos a sua liberdade de atuação.
O trâmite do processo foi se arrastando durante vários meses na
justiça esportiva. Porém, apesar de iniciado o processo na justiça esportiva,
Afonsinho não acreditava ter sucesso no julgamento desta instituição, devido
ao envolvimento dos juízes do tribunal com os clubes e a força política que
representava o Botafogo na época. Acreditava que seria necessário recorrer
à justiça comum, mas queria esgotar as possibilidades na instância
esportiva. Florenzano (1995) descreve o início do processo citando parte da
entrevista de Afonsinho: “Romper um vínculo dessa importância, discutir o
Passe com um clube como o Botafogo, um time de primeira linha do futebol
377
mundial, cujo presidente era o Secretário da Fazenda do Estado! Quer dizer,
era muito poder pra ser contestado.” (p.100)
Após vários percalços no decorrer do processo, finalmente,
Afonsinho recebe o ‘Passe Livre’ em março de 1971, por intermédio do
julgamento no Superior Tribunal de Justiça Desportivo da CBD, gerando
uma nova era de relacionamento entre os jogadores e os clubes. Até então,
o poder dos clubes e de seus dirigentes pareciam soberanos nos processos
de enquadramento do jogador. As relações profissionais eram centradas nas
exigências dos dirigentes. Parece que, por meio do esporte, seria
estabelecida (ou se pretendia) uma sociedade comercial diferenciada, onde
as trocas entre empregador e empregados fossem legisladas a partir de
princípios mais igualitários.
O direito de renúncia ou permanência em um clube não era
estabelecido pelo interesse de jogadores e dirigentes, o que difere do
mercado formal de trabalho. O trabalhador pode recusar o trabalho, desde
que cumpra as formalidades da lei, e então buscar novo trabalho. Para o
jogador, a lei apresentava-se perversa, onde o clube podia amarrar o seu
contrato, inibindo por preços exorbitantes a sua transferência.
Afonsinho tornou-se, no passado e no presente, o símbolo dos
direitos profissionais do jogador de futebol no Brasil. Observamos que hoje
os discursos de pertencimento, os ideais amadores, são freqüentemente
relacionados àquela época, onde a memória jornalística, dando voz ao
passado, insinua que o jogador se comprometia com o clube acima dos seus
próprios interesses. Aquela geração de jogadores ficou eternizada por parte
378
da imprensa e dos torcedores como uma geração que vestia a camisa do
clube e da seleção, demonstrando comprometimento e amor, como se os
interesses financeiros nas transações contratuais fossem secundários,
colocados em segundo plano, sem maior importância. O jogador jogava pelo
‘amor à camisa’. Em uma pesquisa com torcedor, podemos constatar esta
representação (Salles e Soares, 2003). 349
Todavia, os jornais daquele período demonstram um forte impulso
no sentido de tornar profissionais as relações no futebol. O ‘amor à camisa’,
cantado em versos e prosa em nossos dias, não era tão consensual entre os
jogadores, conforme atestam os jornais sobre as negociações dos novos
contratos. Os integrantes da seleção brasileira, ao retornarem vitoriosos do
México, passaram a exigir de seus clubes altos salários, conforme
constatamos nas negociações que envolveram Zagalo, Chirol, Jairzinho,
Roberto, Gerson, Tostão e mesmo Pelé como devem ser as relações
profissionais no mercado de trabalho.
349 - Sal les , José Geraldo do C. & Soares , Antonio Jorge. (2003). A memóriasocial do futebol brasi le iro – Entre a paixão e o interesse. In : (Anais) IIConferencia do Imaginário e das Representações sociais em Educação Fís ica ,Espor te e Lazer . Rio de Janeiro . Universidade Gama Fi lho. 27-29 de nov/2003.687-703p (CDRom).
379
Capítulo XVIReleitura do caso Bebeto – A transferência do Flamengo parao Vasco da Gama350
“Eu queria ficar, aprendi a amar esse clube e, sefosse só pelo coração, permaneceria.”
(Bebeto)351
José Roberto Gama de Oliveira – O Bebeto, natural de Salvador na
Bahia, nascido em 1964, protagonizou no final dos anos 80 um fato
marcante no capítulo das transações do futebol brasileiro. Uma transação
que poderia ser considerada normal, se não estivesse em jogo outros fatores
que não somente a comercialização da força de trabalho (mão-de-obra) de
um jogador, mas, sobretudo, de um ídolo do futebol brasileiro e,
especificamente, de uma torcida. Os fatos decorrentes desta transferência
de clube revelaram sentimentos que fizeram incendiar os ânimos dos
torcedores, dirigentes e da imprensa. O que poderia parecer ordinário, uma
simples transação comercial, faz emergir sentimentos coletivos,
principalmente por se tratar de um ídolo e a rivalidade histórica entre os
clubes envolvidos na transação.
350 - O pontapé para o desenvolvimento desta seção foi o t rabalho de Helal &Coelho (1995). Modernidade e tradição no futebol Brasi le iro: O “Caso Bebeto”.Helal , Ronaldo & Coelho, Maria Cláudia. (1995) . Modernidade e tradição nofutebol bras i le iro: O “caso Bebeto no futebol brasi le iro”. In : Pesquisa de Campo– Revis ta do Núcleo de Sociologia do Futebol ; UERJ nº 2 (1995). 91-99p
351 - Jornal do Brasi l , 18 de ju l /1989, p .24
380
O caso Bebeto tomou notoriedade, por envolver um ídolo da torcida
do Flamengo que se transfere para o Vasco da Gama, um clube considerado
arqui-rival e pertencente à mesma cidade. Flamengo e Vasco representam o
oposto, onde a emulação entre os dois clubes se faz presente em
praticamente todas as instâncias sociais. Esta rivalidade rubro-negra e
cruzmaltina foi estudada por Kowalski 352 em seu doutoramento: ‘Por que
Flamengo?’ Segundo Kowalski, a rivalidade existente hoje no futebol entre
os dois clubes teria surgido nos esportes náuticos, quando o esporte
começava a ser praticado no Brasil. Os eventos esportivos no mar e nos
clubes tornaram-se desde então referências sócio-culturais (p.52). Nos
primeiros anos do século XX, os dois clubes disputavam aguerridamente os
títulos dos esportes náuticos na cidade do Rio de Janeiro (p.53).
Figura 16 – Bebeto no Flamengo em 1986
352 - Kowalski , Marizabel (2001). Por que Flamengo? Tese de doutorado. Programade Pós-graduação em Educação Física. UGF. Rio de Janeiro .
381
Na representação social, outras imagens são produzidas, quando
há um encontro esportivo entre as duas agremiações: bacalhau x urubu,
brasileiros x português etc, intensificando a rivalidade.
Bebeto despontou no futebol brasileiro por intermédio da equipe do
Vitória - BA, onde atuou nos anos de 1983 e 1984. Aos 20 anos, devido à
sua admirável performance, rapidamente foi contratado pelo Flamengo353,
em um período em que Zico já havia se consolidado como o principal ídolo
da equipe rubro-negra e do futebol brasileiro. Naquele momento, o
Flamengo era considerado a primeira força do nosso futebol, principalmente
devido ao número de conquistas alcançadas354. Portanto, Bebeto aparecia
como uma expectativa de substituição do ídolo Zico, jogador vitorioso que já
se encontrava com 30 anos (nascido em 1953) e neste mesmo ano, se
transferiu para a equipe italiana da Udinese.
Durante o tempo em que Zico esteve fora da equipe, Bebeto
aparecia como a principal esperança da equipe, um jovem jogador
respeitado e admirado pela torcida flamenguista. Todavia, durante os dois
anos em que Zico estivera fora (1983-1985355), a equipe não conseguiu
353 - Jornal dos Spor ts not i f ica que Bebeto , a inda na categor ia júnior , fo i vendidoao Flamengo por CR$ 65 mil cruzeiros . (Jornal dos Sports , 03 de jul /1989, p .1) .
354 - Tí tu los do Flamengo no in íc io dos anos 80: Campeão Car ioca 1981 - CampeãoBrasi leiro 1980, 1982 e 1983 - Taça Liber tadores da América 1981 - CampeãoMundial In terclube 1981.
355 - O ano de t ransferência de Zico para a Udinese (1983) fo i um ano em que oFlamengo conquistou o Campeonato Brasi le iro. Por tanto, apesar de constar queele f icou três anos fora, e le ter ia par t ic ipado no ano de transferência da campanha
382
nenhuma conquista expressiva. Observemos que somente em 1986 o
Flamengo se tornou novamente Campeão Carioca e o título do Campeonato
Brasileiro só viria no ano seguinte (1987), momento em que Zico retornara
ao Clube. Foram dois anos sem títulos para uma equipe que conquistava
pelo menos um título por ano.356 Apesar da falta de títulos, o jovem
contratado revelou-se como um dos principais goleadores do futebol
brasileiro, sendo artilheiro do Campeonato Carioca nos anos de 1988 e
1989. Durante os seis anos em que esteve no Flamengo, Bebeto marcou
141gols em 284 jogos.
Zico retornou ao Flamengo em 1985 357, após dois anos no futebol
italiano, passando a compor a equipe juntamente com Bebeto. Portanto, os
dois, apesar do período em que Zico esteve se recuperando das suas
inúmeras lesões, formaram uma das duplas de atacantes mais valorizadas
do futebol brasileiro naquele tempo. Com a nova saída de Zico358, o qual
v i tor iosa da equipe rubro-negra. As competições européias ocorrem portemporada. Uma equipe, quando conquista um t í tu lo nacional , geralmente refere-se a campeão da temporada, por exemplo: Milan – Campeão I ta l iano da temporada2001-2002.
356 - O Flamengo foi campeão car ioca em 1978, 1979 e 1981. Foi campeãobrasi le iro em 1980, 1982 e 1983. Por tanto , seis anos seguidos como campeão dealgum evento de expressão. Enciclopédia do Futebol Brasi le iro. (2001) Rio deJaneiro. Arete Editor ial S/A. v 1. p . 166.
357 - A Enciclopédia do Futebol Brasi le iro vol I I t rás que Zico esteve na equipe daUdinese no per íodo de 1983 a 1985. Todavia, t rás também que o jogador esteve naequipe do Flamengo de 1985 a 1989. Portanto, as datas se cruzam, parecendo queo jogador esteve durante algum tempo in tegrando os dois c lubes. Rio de Janeiro.Arete Edi tor ial S/A. v II . p . 374.
358 - Helal e Coelho (1995) . Modernidade e t radição no futebol Brasi le iro : O “CasoBebeto” aponta que Zico ainda ter ia disputado algumas par t idas do CampeonatoBrasi leiro de 1989 e só ter ia parado def ini t ivamente em uma par t ida deconfraternização entre o Flamengo e uma equipe formada por jogadores de váriospaíses . Entretanto, deu prosseguimento na sua vida de jogador por mais algumastemporadas no futebol japonês.
383
anunciara que pararia de jogar profissionalmente em 1989, Bebeto
rapidamente se tornou o jogador mais prestigiado da equipe, um ídolo que já
havia adquirido status de uma elevada parcela da torcida rubro-negra.
Conforme Helal e Coelho (1995), mesmo antes de o Zico abandonar os
campos, Bebeto já havia adquirido autoridade de ídolo da torcida
flamenguista.
O contrato de Bebeto com o Flamengo venceu no dia 30 de junho,
período em que o jogador estava integrando a seleção brasileira que
disputaria a Copa América de 1989, realizada no Brasil, e as eliminatórias
para a Copa do Mundo de 1990. Segundo informações da direção do clube
da Gávea, ele estava jogando pela seleção brasileira, resguardado por um
seguro. Neste período, o seu procurador já articulava a renegociação do seu
novo contrato, estipulando inicialmente o valor de 100 mil dólares, conforme
aponta o Jornal dos Sports:
“O procurador de Bebeto acha que, para começar a conversarsobre renovação, os dirigentes deveriam oferecer pelo menos 100mil dólares – cerca de NCz$ 370 mil no câmbio paralelo – no atoda assinatura e mais 100 mil dólares após um ano, isso semcontar os salários do atacante.” (14 de jul/1989. p.3)
Estes valores foram contestados pelo Flamengo, intensificando os
rumores acerca de uma possível contratação do jogador por outro clube.
384
Figura 17 – Bebeto – Copa América 1989
O Flamengo não admitia a negociação e passa a acusar o
procurador do jogador pelo desconforto gerado. Um dia depois do
vencimento do contrato do jogador, o presidente de futebol do clube, George
Helal, afirmara que a negociação com o Bebeto já fazia parte do passado,
confiante de que estava perante uma solução entre as partes:
“Para o Flamengo nada mudou. O clube, garante George Helal,nunca teve interesse em negociar o jogador. Pelo contrário.Apenas cedeu a carta com o preço do passe fixado para nãoatrapalhar a carreira de Bebeto. Mas isso agora faz parte dopassado. Todos sabem que o Flamengo nunca teve interesse emvender Bebeto. Seu procurador foi que insistiu sempre numapossível negociação.” (Jornal dos Sports, 01 de jul/1989, p1)(grifos nossos)
385
Durante a disputa da Copa América de 1989, após um início
discreto, Bebeto se tornou o fundamental nome da competição, recebendo
até mesmo calorosos elogios de jogador argentino Diego Maradona, dizendo
inclusive que o indicava para ser seu substituto na equipe italiana do Napoli,
caso viesse a deixar o clube.359 Devido à sua performance e à artilharia da
competição, que resultaram no título conquistado para o Brasil depois de 40
anos (o último foi em 1949), Bebeto tornou-se também um ídolo nacional.
Nas negociações preliminares, o jornal O Globo (24 de jul/1989)
noticia que Bebeto havia exigido uma quantia de duzentos mil dólares por
um ano de contrato e o presidente do Clube Sr. Gilberto Cardoso Filho não
admitiu este valor e ainda ironizou a proposta, ao dizer que o jogador “não
estava com bola para pedir isso tudo”. Entretanto, para azar dos dirigentes
flamenguistas, à medida que as negociações caminhavam, Bebeto
apresentava melhores atuações na Copa América. Como desfecho dos
fatos, Bebeto teria aumentado para quinhentos mil dólares os valores
solicitados.
O Jornal dos Sports noticiou que a quantia estabelecida pelo
jogador para reafirmar seu compromisso com o Flamengo era de R$ 350 mil.
Portanto, R$ 150 mil a menos do que indicava O Globo.
O papel da imprensa se estabelece na tentativa de manter uma
imagem ou uma idéia em circulação, provocando interesse, criando elo entre
o produto produzido (a notícia) e o consumidor. O conteúdo jornalístico deve
359 - Jornal dos Spor ts (17 de ju l /1989, p .4) Maradona em negociação com a equipeFrancesa Olimpique de Marselha, d iz que o havia escolhido como seu herdeiroideal no Napoli .
386
ser dotado de teses que sejam capazes de se atualizarem
permanentemente, até que esgote o seu interesse (Souto, 2002). Desta
forma, o valor solicitado por Bebeto, se foi de R$ 350 mil ou R$ 500 mil,
torna-se um elemento especulativo. A imprensa interessa em criar a imagem
impactante capaz de gerar o interesse público pelo assunto.
Em razão deste embate sobre os valores e da demora do Flamengo
em se posicionar, o procurador do jogador, José Moraes, solicitou que o
clube apresentasse uma proposta de valor de venda360, conforme
estabelecia a “Lei do Passe”. Naquele momento, caso o jogador e o clube
não entrassem em acordo financeiro, o Flamengo poderia perder seu direito
sobre o jogador. O procedimento era o seguinte, segundo a legislação
esportiva da época: 1 - a partir do impasse entre as partes, a Federação
fixava o valor do passe do jogador; 2 - após um mês da expedição do
documento fixando o valor do passe, qualquer clube poderia contratá-lo,
independentemente do consentimento do clube; 3 - bastava realizar o
depósito do valor do passe pré-estabelecido com consentimento da
Federação para adquirir os direitos sobre o passe do jogador.
O Jornal dos Sports do dia 14 de jul/1989 noticiou que, devido à
dificuldade na negociação, Bebeto estaria inclusive disposto a comprar seu
próprio passe e, para concretizar esta intenção, deveria ficar fora dos
campos por seis meses, aguardando a desvalorização do passe, que a cada
mês reduziria o valor (p.3). O valor da redução sobre o preço estipulado era
360 - Cada um dos jornais apresentava um valor d iferente para es ta car ta deintenção de venda. O Jornal dos Sports noticiou que o valor era 2 milhões e 400mil dólares (01 de ju l /1989, p .1) .
387
de cinco por cento ao mês (Jornal dos Sports, 21 de jul/1989, p.12).
Portanto, em seis meses, devido às reduções, Bebeto poderia comprar seus
direitos federativos.
Diante da possibilidade de transferência para outro clube, o vice-
presidente flamenguista Josef Berensztejn demonstrou ironia quanto ao
interesse de outra agremiação: “O preço do Bebeto já está fixado em cerca
de 7 milhões e 100 mil cruzados novos. O interessado não precisa nem
mesmo vir a Gávea. Basta depositá-los na federação - disse irritado.” (Jornal
dos Sports, 18 de jul/1989, p.4)
A ausência do presidente do clube, que neste período se
encontrava em viagem à Europa, mobilizou todos os demais membros da
diretoria rubro-negra, na tentativa de recuperar o tempo perdido nas
negociações, percebendo o desgaste que tal impasse provocava. Os
esforços foram canalizados para não permitir a saída do jogador.
