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1 ISSN 1413-6651 São Paulo - 2010 XXII

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ISSN 1413-6651São Paulo - 2010

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Editora Responsável InstitucionalMarilena de Souza Chaui

Editora ResponsávelTessa Moura Lacerda

Comissão EditorialCeli Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva.

Conselho EditorialAtilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAu-rélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon).

PareceristasPareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Luciana Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo.

Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII

Universidade de São PauloReitora: Suely Vilela

Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo

FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDiretora: Sandra Nitrini

Vice-Diretor: Modesto Florenzano

Departamento de FilosofiaChefe: Roberto Bolzani Filho

Vice-Chefe: Márcio SuzukiCoord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio

de Ávila Zingano e Carlos Alberto Ribeiro de MouraEndereço para correspondência:Profa. Marilena de Souza ChauiA/C Grupo de Estudos EspinosanosDepartamento de Filosofia – USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 – São Paulo-SP – BrasilTelefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431e-mail: [email protected]: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos

Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// [email protected] /// Tiragem: 1000 exemplares

A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.

N. XXII, JAN-JUN DE 2010 – ISSN 1413-6651

Ficha Catalográfica

Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVIISão Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2010.Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651

Imagem da Capa:Sueño de la RazonFrancisco de Goya1796-97

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APRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição.

O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

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SOBRE ESTE NÚMERO

Neste número, uma reflexão sobre a noção de sujeito no artigo da professora Marilena Chaui e no ensaio de Sartre “A transcendência do ego”, traduzido por Alexandre Carrasco.

Há ainda dois artigos que mostram o diálogo da filosofia contemporânea com a filosofia moderna através de Merleau-Ponty e Deleuze; além de artigos sobre Espinosa, Descartes e Leibniz. Por último, uma resenha de Marcos de Paula sobre o livro de Sévérac, Le devenir actif chez Spinoza, de 2005.

Boa leitura!Os Editores

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SUMÁRIO

A posição do Agente dA liberdAde nA ÉticA V Marilena chaui...........................................................................11

existênciA e predicAção de existênciA nA críticA de gAssendi à proVA ontológicA cArtesiAnA dA QuintA MeditAção elane Maria Farias de carvalho..................................................27

dA FísicA do intensiVo A uMA estÉticA do intensiVo: deleuze e A essênciA singulAr eM espinosA CíntiaVieiradaSilva...................................................................37

o signiFicAdo de sui iuris nA FilosoFiA de spinozAAndré dos santos campos.........................................................55

Merleau-PontydialogaCoMoraCionaliSMoeaPinturaeM “o olho e o espírito”

Valéria loturco...........................................................................85

potênciA dA rAzão e liberdAde huMAnA: uMA Análise do preFácio, AxioMAs e dAs QuAtro priMeirAs proposições dA pArte V dA ÉticA Adriana belmonte Moreira.......................................................141

substânciA indiViduAl e relAção entre AlMA e corpo eM leibniz SachaZilberKontic...................................................................161

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BreVeaPreSentaçãode“atranSCendênCiadoego–eSBoçodeuMadeSCriçãofenoMenológiCa”,deJean-PaulSartre alexandredeoliveiratorresCarrasco......................................173

tradução:atranSCendênCiadoego–eSBoçodeuMadeSCriçãoFenoMenológicA Jean-paul sartre...........................................................................183

reSenha:CoMotornar-SeliVreefeliZ Marcos Ferreira de paula..........................................................229

instruções pArA os Autores...........................................................237

contents...................................................................................................239

A POSIÇÃO dO AgENTE dA lIBERdAdE NA ÉTIcA V

Marilena chaui*

Resumo: O primeiro axioma da parte V da Ética de Espinosa suscita a interpretação do sujeito como espectador neutro (Macherey) ou sujeito vazio (Bove). A análise do termo “sujeito” mostra que Descartes empregava a palavra como substância, diferente da subjetividade kantiana; mas como explicar seu uso por Espinosa? A comparação desse axioma com o uso da “contrariedade” nas partes III e IV da Ética mostram em que sentido Espinosa emprega “sujeito”.Palavras-chave: sujeito, agente, substância, contrariedade, liberdade.

Este texto foi suscitado pela leitura das interpretações dadas ao primeiro axioma da Ética V por Pierre Macherey e Laurent Bove.

O primeiro axioma da Parte V da Ética enuncia:

“Se, em um mesmo sujeito (in eodem subjecto), são excitadas duas ações contrárias, deverá necessariamente dar-se uma mudança (mutatio) ou em ambas ou em uma só, até que deixem de ser contrárias.”

Macherey descreve este axioma como definição de uma “lógica da mudança”, que repousa sobre a resolução de contradições e sobre a oscilação da existência humana entre estados de equilíbrio e de instabilidade determinados por relações de forças, das quais o sujeito é apenas o ponto de aplicação sem densidade substancial e sem que ele intervenha no processo de mudança. Donde, conclui Macherey, o sujeito

“parece assistir [essas mudanças] como um espectador neutro e imparcial. O que, então, define sua identidade de sujeito? O fato de que, no quadro que ele oferece para o encontro

* Universidade de São Paulo.

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dessas intervenções independentes, deve necessariamente manifestar-se uma tendência à homogeneização ou à regulação que, no final, instala seja um estado de equilíbrio entre as diferentes ações seja a prevalência de uma orinetação ligada a uma única ação.” (Macherey 3, p.46)

Por seu turno, escreve Bove:

“Em sua formulação neutra: “deverá necessariamente dar-se uma mudança”. O axioma deixa aberta a interpretação sobre a natureza da determinação causal da mudança, a qual deverá necessariamente acontecer pois dessa mudança depende a continuação da existência do mesmo ‘sujeito’. É como se, no início dessa Parte V (...), o primeiro axioma deixasse um branco, um vazio ao mesmo tempo como lugar de interrogação e de espera, mas também como indicação en creux de uma tarefa a cumprir, de um problema a resolver.” (Bove 1)

Para Macherey, o sujeito do axioma 1, evidentemente não substancial, é um “espectador neutro e imparcial” de uma mudança que deverá ocorrer nele. Para Bove, o sujeito é “um branco, um vazio”, um “lugar de espera”.

Do ponto de vista do que foi efetuado nas partes anteriores da Ética, este axioma apresenta dois problemas: em primeiro lugar, a introdução do termo “sujeito”; e, em segundo, a presença da contrariedade num mesmo sujeito.

1.Examinemos, brevemente, o emprego do termo sujeito.Sabemos que, na tradição filosófica de língua latina, subjectum é

derivado de substare, verbo do qual se deriva substantia. Desde Sêneca e Cícero, primeiro, e de Boécio, depois, substantia foi empregada para traduzir o termo aristotélico ousía, para o qual também o latim filosófico

criou um neologismo, qual seja, essentia. Ora, em latim, substare, substantia e subjectum são vocábulos da linguagem jurídica que se referem às coisas físicas ou aos corpos (é por isso que Hobbes, bom filólogo, dirá que toda substância é corporal e que é um contra-senso a idéia de substância espiritual). E se referem às coisas ou aos corpos enquanto suportes de qualidades e propriedades. Por esse motivo, no latim filosófico, subjectum foi considerado o correspondente latino do grego hupokeimenon. Ora, como nas Categorias Aristóteles distingue entre a ousía e as demais categorias e afirma que estas são predicadas àquela e a ousía não é predicada a nada, no latim, desde Boécio, isso foi traduzido como a diferença entre a substância e os acidentes, de sorte que estes são predicados a ela e ela não é predicada a nada.

Como subjectum/hupokeimenon, a substância é o suporte dos acidentes e, com a Escolástica, ela se torna o sujeito de inerência dos predicados. Por outro lado, como a ousía não é somente a substantia, mas também a essentia, esta não apenas é sujeito de inerência de predicados, mas também, e muito naturalmente, se distinguirá entre essentia formalis ou subjectum, a coisa em sua realidade externa, e essentia objectiva ou conceptus, a coisa em idéia ou o objeto como aquilo que é interno à faculdade de conhecer. Sujeito é, pois, a forma ou essência como realidade em si; objeto, a forma ou essência em nós e para nós ou como realidade pensada. Donde a distinção cartesiana entre a realidade formal e a realidade objetiva da idéia.

Como sabemos, Descartes procurará minimizar a concepção aristotélico-escolástica ao definir a substância pelo atributo principal, o qual, sendo coextensivo a ela, não é propriamente um predicado, mas sua própria essência formal, porém, ele conserva idéia de que uma substância possui predicados e entre estes encontram-se os modos da substância. Quem acompanha o percurso de Espinosa, tanto no Breve Tratado, nos

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Pensamentos Metafísicos e sobretudo na Parte I da Ética, logo compreende que ele se afasta radicalmente da tradição e mesmo de Descartes. A substância não é sujeito de inerência de predicados, nenhum atributo lhe é coextensivo e os modos não são seus predicados e sim suas afecções ou seus efeitos. Apesar dessa diferença de envergadura, um aspecto é comum a Descartes e a Espinosa: nunca empregam o termo subjectum para referir-se à substância. Descartes emprega res. Espinosa empregou res no Breve Tratado e emprega ens na Ética.

No entanto, é interessante observar que o termo sujeito, que tende a desaparecer nas Meditações, reaparece, por exemplo, no artigo 1 do Tratado das Paixões, no qual Descartes define ação e paixão como sendo o mesmo, o título do artigo enunciando que “o que é uma paixão em relação a um sujeito é sempre ação em qualquer outro respeito”. No final desse primeiro artigo, Descartes escreve:

“considero que tudo quanto se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos filósofos uma paixão em relação ao sujeito a quem acontece e uma ação com respeito àquele que faz com que aconteça; de sorte que, embora o agente e o paciente sejam amiúde muito diferentes, a ação e a paixão não deixam de ser sempre a mesma coisa com dois nomes, devido aos dois sujeitos diversos aos quais podemos relacioná-los.” (Descartes 2, art.1, p.327)

É perfeitamente compreensível que Descartes assim pense, uma vez que estamos perante duas substâncias distintas – corpo e alma – e, portanto, exatamente perante dois sujeitos, um dos quais origina a ação e o outro a recebe. Podemos, assim, observar que o termo sujeito, apesar do cogito e apesar de Heidegger e Husserl, não significa a subjetividade, pois será preciso aguardar a revolução copernicana de Kant para que o caráter substancial do sujeito desapareça e sobretudo para o que se dê a

famosa inversão pela qual o sujeito, ou a exterioridade, se torna o suporte interior e o objeto, ou a interioridade pensada, se torna exterioridade ou fenômeno. O Eu penso, eu sou de Descartes é subjectum e por isso mesmo, dirá Kant na Crítica da Razão Pura, ele não pode ser sujeito, isto é, pura atividade de síntese.

Se é compreensível o emprego de “sujeito” por Descartes, seu emprego não parece condizente com o pensamento de Espinosa. Não só porque este recusa que corpo e mente sejam substâncias, mas também porque recusa a identidade tradicional e cartesiana da ação e da paixão como operação reversível entre dois sujeitos. Em primeiro lugar, porque corpo e mente são passivos juntos e são ativos juntos. Em segundo, porque paixão e ação não se distinguem extrinsecamente pelos termos ad quem e ad quo, mas se diferenciam intrinsecamente por sua causalidade própria, isto é, como causa inadequada e causa adequada.

Em suma, tanto pela Parte I como pelas Partes II e III da Ética, não há como explicar a aparição do termo sujeito no axioma 1 da Parte V, e se torna compreensível que Macherey fale num “espectador neutro e imparcial” e Bove, num “lugar vazio”.

2. Examinemos também brevemente o problema posto pelo

aparecimento dos contrários num mesmo sujeito.Ora, sabemos que o termo sujeito, antes de surgir no axioma 1, apareceu

na Ética III e exatamente num enunciado que parece negar o do axioma 1. Trata-se da proposição 5, cujo sentido requer o das proposições 4 e 6.

A proposição III P4 enuncia:

“Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa externa.Demonstração: Esta proposição é patente por si; com efeito, a definição de uma coisa qualquer afirma, e não nega,

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a essência da própria coisa; ou seja, põe, e não tira, a essência da coisa. E assim, enquanto prestamos atenção à própria coisa, e não a causas externas, nada nela poderemos encontrar que possa destruí-la.”

Essa proposição afirma a positividade e indestrutibilidade intrínsecas de uma essência, de sorte que em si mesma e por si mesma permanece indefinidamente na existência e nenhuma destruição pode vir de seu interior, mas apenas da ação de causas externas.

Donde a proposição III P5:

“Coisas são naturezas contrárias, isto é, não podem estar no mesmo sujeito, enquanto uma pode destruir a outra.Demonstração: Com efeito, se pudessem convir entre si, ou estar simultaneamente no mesmo sujeito, logo poderia dar-se no mesmo sujeito algo que poderia destruí-lo, o que (pela prop. preced.) é absurdo.”

Podemos, desde já, observar que o termo sujeito é empregado por Espinosa com justeza filológica e filosófica: ele aparece justamente porque aqui Espinosa se refere àquilo que é próprio do conceito de sujeito, isto é, a inerência de predicados ou de qualidades. Assim, não pode haver simultaneamente num mesmo sujeito inerência dos contrários – “coisas de natureza contrária” – porque tais coisas se destroem reciprocamente se estiverem juntas num mesmo substrato, ou seja, o sujeito se torna contraditório e, como tal, se auto-destrói. Espinosa está empregando com perfeita exatidão e correção o princípio de não contradição tal como formulado por Aristóteles.

A conclusão dessa duas proposições é obtida com III P6:

“Cada coisa, o quanto está em suas forças, esforça-se para perseverar em seu ser.

Demonstração: As coisas singulares são modos pelos quais os atributos de Deus se exprimem de maneira certa e determinada (pelo corol. da prop. 25 da parte I), isto é (pela prop. 34 da parte I), coisas que exprimem de maneira certa e determinada a potência de Deus, pela qual Deus é e age; e nenhuma coisa tem algo em si pelo qual possa ser destruída, ou seja, que lhe tire a existência (pela prop. 4 desta parte); ao contrário, opõe-se (pela prop. preced.) a tudo que pode tirar-lhe a existência, e por isso, o quanto pode e está em suas forças, esforça-se para perseverar em seu ser.”

À luz dessas proposições, podemos compreender porque o termo sujeito aparece no axioma 1 de E V, ou seja, ele aí aparece como suporte de predicados contrários. No entanto, exatamente por isso, o enunciado do axioma parece negar as proposições da Parte III, uma vez que nele se afirma a presença dos contrários num mesmo sujeito e a exigência de que haja uma mutação (mutatio) em ambos ou num deles. Em outras palavras, os contrários estão no mesmo sujeito, mas em lugar da auto-destruição, afirma-se a necessidade de uma mudança num deles ou em ambos.

Ora, é preciso observar a diferença entre o que dito em EIII P 5 e em EV axioma 1. De fato, a proposição 5 fala em “coisas de natureza contrária”, mas axioma fala em “duas ações contrárias”. Ora tanto na Parte III como na Parte IV, as ações contrárias se referem aos afetos e, na Parte IV, referem-se especificamente às forças dos afetos.

Na definição 5 da Parte IV lemos:

“Por afetos contrários entenderei, no que se seguirá, aqueles que arrastam o homem para direções diversas, ainda que sejam do mesmo gênero, como a gula e a avareza, que são espécies de amor, e que são contrários não por natureza, mas por acidente.”

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Na Parte III, Espinosa define o afeto como uma afecção do corpo e a idéia dessa afecção na mente quando a afecção aumenta ou diminui, favorece ou prejudica a potência do conatus. Nem toda afecção corporal é um afeto, nem toda idéia de afecção é um afeto. Pela Parte I da Ética, sabemos que os modos são afecções dos atributos de Deus, por isso mesmo, na Parte III, ao oferecer a explicação do desejo, Espinosa afirma que uma afecção é “toda disposição de uma essência, quer inata quer adquirida, quer se conceba pelo só atributo do pensamento quer pelo só atributo da extensão, quer enfim se refira simultaneamente a ambos”. Todo modo finito é uma afecção e, visto que tudo o que é, está determinado por sua natureza a produzir efeitos necessários, todo modo produz afecções e recebe afecções. Dentre as afecções do corpo e as de mente, algumas são afetos, pois é afeto apenas a afecção do corpo e a afecção da mente que aumentam ou diminuem a potência do corpo e da mente. O afeto se refere, portanto, à intensidade da potência de um ser humano singular. Visto que o conatus é a essência atual desse ser singular, o afeto se refere às condições aumento ou diminuição de realidade de uma essência singular como aumento ou diminuição da intensidade da potência que ela é. A paixão, enquanto paixão do ânimo, é definida como uma idéia confusa que arrasta um homem em direções contrárias. Visto que o desejo é a própria essência do homem quando determinada a fazer alguma coisa por uma afecção que nela se encontra, quando o desejo é paixão do ânimo é variável num mesmo homem, dependendo das condições de seu corpo ao ser afetado por outros, assim como das disposições dos corpos exteriores que o afetam e que ele afeta, e dependendo também das condições de sua mente. A variação e a pluralidade de desejos, explica Espinosa, não raro os faz opostos uns aos outros, e um homem, “arrastado de variadas maneiras”, já “não sabe para onde voltar-se”.

É essa idéia que reaparece na definição 5 da Parte IV, acrescida do complemento “por acidente”. Ora, essa acidentalidade foi longamente examinada na Parte III, quando Espinosa deduz a gênese imaginativa dos afetos, isto é, a variação dos afetos tanto em decorrência do estado de nosso corpo e dos corpos exteriores que o afetam, como em decorrência da variação das partes afetadas e afetantes, pois um mesmo corpo exterior pode afetar o nosso de variadas maneiras dependendo das partes de nosso corpo afetadas por ele e vários corpos exteriores podem afetar o nosso da mesma maneira, também dependendo das partes por eles afetadas. Em outras palavras, é necessário que, afetado de uma determinada maneira por um ou vários corpos exteriores, nosso corpo experimente um determinado afeto e que nossa mente experimente o mesmo afeto. Todavia, é por acidente que, na ordem comum da Natureza (onde transcorre a experiência dos encontros fortuitos entre os corpos), um ou vários corpos afetam esta ou aquela parte de nosso corpo, de sorte que um mesmo corpo exterior pode afetar-nos de maneiras variadas e diferentes corpos exteriores afetar-nos da mesma maneira conforme as circunstâncias. Além disso, a acidentalidade do afeto assim produzido decorre do fato de que ele é uma imagem corporal (imagem de nosso corpo e imagens dos corpos exteriores) e sua idéia na mente é uma idéia imaginativa. Isto significa que os afetos, enquanto imagens e idéias imaginativas, se organizam à maneira da imaginação, ou seja, por associações causadas por semelhanças, repetição da contigüidade espacial, repetição da sucessão temporal, perda de clareza após um certo limiar espacial e temporal. Esse conjunto de circunstâncias determina necessariamente a acidentalidade de um afeto no plano da experiência imaginativa, ou seja, da paixão. Em outros termos a expressão “por acidente” significa, rigorosamente, segundo causas necessárias, pois a Parte I já demonstrou que na natureza das coisas nada há que seja contingente.

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Se a tarefa da Parte III é demonstrar a diferença intrínseca entre ser causa inadequada e ser causa adequada, ou seja, entre paixão e ação, a tarefa da Parte IV consiste em tomar os afetos contrários para medir a força deles, seja quando contrários por natureza (como alegria e tristeza, de um lado, afetos ativas e afetos passivos, de outro), seja quando contrários por acidente (afetos alegres contrários; afetos tristes contrários). Por isso mesmo, a contrariedade é posta logo na abertura de E IV, no seu axioma, que enuncia:

“Não é dada, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular tal que não seja dada uma outra mais forte e mais potente do que ela. Dada uma coisa qualquer, é dada outra mais potente, pela qual a primeira pode ser destruída”.

O axioma põe no centro da dedução a idéia de partes da Natureza mais e menos potentes. Fundada no axioma, a proposição E IV P2 enuncia:

“Padecemos na medida em que somos uma parte da Natureza que não pode ser concebida por si mesma sem as outras”.

O axioma também fundamenta a proposição E IV P3:

“A força pela qual o homem persevera na existência é limitada e infinitamente superada pela potência das causas externas”.

E, finalmente, na proposição E IV P4 é demonstrado que

“Não pode ocorrer que o homem não seja uma parte da Natureza e que não possa sofrer outras mudanças senão aquelas que podem ser compreendidas somente por sua natureza e de que é causa adequada”.

Na Parte III, no escólio da proposição E III, P3, lemos que “as paixões só se referem à mente quando esta tem algo que envolve uma negação, isto é, quando a mente é considerada como uma parte da Natureza (pars Naturae) que não pode ser percebida clara e distintamente por si mesma sem as outras partes”, declaração se torna objeto de demonstração na proposição 2 da Parte IV: “somos passivos enquanto somos uma parte da Natureza (pars Naturae) que não pode ser concebida por si mesma sem as outras”. Na demonstração desta proposição Espinosa usa o termo partialis para referir-se ao tipo de causalidade que opera na paixão, afirmando que somos passivos quando somos causa partialis, causa parcial, isto é, cujos efeitos não podem ser deduzidos exclusivamente das leis de nossa natureza. A paixão envolve negação porque concerne a uma parte que não pode ser concebida sem as outras e que não encontra em si mesma a causa totalis do que sente, faz ou pensa. Na Ética II, ser parte e ser causa parcial estão na origem da inadequação – no conhecimento – e, na Ética III, na origem da passividade – nos afetos. Na Ética IV, esta situação, é acrescida de duas novas determinações: a de que para cada parte singular haverá outra mais potente do que ela, e a de que a parte humana não pode ser concebida sem as outras cuja potência ultrapassa infinitamente a sua. Essas duas determinações serão o fundamento da servidão.

Na servidão, a parte se encontra sob o signo da privação e da negação, que são as marcas próprias da paixão. Privação, porque a idéia inadequada e a causa inadequada não estão aptas a dar a razão total ou a causa total do efeito, faltando-lhes auto-determinação. Negação, porque a parte não pode ser concebida sem as outras na ordem comum da Natureza. Em resumo, a origem do que se passa na parte passiva está fora dela, no que não é ela. Privação e negação transformam cada parte numa potência dependente da potência de outras partes e dessa dependência surge não só a contrariedade afetiva entre elas, mas também a contrariedade de afetos no interior de cada uma delas.

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Finalmente, na Parte III, durante a dedução dos afetos, Espinosa insiste em que uma mesma coisa pode ser, por acidente, causa de afetos contrários num mesmo homem ou em vários homens; na Parte IV, durante a dedução da servidão, Espinosa insiste em que os mesmos afetos podem arrastar um mesmo homem em direções contrárias ( caso do ciúme é exemplar, como sabemos).

Ora, Espinosa insiste na distinção entre diversum e contrarium, distinção indispensável para que a razão conheça o que “há de bom e mau nos afetos”, isto é, possa medir as forças dos afetos.

Diversum é o diferente por essência (os atributos são realmente diversos; os modos finitos são realmente diversos por seus atributos e são realmente diversos deles justamente porque são efeitos deles e deles recebem a essência e a potência; paixão e ação são realmente diversas, pois diversa é sua causa). Contrarium, porém, se diz da diferença de intensidade na potência de coisas de mesma natureza, pois as coisas que nada possuem em comum não podem ser contrárias nem concordantes entre si. Em outras palavras, somente coisas de mesma natureza podem convir umas às outras ou ser contrárias umas às outras. Por isso mesmo, Espinosa demonstra que, na paixão, porque esta envolve privação e negação, os homens podem ser ou contrários ou convenientes, em contrapartida, na ação ou sob a direção da razão, concordam necessariamente.

Na medida em que o conatus é a essência atual de um ser singular, este é singular justamente porque é diversum dos demais conatus pela diferença de suas essências e visto que essência e potência são o mesmo, cada ser singular é singular porque é diverso dos demais por sua potência atual. Os diversos podem convir ou ser contrários. Convêm entre si pelo que possuem em comum (por exemplo: as partes do corpo convêm porque têm em comum a causalidade eficiente do conatus que as unifica como constituintes de um único corpo). São contrários quando, embora

convenientes por suas essências ou potências (pois são todos partes da mesma potência infinita da Natureza), diferem pela intensidade de suas potências e é essa diferença que, na ordem comum da Natureza, transforma os convenientes em contrários.

Contrário, portanto, se diz das forças (vis) externas e internas cuja intensidade varia em cada parte da Natureza e que, isolada, é incomensuravelmente mais fraca do que as forças das causas externas e luta com elas para afirmar-se na existência. No caso da parte humana da Natureza, contrarium está referido às forças dos afetos, pois estes são variações na intensidade da potência singular. Assim, a contrariedade não se encontra no interior de uma essência singular – não são coisas de natureza contrária simultaneamente presentes na essência –, mas nas forças dos afetos que causam a variação da intensidade de sua potência sob os efeitos da causalidade externa de potências cujas forças são superiores e contrárias às suas – ou como enuncia o axioma 1 de EV, ações contrárias excitadas num sujeito. É exatamente a contrariedade das forças externas que fundamenta a distinção entre o bom e o mau nos afetos, ou seja, é bom o afeto que convém à nossa natureza; mau, aquele que é contrário à nossa natureza. Isso, aliás, é patente pelo enunciado de E V P10, em cujo início lemos: “durante o tempo (quandiu) em que não estamos tomados por afetos que são contrários à nossa natureza”.

Eis porque o axioma 1 da Parte V não fala em coisas de natureza contrária, como enunciava a proposição 5 da Parte III, e sim em ações contrárias excitadas – no caso, afecções e afetos contrários.

3. O axioma 1 afirma a necessidade de uma mutatio, de uma mudança

que desfaça a contrariedade das ações. Como vimos, Pierre Macherey considera o sujeito do axioma 1 um

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“espectador neutro e imparcial” e Laurent Bove o interpreta como um “lugar vazio” – ou seja, ambos consideram o enunciado do axioma intrigante, pois Espinosa não atribui ao sujeito a tarefa de realizar a mutação.

Penso, porém, que o equívoco de Macherey e Bove decorre de tomarem o termo sujeito no sentido que terá a partir do idealismo alemão, portanto, como subjetividade e agente. Ora, Espinosa tomando o termo sujejto em sua acepção clássica e tradicional – isto é, como suporte, no caso, suporte de ações contrárias – não tem motivo nenhum para atribuir a ele a condição de agente da mutatio, pois esse suporte não é uma substância.

Cabe ao axioma 2 enunciar quem é o agente da mutação: a potência.O segundo axioma enuncia:

“A potência de um efeito é definida pela potência de sua causa, na medida em que sua essência é explicada ou definida pela essência de sua causa.”

Espinosa acrescenta que esse axioma é evidente pela proposição 7 da Parte III, isto é, aquela que afirma a identidade da essência e da potência. Essa proposição enuncia:

“O esforço (conatus) pelo qual cada coisa se esforça para perseverar em seu ser não é nada além da essência atual da própria coisa.Demonstração: Da essência dada de uma coisa qualquer seguem necessariamente [efeitos] (pela prop. 36 da parte I); e as coisas não podem nada outro a não ser o que segue necessariamente de sua natureza determinada (pela prop. 29 da parte I); por isso a potência de uma coisa qualquer, ou seja, o esforço pelo qual, ou sozinha ou com outras, ela faz ou esforça-se para fazer algo, isto é (pela prop. 6 desta parte), a potência, ou seja, o esforço pelo qual se esforça para perseverar em seu ser, não é nada além da essência dada da coisa, ou seja, sua essência atual”.

O axioma 2 reafirma o que é posto no axioma 4 da Parte 1:

“O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o envolve.”

O axioma 2 opera, portanto, com a identidade de causa, essência e potência. Temos, assim, definida a figura do agente: a potência ou essência atual da coisa singular. Caberá às quatro primeiras proposições da Parte V determinar que se trata do agente da liberdade, isto é, a potência da mente humana quando a mente não está externamente determinada e sim internamente disposta. Em outras palavras, as quatro primeiras proposição da Ética V abrem o campo da reflexão. Esta é, portanto, o ponto de partida no plano ético, porém é ponto de chegada no plano ontológico. Em outras palavras, o saber de si não é princípio da filosofia, pois é fundado e não fundante.

REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:

1. BOVE, L., “Puissance et prudence d’une vie comme singularité chez Spinoza”. Conferência no Departamento de Filosofia, FFLCH, USP, outubro de 2008.

2. DESCARTES, Traité des passions de l’âme. Ed. Adam et Tannery, vol. XI. Paris: Vrin, 1996.

3. MACHEREY, P., Introduction à l’ Éthique de Spinoza. Cinquième partie. Lês voies de la libération. P.U.F., Paris, 1994.

THE PoSITIoN oF THE AgENT oF FREEDom IN Ethics V

Abstract: The first axiom of the fifth part of Spinoza’s Ethics gives rise to the interpretation of the subject as a neutral spectator (Macherey) or as an empty subject (Bove). The analysis of the term “subject” shows that Descartes used to employ it as substance, in contrast to the Kantian subjectivity; but how can one explain its use by Spinoza? The comparison of this axiom with the use of “contrariety” in parts III and IV of the Ethics show us in which sense Spinoza employs the term “subject”.Keywords: subject, substance, contrariety, freedom.

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ExISTêNcIA E PREdIcAÇÃO dE ExISTêNcIA

NA cRíTIcA dE gASSENdI à PROVA ONTOlógIcA

cARTESIANA dA QUINTA MEdITAÇÃO

elane Maria Farias de carvalho*

Resumo: O objetivo deste artigo é examinar a noção de ‘existência’ na crítica de Gassendi à prova ontológica cartesiana da Quinta Meditação, a fim de tentar avaliar que pressupostos lógicos e metafísicos estão implicados tanto na afirmação de Gassendi segundo a qual a existência não é uma perfeição, como em sua outra objeção adicional, na qual ele utiliza a lógica dos predicáveis para combater a tese cartesiana de que a existência é uma propriedade.Palavras-chave: Descartes, Gassendi, existência, perfeição, predicação.

Um dos pressupostos da prova a priori da existência de Deus que Descartes apresenta na Quinta Meditação é o de que a existência é uma perfeição, e é precisamente este pressuposto que Gassendi nega nas Quintas Objeções: a existência não é perfeição, mas é

“... aquilo pelo que tanto a coisa mesma quanto as [suas] perfeições são existentes, e sem o que não se diz nem que a coisa é nem que tem perfeições. Daí que [...] se a coisa carece de existência, [ela não] é dita imperfeita (ou privada de perfeição), mas sim nula.” (Descartes 3,VII, 323, 15-26).

Ora, o fato é que, ao declarar nesta passagem das Quintas Objeções que uma coisa desprovida de existência nem poderia ser nem ter quaisquer perfeições, Gassendi parece se comprometer com uma tese acerca da predicação, a saber, a de que os predicados ‘perfeito’ e ‘imperfeito’ só podem ser atribuídos com verdade a coisas existentes ou, em outras palavras, que

* Profª Drª do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, Campus Campos-Guarus.

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a existência da coisa estaria implicada na atribuição da perfeição ou do contrário dela, ou seja, da imperfeição, como uma condição necessária e essencial para tal predicação. Assim, o pressuposto lógico fundamental é o da pressuposição da existência do sujeito da predicação.

