Os Fios Invisíveis Da Produção Capitalista

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 R EVISTA  OUTUBRO , N. 7, 2002 POLÍTICA  OPERÁRIA :   FUTURO? 49 T rabal ho informal: os fios (in)visíveis da produção capitalista  M  ARIA  A UGUSTA  T  AV ARES PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE S ERVIÇO S OCIAL DA U  NIVERSIDADE F EDERAL DE ALAGOAS O trabalho informal não é um fenômeno novo no mundo do trabalho, especialmente no Brasil, onde a dualidade e a heterogeneidade do mercado de trabalho são problemas histórico-estruturais. Entretanto, os ajustes estru- turais impostos à economia pelo regime da acumulação flexível são portadores de mudanças, dentre as quais o trabalho informal se coloca como uma ten- dência que deve ser considerada: 1) pelo caráter que contemporaneamente lhe é atribuído por organizações financeiras internacionais da estatura do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), 1  as quais embora declarem que os problemas sociais decorrentes do desemprego são “efeitos colaterais indesejáveis”, 2  têm demonstrado por eles um surpreendente in- teresse; 2) pela sua indiscutível tendência à expansão; 3  e 3) pelo modo como vem se relacionando com o capital. No que se refere ao interesse das instituições financeiras pelos extremamente pobres, não tenhamos a ingenuidade de pensar que houve qualquer mudança na sua função. Ao contrário, enquanto patrocinadoras de um programa – Programa de Ajuste Estrutural (PAE) –, que privilegia a eficiência, a produtividade, o comércio e a troca internacional, tendo como 1 O Banco Mundial e o FMI têm recomendado a expansão do setor infor mal como uma contratendência ao desemprego, que se coloca entre as ações complementares às políticas de proteção social para os extremamente pobres. 2  A e xpressão é do FMI-Banco Mundial, apud Michel Chossudovsky.  A glob alização da pobreza: impactos das reformas do FMI e do Banco Mundial. São Paulo: Moderna, 1999, p. 64. 3  O Relatório sobre Emprego no mundo (BIT/1998-1999) assinala que nos países em desenvolvimento a maioria dos empregos novos são criados no setor informal, que já ocupa aproximadamente 500 milhões de pessoas. TRABALHO  INFORMAL : OS  FIOS  (IN )  VI VE IS  DA  PRODUÇÃO CAPITALISTA  49

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Texto da Maria Augusta Tavares

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  • REVISTA OUTUBRO, N. 7, 2002

    POLTICA OPERRIA: H FUTURO? 49

    Trabalho informal:os fios (in)visveis daproduo capitalista

    MARIA AUGUSTA TAVARESPROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE SERVIO SOCIAL DA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

    O trabalho informal no um fenmeno novo no mundo do trabalho,especialmente no Brasil, onde a dualidade e a heterogeneidade do mercadode trabalho so problemas histrico-estruturais. Entretanto, os ajustes estru-turais impostos economia pelo regime da acumulao flexvel so portadoresde mudanas, dentre as quais o trabalho informal se coloca como uma ten-dncia que deve ser considerada: 1) pelo carter que contemporaneamentelhe atribudo por organizaes financeiras internacionais da estatura doBanco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional (FMI),1 as quais emboradeclarem que os problemas sociais decorrentes do desemprego so efeitoscolaterais indesejveis,2 tm demonstrado por eles um surpreendente in-teresse; 2) pela sua indiscutvel tendncia expanso;3 e 3) pelo modo comovem se relacionando com o capital.

    No que se refere ao interesse das instituies financeiras pelosextremamente pobres, no tenhamos a ingenuidade de pensar que houvequalquer mudana na sua funo. Ao contrrio, enquanto patrocinadorasde um programa Programa de Ajuste Estrutural (PAE) , que privilegia aeficincia, a produtividade, o comrcio e a troca internacional, tendo como

    1 O Banco Mundial e o FMI tm recomendado a expanso do setor informal como uma contratendnciaao desemprego, que se coloca entre as aes complementares s polticas de proteo social para osextremamente pobres.

    2 A expresso do FMI-Banco Mundial, apud Michel Chossudovsky. A globalizao da pobreza: impactosdas reformas do FMI e do Banco Mundial. So Paulo: Moderna, 1999, p. 64.

