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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
VIVER, NASCER E MORRER NO COMPLEXO DO ALEMÃO: ENTRE VIOLÊNCIAS E
CUIDADOS
Natália Helou Fazzioni1
Resumo: A partir de uma etnografia em uma unidade de saúde no Complexo do Alemão (Rio de
Janeiro) o trabalho pretende refletir sobre como a violência decorrente do conflito armado no local
engendra outras violências e como estas afetam as relações de cuidado. A pesquisa considera o
histórico dos serviços de saúde existentes nessa localidade e o cenário recente de ampliação dos
serviços oferecidos no Complexo do Alemão a partir de 2009, com a instalação de quatro novas
Clínicas da Família, uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e um CAPS (Centro de Atenção
Psicossocial). Por um lado, encontramos uma relativamente nova relação de cuidado que se
estabelece a partir das práticas de saúde provenientes destes serviços, por outro, encontram-se as
dinâmicas locais de cuidado entre os próprios moradores e na relação com o serviço de saúde. Ao
analisar estas realidades, surge o dado evidente de que as mulheres são aquelas mais envolvidas
nestes cuidados, tanto por parte dos serviços de saúde, como nos arranjos domésticos. Na unidade
de saúde os corredores lotados evidenciam a presença de uma maioria de mulheres aguardando o
atendimento ou acompanhando filhos, pais, vizinhos e maridos. Entre os profissionais, as mulheres
são também a maioria. O trabalho, portanto, pretende discutir as especificidades do cuidado neste
contexto e, mais profundamente, o lugar das mulheres como cuidadoras nestas situações, seja como
profissionais ou nas relações de parentesco e solidariedade.
Palavras-chave: Cuidado. Saúde pública. Mulheres. Violência.
Introdução
O artigo aqui apresentado busca refletir sobre experiências de cuidado no Complexo do
Alemão, um dos maiores conjuntos de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Em um primeiro
momento, trato justamente deste cotidiano de maneira mais generalizante e de algumas situações
que caracterizam parte da dinâmica comum aos que vivem ali. A violência aparece inicialmente
como o principal demarcador dos discursos público-políticos sobre o Complexo do Alemão, mas
também como parte da vida cotidiana de seus moradores. A tentativa de costurar analiticamente
estas esferas – pública e cotidiana – procura não apenas demonstrar suas distinções, como também
suas “tensões constitutivas” (Feltran, 2010). E assim, a violência, termo de “infinitos
desdobramentos” (Fonseca, 2010), aparece aqui em forma de violência física, que fere e mata, como
poder, que se impõe no controle de vidas e corpos (Foucault, 2004) e sobretudo, como uma
“violência estrutural” (Farmer, 1997) presente no dia-a-dia desta população pela falta de recursos e
políticas públicas em todos os níveis. Todas estas formas fazem parte do contexto aqui descrito, sem
deixar de lado as estratégias e resistências frente a essas violências. Deve-se ressaltar, entretanto,
1 Doutoranda em Antroplogia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil.
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que na pesquisa de doutorado que dá origem a este trabalho, procuro justamente relativizar o lugar
da violência como única “lente” possível para olhar e analisar o Complexo do Alemão – embora,
como procuro evidenciar aqui, ela seja crucial.
Assim, ao acompanhar o dia-a-dia de profissionais que atuam em uma unidade de atenção
primária à saúde em uma parte das favelas que compõem o Complexo, seleciono o cuidado com
dois momentos extremos do curso da vida para análise: o nascimento e a morte. A seleção não é
aleatória, tratam-se de grupos prioritários dentro da atenção básica à saúde, configurando diferentes
“linhas de cuidado”2 (Franco, Magalhães Jr., 2004) no sistema. O cuidado é aqui entendido de
maneira ampliada, como propõe Octavio Bonet (2014, 337), não se referindo: “meramente a uma
dimensão biológica ou terapêutica no sentido biomédico, associada à saúde”, mas considerando
ações dos usuários compreendidas também como cuidado. Embora oficialmente representem
públicos igualmente importantes – do ponto de vista dos protocolos de saúde e dos discursos dos
profissionais de saúde –, do ponto de vista da comunidade, das famílias e das práticas profissionais
são totalmente diferentes. E é justamente no encontro entra essas diferentes lógicas e regimes de
cuidado etnografados que as questões de gênero aparecem. Além de mulheres e crianças
representarem a esmagadora maioria do público usuário do serviço, tais questões tornam-se latentes
na observação das relações intrafamiliares dos pacientes, na relação entre pacientes e profissionais,
na dinâmica entre os profissionais, bem como na própria presença da antropóloga no campo.