Ao ler o texto da resposta de Descartes a Gassendi, ficamos com a impressão de que Descartes pensou poder contornar a objeção inicial (segundo a qual a existência não seria uma perfeição) recorrendo a uma manobra dialética de partir de algo que o adversário pudesse teoricamente concordar: com efeito, nas Quintas Respostas, ele toma a palavra propriedade num sentido estritamente lógico de atributo ou predicado, e tenta fazer Gassendi conceder ao menos que a existência é uma propriedade, e, no caso de Deus, uma propriedade em sentido estrito:

“Não vejo aqui a que gênero de coisas quereis que a existência pertença, nem por que ela não possa ser denominada uma propriedade, como a onipotência, tomando o nome ‘propriedade’ de um modo geral, como este deve ser tomado, sem dúvida: como um atributo, qualquer que seja ele, ou como tudo o que pode ser predicado da coisa. E, no caso de Deus, a existência necessária é mesmo uma propriedade tomada do modo verdadeiramente mais estrito, porque apenas a ele convém, e porque só nele faz parte da essência.” (Respostas às Quintas Objeções, Descartes 3, VII, 382-3)1

Então, neste texto das Quintas Respostas, a existência aparece como uma propriedade, no sentido geral do termo (sentido em que propriedade é sinônimo de atributo e de predicado). Só lembrando que, na concepção cartesiana, as ideias de todas as naturezas contêm a existência, ou seja, as coisas são sempre pensadas sub ratione existentis, e o que varia é apenas a modalidade dessa existência (possível ou necessária), pois,

enquanto na idéia de todas as outras naturezas apenas a existência possível estaria contida, na idéia de Deus, não só estaria presente a existência possível como além disso a necessária. E, no caso de Deus, a sua existência necessária não seria um atributo qualquer, mas sim uma propriedade in stricto sensu, por dizer respeito a algo que é atribuído a Deus em contraste com absolutamente todas as outras coisas, e que o distinguiria de tudo o mais (“eu nada poderia conceber, exceto Deus só, a cuja essência a existência pertence” [Quinta Meditação, Descartes 3, VII, 68, 13-14]; no texto francês temos um acréscimo: “appartienne avec nécessité”, [Descartes 3, IX, 54]; e também o axioma X da Exposição Geométrica das Segundas Respostas: “no conceito de um ser soberanamente perfeito está compreendida a perfeita e necessária existência” [Descartes 3, IX, 128]).

Em sua tréplica, no capítulo da Disquisitio Metaphysica (ou “Investigação Metafísica”), na parte que trata da Quinta Meditação, Gassendi procura assinalar que a tese cartesiana de que a existência é uma propriedade tampouco é aceitável, e procura mostrar, por redução ao absurdo, as consequências nefastas desta tese em termos de predicação. É dessa tréplica que trataremos aqui, de como a noção de existência e a própria predicação de existência aparecem lá.

Inicialmente, Gassendi divide a ontologia cartesiana em três categorias principais (coisa, substância e propriedade):

“Sem dúvida, vós pareceis conceber, antes de mais nada, a coisa (ou, como diz o vulgo, o ente ou algo) como o gênero mais geral, o qual repartis em duas espécies ou gêneros subordinados: a substância, certamente, e a propriedade. Em seguida, sendo dividido o gênero das propriedades em suas espécies, tomais a existência como uma dentre aquelas e confundis, entretanto, as expressões ‘propriedade’ e ‘atributo’.” (Gassendi 5, Disquisitio Metaphysica, in Meditationem V, dubitatio II, responsio, instantia I ).

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Ele indica como sendo duas as causas do “equívoco” cartesiano, em primeiro lugar, a identificação entre propriedade e atributo; e, em segundo lugar, o fato de Descartes ter enquadrado a existência na categoria de propriedade:

“Ora, [...] é sabido que a palavra propriedade designa algo físico e que não depende de uma operação do intelecto, [enquanto que] a palavra atributo designa verdadeiramente algo de lógico e dependente do intelecto que atribui ou que predica [uma coisa de outra]. Mas resulta, então, que toda propriedade pode verdadeiramente tornar-se um atributo ou ser considerada [como tal], mas, por outro lado, nem todo atributo [pode ser considerado] reciprocamente como propriedade, como é evidente ainda a partir do fato de que a substância é também um atributo, ainda que não seja uma propriedade, mas [seja] de um gênero distinto daquela. (...) É evidente, portanto, que o atributo é algo não apenas transcendente, do mesmo modo que a coisa é ou que o ser é predicado, mas é, na verdade, transcendente ou supertranscendente, visto que é algo de lógico e relativo ao entendimento que, pelo seu pensamento, atinge a universalidade das coisas. Por isso é que, para que não haja equívoco deveis, ou bem abster-vos do termo atributo, ou bem, limitando-o à noção de propriedade, entender que o atributo é algo distinto da substância e [cuja] extensão é daqui por diante menor que a de coisa.” (Gassendi 5, Idem, ibdem).

Como mostra a citação, o ponto inicial da crítica de Gassendi consiste na negação da equivalência entre propriedade e atributo. Ele recusa, com efeito, todo sentido metafísico (de caráter, qualidade ou propriedade essencial da substância) à palavra atributo e não lhe concede senão um sentido lógico (pelo qual ‘atributo’ aparece como sinônimo de predicado).

Tendo em vista essa distinção e separação, só haveria dois modos de evitar o “equívoco” cartesiano da identificação da propriedade com o atributo: ou abstendo-se do uso da palavra atributo (ou seja, reconhecendo a distinção que Gassendi faz entre estas duas coisas); ou então limitando o sentido do termo atributo para que este só designe a propriedade (nesse caso, seria preciso assumir também, com evidente prejuízo para a expressão e para a conceituação das coisas, que ‘atributo’ é distinto de ‘substância’ – enquanto gênero distinto – e que tem menor extensão que ‘coisa’). E o primeiro modo parece, evidentemente, muito mais acertado para Gassendi.

Na seqüência do texto, ele deduz da consideração da existência como propriedade uma primeira conseqüência: já que todo gênero pode ser predicado de suas espécies, tanto a noção de coisa quanto aquela da propriedade podem ser verdadeiramente atribuídas à existência para concluir que “a existência é propriedade”, e que “a existência é coisa (ou estaria incluída no gênero mais geral de todos)”.

As outras conseqüências da tese cartesiana, Gassendi as expõe no interior de uma redução ao absurdo – cujos passos podemos esquematizar do seguinte modo:

I. a premissa inicial da redução ao absurdo (ou seja, a tese que se pretende invalidar pelo processo de refutação): a existência é uma propriedade, ou está subsumida num gênero especial de propriedades.

II. as conseqüências da premissa inicial (ou os absurdos lógicos dela derivados):

a) a existência não pode ser predicada da propriedade tomada universalmente; logo, não se pode dizer “toda propriedade (gênero) é existente (espécie)”. Com efeito, o gênero se predica sempre da espécie, ao passo que a espécie não se predica nem do gênero próximo nem daqueles que estão acima, visto que a proposição não é conversível (Porfírio 6, II, 13, p.43-44) (ou seja, não há a possibilidade de uma conversão simples

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da proposição: do fato de ser verdadeiro que “todo homem é animal” não se segue que também o seja a proposição “todo animal é homem”, mas apenas que “alguma propriedade é existente”).

b) mas se a existência não poderia ser predicada da propriedade tomada universalmente, a fortiori ela também não poderia ser predicada de coisa, tomada universalmente, já que se ela não é predicada do inferior ou do menos geral, também não poderia sê-lo do superior ou do mais geral. Como explica Porfírio (em sua Isagoge ou Introdução às Categorias de Aristóteles), no que se refere à extensão, só se pode predicar o igual do igual, ou o maior do menor (como ‘animal’ de homem), mas não o menor do maior (não podemos tomar ‘animal’ em toda sua extensão para afirmar que ‘todo animal é homem’). A ordem lógica correta é que os superiores sempre se prediquem dos inferiores: a espécie, do indivíduo; o gênero, da espécie e do indivíduo; e o gênero mais geral é sempre predicado dos gêneros subordinados, bem como das espécies e dos indivíduos (Porfírio 6, II, 14). Logo, não seria correto afirmar, baseado na relação entre os predicáveis, que “coisa existe” (do mesmo modo que não se pode dizer com acerto “o corpo vivente é homem”).

c) outra conseqüência lógica de se considerar a existência como uma propriedade especial é que ela também não poderia ser predicada da substância, posto que nenhuma espécie é predicada de um gênero contrário. Com efeito, sendo o gênero uma totalidade fechada, que une sob a condição de excluir, ao mesmo tempo que ele abriga sob si todas as suas espécies, ele exclui todas aquelas outras pertencentes a outros gêneros. É por isso precisamente que nem se pode afirmar “a planta é homem” nem que “a substância existe”.

d) em seguida, a existência não poderia ser predicada de alguma outra propriedade, como a sabedoria, visto que nenhuma espécie é predicada de outra que está compreendida sob o mesmo gênero (de modo que, se a proposição “o cavalo é homem” não é verdadeira, tampouco o será a proposição “a sabedoria é existente”).

e) em suma, a assunção de tal premissa destruiria completamente qualquer possibilidade de predicação existencial, seja ela abstrata ou concreta, visto que ao encapsular a existência no gênero das propriedades, as relações lógicas de subordinação e de subsunção num gênero determinado acarretariam uma estranheza e incompatibilidade e, logo, uma exclusão da predicação da existência da substância, de outras propriedades quaisquer ou mesmo da propriedade tomada universalmente e, por fim, de coisa tomada universalmente. Portanto, se a existência não pode ser predicada delas, só restaria atribuir-lhes a não-existência. Mas isto é absurdo.

III. Conclusão da redução ao absurdo (que vem a ser a contraditória da premissa inicial): por conseguinte, a existência não pode ser encaixada no gênero das propriedades, ela não é uma propriedade, mesmo que de tipo especial. Assim sendo, a única saída para os impasses assim gerados parece mesmo ser o abandono da tese de que a existência é uma propriedade da essência.

Gassendi afirma, além disso que, enquanto que no caso de todas as outras propriedades, se estas últimas são suprimidas efetivamente ou pelo pensamento, a substância da qual elas são propriedades continua ainda a existir, esta mesma substância, se lhe for retirada a existência, não vai mais perseverar no ser de modo nenhum. Por conseguinte, quando Gassendi afirmou que o mesmo que ele havia objetado sob o nome de perfeição poderia ser objetado igualmente sob o nome de propriedade, isso significava, em última análise, que não se pode atribuir uma propriedade a alguma coisa sem saber de antemão que esta coisa existe. Ora, sendo uma exigência não só para a atribuição de propriedades (os predicados devem ser atribuídos somente a coisas existentes) como ainda para o ter propriedades, não poderia a existência, por isso mesmo, confundir-se com elas.

Permanece a questão de como é que Gassendi poderia relacionar, por sua vez, a essência e as propriedades que derivam dela com a existência. Ora, a concepção que melhor se coaduna com as teses empiristas sustentadas por ele é aquela segundo a qual é porque uma essência é instanciada que

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ela é capaz de ter propriedades – o que nada mais é que um outro modo de dizer que só há essência e propriedade daquilo que existe.

Por outro lado, se se trata de oferecer uma caracterização positiva para a existência, melhor é, no entender de Gassendi, considerá-la como um “gênero transcendental”, ou seja, uma noção que ultrapassa todas as categorias, mas que, por isso mesmo, é passível de ser aplicada a todas elas, como uma espécie de atributo universal ou predicado transcendental, bem como também aos indivíduos singulares.

Se esta crítica de Gassendi é correta, a conseqüência direta parece ser que ela torna inviável a analogia da prova ontológica com as demonstrações matemáticas de propriedades, pois esta se funda, sem sombra de dúvida, na suposição decisiva e, segundo Gassendi, problemática, de que a existência é uma propriedade. Sabemos que ele veta uma tal analogia, baseando-se em que só se pode comparar propriedade com propriedade, essência com essência, e existência com existência, e a existência não é propriedade, como é o caso, por exemplo, da onipotência. E assim, tendo recusado de antemão as próprias bases sobre as quais repousam o argumento, não poderia ele, por isso mesmo, aceitar a prova a priori cartesiana da existência de Deus da Quinta Meditação.

Sabemos que o pressuposto lógico da pressuposição de existência para a atribuição de perfeição ou de propriedade a qualquer coisa depende, por sua vez, da tese anti-metafísica que Gassendi sustenta contra Descartes, segundo a qual as coisas simplesmente possíveis não possuem uma realidade sobre a qual pudéssemos nos apoiar para fundar verdades necessárias e eternas, ou predicações necessariamente verdadeiras, independentemente da existência do sujeito da predicação. Então, no fundo, foi a grande diferença de pressupostos2 que fez do debate entre os dois autores um autêntico debate de surdos...

REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:

1. CARVALHO, Elane M. Testando a validade e o status do ‘argumento ontológico’ no sistema cartesiano (tese defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

2. DESCARTES. Meditações. In: Descartes, Obra escolhida, tradução e notas de J. Guinsburg e de Bento Prado Júnior. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962.

3. DESCARTES. Oeuvres, 11 tomos, Ed. Adam, Charles; Tannery, Paul.. Paris: VRIN, 1973.

4. DESCARTES. Oeuvres philosophiques, 3 v. Ed. Alquié, F. Paris: Garnier, 1967. 5. GASSENDI, Pierre. Disquisitio Metaphysica seu dubitationes et instantiae adversus

Renati Cartesii metaphysicam et responsa. Tradução e notas de Bernard Rochôt. Paris: VRIN, 1962.

6. PORFÍRIO. Isagoge. Tradução de D. Bento Silva Santos. São Paulo: Attar Editorial, 2002.

EXISTENCE AND PREDICATIoN oF EXISTENCE IN gASSENDI’S CRITIqUE oF CARTESIAN oNToLogICAL PRooF IN FIFTH

mEDITATIoN

Abstract: The purpose of this paper is to examine the notion of ‘existence’ in the Gassendi’s critique of Cartesian ontological proof of Fifth Meditation, in order to try to evaluate which logical and metaphysical assumptions are implied ( ) in the Gassendi’s statement that existence is not a perfection, as well as in his another further objection, in which he uses the logic of predicables to attack the Cartesian thesis that existence is a property. Keywords: Descartes, Gassendi, existence, perfection, predication.

NoTAS:

1. Contrariamente ao que sugere a tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior (publicada na coleção Os Pensadores, ed. Nova Cultural, de 1996), nem a locução bien davantage das Cinquièmes Réponses nem a locução quin etiam, empregada no original latino, possuem um sentido de oposição (“mas, antes”). Trata-se, isto sim, de reforçar a idéia que veio antes. Logo, melhor seria traduzir por “e mesmo” ou “e ainda

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mais” [“...Quin etiam existentia necessaria est revera in Deo proprietas strictissimo modo sumpta, quia illi soli competit, & in eo solo essentiae partem facit” (Descartes 3, VII, 382-3); “Mais, bien davantage, l’existence nécessaire est vraiment en Dieu une propriété prise dans le sens le moins étendu, parce qu’elle convient à lui seul, et qu’il n’y a qu’en lui qu’elle fasse partie de l’essence.” (Descartes 3, tomo II, p. 830)]. 2. Acerca da existência atual, podemos dizer, com base nos textos cartesianos, que ela não constitui uma condição da representação do que quer que seja, e, portanto, que a predicação não faz suposição de existência, mas apenas de realidade (seja ela a realidade que uma quimera tem pelo fato de ser um objeto de pensamento ou aquela realidade em sentido pleno para um pensamento essencialista, que é a realidade da essência imutável das coisas). E se a predicação não faz suposição de existência, Descartes pode defender, sim, que a existência é uma perfeição – ainda que, não obstante, ele pareça recuar dessa sua posição no debate com Gassendi. Mas trata-se apenas de um recuo dialético, imposto pelos termos do debate. Além disso, contra a redução ao absurdo que Gassendi apresenta para refutar a tese cartesiana de que a existência é uma propriedade, pode-se aduzir outra diferença nos pressupostos, a saber, a de que, enquanto Gassendi aceitava a lógica aristotélica tradicional, buscando tão-somente aperfeiçoá-la (lógica essa fundada na extensão e sobre a qual repousa, por sua vez, a doutrina mesma dos predicáveis), Descartes critica em termos epistêmicos a obscuridade do conteúdo das noções e dos conceitos das classes que formam os gêneros e as espécies nesta lógica da extensão (Descartes 3, Recherche de la vérité, 515; 516), e empreende a substituição da lógica aristotélica por outra lógica, derivada do tipo de raciocínio matemático, que se baseia fundamentalmente na intuição de naturezas simples e comuns. A importância disso tudo é que, já que o autor não era obrigado a adotar pressupostos diferentes dos seus e que a crítica de Gassendi permaneceu uma crítica externa, por assim dizer, Descartes poderia manter, apesar das criticas de Gassendi, a tese de que a existência é uma propriedade (e desta tese decorre como conseqüência, no pensamento de Descartes, que a analogia da prova ontológica com as demonstrações matemáticas é bem fundada, e, sendo assim, que a prova ontológica é tão certa quanto uma demonstração matemática). Mais detalhes sobre isso, consulte nossa tese de doutoramento “Testando a Validade e o Status do ‘Argumento Ontológico’ no Sistema Cartesiano”, defendida em dezembro de 2008.

dA fíSIcA dO INTENSIVO A UMA ESTÉTIcA dO INTENSIVO: dElEUzE E A ESSêNcIA

SINgUlAR EM ESPINOSA

CíntiaVieiradaSilva*

Resumo: A noção de intensidade é de extrema importância para o pensamento deleuziano, fazendo-se presente não apenas na elaboração de sua própria filosofia da diferença, como também nas leituras que faz dos outros filósofos que lhe são caros, especialmente na sua reconstrução do espinosismo. Deleuze concebe a essência singular espinosana em termos intensivos. Sendo assim, este artigo procura reunir elementos para mostrar a importância da noção de intensidade no projeto deleuziano de unificação dos dois sentidos de estética e o papel do uso de concepções de extração espinosista na empresa deleuziana. Estes apontamentos deixam implícito um outro tema: o da possibilidade de elaborar uma Estética a partir de Espinosa, vale dizer, uma Estética atenta a sua ancoragem corporal.Palavras-chave: Espinosa, Deleuze, Estética, Intensidade, Corpo.

É conveniente que um título indique o tema a ser desenvolvido

no texto ou exposição que ele nomeia, mantendo, entretanto, um certo mistério, criando um certo enigma que desperte a curiosidade do auditório ou dos leitores. Pareceu-me conveniente, então, fazer referência ao título do livro de François Zourabichvilli, Spinoza; une physique de la pensée, tentando criar uma outra junção que fosse tão surpreendente quanto aquela entre física e pensamento1, ao mesmo tempo em que expressasse de modo conveniente a linha a ser seguida no artigo. Sob pena de me exceder no didatismo, explicito e desfaço o mistério contido no título.

Se pensarmos no sentido que a palavra Física toma a partir do século XVII, no sentido em que a empregamos para designar uma ciência particular que estuda as leis universais que explicam o comportamento dos

* Professora Adjunta do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto.

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corpos (seu movimento, os fenômenos óticos que neles se produzem, as forças de atração entre eles e assim por diante), tenderemos a delimitar o campo da Física como sendo o da extensão. Conseqüentemente, pensaremos que a Física lida com certas qualidades e as grandezas escalares que nelas se podem verificar. Desse ponto de vista, e acompanhando a terminologia espinosana, enxergaríamos os corpos como conjuntos de partes exteriores umas às outras, unidas entre si segundo uma determinada relação característica. Sabemos, contudo, que estas duas dimensões não esgotam a concepção espinosana da individualidade.

Além das partes extensas e das relações de movimento e de repouso entre elas, os indivíduos são igualmente expressões de uma essência singular. Se quisermos, portanto, estudar inteiramente a Natureza a partir dos indivíduos que a compõem, retomando um sentido mais antigo de Física, não podemos negligenciar tais essências singulares. Ora, Deleuze compreende esta dimensão da individualidade em função de uma teoria do intensivo na qual mobiliza filósofos como Duns Scoto e Kant. Os corpos são partes extensivas ou extrínsecas do atributo da extensão, ao passo que as essências singulares são partes intensivas ou intrínsecas de todos os atributos da substância. Assim sendo, meu propósito aqui é reconstituir os passos que permitem a Deleuze compreender a essência singular como intensidade ou quantidade intensiva, o que lhe permite caracterizá-la também como grau de potência. A partir desta reconstituição, será possível ao menos indicar o papel que o conceito de intensidade desempenha na economia do pensamento deleuziano, tanto no que se refere à realização do projeto de unificar os dois sentidos de estética, formulado em Diferença e repetição, de pensar as obras de arte de modo imanente, ou seja, buscando mostrar que novas maneiras de sentir elas produzem, quanto no que se refere à ontologia da diferença. É que as intensidades são, por assim dizer, as unidades mínimas da diferenciação tanto no que

se refere aos processos de individuação (produção na natureza), quanto à criação artística. Aliás, esta repartição recobre uma unidade, ou seja, não há distinção substancial entre produção natural e criação artística, cada uma delas sendo modos de produção de singularidades (processos de individuação na natureza ou na arte).

Em Spinoza et le problème de l’expression, Deleuze insere a noção de intensidade numa interpretação que visa mostrar que as essências singulares são realidades físicas, sendo, portanto, dotadas de existência. Sua existência, contudo, não se identifica à existência dos modos correspondentes, assim como elas não se caracterizam como meras “possibilidades lógicas”, nem como “estruturas matemáticas”, nem como “entidades metafísicas” (Deleuze 3, p.174). A existência atual das essências deriva de sua causa, ou seja, é por serem produzidas por Deus que as essências dos modos têm uma existência que não pode ser reduzida à categoria da possibilidade, tanto assim que todas as essências convêm entre si ou se compõem, na medida em que todas têm Deus como causa. Por isso, partimos de uma interpretação que considera os atributos como qualidades eternas e infinitas, que, enquanto tais, são indivisíveis, por um lado, e como dotados de quantidades, por outro. Tais quantidades podem comportar partes, vale dizer, podem ser consideradas como divisíveis. Deleuze entende que, na Ética, a palavra “partes” deve ser tomada em dois sentidos.

Assim, devemos falar de partes extensas, ou extensivas, e partes intensivas. Ao contrário do que se poderia imaginar, as partes extensas não são apenas unidades da extensão. Na leitura deleuziana, a extensividade pode ser aplicada a todos os atributos. No caso do pensamento, suas partes extensas seriam as idéias que correspondem aos corpora simplissima (partes extensivas da extensão)2. Quanto às partes intensivas, devem ser entendidas como graus de potência ou de intensidade, em que um

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atributo se divide modalmente, ou seja, em partes modais e não reais ou substanciais. segundo o tema de uma variação das qualidades que não se dá por mudança formal ou essencial, recorrente ao longo dos séculos XIII e XIV, em debates, travados notadamente no interior do scotismo, em torno do modo intrínseco ou grau. Tais questões concernem a possibilidade de uma qualidade “ser afetada por graus diversos”, mantendo, no entanto, a mesma essência ou razão formal. Outra questão, correlativa a esta, seria a de saber se estas afecções se refeririam à essência ou “apenas à existência” (Deleuze 3, p.173, nota 2)3. Nessa perspectiva, cada atributo-qualidade tem uma quantidade infinita divisível sob certas condições que teria modos intrínsecos ou graus.

Deleuze não esconde o caráter interpretativo desta solução, tanto assim que afirma que “sem desenvolver explicitamente esta teoria, Espinosa se orienta em direção à idéia de uma distinção ou de uma singularidade própria às essências de modos enquanto tais” (Deleuze 3, p.180 [tradução minha]). Há uma dupla distinção que afeta “as essências de modos”: em relação ao “atributo, como a intensidade da qualidade e entre si, tal como os diversos graus de intensidade” (Deleuze 3, p.179-180). Mas a distinção intrínseca das essências não muda a natureza do atributo, o qual mantém sua univocidade. Se Deleuze recorre à teoria de uma distinção intrínseca no interior das qualidades, elaborada por Duns Scoto; se enxerta em sua leitura de Espinosa um vocabulário que não é empregado por este, isto se deve à necessidade de compreender as essências singulares como sujeitas ao processo de individuação, tanto quanto os modos, mas de uma maneira diferente.

Mas o que impediria entender que as essências constituem uma dimensão da individualidade ou um tipo de individuação? Ocorre que, por serem todas submetidas a um mesmo princípio de produção, as essências, nas palavras de Deleuze “compõem um sistema total, um conjunto

atualmente infinito” (Deleuze 3, p.177), não podendo, deste ponto de vista, ser separadas umas das outras. No entanto, a seqüência do texto citado pergunta-se a respeito de uma possibilidade de distinção entre as essências, a qual deve ser encontrada para que estas possam ser dotadas de uma existência ou realidade física, como dito anteriormente. A dificuldade de resolver tal questão é atestada pelo fato de o Breve Tratado não conter sequer ainda um equacionamento claro do problema correspondente. Os textos em que tal problema aparece contêm uma ambigüidade que permitirá a Deleuze neles apoiar sua solução. Seu argumento se sustenta numa diferenciação entre “estar contido” e “se distinguir”. Isto quer dizer que o fato de as essências estarem contidas na substância enquanto o modo não exista não acarreta uma impossibilidade de distinguir tais essências. No entanto, esta distinção não é extrínseca.

Uma individuação extrínseca se faz através da duração, pela figura e pelo lugar, e corresponde ao que ocorre aos modos. A existência do modo, na medida em que lhe confere uma duração, faz com que deixe “de estar simplesmente contido no atributo” (Deleuze 3, p.179), assim como não permite que sua idéia continue a estar apenas compreendida na idéia de Deus. Deleuze recorre a uma metáfora, utilizada já por Duns Scoto, para explicar a diferença entre as distinções extrínseca e intrínseca. Segundo tal imagem, a substância seria uma muralha cujo atributo/cuja qualidade seria a brancura. Os modos, como distinções extrínsecas, seriam figuras que se desenham sobre a muralha branca. Mas, antes do aparecimento dessas figuras, já haveria uma distinção interna à própria brancura, ou seja, uma distinção dela, a saber, a intensidade (da brancura) e uma distinção nela, qual seja: (seus) os diversos graus de intensidade. A muralha branca sem figuras alude a um “estado” em que “a qualidade não é afetada por (qualquer)/alguma coisa que se (distinga)/distinguiria dela extrinsecamente” (Deleuze 3, p.179). Mas é justamente neste estado que se deve procurar por um

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princípio de individuação intrínseco, de modo que possamos pensar a distinção extrínseca dos modos como derivada da distinção intrínseca entre suas essências. O caráter intrínseco desta distinção permite manter a univocidade da substância e de seus atributos, além de propiciar uma exposição da gênese do processo de individuação, na medida em que seu princípio é interno à existência das próprias essências dos modos.

Para retomar o quadro completo da série que vai da substância aos atributos, e em seguida, aos modos intrínsecos ou essências e aos modos extrínsecos, retomo o final do capítulo aqui estudado:

“a substância é como a identidade ontológica absoluta de todas as qualidades, a potência absolutamente infinita, (da) potência de existir sob todas as formas e de pensar (sob) todas as formas; os atributos são as formas ou qualidades infinitas, como tais indivisíveis. O finito, portanto, não é nem substancial, nem qualitativo”. “Cada qualidade substancial tem uma quantidade modal-intensiva, ela mesma infinita, que se divide atualmente em uma infinidade de modos intrínsecos. Esses modos intrínsecos, contidos todos juntos no atributo, são as partes intensivas do próprio atributo. Por isso mesmo, eles são partes da potência de Deus, sob o atributo que os contém”. (Deleuze 3, p.181)

Diante desta citação, cabe observar que a assimilação entre a essência dos modos e um grau da potência da Natureza permite a Deleuze não apenas estreitar os nós que, a seu ver, unem Espinosa e Nietzsche numa grande identidade, como também desenvolver aspectos de sua teoria do desejo, notadamente a noção de Corpo sem órgãos. Desenvolver esta observação nos desviaria do tema aqui em pauta, assim sendo, resta finalizar esta passagem por Spinoza et le problème de l’expression, uma

vez que já foi delineada a construção da interpretação das essências dos modos como intensidades, bem como respondida a questão a respeito do ganho conceitual, interno ao espinosismo, de uma tal interpretação. No entanto, já se aludiu aqui a uma outra motivação, exterior à compreensão do texto de Espinosa, que leva Deleuze a elaborar esta compreensão. Esta motivação será melhor explicitada se recorrermos a Diferença e repetição, tese principal defendida por Deleuze concomitantemente à que viria a constituir o primeiro de seus livros em torno de Espinosa, sua tese secundária (Mengue 6, p.295).

O grande tema que preside a investigação empreendida em Diferença e repetição é desenvolver um conceito da diferença por si mesma, sem passar pelas figuras do negativo, tais como a oposição. A esta pesquisa conceitual corresponde uma indagação ontológica que redunda numa concepção do ser como diferenciação complexa. Mas esta ontologia permaneceria abstrata e engendraria uma concepção do pensamento presa aos pressupostos da representação se não se desdobrasse numa gênese da diferença que se fizesse ao mesmo tempo no real e no pensamento, mostrando como esta dupla geração se refere a modos de uma só produção. O pensamento, para atender a tais requisitos, deveria ser igualmente objeto de uma dupla gênese, referente às instâncias objetivas e subjetivas, ou seja, uma gênese que mostre como subjetivações são constituídas no dado e como o dado se constitui e produz objetivações nessas subjetivações. Vejamos como a noção de intensidade se insere nesta perspectiva genética.

Logo no início do Capítulo V de Diferença e repetição, intitulado Síntese assimétrica do sensível, Deleuze afirma que “a intensidade é a forma da diferença como razão do sensível. Toda intensidade é diferencial, diferença em si mesma” (Deleuze 1, p.356; orig. p.287). Isto significa que a intensidade constitui a condição do aparecimento de qualquer fenômeno, significa que só percebemos as qualidades e quantidades extensivas

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porque, sob elas, podemos antecipar as diferenças de intensidade, os graus ou quantidades intensivas das qualidades. Valendo-se de noções advindas da Física, mais especificamente da energética, Deleuze considera a intensidade como diferença de potencial ou disparidade. Do ponto de vista da energética, uma energia se define sempre em função de um elemento intensivo e outro extensivo, como se pode ver no caso da “energia linear”, que se define através da força e do comprimento, ou da “energia de superfície”, que depende da tensão superficial e da superfície, ou ainda da “energia de volume”, que resulta da pressão e do volume. A mesma lógica valeria para a relação entre energia gravitacional, peso e altura, assim como para a relação entre energia térmica, temperatura e entropia (cf. Deleuze 1, p.357; orig. p.287).