    3 O Relatrio sobre Emprego no mundo (BIT/1998-1999) assinala que nos pases em desenvolvimentoa maioria dos empregos novos so criados no setor informal, que j ocupa aproximadamente 500milhes de pessoas.

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    conseqncia o desemprego em massa e a reduo das polticas sociais, oque se torna bvio a sua necessidade de legitimao. Contudo, as aesdos programas estatais que antes incentivavam o setor informal foramarrefecidas em alguns casos e, em outros, completamente eliminadas, en-quanto a instncia intermediadora da proteo social se desloca do Estadopara as organizaes no-governamentais (ONGs) mediante modestos inves-timentos que, sob uma pretensa proteo social, objetivam conter os nimosdas populaes despossudas que se organizam, podendo pr em risco aspolticas de ajustamento.

    Esse deslocamento do desenvolvimento para a luta contra a pobreza, fazcom que o emprego deixe de ser uma questo econmica para ser umaquesto social, sem que a racionalidade do capital em nada se altere.4

    Acumular continua sendo o seu propsito, e, exatamente por isso, precisofazer ajustes, no sentido de que o fim capitalista no deixe de ser alcanado.Ou seja, deslocam-se os trabalhadores, mas a lgica da acumulaopermanece. No importa ao capital como essa mudana se reflete na classetrabalhadora. A sociedade tem que ser modelada de maneira tal a permitirque o sistema funcione de acordo com as suas prprias leis.5

    Segundo Marx, a fora de trabalho a nica mercadoria que quandoconsumida produz valor, portanto, no existe capital sem trabalho, embora,historicamente, no cenrio montado pelo capital, s vezes quase todos ostrabalhadores tenham papis definidos e, em outras, como agora, grandeparte seja transformada em meros figurantes. Isso, no entanto, no altera alei fundante do capital: o motivo que impulsiona e o objetivo que determinao processo de produo capitalista a maior autovalorizao possvel docapital, isto , a maior produo de mais-valia, portanto, a maior exploraopossvel da fora de trabalho pelo capitalista.6

    Sob essa orientao, em que a base do raciocnio permanece a mesma, osetor informal assume, historicamente, configuraes completamenteopostas. Quando o capitalismo partilhava a idia de que a sua organizaoprodutiva, regulada pelo livre mercado, se expandiria de forma equilibrada,

    4 Deve-se ressaltar que esse enfoque da questo social completamente oposto nossa perspectiva.

    5 Karl Polanyi. A grande transformao; as origens da nossa poca. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 72.

    6 Karl Marx. O capital. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 263.

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    homognea e amplamente integradora, o setor informal era visto comosinnimo de atraso. Assim, o desenvolvimento do capital acabaria por elimin-lo. Mas quando a mesma economia de livre mercado se revela incapaz daintegrao prometida, o setor informal reivindicado, no porque o seudesempenho contribua de algum modo com a acumulao capitalista, mascomo uma ao complementar proteo social.

    Essas determinaes ideolgicas, que traduzem o oportunismo da razoliberal, nos conduzem a concordar com Lautier7, quando nega qualquerpertinncia noo de setor informal, e afirma a existncia de empregosinformais, de trabalho sob relaes informais, o que no significa estar margem do capital. a prpria estrutura capitalista que imprime essecarter, pelo qual se explica a expanso do trabalho informal e o modocomo parte dele, mediada pelos processos de terceirizao, se articuladiretamente ao capital.

    A partir do espao de movimentao oferecido s empresas pelas polticasflexibilizadoras, o trabalho formal com as regulaes que ainda o caracterizamest desaparecendo. Ora, criar emprego no funo do capital. Mas este,j o sabemos, no existe sem trabalho. No o trabalho que utiliza os meiosde produo; so os meios de produo que utilizam o operrio.8 Ser ca-pitalista implica comandar o uso dos meios de produo, isto , a prpriaproduo. Para que os meios de produo funcionem, o capital necessita dotrabalhador, que acrescenta ao objeto do trabalho novo valor, por meio doacrscimo de determinado quantum de trabalho, abstraindo o contedodeterminado, a finalidade e o carter tcnico do trabalho.9 Submetida sleis de mercado, a fora de trabalho tem que se sujeitar oferta e procura,sendo ora reivindicada, ora rejeitada, como qualquer bem que produzidopara a venda. Na medida em que o aumento da produtividade e a desre-gulamentao das relaes de trabalho contribuem para a disponibilidadecrescente da fora de trabalho procura de emprego e para fragilizar asnegociaes coletivas, o trabalho formal, estvel, em tempo integral e so-cialmente protegido tende a ser uma categoria do passado. Esse recuo no