Viver
O Complexo do Alemão é composto por treze comunidades1 e sua população, de acordo com
o Censo de 2010, é de 60.583 habitantes, embora alguns moradores afirmem tratar-se de cerca de
200 mil2. Além de um conjunto de favelas, o Complexo do Alemão é também oficialmente um
bairro da cidade do Rio de Janeiro, considerado aquele que possui o pior Índice de
Desenvolvimento Humano em todo o município3. Em 2012, como parte da política de pacificação
de favelas do governo estadual, foram instaladas no Complexo do Alemão quatro Unidades de
Polícia Pacificadora (UPP). O conflito armado, decorrente da presença do tráfico de drogas neste
local, tornou-se algo cotidiano para os habitantes deste conjunto de favelas desde os anos 1990. E
2 Segundo estes autores ao definirem e defenderem a proposta das “linhas de cuidado” no SUS: Trabalhamos com a
imagem de uma linha de produção do cuidado, que parte da rede básica, ou qualquer outro lugar de entrada no sistema,
para os diversos níveis assistenciais. Esta discussão dá sentido para a idéia de que, a linha do cuidado é fruto de um
grande pacto que deve ser realizado entre todos atores que controlam serviços e recursos assistenciais” (2004: 6). 3 Informação disponível em: http://www.wikirio.com.br/IDH_dos_bairros_da_cidade_do_Rio_de_Janeiro (acessado em
14/07/2014).
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tal realidade apresenta agora novas tensões em decorrência da presença da polícia pacificadora no
local. Para ilustrar a complexidade desta situação, cabe apenas dizer que no último ano, entre 2016
e 2017, denunciaram-se inúmeras situações de violações de direitos humanos por parte da Polícia
Militar (UPP e Bope) no local, e só no ano de 2017, uma média de uma pessoa por semana foi
baleada.
As formas de lidar com esse cotidiano violento entre os moradores do Alemão, são muitas e
variáveis. No grupo de hipertensos e diabéticos promovido por uma das equipes de saúde na
unidade onde realizei a pesquisa, a temática aparece com frequência: os picos de pressão são
comuns entre alguns hipertensos durante os momentos de tiroteio, assim como sintomas de
taquicardia e dificuldade de respiração. No entanto, o medo e a ansiedade não são as únicas formas
aparentes de lidar com esta violência, ela está entranhada no cotidiano dos que vivem e trabalham
ali de muitas maneiras. Cláudio trabalha como médico na unidade de saúde há doze anos, é de longe
o médico mais antigo ali. É também o único médico que nunca deixa de realizar Visitas
Domiciliares, independente da situação de violência no Alemão, exceto quando o conflito está
ocorrendo exatamente em sua área de visita. Para monitorar esta situação, o principal termômetro de
violência são os grupos de Whatsapp4 de cada uma das equipes, onde normalmente são repassadas
as notícias que circulam no grupo dos Agentes Comunitários de Saúde, que além de profissionais da
unidade, são também moradores5.
Cláudio, provavelmente por estar tanto tempo trabalhando ali, lida com a violência de forma
mais próxima aos Agentes Comunitários e moradores, do que aos médicos e enfermeiros das outras
equipes. Além de não hesitar em andar pelo morro sempre que é necessário, recorrentemente faz
piadas com o assunto, outro hábito típico dos moradores. A primeira vez em que o acompanhei em
uma Visita Domiciliar, Cláudio me perguntou se eu havia levado meu colete à prova de balas. Na
hora, a piada me pareceu descabida e sem graça, mas logo entendi que a brincadeira também era
comum entre os Agentes, especialmente quando sabiam que alguém de fora iria subir o “morro”6.