Estes exemplos são utilizados para explicar a dificuldade de se pensar uma qualidade intensiva, uma vez que, na experiência, a intensidade apareceria sempre sob as qualidades e desdobrada na extensão. Esta dificuldade de perceber a intensidade e, por conseguinte, de pensá-la, deriva de seu próprio desdobramento, que tende a anular as diferenças. Nas palavras de Deleuze:

“a intensidade se explica, desenvolve-se numa extensão (extensio). É essa extensão que se refere ao extenso (extensum), onde ela aparece fora de si, recoberta pela qualidade. A diferença de intensidade anula-se ou tende a se anular nesse sistema; mas é ela que, explicando-se, cria esse sistema”.(Deleuze 1, p.364-365; orig. p.294)

Percebe-se, neste ponto, uma estrita correlação entre a implicação da intensidade em si mesma, que se mantém mesmo quando ela se desdobra na extensão, e a individuação das essências contidas (ou, para repetir o mesmo termo, implicadas) nos atributos, em particular na extensão e

no pensamento, a distinção entre as idéias das essências individuais dos modos no interior das idéias de Deus e a maneira pela qual elas se mantêm mesmo quando os modos passam a existir na duração e na extensão.

O próprio espaço extensivo ou extensio gera-se a partir de um espaço intensivo ou Spatium, como já se anunciava na dupla interpretação dos atributos desenvolvida em Spinoza et le problème de l’expression. Deleuze emprega neste ponto um vocabulário kantiano, sem deixar, contudo, de se contrapor a algumas posições de Kant e de propor articulações conceituais diferentes das kantianas. Num texto anterior a Diferença e repetição, intitulado A idéia de gênese na estética de Kant, Deleuze já expunha seu interesse por uma perspectiva genética inaugurada no estudo do sublime. No caso do sublime, Kant mostrava como um livre acordo entre as faculdades podia ser engendrado sem que uma faculdade legisladora estivesse previamente determinada. A Crítica da faculdade de julgar explica, portanto, como se torna possível que uma determinada faculdade se torne legisladora, dependendo do interesse em questão. Nas palavras de Deleuze:

“Com efeito, é este o sentido da Crítica da faculdade de julgar: sob as relações determinadas e condicionadas das faculdades, ela descobre o livre acordo indeterminado, incondicionado. Ora, jamais uma relação determinada de faculdades, condicionada por uma dentre elas, seria possível se não fosse primeiro tornado possível por este livre acordo incondicionado. Igualmente, a Crítica da faculdade de julgar não se atém ao ponto de vista do condicionamento tal como aparecia nas duas outras Críticas: ela nos faz entrar na Gênese.” (Deleuze 2, p.86-87)

Mas o elogio ao kantismo torna-se crítica a partir do momento em que Deleuze aponta a insuficiente expansão da perspectiva genética. Tal

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perspectiva não se deveria limitar ao sublime ou aos juízos de gosto, mas deveria chegar às condições de possibilidade da experiência real, anteriores às formas puras do espaço e do tempo, as quais também deveriam ser objeto de uma gênese. É o que Deleuze procura fazer no capítulo de Différence et répetition, intitulado La synthèse assimétrique du sensible.

Se assumirmos um ponto de vista deleuziano neste caso, poderíamos dizer que Kant é tão mais repreensível, quanto mais já havia conceituado o elemento que poderia ter permitido um aprofundamento da perspectiva genética. Tal elemento é justamente a intensidade, que aparece na Crítica da razão pura como uma das antecipações da percepção. A parte intitulada “Antecipações da percepção” se insere na Analítica dos princípios, segundo livro da Lógica transcendental. Antes que a percepção se configure como intuição, que se refere a grandezas extensivas, conforme Kant afirma nos Axiomas da intuição, há uma antecipação da percepção que se refere “à síntese da produção da quantidade de uma sensação a partir do seu início” (Kant 6, B 208). Antes de referir a sensação a um objeto, a sensibilidade é afetada por ele e registra, por assim dizer, uma grandeza intensiva que corresponde ao grau ou intensidade dessa afecção. O princípio das antecipações da percepção é enunciada por Kant da seguinte maneira: “em todos os fenômenos o real, que é objeto de sensação, tem uma grandeza intensiva, isto é, um grau” (Kant 6, B 207). A sensação não comporta grandeza extensiva porque não é uma representação objetiva, como a intuição, mas apenas subjetiva, referindo-se à afecção. A quantidade da sensação se produz, assim, a partir de um grau zero, equivalente à ausência de sensação ou afecção.

Para Deleuze, no entanto, a intensidade não se reduz a uma antecipação da percepção, mas é ela que engendra tanto os esquemas como extensio, a grandeza extensiva como extenso, a “qualitas como matéria ocupante do extenso e” o “quale como designação de objeto” (Deleuze

1, p.370; orig. p.298). Deleuze chama esse desdobramento de “estética das intensidades” (Deleuze 1, p.390; orig. p.315), que corresponde a um movimento de atualização das Idéias, entendidas como “multiplicidades virtuais” (Idem ibidem). É o que se pode depreender do trecho a seguir:

“Como é a Idéia determinada a encarnar-se em qualidades diferenciadas, em extensos diferenciados? Que é que determina as relações que coexistem na Idéia a se diferenciarem em qualidades e extensos? A resposta é dada precisamente pelas quantidades intensivas. O determinante no processo de atualização é a intensidade. É a intensidade que dramatiza. É ela que se exprime imediatamente nos dinamismos espaço-temporais de base e que determina uma relação diferencial, ‘indistinta’ na Idéia, a encarnar-se numa qualidade distinta e num extenso distinguido”. (Deleuze 1, p.391-392; orig. p.316)

Os dinamismos espaço-temporais virão a constituir um dos elementos mais importantes na nova teoria da individuação que, em Mille plateaux, delineia um dos aspectos da teoria das multiplicidades. Com Guattari, Deleuze procura conceituar um tipo de individuação, anterior à formação de sujeitos e objetos, que seria a individuação por hecceidade.

Esta teoria da individuação prolifera referências à literatura, à música, indicando que a produção de indivíduos, de acontecimentos não deriva apenas do plano de imanência da Natureza, mas preside a construção dos planos de composição de outras maneiras de pensar que não a filosófica. Deleuze e Guattari mencionam as hecceidades produzidas por Virgínia Woolf, D.H. Lawrence, William Faulkner, Michel Tournier, Charlotte Brontë, Kleist, Hölderlin, Proust, no campo da literatura. Mas também se referem à música de Ravel, Debussy, Chopin, Wagner, Schummann e Bethoven, a partir das análises que Pierre Boulez, maestro, compositor

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e teórico da música, apresenta em seu Par volonté et par hasard, além de apontarem o trabalho de John Cage (cf. Deleuze & Guattari 4, plateau 10, passim). Assim, aquilo que poderíamos chamar de uma ontologia do devir apenas se concretiza aliando-se a uma estética das hecceidades. Ambas as noções, devir e hecceidade, transitam livremente de uma teoria da arte para uma teoria das multiplicidades, substituto de uma teoria do ser. A composição entre hecceidades se faz segundo o modo do devir, que toma o lugar da mimese na teoria da arte, e de um ser idêntico a si mesmo na teoria das multiplicidades.

A definição de hecceidade aparece no décimo platô, Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível, num trecho intitulado Lembranças de uma hecceidade. Entretanto, alguns elementos desta definição já são antecipados em trechos anteriores, como nas Lembranças de um teólogo. Neste trecho, Deleuze e Guattari afirmam que “um grau, uma intensidade é um indivíduo, Hecceidade, que se compõe com outros graus, outras intensidades para formar um outro indivíduo” (Deleuze & Guatari 4, p.310). Há, neste ponto, uma assimilação entre hecceidades e a noção de formas acidentais, que se distinguem tanto de formas essenciais imutáveis, quanto dos sujeitos constituídos a partir destas. As formas acidentais podem ser consideradas como hecceidades ou intensidades porque comportam graus, “são suscetíveis de mais e de menos” (Deleuze & Guattari 4, p.309). Deleuze e Guattari explicam que

“um grau de calor é um calor perfeitamente individuado que não se confunde com a substância ou o sujeito que a recebe. Um grau de calor pode se compor com um grau de branco, ou com outro grau de calor, para formar uma terceira individualidade única que não se confunde com aquela do sujeito”. (Deleuze & Guattari 4, p.309)

Com as indicações disponíveis até agora, já se pode adiantar que, à pergunta: “o que é a individualidade de um dia, de uma estação, ou de um acontecimento?” (Deleuze & Guattari 4, p.309-310), os autores responderão que esta se faz por hecceidade, que ela configura uma intensidade. Agora, veremos que, se o termo hecceidade denota que os autores buscaram elementos em Duns Scoto (cf. Deleuze & Guattari 4, p.318, nota de rodapé 24) para compor sua teoria da individualidade, a definição deste termo nos levará de volta à leitura deleuziana de Espinosa.

As hecceidades designam a singularidade dos acontecimentos. Assim, por exemplo, as estações, horas, datas são hecceidades porque são dotadas de “uma individualidade perfeita à qual não falta nada”, mesmo que não possamos defini-las nem como coisas nem como sujeitos. Sua individualidade consiste numa determinada “relação de movimento e de repouso entre moléculas ou partículas” que implica num determinado “poder de afetar e de ser afetado” (Deleuze & Guattari 4, p.318). Em todas as ocasiões em que Deleuze procura definir o que seria um indivíduo para Espinosa (cf. Deleuze & Guattari 4, p.314 e 318), utiliza essas mesmas expressões, o que atesta o transporte direto de noções colhidas da sua compreensão do espinosismo para uma teoria da individualidade, elaborada em colaboração com Guattari, que fornece as bases para uma teoria da arte concomitante que compreende a produção artística como produção de intensidades, de diferenças atuantes na sensação (o que Deleuze e Guattari chamam de afectos e perceptos).

Este tipo de individualidade, como vimos, vale também para temperaturas, que são graus de calor, para nuances ou intensidades de uma cor, resumindo, para grandezas intensivas de modo geral. Tais intensidades podem “se compor em latitude” constituindo “um novo indivíduo, como num corpo que tem frio aqui e calor ali segundo sua longitude”; ou ainda, podem consolidar-se num mesmo indivíduo como graus de qualidades

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diferentes, “como em certas atmosferas brancas de um verão quente”, em que uma determinada temperatura se compõe com uma nuance de branco. Charlotte Brontë, por exemplo, descreve tudo “em termos de vento”, tanto “as pessoas”, seus “rostos”, quanto “os amores” (Deleuze & Guattari 4, p.319). As próprias palavras se contaminam de uma certa qualidade eólica. Como se cada indivíduo fosse um tipo diferente de vento, com velocidade, umidade e temperatura próprias.

O caráter ocasional ou circunstancial que se depreende da descrição dessas individualidades não deve induzir a considerá-las como circunscritas ao instantâneo e nem como mero pano de fundo para os sujeitos, objetos e formas em geral. Uma hecceidade “não é de modo algum uma individualidade pelo instante, que se oporia àquela das permanências e das durações” (Deleuze & Guattari 4, p.319). Não se trata de um mesmo tempo mensurável que é mais curto ou mais longo conforme o tipo de individuação considerada. Ao contrário, cada tipo de individuação implica uma temporalidade diferente. Utilizando a terminologia desenvolvida em Logique du sens, o tempo dos acontecimentos puros, independentemente de sua efetuação num estado de coisas, ou seja, a temporalidade em questão numa individuação de tipo hecceidade, é chamada de aiônica (cf. Deleuze & Guattari 4, p.320), remetendo a um tempo liberado da tarefa de medir o movimento e da submissão estrita à sucessão. No entanto, não são apenas ressonâncias estóicas que se fazem presentes nesta concepção do tempo. Podemos apontar, embora Deleuze e Guattari não o façam em Mille plateux, para uma vizinhança de Aion com relação à eternidade espinosana, na medida em que se trata de uma temporalidade que não pode ser remetida à duração e nem, consequentemente, à sucessão. Como que aludindo à idéia proustiana, aparentemente paradoxal, de um instante de eternidade, instante em que, através da memória involuntária, pode-se ter acesso ao que Proust chama de puras essências, e que poderíamos igualmente chamar de ser do sensível ou intensidades.

O título do artigo mencionava a passagem de uma física do intensivo uma estética do intensivo, aludindo a uma possível compreensão da capacidade de produção humana em arte, ou seja, exprimindo novas maneiras de pensar, de sentir e de perceber, como parte intensiva ou grau da potência produtiva da Natureza. Uma tal estética uniria os dois sentidos que o termo tem assumido na história da filosofia, referindo-se tanto às condições transcendentais (e também genéticas) da sensibilidade, quanto aos juízos a respeito do que lhe apraz ou transtorna, juízos que exprimiriam afectos. Isto incluiria a criação de conceitos que possam corresponder às diferentes maneiras que as variadas formas artísticas modulam nossa capacidade de ser afetados. Tal unificação da estética seria possível porque as intensidades são aquilo que se antecipa à própria percepção e, portanto a engendra – elas são (o que se nos antepõe e configura para nós qualidades que circunscrevem objetos ou objetificações – além de ser também o que é produzido pelas obras de arte). As artes, como um dos modos do pensar, atacam-nos com problemas sensíveis, suscitando, fazendo nascer novas formas de perceber e de sentir. Se à filosofia pertence a tarefa de pensar, com conceitos, o impensável – ou o que não pode ser pensado segundo um modelo previamente estabelecido (notadamente o da recognição) – à arte cabe engendrar uma sensibilidade tampouco conformada a um papel já dado, que amplie os limites do corpo e se acompanhando de uma expansão correspondente do pensamento4.

REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:

1. DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro, Graal, 1988. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Edição original Différence et répétition, Paris, PUF, 1968.

2. _________. A ideia de gênese na estética de Kant. In: A ilha deserta. São Paulo, Iluminuras, 2006, pp. 79-97. Tradução de Cíntia Vieira da Silva.

3. _________. Spinoza et le problème de l’expression, Paris, Minuit, 1968.

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4. _________ & GUATTARI, F. Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980.5. KANT. Crítica da razão pura. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

Tradução de Manuela Pinto dos Santos.6. MENGUE, Philippe, Gilles Deleuze ou le système du multiple, Paris, Kimé, 1994.

FRom THE PHySICS oF THE INTENSIvE To AN AESTHETICS oF INTENSIvE: DELEUzE AND THE SINgULAR ESSENCE IN SPINozA

Abstratct: The notion of intensity is extremely important for Deleuzian thought, being present not only on the elaboration of his philosophy of difference, but also on his readings of the philosophers which are dear to him, specially on his reconstruction of Spinozism. Deleuze conceives Spinoza’s singular essence in intensive terms. Considering these aspects, this paper seeks to gather elements to show the importance of the notion of intensity to the Deleuzian project of unifying the two senses of aesthetics and the role of Spinozist conceptions for the Deleuzian enterprise. These notes state indirectly another theme: the possibility of elaborating a spinozist Aesthetics, that is Aesthetics attentive to its bodily anchorage. Keywords: Spinoza, Deleuze, Aesthetics, Intensity, Body.

NoTAS:

1. Sob o risco de excesso de didatismo, e de explicar algo que talvez o leitor já tenha compreendido, explicito o ponto em que o livro de Zourabichvili serve de inspiração a este artigo. Sabe-se que a palavra “física” tem sido utilizada para designar as investigações em torno da matéria, o estudo dos corpos. Se o autor fala em uma física do pensamento, é para dar ênfase à inserção das ideias, como modos do pensamento, na natureza. As ideias, como integrantes da physis, devem constituir o objeto de uma física, compreendida como ciência das transformações, o que se faz por meio de uma retomada da noção de forma. De maneira análoga, proponho a passagem de uma física do intensivo para uma estética do intensivo, considerando que a extensão não é a única dimensão da natureza, a qual inclui igualmente um aspecto intensivo. Tal distinção, entre extenso e intenso, revela-se mais interessante do que as dualidades entre uma dimensão material e outra ideal ou imaterial, entre exterioridade e interioridade, porque mantém a unidade substancial da natureza,

evitando os embaraços em que recaem as hipóteses dualistas, ao procurarem explicar a união entre substâncias diferentes e as interações entre elas.2. Deleuze refere-se neste ponto a Eth., II, 15,prop. e dem. (Deleuze 1, p. 174, nota 3).3. Nesta página, Deleuze ressalta que Espinosa “reencontra uma longa tradição escolástica, segundo a qual modus intrinsecus = gradus = intensio.”4. Corpo e pensamento, conforme a perspectiva deleuziana, que se apropria do monismo espinosista, não são substâncias diferentes, mas aspectos ou expressões de uma mesma individualidade.

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O SIgNIfIcAdO dE SUI IURIS NA fIlOSOfIA dE SPINOzA

André dos santos campos*

Resumo: Na Modernidade filosófica, a expressão sui iuris torna-se comum nos textos políticos, em especial a partir do momento em que uma linguagem dos direitos subjectivos naturais se vai sedimentando e traduzindo uma certa perspectiva da liberdade individual. Assim, sui iuris é considerada expressão de direito designando um âmbito de autonomia ou independência individuais, uma espécie de espaço soberano de um direito pessoal. Em Spinoza, o sui iuris surge com frequência, mas só no Tratado Político atinge a sua máxima expressão, dentro do binómio sui iuris / alterius iuris, o qual é habitualmente identificado com um de autonomia / heteronomia. Tentar-se-á aqui demonstrar que o sui iuris em Spinoza passa por uma transformação radical: não só não é necessariamente incompatível com o alterius iuris (ambos representam uma graduação progressiva da liberdade), como é-lhe dada uma dimensão epistemológica que se coaduna com uma soteriologia. O sui iuris é então mais uma libertação.Palavras-chave: Spinoza, sui iuris, autonomia, liberdade, libertação.

Sempre que invoca quaisquer justificações da política ou faz aplicar uma terminologia dos fins às sociedades políticas, Spinoza, desde bem cedo, aproxima entre si as necessidades de segurança, individual ou colectiva, de uma economia de esforços sustentável, de liberdade, e de felicidade: no TIE, está englobada numa felicidade individual a formação de uma sociedade que permita partilhar com outros o bem supremo, em segurança (TIE, §§ 14-5, G II, p. 8-9); no TTP, o itinerário seguido, em especial do capítulo III ao XX, atravessa a adequação da segurança, da sustentabilidade por cooperação, e da liberdade do pensar e das suas expressões condicionadas (TTP, III, G III, p. 46-8; TTP, V, G III, p. 73-4;

* Doutor em Filosofia; Investigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.

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TTP, XVI, G III, p. 191-4; TTP, XX, G III, p. 241; no TP, a segurança e o “cultivo da mente” são postos como elementos adjuntos de um mesmo projecto político (TP, II, 15, G III, p. 281; TP, V, 2, G III, p. 295).1 Isto significa que, em geral, estas diversas justificações ou fins do social são afinal diferentes versões do tratamento político de um mesmo conceito perpassando em temática de fundo toda a filosofia de Spinoza: a liberdade. Por conseguinte, numa empresa de individuação perspectivada a partir do direito de natureza humano, a liberdade contém em si facetas de segurança, comodidade de comércio por cooperação, e felicidade. Assumir a liberdade como tema da política de Spinoza é coaduná-la com o âmbito soteriológico emergindo de todo o seu pensar. Neste sentido geral, não há grande distinção entre ética e política, na medida em que ambas acarretam uma análise das disposições complexas da reciprocidade humana com vista à liberdade.

Sustentar porém a liberdade como tema de fundo da política spinozana não é suficiente para explicitar em que consistem as suas relações com os aglomerados políticos nem qual a função destes na produção do que Spinoza entende por liberdade. Por um lado, o Estado cuja dinâmica se explana sobretudo no TP providencia decerto as condições para a fermentação da liberdade dos indivíduos que nele participam. Mas, por outro lado, convém averiguar se é este todo o escopo libertador do Estado, o de ser condição de liberdade, ou se é prolongável até poder ser considerado meio de libertação ou até elemento imprescindível da realização mesma da liberdade.2 Ou o Estado é apenas o terreno político de florescimento da liberdade individual, a estrutura onde assenta e donde pode brotar a máxima potenciação humana, ou, mais do que isso, é ainda a promoção mesma e veículo produtivo da virtude individual. Como o Estado spinozano é todo um imaginário de consenso e conflito cujo aparecimento resulta da necessidade de sedimentação do direito de natureza dos indivíduos humanos, o que aqui se questiona é se há qualquer identificação entre o

direito de natureza na política e um programa individual de liberdade, ou, por outras palavras, qual o valor político da liberdade.

O direito de natureza pode ser dito transparecer uma contextura de liberdade em especial a partir do momento em que uma referência a si do direito e uma referência a outrem do direito traduzem uma ruptura no indivíduo humano entre, respectivamente, um espaço de liberdade e um espaço de não liberdade. Esse momento dá-se sobretudo no TP, quando o binómio sui iuris / alterius iuris, já esboçado embora não aprofundado tanto no TTP como na Ética, é usado para descrever as relações consensuais e conflituais entre homens na natureza. Como tantos outros conceitos que a modernidade filosófica aplica às considerações sobre a política (este recurso não é original a Spinoza), este par sui iuris / alterius iuris é herdado do direito privado romano, transitando de instituto jurídico-privado para instituto jurídico-público até se assumir como pleno conceito político. Esta sua passagem à política justifica-se historicamente a partir das circunstâncias em que uma linguagem dos direitos designa uma característica ou faculdade humana da qual se constitua o político, isto é, quando o direito é sobretudo pessoal e revelador de poder ou arbitrariedade humanos – neste caso, os direitos (hoje ditos “subjectivos”) estão, ao jeito de Grotius e de Hobbes, na origem da política, pelo que ao espelharem quer as acções individuais quer a multiplicidade de escolhas possíveis ao homem “jurídico”, indiciam uma noção de liberdade que se confunde com ausência de constrangimento externo.3 Para que esses direitos pessoais se validem sem causalidade exterior, eles implicam então uma exclusiva referência a si do detentor do direito por oposição à necessidade de uma referência a um direito outro que não o do detentor – daí a expressão sui iuris, para os modernos, ser sobretudo sinónima de independência e autonomia, enquanto a expressão alterius iuris é, ao invés, sinónima de dependência e heteronomia. Politicamente, assinalam

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a oposição entre o exercer e o ser exercido, entre o ser cidadão e o ser servo, sendo então correlativos.

A utilidade deste binómio para a política da generalidade dos modernos aparenta derivar mais da literalidade da expressão do que propriamente do seu significado original no direito privado romano. O direito romano, como é por demais sabido, podia ser dividido em direito público (ius publicum) e direito privado (ius privatum), então confundido com o direito civil (ius civile), o qual consistia num misto de direito consuetudinário primitivo com as prescrições públicas de resolução de conflitos entre privados (costumes, leis, e proclamações de juízos de direito por autoridades públicas), e podia ser dividido por sua vez em várias disciplinas, como o direito das pessoas (ius personarum), o direito da família (ius familiae), o direito das obrigações (ius obligationarum), ou o direito das coisas (ius rerum). Dentro do ius personarum havia várias tipologias de posições de direito, as pessoas sendo qualificadas em diferentes estatutos jurídicos segundo a sua capacidade para participar em negócios jurídicos válidos e de neles produzir efeitos por actividades próprias, capacidade esta medida por um conjunto de características físicas, sociais, políticas, económicas, todas definidas pelo direito. Assim, quanto à capacidade para participar em negócios jurídicos válidos, ela era reconhecida ou negada consoante três critérios: o da liberdade política (distinguindo-se entre os livres por nascimento ou os libertos e os escravos), o da cidadania (distinguindo-se entre os cives romanos e os peregrini ou estrangeiros), e o da posição no dominium privado da família (distinguindo-se entre o que tinha controlo da domus – dominium – e os que a ele se submetiam). Só este último critério era tratado pelo par sui iuris / alterius iuris.4

Daqui várias consequências são retiráveis. Desde logo, todo o paterfamilias, sendo livre e cidadão de Roma, era também necessariamente sui iuris: a sua titulação de pessoa de direito incluía

liberdade, cidadania, e sui iuris. Por outro lado, havia condições de preenchimento do sui iuris que se não compatibilizavam com a cidadania, e vice-versa: como exemplos, uma domina (mulher viúva sem filhos, ou com filhas, ou filhos do sexo masculino ainda menores de idade) não estava submetida à patria potestas, e por isso era sui iuris, muito embora se submetesse a um tutor externo e não fosse cidadã; e a um jovem maior de idade (a partir do imperador Constantino, aos homens de vinte anos de idade era concedida uma declaração de maioridade) cujo pai vivesse ainda, podia ser outorgada a cidadania, muito embora, pela sua posição na família, estivesse ainda alterius iuris. Em suma, só na transformação moderna do par sui iuris / alterius iuris em conceitos políticos é que a cidadania, tradutora de independência e autonomia políticas, passou a ser-lhe associada, pois no direito privado romano nem o sui iuris requeria necessariamente cidadania, nem o alterius iuris excluía necessariamente cidadania.5

Nesta medida, é usual interpretar-se o emprego spinozano destas expressões como prolongamento dos significados que adquirem na Modernidade. No caso do sui iuris, enquanto conceito implantando-se na política por meio de uma linguagem do direito, é dito manifestar nas relações inter-humanas de potência as tradicionais noções gregas de autonomos ou autarkeia, isto é, a comparência de um âmbito pessoal em que o ser se afirma como princípio e fim de si mesmo ao mesmo tempo que daí exclui uma causa externa (não chega a haver necessariamente uma exclusão da causalidade, há sim uma negação de si enquanto efeito de um outro, um fechar-se à possibilidade de um outro tornar-se causal aí): daí começar por ser traduzido como “autonomia jurídica” ou “independência”.6 E enquanto correlativo, o alterius iuris é dito manifestar os significados exactamente contrários.

Mas Spinoza não se limita a copiar para os seus textos políticos

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uma expressão latina muito em voga no seu tempo que aplique às reflexões jurídico-políticas uma clássica percepção de autonomia e independência individuais, chegando pelo contrário a defini-la no TP, texto onde adquire uma preeminência tal numa produtividade política que chega a ser a expressão mais usada em toda a obra (cf. Cristofolini 10, p. 53):

“cada um […] está sui iuris na medida em que pode repelir toda a força, vingar como lhe parecer um dano que lhe é feito e, de um modo geral [absolute], na medida em que pode viver segundo o seu próprio engenho.” (Spinoza 38, TP, II, 9, G III, p. 280; trad. port. Spinoza 45, p. 84, onde se traduz sui iuris por “sob jurisdição de si próprio”)

Três critérios, alternativos os dois primeiros e cumulados ao terceiro (atente-se no absolute enunciando o terceiro, e como o segundo pressupõe uma violação do primeiro) de preenchimento do sui iuris: repelir toda a força, vingar um dano suportado, e viver segundo o engenho próprio. O primeiro parece sugerir não só a exclusão de qualquer causalidade de outrem sobre si, mas ainda uma espécie de estratégia de resistência e auto-defesa que não admite o exercício de compulsão física sobre si (isto é, ela aponta para a recusa dos dois exemplos de compulsão física que no parágrafo seguinte são denunciados cumpridores de alterius iuris, a saber, o amarrar de alguém, ou o tirar-lhe armas ou outros meios de defesa ou evasão) nem uma coacção externa determinando um comportamento ou uma operação específica. Uma tal negação de coacção externa é reminiscência presente do que Spinoza entende por coisa livre, enquanto oposta a coisa coagida:

“Diz-se livre a coisa que existe pela necessidade de apenas a sua natureza, e que por si só é determinada a agir; e necessária, ou antes, coagida, a que é determinada por outra a existir e a operar de certa e determinada maneira.” (Spinoza 38, E I, definição VII, G II, p. 46)

Para Spinoza, a liberdade é livre necessidade, e não arbitrariedade ou discricionaridade. Porém, se a natureza recortável em graus de potência, ou seja, a natureza naturada confinável, tanto é singular (causal) como particular (causada), torna-se difícil conceber a partir daqui como esta noção de liberdade possa ser aplicável às coisas individuais. Se nenhum indivíduo passa à existência ou aí opera apenas por consequência lógica e causal da sua própria essência, ele existe só enquanto necessitado numa relação com o exterior, pelo que em acto aparenta ser mais coagido do que livre. É o que se infere do exemplo da pedra fornecido por Spinoza numa sua carta a Schuller:

“Mas desçamos às coisas criadas, que são todas determinadas por causas externas a existir e a operar de certa e determinada maneira. Para que se entenda claramente, concebamos uma coisa muito simples. Por exemplo, uma pedra recebe de uma causa externa, sua impelente, uma certa quantidade de movimento, a qual depois, cessando o impulso da causa externa, continuará necessariamente a mover-se. Portanto, a permanência desta pedra em movimento é coagida, não porque necessária, mas porque deve ser definida pelo impulso da causa externa; e tal como esta pedra, deve entender-se da mesma maneira qualquer coisa singular, ainda que seja concebida composta e apta para muitas coisas, ou seja, cada coisa é determinada necessariamente por alguma causa externa a existir e a operar de certa e determinada maneira.” (Spinoza 38, Ep. LVIII, G IV, p. 266)

Como pode então um indivíduo ser qualificado de coisa livre e, por associação, de sui iuris? Um tal embaraço terá levado à distinção entre uma liberdade “absoluta” e uma liberdade “relativa”, a primeira preenchendo a definição de coisa livre da parte I da Ética e aferível só em Deus, a segunda compatibilizando a definição de coisa coagida da parte I da Ética com a vivência por conhecimento sub specie aeternitatis do sábio da parte V da

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Ética – o homem sábio seria então como que uma coisa coagida quase livre ou uma coisa livre ainda coagida (cf., quanto a esta temática de dois planos de liberdade, “absoluta” e “relativa”, Gueroult 19, p. 77-9; Wetlesen 49, p. 10-28; Yovel 50; Nadler 32, p. 230-8; e Fragoso 16). De qualquer das maneiras, não pode pertencer à potência de um homem por si só, em função da sua própria impotência de existir, a produção causal de tudo o que anule coacções externas, até porque “nenhuma coisa singular se dá na natureza das coisas sem que se dê uma outra mais potente e mais forte” (cf Spinoza 38, E IV, axioma, G II, p. 210), assim tornando-se difícil entender como cada indivíduo pode cumprir este critério do sui iuris. Excepto, é claro, que tal como se aponta uma liberdade “relativa”, se não trate aqui senão de um sui iuris “relativo”.