    7 Bruno Lautier. LEtat et linformel. Paris: LHarmattan, 1991.

    8 Karl Marx.Captulo VI (Indito). So Paulo: Cincias Humanas, 1978, p. 19.

    9 Karl Marx. O capital. Op. cit., p. 165.

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    aparato jurdico de proteo ao trabalho evidencia que as conquistas dostrabalhadores, na ordem burguesa, no passam de concesses momentneas,com o que se revela a inviabilidade do trabalho compartilhar poder com seuantagonista estrutural.10 Portanto, qualquer argumento que defenda aautonomia do setor informal no se funda na prtica social.

    Acerca da expanso e do modo como o trabalho informal est se rela-cionando com o capital, pode-se inferir que, caso essa tendncia persista, aeconomia informal deixa de ser intersticial, como quer a teoria da subordi-nao,11 para assumir explicitamente a sua funcionalidade ao sistema. Talpossibilidade nos impele a desmontar essa rede que torna invisveis os fioscom os quais o trabalho informal articulado produo capitalista. Deve-se observar que o trabalho informal no comporta apenas ocupaes excludasdo trabalho coletivo, e menos ainda, que se restringe s atividades de estritasobrevivncia. Toda relao entre capital e trabalho na qual a compra dafora de trabalho dissimulada por mecanismos, que descaracterizam acondio formal de assalariamento, dando a impresso de uma relao decompra e venda de mercadorias consubstancia trabalho informal, emboracertas atividades desse conjunto heterogneo divirjam no comportamento.Como as referncias conhecidas para regular o emprego esto perdendo suapertinncia, a tipologia formal/informal se torna insustentvel, a no serque se tenha um conceito de formalidade, cuja base para ser trabalhadorformal seja to-somente estar diretamente empregado por meios de produotipicamente capitalistas, embora submetido mesma desproteo social queo trabalhador informal.12

    Deve-se, portanto, recusar a idia de que o trabalho informal se restringes atividades de sobrevivncia. Assim, vamos analis-lo, tendo em vista a

    10 Cf. Istvan Mszros. Beyond capital. Londres: Merlin, 1995.

    11 Teoria formulada em 1980, segundo a qual o setor informal uma forma de produo subordinadae intersticial produo capitalista. Nessa viso, o espao econmico onde o setor informal atua destrudo, criado e recriado pelo movimento da acumulao capitalista. Paulo Renato C. Souza. Salrio,e emprego em economias atrasadas. Campinas: Unicamp/IE, 1999.

    12 Nos Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, a regulamentao das normas de trabalho inexistente nos itens: jornada de trabalho, contrato por tempo determinado, salrio mnimo, proteoao emprego e direitos de representao dos trabalhadores. Cludio S. Dedecca. Racionalizaoeconmica e trabalho no capitalismo avanado. Campinas: Unicamp/IE, 1999, p. 214.

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    sua tendncia expanso e como esta se realiza na interioridade do sistemacapitalista. o que faremos a seguir.

    Trabalho informal e totalidade

    O novo milnio inaugura a era do trabalho informal. Antunes defende atese de que o capital necessita cada vez menos do trabalho estvel e cada vezmais das mais diversificadas formas de trabalho parcial ou part-time, terceirizado,que so, em escala crescente, parte constitutiva do processo de produocapitalista.13 Se comprovada essa tese, possvel prever srias conseqnciaspara a sociedade. Lembremo-nos que o debate acerca da informalidade, doponto de vista da literatura econmica dominante, tende geralmente a discuti-la enquanto unidade ou empresa (pequena ou micro), e no enquantotrabalho. Desse modo, fica mais fcil negar a produtividade de certos trabalhosrealizados informalmente, mas diretamente articulados produo capitalista.Essa forma de organizar a produo, ao mesmo tempo fragmenta o trabalho eobriga-o a assumir a condio que aparenta. Com isso, certamente no seanula a mais-valia, mas a sua dissimulao serve de argumento para preservara explorao em escala cada vez mais ampliada, conduzindo a pensar queestamos a caminho de uma organizao da produo capitalista, onde todossero capitalistas. Ou, talvez, pretenda-se negar a produtividade do trabalhopelo obscurecimento da participao de trabalhadores informais no trabalhocoletivo, o que os faz parecer meros vendedores de mercadorias, cuja relaocom o capital se restringe esfera da circulao.