Márcio Braga, presidente do Conselho Deliberativo, demonstrou em
uma entrevista a insatisfação dos dirigentes perante o envolvimento do
procurador do jogador: “O Flamengo vem tratando o caso com muita
correção. Mas somente com o jogador, que é patrimônio do clube. Tudo
vem sendo muito mal conduzido é com o seu procurador (...)” (Jornal dos
Sports, 19 de jul/1989, p.2) (grifos nossos)
Diante da tensão estabelecida pela negociação, o procurador de
Bebeto teve proibida a sua entrada no Clube da Gavea, sendo acusado de
“picareta” e “estelionatário” (Jornal dos Sports, 19 de jul/1989, p.2). A
388
proibição foi contestada por Bebeto, que ameaçou não mais pisar no clube,
se a determinação não fosse revogada (Jornal do Brasil, 21 de jul/1989,
p.20).
Interessante salientar a fala de Márcio Braga, acima citada, quando
ele se refere ao jogador como um patrimônio do clube. Esta estrutura de
vínculo norteava praticamente todos os contratos na modalidade de futebol,
onde o clube (patrão) era dono do seu jogador (criado) e, portanto, cabia ao
criado respeitar ou admitir os desígnios do seu senhor.
O transtorno maior do caso ocorreu quando o Clube Vasco da
Gama manifestou interesse em contratá-lo, o que acabou por fazê-lo,
gerando uma série de narrativas sobre o episódio, conforme comentaremos
a seguir.
A intenção da contratação do jogador pelo Vasco caiu como uma
bomba no clube da Gávea. Inicialmente, suscitando desconfiança, pois
acreditavam que se tratava de uma artimanha do empresário do jogador,
que buscava com esse boato aumentar o valor da transação, articulando a
torcida a pressionar os dirigentes por uma rápida resolução do problema.
Diante da possibilidade incômoda de verem a transferência de seu
jogador para o clube de São Januário, os dirigentes rubro-negros
mostraram-se alvoroçados, desacreditando nas pretensões vascaínas, uma
vez que parecia existir um código tácito de respeito entre os dois clubes.
Rompido este código de respeito mútuo, o desfecho final do acontecimento
poderia ser desastroso, como foi para o Flamengo. Observemos que George
389
Helal se sustenta na hipótese de desinteresse colocada pelo dirigente
vascaíno:
“O Gilberto fez questão de deixar claro que não existe nenhumapossibilidade do Bebeto acabar no Vasco. Isso é uma grandebesteira. Bebeto pode até não continua no Flamengo, mas para oVasco ele não vai! O presidente Calçada361 procurou oGilbertinho para lhe garantir o desinteresse na negociação. ”(Jornal dos Sports, 18 de jul/1989, p.4) (grifos e notas nossos)
Naquele momento, pareciam estar em jogo não somente a
transferência e os valores financeiros, mas também os valores simbólicos
que caracterizavam o antagonismo entre os dois clubes: “Bebeto pode até
não continuar no Flamengo, mas para o Vasco ele não vai!”. No contexto, os
dirigentes tentam demonstrar publicamente que não tratariam a questão da
transferência do Bebeto sem considerar os sentimentos que animavam a
rivalidade entre Vasco e Flamengo. A construção da identidade e da
alteridade que se dá na emulação esportiva parece se confundir com a
própria estrutura do esporte moderno. Trata-se de um negócio, mas os
valores afetivos, às vezes, sobrepõem os motivos financeiros. Desta forma,
a rivalidade entre os clubes estabeleceu novos parâmetros para a transação.
Antes de o jogador assinar o contrato com o Vasco, os diretores do
Flamengo resolveram reconsiderar a sua proposta aceitando firmar o
contrato no valor de quinhentos mil dólares. Apesar de o Flamengo admitir
este valor, Bebeto ainda preferiu transferir-se de clube, alegando estar
361 - Presidente do Clube de Regatas Vasco da Gama na época.
390
magoado com as declarações dos dirigentes flamenguistas e também já ter
se comprometido com os dirigentes vascaínos.
O jogador que continuava em competição, pela seleção nacional,
passou a ser o alvo das atenções nos momentos das entrevistas, ainda que
fossem coletivas. Sua posição que inicialmente era moderada foi fragilizada
pelo assédio da imprensa e dos empresários que dominavam a transação.
O jogador demorou admitir a transferência para o clube de São
Januário e, quando o fez, colocou como era difícil estar do outro lado,
dizendo que tal atitude nunca poderia ser imaginada por ele, demonstrando
a dificuldade que encontraria em ter que enfrentar o Flamengo em alguma
competição: “Antes nunca tinha passado pela minha cabeça essa
possibilidade. Fica difícil me imaginar vestindo a camisa do Vasco em um
jogo contra o Flamengo” (Jornal dos Sports, 19 de jul/1989, p.2).
Observemos como o jogador assume uma narrativa que se vincula às
demandas de pertencimento e amor que os atletas devem apresentar em
relação aos seus clubes e à seleção nacional.
Entretanto, Bebeto, no transcorrer da negociação, demonstrava sua
apreensão e realizava alguns comentários que ilustram a forma como o
jogador vivenciava o desenrolar dos fatos. No dia 17 de julho, ele se
queixara da falta de interesse do Flamengo: “O Flamengo não me deu valor.
Não entendo os dirigentes. Vendem tantos jogadores e não podem me fazer
boa proposta para renovar.” (Jornal do Brasil, 17 de jul/1989, p.4) Apesar da
queixa, o jogador continuou afirmando o seu envolvimento afetivo com o
clube: “Eu queria ficar, aprendi a amar esse clube e, se fosse só pelo
391
coração, permaneceria.” (Jornal do Brasil, 18 de jul/1989, p.24) (grifos
nossos)
Ao admitir que não mais teria condições de permanecer no
Flamengo, Bebeto afirma ter rompido com o clube e, em tom de mágoa,
coloca que os dirigentes teriam uma surpresa quando chegasse a hora:
“Sinto-me triste, magoado mesmo. Vai ser pior ainda quando tiverque enfrentar o Flamengo. Mas sou profissional e tenho quecolocar na minha cabeça que a carreira do jogador é curta. Nãome trataram bem, como eu merecia e já que foi assim, eles vãoter uma surprezinha no dia 27, quando eu anunciar o nome domeu novo clube.” (Jornal dos Sports, 23 de jul/1989 p.5)
Bebeto posicionou-se como um profissional que não pode agir pelos
impulsos afetivos. Colocou ainda que, devido ao fato de a carreira do
jogador ser curta, não poderia desprezar as oportunidades. Observemos
que os discursos de ordem racional se interagem com os de ordem
emocional. Lamentava com tristeza ter que deixar o clube, mas demonstrava
sua mágoa ao ameaçar os dirigentes do Flamengo quanto à surpresa que
teriam ao saber para qual clube seria transferido. Observemos ainda que o
discurso da postura profissional se fragiliza, quando o jogador se coloca
como vítima diante da falta de interesse do Flamengo.
Apesar do discurso em que afirmava a vontade de ficar e do amor
adquirido pelo clube rubro-negro, depois de definido seu contrato com o
Vasco da Gama, ele admitiu que, secretamente, desde criança torcia pela
equipe de São Januário, por influência do avô (O Globo, 27 de jul/1989,
p.30). Parece ficar evidente, apesar de toda a estrutura racional que deve
392
envolver a transação profissional, o fato de que este esporte exige, antes de
tudo, que o jogador apresente sinais de amor e pertencimento ao clube que
o contrata. Neste sentido, Bebeto inventa ou vasculha sua memória para
descobrir vínculos com o novo clube.
Mesmo depois de verbalmente definido o contrato entre Bebeto e o
Vasco, quando o clube estava por apresentar o dinheiro para finalizar a
compra, o caso tomaria outro rumo, devido à pressão exercida pelos
dirigentes rubro-negros sobre Bebeto e sua família. Um diretor do Flamengo
chegou a insinuar os riscos que estariam correndo (Bebeto e sua família)
perante os torcedores fanáticos, quando estes poderiam não entender sua
atitude ao abandonar o clube. A segurança de Denise, esposa do jogador
que estava grávida do seu primeiro filho foi colocada em risco (Jornal do
Brasil, 28 de jul/1989, p.22). Tal fato foi denominado pelo jornal de
“Artimanhas Rubro-negras para coagir o atacante.” Para o Jornal do Brasil,
nada mais do que pressão dos desesperados diretores flamenguistas, na
tentativa de fragilizar o jogador e sua família. Apesar de o analista da
imprensa considerar artimanha o suposto perigo que Bebeto e sua família
enfrentariam, o que interessa em termos sociológicos é o fato de o esporte
revelar em sua estrutura sentimentos semelhantes à situação de traição de
um soldado a sua comunidade ou à pátria.
Diante da pressão, Bebeto admite ficar, mas transfere a
responsabilidade para a diretoria rubro-negra, quando estes deveriam tentar
convencer os diretores vascaínos responsáveis pela transação a desistirem
da contratação. Todavia, os diretores vascaínos que foram contactados
393
pelos desesperados dirigentes flamenguistas se esquivaram da situação,
afirmando não terem responsabilidade sobre o assunto.
Na edição do mesmo dia, do Jornal do Brasil, aparece mais um
desabafo de Bebeto frente ao descaso do Flamengo: “Eles me deixaram por
último. Agora de repente, vem me procurar até de madrugada. Não mudo
minha palavra. Acertei com o um clube e vou cumprir tudo. O Flamengo
acordou tarde.” (28 de jul/1989, p.22)
Esta confusão em torno da renegociação do contrato e da
transferência durou praticamente o mês de julho inteiro na imprensa, apenas
secundarizada, algumas vezes, pelo fato de a seleção brasileira estar,
durante este período, envolvida em duas competições (Copa América e
eliminatórias para o mundial de 1990). As opiniões acerca da situação eram
externadas por inúmeras personalidades e jornalistas que se posicionavam
mediante a proximidade que estavam do assunto.
Washington Rodrigues, jornalista esportivo e flamenguista, em sua
coluna, defendia a atitude tomada pelo jogador quanto à transferência e
baseava sua posição na questão econômica relacionada à capitalização
prudente, visando o futuro. Apesar de sua filiação clubística, o jornalista
introduz argumentos racionais sobre o processo de negociação.
“Quero dizer que defendo a posição do Bebeto ao lutar com todasas forças para fechar um bom contrato. A vida está muito difícilpara todo mundo, no nosso país as regras do jogo mudam comuma facilidade inacreditável e ninguém sabe exatamente o queserá o dia de amanhã.” (Jornal dos Sports, 27 de jul/1989, p. 3)
394
Por outro lado, Zico, ao ser solicitado a posicionar sobre o fato, foi
breve e preferiu deixar sob suspeita a possibilidade de a CBF estar
mancomunada com os dirigentes do Vasco, uma vez que, no momento
desta negociação, o diretor de seleção brasileira era o dirigente Vascaíno
Eurico Miranda. “Espero que a Seleção Brasileira não se transforme em um
balcão de compra e venda de jogadores. O envolvimento da CBF precisa se
apurado.” (29 de jul/1989, p.21) Esta mesma insinuação quanto à
participação da CBF, no caso, foi realizada pelo presidente do Flamengo,
Gilberto Cardoso, ao chegar da Europa. Ele desabafa dizendo que houve um
período em que a diretoria da CBF era acusada de convocar jogadores para
vendê-los para o exterior e “agora os diretores os aliciam para seus clubes.”
(29 de jul/1989, p.21) Esta última fala expressa sentimentos de
pertencimento nacional e local; a primeira imagem é que a CBF, por
interesses comerciais, nos privava de ver os nossos melhores jogadores,
incentivando-os a se transferirem para o exterior; a segunda refere-se ao
fato de os dirigentes da CBF, por possuírem vínculos políticos ou afetivos
com os seus respectivos clubes, utilizarem este espaço como local de
aliciamento dos bons atletas para seus clubes.
Aos torcedores, segundo a ótica da imprensa, coube a pressão. De
um lado, a torcida vascaína aguardando a contratação, do outro a revolta
dos flamenguistas que imploravam para que o ídolo não abandonasse o
clube. Inclusive, quatro deles, responsáveis por facções de torcidas
organizadas, foram até a Granja Comari, em Teresópolis, onde a seleção
estava em treinamento, para tentar convencer Bebeto a permanecer na
395
equipe. Apesar de terem sido recebidos, a resposta foi negativa (Jornal dos
Sports, 26 de jul/1989, p.5).
Depois de efetivada a transferência à torcida de São Januário,
exaltava a força do novo contratado, enquanto os rubro-negros o
consideravam traidor. Para os vascaínos, Bebeto passou a ser aclamado
“Bebeto, arte e valentia” e para os flamenguistas, o “chorão traidor” 362
(Jornal do Brasil, 30 de jul/1989, p.36).
Figura 18 – Bebeto no Vasco da Gama -1990
Entre ações, troca de acusações, pressões sobre o jogador, sua
família e seu empresário, o desfecho foi a transferência para a equipe rival.
Apesar de ter perdido a disputa, alguns dirigentes e torcedores
396
inconformados com a saída do ídolo buscavam uma alternativa para
recuperação do jogador. Inclusive surgiu um movimento “Volta Bebeto”, cujo
objetivo era trazer de volta o jogador, quando chegasse ao fim seu contrato
com a equipe portuguesa (Helal & Coelho, 1995).
Percebe-se que os discursos operam sob duas lógicas
consideradas como inconciliáveis: os interesses financeiros, por um lado, e o
amor e o sentimento de pertencimento, por outro. A primeira aparece ligada
à ética profissional ou à lógica da ação racional em uma sociedade de
mercado e a segunda, à expressão dos sentimentos amadores que ainda
devem permanecer no seio do esporte profissional. Observa-se, por um
lado, o vínculo de Bebeto com o clube e os torcedores, as trocas de elogios,
o amor declarado; por outro, a condição profissional e a possibilidade de
melhor remuneração.
Helal e Coelho estendem o episódio até o primeiro jogo entre os
dois clubes, quando Bebeto jogaria pela primeira vez contra o Flamengo, em
novembro de 1989. Narram a péssima atuação do jogador, seu descontrole
e a expulsão. O Flamengo sai vencedor, com dois gols de um jogador ainda
desconhecido do público na época, chamado Bujica, que utilizara o mesmo
número de camisa que fora do Bebeto. Segundo Helal e Coelho, “É
extremamente revelador notar como a visão mais profissional do jogador de
futebol esbarra na mentalidade essencialmente amadorística dos torcedores”
(p.97), quando estes sentiram de alma lavada após o jogo. Enquanto Bebeto
362 - Esta denominação de “chorão” foi cr iado pelos torcedores vascaínos, poracharem que o jogador reclamava de tudo durante os jogos.
397
recebia um salário milionário, Bujica recebia um salário minguado de Ncz$ 1
mil, equivalente na época a menos de 100 dólares.
Para os autores, a presença de dois jogadores emblemáticos – Zico
e Júnior - neste jogo foi importante para entender o fato, onde o talento, a
experiência, a humildade e o amor dos dois pelo Flamengo teriam sido
enfatizados. Helal e Coelho apontam que a imprensa da época contrapôs a
atitude de Bebeto à magia do “amor dos dois veteranos pelo clube.”
Observemos que tanto os torcedores quanto os jornalistas não colocam o
fato de ambos terem deixado o Flamengo em busca de melhores salários na
Europa, em pé de igualdade com a transferência de Bebeto. Provavelmente,
se tivessem se transferido para uma equipe rival, o discurso circulante
acerca da transferência desses dois ídolos teria outros contornos.
Possivelmente, fariam aflorar mágoas e desconfianças dos torcedores rubro-
negros, da mesma forma que ocorrera com Bebeto. Todavia, jogar na
Europa representava para o jogador um mérito esportivo, adquirido pelos
feitos e realizações em nome do clube; mesmo ao deixar a equipe, reforça o
prestígio do jogador com os torcedores, exceto para alguns radicais.
Helal e Coelho categorizam suas análises do episódio em moderno
e profissional, transferindo para suas argumentações um discurso
relacionado ao que eles chamaram de dilema brasileiro entre a hierarquia
(código tradicional) e a igualdade (código moderno) (p.92). Colocam os
autores que o processo da transferência constantemente entrelaçava os dois
códigos e confrontava um modelo empresarial x um modelo paternalista.
398
“De um lado, está a questão financeira: um profissional em buscado melhor contrato. Código moderno, capitalista, individualista. OFlamengo cobre a proposta do Vasco: um jogador ofendido,sentindo-se desprestigiado. Código pessoalizado. O adiantamentonegado pelo Flamengo e dado pelo Vasco: modelo empresarial Xmodelo paternalista. A paixão secreta pelo Vasco: verdade ounão, código das relações pessoais e da paixão.” (p.94)
Parece que, diante dos fatos coletados em jornais e dos estudos de
Helal e Coelho, poderíamos perceber que os discursos acerca do vínculo do
jogador com valores amadores e profissionais apresentaram uma
argumentação fragilizada, na qual a imprensa se sustentou no discurso
dúbio, que às vezes ponderava a favor do jogador, outras vezes para o lado
do clube. Mesmo diante das pretensões profissionais, seu discurso recaia
sobre valores afetivos. Da mesma forma, o discurso dos dirigentes e
empresários ponderava os dois valores.