O segundo critério do sui iuris, o de vingar um dano suportado (damnum sibi illatum sententia vindicare), por seu turno, denota alguma estranheza quando referido a uma terminologia do direito. Por um lado, ele pressupõe um prévio dano no indivíduo suportado a partir de uma causa exterior, o que equivale a afirmar uma antecedente incapacidade de repelir uma força extrínseca danosa, isto é, ele indica um momento sui iuris só concebível como sucedendo a um momento alterius iuris. É como se um sui iuris entendido como independência estivesse dependente de uma prévia dependência. Por outro lado, há aqui a exigência de uma compulsão causal sobre o exterior que seja reactiva para satisfação própria: uma vingança (sententia vindicare pode também significar uma reivindicação perante uma autoridade exterior, caso em que seria mais sinal de dependência do que de independência; mas em resposta a danos ou injúrias suportados, é a marca da vingança). Ora, já desde a Ética,

“A vingança é o desejo que, a partir de um ódio recíproco, nos incita a fazer mal àquele que, por um afecto parecido, nos fez um dano” (Spinoza 38, E III, definição de afectos XXXVII),

Ou seja, é a prossecução de uma paixão do desejo motivada por ódio, é um afecto inserido na reciprocidade de um jogo de ódio entre entes imaginativos crendo-se semelhantes. Este consumo individual pelo ódio não é por hábito tido como concretização de independência, até porque a sua reciprocidade requer um prévio ódio do outro, e muito menos se coaduna com a noção de liberdade perceptível na parte V da Ética. Ademais, um tal ódio é como que a revelação passional de um esforço de afirmação resultante de um indignar-se perante circunstâncias específicas, indignação esta que é mais tida por constitutiva do comum num movimento sobretudo nacional de inclusão (um “nós”) e exclusão (um “eles”), e por travão atemorizante da actividade dos titulares das instituições de soberania,7 do que em rigor por independência exclusiva. Por fim, a expressão “vingar como lhe parecer” (ex suo animi sententia vindicare) parece indicar um bastar de si para a imposição de volições individuais sobre outrem, numa espécie de exercício singular de justiça privada: o sui iuris seria então um apelo passional a um tiranizar dos outros, a expressão de um conflito sem consensos em que a independência de um requereria a dependência de outros. E isto mais traduz o estado de natureza hobbesiano do que propriamente a potenciação dos indivíduos humanos na existência, que por ser constitutiva na multiplicidade da multidão não pode decorrer à custa de um decréscimo de potência de outrem.

Quanto ao terceiro critério do sui iuris, o de se viver segundo o engenho próprio, ele recupera uma noção cara à tradição humanista, a de engenho (ingenium), que em Spinoza não significa tanto um talento ou perícia destacando um intelecto dos demais (como o “engenho e a arte” camonianos), impondo-o original em supremacia, mas sim a compleição identitária de um indivíduo ou o resumo das características que o fazem único e distinto dos outros (cf. Moreau 30, p. 395-404). Viver segundo o engenho próprio significará então, se sinónimo de independência ou

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autonomia, uma generalização dos juízos de si sobre si mesmo, aplicando ao mundo a necessidade de similitude do que é tido por necessário para si.8 No fundo, acarreta um tornar-se, a si e às suas intelecções, modelo de medida da adequação de tudo o que envolve a sua experiência humana do existir, tomando essas suas características distintivas por livremente suas e ininfluenciáveis. É um absolutizar da vontade própria, concebida como só causal e não como efeito extrínseco. Daí à pretensão de que todos adoptem esse modelo de vontade vai um pequeno passo, como efeito da produtividade eficiente do conatus. Mais uma vez, tudo isto parece muito próximo do estado de natureza hobbesiano, cuja insuficência metodológica é declarada precisamente no TP, e cada vez mais afastado da individuação spinozana, em especial como esta surge a partir da Ética, devido a um obstáculo relevante: o mimetismo afectivo. Com efeito, os juízos que os homens fazem da sua própria compleição espelham com frequência características assimiladas por imitação espontânea nascida da imagem afectiva de um semelhante, pelo que o que é tido por compleição própria não é muitas vezes senão a imagem forjada pelo próprio de uma compleição alheia. Neste sentido, viver segundo o engenho próprio seria afinal viver segundo a imagem involuntária do engenho de um outro, presentificando-se mais dependência do que independência. Ademais, o esforço de adopção por outros do modelo próprio de vontade, imaginada livre de influências e determinações, tenderia ele mesmo a decorrer também por imitação de afectos, pelo que, seguindo as palavras de P.-F. Moreau,

“sendo levados a impôr a sua compleição a outrem, os homens são ao mesmo tempo conduzidos a identificarem-se, pelo menos por um certo tempo e numa certa medida, com a compleição de outrem.” (Moreau 30, p. 401)

Há aqui sempre presente uma contextura de dependência que se não consegue afastar. O sui iuris, segundo este critério, assinala a imposição

de uma específica compleição ao mundo, a qual é difícil ser concebida na exclusão definitiva de influências por compleições outras.9

Em suma, não é claro como a definição de sui iuris no TP consiga corresponder pelo direito de natureza, num âmbito político de constituição, a uma noção de independência próxima da autarkeia grega, havendo até o risco de esta ligação entre o sui iuris moderno e a autarkeia grega ser afinal um anacronismo problemático. Até porque, ao contrário de Grotius e Hobbes, para quem o sui iuris traduz esse horizonte de titulação e exercício ininfluenciados de uma personalidade de direito, Spinoza não concebe o direito de natureza individual no âmbito da história dos direitos ditos “subjectivos”, pelo que o seu sui iuris de natureza não acarreta o insulamento do indivíduo numa circunscrição pessoal de actividade e potência, não sendo suficiente para cindir os indivíduos uns dos outros numa autarkeia aferível ontologicamente. Nenhum dos critérios elencados do seu sui iuris consegue afinal elidir por completo uma necessidade de dependência exterior, uma comunhão que pode até ser modelada numa prática de obediência. Como a liberdade humana da parte V da Ética acarreta uma vivência por géneros adequados do conhecer, e em geral a obediência, mesmo no TP (obsequium), parece produzir-se sobretudo por paixões e imagens, há aqui uma tensão conceptual que permanece em aberto: a definição de sui iuris não exclui necessariamente a dependência e parece chegar a admitir obediência, a qual por sua vez aparenta por vezes relacionar-se mais com a servidão do que com uma concepção gnoseológica da liberdade humana. Como então se poderá, ora distinguir o sui iuris do alterius iuris, ora reaproximar o sui iuris de uma perspectiva jurídica da liberdade humana?

No seguimento do parágrafo 9 do capítulo II do TP, no qual Spinoza elencara os critérios definitórios do sui iuris e do alterius iuris, surge a necessidade de particularizar a máxima extensão dessas

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expressões. O parágrafo seguinte, o décimo, distingue entre quatro tipos alternativos de alterius iuris, os dois primeiros no âmbito da compulsão física, os dois segundos no âmbito da passionalidade do medo e da esperança, e num certo sentido começa por explicitar o como do surgimento imaginativo do político. O parágrafo 11, por seu turno, enquanto no anterior se pormenorizara o alterius iuris, tenta agora pormenorizar o que fora dito acerca do sui iuris:

“a mente está totalmente sui iuris quando pode usar rectamente da razão. Mais ainda, uma vez que a potência humana deve ser avaliada não tanto pela robustez do corpo quanto pela fortaleza da mente, segue-se que estão maximamente sui iuris aqueles que maximamente se distinguem pela razão e que maximamente são por ela conduzidos; e por isso chamo totalmente livre ao homem na medida em que ele é conduzido pela razão, visto que assim ele é determinado a agir por causas que só pela sua natureza se podem entender adequadamente, se bem que seja por elas necessariamente determinado a agir.” (Spinoza 38, TP, II, 11, G III, p. 280; trad. port. Spinoza 45, p. 85, onde se traduz sui iuris por “sob a sua própria jurisdição”)

Esta passagem um pouco longa esconde várias asserções permitindo destrinçar um significado coerente do sui iuris spinozano. Desde logo, nunca terá sido tão notório em Spinoza um desvio de incidência, no tratamento do direito de natureza político, de uma perspectiva corporal de constituição para uma anímica: “a potência humana deve ser avaliada não tanto pela robustez do corpo quanto pela fortaleza da mente”. Daqui se não pode inferir, porém, a presença de uma violação momentânea da identidade individual corpo-mente, como se a mente se autonomizasse do corpo do qual é ideia no atributo pensamento num projecto igual e paralelo de conquista de liberdade. No homem existente, não há mais liberdade

da alma face ao corpo, nem vice-versa. O que está aqui em distinção, ao invés, é a perspectiva pela qual é eficazmente mensurada ou avaliada (aestimanda) uma maior ou menor expressividade no homem da potência de Deus. Por outras palavras, o sui iuris é posto sobretudo como noção qualificativa da mente humana em exercício de conhecimento do que propriamente como modelo explicativo da extensão corporal das actividades humanas: na política, a liberdade do direito de natureza envolve-se mais por uma psicologia do que por uma física. É esta mudança de perspectiva metodológica de um atributo para outro na avaliação da potência humana que permite a Spinoza recuperar uma noção de direito e associá-la a um âmbito epistemológico: daí a segunda asserção delineável nesta passagem, a de que há uma correspondência próxima entre o sui iuris e um recto uso da razão. O sui iuris transforma-se então em conceito jurídico cuja efectivação na política é disciplinada pelo entendimento.

Ora, a epistemologia em Spinoza é ela mesma graduada em distintos géneros – imaginação, razão, e ciência intuitiva (na Ética) –, num itinerário progressivo da adequação das ideias. Logo, se o sui iuris (e esta será a terceira asserção relevante a considerar) está intimamente associado a um género intermédio do conhecer, a razão, ele pode por sua vez ser tido também como de qualificação graduada, dentro da razão e para lá da razão: daí dizer-se estarem “maximamente” (maxime) sui iuris os que “maximamente” (maxime) se conduzem e distinguem pela razão. Se há quem mais ou menos se conduza pela razão, ou até por um género mais perfeito de conhecimento adequado, também haverá quem mais ou menos esteja sui iuris. Soma-se a isto, em quarto lugar, que o homem conduzindo-se pela razão é chamado de maneira explícita alguém “totalmente livre” (liberum omnino), isto é, há liberdade humana onde há razão. Como está mais sui iuris quem mais se guia pela razão, estabelece-se por fim que o que aproxima o sui iuris de uma concepção spinozana de liberdade é a

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submissão de ambos, sui iuris e liberdade, a uma avaliação positiva do conhecimento: ambos conectam-se na medida em que conseguem remontar a uma adequação epistemológica.

E o que é afinal conduzir-se pela razão?: é ser “determinado a agir por causas que só pela sua natureza se podem entender adequadamente, se bem que seja por elas necessariamente determinado a agir”. Esta é a descrição do sui iuris como grau de avaliação da potência humana e marco jurídico da liberdade. Em sequência, é também o cumprimento da definição spinozana de virtude:

“Por virtude e potência entendo o mesmo, isto é […], a virtude, enquanto se refere ao homem, é a própria essência, ou natureza, do homem, enquanto tem poder de fazer algo que possa ser entendido por apenas as leis da sua própria natureza.” (Spinoza 38, E IV, definição VIII, G II, p. 210)

Fazer algo que se compreenda por apenas a natureza própria. Esta confusão, na virtude ou maior potência, entre efectivação e compreensão não é nova, ela recupera a noção spinozana de causalidade adequada:

“Chamo causa adequada àquela cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente pela mesma.” (Spinoza 38, E III, definição I, G II, p. 139)

Associam-se dois termos de campos habitualmente tidos por distintos: a causalidade traduz a eficiência da produtividade em produção, a adequação introduz a natureza da ideia existente considerada nela mesma sem necessidade de referências a um ideato10 – toda a causalidade na perspectiva do entendimento. Se de potência se trata, isto é, da causalidade do existir, em correspondência com géneros do conhecer, a virtude, a liberdade, o sui iuris, todos serão mensuráveis nos indivíduos pela adequação da sua causalidade, num devir activo em detrimento de um estar passivo.

Contudo, ser activo, isto é, causar em si ou fora de si o que pode ser conhecido clara e distintamente por apenas a sua própria natureza, se exclui a passionalidade por esta depender de engendramentos mutilados ou confusos do conhecer, da imaginação, já não exclui a presença de um outro. E isto por vários motivos. Por um primeiro, nota-se como a acção (que não a mera actividade) pode tornar-se completa quando o efeito se dá num indivíduo outro que não o causal, pelo que, não sendo absolutamente necessária a presença de um outro para se dizer que há acção (pois pode também tornar-se completa no próprio indivíduo causal), também não é necessária a sua exclusão. Por um segundo, salienta-se que mesmo o mais sábio dos homens existe em acto com um corpo, que respira, come, dorme, defeca, move-se, e vê: quando o sábio, por exemplo, olha para o Sol, conhece a eternidade singular de todos os elementos desse processo de causalidade, mas os olhos continuam afectados pela perspectiva única com que recebem os raios solares, directamente ou reflectidos na água11. Logo, até o mais activo dos homens tem uma existência pela qual recebe algo dos outros. E por um terceiro, por mais activo que seja um indivíduo, ele é sempre coisa natural, grau da causalidade de si de Deus, e portanto, tal como a sua essência se não basta para existir, também não para se manter na existência, carecendo sempre dessa potência de existir de Deus que nele se expressa igualmente graduada, na forma de um outro. Por conseguinte, ser activo não é uma vivência de exclusividade ou independência, é um tornar-se causal na compreensão da vera natureza da causalidade em que se intervém, sobretudo da perspectiva da sua eternidade. É saber-se grau da causalidade de Deus no remontar único a si que caracteriza a causa sui divina. Por outras palavras, é um compreender-se imanente na sua própria causalidade.

No fundo, o que está aqui em averiguação é a concepção por cada um da imanência da potência de Deus em si, sobretudo da sua eternidade. A causa adequada não exclui o outro, mas é causa que reconhece o

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outro como exigência da sua própria natureza, descobre na sua própria natureza a causa (divina) da sua condição momentânea de efeito.12 A causa inadequada, por sua vez, também não exclui o outro, mas mutila-se ao pô-lo como pura causa, não percebendo o que há de imanente na sua própria potência individual, assim expressando-a apenas por acidente, referindo-a tão só à transitividade de uma potência extrínseca, ou seja, inadequadamente. Em suma, a virtude, a acção, a liberdade, o sui iuris, não anulam a relação com os demais indivíduos (nem o poderiam fazer sem aniquilar o próprio indivíduo, enquanto ser de relações em relações extrínsecas e de integração), mas sobrepõem-se numa similitude de significados que conectam causalidade e conhecimento da imanência dessa causalidade – o indivíduo compreende-se participando da causalidade mesma que o chega a tornar efeito.13

Tudo isto significa, retornando ao sui iuris, que da mesma maneira com que há graus do conhecer, parece haver também graus de sui iuris. Ora a imaginação, o primeiro género de conhecimento, formando-se por imagens de coisas, remete sempre para um ideato de natureza inalcançável, e portanto é inadequada e mutilada, parcial por traduzir só transitividade e não imanência por transitividade. Não obstante, as ideias da imaginação não são falsas por si mesmas, mas apenas enquanto tomam por verdadeira a inalcançável remissão extrínseca que tentam operar – enquanto ideias forjadas, elas têm existência na eternidade dos atributos de Deus, e portanto há nelas algo de positivo, de verdadeiro no que são em si. A imaginação é um género confuso do conhecer, mas é ainda um processo do conhecer e não um dinamismo vazio do erro num mar de desconhecimento. Quando as suas imagens revelam inadequadamente uma relação extrínseca que é na realidade verdadeira (a imagem transmite por acidente a ideia do ideato), conforme ao seu ideato, elas como que vislumbram de uma perspectiva coarctada o decurso da produtividade

de Deus. E em rigor, não é outra coisa o que sucede com a constituição do político por operações da imaginação: as paixões podem chegar a produzir uma comunhão acidental dos seres, por cooperação inter-humana que permita “repelir toda a força” e “vingar um dano suportado”, tidos por critérios de sui iuris. Logo, tal como há uma produtividade por sucedâneos imaginários de algo verdadeiro e adequado, conforme à razão embora não por ela produzido, também haverá no binómio sui iuris / alterius iuris uma graduação em que o inadequado possa chegar a transparecer e a conformar-se ao adequado. Se o alterius iuris é graduado (e todo o parágrafo 10 do capítulo II do TP parece resumir quatro tipos regressivos de sujeição ao direito de outrem, do mais coarctante ao menos coarctante) tal como o sui iuris, e as operações passionais de medo e esperança assinalam um alterius iuris capaz de produzir o comum no qual nasce o direito individual e no qual a razão encontra uma espécie de eternidade na potência de Deus, então os tipos afectivos de alterius iuris, se não surgem por um uso da razão, podem ser-lhe conformes e por ela ratificados. Por outras palavras, a simultaneidade metodológica do homem e do inter-humano pela multidão, produzindo-se por submissões cruzadas, faz através do alterius iuris um mínimo de sui iuris.

Por conseguinte, há graus de alterius iuris, nomeadamente os que envolvem medo e esperança como afectos constitutivos do político, compatíveis com o sui iuris – o binómio sui iuris / alterius iuris não é afinal de correlação, é sim acumulável. Tal como a imaginação é um género mutilado do conhecer mas ainda género do conhecer, também algum alterius iuris é condição jurídica mutilada de um sui iuris. Um mesmo indivíduo pode ser dito estar produzindo o seu direito submetendo-se ao direito de outrem, assim estando mais ou menos alterius iuris num parco grau de sui iuris.14 Já desde o TTP, a obediência não é o marco cumpridor da liberdade, mas não é também a negação da liberdade:

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“o mais escravo é aquele que se deixa assim arrastar pelo prazer e é incapaz de ver ou fazer seja o que for que lhe seja útil […]. Quanto à acção a mando de alguém, quer dizer, a obediência, ela retira de certo modo a liberdade, mas não torna automaticamente um homem escravo, pois só o móbil da acção a tanto pode levar. Se o fim da acção não é a utilidade de quem a pratica, mas daquele que a ordena, então o que a pratica é escravo e inútil a si próprio; porém, […], onde a lei suprema é a salvação de todo o povo e não daquele que manda, quem obedece em tudo ao soberano não deve dizer-se escravo e inútil a si mesmo, mas apenas súbdito.” (Spinoza 38, TTP, XVI, G III, pp. 194-5 ; trad port. Spinoza 44, p. 331)

Ao actuar alterius iuris em seu próprio interesse, para se fazer homem de direito, o obediente participa de uma comunhão (embora frágil) e faz seu um mínimo de liberdade.

Spinoza afasta-se assim, em certa medida, da tese de La Boétie segundo a qual toda a obediência voluntária é uma denegação de liberdade, mesmo que interesse ao bem-estar ou à sobrevivência do obediente. Para este autor francês, a servidão é a mais disseminada das condições políticas dos homens, mas é como que um “desnaturar” humano, não é uma consequência inevitável do ser existente dos homens em comunidade, pelo contrário, ela surge por vontade do obediente que, tendo já nascido numa comunidade de obedientes, em plena servidão, se conforma por força do hábito ou costume ao mando de outrem (cf. La Boétie 22, p. 23-4 e 29). É através de um acordar para a maliciosidade da inércia desse hábito que os homens podem sair da servidão, resistir à tentação do mando, e recuperar a liberdade presente na origem da sua condição humana. E mesmo que, por acidente ou por circunstâncias históricas específicas, venha a ser necessário um sacrifício da liberdade própria para promoção do bem-estar, individual ou geral, haverá então

nessa servidão voluntária por interesse uma perda ou sacrifício de liberdade, jamais um meio de libertação ou um grau mínimo de liberdade (La Boétie 22, p. 9-17). Ao invés, em Spinoza, a simultaneidade da multidão e do homem jurídico, através de cooperações por cruzamento de submissões à vontade imaginada do outro, faz com que o direito de cada um (ponto de aferição da sua liberdade) nasça só pela contribuição para o nascimento do direito de um outro, potenciando-se na potência do outro, a qual é realidade causal quando surte efeitos num obediente. Logo, estar num direito de outrem não é sacrifício de um direito de si, é sim um possível passo constitutivo do próprio direito de natureza individual. Ao não ser errónea alguma compatibilidade entre o sui iuris e experiências de heteronomia, não mais é possível tomar o sui iuris spinozano no sentido de autonomia ou independência15, pois o homem não prescreve sozinho as suas próprias normas de viver (autonomos) mas concebe a sua natureza como exigindo a feitura com outros ou sob outros das suas próprias normas de viver.

Isto não significa que a “vontade de obedecer” seja uma necessidade imperativa da liberdade ou assinale uma sua completude nos indivíduos. A obediência (obsequium) no TP é “a vontade constante de executar aquilo que, pelo decreto comum da cidade, deve ser feito” (Spinoza 38, TP, V, 4, G III, p. 296; trad. port. Spinoza 45, p. 113), e é ela que permite a obtenção da paz, a qual não é “ausência de guerra, mas virtude que nasce da fortaleza de ânimo” (Spinoza 38, TP, V, 4, G III, p. 296; trad. port. Spinoza 45, p. 113), virtude tida já antes como condição de sui iuris pela sua racionalidade (cf. Spinoza 38, TP, II, 11, G III, p. 280)16. A obediência voluntária é o requisito para a existência de um direito de natureza individual no homem todo passional, que se não compreende ou conduz pela razão ou por géneros mais elevados de conhecimento. Nele há apenas um direito de si na medida em que se ponha num direito de outrem – ele relanceia no

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seu alterius iuris a representação de um estado conforme a um sui iuris. É que os graus de sui iuris aumentam na progressão efectiva dos géneros do conhecer, realizando-se tanto mais não quando há mera conformidade à razão, mas um seu efectivo cumprimento. Neste caso, o direito de natureza individual é uma realidade depurada da afectividade do alterius iuris, não havendo obediência por medo ou esperança, mas uma comunhão no e com o outro motivada pela compreensão da maior potência e verdade do que seja comum. Onde os homens assim se guiem não há necessidade de obediência ou de Estado, de prescrições de mando ou mesmo de política, eles formam uma comunidade de sábios e emergem “acima da lei” (cf. Spinoza 38, Ep. XIX, G IV, p. 93). Estes homens já nada têm de servidão nem se inter-relacionam com outros homens movidos por paixões. Como “o homem esmagado pelos afectos não é sui iuris” (Spinoza 38, E IV, prefácio, G II, p. 205), cada um destes homens é um homem livre (homo liber), e, portanto, indivíduo sui iuris sem obediência. Mas a ausência de submissão afectiva não acarreta um encerrar-se em si de uma autonomia que se basta para completar um processo causal. Esta comunidade de homens livres, aliás, só funciona nas relações entre homens de razão que mutuamente se necessitam, e em rigor só num plano secundário pertence ao âmbito jurídico-político. Na experiência humana, os ignaros coexistem com os homens de razão e mesmo com os sábios, pelo que o direito de natureza de todos tem por necessidade uma dimensão política, caso contrário estaria sempre à beira da utopia irrealizável. Por conseguinte, o sui iuris, em geral, não exclui a heteronomia, mas gradua-a segundo o conhecimento que dela se tem: enquanto o homem passional se imagina livre por ausentar de si efeitos provindo de outrem, não sendo tal coisa concebível na sua própria particularidade humana, o homem racional compreende-se livre na sua própria heteronomia, e portanto sabe-se heterónomo daquelas coisas necessárias à sua afirmação própria, podendo assim tornar-se heterónomo

só até ao ponto exigido pela sua natureza mesma.Conclui-se por fim que o sui iuris em Spinoza parece ser objecto

de uma reconstrução mesmo diante dos novos significados adquiridos na Modernidade. Aquele que fora um instituto de direito privado romano obtivera, em especial com os contratualismos seiscentistas, uma dimensão pública de gozo e exercício não constrangidos de direitos individuais. Spinoza recupera esta terminologia num horizonte jurídico-político, mas despe-a de funções de exclusão para a tornar medida da condição epistemológica dos participantes das multidões – um qualificativo do grau de compreensão da inclusão natural entre indivíduos. O sui iuris atravessa com Spinoza o jurídico, o político, e o epistemológico, faz-se conceito filosófico de sistema com consistência metafísica, e impõe um valor jurídico à liberdade definida desde as primeiras considerações sobre Deus na Ética. É neste seguimento que, graduado e tentando traduzir a liberdade de Deus modalizada nos homens, o sui iuris acaba por não ser sinónimo de liberdade, mas sim de libertação.17 É por esta circunscrição jurídica da libertação que o próprio direito de natureza revela um tácito cariz soteriológico da filosofia de Spinoza, permitindo ademais desvendar que não há uma liberdade “absoluta” divina contrastando com uma liberdade “relativa” humana, mas tão só a liberdade natural infinita auto-produzindo-se por graus singulares, todos inseridos nesse projecto que, da sua perspectiva, é de libertação.

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THE mEANINg oF sui iuris IN SPINozA’S PHILoSoPHy

Abstract: In modern political philosophy, it is common usage to designate as sui iuris a sort of personal freedom not subjected to external influences amidst a still emerging language of natural rights. Sui iuris is then a sovereign space of individual autonomy under the expression of a right. Spinoza also refers to sui iuris quite often, but mostly in his Political Treatise, through the pair sui iuris – alterius iuris, which is usually translated as a pair of autonomy-heteronomy. This paper will try to demonstrate that the sui iuris in Spinoza goes through a radical transformation: not only is it not totally incompatible with alterius iuris (both are a sort of gradual progression of liberty), but it also has an epistemological dimension close to a context of personal salvation. Sui iuris is more a liberation than a liberty.Keywords: Spinoza, sui-iuris, autonomy, liberty, liberation.

NoTAS:

1. Ao longo do texto, seguir-se-ão as habituais abreviaturas das obras de Spinoza: TIE para o Tratado da reforma do entendimento; E para a Ética; TTP para o Tratado Teológico-político; TP para o Tratado Político; Ep. Para a Correspondência; e G para a edição Gebhardt das obras completas de Spinoza (Gebhardt,42).2. V. explicitada esta tríplice alternativa em H. W. Blom, “Los afectos del gobierno” (Blom 6).3. Para Hobbes, aliás, o direito da individual person chega a ser definido como «the liberty each man hath, to use his own power, as he will himself» (Hobbes 21, p. 116).4. Cf. Gaio, Institutiones, I, 48-55 (Gaio 17, p. 35-44).5. São portanto muito incompletas as afirmações que reduzem o sui iuris romano à independência do paterfamilias cidadão de Roma (como se encontram em autores como J. Blanco-Echauri (Blanco-Echauri 4) e R. Ciccarelli (Ciccarelli 9, p. 37-40)).6. Já há muito que a não dependência doméstica do sui iuris romano é tida em Spinoza como independência política: v., por exemplo, a tradução inglesa

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de R. H. M. Elwes das obras de Spinoza (Elwes 39). É também assim, por “independência”, que A. Menzel (Menzel 28), A. Matheron (juridiquemente indépendante) (Matheron 26, p. 297-8), e W. Montag (legally independent) (Montag 29, p. 83), traduzem o sui iuris. Outros traduzem-no por “autonomia” (cf. Mugnier-Pollet 31, p. 287; Tosel 46, p. 284; Domínguez 42 (autonomía jurídica); Peña Echevarría 35, p. 3-4; Cristofolini 43).7. Quanto à possibilidade de um papel constitutivo de comunhão pela indignação, v. TP, VI, 1, G III, p. 297; TP, III, 9, G III, p. 288; e E III, proposição 22, escólio, G II, p. 157 (cf. Matheron 27; Bove 7, p. 291-301; Lazzeri 24, p. 272-284).8. «e por conseguinte é pelo supremo direito de natureza que cada um julga o que é bom e o que é mau, e atende à sua utilidade pelo seu próprio engenho» (Spinoza 38, E IV, proposição 37, escólio II, G II, p. 237). E: «Cada um julga pelo seu próprio engenho o que seja bom» (Spinoza 38, E IV, proposição 70, demonstração, G II, p. 262).9. Foi seguindo este critério que I. Berlin acabou por inserir Spinoza não numa tradição liberal daquilo a que chamou de “liberdade negativa” (ausência de interferências externas nas acções humanas), mas sim numa autoritária de “liberdade positiva”: «The ‘positive’ sense of the word liberty derives from the wish on the part of the individual to be his own master. I wish my life and decisions to depend on myself, not on external forces of whatever kind.» (Berlin 3, p. 203). D. West, na defesa de um liberalismo de Spinoza, veio sustentar que a liberdade “positiva” de Spinoza enriquecia, mais do que perigava, a liberdade “negativa” (cf. West 48, p. 284-296), tendo sido sujeito a curta refutação por I. Berlin (Berlin 2). Desde então, várias têm sido as recuperações da concepção de liberdade em Spinoza enquanto híbrido destas noções “positiva” e “negativa” de liberdade (v. Blom 5, p. 214-5; Den Uyl / Warner 12, p. 310-1; Chaui 8, p. 168-9; Smith 37, p. 242, nota 81; Walther 47; Prokhovnik 36, p. 202-9). Porém, em rigor, nem o indivíduo spinozano consegue preencher por completo a definição de coisa livre da parte I da Ética, que exclui determinações externas, nem o viver pelo engenho próprio acarreta necessariamente uma auto-realização exclusiva, um being one’s own master

without others, assim sendo difícil inserir em pleno este indivíduo quer numa tradição de liberdade “negativa”, quer numa “positiva”. Dir-se-ia portanto que as simples noções de liberty from (“negativa”) e liberty to (“positiva”), usadas por I. Berlin para distinguir doutrinas da liberdade, não têm lugar, uma e outra, nas discussões acerca do valor jurídico-político da liberdade em Spinoza.10. É esta ausência de referências extrínsecas que permite distinguir entre adequação e verdade, a primeira pondo a ideia mesma intrínseca, a segunda conformando a ideia a um ideato extrínseco.11. São provenientes da Ética estes exemplos do Sol e da sua reflexão na água (cf. Spinoza 38, E II, proposição 35 escólio, G II, p. 117; E IV, proposição1, escólio, G II, p. 211).12. Note-se como “conduzir-se pela razão” é dito (cf. Spinoza 38, TP, II, 11, G III, p. 280) consistir em ser-se determinado a agir por causas, mas não que estas só possam ser intrínsecas e não extrínsecas, elas têm é de ser entendidas adequadamente só pela natureza do determinado.13. P. Cristofolini (cf. Cristofolini 10, p. 53-4) começara por identificar dois sentidos distintos no emprego da expressão sui iuris no TP, ora significando autonomia ou capacidade de auto-defesa, ora significando condução individual pela razão. Porém, sustenta bem haver um só significado do sui iuris no TP, a condução pela razão completando e explicitando o que fora entendido por liberdade individual e auto-defesa, ou, nas suas próprias palavras, entendendo esta liberdade individual como autónoma, a “seconda accezione assorbe la precedente e ne fa una propria subordinata” (Cristofolini 10, p. 54).14. Atente-se na seguinte afirmação: «da mesma forma que cada cidadão ou cada homem no estado natural, assim também a cidade está tanto menos sui iuris quanto maior é o motivo que tem para temer» (Spinoza 38, TP, II, 9, G III, p. 288; trad. port. Spinoza 45, p. 98). Spinoza não sustenta aqui o que seria mais expectável, que quanto maior o temor de um homem, maior a sua condição alterius iuris, em especial contrastando com um afecto de esperança. O que aqui se defende, ao invés, é que quanto maior o temor de um homem, menor a sua condição sui iuris, o temor sendo colocado em paralelo a um diminuto sui iuris.