Como atenta Claudia Fonseca (2010: 80) ao analisar contexto similar: “o humor licencioso poderia
ser analisado, por exemplo, à la Radcliffe-Brown, como instrumento usado para amenizar tensões
latentes na estrutura social”. Em uma discussão no grupo de hipertensos, por exemplo, uma senhora
4 Aplicativo de bate-papo para celulares. 5 Oficialmente, no entanto, a unidade segue um protocolo – estabelecido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha
em parceria com a Secretária Municipal de Saúde – com relação à situação de violência chamado “Acesso Mais
Seguro”. 6 A palavra “morro” é a forma mais comum de se referir ao local onde vivem, pelos usuários da unidade de saúde onde
a pesquisa foi realizada, por isso também a utilizo aqui.
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reclamava da dificuldade de sua mãe em conseguir encaminhamento para a fisioterapia, quando
começou a contar que um dia a mãe que pendurava roupa na laje e tinha muita dificuldade em andar,
escutou os tiros passando bem próximos a sua casa e chegou no andar de baixo rapidamente e
completou dizendo ao médico: “Está vendo Doutor? Aqui no morro nem precisa de fisioterapia, o
tiro cura!”.
Nascer
A temática da violência é também motivo para diversas ausências, tanto por parte dos
usuários, como dos profissionais. É comum ouvir pacientes dizendo que não puderam participar de
determinada atividade ou faltaram à consulta, porque “deu tiro”. E do mesmo modo, profissionais
justificam que não foram até “a área” ou “o território”7 realizar visitas aos pacientes, porque “estava
dando tiro”, “teve operação” ou a “Bope estava no morro”.
Durante uma visita domiciliar com alguns Agentes e uma enfermeira, passamos para visitar
uma mãe recém-parida, que ainda não havia comparecido ao posto para o “acolhimento mãe-bebê”.
Sua Agente estava bastante preocupada pois ela precisava registrar a ida dessa mãe ao posto para
cumprir suas atividades mensais. Quando chegamos à casa, Deise, mãe de quatro filhos, nos
recebeu na porta. Ao ser indagada pela Agente sobre o não comparecimento ao posto ela disse que
não tinha descido pois “estava dando muito tiro”. Mas não disse em tom de preocupação, Deise é
dessas mulheres que carrega no olhar a autoridade de ser mãe de quatro filhos, junto a um sorriso ao
mesmo tempo leve e debochado. As Agentes me disseram, “Natália, pergunte a Deise como ela foi
ter o bebê!”, ela riu e respondeu: “pedi aos polícia pra me levarem pro Getúlio Vargas”. “Para a
Polícia?”, perguntei espantada. “Sim” ela disse, e todos riram. O Hospital Getúlio Vargas não é a
maternidade de referência das mulheres do Alemão, mas a população criou certo hábito de buscar
atendimento no Hospital diante de qualquer situação emergencial já que por anos era um dos locais
mais próximos para atendimento. O mais espantoso, no entanto, foi Deise ter pedido ajuda à Polícia
para a chegada de uma nova vida, diante do paradoxo das tantas vidas tiradas neste lugar por esta
mesma Polícia.
Deise então entrou em casa e trouxe para a porta a filha recém-nascida de apenas quinze dias.
Todas nós entoamos um sonoro “ohhhhhh” diante da fofura da bebê. A enfermeira, uma jovem de
vinte e cinco anos, que atua no posto há um ano, perguntou como andava a amamentação. Deise
respondeu “tá bem, mas ela mama muito, vou ter que dar um complemento”. Como se estivesse
7 “Área” ou “território” são as formais mais utilizadas pelos profissionais – e também as “oficiais” –
para se referirem ao local de moradia da população atendida.
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repetindo informações de um manual de amamentação do Ministério de Saúde, a enfermeira então
começou a instruir Deise com relação à amamentação e ela apenas acenou a cabeça e olhou para a
criança dizendo que já sabia de tudo o que ela havia falado. E afinal ficou claro que Deise sabia
exatamente o que faria e como faria, independente daquelas informações. Quando indagada ao final,
se iria ou não, levar a filha para a primeira consulta no posto, ela respondeu que sim, iria, mas só
depois de dois dias, pois no dia seguinte, ela iria “correr os doces” com os filhos mais velhos (em
referência ao dia de São Cosme e Damião, quando tradicionalmente as pessoas distribuem doces
para as crianças em suas casas). “Correr doces? Com um recém nascido? Você é uma figura mesmo
Deise” disse uma das Agentes. Nos despedimos e seguimos rumo às outras casas previstas na visita.