Observemos que, em determinado momento do episódio, Bebeto
passa a ser acusado de se guiar apenas pela lógica profissional sem
considerar os vínculos afetivos que o clube e os torcedores esperavam dele.
Este mesmo argumento também foi utilizado por Bebeto ao dizer que o
clube não respeitava seus sentimentos, e que o clube não se empenhou em
lhe realizar uma proposta para justificar a sua permanência.
Vejamos que no plano narrativo, os valores afetivos surgem como
preponderância sobre os valores econômicos, mas que o desfecho do
episódio foi estabelecido sobre o interesse econômico.
399
Capítulo XVIIDavid Fischel – um dirigente modelo ?
”Voltará o tempo em que atleta pagava parajogar.”363
(David Fischel)
O futebol brasileiro, ao final dos anos 90 do século XX e início dos
primeiros anos do século XXI, se vê diante de uma generalizada crise
financeira, administrativa e moral. O apelo público dos torcedores e as
denúncias apontadas pela mídia ao longo dos tempos impulsionaram a
necessidade de interferência do Estado sobre a administração dos clubes,
em diversos âmbitos. A pressão culminou com a abertura de duas
Comissões Parlamentares de Inquérito, uma instaurada na Câmara dos
Deputados e outra no Senado, que ficaram conhecidas como a “CPIs da
Bola”.
A CPI do futebol apontou diversas irregularidades da CBF, das
federações, e dos dirigentes esportivos brasileiros e seus clubes. Os mais
aclamados clubes brasileiros, com raras exceções, encontravam-se
afundados em dívidas com credores, justiça trabalhista, fisco, INSS e fundo
363 - Jornal Lance, 28 de abr/2002, p .8 .
400
de garantia, além de salários atrasados e direitos de imagem dos seus
principais jogadores.364 Observa-se que em uma empresa privada, tais
problemas seriam motivos para se decretar falência, entretanto, os clubes
continuam desenvolvendo suas atividades normalmente. Ainda que os
clubes reconheçam suas falhas administrativas, não admitem as propostas
de remodelação da legislação que tornem suas contas públicas
transparentes como qualquer balancete de uma empresa privada. Os clubes
ainda reivindicam proteção e amparo do governo, por confiarem no capital
político que o futebol possui na conjuntura brasileira.365
Em 2001, o Fluminense e os demais grandes clubes cariocas
(Flamengo, Botagogo e Vasco) encontravam-se endividados.366 A crise
364 - Em 1997, o Jornal Folha de S. Paulo divulgou um suplemento denominado“País do Futebol” , onde coloca que o governo federal aper tar ia o cerco aosclubes, devido `ss suas dívidas. A dívida to ta l dos pr incipais c lubes brasi le irosestava est imada em R$ 97,5 milhões, ass im dis tr ibuídos: Imposto de renda, 21milhões; FGTS, R$ 27,2 milhões; e INSS, R$ 49,2 milhões. (Folha de São Paulo,27 de fev/1997, p .15) .Em 2004 novos valores desta d ívida foram publicados pelo jornal Lance. A uniãodivulgou que a d ívida dos clubes com o INSS estava na ordem de 352,4 milhões.(Jornal Lance, 24 de abr /2004, p .16) Vejamos que de 1997 a 2004 os valoresforam elevados (de 97,5 milhões para 352,4 milhões) e , pelo que parece, ogoverno não conseguiu impor uma diretr iz administrat iva que f izesse com que osclubes cumprissem suas obr igações f inanceiras com a união.
365 - Ao reassumir a presidência do Flamengo em 2003, o d ir igente Márcio Bragatenta pressionar o governo federal f rente às d ívidas do clube com a união, d izendoque o clube entrar ia em moratór ia . Devido à sua dívida e inadimplência , o clubefoi excluído do Ref is (Programa de Recuperação Fiscal) . Essa querela se deupr incipalmente pelo fa to de o pr incipal patrocinador do Flamengo ser a estata lPetrobrás , que, devido à dívida do clube com a união, f icou proibida de repassaras cotas de patrocínio, o que provocou um colapso nas f inanças do clube. (JornalLance, 21 de fev/2003, p .7)Em abr i l de 2004, a d ívida do Flamengo com o INSS já estava na ordem de 37,4milhões. (Jornal Lance, 24 de abr / 2004, p .16)
366 - Em abr i l de 2001, a d ívida do Fluminense estava est imada em 60 milhões,sendo que R$ 30 milhões eram com o f isco e tr ibutár ia (R$ 10 milhões somentecom o INSS). Os outros R$ 30 milhões es tavam relacionados à compra dejogadores, d iv idas com fornecedores e ações t rabalhis tas . Para renegociar asdívidas, o clube entrou no Ref is , entretanto, por exigência do programa, teve que
401
financeira divulgada coloca os dirigentes como os vilões da história. Neste
cenário, surge uma esperança: o Sr. David Fischel, 367 dirigente do
Fluminense, como exemplo do competente e honesto administrador,
segundo a perspectiva da imprensa carioca. Márcio Guedes368 dedica a sua
coluna ao presidente tricolor, publicando uma entrevista concedida pelo
dirigente, intitulada como Um cartola acima de suspeita.369 Fischel declarou
sua proposta de reestruturar o clube e admitiu que tentaria a reeleição em
dezembro de 2002.
se comprometer com a Caixa Econômica Federal de saldar a dívida que t inha como Fundo de Garant ia . (Jornal Lance, 2 de abr /2001, p .13) . O Jornal Lanceapresentou em 2004 novos números da d ívida dos clubes. O Fluminense foicolocado como o 3º maior devedor ao INSS (17,9 milhões) . Por não ter cumpridoas exigências do governo o clube foi excluído do Ref is . Observemos que omontante da d ívida fo i de aproximadamente 8 milhões em relação ao ano de 2001.(Jornal Lance, 24 de abr /2004, p .16)
367 - É engenheiro Civi l , pres idente de uma empresa de Engenhar ia, nascido em1935.
368 - O jornal is ta Márcio Guedes, em sua coluna Contra-ataque no cadernoespor t ivo Ataque, do jornal O Dia, em 04 de nov/2001, tece inúmeros elogios aoest i lo do dir igente. (Jornal Lance, 02 de abr /2002. p .13)
369 - Jornal O Dia – Caderno Ataque, 04 de nov/2001, p .16
402
Figura 19 – Um cartola acima de suspeitas – Jornal O Dia /Caderno Ataque, 04 denov/2001, p.16
Para Márcio Guedes, Fischel “é ave rara no futebol por ser
honesto”:
“O presidente do Fluminense, David Fischel, é uma unanimidadeno mundo do futebol quando o assunto é ética. Ele já sai na frenteda maioria em uma época de CPIs, denúncias, corrupção,paraísos fiscais e lavagem de dinheiro. O que seria umaobrigação moral de qualquer administrador passou a ser ummérito especial, e isso tem sido até motivo de crítica dos seusadversários. Mas, Fischel, com elegância e sobriedade, garanteque, para muito além do seu imaculado currículo, ele pretendemesmo fazer uma revolução administrativa do Flu e transformá-loem um clube vitorioso e economicamente viável.” (Jornal O Dia,Caderno Ataque, 04 de nov/2001. p.16).
403
Nesta entrevista, o dirigente admite a dificuldade de se administrar o
Fluminense. Todavia, declara que não honraria com as dívidas das gestões
anteriores. A imprensa constrói a competência de um administrador que
afirma: “Resolvemos honrar os compromissos somente a partir de
nossa entrada no clube, racionalizar custo e dar toda a estrutura
profissional ao futebol.” (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 04 de nov/2001.
p.16) (grifos nossos). Fischel parece propor uma espécie de moratória do
futebol. Estaria aí a competência de Fischel em adotar o velho expediente de
outros dirigentes do futebol? Márcio Guedes apontou como moderno e “uma
unanimidade no mundo do futebol quando o assunto é ética.”(p.16) Parece-
nos bem mais simples gerenciar um clube começando do zero, sem olhar as
dívidas passadas. Por esse critério, poderíamos acabar com a figura jurídica
da falência. Não é nosso propósito aqui realizar um julgamento da
administração do Sr. David Fischel, embora nossas argumentações possam
sugerir uma espécie de denúncia. Nossa intenção centra-se na tensão que
coloca em conflito o amadorismo e o profissionalismo no campo das
narrativas.
Fischel, quando questionado sobre como administrar contratos e
salários, nos moldes atuais, o dirigente aponta as dificuldades encontradas:
“Sem um comando profissional e um patrocinador que banqueinvestimentos e aufira lucros, a coisa é inviável. Temos uma folhano futebol de R$ 1 milhão e 300 mil, vários jogadores queganham, mas de R$ 100 mil por mês, enquanto os recursos sãoescassos. Não fosse a TV, todos já estariam literalmente noburaco. Seria fundamental um acordo para limitar os salários.
404
A questão social do clube atrapalha também. Porque poucospagam e de contribuições sociais recebemos menos de R$ 100mil por mês. Os clubes no Rio ficaram asfixiados pela falta derecursos (...).” (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 04 de nov/2001.p.16) (Grifos nossos)
Diante do seu lançamento para um novo pleito, o dirigente mostra-
se cauteloso prometendo “manter a política de honestidade e austeridade”,
que caracterizou o seu primeiro mandado. Não prometeu novas
contratações para a próxima temporada, justificando a necessidade de
parcerias para poder manter os compromissos em dia.
Diante das crises financeiras, em entrevista ao jornal Lance de 28
de abril de 2002, Fischel coloca que “temos que voltar à era do amadorismo”
e suspeita “que tem faltado amor à camisa”. Segundo Fischel, não há mais
como realizar os contratos milionários no futebol brasileiro. O limite deveria
ser de R$ 50 mil mensais para os jogadores do Fluminense. Refletindo sobre
o desempenho do clube no campeonato brasileiro de 2001, o dirigente
mostra-se decepcionado com o rendimento da equipe, que, ao ficar de fora
das fases finais do campeonato, perdeu receita de aproximadamente 5
milhões de reais. Esta cifra seria suficiente para pagar três meses de
salários dos jogadores. Coloca ainda a necessidade de uma nova
concepção de gerência do futebol e prometeu “combinar gestão empresarial
com espírito amadorístico em campo. (...). Vamos gerir o clube de forma
empresarial, mas, em campo, temos que voltar à era do amadorismo,
resgatar este espírito.”(Jornal Lance, 28 de abr/2002. p.8) (Grifos nossos).
Questionado sobre o que significava este amadorismo, Fischel respondeu:
405
“Os contratos altos vão acabar. O atleta não pode falar tanto emdinheiro. Nos esportes olímpicos, vamos abandonar asmodalidades que não tem patrocínio. Só natação e tênis sesustentam. Basquete era exceção, mas vamos parar. Voltará otempo em que atleta pagava para jogar.” (Jornal Lance, 28 deabr/2002. p.8) (grifos nossos)
O que significa amadorismo no discurso do dirigente?
Fischel, em suas falas, estabelece diferenças. Enquanto os
dirigentes devem administrar pautados na racionalidade econômica, os
atletas devem apresentar envolvimento e vínculo afetivo, isto é, dedicação
incondicional, ao vestir a camisa do clube. Os valores amadores parecem
ser funcionais ao argumento de redução da folha de pagamento. Fischel
pode estar insinuando que ser amador no futebol profissional significa que
os jogadores deveriam ficar atentos de que seus ganhos poderá estar
matando ‘a galinha dos ovos de ouro’. Assim, se gostam da profissão, não
podem acabar com ela, pois os contratos milionários podem ter um efeito
perverso. Vejamos que suas idéias acentuam-se em um típico exemplo de
argumento da perversidade, na perspectiva de Hirschman (1992).
406
Figura 20 – Entrevista jornal Lance, 28 de abr/2002, p.8
Fischel, falava em alavancar a receita do clube com o apóio de
empresas, porém necessitava de uma grande contratação. Fischel
estabelece, como meta para a temporada de 2002, a reformulação do elenco
para concretizar o projeto Fluminense 100 anos. Uma grande contratação
deveria ser realizada visando o campeonato brasileiro e a luta por um título
de expressão neste ano comemorativo. Romário foi anunciado como novo
jogador para a temporada, dando aos torcedores uma contratação de peso e
407
apostando que ele seria o jogador apropriado para a concretização do
projeto de centenário do clube.
Romário370 transfere-se para o Fluminense, após não renovar seu
contrato com o Vasco. Durante o processo de contratação, a imprensa
silenciou as bases do contrato e só divulgou a emoção dos torcedores e
dirigentes do clube. Somente mais tarde é que a imprensa noticiaria as
exigências do jogador para aceitar um contrato de apenas cinco meses de
vigência.
O modelo de gestão moderna e racional de Fischel cede às
pressões do compadrio. O jogador exigiu a contratação do apoiador Beto,371
por ser seu amigo. Como exigência contratual, Romário solicitou: 1) viajaria
mais tarde que os companheiros, quando o jogo fosse em outros Estados; 2)
em viagens mais longas, as passagens deveriam ser na classe executiva,
sendo os bilhetes pagos pelo clube; 3) sempre que solicitasse com
antecedência, poderia modificar seu horário de trabalho e treinar
separadamente dos demais integrantes da equipe; 4) nos dias seguintes aos
jogos, não se apresentaria ao clube; e 5) contratação de um fisioterapeuta e
preparador físico particular (Jornal Lance, 29 de ago/2002). Esta exigência
do Romário foi aprovada pela direção do clube, que via na contratação do
370 - Romário de Souza Far ias Fi lho nasceu em 1966. Um dos pr incipais jogadoresbrasi le iros de todos os tempos. Trata-se também de um dos mais vi tor iososjogadores do mundo. As especulações jornal ís t icas colocam que o jogadorreceberá R$ 140 mil mensais , sem atraso, pagos pela Unimed (aproximadamente47 mil dólares) .A coluna “Os bast idores da bola” do jornal Lance informou que para cada R$ 1(um real) invest ido em Romário, a Unimed ganha R$ 3 (Três reais) . Jornal Lance,01 de jun/2004, p .4
371 - O jogador receberá R$ 60 mil por mês (20 mil dólares) .
408
jogador uma possibilidade de resgate do prestígio com os torcedores que
solicitavam um reforço renomado para a temporada.
Observemos que, ao fazer estas exigências contratuais, Romário
rompe com a administração enxuta de Fischel, com o espírito amador que o
dirigente reivindicava e com a imagem de que as regras e os
comportamentos de uma equipe devem ser para todos, apesar das
diferenças salariais, que são comuns. Romário é uma celebridade, exige
como atores de Hollywood privilégios até então não reivindicados no futebol
brasileiro em base contratual.
Fischel defendeu as regalias do jogador, justificando que o currículo
de Romário respondia pelas inquietações provocadas:
“Sabíamos o que estávamos comprando quando o contratamos.Conversamos sobre isso e fizemos um acordo. Ele tem uma sériede compromissos particulares e nós respeitamos. O que nosinteressa é o desempenho em campo. Quem quiser esta condiçãoprecisa ter currículo, ser como ele. Estou impressionado com oprofissionalismo de Romário. O grupo sabe que se trata de umjogador diferenciado.” (Jornal Lance, 29 de ago/2002 p.14)
Observemos que o amadorismo sai do discurso de Fischel para
entrar o argumento de defesa do profissionalismo. A linguagem agora é do
desempenho, do rendimento; a competência justifica a diferença. Vejamos
que o discurso do amor à camisa foi esquecido.
Quando questionado acerca da exigência de bilhetes em classe
executiva em viagens longas, Fischel justificou em tom de brincadeira: “Isto
foi pedido em função da condição física. Não vejo prejuízo técnico para o
grupo. E hoje (ontem) ele foi para Caxias do Sul com seu preparador físico
particular. Ele já vai treinado no avião” (p.14). Todavia, os preparadores
409
físicos afirmavam naquele momento que Romário se encontrava nas
mesmas condições dos demais jogadores. Seria este o profissionalismo que
Fischel passou a valorizar?
A contratação de Romário gerou dissidências internas. Os
jogadores que estavam com seus salários atrasados questionaram as novas
contratações realizadas com o apoio da empresa patrocinadora do clube, a
Unimed. (Jornal Ataque, 03 de ago/2002, p.4)
O presidente do clube ironiza as lamentações dos jogadores,
justificando a contratação de Romário: “O Fluminense ficou no quase na
Copa João Havelange e no Brasileiro por falta de gols. E Romário está vindo
para que esses gols saiam.” (Jornal Ataque, 03 de ago/2002, p.4).
Mesmo para a torcida, a contratação de Romário não foi totalmente
harmoniosa. Para alguns torcedores, o fato de o jogador ser flamenguista
não era um bom sinal. “Sou tricolor de coração, mas não gostei da
contratação, porque ele é flamenguista e está em decadência. O presidente
deu um presente de grego à torcida” – desabafou um torcedor (Jornal
Ataque, 03 de ago/2002, p.4). Observemos que a imprensa ressalta a
imagem do vínculo afetivo de Romário com o Flamengo pela fala do
torcedor. Os vínculos emocionais e afetivos dos jogadores às equipes que
defendem estão em constante suspeição.