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15. Parece ser este também o sentido seguido por D. Den Uyl quando rejeita uma “kantian autonomy in Spinoza” (Den Uyl 11). Em geral, é difícil encontrar uma tradução satisfatória do binómio sui iuris / alterius iuris. Mesmo aquelas que se afastam da autonomia e da independência revelam por seu turno alguma incompatibilidade com os significados assumidos pelo binómio em Spinoza. A tradição comentarística anglo-saxónica, por exemplo, parece preferir a tradução do sui iuris por “being one’s own master” (v. Duff 13, p. 321; Harris 20, p. 196; Curley 40; Shirley 41), expressão que muito bem recupera o original significado romano de dominus (master) doméstico no sui iuris, mas que, aplicada a uma dimensão epistemológica como o faz Spinoza, obriga a pensar a “self-mastery” nas relações entre razão e imaginação, assim relembrando uma concepção estóica da força da razão no refrear das paixões que não é possível encontrar em Spinoza. D. Pires Aurélio, por sua vez, que na sua tradução do TTP faz variar o sui iuris entre o anglo-saxónico “juridicamente senhor de si próprio” (Spinoza 44, p. 373), a independência (“não depender juridicamente de si próprio”) (Spinoza 44, p. 373) e a autonomia jurídicas (Spinoza 44, p. 386), vertendo ainda o alterius iuris em “estar sujeito ao direito alheio” (Spinoza 44, p. 443, nota 4), herda na sua tradução do TP a influência italiana de P. Cristofolini quanto ao alterius iuris (“sotto altrui giurisdizione”; cf. Spinoza 43), e o binómio passa a “estar sob jurisdição de si próprio” / “estar sob jurisdição de outrem”. Ora a palavra “jurisdição” (iurisdictio) remonta ao ius na sua modalidade clássica do direito romano, enquanto fórmula de identificação constitutiva de um bem para os homens pronunciada por um árbitro legitimado – o ius romano é então um dictum, uma jurisdição, um estabelecimento estruturado por uma autoridade da exigência de conformidade a um modelo específico. D. Pires Aurélio chega a reconhecer (Spinoza 45, p. 213-4, nota 13) a “jurisdição” como uma «infidelidade» textual, embora necessária para salvaguardar uma fidelidade sistemática: ao ser definido o direito pela potência, diz, elimina-se qualquer distinção ontológica entre o ius e a iurisdictio, todo o direito sendo afinal “objectivo” para ser real. Porém, deve contrapôr-se: se a “jurisdição” aponta tradicional e etimologicamente para a publicidade autoritária de um

ius e não tanto para um factum, ela continua a parecer mais uma designação pública de potestas do que uma individual de potentia. Ora o sui iuris na Modernidade está já associado aos direitos ditos “subjectivos”, circunstância que a “jurisdição” não permite entrever, e em Spinoza ele não designa uma dinâmica do poder nem uma faculdade ou liberdade exclusiva dos direitos dos homens: o sui iuris é sobretudo um qualificativo do direito de natureza individual, isto é, a condição jurídica da objectividade do direito de natureza de um indivíduo – direito com tanto de “objectivo” (leis inscritivas da sua natureza) quanto de “subjectivo” (potência de cada indivíduo). Uma aplicação do sui iuris ao poder estruturado em comum cairá sobretudo na analogia. De qualquer das maneiras, não parece haver tradução “fiel” do sui iuris que não caia num anacronismo: a solução mais viável (embora não ainda satisfatória) reduz-se simplesmente à não tradução.16. Quanto à paz como exigência da razão, ideia já presente em Grotius e Hobbes, diz Spinoza que “a razão ensina absolutamente a procurar a paz” (ratio omnino docet pacem quaerere) (Spinoza 38, TP, III, 6, G III, p. 286; trad. port. Spinoza 45, p. 86).17. São vários os autores que defendem também a liberdade dos homens em Spinoza mais como “libertação”, embora sem referências ao sui iuris (cf. Lacroix 23, p. 12; Negri 33, p. 156-166; Negri 34, p. 163-180; Goyard-Fabre 18, p. 255; Martínez 25, p. 103-122; Aragüés 1, p. 79-94; Fernández Garcia 14, p. 73-112; Ferreira 15, p. 157-9.

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RAcIONAlISMO E A PINTURA EM “O OlhO E O ESPíRITO”

Valéria loturco*

Resumo: Em O olho e o espírito (L’oeil et l’esprit), Maurice Merleau-Ponty dialoga com o Grande Racionalismo, principalmente, com Descartes, critica as pretensões ingênuas da ciência do começo do século XX, de reproduzir fenômenos em laboratório, e rende tributo à pintura, essa forma de expressar que mostra à filosofia seu próprio ponto de partida: o vivente no mundo, que conjuga os verbos “eu vejo” com o “eu posso”. Somos, ao mesmo tempo, vidente e visível e nos deslocamos, mesmo que com o olhar; outrossim tocamos e somos tocados num entrelaçamento que forma o quiasma do sensível. E para construir sua ontologia, Merleau-Ponty discorda de todo ponto de vista de sobrevôo, que transforma as coisas em objetos a serem analisados por sujeitos, e valoriza a atividade do pintor que se funde com a pintura ao usar seu corpo para pintar, pois que fornece elementos para sua filosofia em que o vidente não se diferencia do visível, o sujeito do objeto, o eu do mundo. E nesse uso da pintura para expressar sua filosofia, Merleau-Ponty ganha como adepto Gilles Deleuze, crítico da fenomenologia, mas não desse mundo em fusão promovido por suas filosofias e pela pintura.Palavras-chave: vidente, visível, quiasma, pintura, ontologia.

1) merleau-Ponty: crítica à ciência e a certo cartesianismo

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) escreve seu texto derradeiro O olho e o espírito (L’oeil et l’esprit) no verão de 1960, numa linguagem poética, recusando-se a expressar-se por meio de um discurso técnico, embora não menos rigorosa. Sua interrogação se volta para o corpo humano e sua inexplicável animação, sua carne1, sobre sua relação muda consigo próprio, com os outros, com o mundo e que passa primordialmente pela

* Doutora em Filosofia pela USP. [Este texto foi originalmente apresentado em seminário durante reunião do Grupo Espinosano - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH].

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questão da visão. Indagações que a ciência não consegue responder. Isso porque “a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las” (Merleau-Ponty 16, p.85), trata-as como “objetos em geral”, recusa-se ao contato, preferindo um pensamento de sobrevôo. Ela cria modelos para que melhor se apliquem a suas técnicas e se distancia do mundo. Merleau-Ponty não se interessa em falar sobre o mundo, ele quer fazer falar o mundo. Ele reclama de uma ciência em que “pensar é ensaiar, operar” e que efetua um controle experimental onde só intervêm fenômenos altamente “trabalhados”. Segundo Serge Valdinoci (24, p.27), exemplo desse tipo de fenômeno “trabalhado” é um acelerador de partículas que, submetido a condições energéticas suficientes, acaba por engendrar partículas, que faz com que “o contexto experimental” seja soberano e haja um “reino da engenharia generalizada”. E acrescenta: são “farrapos do real idealizado tecnologicamente”. Dessa maneira, na concepção merleau-pontiana (16, p.86), é “como se tudo o que foi ou é nunca houvesse sido senão para entrar no laboratório”, é “dizer que o mundo é, por definição nominal, o objeto X das nossas operações”, levando ao absoluto a situação de conhecimento do sábio. Conforme Merleau-Ponty, é prática comum na ciência experimentar em toda parte um mesmo modelo bem sucedido numa ordem de problemas, como é o caso dos “gradientes”. De acordo com Valdinoci, o gradiente mede as taxas de variação de uma grandeza física em função do espaço e do tempo, valendo não somente em embriologia e na biologia, como aponta Merleau-Ponty, mas também na teoria elétrica, na meteorologia etc, além de ser o número e a função matemática que substitui à “ordem ou totalidade” dos Clássicos. A ciência constrói-se sobre modelos artificiais que se encaixam em determinadas situações, ignorando o que não se adapta.

Há também uma filosofia das ciências de prática construtiva, autônoma e cujo pensamento “se reduz ao conjunto das técnicas de tomada ou de captação que ele inventa” (Merleau-Ponty 16, p.85). Segundo Marilena Chaui, a crítica de Merleau-Ponty tem um duplo alvo:

“o objetivismo espontâneo do cientista que, mesmo construindo o objeto do conhecimento, mantém o postulado do naturalismo realista, e o objetivismo tematizado pelo filósofo da ciência, que só consegue afastar o postulado do cientista recorrendo ao formalismo extremo” (Chaui 2, p.213).

Conforme ela, a verdade e o sentido dos fatos do cientista, por um lado, estão nos próprios fatos tidos como realidades em-si, e a verdade e o sentido do filósofo da ciência, por outro lado, estão em sua tarefa de interpretação do trabalho científico, valendo-se do artificialismo, construtivismo e autonomia da prática científica. O artificialismo operatório substitui e anula o verdadeiro e o falso e o homem ao conceber o mundo como algo a ser manipulado assim também concebe a si próprio. Chaui (2, p.213) os compara: “enquanto o cientista julga que o objeto é uma realidade em si e que os modelos são instrumentos de acesso ao real, o filósofo da ciência (particularmente se crítico da metafísica e vago herdeiro das filosofias transcendentais) afirma que o objeto foi posto pelos procedimentos científicos”. O que se perde com tais construções em “operações cegas” é o “mundo bruto ou existente”, a opacidade do mundo, sobre o qual a ciência é construída e que não mais o reconhece. É certo, porém, que Merleau-Ponty admite que a ciência clássica (galileano-newtoniana, do século XVII, segundo Valdinoci), buscou para suas operações um fundamento transcendente (divino) ou transcendental na tentativa de lidar com o mundo opaco. Conforme ele, “assim, a ciência clássica é operatória sem cair no positivismo” (Valdinoci 24, p.26).

Na realidade Merleau-Ponty está aqui contrapondo, em outros termos, o que ele chama de grande racionalismo e pequeno racionalismo, exposto no texto Em toda e em nenhuma parte (Partout et nulle part). Segundo ele, o pequeno racionalismo é

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“aquele professado ou discutido por volta de 1900 e que consistia na Explicação do Ser pela ciência. Supunha uma imensa ciência já feita nas coisas a que a ciência efetiva viria reunir-se no dia de seu acabamento, sem nos deixar coisa alguma para perguntar, pois toda questão sensata teria recebido resposta”. “É o fóssil de um grande racionalismo – o do século XVII, rico de uma viva ontologia”, “momento privilegiado em que o conhecimento da natureza e a metafísica acreditaram encontrar um fundamento comum. Cria a ciência da natureza sem, contudo, tomar o objeto da ciência como cânone da ontologia. Admite que uma filosofia sobrepasse a ciência, sem ser sua rival. O objeto de ciência é um aspecto ou um grau do Ser; justifica-se em seu lugar e talvez seja, até mesmo por ele que aprendemos a conhecer o poder da razão. Mas este poder não se esgota no objeto científico” (Merleau-Ponty 17, p. 226-227).

Para Merleau-Ponty, há um primado da percepção e é necessário se situar num âmbito mais primordial, perdido pelo idealismo e pela ciência com suas construções. É preciso se colocar num “há” prévio2 que é o “solo do mundo sensível e do mundo lavrado tais como são em nossa vida, para nosso corpo”. Esse corpo nada tem a ver com o “corpo possível”, tratado tal qual “uma máquina de informação”, como o faz a ideologia cibernética. A proposta primordial de Merleau-Ponty é pensar esse solo sensível para “esse corpo atual que digo meu”. E além de meu corpo, há os outros corpos. Não corpos entendidos como “congêneres” como a zoologia classifica os animais em sua historia natural, mas corpos que se entrelaçam, que se freqüentam ou se assediam, “com quem eu assedio um só Ser atual, presente”. Então, o corpo surge como horizonte para a percepção de si próprio, do outro corpo e do mundo, todos entrelaçados num único Ser; trata-se, pois, do corpo em situação. Merleau-Ponty não é contra a ciência, pois, para ele, se destituída do artificialismo e da manipulação, a exemplo

do grande racionalismo, “nesta historicidade primordial, o pensamento alegre e improvisador da ciência aprenderá a insistir nas próprias coisas e em si mesmo, tornará a ser filosofia ...” (Merleau-Ponty 16, p.86).

Merleau-Ponty nos propõe uma interrogação filosófica como recomeço radical que implica o abandono dos dualismos cartesianos que, segundo Chaui (2, p.160), impediu “um pensamento ancorado na união entre a alma e o corpo e na relação originária do sujeito e do mundo”. Trata-se, pois, de romper com “os erros gêmeos e rivais do idealismo e do realismo, do intelectualismo e do empirismo, passando a interrogar os fenômenos e a experiência depois de haver renunciado à ficção da reflexão como coincidência entre pensar e ser” (Chaui 2, p.160), ou seja, rejeitar toda essa herança filosófica deixada pelo cartesianismo.

Esse retorno ao fenômeno opõe-se diretamente ao idealismo de Descartes e à ciência de pensamento operatório e construtivista que só pensa por assimilação, transformando tudo em pensamento. Como vimos, o “pensamento de sobrevôo”, do “objeto em geral” quer controlar a si mesmo e estender seu domínio à realidade exterior que lhe é heterogênea. E, para forjar essa situação, tal pensamento representa a realidade, transforma-a em idéia. Foi a dicotomia sujeito-objeto cartesiana que validou essa cisão consciência-mundo: o pensamento torna-se representativo. Segundo Michel Foucault (14, p.93; orig. p.92), a partir de Descartes, o pensamento passa a se representar a si mesmo. “As representações não se enraízam num mundo do qual tomariam emprestado seu sentido; abrem-se por si mesmas para o espaço que lhes é próprio e cuja nervura interna dá lugar ao sentido”. De acordo com Chaui (3, pp.XI e X), é essa cisão que funda os dois enganos complementares que, na concepção merleau-pontiana, constituem o “humanismo”3: o subjetivismo filosófico e o objetivismo científico. Assim procedeu todo o pensamento ocidental. Conforme ela, “o pensamento do sobrevôo na filosofia converte o mundo em representação

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do mundo. O pensamento do sobrevôo na ciência converte a ciência num resultado aparente de” “acontecimentos que pertencem à esfera dos objetos naturais”. São “pensamentos do sobrevôo”, do “objeto em geral”, não-fundantes, com origem comum na separação sujeito-objeto, sendo que toda tentativa de união resulta sempre na redução de um termo ao outro. Para Merleau-Ponty (16, p.100), o segredo perdido é reencontrar “um equilíbrio entre a ciência e a filosofia, entre nossos modelos e a obscuridade do «há»”, para descobrir o “ser bruto”, sem artificialismos, pois, “o «há» reserva-se a um ser sem mistura, positivo, pleno”(Merleau-Ponty 20, p.89). Mesmo porque a ciência passou a rejeitar as restrições de campo impostas por Descartes, seus modelos não são mais deduzidos dos atributos de Deus, que dispensaram o desvio pela metafísica. “Nossa ciência e nossa filosofia são duas conseqüências fiéis e infiéis do cartesianismo, dois monstros nascidos do desmembramento dele” (Merleau-Ponty 16, p.100).

Não é por acaso que Merleau-Ponty em O olho e o espírito resolve tecer uma crítica peculiar à Dióptrica de Descartes, parte da obra cartesiana publicada em 16374 intitulada O Discurso do Método, a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria (Le Discours de la Méthode, la Dioptrique, les Météores et la Géométrie), sendo a Dióptrica, desses ensaios, o mais antigo. Neste texto, a atenção cartesiana, que em outros se dirige para o mundo, se volta para o corpo do homem e, em especial, para a visão. Descartes inicia seu discurso primeiro sobre a “luz” afirmando que de todos os nossos sentidos, dos quais dependemos para a condução de nossa vida, a visão (la vue) é a mais nobre e universal (Descartes 7, I, p.651). A Dióptrica está dividida em dez discursos sendo o primeiro consagrado à tentativa de “explicar como seus raios [da luz] entram no olho e como podem ser desviados pelos diversos corpos que encontram”. Descartes justifica que tal empreendimento não exige que explique sobre a natureza da luz, ou seja, o ser das coisas, mas que se servirá de “duas ou

três comparações” para elucidar “suas propriedades que a experiência nos faz conhecer para deduzir em seguida todas as outras que não podem ser tão facilmente observadas”(Descartes 7, I, p.653 e 654). O estudo da natureza ou do ser das coisas corresponderia a um estudo físico ou metafísico para o caso da matéria ou do espírito, mas o estudo de suas propriedades, a que se propõe Descartes, deve ser considerado propriamente científico, ou seja, matemático5. De acordo com Valdinoci (24, p.73), trata-se de uma posição anti-aristotélica, ao conduzir o estudo para as propriedades “eminentemente matematizáveis”, que segue “a ordem das razões – do «como se faz» a visão”. A crítica de Merleau-Ponty (16, p.94) se concentra no fato de que A Dióptrica não raciocina sobre a luz que vemos, mas sobre a luz que de fora entra pelos nossos olhos e comanda a visão. Isso é motivo suficiente para ele considerar que A Dióptrica se constitua um fracasso, “o breviário de um pensamento que não mais quer assediar o visível e decide reconstruí-lo segundo o modelo que dele se proporciona”.

O homem cartesiano tem um posto eminente, pois participa a um só tempo da extensão, onde tudo é mecanismo (que o permite descrevê-lo como máquina), e do pensamento. Não se trata de um homem empírico, observa Valdinoci, mas do homem inserido numa ciência universal depois da reforma das matemáticas e da formulação de um método, é uma maneira de tornar a filosofia mais límpida, exorcizar espectros, fazendo deles “ilusões ou percepções sem objeto, à margem de um mundo sem equívoco” (Merleau-Ponty 16, p.94). Segundo Foucault, a aventura de Descartes foi propor o mecanicismo como modelo teórico para certos domínios do saber como a medicina ou a fisiologia e um esforço acentuado de matematização do empírico (Cf. Foucault 14, p.71; orig. p.70). Na célebre imagem da árvore do conhecimento nos Princípios da Filosofia, a Matemática não se encontra representada, pois “como ciência da extensão, ela condiciona diretamente o conhecimento das coisas sensíveis”, e serve “essencialmente como

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paradigma da dedução rigorosa, é exercício imediato do método”(Granger, 15, p.10), cultivando-o inicialmente no domínio da ordem e da grandeza.

Então, a crítica de Merleau-Ponty contra Descartes está parcialmente justificada: a limpidez e a falta de equívocos presentes, tal qual na segunda das Regras para a direção do espírito (Regulae ad Directionem Ingenii) que afirma: “Os objetos de que nos devemos ocupar são apenas aqueles que os nossos espíritos parecem conseguir conhecer de uma maneira certa e indubitável” (Descartes 9, p.14). Merleau-Ponty é contra esse construtivismo que anula o aparecer próprio do fenômeno, transformando-o em pensamento ou idéia. De acordo com Valdinoci (24, p.72), “o equívoco é o motor do pensamento de Merleau-Ponty. Ele está na encruzilhada no plenum da carne, transação ontológica no alinhavo do mundo imanente”.

Para explicar a visão, n’A Dioptrica, Descartes imagina, comparativamente, a seguinte situação: ele descreve alguém caminhando à noite por lugares de difícil trânsito, sem iluminação, e que necessita do auxílio de uma bengala para conduzi-lo. Essa pessoa pode sentir, pela intromissão dessa bengala, os diversos objetos que encontra ao seu redor, e pode mesmo distinguir se há árvores, pedras, areia, água, erva ou lama, ou alguma coisa parecida. Descartes ressalta que esse sentimento, um pouco confuso e obscuro para quem não está acostumado, não o é para os nascidos cegos que se servem da bengala por toda sua vida. O reconhecimento para eles é tão perfeito e exato que poderia quase dizer que “vêem com as mãos” ou que a bengala é um órgão tal como um sexto sentido adquirido devido à falta de visão. Descartes propõe pensar que a luz, nos corpos nomeados luminosos, é um certo movimento ou uma ação fortemente viva, que passa por nossos olhos pela intromissão do ar e de outros corpos transparentes, comparativamente, da mesma forma em que ocorre o movimento ou a resistência dos corpos encontrados por esse cego, que passa por sua mão por intromissão de sua bengala (cf. Descartes 7, I, pp.654 a 655). Descartes utiliza a bengala como instrumento de comparação com a luz porque se baseava, equivocadamente,

na teoria corpuscular da luz cuja ação operava por contato.Merleau-Ponty (16, p.94) observa que, dessa maneira, a luz é

pensada como “uma ação por contato, tal como a bengala do cego”. A exemplo dos cegos que, para Descartes, “vêem com as mãos”, “o modelo cartesiano da visão é o tato”. “Ele nos desvencilha da ação à distância e dessa ubiqüidade que constitui toda a dificuldade da visão (e também toda a sua virtude)”. É preciso ressalvar que Descartes (cf. 7, I, nota de rodapé, p.654-655) acreditava erroneamente na propagação instantânea da luz, sem refletir sobre sua velocidade ou sequer sobre sua distância. Para ele, a luz propaga seus raios num instante desde o sol até nós, da mesma maneira que a ação empregada numa das pontas de uma bengala também passa num instante à outra, independente da distância entre elas, mesmo que desde a terra até o céu, o que indica uma propagação mecânica do movimento.

Para Merleau-Ponty, em O visível e o invisível,

“quando eu me movo, as coisas percebidas possuem um deslocamento aparente que é inversamente proporcional à sua distância – as mais próximas movem-se mais – a amplitude do deslocamento pode servir de índice à distância”. (Merleau-Ponty 20, p.211).

Enfatizando sua crítica a Descartes, ele considera

“absolutamente artificial recompor o fenômeno como o faz a óptica geométrica, construí-lo a partir do deslocamento angular na retina das imagens correspondendo a tal ou tal ponto. Ignoro essa geometria e, fenomenalmente, o que me é dado é apenas a diferença entre o que se passa a tal e tal distância, é a integral dessas diferenças e não um feixe de deslocamentos ou não-deslocamentos deste gênero; os «pontos» que a análise óptico-geométrica se «dá», são fenomenalmente não pontos, mas estruturas minúsculas, mônadas, pontos metafísicos ou transcendências” (Merleau-Ponty 20, p.211).

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Segundo Lambert Dousson (12, p.131), não se trata, em Descartes, de pensar a visão a partir de si mesma “e raciocinar sobre a luz enquanto a «vemos», mas de analisar cientificamente e dedutivamente seu funcionamento”, tendo como sua principal homologia o sentido do tocar. Nesta física cartesiana, a transmissão de movimento é por contato das partes exteriores umas às outras (partes extra partes). Com a visão concebida por Descartes, “perde-se o entrelaçamento de proximidade e de distância própria ao quiasma e à carne do visível e se anula a autonomia do ver do corpo operante e atual”, em prol de “uma sensação traduzida pelo entendimento”. Descartes constrói, pois, seu modelo inteligível da visão, ou faz uma “reconstrução” da visão, de acordo com Valdinoci (24, p.72), tomando como base “a idéia de uma ciência primeira, universal, formulada segundo a ordem da máthêsis universalis”. Conforme Foucault, para além do mecanicismo e da matematização, Descartes está inserido no contexto mais amplo de todo o saber clássico que mantém uma relação íntima como a máthêsis, entendida como ciência universal da medida e da ordem (Cf. Foucault 14, p.71; orig., p.70). A ordem é o “artifício” instituído pelo entendimento para, dentre outros, pensar a visão e a luz.

“Essa relação apresenta dois caracteres essenciais. O primeiro é que as relações entre os seres serão realmente pensadas sob a forma da ordem e da medida, mas com este desequilíbrio fundamental de se poderem sempre reduzir os problemas da medida aos da ordem. De sorte que a relação de todo conhecimento com a máthêsis se oferece como a possibilidade de estabelecer entre as coisas mesmo não-mensuráveis, uma sucessão ordenada. Nesse sentido, a análise vai adquirir bem depressa valor de método universal” (Foucault 14, p.72; orig., p.71).

O dualismo substancial, a princípio, está bem demarcado nas análises de Descartes sobre a visão. Não há um homem que seja

simultaneamente alma e corpo, mas sim a situação de uma alma posta num corpo cujas naturezas e leis são heterogêneas. Para sentir, a alma não necessita contemplar imagens que sejam enviadas por objetos até o cérebro. Descartes, porém, concede que

“para nos distanciar o menos possível das opiniões já aceitas, nós gostaríamos de admitir que os objetos que nós sentimos enviam verdadeiramente suas imagens para nosso cérebro”, todavia, “é necessário ao menos observarmos que não há imagens, nenhuma sequer, que devem em tudo se assemelhar aos objetos que elas representam: pois de outro modo, não haveria ponto de distinção entre o objeto e sua imagem; mas que basta que elas se assemelhem em poucas coisas; e mais freqüentemente, sua perfeição depende do que elas não se assemelham” (Descartes 7, IV, p.685).

Isso justifica a observação de Merleau-Ponty de que no mundo cartesiano “há a própria coisa, e fora dela há esta outra coisa, que é o raio de luz refletido, e que tem com a primeira uma correspondência regulada, dois indivíduos, portanto, ligados de fora pela causalidade. A semelhança entre a coisa e a sua imagem especular não é, para elas, senão uma denominação exterior, pertence ao pensamento” (Merleau-Ponty 16, p.94). Tanto é assim que Descartes determina mesmo a impossibilidade de uma total semelhança: “os que consideram que [as imagens] devem ter semelhança com os objetos que representam, lhes é impossível de mostrar como elas podem ser formadas por esses objetos, e recebidas pelos órgãos dos sentidos exteriores e transmitidas pelos nervos até o cérebro”(Descartes 7, IV, p.684). Segundo Merleau-Ponty (16, p.94), “um cartesiano não se vê no espelho: vê um manequim «exterior»” e dessa maneira igualmente os outros o vêem, mas que nem para si mesmo nem para os outros é uma carne. “A sua «imagem» no espelho é um efeito da mecânica das coisas;

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se ele se reconhece nela, se a acha «parecida», é seu pensamento que tece esse vínculo, a imagem especular nada é dele”.

Para demonstrar a dessemelhança entre a imagem do cérebro e os objetos, Descartes nos oferece, a título de comparação n’A Dióptrica, o exemplo dos talhos-doces (tailles-douces)6 que, com um pouco de tinta aqui e acolá sobre o papel, nos representam florestas, cidades, homens e mesmo batalhas e tempestades, não havendo nenhuma só figura que tenha propriamente semelhança. Conforme Descartes, trata-se de uma semelhança bem imperfeita, visto que numa superfície plana, em perspectiva, representam-se os círculos por ovais e não por outros círculos, quadrados por losangos e não por outros quadrados e assim todas as outras figuras, de sorte que para obter qualidade de imagem mais perfeita e melhor representar um objeto, elas devem não lhe assemelhar. Ora, observa Descartes,

“é necessário que pensemos da mesma maneira a respeito das imagens que se formam em nosso cérebro e que nós notamos que é somente questão de saber como elas possibilitam à alma sentir todas as diversas qualidades dos objetos aos quais elas se reportam e não como elas lhes têm em si semelhança” (Descartes 7, IV, pp.684 a 685).

Merleau-Ponty (16, p.95) conclui que o talho-doce “só é a «imagem» das coisas com a condição de «com elas não se parecer». Se não é por semelhança, como é então que ele age?”. Descartes (7, IV, p.684-685) “responde” a indagação merleau-pontiana: “há várias outras coisas além das imagens que podem excitar nosso pensamento a exemplo dos sinais e das palavras que não se assemelham de nenhuma maneira às coisas que elas significam”. Descartes (cf. 7, IV, nota de rodapé, p.685-686) quer, pois, substituir a noção de imagem-semelhança pela de signo que, conforme ele, melhor oferece o meio de conhecer o que significa

sem lhe assemelhar necessariamente. Na concepção merleau-pontiana, falta ao cartesianismo promiscuidade do vidente e do visível. A relação de semelhança é estabelecida pelo pensamento tornando a coisa mesma um invólucro vazio. Merleau-Ponty ressalta que

“já não há mais o poder dos ícones”; “tanto quanto os talhos-doces, aquilo que a luz traça em nossos olhos e, dali, em nosso cérebro, não se parece com o mundo visível”. Indo das coisas aos olhos e dos olhos à visão, “não mais que das coisas às mãos do cego e, das suas mãos, ao seu pensamento. A visão não é metamorfose das próprias coisas na sua visão, a dupla pertença das coisas ao grande mundo e a um pequeno mundo privado. É um pensamento que decifra estritamente sinais dados no corpo. A semelhança é o resultado da percepção e não a sua mola” (Merleau-Ponty 16, p.95).

No caso de Descartes, a pintura não é “uma operação central que contribua para definir o nosso acesso ao ser”, tal como em Merleau-Ponty (16, p.95), para quem “toda teoria da pintura é uma metafísica”. Descartes considera que ela “é um modo ou uma variante do pensamento canonicamente definido pela posse intelectual e pela evidência” (Descartes 7, VI, p.699). Significativo, para Merleau-Ponty, é que, tendo de falar de “quadros”, tome como típico o desenho em talho-doce que é apresentação do objeto pelo seu exterior ou envoltório, pela forma. Segundo Descartes (7, VI, p.700), “todas as qualidades que nós percebemos nos objetos da visão podem ser reduzidos a seis principais que são: a luz, a cor, a situação, a distância, a grandeza e a figura”. No que concerne à luz e à cor, “é necessário pensar que nossa alma é de tal natureza que a força dos movimentos, que se encontram nas partes do cérebro de onde vêm os filetes dos nervos ópticos, lhe proporciona o sentimento da luz e a maneira desses movimentos, aquele da cor” (Descartes 7, VI, p.700). Para Descartes, os

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pequenos filetes do nervo óptico se movem conforme à violência da luz, como no caso de olharmos para o sol ou uma luz muito viva, os olhos retêm, depois de um tempo e mesmo fechados, diversas cores que mudam e passam de uma para outra, o que mostra que a natureza das cores consiste na diversidade do movimento.

Merleau-Ponty observa que se Descartes tivesse examinado realmente a cor, qualidade segunda que nos proporciona uma mais profunda abertura às coisas, ele ter-se-ia se deparado com “uma universalidade” e “uma abertura-às-coisas sem conceito”, ter-se-ia indagado “como o murmúrio indeciso das cores pode apresentar-nos coisas, florestas, tempestades, enfim o mundo, e talvez a integrar a perspectiva, como caso particular num poder ontológico mais amplo” (Merleau-Ponty 16, p.96). Mas, atenta Merleau-Ponty, para o cartesianismo, cor é ornamento e o poder da pintura consiste no poder do desenho e sua relação com o espaço, conforme a projeção em perspectiva. Ele conclui que o desenho permite a Descartes pensar a extensão, pois, só se pinta coisas existentes, ou seja, extensas; o desenho é a representação da extensão. Destituída de qualquer estatuto ontológico, na concepção merleau-pontiana, a pintura, para Descartes, é um artifício que apresenta uma projeção das coisas como que na percepção comum, “que na ausência do objeto verdadeiro, faz-nos ver como se vê o objeto verdadeiro na vida, e que especialmente nos faz ver espaço onde não há” (Merleau-Ponty 16, p.96).