Porém, nem todas as histórias tem um desfecho como essa, onde a mulher consegue criar
estratégias de resistência ao controle da equipe sem que isso lhe acarrete algum sofrimento. Ao
acompanhar as consultas realizadas por Diego, um jovem medico recém contratado na unidade,
recebemos a visita de um dos enfermeiros que nos diz que veio da gerência informar que havia uma
paciente grávida aguardando na sala de espera para ser atendida e a gerente disse que o médico
precisava atendê-la. Diego se mostrou claramente incomodado, alegando que já sabia do que se
tratava e que não queria atender a paciente em questão, mas em se tratando de uma ordem da
gerência, ele teria que atender. Algum tempo depois, ele chamou a gestante que entrou no
consultório claramente aborrecida. ”Então, Claudiane... eu já sei o que você quer, você quer mesmo
sair de licença maternidade agora, é isso né?”, ela respondeu que sim. O médico prosseguiu: “você
está ciente de que sair agora significa ficar menos tempo com o bebê? Menos tempo de
amamentação?”. Ela, ainda cabisbaixa, confirmou. Quando levantou a cabeça, fez uma única
pergunta: “Eu estou de quarenta semanas, tenho o direito de sair de licença agora, não tenho?”. Ele
respondeu: “Sim, você tem, mas eu já te falei o que penso, você precisa aguentar mais um pouco,
para ter mais tempo com o bebê depois”. “Mas eu não aguento, já estou faltando ao trabalho,
preciso sair”. Finalmente, ele concordou e bastante irritado começou a preencher no computador os
papéis relativos à licença maternidade. Quando o médico saiu para buscar a impressão em outra sala,
não me contive e comentei com ela: “A barriga já está pesando muito, né? É difícil trabalhar
assim...” e ela me respondeu: “Não é só isso, o problema é que o pai do meu filho morreu, quando
eu estava com três meses de gravidez. A gente ia se casar, estávamos morando juntos, comprando as
coisas do bebê, agora voltei para a casa da minha mãe...”. Pergunto do que ele morreu e ela já
bastante emocionada, segurando o choro me disse: “Leucemia, ele descobriu tarde demais, morreu
muito rápido.... Eu não aguento mais trabalhar, não aguento mais fazer nada”. A tristeza nesse
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momento tomou conta da paciente e, consequentemente, de mim também.
Quando o médico retornou e entregou os papéis, ela se despediu e eu apenas disse que
torceria para que tudo ficasse bem e para que o bebê lhe trouxesse muita alegria. Mas mal ela saiu e
Diego me olhou e disse: “ela não quer mais trabalhar e fica vindo aqui no posto todo dia pegar
atestado, pedindo a licença, é mole?”. Nesse momento, eu não pude agir como observadora passiva
diante da situação e respondi em tom bastante desaforado: “Eu gostaria que todos os homens
engravidassem para saberem o quanto é difícil e cansativo gerar uma outra vida. Além do mais você
sabe por que ela não aguenta mais trabalhar? Porque o pai do filho dela morreu!”. Assustado com
minha reação Diego respondeu: “Bom, disso eu não sabia. Mas de todo modo, como médico, eu
tenho que orientar meus pacientes a fazerem o que é melhor. E nesse caso, o melhor é que ela fique
com o bebê em casa o máximo possível depois que ele nascer, para amamentar”.