A desconfiança, logo, acabou em função do desempenho. No
primeiro jogo contra o Cruzeiro, Romário marcou dois gols na vitória de 5 a 1
sobre uma equipe considerada pelos cronistas esportivos uma das principais
410
forças do campeonato. O Maracanã recebeu cerca de 66 mil torcedores372, o
sexto maior público de toda competição na estréia de Romário. Este dado
confirmaria a hipótese de Fischel de que Romário alavancaria a receita do
clube. O amadorismo é silenciado no discurso de Fischel a partir da era
Romário.
No final da temporada, a dívida do Fluminense com os jogadores
era de R$ 5 milhões, sendo 3 meses de salários e aproximadamente 8
meses de direito de imagem, mas os salários de Romário, conforme
exigência contratual, foram sempre pagos em dia. (Jornal Lance, 19 de
nov/2002, p.5)
Depois de confirmada a classificação para as quartas-de-final,
Fischel havia garantido que todas as verbas que entrassem no clube até o
final do ano seriam prioritariamente destinadas aos pagamentos dos
jogadores. “Estamos tentando uma operação financeira para pagar salários.
Os jogadores deram demonstração de alto profissionalismo” (grifos
nossos, p.5). Ao se referir à demonstração de profissionalismo, o dirigente
pretendia dizer que, embora com os salários atrasados, os jogadores se
empenharam em busca da classificação. Esta imagem também não é
adjetivada no seio da imprensa como um valor amador? Mesmo com os
salários atrasados, os jogadores se empenharam, fazendo prevalecer que
tipo de compromisso?
Fischel, para a temporada de 2003, declarou mais uma vez a
necessidade de redução da folha salarial em 30%. “Cortes salariais deverão
372 - Revista Lance A+, 18 A 24 ago/2002, ano 3 , nº103. p .19
411
ser feitos. A folha é alta. Quem não aceitar, deve sair. Nenhum jogador é
imprescindível” (p.4) – declarou o presidente insatisfeito com as declarações
do jogador Beto, que admitiu querer sair do clube. “Ele fez uma declaração
muito infeliz. Se ele não estiver satisfeito, é melhor procurar outro clube.”
(p.4). Aqui, a lógica do profissionalismo se impõe, pois o funcionário
insatisfeito é livre para vender sua mão-de-obra a outro empregador. Não há
apelo para o amor à camisa neste caso.
O modelo empresarial de Fischel sofre com os dados e o balanço
financeiro do clube. Resigna-se admitindo que para 2003 o clube não poderá
fazer grandes contratações. A solução deveria vir da adesão dos torcedores
ao Projeto Sócio-Torcedor, mas lamenta que o efeito esperado não tenha se
realizado. “Esperava que a esta altura já tivéssemos 50 mil pagantes no
projeto. São apenas 8 mil. Falam que temos três milhões de torcedores. Se
10% contribuíssem com R$10 mensais, teríamos todos os problemas
resolvidos. A torcida é a única saída.” (Jornal Lance, 27 de dez/2002, p.7)
O dirigente declarou que os jogadores deveriam ser contratados
com salários mais baixos; a solução deveria vir da formação de jogadores no
próprio clube. Afirma ainda que as contratações de Romário e Beto, como
ocorreu em 2002, foram ousadas, mas não tiveram o efeito esperado.
“Vamos ser mais conservadores. Vamos agir de forma menos apaixonada e
seremos racionais. O ano do Centenário impunha algumas ousadias, mas
isso não é mais possível.” (p.7) O dirigente racional e competente construído
pela imprensa faz uma mea-culpa por sua falta de racionalidade, ao
contratar Romário e Beto.
412
Nesta mesma entrevista, o dirigente tricolor disse que lideraria uma
campanha para salvar o futebol do Rio de Janeiro, que, segundo ele,
merecia melhor tratamento das autoridades. “É importante que os clubes se
unam. É preciso fazer um mutirão, juntando clubes, torcida e imprensa. As
dívidas engessam as receitas. Aparecem bloqueios de forma surpreendente.
Os clubes merecem tratamentos melhores das autoridades.” (p.7)
Parece que o dirigente “modelo” almejara por um tratamento
diferenciado pelos credores e pelas autoridades da união. Ele acreditava que
o auxílio do governo poderia modificar o quadro em que os clubes se
encontram. Vejamos como ele opera unindo novamente a lógica econômica
à afetiva, ao solicitar a pressão popular da torcida e da imprensa, para que
os clubes tenham um tratamento diferenciado. Conforme já apontamos no
início deste capítulo, isso já vem ocorrendo freqüentemente, quando os
clubes têm regalias que outras empresas não conseguem.
No dia seguinte a tais declarações do presidente, os jornais noticiam
que o vice-presidente Marcelo Penha373 admitiu que haveria condições de
permanecer com o jogador Beto, sem redução do salário (R$ 60 mil), pago
após acordo com a Unimed, viabilizou sua contratação juntamente com
Romário na temporada anterior (Jornal Lance, 28 de dez/2002, p.6). Apesar
desta matéria, a recontratação de Beto não foi confirmada.
A imprensa esportiva vive dos boatos e das supostas notícias
bombásticas. O esporte deve vender emoção, ensinamento desde a época
de Mário Filho (Soares, 1998). Assim, o capítulo de Romário não teria
373 - Dire tor da UNIMED
413
acabado simplesmente com o prejuízo de 5 milhões pela ausência de
conquistas em 2002. Jogadores entraram na justiça trabalhista para
receberem seus salários, mas Romário volta à cena em uma disputa entre
os grandes clubes. O interessante é que o discurso do amor e do
profissionalismo alterna-se no cenário que descreveremos a seguir.
Os primeiros dias de janeiro de 2003 foram de intensas negociações
em torno do nome Romário. Flamengo, Vasco e Fluminense entraram na
disputa. Em alguns momentos, a imprensa noticiara que também o
Corinthians, o qual disputaria a Copa Libertadores da América, tinha
interesse. A imprensa divulga que o Flamengo teria grandes chances de
contratá-lo. Primeiro, pelo amor e pela simpatia que Romário declara ter com
o clube; segundo, por uma razão de renegociação da grande dívida que o
clube tem com o jogador.
No dia 06 de janeiro, em uma matéria denominada “Garfadas
Decisivas”, o jornal Lance discute as possibilidades de cada clube,
noticiando o almoço e jantar que Romário teria com os dirigentes de ambos
clubes. No início do ano, período em que não havia nenhuma competição a
imprensa esportiva quase não teve notícias que provocassem maior
interesse coletivo. A hipotética disputa dos clubes por Romário tornou-se a
principal notícia ajudando preencher algumas páginas dos jornais.
A imprensa insistia no desejo do jogador em encerrar sua carreira
jogando pelo Flamengo, além da amizade que possuía com alguns diretores.
Também apontavam que a pendência financeira do clube com o jogador
414
poderia ser renegociada.374 Aqui, amor e interesse se juntam em uma
mesma causa. O Fluminense teria como principal argumento o fato de ter
mantido o salário de Romário rigorosamente em dia, com a ajuda da
Unimed. O argumento aqui é puramente da responsabilidade profissional da
empresa. (Jornal Lance, 06 de jan/2002, p.8).
O presidente Fischel afirmou que acreditava na contratação, porque
agora há uma ‘amizade’ entre Romário e o Fluminense: “... éramos
estranhos. Não havia um grau de confiabilidade. Hoje, há uma amizade,
Romário realizou grandes jogos e conquistou a torcida. Conversamos na
sexta-feira e senti uma disposição muito grande dele em ficar.” (p.8) (Grifos
nossos)
Observemos como o dirigente desliza, mais uma vez, sua
argumentação para os afetos.
Romário, do alto de seu currículo e de seus 37 anos, assumia o
discurso profissional: “Tenho certeza de que, onde quer que eu jogue daqui
para a frente, o clube escolhido será a minha casa final” (p.8), declarou
Romário. Dizia ainda que sentia envaidecido por estar sendo disputado
pelos dois clubes: “Ser cobiçado por estes times é uma honra para mim.
Jogarei por um deles.” (Jornal Lance, 07 de jan/2002, p.8)
374 - Romário acionou a just iça contra o clube para receber US$ 4,5 milhões dedirei to de imagem e R$ 4 milhões de salár ios”. (Jornal Lance, 06 de jan/2002,p.8) .
415
Figura 21 – Romário nos três clubes: Flamengo, Vasco e Fluminense – RevistaLance A+, 22 a 28 de mai/2004, p.16
Para continuar no Fluminense, Romário teria seu salário reduzido
para R$ 160 mil dos R$ 200 mil que recebera no contrato anterior. A Unimed
entraria na transação, mas teria preferência em utilizar a imagem do jogador
em peças publicitárias, pelas quais o acerto financeiro seria diretamente com
o jogador (Jornal Lance, 08 de jan/2002, p.8). Fischel, em dezembro de
2002,375 quando dissera que em 2003 seriam ‘mais conservadores”, acaba
mais uma vez voltando atrás.
Vencida a batalha, Romário, que estava no Rio durante as
negociações, dirigiu-se para Vassouras, uma cidade do interior do Estado do
Rio de Janeiro, onde os demais integrantes da equipe estavam em pré-
temporada, visando o início do campeonato carioca, quando quatro mil
torcedores já sabendo do acordo, o aguardavam. Estava programada uma
chegada cinematográfica, quando o helicóptero que o conduzia a cidade
375 - Jornal Lance, 27 de dez/2002, p .7
416
teve que parar em outro município, devido ao ‘teto baixo’ para se prosseguir
a viagem aérea até Vassouras. A chegada de Romário provocou euforia dos
torcedores, situação que conduziu o prefeito municipal a decretar ponto
facultativo nas repartições públicas, em função da presença do ídolo (Jornal
Lance, 15 de jan/2002, p.3). Romário é uma celebridade nacional.
Romário, que sempre afirmara seu amor pelo Flamengo, clube no
qual gostaria de encerrar a sua carreira, admite que estava mudando de
idéia, e o Fluminense seria seu último clube, a princípio: “A princípio o
Fluminense será meu último clube. Fiz um contrato de um ano, com opção
para mais um. Já estou com 37 anos e para quem pensou um dia em parar
com 28, já tá ótimo” (Jornal Lance, 15 de jan/2002, p.4). Questionado sobre
o Flamengo, Romário se esquiva: “Só vou falar sobre o Flu. O Fla passou,
não aconteceu. Minha prioridade era estar no clube onde fosse feliz. E este
clube é o Fluminense.” (p.4) A proposta do Flamengo para atrair o interesse
de Romário centrava-se no fato de renegociar a dívida do clube com ele,
além de um salário mensal de R$ 100 mil. Romário, no entanto, pretendia
um salário de R$ 120 mil livre de impostos. Todavia, a proposta salarial do
Fluminense foi mais convincente. Um salário mensal de R$ 180 mil líquidos
por um ano, além de outras regalias contratuais, com opção de renovação
por mais um ano, caso fosse interesse do jogador prorrogar o final de sua
carreira até 2004 (Jornal Lance, 13 de jan/2003 p.4). Romário porta-se como
um profissional valorizado no mercado.
A união Romário e Fluminense não se encerrou por aqui, outros
capítulos poderão ser escritos, mas, para nossos propósitos, esta passagem
417
é suficiente para demonstrar como os discurso desliza entre aquilo que
chamam de profissionalismo e o espírito amador.
O Fluminense, cumprindo a exigência da medida provisória (MP 79)
do Congresso Nacional, apresentou publicamente, por intermédio do Jornal
Lance do dia 13 de fevereiro de 2003 (p.12) o seu balanço anual do
exercício 2002. As dívidas do clube são de, aproximadamente, 120 milhões
de reais.
No dia 14, a coluna ‘Os bastidores da bola’ do jornal Lance,
assinada por Eric Beting e Rodrigo Mattos, noticiam que o governo federal é
o credor de 1/3 do valor total da dívida do clube. Colocam, ainda, que, a
partir do momento em que o Sr. David Fischel assumiu a presidência do
clube, a dívida teria triplicado. Disseram os colunistas: ‘A explicação é
simples: em quatro anos, os gastos superam as receitas em R$ 20 milhões
por ano, em média.” (p.2)
Não foi nossa preocupação o balanço do Fluminense, o qual, no
entanto, mostrar como o discurso da mídia cria mitos e enaltece
personalidades que parecem ser eleitas pela simpatia e pelo interesse dos
jornalistas, cronistas etc. Souto (2002) alerta-nos sobre a possibilidade de os
jornais construírem uma memória da sociedade sobre uma ótica particular.
Ao selecionar alguns fatos, relegam outros ao esquecimento. “Esta memória
não preservaria o passado, mas o adaptaria para enriquecer e manipular o
presente.” (p.39)
419
Capítulo XVIIIRonaldo Nazário376 – “O homem de US$ 100 milhões”
“Ronaldo é um fenômeno, sim. Um fenômeno deingratidão! Na troca da Inter pelo Real Madrid, ele semostrou um grande mercenário. A Inter deu a eletodas as condições para se recuperar e brilhar naCopa. E na hora de retribuir o que ele faz: se manda.Ele está deixando uma bela imagem do jogadorbrasileiro...”
(Alexandre Schiavinatto) 377
Ronaldo, o “fenômeno”, apelido com o qual ficou conhecido,
protagonizou no futebol uma polêmica internacional, quando, ao final da
Copa do Mundo de 2002, competição da qual saiu como o principal artilheiro
e o mais coroado jogador da Copa378 pela imprensa nacional, rompeu seu
contrato com a Internazionale de Milão e se transferiu para o clube espanhol
376 - Ronaldo Luiz Nazár io de Lima, f i lho de pai camelô e mãe que t rabalhava nobalcão de uma sorveter ia , nasceu num subúrbio do Rio de Janeiro , em 1976.Devido aos fei tos pelo Cruzeiro de Belo Horizonte, fo i convocado para a Copa de1994 nos Estados Unidos. Apesar de não ter par t ic ipado efet ivamente daquelaCopa, despertou in teresse de alguns clubes europeus. Ao f inal da Copa, foicomprado pelo clube PSV Eindhoven da Holanda, de onde se transfer iu , em 1996,para o clube espanhol Barcelona. Deixou o Barcelona em 1997, indo para oIn ternazionale de Milão na I tá l ia , c lube onde f icou até o f inal da Copa de 2002,quando passou a jogar para o clube espanhol Real Madrid . Ronaldo tornou-se, aolado de Pelé , o recordis ta brasi le i ro de gols em Copa do Mundo – foram 12 nastrês copas em que esteve presente (1994, 1998 e 2002). Ronaldo também igualou orecord de número de par t idas em copa do mundo com Pelé. Ao par t ic ipar da f inalda copa Japão - Coréia do Sul , Ronaldo também chegou ao to tal de 14 par t idas .Na Copa de 2006, na Alemanha, a inda estará com 29 anos. Caldeira, Jorge.(2002) . Ronaldo – Glór ia e Drama no futebol g lobal izado. Rio de Janeiro.Edi tora34/Lance.
377 - Coluna Tabel inha do Jornal Lance, 03 de set /2002 p.22. Esta coluna é umespaço reservado aos comentár ios dos torcedores que escrevem para o jornaldando seu ponto de vis ta ( revol ta ou sat isfação) com algum episódio ocorr ido noespor te .
378 - Apesar de a FIFA ter considerado o goleiro Alemão Oliver Kahn o melhorjogador do evento.
420
Real Madrid. Uma transação que poderia ser considerada apenas como uma
das mais vultosas transferências de ‘mão-de-obra’ de um jogador tomou
notoriedade pelo sentimento de ingratidão que animou o processo de
negociação nas páginas dos jornais de todo mundo. A Internazionale teria
investido grande soma de recursos e esperado pacientemente a
recuperação do jogador, que ficara por quase dois anos fora dos
gramados379. Porém, quando se recuperou e tornou valorizado no mercado,
resolveu ir para o outro clube, o Real Madri.
Figura 23 – Coluna Tabelinha – Jornal Lance, 3 de set/2002, p.22
379 - Esteve no Barcelona da Espanha nos anos de 1996 e 1997, quando setransfer iu para a Internazionale da I tá l ia em 1997, onde permaneceu até 2002.
421
Vejamos que a trajetória esportiva de Ronaldo o conduziu a um
milionário mundo financeiro.380 Desde que começou no Cruzeiro,381 quando
ganhava R$ 500 por mês em 1993, em menos de 10 anos tornou-se um dos
jogadores mais bem pagos da história do futebol mundial.382 Ao se transferir
para o clube holandês PSV, quando foi vendido pelo Cruzeiro pelo valor de
US$ 6 milhões, recebeu 15% deste valor como exigência da lei de
transferência. Na transação entre o PSV e o Barcelona, no valor de US$ 20
milhões, levou novamente 15%, e na transferência do Barcelona para a Inter
de Milão (US$ 32 milhões), recebeu US$ 6 milhões de indenização (Revista
Lance A+, 28 de jul a 3 de ago/2002, p.17, Ano II, nº100):
“Em seis anos, ele já juntou uma quantia de US$ 72 milhões. E nofinal da temporada 2002/03, vai superar a barreira dos 80 milhões.Por essa projeção, sem que nada mude no cenário do futebolmundial, ele chegará aos US$ 100 milhões em 2005.” (RevistaLance A+, 28 de jul a 3 de ago/2002, p.17) (grifos nossos)
380 - Clarkson, Wensley. (1998). Ronaldo un genio de 21 años. Barcelona.Cooperación Editor ia .