    Para discutir essas hipteses, impe-se o austero caminho da crtica. Ou,numa palavra, a totalidade. Porque, segundo Lukcs, A categoria datotalidade significa, (...) por um lado, que a realidade objetiva um todocoerente de que cada elemento est de uma maneira ou outra em relaocom cada outro elemento e, por outro lado, que essas relaes formam naprpria realidade objetiva, correlaes concretas, unidades, ligadas entre side maneiras inteiramente diversas, mas sempre determinadas.14

    13 Ricardo Antunes. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho. So Paulo:Boitempo, 1999, p. 119.

    14 Gyorgy Lukcs. Realismo e existencialismo. Lisboa: Arcdia, 1960, p. 282-283.

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    Sob essa orientao, estamos assumindo a tarefa de desvelar as deter-minaes ideolgicas que fundam a concepo setorialista, tendo em vistaconhecer o trabalho informal e seus nexos com o capital. A busca desse objetivoimplica precisar certos contornos da relao capital, uma vez que as imprecisese generalizaes tm contribudo com o surgimento de concepes tericasque, alm de no traduzirem o real, do lugar a formulaes que preservame aprofundam a subordinao do trabalho ao capital.

    A propsito, em 1995, o Relatrio Boissonat, concluiu que, no horizontede vinte anos, o emprego continuaria sendo um meio essencial de inserosocial. Portanto, se a tecnologia economiza trabalho, melhor desdobrar osempregos existentes para que todos tenham um, do que d-los a uns e privarpermanentemente outros.15 Essa recomendao suscita algumas questes:qual o conceito que est sendo atribudo a emprego? Trabalho e empregoso sinnimos? O trabalho/emprego seria formal ou informal? Produtivo ouimprodutivo? Full time ou half time?

    No referido relatrio, observa-se que o trabalho tratado na sua dimensopuramente econmica, enquanto trabalho abstrato que estrutura a sociedadeindustrial na Frana, a tal ponto que o termo trabalho freqentementeutilizado como sinnimo de emprego.16 a mesma dimenso econmicaque tambm focalizamos, mas, obviamente, na perspectiva crtica que nosorienta, no identificamos trabalho a emprego. A viso de totalidade permiteobservar que o pano de fundo do cenrio em que se movem as formas detrabalho a flexibilizao, a qual atravs da terceirizao combina de modoinovador prticas que o capital j experimentara no passado, com as moder-namente conhecidas. Essa rearrumao faz surgir a empresa flexvel, mate-rializada pela diversidade de status de assalariados. A mudana visvel que o conjunto de trabalhadores necessrios a um dado processo de trabalhono precisa mais ser simultaneamente reunido no mesmo local. Mas flexibilizarno significa apenas externalizao de funes. A reconfigurao da empresae do emprego portadora de questes tericas fundamentais para a sociedade,pois sendo o trabalho uma relao social, no h como separar a sua funoeconmica do contexto social em que o mesmo se desenvolve.

    15 Jean Boissonat. Le travail dans vingt ans. Paris: Odile Jacob, 1995, p. 313.

    16 Idem, p. 41.

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    A flexibilidade do trabalho alm de, a curtssimo prazo, se refletirnocivamente na vida profissional e social, tambm fomenta a ordem ideo-lgica dominante, distanciando cada vez mais o horizonte revolucionrio.Neste sentido, os defensores do capital assumem a tarefa de esconder ascontradies do sistema e de realar a superfcie, como se esta fosse a essncia.Os recursos da informtica somados maleabilidade decorrente dadesregulamentao tendem a tornar o trabalho mais informal, e em algunssegmentos, virtual, contribuindo para que as fronteiras da relao capital setornem menos perceptveis. Na esteira da economia vulgar, o capitalismocontemporneo engendra situaes que obscurecem as fronteiras entreatividade industrial e servios, entre trabalho produtivo e improdutivo, entretrabalho formal e informal, e ainda, entre emprego e desemprego.