A ideia de que os usuários procuram a unidade apenas para “pegar atestado” e “faltar ao
trabalho” é recorrente entre os profissionais, que muitas vezes alegam que esse “hábito” contribui
com o excesso de filas de espera no atendimento da chamada “demanda espontânea” (pacientes que
chegam para serem atendidos no dia, não possuem consulta marcada). O excesso de “demanda
espontânea” no posto possui duas razões, de acordo com a maior parte dos profissionais, em
primeiro lugar a explicação tem relação com a UPA do Complexo do Alemão, na qual supostamente
a população não gosta de ir, pois dificilmente são atendidos e poucos médicos estão disponíveis,
assim, as unidades de atenção básica locais acabam por atender uma demanda que, teoricamente
seria da UPA. Por outro lado, alguns atribuem à gerencia da unidade a prática de acolher todas as
demandas, causando assim um excesso de atendimentos diários que acarretaria em um atendimento
insatisfatório, devido ao pouco tempo disponível para realizar as consultas e outras atividades
fundamentais da unidade como as Visitas Domiciliares, as quais exploro no próximo tópico.
Morrer
O tema das ausências motivadas pela violência, já mencionada acima na situação da equipe
de saúde com Deise, também aparece em outros momentos. Como já dito, as mortes causadas pelo
conflito armado no Alemão têm ocorrido quase semanalmente no último ano. Mas a morte não
chega apenas para aqueles que são vítimas da violência urbana. Todos os dias, homens e mulheres,
principalmente idosos, morrem também no Complexo, sobretudo por doenças cardiovasculares e
respiratórias. Como suas mortes se relacionam com as mortes violentas? A maior parte dos médicos
hesita em realizar as Visitas Domiciliares com a justificativa do risco causado pela violência. Muitas
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vezes, os dias estão tranquilos, sem nenhuma sinalização de violência e conflito e ainda assim, os
profissionais alegam ser muito perigoso estar em determinado local. Qual a noção de “perigo” e
implicadas nessas falas, portanto? A Visita Domiciliar envolve todo um deslocamento de um
ambiente conhecido para o profissional, o posto de saúde, para um desconhecido, a favela. Para
chegar às casas é preciso andar muito, subir ruas íngremes, passar por becos, estreitos, escuros, com
lixo nas ruas. Muitas vezes, depois de passar por tudo isso, chegamos a casas arejadas, onde uma
família sorridente nos recebe com água ou café e nos convidam a sentar em seus confortáveis sofás.
Por outro lado, há inúmeras casas onde o mal cheiro e o escuro predominam, não há sequer um
local para sentar. A casa tem pouca ou nenhuma janela, muitas pessoas vivendo dentro, muitas vezes
junto a animais domésticos e nem mesmo é possível entrar no ambiente pela falta de espaço.
Em geral, os pacientes acamados são idosos ou pessoas portadoras de alguma deficiência
que as impede de se locomover. Muitas vezes ao chegar em casas assim, para visitar pacientes
acamados, a equipe os encontra deixados sob os cuidados de um vizinho que não estava por perto,
de um irmão ou irmã jovens, ou ainda de um neto ou bisneto, pouco conscientes de sua função, ou
até, de outro idoso com problemas graves de saúde; espera-se assim um cuidado de quem não pode
ou não sabe cuidar. Quando o médico questiona ao paciente sobre ter se alimentado no dia, algumas
vezes a resposta vem em tom constrangido: “não”, deixando claro que não comeu, pois não havia o
que comer. São as situações mais difíceis, onde conjuga-se em um mesmo ambiente, fome,
analfabetismo, abandono, sofrimento. Nestes casos, a chegada da equipe de saúde da família serve
pelo menos para amenizar a situação, não apenas pela assistência prestada pela equipe, mas também
porque muitas vezes a notícia da presença da equipe ali faz com que um vizinho ou parente se
mobilize e apareça também para dar uma satisfação, oferecer um prato de comida ao acamado e ao
menos, temporariamente, se comprometer em ajudar o paciente visitado. Apenas uma vez, escutei
uma mulher esquizofrênica em situação de extrema miséria dizer: “Mas vocês já vão? Fiquem mais,
por favor”. No entanto, vejo no olhar de muitos acamados este sentimento, este desejo de que a
equipe permaneça por mais tempo, como se ela amenizasse algum sofrimento. Apesar deste papel
cumprido pelas visitas, parece ser justamente este deslocamento, físico, emocional e moral
implicados nela que, ao meu ver, faz com que muitos profissionais evitem a realização das Visitas
Domiciliares, apoiando-se para isso muitas vezes, no contexto violento como explicação para esta
ausência.