381 - Em 1993, despontou no Cruzeiro e , neste mesmo ano, antes de completar 17anos, tornou-se ar t i lheiro da Supercopa da Liber tadores da América (8 gols) . Apouca idade cr iou um problema legal , pois somente poder ia jogar se est ivessetrabalhando ou estudando. O clube optou por empregá- lo de forma f ic t íc ia em umafirma (São José Ferramentas e Peças Ltda) de um dos car tolas do c lube, na funçãode torneiro mecânico. (Teich, Daniel Hessel . (2002). De onde eles v ieram. In :Revista Veja. 10 de ju l /2002, 36-42p.) Observemos que esta prát ica de seempregar o jogador em uma empresa de um dos dir igentes ou torcedor abonado doclube é um expediente que acompanha o fu tebol brasi le iro desde os anos 20,conforme narramos na par te 3 deste estudo.
382 - Ver: Oyama, Thaís . (2003). A in t imidade de um fenômeno. In : Revista Veja.10 de dez/2003. 122-131p.
422
Figura 24 – Carteira Profissional do RonaldoVeja, 10 de jun/2002, p.36
Observemos que o valor recebido por Ronaldo, estabelecido pela lei
de transferência, na transação entre o Barcelona e a Inter de Milão (US$ 6
milhões) é a quantia que o PSV Eindhoven pagou ao Cruzeiro para comprá-
lo em 1994.
Ronaldo é, na atualidade, um dos principais garotos-propaganda do
mundo esportivo. Entre os seus principais contratos, destacam-se
423
consagradas empresas internacionais, como Pirelli, a Ambev, a Tim e a Nike.
Com a Nike o seu contrato é vitalício, juntamente com Michael Jordan,383 o
principal astro do basquetebol norte-americano nos anos 80 e 90 do, mas
tais valores não são públicos. Esta transferência traria ainda uma tensão
relacionada à divulgação da imagem de Ronaldo nas publicidades deste
novo clube, pois a equipe contratante tem a empresa Adidas como
patrocinadora, o que naturalmente passaria a divulgar a marca do
concorrente do seu patrocinador vitalício. Estima-se que, juntando as cotas
de patrocínio com o salário pago pela Internazionale, o salário de Ronaldo
esteja por volta de US$ 11,4 milhões por ano (p.18/19).384
O que teria feito Ronaldo deixar a Inter de Milão e se transferir para
o Real Madrid, quando os jornais afirmavam que tal fato levaria à redução
salarial? Parece ser esta a principal questão que assola o imaginário dos
torcedores e jornalistas.
Em uma viagem ao Brasil, no mês de agosto de 2002, Ronaldo e
sua família são acompanhados por jornalistas em visitas que fizeram a duas
instituições filantrópicas: Instituto Nacional do Câncer (Inca) e a Fundação
Gol de Letra. Em ambas as visitas, Ronaldo realizou uma doação de R$ 100
mil. Para ele o valor que doara foi irrisório, justificando com outra finalidade o
seu ato: “O importante mesmo é o exemplo que dou a outras pessoas que
têm condições de ajudar o Inca e não o fazem por desconhecerem a obra.”
383 - Após a equipe nor te-americana de basquetebol tornar-se campeã ol ímpica emBarcelona em 1992, durante a cer imônia de premiação, por estar vest ido com ouniforme of ic ial do Comitê Olímpico nor te-americano (Empresa Reebok), MichaelJordan par t ic ipa do evento cobr indo a logomarca do patrocinador of ic ial com umabandeira dos Estados Unidos.
424
(Jornal O Dia - Caderno Ataque, 03 de ago/2002, p.6) Observemos que a
imagem de Ronaldo é vendida como a do bom rapaz e suas ações públicas
bem servem para construção dessa imagem.
Nesta mesma edição, o jornal O Dia, Caderno Ataque divulga que,
no dia anterior, 02 de agosto, o dirigente do clube Real Madrid teria afirmado
em Madrid que o “Fenômeno” já era jogador do Real. Questionado sobre a
transferência, Ronaldo não confirmou a contratação, mas também não a
desmentiu, disse apenas que o seu empresário estava acompanhando o
desenrolar dos fatos e o mantinha informado. Também aparece noticiada a
renovação do técnico argentino Hector Cuper com a Internazionale, ao qual
o jogador brasileiro noticiou ter desafeto. Ronaldo teria admitido a pessoas
próximas do seu convívio que aceitaria uma transferência para o Real
Madrid, pois não teria mais o mesmo prazer de antes em defender o clube
italiano. Nesta ocasião, admitiu à imprensa que “seria uma honra muito
grande jogar ao lado de Raúl, Roberto Carlos e Figo”, jogadores que
integravam o elenco do clube madrileno.
A partir desta reportagem, acompanhamos a trajetória das narrativas
que se sucederam diante das negociações da transferência. Para alguns
jornalistas e cronistas, a atitude de Ronaldo soou como uma ‘punhalada nas
costas’ do clube que lhe assegurou os salários durante o período de
restabelecimento das intensas lesões. Como já dito, as narrativas discorrem
sobre a tentativa de realçar a ingratidão do jogador com o clube. A princípio,
não se questionavam os motivos que conduziram o jogador a tal atitude,
384 - Revista Lance A+, 28 de ju l a 3 de ago/2002, p .17, Ano II , nº100.
425
apenas reforçavam o absurdo da traição, do abandono do empregado que
era supervalorizado e estimado pelo clube. A rejeição do jogador pelo clube
foi, aos olhos dos torcedores, dos dirigentes e de parte da mídia uma atitude
reprovável.
Observemos que os discursos aparecem enviesados e, para o valor
da reciprocidade, mesmo em modelo de relação profissional, apelam para os
vínculos de pertencimento que, supostamente, o jogador tinha com a
Internazionale. Por vezes, a narrativa do pertencimento é resignificada no
presente como espírito amador em contraposição à idéia do interesse, que,
em seu aspecto negativo, é simbolizada pela imagem do mercenário. O
mercenário é aquele que se entrega à causa apenas pelo interesse
financeiro e, geralmente, aparece vinculado aos soldados que vendem seus
serviços sem nenhum vínculo emocional com a pátria que defendem, na
mesma perspectiva apontada por Nicolau Maquiavel sobre a composição
dos exércitos.
O colunista Marcelo Damato colocou que “a crise entre Ronaldo e a
Internazionale está jogando sombras naquele que deveria ser o momento
mais brilhante da carreira do Fenômeno” (Jornal Lance, 7 de ago/2002, p.3).
O jornalista aponta os motivos que, em seu ponto de vista, justificam a
irritação dos torcedores da Inter: “Como um jogador que passou dois anos
contundido pode acusar o clube que bancou seu tratamento e seus salários
por todo esse período de tratá-lo mal a ponto de querer forçar sua saída?”
(p.3) Segundo Damato, parecia haver um motivo oculto na crise entre
Ronaldo e a Internazionale, pois todas as exigências do jogador no período
426
de tratamento foram atendidas, inclusive quando a Inter concordou que
Ronaldo viesse realizar seu tratamento aqui no Brasil, mesmo contra a
vontade dos médicos italianos. Os argumentos apresentados pela assessoria
do jogador de que o técnico Héctor Cúper o teria deixado muito tempo na
reserva não convenceu o jornalista, que especulava o fato de que Recoba,
jogador Uruguaio, teria um salário maior385 que o “Fenômeno”.
Todavia, mediante estas especulações sobre a insatisfação de
Ronaldo, um dos empresários do jogador, Alexandre Martins, anunciou que
Ronaldo cumpriria até o fim o seu contrato em 2006 com a Internazionale.
“Ronaldo escolheu a equipe italiana. Ele é um jogador da Inter e vai
continuar sendo por 365 dias por ano, durante mais quatro anos. Ele tem um
contrato que quer respeitar e, portanto, vai continuar trabalhando com a
Inter”, garantiu Alexandre (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 08 de ago/2002,
p.4).
A imprensa esportiva encontrava em alvoroço, tentando entender os
motivos da mudança de planos do jogador, que meses antes (maio/2002)
chorava publicamente ao presenciar a derrota da equipe Milanesa para o
Juventus do Scudetto 386 da temporada 2001/2002 (Revista Lance A+, 29 de
dez/2002 a 04 de jan/2003, ano 3, nº122, p.25). No mesmo dia em que o
procurador do jogador confirmava seu compromisso com o clube, o dirigente
do Real Madrid, Jorge Valdano, afirmou que o seu clube nem se quer
385 - O salár io de Recoba era o mais al to na In ternazionale , 7 milhões de dólarespor ano, enquanto o do Ronaldo era de 5,4 milhões de dólares . (Revista Lance A+,28 de ju l . a 3 de ago/2002, p .18)
386 - Scudet to – É a denominação para a pr incipal competição i ta l iana, oCampeonato I ta l iano.
427
chegou a fazer proposta oficial a Internazionale, contradizendo a notícia que
havia sido veiculada dias anteriores, quando o dirigente confirmava a
contratação:
“O Real Madrid quer acabar com essa expectativa sobre achegada de Ronaldo, e pede que a discussão seja encerrada. (...)Foi o representante do jogador quem procurou o Real, e o que seviu depois disso foi o espetáculo jornalístico a que temos assistidonos últimos dias. A Inter não pediu nada e o Real não ofereceunada.” (p.4)
Valdano fez questão de deixar claro que foi o jogador quem
procurou seu clube, mas que não havia interesse em contratá-lo, embora
reconhecesse a sua condição: “Ele é um craque e nos interessa, é claro,
mas sua contratação não é estratégica com a de Zidane ou Figo.” (p.4)
Diante do fato, a coordenação da Associação de Consumidores da
Itália manifestou-se dizendo que os torcedores que adquiriram o carnê para
assistir aos jogos da Inter teriam o direito de ver Ronaldo em campo e, caso
isso não acontecesse, poderiam solicitar a restituição dos valores pagos.
Aqui entra a figura do consumidor reivindicando o cumprimento do contrato
profissional entre o jogador e o clube. Não apelam para o amor, e sim para a
norma contratual.
O articulista Oscar Valporto, em sua coluna ‘Linha de fundo’ no
Jornal O Dia, Caderno Ataque, questionou: Ingrato ou mimado? Para o
articulista, Ronaldo, como profissional, “tem o direito de procurar o melhor
para sua vida e sua carreira”, mas acusou o jogador de não ter agido
428
descentemente. Colocou o colunista que a Inter pagou regiamente o salário
de Ronaldo e, ao retornar a condição de jogo, o fato de ter procurado outro
clube foi realmente crítico, o que justificava a revolta dos torcedores da Inter.
“Ronaldo, sempre tão preocupado com a imagem, agiu da piormaneira possível para trocar de clube. Depois da Copa, fezquestão de mandar juras de amor ao Inter e a torcida italiana.Na sexta-feira, enquanto entregava generosas doações aoInstituto do Câncer e a Fundação Gol de Letra contava ao pé doouvido de jornalista que estava a caminho do Real Madrid. Seriasó mais um capítulo do seu conto de fadas particular – depois deser artilheiro da Copa, o Fenômeno ia jogar no melhor time domundo e diria que a proposta fora irrecusável – mas deu tudoerrado”, conclui Valporto. (Jornal O Dia - Caderno Ataque, 8 deago/2002, p.4) (Grifos nossos)
Valporto fala em juras de amor ao clube e à torcida. Observemos
como a imprensa vem trabalhando as imagens de amor e pertencimento.
Para o articulista, faltava uma razão lógica para entender porque Ronaldo
queria deixar Milão e, diante desta dúvida, resolve especular os motivos:
“Quer ganhar mais do que Recoba e Vieri? Tem medo de ficar nareserva? Não gosta do treinador? Detesta falar italiano? Quer ficarlonge da mulher, que vai jogar num time feminino da cidade?Todos esses seriam motivos razoáveis, mas talvez, poucodiplomáticos. Desmascarada a tentativa de sedução ao Real,Ronaldo manda dizer pelos assessores apenas que “não está felizem Milão”. Sem qualquer outra explicação, fica parecendo birra decriança. Mimada, muito minada.” (p.4)
A polêmica acerca desta tentativa de rompimento de contrato com a
Internazionale repercutiu intensamente no meio esportivo, suscitando
429
inúmeros debates. Karl Heinz Rumenigge, ex-jogador alemão, atualmente
ocupando o cargo de dirigente do Bayern de Munique, também criticou a
pretensão de transferência, colocando em dúvidas o caráter do jogador
brasileiro:
“Na minha opinião, isso tudo é um nojo. Quando um jogador ficadois anos machucado, recebendo os salários por inteiro, depoisdisputa uma Copa do Mundo que não dá nada ao clube e logo emseguida pede um novo contrato, é preciso se perguntar sobre ocaráter desse jogador e de seus conselheiros.” (Jornal O Dia,Caderno Ataque, 8 de ago/2002, p.4)
Rumenigge demonstrou também o seu desapontamento com o
episódio ao dirigente do Real Madrid, Sr. Florentino Perez, dizendo que o
futuro do futebol não pode ser este: “Não queremos esse sistema de
mercenários.” (p.4) Observemos aqui que a discussão é centrada na ótica
profissional.
Também na tentativa de compreender o fato, o jornalista José
Trajano questionou o que teria conduzido as ações dos dois empresários do
jogador que não tiveram habilidade nas negociações, deixando Ronaldo em
uma situação delicada perante os torcedores da Inter, a ponto de ter sido
vaiado e hostilizado. Trajano questionou “como o jogador iria se livrar da
pecha de ingrato que lhe foi imposta?” (Jornal Lance, 8 de ago/2002, p.3)
Questionou ainda que se não tratava apenas de um boato para conseguir
um aumento salarial, pelo fato de Ronaldo estar recebendo menos que o
uruguaio Recoba. Colocou Trajano que, se foi este o motivo, seria mais
prudente uma conversa com o presidente da Inter.
430
Trajano também argumentou sobre a idéia de traição, devido ao
apoio dado ao jogador nos anos difíceis das freqüentes contusões. Vejamos
como a idéia da traição parece ser a tônica do episódio. A traição de
Ronaldo ao clube que lhe deu assistência, a idéia do amor que foi
atraiçoado. Os outros pontos do episódio aparecem camuflados na idéia de
deslealdade do jogador com o clube.
Trajano apontou ainda outro fato que julgou atenuar a situação dos
empresários e do jogador, quando colocou que, mesmo antes da Copa,
Ronaldo já teria procurado os dirigentes italianos e “confessado que andava
infeliz por lá e que desejava partir para novos ares, de preferência para a
Espanha.” (Jornal Lance, 8 de ago/2002, p.3) A Internazionale teria admitido
a negociação, desde que a proposta fosse boa. Assim, os empresários
Alexandre Martins e Reinaldo Pitta foram procurar o clube espanhol, que
ofereceu 25 milhões de euros, mais Morientes e Solari, o que foi
considerado baixo pelos dirigentes da Inter, que ambicionavam 100 milhões
de euros. Trajano esclareceu ainda, que, embora o salário de Ronaldo seja
menor que o de Recoba, no montante ele acaba sendo bem melhor
remunerado que o uruguaio, devido ao direito de imagem. Trajano, em sua
coluna, deixou aberta a questão: “será que é só dinheiro ou há algo mais
escondido nessa história?” (p.3). Observemos que os boatos envolvidos
nessa transação entre grandes empresas do futebol não se limitam os
problemas do negócio em termos contratuais. A imprensa vende emoções,
mobiliza os afetos e sentimentos dos leitores, para discutir um tema popular
vinculado à tradição judaico-cristã no espaço do futebol: poderemos amar
431
por dinheiro? Em outras palavras, poderemos mobilizar nossos afetos para
torcer por aqueles que só possuem interesses individuais?
Observemos que a idéia de venda ou troca, quando é do interesse
do clube, não cai na mesma narrativa. Não se questiona se o jogador amava
o clube, interessa apenas que o clube, como empresa, não tem mais como
absorver o ‘amor’ do jogador. O fato de o clube estar oferecendo Morientes,
Solari para outro clube não tem o mesmo peso na balança emocional, afinal,
se estes são peças descartáveis, a quem importa o seu envolvimento com o
clube?
No dia 9 de agosto, o assessor de imprensa de Ronaldo, Sr.
Rodrigo Paiva, comunicou aos jornalistas que seu cliente decidiu por não
jogar nenhuma partida oficial pela Internazionale e, a partir daquele
momento, só conversaria com o presidente do clube. “Ronaldo só fala se
houver algum fato novo.” (Jornal O Dia – Caderno Ataque, 9 de ago/2002,
p.4) Os motivos pelos quais ele resolveu não reintegrar a equipe não foram
apontados pelo assessor. Antes desta decisão, Ronaldo havia admitido
publicamente a possibilidade de participar de alguns amistosos ou da Liga
dos Campeões387 pela equipe.
A insatisfação perante a atitude de Ronaldo não se limitou às vaias
que recebeu, além das faixas e insultos advindos dos torcedores. Parte da
imprensa italiana também demonstrou seu repúdio ao que eles
consideraram ingratidão do jogador com o clube e os torcedores. Um jornal
387 - É um torneio Europeu para os clubes que se sagraram campeões em seusrespect ivos países na temporada anter ior .