O quadro cartesiano é uma coisa plana que nos oferece conforme a altura e a largura sinais diacríticos da dimensão faltante: a terceira dimensão deriva das outras duas. Segundo Merleau-Ponty, a profundidade tem algo de paradoxal: “eu vejo objetos que reciprocamente se escondem, e que, portanto, não vejo por estarem um detrás do outro. Vejo-a [a profundidade], e ela não é visível, visto que ela se conta do nosso corpo às coisas, e nós estamos colados a ele” (Merleau-Ponty 16, p.96). Contudo, diz Merleau-

Ponty, esse é um falso mistério porque o que vejo é, na realidade, uma outra largura. Além disso, a perspectiva linear do Renascimento está longe de ser uma construção exata. Sempre se está aquém ou além da profundidade e as coisas nunca estão por trás da outra, não há latência ou superposição, na concepção cartesiana. Tudo que as coisas têm de positivo são pensamentos e não atributos das coisas. Somente Deus, onipresente, poderia vê-las desdobradas. “Isso a que chamo profundidade não é nada, ou é a minha participação num Ser sem restrição, e, primeiramente, no ser do espaço, para além de todo ponto de vista” (Merleau-Ponty, 16, p.97). Esse ser de duas dimensões me faz ver uma terceira, uma janela (ou um ser furado, como preferem os homens do Renascimento) que abre para o partes extra partes.

Descartes necessita da visão onipresente de Deus para oferecer a totalidade do espaço, sem profundidade. Segundo Merleau-Ponty, o talho-doce cartesiano é esse espaço sem esconderijo sustentado pela identidade do Ser, com um espaço que existe em si, é o em-si, homogêneo. Na concepção merleau-pontiana (16, p.97), Descartes primeiro idealiza o espaço7, concebe “esse ser perfeito no seu gênero, claro manejável e homogêneo, que o pensamento sobrevoa sem ponto de vista” para se “compreender que o espaço não tem três dimensões”. O erro cartesiano consiste, pois, em erigir o espaço “num ser inteiramente positivo, para além de todo ponto de vista, de toda latência, de toda profundidade, sem nenhuma espessura verdadeira”. Faltou a Descartes o âmbito da existência e de sua opacidade, o ser bruto (a profundidade). Conforme Merleau-Ponty, a projeção plana nem sempre nos faz encontrar a forma verdadeira das coisas como queria Descartes, que se encaminha ao nosso ponto de vista passado certo grau de deformação; as coisas fogem para uma distância que nenhum pensamento transpõe. “Algo no espaço escapa às nossas tentativas de sobrevôo. A verdade é que nenhum meio de expressão adquirido resolve os problemas da pintura, transforma-a em técnica” (Merleau-Ponty 16, p.98).

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Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty chama de “profundidade”, “costas” e “atrás”, “a dimensão do oculto por excelência”. Diz ele que a profundidade é necessária para que exista o ponto de onde eu vejo, que o mundo me rodeia. Ela é

“a dimensão por excelência do simultâneo”, ou seja, através dela, “as coisas coexistem cada vez mais nitidamente, deslizam umas nas outras e se integram”. Por meio dela, existe um mundo ou Ser, “é então ela que faz com que as coisas tenham carne: isto é, que oponham obstáculos à minha inspeção, uma resistência que é precisamente a sua realidade, sua «abertura», o seu totum simul. O olhar não vence a profundidade, contorna-a”. “É por uma propriedade de campo, que se realiza essa identificação de 2 vistos incompossíveis, e porque a profundidade me é aberta, porque possuo essa dimensão para aí deslocar meu olhar, aquela abertura” (Merleau-Ponty 20, nota de trabalho de novembro de 1959, p.203).

Em O visível e o invisível, o espaço parece ser entendido como o enrolamento do visível em si próprio (cf. Merleau-Ponty 20, p.136-137). Trata-se de um “ser indiviso entre nós” (Merleau-Ponty 19, p.50), como afirma em O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas (Le primat de la perception et ses consequences philosophique).

Mas há um enigma da visão em Descartes: ele não consegue estabelecê-la unicamente pelo pensamento. Não basta pensar para ver, ou seja, não há visão sem pensamento. Em As paixões da alma (Les passions de l’âme, de 1649), o próprio Descartes admite as limitações do poder da alma com respeito ao corpo. Ele (10, artigo 41, p.233) distingue duas espécies de pensamento na alma: as ações que são suas vontades e as paixões que “compreendem todas as espécies de percepções”. Destarte, “os primeiros estão absolutamente em seu poder e só indiretamente o corpo pode modificá-

los, assim como, ao contrário, os últimos dependem absolutamente das ações que os produzem, e a alma só pode modificá-los indiretamente, exceto quando ela própria é sua causa”. Além disso, Descartes reconhece que

“nem sempre é a vontade de provocar em nós algum movimento ou algum outro efeito que pode levar-nos a excitá-lo”, “como por exemplo, se quisermos olhar mais longe ou mais perto, essa vontade faz com que a pupila se dilate ou se contraia, respectivamente, mas se se pensar apenas em alargar ou contrair a pupila, em vão teremos tal vontade, pois nem por isso conseguiremos alargá-la ou contraí-la”, “já que a natureza não uniu o movimento da glândula [pineal] que serve para impelir os espíritos [animais] ao nervo óptico da maneira necessária a dilatar ou a contrair a pupila com a vontade de dilatar ou contrair, mas antes com a de olhar objetos afastados ou próximos” (Descartes 10, artigo 44, p.233-234).

Da mesma maneira quando falamos, mexemos língua e lábios muito mais rapidamente ao pensarmos no significado das palavras do que nos movimentos necessários para executar tal tarefa. Na concepção cartesiana, explana Merleau-Ponty,

“a visão é um pensamento condicionado; nasce por «ocasião» daquilo que sucede no corpo, é” “excitada a pensar por ele. Não escolhe nem ser ou não ser, nem pensar isto ou aquilo”. “O pensamento da visão funciona segundo um programa e uma lei que ele não se deu; não está de posse de suas premissas; não é pensamento todo presente, todo atual: há em seu centro um mistério de passividade” (Merleau-Ponty 16, p.98).

Na análise merleau-pontiana, Descartes tem de abrir mão da primazia do pensamento puro e límpido e conceder o fato que a alma, que

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habita o corpo, pensa segundo o corpo e não segundo si própria, pois há um pacto natural que os une. Ele parece admitir parcialmente isso quando afirma que o que faz com que sintamos não é a semelhança entre a imagem em nosso cérebro e os objetos, mas sim os movimentos pelos quais ela é composta, que, agindo imediatamente contra nossa alma, “enquanto unida a nosso corpo”, são “instituídos da Natureza para lhe fazer ter tais sentimentos”(Descartes 7, IV, p.699).

Para Merleau-Ponty, contudo, a “auto-traição” de Descartes ocorre quando ele teoriza sobre o espaço, a distância exterior, sobre certas partes de nosso cérebro que se alteram para que nossa alma perceba mudanças de distância informadas por modificações nas figuras do corpo do olho, por meio de seus nervos ópticos. Admite Descartes (7, VI, p.707) que essa alteração no cérebro é instituída pela “Natureza”: “e isso acontece ordinariamente sem que nós reflitamos sobre isso; da mesma maneira que quando apertamos algum corpo com nossa mão, nós a conformamos à sua grossura e à figura desse corpo, e o sentimos por meio dela, sem que para isso seja necessário que nos pensemos em seus movimentos”. Descartes (cf. 7, VI, p.707) denomina tal situação de “Geometria natural” (Géométrie naturelle), que dá conta do conhecimento da distância que provêm da relação existente entre nossos dois olhos A mesma observada num cego que, munido com duas bengalas e ignorante do comprimento delas, pode conhecer onde está determinado ponto baseando-se no intervalo entre suas mãos e a grandeza do ângulo formado com as bengalas.

Contudo, na análise merleau-pontiana, nessas situações, o corpo tem a primazia sobre a alma:

“O corpo é para a alma seu espaço natal e a matriz de qualquer outro espaço existente. Destarte, a visão se desdobra: há a visão sobre a qual eu reflito, e não posso pensá-la de outro modo como pensamento, inspeção do

Espírito, senão juízo, leitura de sinais. E há a visão que tem lugar, pensamento honorário ou instituído, esmagado num corpo seu, cuja idéia não se pode ter senão exercendo-a, e que entre o espaço e o pensamento introduz a ordem autônoma do composto de alma e de corpo. O enigma da visão não é eliminado; ele é remetido do «Pensamento do ver» à visão em ato”(Merleau-Ponty 16, p.99).

Então, por um lado, no cartesianismo o conhecimento é constituído

pelo pensamento, por outro lado, não basta pensar para ver, há uma visão atual, que se faz “sozinha” por meio de um pensamento passivo. Descartes admite, conforme a análise merleau-pontiana (20, p.213), a esse corpo habitado por uma alma uma espécie de automatismo da visão, um certo poder ao corpo. A visão em ato cartesiana parece estar entrelaçada com o movimento dos olhos que submete o “eu penso” à expressão do “eu posso”, o que transforma Descartes quase num “fenomenólogo”. Neste caso, “não cabe mais levantar o problema das relações da alma e do corpo como de duas substâncias positivas”, e que agora “deve ser compreendido como laço do convexo e do côncavo”.

Segundo Merleau-Ponty (16, p.99), “esta visão de fato e o «há» que ela contém não transtornam, entretanto, a filosofia de Descartes”. Contudo, “sendo pensamento unido a um corpo, por definição, ela não pode ser verdadeiramente pensamento. Pode-se praticá-la, exercê-la e, por assim dizer, existi-la, mas não se pode tirar dela nada que mereça ser dito verdadeiro”, já que não se chega a concebê-la como pensamento corporal. Merleau-Ponty lembra das correspondências entre a rainha Elisabeth e Descartes em que o filósofo viu-se obrigado a explicar a maneira pela qual concebia a união da alma com o corpo e como teria ela a força de movê-lo. Na carta de 21 de maio de 1643, ele compara o movimento da alma à força da gravidade e na missiva de 28 de junho de 1643 afirma a união da

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alma e do corpo como uma mistura total em que a alma teria, de algum modo extensão, pois estaria espalhada em todas as partes do corpo sem ser divisível (Cf. Descartes 11, pp.297 a 303). Conforme Merleau-Ponty (1984, p.99), ele se vê obrigado a recorrer a Aristóteles e à Escolástica para “conceber o pensamento como corporal”, “única maneira de formular perante o entendimento a união da alma e do corpo”. No Tratado da alma, Aristóteles explica que o exercício da percepção implica a unidade do senciente e do sentido (Apud, Valdinoci 24, p.96). Entretanto, em O visível e o invisível, Merleau-Ponty presta um tributo a Descartes, pois considera que

“a idéia cartesiana do corpo humano enquanto humano não encerrado, aberto enquanto governado pelo pensamento, é, talvez, a mais profunda idéia da união da alma com o corpo. É a alma intervindo num corpo que não pertence ao em si (se fosse em si, seria fechado como um corpo animal), que só pode ser corpo e vivente – humano concluindo-se numa «visão de si» que é o pensamento.” (Merleau-Ponty 20, p.214-215)

Apesar disso, na concepção merleau-pontiana, o impasse

cartesiano não se resolve: “tudo o que se diz e se pensa da visão faz dela um pensamento”, entretanto, para

“compreender como é que vemos a situação dos objetos, não há outro recurso senão supor a alma, que sabe onde estão as partes de seu corpo capaz de transferir sua atenção a todos os pontos do espaço que estão no prolongamento de seus membros” (Merleau-Ponty 16, p.98).

Mas, contraditoriamente, no ato de ver, o cérebro apresenta movimentos sem que haja qualquer reflexão ou intervenção do pensamento. A Descartes só resta insistir nesse argumento que concebe uma noção de “sensibilidade postural” como condição para a “percepção do espaço”. Diz ele que

“não somente a alma conhece em qual local está cada parte do corpo que ela anima, a despeito de todas as outras; mas também que ela pode transferir daí sua atenção a todos os lugares contidos nas linhas retas que se pode imaginar tiradas da extremidade de cada uma dessas partes e prolongadas ao infinito” (Descartes 7, VI, p.704).

Conforme essa concepção, nosso conhecimento da situação do objeto, além de depender da direção do raio luminoso enviado em direção ao olho, subordina-se também à tomada de consciência da atitude de nossos membros e à maneira pela qual o corpo se insere no mundo que o cerca (cf. Descartes 7, VI, nota de rodapé, p.704). Segundo Valdinoci, o pensamento que tende ao infinito se “desobriga” da visão pelo corpo. Para Merleau-Ponty, todavia, somente por absurdo se submete ao entendimento puro a mistura do entendimento e do corpo. “Estes pretensos pensamentos são os emblemas do «uso da vida», as armas falantes, da união legítima sob condição de não serem tomadas como pensamentos. São os indícios de uma ordem da existência – do homem existente, do mundo existente – que não somos incumbidos de pensar” (Merleau-Ponty 16, p.99). Contudo, diz ele, essa “metafísica da profundidade” de Descartes não nos leva a terras incógnitas nem restringe o poder do pensamento porque é sustentado por uma Verdade maior, a de Deus, que é para nós insondável, puro abismo. Para Merleau-Ponty (16, p.99), “é tão inútil sondar esse abismo como pensar o espaço da alma e a profundidade do visível”.

Cabe à nossa filosofia “empreender a prospecção do mundo atual”. Segundo Merleau-Ponty, o espaço não é mais aquele descrito por Descartes n’A Dióptrica,

“rede de relações entre objetos, tal como o veria uma terceira testemunha da minha visão, ou um geômetra que a reconstrói e a sobrevoa; é um espaço contado a partir de

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mim como ponto do grau zero da espacialidade. Eu não vejo segundo o seu invólucro exterior, vivo-o por dentro, estou englobado nele” (Merleau-Ponty 16, p.100).

Merleau-Ponty contrapõe os conceitos da fenomenologia com os do cartesianismo, respectivamente:

“o mundo está em torno de mim” e não “adiante de mim”, “a luz é reencontrada como ação à distância’, e “não mais reduzida à ação de contato”, “a visão retoma o seu poder fundamental de manifestar, de mostrar mais do que a si mesma” e “a sua transcendência já não é delegada a um espírito leitor que decifre os impactos da luz-coisa sobre o cérebro”, “já não se trata de falar do espaço e da luz e sim de fazer falar o espaço e a luz que aí estão” (Merleau-Ponty 16, p.100).

Mas a questão interminável da visão se reabre: o que é profundidade ou luz, não para o espírito isolado do corpo, mas para aquele espalhado no corpo como o próprio Descartes afirmou, e para eles mesmos, profundidade e luz, que nos atravessam e nos englobam. É preciso fazê-los “falar”. Segundo Merleau-Ponty (16, p.101), esta é uma filosofia ainda virtual, ainda por fazer, ela é que anima o pintor no instante silencioso e criador em que a sua visão se torna gesto, quando, como diz Cézanne, ele “pensa com a pintura”. 2) merleau-Ponty : significação ontológica à pintura

Merleau-Ponty, dentre todos os seres da face da Terra, em O olho e o espírito, elege o pintor como aquele que melhor sabe conciliar expressivamente corpo e visão ao exercer sua atividade de pintura. O pintor, em exercício, espontaneamente conjuga o “eu vejo” com o “eu posso”.

Pintor e pintura se tornarão, pois, figuras-chave da ontologia merleau-pontiana. Mas, o que dá direito a Merleau-Ponty de emancipar a pintura e o pintor, figuras banidas da filosofia por Platão (428 ou 7-348 ou 7 a.C.) e que, desde então, esquecidas, não ocupavam o plano principal? Qual a alteração primordial da leitura merleau-pontiana em relação à platônica para conferir-lhes um estatuto central? Em A República, Platão (22, X, pp.456-472) considera o pintor um“imitador daquilo de que os outros são artífices”, um “charlatão”, que imita não a realidade, mas a aparência e tenta se passar por sábio universal, que representa, pois, não seres reais, mas fantasmas, que “não tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita, já que a imitação é uma brincadeira sem seriedade” e, portanto, “o imitador não saberá nem terá uma opinião certa acerca do que imita, no que toca à sua beleza ou fealdade”. Sendo a pintura “a arte de imitar”, o pintor “executa as suas obras longe da verdade” e “só produz mediocridades”. Decretando Platão, por fim:

“e assim teremos desde já razão para não o recebermos numa cidade que vai ser bem governada, porque desperta aquela parte da alma [a parte irracional] e a sustenta, e, fortalecendo-a, deita a perder a razão, tal como acontece num Estado, quando alguém torna poderosos os malvados e lhes entrega a soberania, ao passo que destruiu os melhores” (Platão 22, X, p.456-472, colchetes nossos).

Platão entendia a pintura como imitação e o pintor, destituído do conhecimento dos artífices que fazem coisas reais e úteis. De Platão a Merleau-Ponty, o deslocamento é radical: abandona-se o mundo das idéias e sua busca da “verdade racional” em direção ao mundo sensível, sem cair num empirismo. Contudo, banido da República “ideal” de Platão, o pintor se torna habitante “privilegiado” no mundo merleau-pontiano que valoriza o corpo e a percepção. Os olhos do pintor de Platão não suportariam a

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luminosidade plena de sol (e de conhecimento racional) fora da caverna, de onde talvez jamais saísse, destinado a ver espectros sem objeto, fantasmas projetados na parede ou mesmo, a permanecer na total escuridão sem nada ver. O mesmo pintor na “caverna” (Lascaux) de Merleau-Ponty funda uma tradição, a da pintura, unicamente por recolher outra, a saber, a percepção: ele pinta animais na parede confundidos com a fenda ou o empolamento do calcário. “Um pouco para diante, um pouco para trás, sustentados por sua massa da qual se servem habitualmente, eles [os animais] irradiam em torno dela sem jamais romperem a sua inapreensível amarra” (Merleau-Ponty 16, p.89-90, colchetes nossos). Haveria uma grande dificuldade de dizer onde está o quadro que se olha, pois não está sendo olhado como uma coisa fixa em seu lugar. “Meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser e eu vejo, segundo ele ou com ele, mais do que o vejo”. (Merleau-Ponty 16, p.89-90).

Merleau-Ponty posiciona-se na imanência do campo perceptivo, âmbito próprio da pintura. A teoria da percepção recoloca o pintor no mundo visível e restitui o corpo como expressão espontânea. Conforme ele (16, p.87), “a arte e, notadamente, a pintura, nutrem-se inocentemente nesse lençol de sentido bruto”, nesse “há prévio”, ponto de partida da percepção, em que sujeito e objeto não estão separados e sim em confusão. Para Valdinoci (24, p.34), “o lençol espesso de sentido bruto é precisamente a imanência”, envolta num paradoxo, pois ao mesmo tempo remete ao dentro e ao fora, tal qual definem Gilles Deleuze e Félix Guattari:

“Dir-se-ia que O plano de imanência é, ao mesmo tempo, o que deve ser pensado, e o que não pode ser pensado. Ele seria o não-pensado no pensamento. É a base de todos os planos, imanente a cada plano pensável que não chega a pensá-lo. É o mais íntimo no pensamento, e todavia o fora absoluto. Um fora mais longínquo que todo mundo exterior, porque ele é um dentro mais profundo que todo mundo interior: é a imanência” (Deleuze e Guattari 4, p.78; orig., p.59).

Em O visível e o invisível, mas também em O olho e o espírito, Merleau-Ponty propõe-se à tarefa de que, em filosofia, é necessário

“recomeçar tudo de novo, rejeitar os instrumentos adotados pela reflexão e pela intuição, instalar-se num local em que estas ainda não se distinguem, em experiências que não foram ainda «trabalhadas», que nos ofereçam concomitante e confusamente o «sujeito» e o «objeto», a existência e a essência, e lhe dão, portanto, os meios de redefini-los” (Merleau-Ponty 20, p.129).

Essa é a dimensão segundo a qual Van Gogh quer ir “mais longe”, ou seja, retornar a esse âmbito de imanência de sentido bruto, anterior às dicotomias sujeito e objeto. Ao pintar, o pintor inicia-se no mistério do tempo como pura inquietação. Conforme Chaui,

“tomar a experiência como iniciação ao mistério do mundo significa reconhecer que o sair de si é o entrar no mundo. A pintura revela que a experiência de pintar é experimentar o que em nós se vê quando vemos. Experiência: algo que age em nós quando agimos, como se fôssemos agidos no instante mesmo em que somos agentes. A obra de arte é a chave do enigma da experiência e do espírito e, dessa maneira, ensina à filosofia a filosofar, ensinando-lhe a reversibilidade entre atividade e passividade, que a tradição julgara opostas”. (Chaui 2, p.166-167)

De acordo com Dousson, o objetivo de Merleau-Ponty é evidenciar a função metafísica da pintura como operador principal contribuinte para a definição de nosso acesso ao ser, abrindo-se sobre uma ontologia. Para ele, a pintura efetua uma redução fenomenológica, ou antes,

“um retorno às coisas mesmas, aos fenômenos enquanto fenômenos, ao acontecimento de sua aparição, de

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maneira antepredicativa (antes de todo julgamento, toda conceitualização, toda teorização) e pré-objetiva (aquém de sua constituição em objeto de conhecimento teórico ou de matriz prática ou técnica)” (Dousson 12, p.82).

Merleau-Ponty (20, pp.137 a 138), enfatiza a renúncia feita pelo pintor “à bifurcação «consciência de ... » e o objeto”, de que “meu corpo sinergético não é objeto, que reúne um feixe de «consciência» aderente a minhas mãos, a meus olhos”, que “«minha consciência» não é a unidade sintética, incriada, centrífuga”, “mas que é sustentada pela unidade pré-reflexiva e pré-objetiva do corpo” (que será chamado de “corpo reflexivo” quando considerado espírito encarnado). Por isso, Merleau-Ponty afirma ser o pintor o único a ter direito de olhar as coisas sem nenhum dever de apreciação, pois diante dele, perdem força as palavras de ordem do conhecimento e da ação. Trata-se de um retorno silencioso ao fenômeno. O pintor se instala no meio das coisas, olha para elas e faz uma “ruminação do mundo”, destituído de qualquer técnica “a não ser a que seus olhos e suas mãos se dão, à força de ver, à força de pintar” (Merlau-Ponty 16, p.86-87). Segundo Merleau-Ponty, esse é o fundamental não só da pintura, quiçá de toda a cultura.

Em A linguagem indireta e as vozes do silêncio (Le langage indirect et les voix du silence), Merleau-Ponty explica que “o ato de pintar reúne dois aspectos”: por um lado, “há a mancha ou traço de cor que se põe em um ponto da tela”, e por outro lado, “há seu efeito no conjunto, que não se pode medir como o primeiro, pois não é quase nada, sendo, não obstante, suficiente para mudar um retrato ou uma paisagem” (Merleau-Ponty 18, p.145-146). O olho colado ao pincel, observando o pintor de muito perto, “só veria o avesso de seu trabalho”. O lado “direito” exige distanciamento e é o efeito no conjunto, em que “o pintor nos atinge através do mundo tácito das cores e das linhas, dirige-se a uma capacidade de decifração em nós informulada e que não

chegaremos a dominar senão após tê-la cegamente exercido, depois de ter gostado da obra” (Merleau-Ponty 18, p.145-146).

Uma vez, Matisse foi observado de duas maneiras distintas em pleno ato de pintar: uma, a olho nu e outra, pela lente de uma câmera de filmar, o que proporcionou dois efeitos antagônicos nos espectadores. Por meio dos olhos humanos, Matisse parecia saltar de ato a ato, ele olhava o conjunto aberto da tela iniciada e conduzia o pincel ao traçado que o chamava “para que o quadro fosse por fim o que estava em vias de se tornar. Resolveu num gesto simples o problema”. Contudo, o mesmo ato de pintar, filmado em câmera lenta, transformou-se a posteriori num número infinito de dados. Fora do tempo e visão humanos, ou seja, no tempo artificial da câmera lenta, seu pincel não parecia mais saltar, mas “aparecia a meditar, num tempo dilatado e solene, a uma iminência de princípio do mundo a tentar dez movimentos possíveis” e “a lançar-se enfim, qual relâmpago, sobre o único traçado necessário”. Contudo, “é a câmera que enumera os possíveis” (Merleau-Ponty 18, p.136); trata-se de um mundo construído que transforma a espontaneidade de um movimento em meditação, a percepção visual em pensamento.

Com o engenho da câmera lenta, o “eu vejo” e o “eu posso” fenomenológicos (que veremos adiante) tornam-se o “eu penso” cartesiano. “Tudo aconteceu no mundo humano da percepção e do gesto”, mas o artificialismo da câmera, em outra dimensão, mais lenta, nos faz crer “que a mão do pintor opera no mundo físico onde uma infinidade de opções se tornam possíveis”. As hesitações ou os possíveis gestos de Matisse registrado pela câmera, que mostram uma escolha dentre vinte condições informuladas esparsas pelo quadro, são “informuláveis para qualquer outro que não Matisse, uma vez que só se definiam e impunham pela intenção de fazer esse quadro que ainda não existia”. Longe do artificialismo do olhar “científico” da câmera, há apenas um gesto: o feito. Contudo, é preciso

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considerar que o ato de pintar pode ser tal qual a palavra em que se tateia “em torno de uma intenção de significar que não se guia por um texto que, justamente, está escrevendo”, ou seja, que é necessário atentar o ato de pintar tanto quanto “a palavra antes que seja pronunciada, contra o fundo de silêncio que sempre a envolve e sem o qual nada diria, ou desvendar ainda os fios de silêncio que a enredam” (Merleau-Ponty 18, p.146), que é uma espécie de devir. Apesar disso, o fato é que “o pintor em ação desconhece a antítese do homem e do mundo, da significação e do absurdo; do estilo e da «representação»: está demasiado ocupado em exprimir seu comércio com o mundo para poder orgulhar-se de um estilo que surge como que à sua revelia”. Pois há especificidades: “a linguagem diz, e as vozes da pintura são as vozes do silêncio” (Merleau-Ponty 18, p.152 e p.173).

O pintor usa seu corpo, que é seu ponto de partida concreto. A pintura permite a Merleau-Ponty8, a exemplo de Baruch Espinosa (1632-1677) no escólio da proposição 2, parte III da Ética, a também questionar: o que pode o corpo? Segundo Espinosa, “ninguém, na verdade, até aqui, determinou o que o corpo pode”, “pois, até aqui, ninguém, conheceu a estrutura do corpo tão acuradamente que pudesse explicar todas suas funções”. Tal como o sonâmbulo espinosano que faz coisas que em vigília não ousaria, o que revela um poder próprio ao corpo, o pintor merleau-pontiano “emprega o seu corpo”, ou melhor, tem um poder corporal de transformar o mundo em pintura, emprestando seu corpo ao mundo e “não se vê como um Espírito pudesse pintar” (Merleau-Ponty 16, p.88).

A questão cartesiana está novamente em jogo: a ação de uma alma ou mente no controle do corpo. Espinosa afirma que

“ninguém sabe de que maneira e por quais meios a Mente move o corpo, nem quantos graus de movimento pode atribuir ao corpo, nem com que rapidez pode movê-lo. Donde segue que quando os homens dizem que esta ou aquela ação

se origina da Mente, a qual tem império sobre o Corpo, não sabem o que dizem, e nada outro fazem senão confessar, por belas palavras, que ignoram a causa daquela ação sem admirar-se disso” (Espinosa 13, EIII, escólio da P2, s/pag.).

Em Espinosa, a mente ou a alma não age sobre um corpo que padece ou vice-versa, como ocorre em Descartes: eles são uma mesma coisa, pensados de maneiras diferentes, ou ainda, pertencem a atributos diferentes, a saber, pensamento e extensão. Em Merleau-Ponty, o texto O olho e o espírito nos revela um corpo que não se reduz à interioridade da consciência e nem à exterioridade de processos físicos-fisiológicos. O corpo não é sujeito nem objeto. Para compreender o que pode o corpo, para Merleau-Ponty (16, p.88), é preciso “reencontrar o corpo operante e atual”, “que não é um pedaço de espaço, um feixe de funções”, como em Descartes, “mas um entrelaçado de visão e movimento”.

Podemos atingir as coisas sem que mesmo saibamos como isso procede na “máquina nervosa”, tal como tentava especificar Descartes. Segundo Valdinoci, foi a ciência que construiu “a idéia-limite, portanto, idealizada, de uma retina imóvel receptora de fótons. Nessas condições artificiais precisas, a retina, o olho e o corpo são «pedaços de espaços»” (Valdinoci 24, p.40), são partes extra partes do Mundo, colocados no espaço do mundo objetivo ou do em si. Contudo, para Merleau-Ponty, há dois mapas: do visível (do “eu vejo”) e do “eu posso” (de meus projetos motores, de deslocamento dos olhos, do corpo), “partes totais do mesmo Ser” que revela, conforme Valdinoci, uma relação interna (partes intra partes) com a totalidade que a compreende. “Como é o caso, numa melodia, de uma série de notas com o conjunto melódico ou, em pintura, de um momento vermelho com uma mais vasta extensão de vermelho”, exemplifica ele. Meu corpo móvel faz parte do visível, por isso, posso dirigi-lo no visível. Por outro lado, só se vê aquilo que se olha. Portanto,

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há uma reciprocidade entre visão e deslocamento, entre o mapa do visível e o mapa do “eu posso”: a visão nada seria sem o movimento de meus olhos ao mesmo tempo em que meus deslocamentos nada seriam sem a precedência da visão. Segundo Chaui (2, p.241), o corpo, região do “eu posso” e não do “eu penso”, inaugura uma estrutura simbólica destruindo a oposição cartesiana do objetivo e do subjetivo “porque situa o para-si no domínio que parecia pertencer ao em-si”.

Se para Espinosa o corpo possui um poder de ser afetado, o corpo merleau-pontiano é visível e tem o poder de ver e mover-se numa sorte de entrelaçamento entre visão e movimento. O mapa do visível (do “eu vejo”) revela que tudo está ao meu alcance, pelo menos de meu olhar, o que indica um poder de meu corpo (o que meu corpo pode) e assinala o mapa do “eu posso”. Segundo Valdinoci (24, p.41), o mundo visível, aquele de minhas intenções ou projetos, formam um “quiasmo estesiológico, ou seja, fora da oposição estética de um sujeito e de um objeto”. E esse quiasmo é o “Ser”. Há a carne do corpo e a carne do mundo e em cada um deles há uma interioridade que propaga para o outro numa reversibilidade permanente, portanto, a relação corpo-mundo é estesiológica.

Tanto o corpo espinosano quanto o merleau-pontiano são móveis e dirigem-se no visível do qual eles fazem parte, sem que isso seja uma decisão do espírito que, do retiro subjetivo, decretaria alguma mudança “miraculosa” executada na extensão. Conforme Espinosa,

“tanto o decreto da Mente quanto o apetite e a determinação do Corpo são simultâneos por natureza, ou melhor, são uma só e a mesma coisa que, quando considerada sob o atributo Pensamento e por ele explicada, denominamos decreto e, quando considerada sob o atributo Extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso, chamamos determinação” (Espinosa 13, EIII, P2, escólio, s/pag.).

Segundo Merleau-Ponty (16, p.88), meu movimento é “a seqüência natural e o amadurecimento de uma visão. Uma coisa é movida, mas meu corpo se move, meu movimento se desdobra e “irradia de um si” e não de um Eu que pensa ver, pensa mover-se ou de uma alma que dirige meus movimentos. Portanto, a visão não é uma operação do pensamento que ergueria diante do espírito, tal qual um quadro, uma representação do mundo, criando um mundo da idealidade. O vidente está imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, não se apropria do que vê, o tem à distância, “só se aproxima dele pelo olhar, abre-se para o mundo”. E o pintor traz o seu corpo e faz da pintura a transubstanciação entre o corpo do pintor e o corpo das coisas. “É que – segundo Chaui (2, p.177) – a visão e o movimento são inseparáveis, embora diferentes”. “Nosso corpo é uma potência vidente e motriz que vê porque se move e se move porque vê”.