A história da visita que fizemos à Josefina ilustra bem essa situação. Visitei Josefina
enquanto acompanhava Joyce, Agente Comunitária de Saúde e Diego, na segunda visita que ele
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fazia desde o início do seu trabalho como médico na unidade, há aproximadamente dois meses.
Quando chegamos na casa de Josefina, a encontramos deitada em um sofá improvisado como cama
na sala. Ao seu lado em outro sofá, dormiam duas crianças. A casa era composta por quatro
cômodos, sala, quarto, cozinha e banheiro e não soubemos ao certo quantas pessoas viviam ali, pelo
que pude contar ao menos sete. Josefina, sua irmã Dulce, seu marido, sua filha e três netos.
Josefina tinha 65 anos e vivia ali há pelo menos dois anos. Ela havia sido diagnosticada com
Mal de Alzheimer há cinco anos e desde então ela, que ironicamente trabalhava como cuidadora de
idosos, não tinha com quem contar para cuidar de si mesma. Sua história era narrada por Dulce, a
dona da casa e atual responsável por seus cuidados. Casada e sem filhos, o marido de Josefina
faleceu logo após seu diagnóstico, sua irmã contou que suas economias e pertences haviam sido
roubados por outros parentes e ela fora despejada da casa em que vivia em Jacarepaguá. Ela passou
a viver na casa de uma outra irmã, mas depois de várias situações de fuga, com longos períodos
vivendo na rua, ela acabou sendo trazida ao Complexo do Alemão por Dulce, após ser recolhida na
rua e internada no Hospital de Acari. O diagnóstico do médico neste hospital teria sido definitivo,
não havia nada o que fazer, era preciso levá-la para morrer em casa.
Quando chegamos na casa, a situação parecia ser justamente essa. Por alguns minutos, tive a
certeza de estar diante de uma moribunda. O desespero de Diego diante da paciente, confirmava a
minha suspeita. Ele perguntava à Dulce, se Josefina levantava e respondia quando falavam com ela
e a irmã insistia que sim. “Então acorde ela pra mim”, dizia o médico impaciente. A irmã chamava,
mas ela não se movia. Diego começou a checar os sinais vitais: pulso, temperatura, respiração.
Estava tudo dentro do esperado, mas ainda assim Diego seguia preocupado pelo aspecto geral de
Josefina. Segundo ele, ela estava desnutrida, desidratada e com sinais claros de infecção urinária,
além de não apresentar resposta a nenhum tipo de estímulo. Dulce não parava de falar nenhum
segundo, claramente nervosa, repetindo insistentemente sobre sua rotina de cuidados com a irmã e
sobre a história de vida dela.
Se havia alguma vida restante em Josefina naquele momento, ela transparecia apenas em
suas unhas das mãos e dos pés pintadas com esmaltes de cores diferentes e de modo grosseiro, com
vários borrões para fora. “Isso aí é coisa das crianças que ficam brincando com ela”, explicou Dulce.
Enquanto isso, Joyce perguntava por que as crianças não estavam na escola naquele momento. E a
avó se explicava dizendo que suas filhas eram preguiçosas e não levavam os filhos, então ela que
estava “velha” e tinha que cuidar da irmã acamada, além de trabalhar fora, é que não levaria. A
ameaça por parte da Agente era direta e sem rodeios: “Vão perder o Bolsa Família se as crianças
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não forem para a escola”. E mais uma vez, Dulce se explicava. Enquanto Diego e Joyce pensavam
sobre o que fazer com Josefina, eu refletia sobre a falta de atenção por parte dos profissionais com a
saúde de Dulce, também idosa, claramente sobrecarregada de tarefas e responsabilidades. Em
nenhum momento, checaram sua pressão ou lhe perguntaram sobre sua saúde. Mas lhe cobraram
sobre os cuidados com a irmã e com os netos.