    Graas aos mecanismos oferecidos pela flexibilizao, o capital temtransformado relaes formais em informais, o que, por conseqncia, embotaoutras relaes. Nessa passagem, em certos casos, o que venda direta detrabalho vivo assume a aparncia de venda de mercadoria. Com isso, torna-se evidente que pela deslocalizao do trabalho nega-se a categoria tempode trabalho e, por conseguinte, a subordinao do trabalho ao capital.Contudo, essa deslocalizao, que os neoliberais traduzem comoindependncia, apenas cria a iluso de que o trabalhador adquiriuautonomia, simplesmente porque no sai de casa e no sofre uma vigilnciadireta, como ocorre na empresa. Na verdade, o suposto trabalhoindependente executado segundo uma obrigao por resultados, portanto,sob rigoroso controle e sob maior explorao. Trata-se to-somente de umafalsa autonomia, marcada pelo desassalariamento e pela precariedade, masonde o tempo de trabalho socialmente necessrio continua determinante.Idntico equvoco pode ser verificado nos segmentos do trabalho virtual,onde os teletrabalhos so apontados como ocupaes com status deindependncia. No entanto, todos esses trabalhos esto ligados a uma ordemtecnolgica, capaz de exercer controle sobre cada minuto da atividade.

    Nesse terreno sombrio, os tempos fluidos do trabalho ainda cumprem atarefa de falsear os indicadores de emprego. Se antes havia dvidas quantos estatsticas acerca do mercado de trabalho, agora elas so ainda menosconfiveis, porque cada vez menos ntida a diferena entre emprego edesemprego. Para alguns pesquisadores, os indicadores tradicionais de desem-

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    prego no so mais suficientes para medi-lo, sendo necessrio agregar outros.Cada vez mais o desemprego aparece como um fenmeno complexo eheterogneo que escapa capacidade de mensurao dos indicadorestradicionais para anlise do mercado de trabalho.17 Inscreve-se a a subuti-lizao da fora de trabalho, que acobertada pelos contratos de trabalhoparcial ou determinado, e que escapam aos indicadores tradicionais refe-renciados.18 A estes, pode-se e se deve acrescentar o trabalho informal,no porque se queira que qualquer ocupao seja vista como emprego. Oque se quer enfatizar que certas ocupaes exercidas precariamente, svezes mediante a forma de trabalho domiciliar, fazem parte do trabalhocoletivo. Algumas grandes indstrias, no Brasil e no mundo, tm mudado afisionomia do trabalhador coletivo, na medida em que o capital se relacionacom seus opositores, como se ao invs de comprar fora de trabalho estivessecomprando outra mercadoria. Essa explorao do trabalho na esfera da mais-valia absoluta apenas uma das estratgias, entre tantas outras, sob o mesmoregime, que podem articular grande indstria e trabalho informal. Torna-senecessrio, portanto, demonstrar que a simples rearrumao das formas novas e/ou velhas no s no alteram o contedo da relao capital, comopreservam e intensificam a explorao do trabalho. Em outros termos,reafirmamos que seja qual for a organizao do trabalho nesta ordem,permanece inalterada a lei do valor.

    A lei do valor: mo invisvel que tece a relao capital

    A produo capitalista tem como fim a mais-valia. Isto , seu objetivo que cada produto contenha o mximo possvel de trabalho no pago, o queequivale a dizer que, nesta sociedade, um quantum maior de trabalho que osocialmente necessrio torna a produo inadequada lei do valor. SegundoMarx, essa tendncia imanente da relao capitalista no se realiza de maneiraadequada (...) enquanto no se tenha desenvolvido o modo de produoespecificamente capitalista e, com ele a subsuno real do trabalho ao capital.19