432
de Milão publicou na primeira página que o motivo principal desta decisão foi
financeiro e, portanto, o classificou como mercenário. Para ilustrar a
reportagem, apresentam uma figura contendo cédulas de euros
(denominadas de Euronaldo) tendo o rosto do jogador como símbolo da
moeda, conforme foram reproduzidas nas imagens nos jornais brasileiros
(Jornal O Dia - caderno Ataque, 9, Ago/2002, p. 4).
Figura 25 – Euronaldo – Jornal O Dia /Caderno Ataque, 9 de ago/2002, p.4
No Brasil, o jornal Lance também satirizou a situação, ao publicar
uma charge do cartunista Gustavo com a caricatura de Ronaldo utilizando
um brinco pendurado em forma de etiqueta de preço, contendo o cifrão ($)
(Jornal Dia – Caderno Ataque, 18 de ago/2002, p.3).
433
Parecem ser o mote econômico e a traição os principais focos de
análise do episódio. Outros temas são apontados de forma duvidosa, mas
não chegam a despertar o interesse dos narradores e cronistas.
O presidente da Internazionale, Massimo Moratti, tentando
contornar a situação, revelou que teve uma conversa com o jogador,
tentando persuadi-lo a desistir da transferência: “Ressaltei que uma relação
de amor não pode se transformar em ódio.” - disse o dirigente a imprensa.
(Jornal O Dia, Caderno Ataque, 9 de ago/2002, p.4) (grifos nossos)
O jogador divulgou em seu site oficial apenas algumas justificativas
pessoais, mas diz que preferia não tornar público naquele momento seus
reais motivos, por respeito aos torcedores e ao clube. Dizia estar triste, mas
que entendia a reação da torcida e preferia enfrentar aquele momento difícil
a ter de detalhar os motivos da sua decisão. “Deixo claro que não estou
agindo motivado por dinheiro, quero apenas ser feliz”, conforme divulgou o
Jornal O Dia, Caderno Ataque em 9 de ago/2002, (p.4).
Um frio reencontro entre Ronaldo e o treinador Hector Cuper
marcou o treinamento da Inter no dia 9 de agosto. O jogador continuou
realizando trabalhos físicos separadamente do grupo. Segundo as
informações dos jornais internacionais, reproduzidos pelo caderno Ataque –
Jornal O Dia, a maioria dos torcedores não queria mais saber de Ronaldo, a
quem consideravam ingrato. Como resposta a sua ingratidão passaram a
apoiar o treinador.
Este impasse nas negociações entre Inter e Real Madrid arrastou-se
por mais alguns dias. Ronaldo chega ao Brasil para participar da festa da
434
conquista do Campeonato mundial, que aconteceria em Fortaleza em um
amistoso contra o Paraguai. Questionado sobre a transferência, limitou-se a
dizer que não sabia o que poderia acontecer, mas esperava que a decisão
fosse o mais rápido possível. Na mesma matéria, o Jornal O Dia, Caderno
Ataque, noticiava que o Jornal espanhol Marca garantia que já teria acertado
tudo entre os dois clubes e, naquele final de semana, os dois presidentes
Moratti e Pérez se reuniram para os detalhes finais da transferência. (Jornal
O Dia, Caderno Ataque 16 de ago/2002, p.6)
No dia 17 de ago/2002, o Caderno Ataque, Jornal O Dia divulgou
que, enquanto os dirigentes europeus sentavam-se à mesa de negociações,
Ronaldo continuava seu treinamento no Rio, visando apurar a forma física
para o amistoso contra o Paraguai. Todavia, frente aos impasses na
resolução do seu novo empregador, surge a notícia de uma aquisição
imobiliária realizada pelo jogador. Ronaldo comprou uma ilha de 32 mil
metros quadros na Baia de Angra do Reis, no litoral do Rio de Janeiro.388 A
venda da ilha estava sendo noticiada na Internet pelo valor de US$ 1,3
milhões (aproximadamente R$ 4 milhões). Sua diária de manutenção não
ficaria por menos de R$ 2,5 mil (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 17 de
ago/2002, p.6). O contexto de divulgação dessa notícia parece apresentar
mais um elemento para por em suspeição o processo de negociação. No
fundo, a imprensa narra o “espetáculo” fora do campo de futebol com
ambigüidade e suspeição semelhantes às dos aficcionados: será que os
jogadores merecem ganhar fortunas inimagináveis? Os interesses
388 - A i lha tem três casas independentes , quadras de esportes , dois hel iportos ,dois decks, cais para barcos, p iscina natural , bar e churrasqueira .
435
individuais se conciliam com a honra e glória que os torcedores solicitam de
seus atletas.
Figura 26 – Ronaldo à venda – Jornal Lance, 18 de ago/2002. p.3
Quando tudo parecia estar se resolvendo, o Real Madrid emite
comunicado afirmando que desistiu de contratar Ronaldo. Em seu site oficial,
aparecia a seguinte notícia:
“O Real Madrid C. F. comunica que existem diferençasirreconciliáveis com a Inter de Milão para a contratação deRonaldo. Nas francas conversas mantidas esta manhãmanifestamos a impossibilidade de se chegar a um acordo,portanto ambos os clubes dão a negociação por encerrada.”(Jornal Lance, 24 de ago/2002, p.16)
436
Apesar deste comunicado no site do clube espanhol, o procurador
do jogador, Alexandre Martins, mantinha um suspense ao comentar sobre
este pronunciamento do clube: “Não sei se as negociações terminaram. Só
quem pode dizer isso são os presidentes da Inter e do Real Madrid. Existem
várias alternativas, vamos ver qual será a melhor.” (p.16)
Ao desembarcar em Milão no dia 24 de agosto, Ronaldo era
aguardado por torcedores que exigiam que ele pedisse perdão, já que as
negociações não tinham se efetivado. Parecia que a única saída seria a
permanência no clube italiano, uma vez que nenhum clube estaria disposto a
desembolsar os 60 milhões de euros (R$ 180 milhões) pedidos pela Inter
(Jornal Lance, 25 de ago/2002, p. 16). Ronaldo, que deixou o aeroporto por
um portão de serviço, não se encontrou com os torcedores, que exibiam um
cartaz escrito: “E agora, peça perdão.” (Jornal Lance, 25 de ago/2002, p. 16)
A demonstração dos vínculos faz parte do espetáculo futebol, ainda que
possua um caráter altamente profissional.
Essa demora no desenrolar das negociações começou a incomodar
as imprensas espanhola e italiana, que resolveram se posicionar diante
desta pendência. Os jornalistas espanhóis, apoiando o jogador, acusaram o
presidente Massimo Moratti da Inter de agir com extremismo. Segundo o
jornal ‘Marca’, as negociações entre os clubes não avançaram, porque
existia vontade de um (Real Madrid) e intransigência do outro
(Internazionale). Inclusive, o jornal ‘As’ acusou o clube italiano de estar
trabalhando “para que as negociações não tivessem um final feliz.” Por outro
437
lado, O jornal italiano ‘Gazzeta dello Sport’ acusava o Real Madrid do
fracasso nas transações (Jornal Lance, 25 de ago/2002, p. 16).
Figura 27 – Ronaldo à venda 2, Jornal Lance, 7 de set/2002, p.2
Praticamente um mês após as primeiras negociações (29 dias),
finalmente, os dirigentes do Real Madrid anunciaram a contratação de
Ronaldo por valores milionários. O clube espanhol acertou por US$ 46,3
milhões a transferência do jogador. Inicialmente, o Real Madrid pagaria 35
milhões de euros pela primeira parcela e, em dezembro, os italianos
poderiam escolher um jogador dentre uma lista acordada. Caso a
Internazionale não se interessasse por nenhum dos jogadores, receberia
mais 10 milhões de euros (Jornal Lance, 01 de set/2002, p. 17).
O diretor do Real Madrid, Jorge Valdano, deixou claro que o clube
só conseguiu ter sucesso na negociação, porque o brasileiro aceitou ganhar
438
menos. “Priorizamos a nossa saúde financeira, e Ronaldo entendeu isso.”
(p.17).
O jornal Lance divulgou uma tabela com uma lista das mais caras
transferências no futebol, onde Ronaldo passou a ser a sexta transação
mais vultosa, conforme reproduzimos abaixo:
Quadro 09 – Principais transações financeiras do futebol mundial até 2002
JogadorValorEm milhões de dólares De Para Ano
Zidane 64,4 Juventude Real Madrid 2001Figo 56,1 Barcelona Real Madrid 2000Crespo 54,1 Parma Lazio 2000Vieri 50,0 Lazio Inter de Milão 1999Ferdinand 47,0 Leeds United Manchester United 1999Ronaldo 46,3 Inter de Milão Real Madrid 2002Bufón 45,9 Parma Juventus 2001Mendieta 41,0 Valência Lazio 2001Verón 39,5 Lazio Manchester United 2001Nedved 36,4 Lazio Juventus 1999
Fonte: Jornal Lance, 01 de set/2002, p.17
A partir deste instante, as histórias se repetem como em
praticamente todas as transferências polêmicas que envolvem grandes
jogadores: a chegada de um ídolo, a comemoração da torcida, as juras de
amor e as promessas. Já no desembarque na capital espanhola, Ronaldo
afirmou que não tinha perdido as esperanças de defender as cores do clube
merengue: “Estou encantado por estar numa equipe tão maravilhosa. Sabia
que tudo acabaria bem. (...) Quero ganhar tudo que seja possível, e a equipe
tem condições para isso.” (Jornal Lance, 2 de set/2002, p.19)
Todavia, a chegada de Ronaldo não foi somente festa em Madrid.
Sua negociação gerou um mal-estar junto aos demais jogadores do elenco,
por ter envolvido diretamente outros jogadores na transação. O nome de
439
Fernando Molientes na lista de possíveis aquisições do clube italiano fez
com que alguns jogadores, seus amigos, demonstrassem sua insatisfação:
“Jogador não é mercadoria. Somos seres humanos antes de tudo.” –
reclamou Hierro (Jornal Lance, 2 de set/2002, p.19).
Figura 28 – Charge: Breve aqui, mais um fora de série – Jornal Lance, 5 deout/2002, p.3
O Real Madrid, ao contratar Ronaldo, confirmou ser a equipe mais
cara do mundo. Entre os dez maiores salários do futebol mundial, cinco
deles estão no plantel do clube espanhol. Ronaldo, Figo e Zidane recebem
cerca de US$ 7,5 milhões por ano, Raul recebe cerca de US$ 7 milhões e
Roberto Carlos, aproximadamente US$ 4 milhões. Além destes salários,
deve-se incluir 30% do total da folha em impostos, mais o seguro de cada
440
jogador. A receita para o pagamento destes salários vem de empresas
patrocinadoras, venda de produtos licenciados e uma controlada estratégia
de marketing. Apenas para a apresentação de Ronaldo, uma empresa de
telefonia celular que patrocina o clube desembolsou US$ 300 mil pela
exclusividade no evento, que foi transmitido ao vivo para todo o país (Jornal
Lance, 2 de set/2002, p.19). Em apenas 20 dias de clube, Ronaldo
conseguiu um novo record de venda de camisetas. Foram mais de 70 mil
com seu nome e o número 11 às costas. O diretor de marketing do clube,
José Angel Sanchez, afirma que o segundo jogador a provocar mais vendas
de camisas não alcança a metade do que faz o Ronaldo. “O Real Madrid,
obviamente, não compra o passe de um atleta pelo número de camisas
vendidas com o seu nome, mas podemos dizer que Ronaldo nos traz um
retorno em propaganda incrível.” (Jornal O Dia, Caderno Ataque, 22 de
set/2002, p.2)
Este episódio da transferência do Ronaldo foi oportuno para
observarmos como as narrativas se vinculam às denúncias de pertencimento
e amor do jogador com o seu clube. Deve apresentar uma postura
profissional, a qual, todavia, deve ser permeada pelo comprometimento
afetivo. O discurso de ordem racional deve interagir com os de ordem
emocional. Portanto, Ronaldo feriu os sentimentos coletivos dos torcedores
da Internazionale e os jornalistas, na tentativa de traduzir os sentimentos, às
vezes, arbitravam julgando-o ora como um profissional sem sentimentos de
reciprocidade, ora como mercenário que não possui vínculos afetivos.
441
Vejamos que as narrativas se sustentam com forte argumentação
sobre a lógica do capitalismo. Como pode uma empresa investir em um
funcionário e este, após estar recuperado, apto a desempenhar sua função,
abandoná-la antes de compensar o investimento? Ou seja, Ronaldo foi um
custo para a empresa e não correspondeu com o trabalho que se esperava
dele. Observemos que, neste aspecto da falta de retorno do investimento
pelo clube, na percepção dos torcedores, cronistas e dirigentes, parece não
ser computado o tempo de exposição na mídia agregado aos produtos dos
parceiros do clube italiano. O retorno que se espera é aquele através do
trabalho visualizado nos jogos.
Na perspectiva capitalista, Ronaldo demonstrou falta de
compromisso e de ética profissional. Por outro lado, na percepção de alguns
torcedores, dirigentes e jornalistas, Ronaldo foi ingrato ao colocar seus
interesses individuais acima dos interesses coletivos.
442
CONCLUSÃO
“A palavra profissional costumava ser usada para umapessoa que era paga para fazer determinada atividade, aocontrário de amador. Hoje profissional tem cada vez maisuma conotação de alguém com alto grau de eficiência. Poroutro lado, o amador, uma linda palavra que significava,literalmente “aquele que ama”, foi rebaixado para um simplesiniciante, ou alguém com alguma prática. Quando dizemos“ele é um amador”, não há mais o mesmo sentido de antes,de um elogio”
(Rybazynski, 2000, p.24).389
No seio das narrativas acerca do futebol brasileiro desde as
primeiras décadas do século XX, existe uma gangorra discursiva, onde os
termos amadorismo e profissionalismo são comumente invocados com maior
ou menor peso nas inúmeras discussões. Os termos são freqüentemente
deslocados dos sentidos originais para atender as demandas de
racionalização no contexto. Desta forma, amadorismo e profissionalismo
passam a ser termos ambíguos, polissêmicos, assumindo diferentes
389 Rybazynski , Witold . (2000) . Esperando o f im e semana. Rio de Janeiro . Record
443
significados em função dos interesses e das circunstâncias em que são
adotados.
Percebe-se a existência no futebol brasileiro de uma tensão entre
marcas do espírito amador, mesmo no espaço de alto rendimento, ao
mesmo tempo em que são assíduas as vozes em favor da profissionalização
de toda a estrutura esportiva (atletas, árbitros, clubes e dirigentes).
Provocados por esta tensão, amadorismo e profissionalismo convivem ora
em oposição, ora como argumentos complementares que eliminam ou
apagam a oposição original.
O amadorismo nas atuais narrativas jornalísticas parece funcionar
como contrapeso: a) para discutir o tipo de vínculo e/ou pertencimento dos
atores envolvidos com os clubes de futebol; b) parece colocar limites ao
processo de negociação e acúmulo de capital no mercado do futebol
profissional.
Neste contexto, parece surgir um jogo de relações, onde o
amadorismo é invocado para frear elementos considerados perversos no
espaço profissional. O profissionalismo deve se pautar sobre certas “regras
amadoras”. Não pode perder alguns sentidos que façam permanecer a
tensão necessária para justificar o esporte como fins sociais e educativos,
justificados na ética e na moral.
As interpretações dos jornais oscilam criando uma ‘área cinzenta’
que dificulta saber do que se está tratando. Isso parece confundir a mídia,
os dirigentes e, principalmente, os jogadores. Todos devem mostrar-se
comprometidos com o profissionalismo, mantendo, porém, os vínculos
444
afetivos idealizados pelo amadorismo. O dilema se instala neste jogo
narrativo.
Uma estrutura em forma gradiente (Figura 01) parece fornecer mais
argumentos para que possamos analisar o modelo dicotômico amadorismo-
profissionalismo no futebol brasileiro. Como pontuamos ao longo do texto,
essa tensão entre o pertencimento amador e o compromisso profissional
proporciona uma narrativa fecunda para aqueles que analisam o fenômeno
esportivo, tornando-a freqüente nos debates sociais e acadêmicos.
Amadorismo e profissionalismo nas narrativas permitem uma
flutuação, uma espécie de pêndulo, de acordo com a conjectura histórica,
sendo difícil estabelecer um limite entre os dois, principalmente na
atualidade, pois, mesmo no mais alto grau de profissionalismo,
encontraremos narrativas relacionadas aos ideais amadores, embora com
menor peso que no passado.
Observemos na Figura 28 que, apesar da evidente ascensão do
profissionalismo sobre o amadorismo, que em alguns momentos os ideais
amadores retornam como mecanismo de contraposição ou inibição de algo
indesejável. Essa estrutura em forma gradiente funcionaria como uma
“membrana permeável” e flexível que filtraria alguns elementos necessários
em determinadas circunstâncias. Parece que, diante de uma vitória
expressiva ou uma derrota que representa a ‘morte coletiva’, esses
elementos são liberados para o lado oposto para auxiliar as argumentações
445
necessárias.390 Daí surgem as expressões: profissionalismo, amor, garra,
dedicação, compromisso, seriedade etc.