Então, o enigma se resolve num paradoxo: no fato de que meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível.

“Ele que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer no que está vendo então o «outro lado» do seu poder vidente. Ele se vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível para si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento, que só pensa o que quer que seja assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um si por confusão, por narcisismo, por inerência daquele que vê naquilo que ele vê, daquele que toca naquilo que ele toca, do senciente no sentido” (Merleau-Ponty 16, pp.88 e 89).

O corpo visível trabalha sobre si mesmo e elabora uma visão, desencadeando a longa maturação ao fim do qual e, de repente, o corpo visível verá, isto é, será vidente para si mesmo, instituirá a metamorfose do vidente e do visível. Minha visão não sobrevoa os objetos, pois tem seus vínculos e não é o ser que é todo saber. Esse primeiro paradoxo produz

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outros. Visível e móvel, meu corpo está entre as coisas, é uma delas; ele “é captado na contextura do mundo, e sua coesão é a de uma coisa”. Ou seja, formam-se novos entrelaçamentos ou quiasmas, desta vez, de meu corpo com o mundo. Contudo, como ele está na condição daquele que vê e se move, “ele mantém as coisas em círculo à volta de si”, que são

“um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas na sua carne, fazem parte da sua definição plena, e o mundo é feito do mesmo estofo do corpo. Estes deslocamentos, estas antinomias são maneiras diversas de dizer que a visão é tomada ou se faz do meio das coisas, de lá onde (...) a indivisão do senciente e do sentido persiste” (Merleau-Ponty 16, p.89).

O “Ser atual, presente”, mencionado por Merleau-Ponty (19, p.50),

é “ser indiviso entre nós” e parece traduzir a idéia de “carne do mundo” como noção última, pura imanência, em que “há uma relação do visível consigo mesmo que me atravessa e me transforma em vidente, este círculo que não faço, mas que me faz, este enrolamento do visível no visível pode atravessar e animar tanto os outros corpos como o meu”(Merleau-Ponty 20, p.136 a 137). Esses múltiplos quiasmas não fazem mais nada que um só “não no sentido da síntese, da unidade originariamente sintética, mas sempre no sentido [da] imbricação, da irradiação do ser. As coisas me tocam como eu as toco: carne do mundo – distinta da minha carne: a dupla inscrição dentro e fora” (Merleau-Ponty 20, p.235).

De acordo com Merleau-Ponty,

“há uma topografia dupla e cruzada do visível no tangível e do tangível no visível, os dois mapas são completos e, no entanto, não passíveis de superposição”. Ele explica em O visível e o invisível que “todo visível é moldado no sensível, todo ser tátil está votado de alguma maneira à visibilidade,

havendo assim, imbricação e cruzamento não apenas entre o que é tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está nele incrustado, do mesmo modo que, inversamente, este não é uma visibilidade nula, não é sem existência visual”. (Merleau-Ponty 20, p.131)

Todo o movimento de meus olhos e todo deslocamento de meu corpo ocorrem no universo do visível e por meio deles eu exploro o mundo. Inversamente, toda visão tem seu alcance no espaço tátil. Em outras palavras, “quando minha mão direita toca minha mão esquerda apalpando as coisas, pelo qual o «sujeito que toca» passa ao nível do tocado, descendo às coisas, de sorte que o tocar se faz no meio do mundo e como nelas” (Merleau-Ponty 20, p.130). Quando partindo do corpo, indago como ele se faz vidente, e quando examino a região crítica de meu corpo estesiológico, tudo se passa “como se o corpo visível permanecesse inacabado, aberto, como se a fisiologia da visão não lograsse fechar o funcionamento nervoso sobre si mesmo estando os movimentos de fixação, de convergência, na dependência do advento para o corpo de um mundo visível”; como se a visão viesse, de repente dar os meios para fazer “do visível, um vidente, e de um corpo, um espírito, ou pelo menos uma carne” (Merleau-Ponty 20, p.142).

Assim sendo, a humanidade não é produzida por efeitos de nossas articulações e a animação de nosso corpo não é junção de partes nem a descida de um espírito que incorpora como um autômato (que suporia um corpo sem interior e sem “si”), tal qual ocorre em Descartes (8, p.55 e nota 82), no Discurso do Método (Discours de la méthode), “ao supor que Deus criara uma alma racional [do homem] e que a juntara a esse corpo”, enquanto animal-máquina. É porque esse corpo se reflete, se sente que há humanidade. De um lado, o corpo é reflexivo, o que sempre foi atributo da consciência e, de outro, ele é visível, o que sempre foi atribuído ao objeto. Para Merleau-Ponty (16, p.89), “um corpo humano

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aí está quando, entre vidente e visível, entre tateante e tocado, entre um olho e outro, entre a mão e a mão, faz-se uma espécie de recruzamento, quando se acende a centelha do senciente-sensível”. Isso significa que quando a mão toca a outra é impossível se determinar quem é o sujeito e quem é o objeto, quem toca e quem é tocado.

Entretanto, a reversivilidade não é tão simples assim, ela gera um impasse. Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty afirma que a reversibilidade é, na realidade, sempre iminente e nunca se realiza de fato. “Minha mão esquerda está sempre em vias de tocar a direita no ato de tocar as coisas”, porém, nunca ocorre de fato a coincidência: “eclipsa-se no momento de produzir-se”, pois, “ou verdadeiramente minha mão direita passa para o lado do que é palpado, mas então interrompe sua apreensão do mundo – ou ela a conserva, mas então, não a toco verdadeiramente, dela apenas apalpo, com minha mão esquerda um invólucro exterior”. (Merleau-Ponty, 20, p.143)

Essa minha impotência de sobrepor exatamente um ao outro, “o palpar as coisas com minha mão direita e o palpar minha mão esquerda por essa mesma mão direita”, contudo, não é um fracasso,

“pois se tais experiências não se recobrem exatamente, se escapam no momento em que se encontram, se há entre elas uma «distância», é precisamente porque minhas duas mãos fazem parte do mesmo corpo, porque este se move no mundo”. (Merleau-Ponty, 20, p.143)

Não se trata de um “vazio ontológico, um não-ser”, pelo contrário, “está dominado pelo ser total de meu corpo e do mundo, e é o zero de pressão entre dois sólidos que faz com que ambos adiram um ao outro”. (Merleau-Ponty, 20, p.143)

Isso mostra que minha carne e a do mundo comportam zonas claras (visibilidade primeira: “a dos quale e das coisas”), mas também zonas

opacas (visibilidade segunda: “a das linhas de força e das dimensões, a carne maciça, sem uma carne sutil, o corpo momentâneo, sem um corpo glorioso”). O fato é que o corpo e suas distâncias, que participam da mesma corporeidade ou visibilidade em geral reinante entre eles, nos faz tocar aqui “no ponto mais difícil, a saber, no vínculo da carne e da idéia, do visível e da armadura interior que o vínculo manifesta e esconde” (Merleau-Ponty 20, p.144). Trata-se “das relações entre o visível e o invisível na descrição de uma idéia que não é o contrário do sensível, mas que é seu dúplice e sua profundidade” (Merleau-Ponty 20, p.144). Óbvio que não é o caso de uma distinção dualista entre visível e invisível, extensão e pensamento. O fato é que, devido ao nosso corpo reflexivo, a questão da reversibilidade se resolve, pois não existe idealidade pura “sem carne nem liberta das estruturas de horizonte”, “ela brota e se espalha nas articulações do corpo estesiológico, nos contornos das coisas sensíveis”, e “serve-se do mistério fundamental destas noções «sem equivalente»”, “adivinhadas nas junturas do mundo visível” (Merleau-Ponty 20, p.147). O autor coloca um “ponto final” no impasse ao afirmar “que a carne é uma noção última, que não é união ou composição de duas substâncias, mas pensável de per si” (Merleau-Ponty 20, p.136-137) e que “há uma relação do visível consigo mesmo que me atravessa e me transforma em vidente, este círculo que não faço, mas que me faz, este enrolamento do visível no visível pode atravessar e animar tanto os outros corpos como o meu”(Merleau-Ponty 20, p.136-137).

A descoberta do “corpo reflexivo” e observável, segundo Chaui, produz uma ambigüidade e

“leva Merleau-Ponty a mostrar que a experiência inicial do corpo consigo mesmo é uma experiência em propagação e que se repete na relação com as coisas e na relação com os outros. Ao tomar a experiência corporal como originária, Merleau-Ponty redescobre a unidade fundamental do mundo como mundo sensível” (Chauí 3, p.XI).

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O pequeno mundo privado de cada um é envolvido um pelo outro,

“constituindo, todos juntos, um Senciente em geral, diante de um Sensível em geral. Essa generalidade que faz a unidade de meu corpo se abre aos outros corpos. O aperto de mãos também é reversível, posso sentir-me tocado ao mesmo tempo em que toco. Por que não existiria a sinergia entre diferentes organismos, já que é possível no interior de cada um? Suas paisagens se cruzam, suas ações e suas paixões se ajustam exatamente: isto é possível desde que se pare de definir primordialmente o sentir pela pertença à mesma «consciência», compreendendo-o, ao contrário, como retorno sobre si no visível, aderência carnal do senciente ao sentido e do sentido ao senciente. Não se coloca aqui o problema do alter ego porquanto não sou eu que vejo, nem é ele que vê, ambos somos habitados por uma visibilidade anônima, visão geral, em virtude dessa propriedade primordial que pertence à carne de, estando aqui e agora, irradiar por toda parte e para sempre, de, sendo indivíduo, também ser dimensão universal” (Merleau-Ponty 20, p.138).

Ademais, Merleau-Ponty (cf. 20, p.139) aponta dois tipos de circularidade: 1) do palpado e do palpante bem como do visível e do vidente, em que um apreende o outro e 2) do palpante no visível e do vidente no tangível, reciprocamente. Ocorre, pois, uma propagação dessas trocas para todos os corpos pela fundamental fissão do senciente e do sensível, que, lateralmente, funda a transitividade de um corpo a outro. A conclusão desse fato de que vemos outros videntes resulta em nossa total visibilidade.

“Doravante, somos plenamente visíveis para nós mesmos, graças a outros olhos, sem depender de espelhos. “Essa lacuna onde se encontra nossos olhos, nosso dorso, é de fato preenchida, mas preenchida por um visível de que não somos titulares; por certo, para acreditarmos numa visão

que não é a nossa, é sempre inevitável e unicamente ao tesouro de nossa visão que recorremos. É próprio do visível ser a superfície de uma profundidade inesgotável: é o que torna possível sua abertura a outras visões, além da minha” (Merleau-Ponty 20, p.139).

Há, então, segundo Merleau-Ponty, um visível de segunda-potência, “essência carnal ou ícone do primeiro”. Esse estranho sistema de trocas, de reversibilidade, permite-nos vislumbrar as coisas e meu corpo feitos do mesmo estofo; assim, cumpre que a visão de meu corpo se faça de alguma maneira nelas, nas coisas, ou que a visibilidade das coisas se reforce em meu corpo tal como uma visibilidade secreta. Ou seja, de uma certa maneira, as coisas “também vêem e sentem”, não só meu corpo é reflexivo, todos os corpos e coisas também o são. Meu corpo também passa a ser uma coisa entre coisas. “Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão aí diante de nós, aí só estão porque despertam um eco em nosso corpo, porque este lhes faz acolhida”. Diz Cézanne: “a natureza está no interior” (Merleau-Ponty 16, p.89), na imanência perceptiva. As ações mais características do pintor parecem emanar das próprias coisas. “É por isso que tantos pintores disseram que as coisas olham para eles” (Merleau-Ponty 16, p.92), tal como André Marchand e Paul Klee, que, estando numa floresta, sentiam que eram as árvores que os olhavam e lhes falavam, como se o pintor fosse transpassado pelo universo, e não o contrário, ressurgindo com a pintura, respirando no Ser.

“Já não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado. Diz-se que um homem nasceu no momento em que aquilo que, no fundo do corpo materno, não passava de um visível virtual torna-se ao mesmo tempo visível para nós e para si. A visão do pintor é um nascimento continuado” (Merleau-Ponty 16, p.92).

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Merleau-Ponty indaga: como uma montanha se faz aos nossos olhos? “Luz, iluminação. Sombras, reflexos, cor, todos esses objetos de pesquisa não são inteiramente seres reais: só têm existência visual” (Merleau-Ponty 16, p.91). Então, o olhar do pintor indaga-lhes para saber como se arranjam para se fazer “alguma coisa” que nos faz ver o visível. A pergunta do pintor é aquela daquele que ignora dirigida a uma visão sábia (que tudo sabe) que se faz em nós e não o contrário. Ele explica em O visível e o invisível que o vidente está preso no que vê, portanto, numa visão narcísica, continua a ver-se a si mesmo: “há um narcisismo fundamental de toda visão”, o que explica que o vidente sofre por parte das coisas a visão que ele exerce sobre elas. Isso justifica o fato de muitos pintores sentirem-se olhado pelas coisas, como afirmamos acima, em que minha atividade se identifica com minha passividade. Há, pois, um outro sentido mais profundo do narcisismo da visão: “não ver de fora, como os outros vêem, o contorno de um corpo habitado, mas, sobretudo, ser visto por ele, existir nele, emigrar para ele”, “de sorte que vidente e visível se mutuem reciprocamente, e não mais se saiba quem vê e quem é visto”(Merleau-Ponty 20, p.135). Segundo Chaui (2, p.147),

“o narcisismo fundamental do corpo em sinergia, que se propaga entre os corpos numa reflexão intercorporal inacabada ou encarnação permanente na comunidade dos Narcisos, é a experiência da intercorporeidade como existência originária do eu e do outro”. “A leitura de O visível e o invisível nos leva a ousar a expressão: persona nacisica, um anônimo”. “Essa caracterização do corpo, ao mesmo tempo como ninguém e Narciso, é, certamente, a forma final da desconstrução do sujeito na filosofia”.

No trabalho da visão, o espelho surgiu no circuito aberto do corpo vidente ao corpo visível. Segundo Merleau-Ponty (16, p.92), “mais

completamente do que as luzes, as sombras, os reflexos, a imagem especular esboça nas coisas o trabalho de visão”. “O espelho aparece porque sou vidente visível, porque há uma reflexividade do sensível; ele traduz e reduplica”. Por conseguinte, diz Merleau-Ponty,

“graças a ele, o meu exterior se completa, tudo o que tenho de mais secreto para esse rosto, esse ser de plano fechado”. O espelho é um fantasma que impele minha carne para fora e, da mesma forma, “todo o invisível de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante, meu corpo pode comportar segmentos extraídos dos outros como minha substância se transfere para eles: o homem é espelho para o homem” (Merleau-Ponty 16, p.93).

Na concepção merleau-pontiana, é lugar comum entre os pintores refletirem sobre o espelho, porque, por meio desse «truque mecânico» tanto quanto o da perspectiva, “reconheciam a metamorfose do vidente e do visível, que é a definição da nossa carne e da vocação deles” (Merleau-Ponty 16, p.93). “Essência e existência, imaginário e real, visível e invisível, a pintura baralha todas as nossas categorias ao desdobrar o seu universo onírico de essências carnais, de semelhanças eficazes, de mudas significações” (Idem ibidem).

Merleau-Ponty recusa, pois, o significado tradicional atribuído à imagem, como cópia, decalque, uma segunda coisa e a imagem mental como um desenho desse gênero. A imagem, para ele, é o interior do exterior e vice-versa que a duplicidade do sentir possibilita, “e sem os quais nunca se compreenderão a quase-presença e visibilidade iminente que constituem todo o problema do imaginário”(16, p.90). Conforme Paul Klee, “o aspecto esquemático e fantástico da imaginação é um dado adquirido que, ao mesmo tempo, expressa grande exatidão”(Apud Partsch 21, p.54). O imaginário, em O visível e o invisível, “são «elementos»”, “isto

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é, não objetos, mas campos”, “- não é coincidência, mas deiscência que se sabe tal”(Merleau-Ponty 20, p.239). Deiscência9 é um termo emprestado da botânica para designar, ao nosso ver, a abertura do ser. Segundo Merleau-Ponty, o imaginário, por um lado, é

“o diagrama da sua vida em meu corpo, a sua polpa ou o seu avesso carnal exposto pela primeira vez a olhares” e, por outro, ele oferece ao espírito não “ocasião de repensar as relações constitutivas das coisas, mas ao olhar, para que este os espose, os vestígios da visão interior, e à visão aquilo que atapeta interiormente, a textura imaginária do real” (Merleau-Ponty16, p.90).

A filosofia, segundo Chaui, precisa prestar um tributo à arte. Como vimos, a pintura exerce um papel fundamental na teoria da percepção merleau-pontiana, pois ela celebra o enigma da visibilidade. Se o pintor empresta seu corpo ao mundo, que é transformado em pintura, seu mundo é do visível. Mobilidade e visibilidade são os entrelaçamentos do pintor e da pintura: o pintor se desloca e a pintura irradia. Merleau-Ponty afirma que “a pintura desperta e eleva à sua última potência um delírio que é a própria visão, já que ver é ter à distância, e que a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser, que de alguma maneira devem fazer-se visíveis para entrar nela” (Merleau-Ponty 16, p.91). Conforme Chaui,

“pela primeira vez na história da filosofia, graças à obra de arte, descobrimos que a reflexão não é privilégio da consciência nem essência da consciência, mas que esta recolhe uma reflexão mais antiga que a ensina a refletir: a reflexão corporal”. Ou seja, o corpo reflexiona. “Ora, o trabalho selvagem do artista revela algo mais: a reflexão corporal não é plena posse de si nem plena identidade do corpo consigo mesmo, mas inerência e confusão dele consigo mesmo e com

as coisas. Essa descoberta ensina à filosofia a impossibilidade para a consciência de realizar uma reflexão completa e de ser posse intelectual de si e do mundo. Os olhos nos fazem descobrir quando a filosofia perdeu o foco: quando falou em olho – no singular – e o designou como olho do espírito. Há os olhos . Há o olho e o espírito” (Chaui 2, p.179-180).

A pintura nos mostra que a reflexão, segundo Dousson, não é tal qual o cogito de Descartes, ou seja, está longe de ser identidade imediata e transparência a si de um espírito, mas sim de um corpo, que é o meu, num relacionamento consigo mesmo, se separando de si mesmo: “a presença é desdobramento, a possessão é desapossamento, a experiência do mesmo é experiência do outro e o acesso de si à si, simultaneamente passagem e distância de si à si” (Dousson 12, p.91).

Quatro séculos depois do Renascimento e três após Descartes, Merleau-Ponty retoma a questão da profundidade e da cor, desta vez sob a perspectiva de sua ontologia. A profundidade está sempre renovada e ainda constitui um enigma, segundo ele,

“é que eu vejo as coisas cada uma em seu lugar justamente porque elas se eclipsam umas às outras”. “É sua exterioridade conhecida no envolvimento delas e a mútua dependência delas na sua autonomia” (Merleau-Ponty 16, p.103).

Contendo todas as outras, não é mais uma dimensão, deixa, pois, de ser terceira, quando muito a primeira.

“A profundidade é mais propriamente a experiência da reversibilidade das dimensões, de uma “localidade” global onde tudo está a um só tempo, cuja altura, largura distância são abstratas, de uma voluminosidade que se exprime com uma palavra dizendo que uma coisa lá está. Quando Cézanne procura a profundidade, é essa deflagração do Ser que ele

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procura, e ela está em todos os modos do espaço, e na forma igualmente” (Merleau-Ponty 16, p.103).

Conforme Merleau-Ponty (20, p.135), no plano ontológico, enquanto “a película superficial do visível” é apenas para minha visão e para meu corpo, a profundidade, que está sob essa superfície, contém meu corpo e, por decorrência, também minha visão. Na superfície, “meu corpo como coisa visível está contido no grande espetáculo, mas”, na profundidade, “meu corpo vidente subtende esse corpo visível e todos os visíveis com ele. Há recíproca inserção e entrelaçamento de um no outro” (Merleau-Ponty 16, p.103).

Na pintura, a partir da profundidade, o problema generaliza-se para além da distância, da linha e da forma, e alcança o da cor. Longe de se tratar das cores, «simulacro das cores da natureza»; o que interessa aqui é a dimensão de cor, aquela que por si mesma cria identidades, diferenças, uma contextura, uma materialidade (cf. Merleau-Ponty 16, p.103). Num de seus diários, o de número 9260, Klee, após uma viagem a Tunis, em 1914, descreve assim a cor: “Fico possuído pela cor; não preciso ir à procura dela. Ela possui-me para sempre, sei-o. Eis o sentido do momento feliz: cor e eu somos um. Eu sou pintor”(Apud Partsch 21, p.20).

Merleau-Ponty alerta que não há receita do visível, muito menos a cor sozinha e tampouco o espaço. O retorno merleau-pontiano à cor, desprezada por Descartes, aproxima «do coração das coisas». Por conseguinte, não se trata de acrescentar uma dimensão às duas dimensões da tela, de criar uma ilusão parecida com a visão empírica. Não se sabe como a cor, a profundidade, a largura e a altura pintadas germinam e pousam sobre a tela.

“A visão do pintor não é mais um olhar sobre um exterior, relação «físico-óptica» somente com o mundo. O mundo não

está mais diante dele por representação: antes, o pintor é que nasce nas coisas como concentração e vinda a si do visível”, ele é “«espetáculo de nada», rebentando a «pele das coisas» para mostrar como as coisas se fazem coisas e o mundo se faz mundo”. Henri Michaux e Klee observavam que as cores “parecem lentamente nascidas na tela, emanadas de um fundo primordial”; sem ser construção artifício, relação a um espaço e mundo de fora, a arte “é verdadeiramente «grito inarticulado»”(Merleau-Ponty 16, p.104).

Numa conferência em janeiro de 1924, Klee revela que, em primeiro lugar, a cor é qualidade, em segundo, é densidade (pois além de intensidade, tem outrossim um grau de claridade), em terceiro, é medida, porque apresenta seus limites, sua amplitude, sua extensão, seu lado mensurável. “O claro-escuro é, primeiro, densidade e, depois, na sua extensão ou nos seus limites, é medida. Mas a linha é apenas medida” (Apud Partsch 21, p.60). E Cézanne define: “a cor é o «lugar onde o nosso cérebro e o universo se juntam»” (Apud Merleau-Ponty 16, p.103).

Para Gilles Deleuze, tanto quanto para Merleau-Ponty, uma tela de pintura nunca é branca. O pintor se funde com sua pintura. Não há modelos nem cópias, sujeitos nem objetos, mas sim a fusão pintor-pintura num processo em que a tela jamais é branca, pois está povoada por imagens atuais e virtuais. Já não se pode mais perguntar quem é que pinta ou qual é o objeto do pintor. Embora crítico da fenomenologia, Deleuze parece aderir a essa sui generis ontologia da pintura merleau-pontiana:

“É um erro crer que a pintura está diante de uma superfície branca. A crença figurativa decorre desse erro: com efeito, se a pintura estivesse diante de uma superfície branca, poderia reproduzir um objeto exterior funcionando como modelo. Mas não é assim. O pintor tem muitas coisas na cabeça ou em torno dele, ou no atelier. Ora, tudo o que ele tem

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na cabeça ou em torno dele está já na tela, mais ou menos virtualmente, mais ou menos atualmente, antes que ele comece seu trabalho. Tudo isso está presente sobre a tela, a título de imagens, atuais ou virtuais. Se bem que a pintura não tem uma superfície branca, ele teria antes de esvaziar, desentulhar, limpar. Ele não pinta, pois, para reproduzir sobre a tela um objeto funcionando como modelo, ele pinta sobre imagens já aí, para produzir uma tela da qual o funcionamento vai reverter as relações do modelo e da cópia. Em suma, o que é necessário definir são todos esses «dados» que estão sobre a tela antes que o trabalho do pintor comece” (Deleuze 5, p.57).

Ao nosso ver, Merleau-Ponty constrói em sua filosofia uma

visibilidade cujo desdobramento revela, para além do visível, o invisível, para além do corporal, o “incorporal”, conforme o significado conferido pelos estóicos. Há situações em que as coisas se tornam uma grande superfície, uma paisagem, em termos merleau-pontianos, uma carne, que supera o corporal e alcança o incorporal. Diz ele:

“quando eu vejo através da espessura da água, o ladrilhado no fundo da piscina, não o vejo apesar da água, dos reflexos; vejo-o justamente através deles, por eles. Se não houvera essas distorções, essas zebruras do sol; se eu visse sem esta carne a geometria do ladrilhado, então é que cessaria de o ver como ele é, onde ele está, a saber: mais longe do que qualquer lugar idêntico. A própria água, o poder aquoso, o elemento xaroposo cintilante, não posso dizer que esteja no espaço: ela está noutro lugar, mas também não está na piscina. Habita-a, nela se materializa, nela não está contida, e, se ergo os olhos para a tela dos ciprestes onde brinca a rede dos reflexos, não posso contestar que a água a visita também, ou pelo menos a ela envia sua essência ativa e viva. Esta animação interna, essa irradiação do visível é

que o pintor procura sob os nomes de profundidade, de espaço e de cor” (Merleau-Ponty 16, p.104-105).

Então, essa irradiação do visível, que o pintor nomeia de profundidade, espaço e cor, é uma transgressão (ou superação) do espaço objetivo (físico), entendido como continente e conteúdo, e se configura como misturas de corpos que parecem entrelaçar-se como um único Ser, como carne do mundo. o que parece, essa “paisagem” merleau-pontiana pode ser entendida também como um “efeito incorporal”, como uma “maneira de ser”, um “acontecimento”. Émile Bréhier, em sua reconstituição do pensamento estóico afirma:

“quando o escalpelo corta a carne, o primeiro corpo produz sobre o segundo não uma propriedade nova, mas um atributo novo, o de ser cortado. O atributo não designa nenhuma qualidade real ..., é sempre ao contrário expresso por um verbo, o que quer dizer que é não um ser, mas uma maneira de ser. Esta maneira de ser se encontra de alguma forma no limite, na superfície de ser e não pode mudar sua natureza; ela não é bem dizer nem ativa nem passiva, pois a passividade suporia uma natureza corporal que sofre uma ação. Ela é pura e simplesmente um resultado, um efeito não classificável entre os seres .... Os (Estóicos distinguem) radicalmente, o que ninguém tinha feito antes deles, dois planos de ser: de um lado o ser profundo e real, a força; de outro, o plano dos fatos [dos acontecimentos], que se produzem na superfície do ser e instituem uma multiplicidade infinita de seres incorporais” (Bréhier 1, p.12; apud Deleuze 6, p.6; orig., p.14).

Conforme essa teoria, a água na piscina e a refletir nos ciprestes “aqueja” ou no mínimo “habita” a piscina e “reflete” nos ciprestes. Isso talvez denote, tal como nos estóicos, o “ser profundo” que Merleau-Ponty chamaria de “zonas opacas”, das “forças” (ou visibilidade segunda)

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e a “superfície do ser”, que se traduziria nas “zonas claras” merleau-pontianas, das “coisas” (visibilidade primeira), como vimos acima. Essa “visita” da água aos ciprestes ou essa sua “morada” na piscina parecem se configurar como “maneiras de ser”, de inspiração estóica. Destarte, a “irradiação do visível” é um “acontecimento”. Segundo Deleuze (no caso dos estóicos), os acontecimentos incorporais de superfície são resultados das misturas no fundo dos corpos (cf. Deleuze 6, p.7; orig., p.15), são o desdobramento dos corpos, tal qual o invisível é a dobradura do visível na concepção merleau-pontiana.

Merleau-Ponty (20, p.21) parece confirmar essa leitura quando diz que “vista de fora, a percepção desliza por sobre as coisas, e não as toca”, tal qual na interpretação deleuzeana,

“os acontecimentos, na sua diferença radical em relação às coisas, não são mais em absoluto produtos em profundidade, mas na superfície, neste tênue vapor incorporal que se desprende dos corpos, película sem volume que os envolve, espelho que os reflete, tabuleiro que os torna planos”. “É seguindo a fronteira, margeando a superfície, que passamos dos corpos ao incorporal”. E parafraseando Paul Valéry, Deleuze arremata: “o mais profundo é a pele” (Deleuze 6, p.10-11; orig. p.19-20).

Ao nosso ver, os incorporais parecem ser a deiscência ou abertura do Ser. E os aspectos da arte corroboram tal análise. Paul Klee afirma que a arte “não imita o visível, «torna visível»”(Apud, Merleau-Ponty 16, p.105 e apud Partsch, 21, p.54). Segundo Merleau-Ponty (16, p.105-106), o esforço da pintura moderna consiste menos na escolha entre a linha e a cor, ou entre a figuração das coisas e a criação de sinais, do que “em quebrar a sua aderência ao envoltório das coisas”. Para ele, “a pintura deu a si mesma um movimento sem deslocamento, por vibração ou irradiação”, deu a si, em nossa concepção, uma maneira de

ser. Pode-se dizer é visível e invisível ao mesmo tempo, ou antes, que há uma invisibilidade na visibilidade, uma incorporeidade no corporal.

Por conseguinte, a irradiação é o movimento próprio à pintura. Contudo, segundo Rodin, “as vistas instantâneas, as atitudes instáveis petrificam o movimento”, tal como em fotografia de atletas que ficam para sempre congelados. Mesmo a “Noiva” (Mariée), de 1912, de Marcel Duchamp, conforme essa concepção, não se “mexe”, parecendo um corpo rígido como armadura cujas articulações funcionam, mas “ele está aqui e está ali, magicamente, porém, não vai daqui até lá” (Merleau-Ponty 16, p.107). Contudo, nos parece que na pintura o “Nu descendo uma escada”, também de 1912, o mesmo Duchamp obtém êxito em figurar o movimento já que há uma mistura de imagens em posições incompossíveis. Até mesmo a fotografia de Duchamp descendo uma escada, publicada na capa da revista Life Magazine nº 284 de 1952, parece-nos bem-sucedida em captar o movimento ao registrá-lo com o obturador aberto por mais tempo. Os movimentos do pintor aparecem multiplicados, borrados, misturados, incompossíveis, e ele parece ir daqui até lá. Todavia, tanto na pintura quanto na foto falta unidade aos movimentos disparatados, são várias imagens distintas como se fossem vários indivíduos.

Rodin, entretanto, fala de algo mais radical, segundo Merleau-Ponty:

“o que dá o movimento é uma imagem em que os braços, as pernas, o tronco, a cabeça são tomados cada um em outro instante, uma imagem em que, portanto, figura o corpo num instante que ele não teve em nenhum momento, e impõe entre suas partes ligações fictícias, como se esse enfrentamento de incompossíveis pudesse, e só ele, fazer surgir no bronze e na tela a transição e a duração. Os únicos instantâneos bem sucedidos de um movimento são os que se aproximam desse arranjo paradoxal, quando, por exemplo, o homem que anda foi apanhado no momento

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em que seus dois pés tocavam o solo: porque quase se tem a ubiqüidade temporal do corpo, que faz que o homem monte o espaço” (Merleau-Ponty 16, p.107).