    17 Cludio Dedecca. Op. cit., p. 198.

    18 Idem, p. 216.

    19 Karl Marx. Captulo VI. Op. cit., p. 69.

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    A mais-valia absoluta, sozinha, no suficiente para uma produo cujo fimdeve se realizar em si mesma. Assim, a lei do valor revoluciona os meios deproduo e, conseqentemente, os processos do trabalho e os agrupamentossociais, tornando o modo de produo especificamente capitalista a formageral socialmente dominante do processo de trabalho. Contraditoriamente,o capital ope trabalho manual e trabalho intelectual ao mesmo tempo emque o carter cooperativo se impe como condio necessria do prprioprocesso de trabalho. Diviso e cooperao do trabalho so condiesfundamentais produtividade do trabalho, cuja existncia se expressamediante uma atividade combinada, uma totalidade, embora os componentesdessa totalidade sejam estranhos entre si. claro que, o objetivo dessaassociao promovida pelo capital, est direcionado to-somente ao produtodo trabalho, ao aumento da fora produtiva do capital. A fora coletiva dotrabalho, sua condio de trabalho social, por fim a fora coletiva do capital.20

    Cabendo ressaltar que, Para trabalhar produtivamente, j no necess-rio, agora, pr pessoalmente a mo na obra; basta ser rgo do trabalhadorcoletivo, executando qualquer uma de suas subfunes.21

    Com isso, no s o trabalhador que produz o contedo material da riqueza trabalhador produtivo, mas sim, todos os trabalhadores que produzem mais-valia,22 bem como o fato do modo de produo especificamente capitalista sera forma social dominante no exclui da relao capital o seu ponto de partida a mais-valia absoluta. Ao contrrio, alm de se desenvolverem diferentesmodos de articulao entre os dois regimes de explorao, ainda h situaesem que a intensidade das operaes produtivas se insere em formas de trabalhocomplexo, tornando a mais-valia absoluta inseparvel da mais-valia relativa.Para Bernardo, o prprio processo de mais-valia relativa na produo da forade trabalho implica a permanente remisso de amplos setores de trabalhadorespara sistemas em que facilmente pode vigorar a mais-valia absoluta.23

    20 Karl Marx. O capital. Op. cit, p. 86.

    21 Idem, p. 105.

    22 Se for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produo material, ento um mestre-escola um trabalhador produtivo se ele no apenas trabalha as cabeas das crianas, mas extenua asi mesmo para enriquecer o empresrio. O fato de que este ltimo tenha investido seu capital numafbrica de ensinar, em vez de numa fbrica de salsichas, no altera nada na relao Idem, p. 105-106.

    23 Joo Bernardo. Economia dos conflitos sociais. So Paulo: Cortez, 1991, p. 114.

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    Essa articulao que explica a existncia combinada e concomitante dediferentes estgios tecnolgicos no interior do mesmo conjunto de processosprodutivos torna indiscutvel que desenvolvido e atrasado so momentos deuma mesma unidade, ou mais precisamente, do modo de produo capitalista., pois, sob essa viso de totalidade que pretendemos desvelar as mediaesque consubstanciam o trabalho coletivo na era da acumulao flexvel, doqual, em alguma medida, o trabalho informal participa.

    A partir da reduo da necessidade de trabalho vivo e das relaesformais de assalariamento, alguns autores compartilham a idia de que ocapitalismo no pode mais ser apreendido mediante as mesmas categoriasque consubstanciam a anlise clssica do nosso pensador. Os que defendemessa concepo, embasados em mudanas na organizao do trabalho, quese respaldam nas polticas de flexibilizao e desregulamentao, tomam ofenmeno como essncia e tratam partes como se estas representassem atotalidade. Dentre os equvocos decorrentes dessa parcialidade, carac-terstica do pensamento liberal, queremos ressaltar que nem a generalizaodo trabalho improdutivo nem o deslocamento do trabalho formal para oinformal eliminam a produtividade do trabalho nos termos postulados pelateoria marxiana. As simples alteraes que tm ocorrido na forma nocancelam a vigncia da lei do valor. Assim, o desaparecimento do trabalhoformal no implica o fim do regime de assalariamento, base da produocapitalista, visto que permanecem as mesmas regulaes no contedo dotrabalho executado sob relaes informais. A maior aplicao da cinciaamplia a fora produtiva do capital, mas no elimina a necessidade dotrabalho vivo, bem como o simples deslocamento do trabalho do interiorda fbrica para a clandestinidade no anula o seu carter combinado.