Parece existe uma dependência das marcas que caracterizam os
ideais amadores, apesar de, cada vez mais, o esporte caminhar para o mais
elevado grau de profissionalismo, da mesma forma que, durante o período
considerado amador, constatava-se um elevado grau de seriedade e
competitividade nos jogos.
Figura 29 – Gradiente - Amadorismo e profissionalismo no futebol brasileiro desde oinício do século 20
390 - Um exemplo desta s i tuação pode ser observado na desclass if icação da seleçãobrasi le ira que disputou o pré-olímpico, visando à classif icação para os jogos deAtenas 2004. O grupo convocado por Ricardo Gomes foi considerado pelaimprensa como um dos mais completos nos ú l t imos tempos. Uma esperança realpara a conquista da inédi ta medalha de ouro. In ic ialmente , as narrat ivasexal tavam o je i to moleque de Robinho, Diego e companhia, como umacaracter ís t ica genuína do futebol brasi le iro. Um futebol a legre, de f loreio , aqueleque a imprensa denomina de fu tebol ar te . Todavia, depois de consol idada adesclass if icação, os argumentos passam a desvalorizar esse je i to moleque,dizendo ter fal tado seriedade, compromisso, l iderança etc , caracter ís t icasfundamentais do prof iss ional ismo. Vejamos que as narrat ivas se deslocambuscando entender o que fa l tou. Os argumentos parecem f lu tuar , re tomandoelementos dos pr incípios amadores e prof iss ionais .
446
As marcas gráficas na figura têm como propósito balizar alguns
períodos históricos.
A – Até os anos 20Início do debate acerca do amadorismo/profissionalismoPrática do amadorismo marromProfissionalismo esportivo é considerado um desvirtuamento moral
B -Anos 30Tensão entre os pro-profissionalistas e os interessados na manutenção doamadorismo1933 – Oficialização do profissionalismo1933 – Início do Torneio Rio - São Paulo1934 a 1939 – Convivência entre os quadros amadores e profissionais nosclubes1939 – Ano de consolidação do profissionalismo
C - Anos 40Período de consolidação do Brasil com força internacional no futebol1ª Lei do Esporte nacional. Lei nº 3.1991/1941
- 1ª referência à prática esportiva profissional- O Capítulo III destaca o futebol como o desporto básico e essencialda CBD
D - Anos 50 e 60Realização da Copa do mundo BrasilBrasil vence os mundiais de 58 (Suécia) e 62 (Chile)O Santos F. Clube venceu 2 vezes a Copa Libertadores da América (1962 e1963)O Santos F. Clube venceu 2 vezes o Mundial Interclubes
E - Anos 70O Brasil vence o 3º Mundial (México 1970)Início das transmissões via satéliteInício do Campeonato Brasileiro de FutebolConsagração de Pelé como o melhor jogador de futebol do mundo
F - Anos 80 e 90Fundação do Clube dos 13Permissão para as equipes utilizarem publicidade nos uniformesOs jogadores brasileiros passam a firmar contratos milionáriosinternacionalmenteConstituinte de 1988 (Tratamento diferenciado Desporto profissional e nãoprofissional)Lei Zico e Lei Pelé (Lei do Passe e da responsabilidade fiscal)
447
O Brasil vence o 4º Mundial (EUA 1994)
G – Anos iniciais do século XXIBrasil vence o 5º Mundial (Ásia 2002)
No futebol brasileiro, freqüentemente, o termo amador391 surge
adjetivando situações distintas. Amador que literalmente significa aquele que
ama, que demonstra afetividade e compromisso, com a causa a que se
abraça, pode significar ainda aquele indivíduo que exerce suas funções sem
eficiência, ou quem é iniciante. Trata-se de um conceito que abriga
significados, por vezes, opostos.
Observemos que, ao mesmo tempo em que se busca o
aperfeiçoamento, a melhoria dos espetáculos esportivos, parece existir uma
insistência em manter um discurso forjado de ideologias e de conceitos
concebidos na ética romântica, que se aproxima do compromisso moral
estabelecido pelos valores amadores, onde não se pode admitir o homem
mercenário, nas percepções de Santo Agostinho e de Maquiavel.
Paradoxalmente, no entanto, admite-se que o homem na função de atleta
seja comercializado – adquira a condição de mercadoria392, disponível no
391 - Na par te 1 deste es tudo real izamos uma invest igação acerca dos termosamador e profiss ional , quando recorremos a enciclopédias e d icionár ios quetrazem tais concei tuações.
392 - Em entrevis ta ao Jornal Lance, o jogador Edílson, a tacante do Flamengo,aponta a idéia da comercial ização dos jogadores: “O futebol virou um comércio .O jogador é mercador ia . Quando o t ime tá mal , o c lube manda dez embora de umavez” (Jornal Lance, 20 de fevereiro /2001. p . 4-5) . Uma entrevis ta do jogador Fel ipe vem reforçar esta idéia de Edílson. Ao sercontrato pelo Flamengo para a temporada de 2003, fo i quest ionado por umjornal is ta sobre o seu envolvimento com o ex-clube. (Fel ipe foi cr iado nacategor ia de base do Vasco e tornou-se ídolo da torcida Vascaína.) A matér ia dojornal trouxe em letras destacadas, uma de suas fa las: “Eu sou o clube que pagarmeu salár io”. (Jornal Lance, 17 de janeiro/2003, p .4) .
448
mercado dos empresários esportivos e dos clubes –; desta forma, o clube
que for financeiramente bem estruturados terá melhores condições de
formar e manter sua equipe mais competitiva.393
O esporte a partir do momento em que instituiu o profissionalismo
passou a conviver com sentidos e significados, à primeira vista, antagônicos
e inconciliáveis: interesse financeiro e paixão. Uma lógica econômica passa
a ser empregada em consonância com ideais românticos.
A dedicação e o compromisso que se aliavam ao compromisso
afetivo teve que se adequar também ao comércio, uma vez que o jogador
representaria os interesses dos seus contratantes. Este processo de
comercialização admitido explicitamente pelo profissionalismo trouxe para o
campo esportivo outros princípios norteadores, como técnica, performance,
esforço, responsabilidade, racionalidade; atitudes que pareciam não foram
sido implementadas no amadorismo original. O jogador que exercia sua
prática pelo prazer prioritariamente tornou-se cotado pelo seu poder
produtivo; uma lógica que se assemelha aos princípios observados na
expansão do capitalismo.
Vejamos também como Liedson, descreveu sua re lação com o Flamengo,
clube que o projetou nacionalmente. Para ele , a grat idão não é tudo, pois comoprof iss ional dever ia pensar nas outras pessoas que dependiam do seu t rabalho.(Jornal Lance, 30 de dez/2002, p .8)
393 - Por exemplo, o Cruzeiro Espor te Clube, em 2003, projetou a conquis ta doinédi to t í tu lo do campeonato brasi le iro, formando uma equipe orçada em 1 milhãode reais . Não estou af irmando que a equipe que investe mais será a campeã,apenas reforçando a idéia do invest imento como mecanismo de formar uma equipecompet i t iva .
449
Figura 30 – Entrevista com Felipe – Jornal Lance, 17 de jan/2003, p.4
A partir da implantação do profissionalismo, o jogador percebeu que
o campo esportivo também poderia ser um espaço de luta pela
sobrevivência ou pelo acúmulo de capital como qualquer outro profissional.
Para se sustentar perante o interesse dos consumidores do espetáculo, os
450
jogadores deveriam apresentar competência técnica e alto rendimento, pois
seu vínculo tornou-se valorizado pela performance, isto é, pela capacidade
de responder eficientemente às exigências do jogo; portanto, sua
sobrevivência e/ou acúmulo dependiam da sua aptidão esportiva.394 Nesta
perspectiva, observemos que os valores de dedicação e afetividade parecem
perder, em parte, força para os torcedores, caso o jogador não seja capaz
de desempenhar satisfatoriamente suas obrigações em campo. Somente o
‘amor’, o ‘sangue’, o ‘vestir a camisa’ e o ‘coração na ponta da chuteira’ não
interessavam. Entretanto, a competência deveria estar aliada a estes ideais
de cunho românticos.
Na parte 1 procuramos compreender o conceito de amador ao longo
do tempo, por intermédio do movimento olímpico. Observa-se que tal
conceito na sua concepção original foi fundamentado inicialmente para
conceituar a condição do artista. Mais tarde, passou a ser também
observado no campo esportivo. Possivelmente a apropriação do conceito
original ainda no século XVIII tenha sido apenas uma forma de qualificar a
prática esportiva fora do campo das apostas que já eram freqüentes desde
aquele período.
Entretanto, essa conceituação foi perdendo o alcance, pois a
condição dos atletas também se afeiçoou ao tempo. Em um primeiro
momento, os atletas eram sujeitos que detinham autonomia, competiam
individualmente. Suas glórias eram fruto da sua individualidade, do seu
desempenho, mesmo que estivessem representando uma cidade, como
394 - Aptidão espor t iva aqui entendida como capacidade de responder de formasat isfatór ia aos est ímulos f ís icos demandados pelo jogo (competência f ís ica e
451
ocorria nos Jogos Gregos Antigos. Ainda que estivesse representando suas
cidades e/ou sua família, suas conquistas pareciam fruto do empenho
particular, diferente do que tornaria em momentos posteriores, quando os
ideais de identidade passaram a ser fundamentados nas realizações
esportivas coletivas.
Figura 31 – Entrevista com Liedson – Jornal Lance, 30 de dez/2002, p.8 técnica, a l iadas a sua habi l idade) .
452
O surgimento da competição entre clubes gerou uma nova
perspectiva no campo esportivo, pois o atleta, ao contrário de períodos
anteriores, não estava mais representado apenas seus ideais e da nação,
mas de todo seu grupo social, as tribos modernas.395 Naturalmente, as
conceituações acerca do vínculo do atleta provocariam novas perspectivas.
Desta forma, novos valores foram incorporados e os já existentes,
redesenhados. Os sentimentos individuais da vitória, mesmo que em nome
da nação, passam também a representar uma comunidade formada por
grupos sociais de identidades locais, como as torcidas de massa.396 Hoje,
os valores atribuídos a alguns grupos esportivos chegam inclusive a ser
superiores ou similares às identidades de nação.397
Na parte 3 do estudo, observamos que nas leis brasileiras, ao se
definir o status do atleta, o conceito parece se perder. A utilização do termo
amador nos textos-lei parece ter sido constantemente uma dificuldade,
395 - Com o advento dos clubes espor t ivos, as competições passar iam a representarcolet iv idades, desde um simples lazer de c lasses e a té a cr iação de um espaço des tatus socia l bem def inido. O surgimento destas t r ibos modernas no entendimentode Michel Maffesol i (1998) veio subst i tu ir as ações es tabelecidas pelo contratosocial proposto por Rousseau. Para Maffesol i , a comunhão de sent imento tornou-se o verdadeiro cimento da sociedade e as relações famil iares e tr ibais passaram acorresponder mais efet ivamente aos valores e in teresses dos indivíduos.Maffesol i , Michel . (1998). O tempo das tr ibos . Rio de Janeiro. FlorenseUniversi tár ia . Rousseau, Jean-Jacques (1963). Contrato social . São Paulo. Ediçõese publicações Brasi l Edi tora S.A.
396 -Toledo, Luis Henr ique (1996). Torcidas organizadas de fu tebol . Campinas.Editora Autores Associados.
397 - Em entrevis tas real izadas por nós em 2001 com torcedores de fu tebol , a lgunsadmit i ram que a v i tór ia ou derrota da sua equipe de preferência causou maisemoção e in teresse que os resul tados da seleção nacional . Dos 50 entrevis tados(35 homens e 15 mulheres) , 29 assumiram que as real izações e as conquis tas dosseus clubes eram super iores as da seleção nacional . Das informantes femininas,apenas uma torcedora colocou que sua paixão pelo c lube é super ior à seleçãobrasi le ira . (Sal les , entrevis tas real izadas em 2001).
453
devido à complexidade da estrutura esportiva nacional, bem como as
distintas finalidades e objetivos aos quais o esporte é promovido e
praticado.398 Observemos que o termo amador foi empregado para definir o
vínculo do atleta, o tipo de práticas, a estrutura da modalidade e a forma de
organização esportiva. As definições parecem não conseguir encampar com
clareza e exatidão todas as possibilidades de prática. Entretanto, pareceu-
nos evidente que todas as mudanças nos textos-lei quase sempre ocorrem
em função das querelas do futebol, uma vez que o futebol desde a terceira
décadas do século XX já representava um dos símbolos de construção da
nação brasileira.399
. . .
Diante da permanente competição, a competência esportiva tornou-
se um requisito almejado por todos os clubes, ainda nas primeiras décadas
do século XX. Desde então, esta competência esportiva já favorecia
principalmente aqueles clubes que pudessem remunerar seus jogadores.
398 - A par t ir do momento em que o esporte passou a ser compreendido como umdirei to de todos às prat icas espor t ivas (Art igo 1º do manifesto de educaçãof ís ica/espor te da UNESCO), houve uma tentat iva de se corresponder a ta isdeterminações. As le is implementadas tentam responder pelas mais dis t in taspossibi l idades de engajamento, como observamos na par te 3. Tubino (1995)relaciona as t rês forma de manifestações de prat ica espor t iva determinadas pelaUNESCO: esporte-educação, esporte par t ic ipação e de lazer e esporteperformance ou de rendimento. Tubino s inal iza ainda o aparecimento de novascorrentes esport ivas: t radicionais o l ímpicas, t radicionais , aventura ou de desaf io,da natureza, der ivados de ar tes marciais , de ident idade cul tura l , in te lectuais , deexpressão cul tural e der ivados de outros espor tes . Para Tubino, vár iasmodal idades poderão ser contempladas em mais de uma destas correntes. Tubino,Manoel José G. (1995) . As transformações do esporte na segunda metade doséculo XX. In : Votre , S. J . & Costa, V. L. de M. Atividades corporais & Esporte .Rio de Janeiro. Edi tor ia Central da UGF. 155-160p.
454
Relembremos que a vitória do Clube de Regatas Vasco da Gama no
campeonato estadual de 1923 foi questionada, pois os integrantes da equipe
não apresentavam o perfil amador que os organizadores queriam manter no
esporte carioca (Caldas, 1990), e o clube português era acusado de praticar
o amadorismo marrom, conforme apontamos no capítulo VI. Os ‘grandes
clubes’ passavam a cortejar os principais atletas, bem como eram
cortejados, principalmente, por aqueles jogadores que viam nestas
agremiações a capacidade de ascensão profissional e social. Nesta busca
recíproca, os ideais amadores pareciam não ser assinalados como
prioridade. Observemos que também já estavam em jogo a possibilidade de
sobrevivência e o acúmulo de capital nos principais clubes da época.
Esta situação, no entanto, despertava a desconfiança quanto ao
vínculo do jogador, que poderia estar sempre disposto a deixar um clube,
caso houve uma proposta mais vantajosa. Essa possibilidade de troca de
clube trazia consigo a suspeita sobre o compromisso e a dedicação.
Observemos que esta situação ocorria mesmo antes do profissionalismo,
quando alguns clubes propunham benefícios aos jogadores dos clubes de
menores expressões.400 Nas partes 2 e 4, pudemos perceber como esta
399 - Negreiros , Pl ín io J . Labr io la de C. (1998). Construindo a nação. Futebol nosanos 30 e 40. In : Motus Corporis . Vol.5 nº 2 . Rio de Janeiro . Editora da UGF. 76-107p.400 - Alguns jogadores recebiam lotes , casas , roupas, re lógios, a l imentos etc paraassumirem compromissos com os clubes. Mesmo aqueles clubes que se opunhamao profiss ional ismo ut i l izavam esta estratégia . (Cunha, s /d) . Jesus (1998)argumenta que aos 18 anos Osmar Fortes Barcelos (Tesourinha) ass inou seupr imeiro contrato prof iss ional com o Internacional de Por to Alegre, onde par te deseu pagamento fo i convert ido em al imentação (1 kg de carne e 2 l i t ros de le i te pordia) . Jesus, Gilmar Mascaranhas de (1988). Futebol e terr i tor ia l idade desegregação racial em Porto Alegre. In : Motus Corporis . Vol .5 nº 2 . Rio deJaneiro. Edi tora da UGF. 49-75p.
455
possibilidade de troca de equipe em busca de melhores salários provocava
(e ainda provocam) essa tensão entre o vínculo do jogador e os clubes.
Diante da remuneração, o jogador teria que se posicionar observando a
lógica profissional, o que parecia comprometer a relação dita amadora, já
que os torcedores passaram a ter dúvidas sobre os vínculos dos jogadores.