O dilema sobre o que fazer com Josefina, no entanto, seguia, pois Diego achava que ela
precisava ser enviada para um hospital o mais rápido possível. No entanto, havia vários empecilhos
para que isso ocorresse. Primeiro, a ambulância não chegaria à casa de Dulce localizada em um
beco estreito, seria preciso carregá-la até a Avenida Central do Alemão, onde a ambulância
conseguiria estacionar, caso aceitasse subir o morro. Caso contrário, Josefina teria que ser carregada
até a Av. Central e em seguida, levada de carro até a entrada do morro. Quando a ambulância
chegasse, Diego teria que estar no local para acompanhá-la ao destino de internação. Entretanto, ele
era um dos poucos médicos trabalhando na unidade naquele momento e perderia o dia todo para
fazer esse processo. Finalmente, havia o receio por parte de Joyce e Diego, de que após todo esse
esforço, ao chegar no hospital, Josefina seria liberada para casa, sem receber nenhum cuidado
específico pela falta de leitos e precarização nas redes de hospitais públicos da cidade.
A decisão afinal, foi pedir para que a família a levasse até o posto de saúde à tarde e que ali,
ela seria mantida no soro até a chegada de uma UTI Móvel, que, ao contrário da ambulância comum,
não requereria que Diego a acompanhasse até o hospital. Ao sair da casa de Dulce, o médico estava
claramente nervoso com tudo o que havia acontecido. Ele reclamava que a Agente e a enfermeira
haviam estado ali há poucos dias e não lhe notificaram de que o estado da paciente era “grave”. Ao
mesmo tempo em que comentava sobre o péssimo estado geral da paciente e da casa como um todo.
A agente se desculpava e dizia “Eu sei, nós erramos, mas que bom que hoje viemos aqui”. E o
médico dizia que não, que o erro justamente teria sido voltar, pois agora aquela paciente era
responsabilidade dele, caso morresse. Ao tentar acalmá-lo, eu disse: “pelo menos agora ela irá para
o hospital e com sorte, vai morrer com um pouco mais de dignidade”. E a resposta que obtive foi:
“Essa mulher já perdeu sua dignidade há muito tempo, ninguém vai devolver isso para ela agora”.
Reflexões finais
Notamos nas situações aqui exploradas que a violência aparece desdobrada em todas as
situações expostas. E apesar da violência ser mais evidente no conflito armado presente no
Complexo do Alemão e nos diálogos ocorridos sobretudo entre médicos e pacientes, é preciso
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ressaltar também a presença da “violência estrutural”, nítida aqui não apenas na situação de pobreza
dos usuários da unidade de saúde, mas também com relação ao Sistema Único de Saúde (SUS) que
emerge não por meio de protocolos oficiais, mas em seu dia-a-dia. E assim, se mostra ao mesmo
tempo fundamental nos serviços que oferece a esta população, mas também sucateado, superlotado
ou com alguns profissionais pouco preparados e muitas vezes ineficientes para aquele contexto
específico. Podemos então perguntar, que sistema público de cuidado em saúde é oferecido a esta
população? Como é interpelado e ao mesmo tempo constituído pelas noções e experiências de
cuidado dos próprios usuários?
Octavio Bonet chama atenção para a importância da noção de integralidade em saúde, um
dos pilares da atenção básica junto à continuidade, demonstrando que a medicina integral é aquela
que procura ver no paciente mais do que um aparelho ou sistema biológico que precisa ser curado;
um sujeito como um todo, incluindo seus aspectos culturais e emocionais, ou seja, uma medicina
centrada na “pessoa” (Bonet, 2014). Porém, em outro momento, Bonet (2004) também demonstra
que muitas vezes estas práticas que buscam produzir a integralidade, tais como a educação em
saúde, são muitas vezes realizadas “de cima para baixo”, assumem um caráter de algum modo
“tutelar”, atualizando uma relação paternalista entre médico e paciente e também entre diferentes
classes sociais, onde “se ensina” como se cuidar e cuidar da própria família de maneira “correta”,
não considerando a autonomia de cada indivíduo e família (Vasconcelos, 2000).