    Que no se tenha dvida quanto impossibilidade de violao da lei dovalor na ordem capitalista, seja qual for o modo como empiricamente seexpressem as suas relaes. Por isso, sem que se desconsidere a aparncia,deve-se tom-la apenas como ponto de partida para desvelar a real funode cada uma das manifestaes assumidas pela organizao do trabalho nacontemporaneidade. No se deve esquecer que a premissa de o produtoconter o mximo possvel de trabalho no pago s pode ser alterada paramais. Nesses termos, realizar no mercado um produto que incorpore umquantum de trabalho maior que o socialmente necessrio, como ocorre na

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    24 Fenmeno que chamou a ateno do mundo, na dcada de 1970, a partir do qual se difunde aforma de produo que ficou conhecida como especializao flexvel. As experincias industriaisdescentralizadas e informais, que passaram a ser chamadas de Terceira Itlia, contriburam para osurgimento de distritos industriais, para os quais se voltaram as atenes de pesquisadores nomundo inteiro. Beccatini descreve o distrito industrial como sendo um grande complexo produtivoonde a coordenao das diferentes fases e o controle da regularidade de seu funcionamento no sosujeitos a regras pr-estabelecidas e a mecanismos hierrquicos (como o caso de uma grandeempresa privada ou dos agrupamentos soviticos) mas ao contrrio so submetidos ao jogoautomtico do mercado e a um sistema de sanes sociais infligidas pela comunidade. A contigidadepermite ao sisema territorial das empresas, isto , ao distrito industrial, basear seus clculospraticamente nas economias de escala ligadas ao conjunto do processo produtivo, sem perdertodavia sua flexibilidade e sua adaptabilidade aos diversos acasos do mercado, graas segmentaodesse processo. G. Beccatini. Les distrites industriels en Italie. In: M. Maruani et all. La flexibilit enItalie: dbats sur lemploi. Paris: Syros/Alternatives, 1998, p. 263-264.

    chamada economia informal, implica um alto grau de explorao do trabalho,o que destri o argumento da independncia e da autonomia que se atribuia esta. Se existe uma mo invisvel que rege a produo capitalista, esta ,sem dvida, a lei do valor. A sobrevivncia da produo numa escala socialque no tenha perdido a relao com o indivduo e com a sua famlia ficasujeita a atuar em reas que no tenham substitutivos no ncleo formal, oque muito raro, ou a submeter-se gesto do grande capital. A exemplo, o que ocorre hoje, em certos ramos do comrcio, onde pequenos capitalistasse associam para serem abastecidos por uma central de compras que, podendoadquirir produtos a um preo melhor, lhes empresta o nome, pelo qual cobrauma significativa porcentagem.

    Ora, se o capital atua to astutamente nos ramos de que depende parasua realizao, no pode ser menos eficaz na esfera produtiva, onde nasce.Fenmenos como a Terceira Itlia24, e outros exemplos menos famosos deorganizao autnoma do trabalho, que a economia liberal tenta nos imputarcomo uma experincia de trabalho espontneo, livre das determinaescapitalistas constituem apenas mais uma estratgia de legitimao medianteformas que parecem propiciar o reencontro do trabalho manual com ointelectual. Entretanto, sendo a produo especificamente capitalista aforma social dominante, no h como escapar da sua determinaofundante. Com isso no estamos afirmando que todo trabalho produtivopara o capital, mesmo porque a coexistncia entre trabalho produtivo eimprodutivo forma um todo estruturado dialeticamente, cujo movimento

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    determinado pelo processo global de desenvolvimento da acumulaocapitalista.25 Tambm no pretendemos anular a existncia de certasocupaes de estrita sobrevivncia, que no interessam ao capital nem emtermos produtivos nem improdutivos. O que se quer tornar claro que,sejam quais forem os mecanismos utilizados para obscurecer os contornosda relao capital, apenas o tempo de trabalho socialmente necessrioconta como formando valor.26 Esta lei capitalista igualmente vlida paraas mercadorias em geral, no importando se foram produzidas pelo trabalhoformal ou informal.

    25 Francisco Jos S. Teixeira. Anlise crtica do mercado de trabalho de Fortaleza luz das categorias detrabalho produtivo e improdutivo. Fortaleza: Sine/CE, 1988, p. 32.

    26 Karl Marx. O capital. Op. cit., p. 157.

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