Essa dinâmica, no entanto, parece paradoxal. Admitimos que o futebol e o
esporte são um campo de negócios, que possui um mercado com os valores
de uma ética amadora, onde o vínculo e o interesse devem ocorrer como
extensão da identidade da comunidade real ou imaginada. Todavia, os
torcedores questionam o comportamento dos jogadores que admitem ser
contratados pelas equipes rivais, mas nem sempre têm o mesmo tipo de
julgamento, quando sua equipe contrata jogadores de outros clubes, ainda
que sejam rivais. Ao jogador cabe, apesar de a relação ser comercial,
posicionar-se provando estar determinantemente comprometido
afetivamente com o novo clube, como vimos no capítulo XVI sobre a
transferência de Bebeto do Flamengo para o Vasco, como também no
capítulo XVII no caso da contratação de Romário pelo Fluminense. Essa
tensão é ainda maior quando a transferência se dá no plano das rivalidades
locais.401 Para alguns torcedores ficará difícil acreditar na dedicação do
atleta que admite ser vendido para defender as cores de uma equipe arqui-
rival. Quando isso acontece, caso retorne ao clube, em decorrência de outra
401 - Rival idades h is tór ias são aqueles confrontos estabelecidos ao longo do tempo,na emulação entre as pr incipais equipes do Brasi l , em diferentes regiões. Trata-seda tensão entre os c lubes que apresentam his tór ias d is t in tas , seja por fundação oupor preferência popular , como, por exemplo: Flamengo x Vasco; Cruzeiro xAtlét ico; Corinthians x Palmeiras; Grêmio x In ternacional ; Bahia x Vitór ia; Spor tx Náutico, Guarani x Ponte Preta , entre outros.
456
transação, o jogador será alvo da desconfiança e, provavelmente, não mais
conseguirá estabelecer credibilidade junto à torcida.402
Relembremos que Maquiavel alertara o Rei quanto à necessidade
de se repensar sobre a composição dos exércitos, que não deveria ser um
exército profissional (mercenário), pois, se o indivíduo lutava por dinheiro,
então ele poderia também ser comprado pelo oponente. E se pode ser
comprado, provavelmente, não seria impossível se vender aos exércitos
inimigos. Estava em jogo a perspectiva do interesse versus o amor do
soldado. Segundo Maquiavel, a adesão à causa do príncipe deveria ser
consolidada pelo amor. Os moralizadores esportivos contrários ao
profissionalismo do futebol parecem seguir a mesma lógica dos argumentos
de Maquiavel, conforme vimos na parte 2 deste estudo, principalmente nos
capítulos VI, VII, VIII e IX, isto é, a possibilidade de o jogador se corromper
pelas ofertas adversárias. Essa tensão também teria ocorrido na Inglaterra,
conforme vimos no capítulo III, no entanto, os ingleses rapidamente
implantaram ligas profissionais, mesmo mantendo as ligas amadoras.
Pela paixão e pelos sentimentos coletivos de cumplicidade
despertados pelo futebol aos torcedores, parece não ser possível admitir que
o jogador quebre este pacto. Ao ignorar os valores afetivos e admitir os
vínculos financeiros como regentes dos seus compromissos, o jogador gera
a desconfiança quanto a sua representação, a exemplo do incômodo gerado
402 - Vejamos que, apesar de quer ido por par te da torcida Tr icolor , recai sobre oRomário a desconf iança, pelo fato de ter af irmado publ icamente sua l igaçãoemotiva com o Flamengo. Quando foi jogador do Vasco, par te da torcida vascaínatambém colocava sua a tuação em campo sob suspei ta , devido ao vínculo que oprópr io jogador d izia ter com o clube rubro negro.
457
por uma declaração de Felipe, ao se transferir do Vasco para o Flamengo:
“Eu sou o clube que pagar meu salário”.403 Como acreditar nestes jogadores
que colocam os interesses financeiros sobre os valores afetivos? A ânsia por
dinheiro em nossa longa tradição cristã é ainda vista com suspeição em
função do contexto.
Observemos que as análises do comprometimento são quase
sempre ponderadas com lógicas e perspectivas distintas; por um lado, o
jogador na busca de melhores salários e reconhecimento como
personalidade do mundo do futebol e por outro, o torcedor que apenas
busca se deleitar com as façanhas dos seus clubes. A cada início de
temporada, os diversos clubes do país, nas mais distintas divisões,
gerenciam uma espécie de “bolsas de valores”, onde o principal produto é o
jogador, sobretudo os já consagrados, provocando uma efervescência no
debate acerca do interesse e da paixão do jogador com o clube. O período
de contratação faz acirrar as disputas entre os principais clubes opositores
no espaço da mídia. A emulação parecem começar na capacidade de
contratação. 404
Nas descrições dos fatos que apresentamos na parte 2 e,
principalmente, na parte 4, podemos perceber como os termos amador e
403 - Jornal Lance, 17 de janeiro/2003, p .4
404 - O Jornal Lance – diár io dos espor tes – t raz, durante os meses que antecedemas pr incipais competições, uma coluna de duas páginas, denominada Mercado dofutebol – Vaivém do mercado , onde apresenta as vendas, contratações eespeculações dos pr incipais clubes do país . O Jornal do Sport também apresenta acoluna O Mercado da Bola . Os jornais mantêm os seus le i tores informadosdiar iamente sobre as t ransações e especulações que acontecem nos pr incipaisclubes.
458
profissional são apropriados nos discursos jornalísticos acerca do futebol
brasileiro desde os anos iniciais do século XX para qualificar o vínculo do
jogador com o clube.
Pareceu-nos que, antes do profissionalismo, nos anos 30, havia um
debate que se dava no confrontamento entre duas percepções: 1) alguns
dirigentes, os favoráveis à manutenção do regime amador, alegavam que o
dinheiro corromperia e provocaria o descompromisso com o jogo,
acreditando que, pelo imperativo da sobrevivência e satisfação das
necessidades básicas, os jogadores oriundos das camadas populares
poderiam corromper-se. A crítica destes idealizadores românticos à inclusão
de indivíduos das classes populares no futebol sustentava-se no ponto de
vista do desvirtuamento moral que a remuneração dos jogadores poderia
provocar; 2) em outra vertente, estavam aqueles que defendiam o
profissionalismo e acreditavam que a modalidade somente teria progresso
se aceitassem jogadores remunerados, pois, desta forma, poderiam
demonstrar melhores competências, além de facilitar o controle sobre o
rendimento, já que seria exigido empenho dos jogadores, visto que estes
tornariam profissionais a serviço do clube.
Entre as décadas de 20 e de 40, presenciamos nos jornais um
intenso debate entre os dirigentes esportivos, jogadores e os próprios
jornais. Inicialmente, a idéia da profissionalização era colocada pelos atores
conservadores como uma ameaça aos valores sociais (aqueles que o
amadorismo esportivo ajudara a cultivar) e também à própria manutenção do
esporte. Acreditavam que o profissionalismo poderia provocar uma
459
desestruturação dos clubes, ao contrário do que imaginavam os pro-
profissionalistas. Argumentavam que não havia dinheiro para manter os
salários dos jogadores, pois os principais clubes já se encontravam
endividados, o que poderia representar uma derrocada do clube. Nota-se
que a preocupação era que algum efeito perverso pudesse se
desencadeado com o compromisso oficial assumido com a remuneração dos
jogadores. Outros diziam, no entanto, não acreditar que o profissionalismo
fosse se concretizar, tratava-se de uma ilusão, uma vaidade de alguns
pretensiosos dirigentes, que em nada a profissionalização ajudaria no
desenvolvimento do esporte. Portanto, para estes, a mudança de regime
seria uma futilidade. Observemos que os argumentos dos atores contrários à
implantação do regime profissional eram similares aos apontados por
Hirschman (1992), em sua tese da retórica da intransigência. Essa
discussão foi se arrastando até os anos finais da década de 30, quando
perceberam que a profissionalização já era um fato consumado, mesmo que
ainda deixassem margem para os questionamentos dos românticos
descontentes, que fazia dos ideais amadores o princípio de uma ética
esportiva.
Com afirmação do profissionalismo, mudaram os dilemas e os
debates. O esporte não podia prescindir da competência e o profissionalismo
não garantiria a total dedicação. Todavia, a questão era a seguinte: Como
garantir a emoção se os jogadores são trabalhadores que estão buscando
autopromoção e sua sobrevivência? Como aliar a emoção ao dinheiro?
Como combinar e manter a agressividade, a paixão e a emoção do jogador,
460
ingredientes necessários à competição esportiva, com os interesses
racionais de ganho e acumulação presente nas novas relações entre
jogadores, indústrias e clubes? Quando o engajamento era voluntário, não
pairava dúvida sob o comprometimento do jogador perante a dedicação ao
clube, segundo os argumento dos defensores amadoristas. Entretanto, com
a admissão do jogador remunerado, outros pontos passam a margear as
narrativas. O que parece ser o foco da tensão é a possibilidade (ou
impossibilidade) da ‘profissionalização da paixão´.405 Como trabalhar com
emoções racionalizadas pelo interesse?
Parece natural que o esporte, pela sua dinâmica, requeira
agressividade, paixão e amor à causa. Ao se profissionalizar, estes
sentimentos tem que ser mantidos, mas a eles são agregados o comércio,
uma racionalidade econômica e um compromisso profissional. Portanto, o
jogador de futebol tem que agir nesta racionalidade, mas não pode perder a
imagem que possui do vínculo afetivo.
A crítica deferida à comercialização do esporte sustentava-se na
corrosão do comportamento lúdico. Johan Huizinga (1980)406 acreditava que
a atividade lúdica do jogo nos tempos modernos passou a ser submetida à
racionalidade da vida industrial e que o jogo perdeu o espírito lúdico. Neste
ponto de vista apontado por Huizinga, poderíamos pensar que o futebol, ao
se tornar um comércio, deixou desvirtuar os valores sagrados (cultivados
405 - Nesta mesma l inha de raciocínio, poderíamos pensar nas torcidas organizadasque são f inanciadas por alguns dir igentes . A tensão exis tente parece estarrelacionada à legi t imidade deste envolvimento.
406 - Huizinga, Johan. (1980). Homo Ludens : o jogo como elemento da cul tura . SãoPaulo. Perspect iva. A desvir tuação do espír i to do jogo foi motivo de preocupação
461
pelos torcedores) e passou a assumir valores profanos (comércio sustentado
pelos dirigentes dos clubes e pelos próprios jogadores). Talvez, estejamos
diante de um dos suportes que as narrativas jornalistas adotam em suas
análises. Os argumentos de Huizinga a respeito da perda do espírito lúdico
parecem equivocados. Uma narrativa romântica que despreza que o prazer
possa ser aliado ao fator financeiro. Nesta perspectiva, o ganhar dinheiro no
espaço do prazer parece ser imoral.
Observemos que as narrativas jornalísticas sobre o futebol são
desenvolvidas, na maioria das vezes, pelo viés romântico. O espaço do jogo
surge mitificado e, como tal, parece criar um bloqueio para as ações
determinantemente econômicas. Possivelmente a estratégia jornalística
opera respondendo (e correspondendo) aos anseios românticos dos
torcedores.
No período do amadorismo, estavam presentes imagens como:
amor, paixão, educação, dedicação incondicional; enquanto no
profissionalismo, passou a destacar outras imagens: técnica, esforço,
responsabilidade, competência, racionalidade etc. Entretanto, até que se
adquirisse a legitimidade profissional, o jogador de futebol recebia alguns
rótulos que o comprometiam socialmente, como: mercenário, malandro,
vadio etc. Até o período da tensão da mudança de regime, o fato de o
jogador receber para jogar maculava-o moralmente ou o tornava suspeito. O
esporte deveria representar, como já observamos em outro momento, uma
complementação dos espaços de distinção, e, portanto, aqueles que
e cr í t ica de Johan Huizinga (1980), quando af irmou que o espír i to do prof iss ionalnão é mais o espír i to lúdico, pois lhe fal ta espontaneidade e despreocupação.
462
recebiam para o jogo estavam comprometendo-o, pois demonstravam a
incapacidade de refinamento social e de posse que os permitiam transitar
entre os membros da elite. O campo de futebol já não conseguia mais
representar um espaço de refinamento, passando a permitir o
entrelaçamento de indivíduos de culturas e origens sociais diferentes.407
Nos quadros abaixo (10, 11, 12 e 13), relacionamos as imagens
sobre o amadorismo e o profissionalismo que apareceram nos jornais nos
períodos pesquisados.
Observemos que, com o advento do regime profissional, não se
descartaram as imagens iniciais, principalmente relacionadas aos
sentimentos afetivos, mas estas se amoldaram à nova dinâmica social pela
qual o esporte foi conduzido.
Quadro 10 - Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo antes daoficialização do regime profissional (até 1933) na percepção dos interessados namanutenção do regime amadorAmadorismo Profissionalismo- Amor ao clube- Divertimento- Espírito de sacrifício- Gastos pessoais (prejuízos)- Carreiras curtas por lesões- Restauração moral- Compromisso moral- Esporte sadio- Esporte como saúde – Remédio- Jogo sem obrigação formal(independente)- Esporte pelo esporte
- Regime de gorjetas- Liberação do empregador para os treinos- Suborno- Doença social- Malandros
407 - Assaf (2003) argumenta que o profiss ional ismo ter ia resolvido, em par te , umadas af l ições dos sócios el i t is tas , pois , na condição de prof iss ionais dos clubes, osjogadores passar iam a entrar no clube pelo por tão dos funcionár ios. Desta forma,não precisar iam mais ter que dividir a role ta de entrada com os jogadores , “umato de indisfarçável constrangimento .” (p.14) Assaf , Rober to. (2003). Setedécadas de futebol prof iss ional . In : Jornal Lance. 18 de fev/2003.
463
- Gosto pela competição- Distração
Quadro 11 – Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismo depoisda oficialização do profissionalismo, durante o período de implantação doprofissionalismo, na percepção dos interessados pela manutenção do regimeamador
Amadorismo Profissionalismo- Compromisso- Falta de profissionalismo- Iniciante- Categorias de base- Esportes olímpicos
- Uma praga- Ameaça ao futuro do jogo- Imoralidade- Maculação do espírito amador- Mercantilização do esporte- Jogadores malandros- Jogadores vadios- Resultados dos jogos sobre suspeita- Futebol tornou-se uma empresa comercial- Mercenários
Quadro 12 – Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismoantes da oficialização do regime profissional (até 1933), na percepção dosinteressados pela implantação do profissionalismo
Amadorismo Profissionalismo- Falta de compromisso- Falta de qualidade técnica- Amadorismo marrom- Falsidade- Remuneração em forma de ‘bicho’
- Melhoria do espetáculo- Compromisso dos jogadores- Compromisso do clube com os jogadores- Transparência nas ações- Desenvolvimento do esporte- Garantia de manutenção dos principaisjogadores (evitando o êxodo)
Quadro 13 – Imagens relacionadas ao amadorismo e ao profissionalismodepois da oficialização do regime profissional, na percepção dosinteressados pela implantação do profissionalismo
Amadorismo Profissionalismo- Falta de compromisso- Falta de qualidade técnica- Dedicação descompromissada
- Competência esportiva- Competência técnica- Organização
464
- Esforço- Responsabilidade- Racionalidade- Transparência
Nota-se que as tensões e os debates originados nas décadas de 20
e 30, muitas vezes, se apoiavam no discurso do amadorismo apenas como
pretexto, uma estratégia retórica para a manutenção ou retomada do poder
que estava com os adversários. Percebemos isso dentro da METRO e
também na AMEA.
Observemos que o amadorismo e o profissionalismo formam uma
narrativa polissêmica que insere o esporte na esfera do consumo, da
indústria do entretenimento, ao mesmo tempo que possibilita a
sedimentação de sentimentos identitários, vinculada a grupos, clubes ou
Estado-Nação.
Na atualidade, apesar de consolidado o profissionalismo, o
interesse financeiro ainda é visto como comprometedor do vínculo do
jogador com o clube e está fadado à crítica e desconfianças daqueles atores
que se sustentam nos discursos românticos. O que parece confuso e coloca
por terra as análises de Huizinga é o fato de que ambos, amadorismo e
profissionalismo, continuarem suscitando os sentimentos coletivos e de
cumplicidade, mesmo que o fator econômico entre em contradição, em
alguns momentos, com os valores afetivos.
Parecebemos que a imprensa reflete em sua narrativa um
sentimento expresso no discurso do homem comum. Entretanto, esses
465
sentimentos refletidos parecem ter surgido do embate originado no seio da
imprensa, no período em que o futebol passou a representar para a
imprensa um mecanismo de circulação dos seus periódicos, ainda nas
primeiras décadas do século XX. Naquele momento, os formadores de
opinião apresentavam seus pontos de vista, que serviam como forma de
medir força com os responsáveis pelos periódicos concorrentes. Estava em
jogo não apenas o rumo do esporte, mas também o respaldo público dos
principais jornais.
O profissionalismo parece ter surgido como uma nova regra que se
impunha na organização esportiva mundial, principalmente pela valorização
do espetáculo. O profissionalismo seria a viabilidade de comercialização
deste espetáculo. A imagem espetacular passou a produzir interesses e
valores diferenciados. Hoje, o esporte não pode ser pensado sem vinculá-lo
ao mundo do negócio, a indústria e a mídia.
Na lógica de uma sociedade capitalista, em que o esporte foi
transformado em fonte de lucro, os ideais heróicos e de honra relacionados
ao amadorismo tiveram que combinar com o interesse. Obviamente que
para o torcedor isso pode ser contraditório quando pensa essa relação a
partir da moral católica de Santo Agostinho. Para a imprensa, no entanto,
essa tensão parece ser útil, na medida em que precisa dela para manter
acessa essa polêmica orientada pela demanda de seus leitores. O discurso
amador nessa perspectiva racional proveniente do interesse passou a ser
funcional, uma espécie de regulação do comportamento dos profissionais.
466
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