Sendo as mulheres comumente consideradas as responsáveis pelos cuidados familiares,
tornam-se, consequentemente, as maiores vítimas dessas práticas e das violências aqui citadas em
seus diferentes níveis8. O caso da gestante Claudiane é exemplar nesse sentido. Ao não aceitar a
recomendação médica, Claudiane é vista como somente alguém que“não quer mais trabalhar”. Sua
única subjetividade assumida pelo médico é a de trabalhadora. E ele possui a convicção de saber o
que é melhor para ela e o dever de lhe instruir. E como saber também é poder, neste caso, ele possui
o poder específico de conferir a licença maternidade à gestante através de um requerimento.
Supostamente um direito adquirido pelas mulheres a partir de 36 semanas de gestação, mas pelo
qual Claudiane praticamente precisa implorar.
Em outro momento, no entanto, esta relação de responsabilidade pela vida de alguém se
coloca de outra maneira para o médico, quando ele se vê desesperado diante da quase ausência de
vida em Josefina, pela qual ele se sente responsável. Diego, naquele momento, representava o
8 Veena Das também chama atenção para diversas situações em que mulheres e crianças tornam-se os maiores
“receptáculos” de violências ligadas às práticas estatais, situações de guerra, pobreza entre outras (Das, 19997),
(Carvalho, 2008).
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Estado diante daquela mulher e de sua família, negligenciada pelo Estado em tantos aspectos e
momentos. A posição de conforto e autoridade assumida diante da gestante, nessa segunda situação
se perde, pois o médico também é fragilizado aqui diante de um sistema de saúde precarizado, de
um Estado negligente com políticas sociais ineficientes e também pelo próprio cotidiano de uma
favela.
Finalmente, o caso de Deise é aquele que demonstra de forma mais clara uma força criativa
diante de todas essas formas de controle e poder que se impõem na vida dos moradores do Alemão.
Sua recusa em ir até a unidade naquele momento demonstra uma autonomia diante do sistema não
esperada pelos profissionais, que precisam seguir os protocolos e informar ao sistema que
realizaram o acolhimento mãe-bebê. Deise não necessariamente se sente oprimida ou incomodada
por esta insistência, ela apenas não necessita dessa forma de cuidado oferecida pelos profissionais
de saúde, pois tem coisas mais importantes para fazer, como “correr doces”. Entretanto, é curioso
notar que na situação observada, o único cuidado que necessitou do Estado foi justamente ser
levada ao hospital quando entrou em trabalho de parto, e este cuidado lhe foi oferecido justamente
pela Polícia, responsável na favela pelo fim de tantas vidas.
Vemos, afinal, que estes pacientes e seus familiares são atendidos e orientados com relação a
como proceder em diferentes aspectos de suas vidas. Do mesmo modo em que impõem certa lógica
de “cuidado” a estas famílias e que ao fazerem isso, exercem certa violência, os profissionais
também se deparam com um contexto específico de trabalho que implica dificuldades e
questionamentos em suas convicções pessoais e prática profissional. Temos aqui uma estrutura e um
ambiente violento que é comum a todos, ainda que os afete de diferentes maneiras. Mas fica nítido
que só através destas tensões podemos compreender as experiências de cuidado e saúde no
Complexo do Alemão.
Referências
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To live, to be born and to die in Complexo do Alemão: between violence and care
Astract: Through an ethnography in a healthcare centre in the Complexo do Alemão (Rio de
Janeiro) the paper intends to focus on how the violence resulting from the armed conflict in the
place engenders other violence and how these affect the relations of care in these place. The
investigation considers the history of the health services in this locality and the recent scenario of
expansion of the services offered in the Complexo do Alemão from 2009, with the installation of
four new Family Clinics, a UPA (Emergency Care Unit) and one CAPS (Center for Psychosocial
Care). On the one hand, we find a relatively new relationship of care that is established from the
health practices coming from these services, on the other, are the local dynamics of care among the
residents themselves and in the relationship with the healthcare service. In analyzing these realities,
there is the evident fact that women are the ones most involved in these care, both by the healthcare
services and in the domestic arrangements. At the healthcare center crowded corridors is impossible
not to notice the presence of a majority of women awaiting care or following children, parents,
neighbors and husbands. Among the professionals, women are also the majority. The work,
therefore, intends to discuss the specificities of care in this context and, more deeply, the place of
women as caregivers in these situations, whether as professionals or in kinship and solidarity
relations.
Keywords: Care. Public health. Women. Violence.