Rodin exige o registro da incompossibilidade de atos, de um tempo ubíquo, absoluto, em que o quadro nos faça ver o movimento por meio de sua discordância interna. A posição de cada membro, desconjuntada, justamente pela incompatibilidade a dos outros, segundo a lógica do corpo, é diversamente datada, e, dado que todos permanecem visivelmente na unidade de um corpo, é ele que se põe a saltar a duração. “Seu movimento é algo que se premedita entre as pernas, o tronco, os braços, a cabeça, em algum foco virtual, e ele só se evidencia em seguida, mudando de lugar”. Coisa que a fotografia dos cavalos de corrida do Derby de Epsom10, de autoria de Etienne-Jules Marey, do século XIX, por exemplo, não consegue captar “porque mantém abertos os instantes que a arrancada do tempo logo torna a fechar; ela destrói a ultrapassagem, a invasão, a «metamorfose» do tempo”(Merleau-Ponty 16, p.107). O médico (e fotógrafo) Marey fazia experimentos com fotografia seqüencial. Ele capturava corpos em movimento, como cavalos ou pessoas, em série de instantâneos, igualmente separados por um curtíssimo espaço de tempo, indicando já nos anos de 1870 e 1880 o caminho para o surgimento do cinema concretizado em meados da década de 1890. Contudo, o resultado são fotografias de cavalos que parecem saltar sobre o chão e não correr, com as patas quase dobradas sobre eles. Ao contrário, portanto, da pintura de Théodore Géricault, intitulada Epsom Racecourse11 (Pista de corrida Epsom), de 1821, em que as patas de seus cavalos encontram-se totalmente estendidas, parecendo voar, mas, que, segundo Rodin, ele sim conseguiu dar visibilidade ao movimento, tornando visível a “metamorfose” do tempo, porque os cavalos têm em si o «deixar aqui e ir para ali», porque tem o pé em cada instante. Merleau-Ponty reproduz as palavras profundas de Rodin: “É o artista que é verídico,

e a foto é que é mentirosa, porquanto, na realidade, o tempo não pára”. “A pintura não busca o exterior do movimento, mas suas cifras secretas”, a pintura “está sempre no carnal”. (Merleau-Ponty 16, p.107-108)

O movimento da pintura, de que fala Rodin, parece, de certa maneira, figurar a “fissão do Ser” merleau-pontiana. Segundo Merleau-Ponty (16, p.108), a visão não é nem um certo modo do pensamento nem presença a si, mas “é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser”. Para Chaui (2, p.162), essa é a própria definição do que é experiência que, muito além de ser abertura para o que não é nós e excentricidade, é um meio de ausentar de mim mesmo, observar na interioridade a fissão do Ser, “fechando-me sobre mim mesmo somente quando ela chega ao fim, isto é, nunca”. Conforme ela, a tradição filosófica jamais suportou “a experiência selvagem do querer e do poder, inerência de nosso ser ao mundo” (Chaui 2, p.162-163). Ela sempre procurou domesticá-la, buscando “refúgio no pensamento da experiência, isto é, representada pelo entendimento e, portanto, neutralizada” (Idem ibidem). A Experiência merleau-pontiana como fissão no Ser é um retorno à encarnação e um abandono das explicações tradicionais filosóficas. A experiência não deve ser explicada e sim decifrada; ela nos leva “ao recinto da experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a decifrar a fissão no Ser” (Idem ibidem). A fissão no Ser é divisão no interior da indivisão e se transforma naquela experiência em que um vidente (o corpo do pintor) se faz visível e um visível se faz vidente (o quadro), ambos sem sair da visibilidade.

Merleau-Ponty (cf. 16, p.92) propõe procurar uma filosofia figurada da visão nos próprios quadros, como que a sua iconografia. A arte é uma “ciência pictural” que fala, não por palavras, mas por obras existentes no visível, tal qual às coisas naturais, é ciência calada dirigida ao olho, tido como uma “janela da alma”, pela qual é revelada à nossa contemplação

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a beleza do universo, “cuja vista faz a alma ficar contente na prisão do corpo” (Merleau-Ponty 16, p.109). Com nossa visão, tocamos o sol, as estrelas e, por nossa imaginação, vemos outros lugares sem estarmos lá efetivamente, numa espécie de visão iminente. Visamos livremente e vamos buscar na visão os seus meios. Trata-se de um “mundo que é segundo minha perspectiva para ser independente de mim, que é para mim a fim de ser sem mim, a fim de ser mundo”. O “quale visual” (carne do mundo) me dá a presença daquilo que não sou, considerando que, como textura, “é concreção de uma visibilidade universal, de um Espaço que separa e que reúne, que sustenta toda a coesão”, mesmo do passado com o futuro, pois eles são partes no mesmo Espaço. A visibilidade me dá a presença daquilo que não sou eu e cada coisa visual funciona como uma dimensão, pois é o “resultado de uma deiscência do ser”, de uma abertura. Isso significa “que é próprio do visível ter um forro invisível no sentido próprio, que ele torna presente como uma certa ausência” (Merleau-Ponty 16, p.109). O autor explica que a relação entre mundo e ser é “a do visível com o invisível (latência)”, portanto, “o invisível não é outro visível («possível» no sentido lógico), um positivo somente ausente” (Merleau Ponty 20, notas de trabalho de maio de 1960, p. 227 e p.230). O verdadeiro negativo é “um originário do alhures”.

Para Merleau-Ponty (cf. 20, nota de trabalho de novembro de 1960, p.239), uma nova filosofia deve ser elaborada a partir da lógica do quiasma, da reversibilidade, a do Espírito Selvagem” e do “Ser Bruto”, ou seja, “a idéia de que toda percepção é forrada por uma contrapercepção”, “é ato de duas faces, não mais se sabe quem fala e quem escuta. Circularidade entre falar-escutar, ver-ser visto, perceber-ser percebido (é ela que faz com que nos pareça que a percepção se realiza nas próprias coisas – Atividade = passividade” (Merleau-Ponty 20, nota de trabalho de novembro de 1960, p.238). Conforme Chaui, o que o “Espírito Selvagem” e o “Ser Bruto” revelam é que a irreflexão está na própria reflexão, ela não é seu exterior,

pelo contrário, é o seu interior, algo como “uma experiência muda de sua encarnação num corpo”, assim sendo, “o pensamento vive simultaneamente dentro e fora de si” (Chaui 2, p.160-161). Ela explica que essa simultaneidade do sair de si e do entrar em si é a definição mesma do espírito, sendo o mundo carne ou interioridade e a consciência originariamente encarnada. Segundo Chaui, a experiência da visão “é o ato de ver, advento simultâneo do vidente e do visível como reversíveis e entrecruzados, graças ao invisível que misteriosamente os sustenta” (Chaui 2, p.164).

Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty afirma que há sempre um invisível tanto quanto um intocável. Por exemplo,

“aquilo que se opõe a que eu me veja é, de início, um invisível de fato (os meus olhos são invisíveis para mim), mas, para além deste invisível (cuja lacuna se preenche através de outrem e da minha generalidade), um invisível de direito: não posso ver-me em movimento, assistir ao meu movimento”. “(Eu sou para mim zero de movimento mesmo no movimento, não me afasto de mim) justamente porque eles são homogêneos”. “Espécie de reflexão”, “o mesmo tufo”, ou entrelaçamento. Merleau-Ponty explica que “as coisas são o prolongamento do meu corpo e o meu corpo é o prolongamento do mundo, através dele o mundo rodeia-me – Embora eu não possa tocar no meu movimento, este movimento está inteiramente tecido de contatos comigo – É preciso compreender o tocar-se e o tocar como avesso um do outro – A negatividade que habita o tocar (e que eu não devo minimizar : é ela que faz com que meu corpo não seja fato empírico, que tenha significação ontológica), o intocável do tocar, o invisível da visão, o inconsciente da consciência”, “é o outro lado ou o avesso (ou a outra dimensionalidade) do Ser sensível; não se pode dizer que ele esteja aí, embora existam seguramente pontos nos quais onde ele não está” (Merleau-Ponty 20, nota de trabalho de maio de 1960, p.230).

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O pintor consegue tocar nesses dois extremos (visível-invisível, positivo-negativo) pela visão. Merleau-Ponty explica que no invisível, “no fundo imemorial do visível algo se moveu, acendeu-se, o qual lhe invade o corpo, e tudo o que ele pinta é uma resposta a tal suscitação” (Merleau-Ponty16, p.109). Tal qual numa encruzilhada, a visão é o encontro de todos os aspectos do Ser. Não há rupturas neste circuito, sendo impossível estabelecer onde finda a natureza e começa o homem ou a expressão. O próprio Ser mudo, pois, manifesta seu próprio sentido. A visão se formula na precessão paradoxal do ser e do ver e do visível, ou seja, “daquilo que é sobre aquilo que se vê e se faz ver, daquilo que se vê e se faz ver sobre aquilo que é”. Merleau-Ponty recolhe a fórmula ontológica da pintura do epitáfio de Klee: “«Sou inapreensível na imanência»”.

Outro ensinamento que a pintura fornece à filosofia, segundo Chaui, é que

“o pensamento não pode fixar-se num pólo (coisa ou consciência, sujeito ou objeto, visível ou vidente, visível ou invisível, palavra ou silêncio), mas precisa sempre mover-se no entre-dois, sendo mais importante o mover-se do que o entre dois, pois entre-dois poderia fazer supor dois termos positivos separáveis, enquanto o mover-se revela que a experiência e o pensamento são passagem de um termo por dentro do outro, passando pelos poros do outro, cada qual reenviando ao outro sem cessar. Eis por que as artes ensinam à filosofia a impossibilidade de um pensamento de sobrevôo, que veria tudo de uma só vez, veria cada coisa em seu lugar e com sua identidade, veria redes causais completas, veria todas as relações possíveis entre as coisas”, “geometral12 de todos os pontos de vista. Merleau-Ponty insiste em que o artista ensina ao filósofo o que é existir como um humano” (Chaui 2, p.165).

O pensamento mudo da pintura, muitas vezes, dá a falsa impressão de deter uma vã significação. Contudo, tanto as figuras da pintura (e seu pensamento silencioso), bem como da literatura e da filosofia não são aquisições que se acumulam num tesouro estável; até mesmo a ciência reconhece “uma zona «fundamental» de seres espessos, abertos, dilacerados”. Em pintura, “profundidade, cor, forma, linha, movimento, contorno, fisionomia são ramos do Ser” e não há problemas separados sem progresso acumulado bem como ausência de recuo. O pintor pode retomar um emblema afastado e o fazer falar de modo diverso, por isso o saber adquirido se desfaz diante de uma nova maneira de expressá-lo. Toda a pintura, inclusive a primeira delas, já vai até ao “fundo do porvir”, ou seja, tem diante de si quase toda sua vida. Nenhuma pintura ou obra conclui absolutamente, “cada criação muda, altera, aclara, aprofunda, confirma, exalta, recria ou cria de antemão todas as outras” (Merleau-Ponty 16, p.111).

Merleau-Ponty dá uma significação ontológica à pintura em O olho e o espírito, exemplarmente expressa na passagem em que o filósofo cita a seguinte experiência:

“fumando cachimbo diante do espelho, sinto a superfície lisa e ardente da madeira não somente lá onde estão meus dedos, mas também nesses dedos gloriosos, nesses dedos apenas visíveis que estão no fundo do espelho. O fantasma do espelho arrasta para fora minha carne”. (Merleau-Ponty 16, p.93)

A ontologia esclarece o conhecimento do corpo e do mundo na visão (cf. Dousson 12, p.112). Não é à toa que tantas pinturas trazem o espelho em suas tintas. O reflexo não é a representação, a tentativa da semelhança, mas a visibilidade da carne, visão especular trazida para o lado de fora.

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Valéria Loturco

REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:

1. Bréhier, Émile, La théorie des incorporels dans l’1’ancien stoïcisme, Paris, Vrin, 1962, trad de Gilles Deleuze in Lógica do sentido, São Paulo, Perspectiva, 1994; orig. Logique du sens, Paris, Minuit, 1969.

2. Chaui, Marilena, Experiência do pensamento, São Paulo, Martins Fontes, 2002.3. _____________, introdução em Merleau-Ponty in col. Os Pensadores, São Paulo,

Abril Cultural, 1984.4. Deleuze, Gilles, e Guattari, Félix, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, ed.34, 1992;

2ª ed. 1993; orig. Qu’est-ce que la philosophie?, Paris, Minuit, 1991.5. Deleuze, Gilles, Francis Bacon – Lógica da sensação, tomo I, Paris, Éditions de la

différence, 1996.6. _____________, Lógica do sentido, São Paulo, Perspectiva, 1994, p.6 ; orig.

Logique du sens, Paris, Minuit, 1969.7. Descartes, René, La dioptrique, Paris, Éditions Garnier, tome I, Discours I , IV e

VI, 1966.8. _____________, Discurso do método (Discours de la méthode), quinta parte, São

Paulo, Abril Cultural, 1983.9. _____________, Regras para direção do espírito, Lisboa, Editorial Estampa,

1977.10. ____________, As paixões da alma ((Les passions de l’âme, de 1649), São Paulo,

Abril Cultural, 1983.11. ____________, Cartas, in col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1983.12. Dousson, Lambert, “Dossier: Les mots du texte” in “L’oeil et L’esprit”, Paris,

Gallimard, 2006.13. Espinosa, Baruch, Ética (Ethica, 1677), parte III, tradução feita pelo Grupo

Espinosano, s/d, não publicado.14. Foucault, Michel, As palavras e as coisas, São Paulo, Martins Fontes, 1992, p.93;

orig. Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966.15. Granger, Gilles-Gaston, Introdução de Descartes in col. Os Pensadores, São

Paulo, Abril Cultural, 1983.16. Merleau-Ponty, Maurice, O olho e o espírito, in col. Os Pensadores, São Paulo,

1984; orig. L’oeil et l’esprit, Paris, Gallimard, 1964.17. ____________, Em toda e em nenhuma parte (Partout et nulle part), col. Os

Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1984.

18. _____________, A linguagem indireta e as vozes do silêncio (Le langage indirect et les voix du silence, in Signes), São Paulo, Abril Cultural, 1984.

19. _____________, O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas, Campinas, Papirus, 1990; orig. Le primat de la perception et ses consequences philosophique, Cynara, 1989.

20. _____________, O visível e o invisível, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1992; orig. Le visible et l’invisible, Paris, Gallimard, 1964.

21. Partsch, Susanna, Paul Klee, Confissão de um criador, 1920 e Diário 9260 in Klee, Colonia, Taschen, 1993.

22. Platão, A República, livro X, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.23. Rodin, L’Art, conversas reunidas por Paul Gsell, Paris, 1911.24. Valdinoci, Serge, Merleau-Ponty dans l’invisible – L’oeil et l”esprit au mirroir du

visible et l’invisible, Paris, L’Harmattan, 2003.

mERLEAU-PoNTy DIALogUES wITH THE RATIoNALISm AND THE PAINTINg IN THE “EyE AND mIND”

Abstract: In the Eye and Mind Maurice Merleau-Ponty dialogues with the Great Rationalism, specially with Descartes, criticizes the ingenuous pretensions of the sciences of the early 20th century to reproduce the phenomena in laboratory and pays tribute to the painting, a form of expression that shows to the philosophy its own point of departure: the living in the world, that conjugates the verbs ‘I see’ with ‘I can’. We simultaneously see and are seen and we dislocate ourselves, even if only with the regard; moreover we touch and are touched, forming an interlacing that forms the chiasm of sensibility. In order to construct his ontology, Merleau-Ponty disagrees with every point of view that only overflies, transforming things in objects that ought to be analyzed by subjects. In contrast, he valorizes the painter’s activity, in which the painter, using his own body to paint, fuses himself with the painting. It provides elements to his philosophy, in which that who sees does not differ from that which is seen, nor the subject from the object, nor the ‘I’ from the world. In doing this, Merleau-Ponty wins as adept Gilles Deleuze, which, although critic of the phenomenology, endorses this amalgamation of painting with philosophy.Keywords: seer, visible, chiasm, painting, ontology.

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NoTAS:

1. Em L’homme et l’adversité, carne é definido como corpo “animado”. (Merleau-Ponty 18, p.287)2. Segundo Merleau-Ponty, dizer sobre esse “há prévio”, “o que há?” e ainda “o que é o há?” é o próprio desvendamento de um Ser que não é posto, que “está silenciosamente atrás de todas as nossas afirmações, negações e até mesmo atrás de todas as questões formuladas”, pois, “a filosofia é a reconversão do silêncio em palavra um no outro”.(Merleau-Ponty 20, p.126)3. Conforme Foucault, o humanismo ou “o homem, na analítica da finitude, é um estranho duplo empírico-transcendental, porquanto é um ser tal que nele se tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento”. (cf. Foucault 14, p.334, orig. p.329)4. O Discurso do Método, a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria (Le Discours de la Méthode, la Dioptrique, les Météores et la Géométrie) foi publicado em francês e não em latim, uma novidade para a época. Antes, Descartes já havia escrito, dentre outros, as Regras para a Direção do Espírito em 1628 e o Tratado do Mundo em 1634.5. Conforme a segunda nota de rodapé da página 653 de La Dioptrique.6. Talhos-doces são gravuras entalhadas só com o buril, sem água-forte ou ácido azótico sobre uma prancha de metal.7. Segundo Valdinoci, o espaço cartesiano assim liberado torna-se uma plataforma técnica que se opõe às concepções aristotélicas e da Escola de Paris dos séculos XIV e XV. (Cf. Valdinoci 24, p.86) 8. Segundo afirmação de Marilena Chaui durante reunião do Grupo Espinosano no primeiro semestre de 2008.9. Segundo o Novo Dicionário Aurélio, deiscência é a “abertura espontânea de órgãos ou partes vegetais ao alcançarem a maturidade”, São Paulo, Nova Fronteira, p.427. Para Chaui, “deiscência da Carne significa que a Carne – do mundo e nossa – é o originário e este é gênese interminável que pede, exige nossa criação para que possamos experimentá-lo; e podemos responder ao seu apelo porque somos feitos da mesma polpa insondável que ele. Somos espíritos verdadeiramente encarnados”. (Chaui 2, p.156)10. Derby é uma corrida para cavalos de três anos de idade, fundada em 1780, ocorrida anualmente em Epsom Downs na Inglaterra.11. Essa pintura encontra-se no museu do “Louvre” em Paris.12. Que mostra as dimensões, forma e posição das partes de uma obra.

POTêNcIA dA RAzÃO E lIBERdAdE hUMANA:UMA ANÁlISE dO PREfÁcIO, AxIOMAS E dAS QUATRO

PRIMEIRAS PROPOSIÇõES dA PARTE V dA ÉTIcA

Adriana belmonte Moreira*

Resumo: Este artigo apresenta o sentido da sinonímia entre potência da razão e liberdade humana na Parte V da Ética, a partir de uma análise de seu prefácio, axiomas e quatro primeiras proposições. No decorrer de nossa análise mostramos porque a potência da qual trata Espinosa não é a de uma vontade livre, mas se identifica à potência da razão ou intelecto em realizar um império sobre os afetos, sendo precisamente o exercício deste governo o que oferece sentido à idéia de liberdade humana em Espinosa.Palavras-chave: potência, liberdade, afeto, razão, vontade.

Espinosa intitula a Parte V de “Da potência do intelecto ou da liberdade humana” e inicia o Prefácio se propondo a tratar da potência da razão contra os afetos, como caminho necessário para explicar o que é a liberdade:

“Passo, por fim, à outra parte de ética, que trata da maneira, ou seja, do caminho que conduz à liberdade. Nesta parte, tratarei, pois, da potência da razão, mostrando qual é seu poder sobre os afetos e, depois, o que é a liberdade ou a beatitude da mente” (Espinosa 7, EV Praef).

Destarte, para entendermos o significado da sinonímia presente no título é necessário partirmos da compreensão do que pode a razão contra os afetos, pois é precisamente sua potência no governo deles o que oferece sentido à idéia de liberdade humana em Espinosa.

Mas, embora ele diga que irá tratar da maneira ou via que conduz à liberdade, esclarece que não irá fazer uma lógica, entendida como a técnica

* Doutoranda do Depto. de Filosofia da USP

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ou arte para melhor conduzir o intelecto para que possa aperfeiçoar sua capacidade de conhecer, nem uma medicina, como a técnica ou arte de cuidado com o corpo, para que possa melhor desempenhar suas aptidões. Sua proposta é apresentar, antes de tudo, qual o grau (quantum) e qualidade (quale) do império da razão para coibir e moderar os afetos, já que nós não temos sobre eles um império absoluto (absolutum imperium).

Ademais, no conjunto da Parte V, Espinosa procura demonstrar como se dá a identidade entre potência da razão e liberdade humana, ou ainda, como a potência da razão se realiza como liberdade, esclarecendo porque esta última não pode ser identificada ao livre exercício da vontade. Com efeito, no decorrer de nossa análise, veremos que a potência da qual fala não é a de uma vontade livre ou absoluta, mas da razão e que também o império sobre os afetos não é absoluto, como acreditam os estóicos e Descartes, mas se efetiva como moderatio, isto é, como poder de impor medida e arbitrar o conflito entre os afetos.

Assim, se no Prefácio Espinosa deixa claro de qual potência ele trata e nos dois primeiros axiomas se refere à contrariedade entre os afetos e anuncia a capacidade da mente ou razão de ser a causa mesma deles, alcançando uma maior potência no governo dos afetos conflitantes, nas quatro primeiras proposições ele apresenta as principais características de uma “mente internamente disposta”, causa adequada de suas idéias, potente o suficiente para moderar seus afetos, já que os conhece clara e distintamente. Destarte, é a partir deste campo de reflexão que realizaremos nossa análise.

* * *

No Prefácio da Parte V, Espinosa parte de uma crítica às filosofias que afirmam a possibilidade de termos um império absoluto (imperium absolutum) sobre os afetos, como obra da liberdade da vontade.

Primeiramente, sua crítica se endereça aos estóicos, por julgarem que as paixões dependeriam em absoluto de nossa vontade1 e que, por isso, poderíamos imperar absolutamente sobre elas, e, depois, a Descartes, porque ele também “inclina-se bastante para esta opinião” (Espinosa 7, EV Praef.), e tenta, a partir de sua metafísica e física, demonstrá-la.

Na primeira objeção, Espinosa cita o exemplo dos dois cães, o de guarda e o de caça, para mostrar que foram os protestos da experiência e não os princípios o que fez com que os estóicos revissem suas afirmações. Ao verem como, pelo exercício, o cão de guarda se acostumou a caçar e, ao contrário, o cão de caça deixou de perseguir as lebres, “[os estóicos] viram-se obrigados, na verdade, não por causa de seus princípios, mas diante das evidências da experiência, a admitir que não são pequenos o exercício e o esforço necessários para refrear e regular os afetos” (Espinosa 7, EV Praef.). Neste exemplo, a mudança da índole dos cães por disciplina ou amansadura, mostrou que se a vontade tem potência para coibir os afetos apenas contrariando a natureza ou essência do agente, como defendem os estóicos, é porque ela não é a causa dos afetos, mas sim, um poder exterior a eles e de natureza diversa, o que contraria a noção mesma de causalidade, a saber, “a potência de um efeito é definida pela potência de sua causa, à medida que sua essência é explicada ou definida pela essência de sua causa” (Espinosa 7, EV Ax2).

Neste axioma, Espinosa diz que esta idéia é evidente pelo que foi apresentado na Parte III. Lá, afirma que da essência dada de uma coisa qualquer seguem determinados efeitos, e que as coisas nada podem a não ser o que resulta de sua natureza determinada (Cf. Espinosa 7, EIII P7). Seguindo isto, haja vista que a potência e a essência do efeito dependem e se explicam pela sua causa, o império sobre os afetos só será possível se a causa deles estiver inscrita na natureza daquele que o exerce, não podendo ser uma força externa à essência, um poder que se exerça “de fora” e de

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natureza diversa daquele que age. Através disto, ele mostra que a vontade, tal como apresentada pelos estóicos, não pode ser a causa dos afetos, já que esta só pode agir contrariando a natureza daquele em que ela se inscreve.

Na segunda objeção, a contestação a Descartes, Espinosa inicialmente expõe a forma como se dá, na fisiologia cartesiana, a relação entre alma e corpo, ou seja, como a alma pode, através da glândula pineal, se comunicar com o corpo, para, assim, poder agir sobre ele e como, pela mesma glândula, o corpo pode comunicar à alma seus movimentos e os traços dos diversos objetos exteriores. Com efeito, segundo a fisiologia cartesiana, a alma está unida ao cérebro pela glândula pineal2. Tal glândula, por estar suspensa no meio do cérebro, pode realizar tantos movimentos quantos a alma e os espíritos animais são capazes de mobilizá-la, além de poder imprimir movimento aos espíritos. Portanto, a alma pode mover a glândula, através do “querer” da vontade, em vários sentidos, assim como os espíritos animais também podem movê-la através do choque contra ela, assim como ela pode impelir os espíritos ao movimento.

Além disso, Espinosa retoma a idéia cartesiana de que cada vontade da alma está ligada por natureza a um certo movimento da glândula, e dá o exemplo da pupila, mostrando que sua contração ou dilatação não depende do “pensarmos em contrair ou dilatar a pupila”, mas apenas de nossa vontade de olhar para objetos afastados ou próximos, pois é somente desta forma que a alma pode agir sobre a glândula pineal, e esta impelir os espíritos para o nervo óptico. Em seguida, ele lembra que Descartes teve que admitir que embora cada movimento da glândula pareça estar ligado por natureza desde o começo de nossa vida a determinados pensamentos, podemos, pelo hábito3, ligá-los a outros, como tentou explicar nas Paixões da Alma.

Com efeito, este argumento cartesiano tenta provar que, como a determinação da vontade depende unicamente de nosso poder, se ligássemos nossos pensamentos somente às paixões que quiséssemos

ter poderíamos adquirir sobre elas um império absoluto: “então, se determinamos a nossa vontade por meio de juízos seguros e firmes, pelos quais queremos dirigir as ações de nossa vida, e se ligamos os movimentos das paixões que queremos ter a esses juízos, adquirimos um domínio absoluto sobre as nossas paixões” (Espinosa 7, EV Praef). Em vista disto, para Descartes, o que caracteriza uma “alma forte”, potente, é a capacidade da vontade, ancorada nas representações racionais, ter um domínio absoluto sobre as paixões, não havendo alma tão fraca que não possa, se bem dirigida, fazer o mesmo4.

Portanto, é através da glândula pineal que alma e corpo podem comunicar-se ou, em outros termos, que res cogitans e res extensa, apesar de realmente distintas, podem ter uma ação sobre a outra, de modo que a vontade, como faculdade da res cogitans, possa suprimir as paixões, definidas como “percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que a ela se refere de uma maneira particular, e que, observe-se, são produzidas, conservadas e reforçadas por algum movimento dos espíritos” (Espinosa 7, EV Praef.) 5.

Destarte, tal exposição do pensamento de Descartes acaba por culminar na crítica espinosana à “união substancial”, haja vista que tudo o que foi apresentado até o momento depende de uma relação entre alma e corpo, não devidamente explicada pelo filósofo francês6:

“Que compreende ele,afinal, por união da mente e do corpo? Que conceito claro e distinto, pergunto, tem ele de um pensamento estreitamente unido a uma certa partícula de quantidade? Gostaria muito que ele tivesse explicado essa união por sua causa próxima” (Espinosa 7, EV Praef.).

Ou seja, o primeiro movimento crítico espinosano, depois de exposta a fisiologia cartesiana, é perguntar o que Descartes entende

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por união entre alma e porque precisa recorrer à causa do universo inteiro, Deus, para sair desta aporia metafísica: “Ele havia, entretanto, concebido a mente de maneira tão distinta do corpo que não pôde atribuir nenhuma causa singular nem a essa união, nem à própria mente, razão pela qual precisou recorrer à causa do universo inteiro, isto é,a Deus” (Espinosa 7, EV Praef.).

O segundo movimento crítico é questionar a suposta relação da alma com a glândula pineal, sua sede corpórea:

“Gostaria muito de saber, ainda, qual quantidade de movimento pode a mente transmitir a essa glândula pineal e com que força pode mantê-la suspensa? Pois não sei se essa glândula é revolvida mais lentamente ou mais rapidamente pela mente do que pelos espíritos animais, nem se os movimentos das paixões, que nós vinculamos estreitamente a juízos firmes, não podem voltar a se desvincular desses juízos por causas corpóreas” (Espinosa 7, EV Praef.).

Aqui, Espinosa apresenta o problema do “duplo comando”, explicitado pelo fato da glândula pineal obedecer tanto aos comandos da vontade quanto dos espíritos animais, não havendo critério de precedência entre eles, de modo que nada podemos prever sobre o resultado de um embate entre alma e corpo, caso a vontade impila à audácia e o movimento dos espíritos à fuga, como também questiona se uma vontade movida por juízos certos e firmes possa sempre se furtar às causas corpóreas, garantindo seu controle absoluto sobre as paixões.

E conclui que, como não há qualquer relação entre a vontade e o movimento corporal, não há comparação possível entre as forças da mente e do corpo, o que impossibilita que a decisão voluntária aja sobre a glândula pineal: “E como, certamente, não há qualquer relação entre a vontade e o movimento, tampouco existe qualquer

comparação entre a potência ou a força da mente e a do corpo. E, conseqüentemente, as forças do corpo nunca podem ser determinadas pelas forças da mente” (Espinosa 7, EV Praef.). Até porque nem a glândula está localizada no meio do cérebro, de modo que pudesse ser mobilizada facilmente e de diversas maneiras pela vontade e pelos espíritos, nem todos os nervos se prolongam até o cérebro, de maneira que houvesse uma comunicação deste com a totalidade do corpo.

Assim, se para refutar os estóicos Espinosa recorre ao argumento da causalidade, para objetar Descartes, ele fala da “obscuridade” da união substancial, questiona a teoria fisiológica cartesiana, mostrando, nos dois momentos apresentados, que não há, segundo a própria teoria cartesiana, a possibilidade da vontade agir, imperar, sobre os afetos. Além disso, se Espinosa critica Descartes, não é apenas porque discorda da “união substancial”, já que considera mente e corpo, respectivamente, como modos finitos dos atributos (extensão e pensamento) de uma única substância, Deus7, mas é também porque, diferentemente do filósofo francês, ele não opera uma separação entre intelecto e vontade8: “a potência da mente, tal como antes mostrei, é definida exclusivamente pela inteligência” (Espinosa 7, EV Praef).

Por fim, Espinosa afirma que não irá, neste momento, retomar o que já foi demonstrado sobre a falsidade da idéia cartesiana acerca da vontade e de sua liberdade. Com efeito, diferentemente de Descartes, não há para Espinosa uma vontade, como uma faculdade (facultas), um poder (potestas) indeterminado que pode ou não se exercer, como vontade livre (voluntas) 9, que pode escolher as paixões que quer ou não ter. Para ele, só há uma potência (potentia), a razão, ou seja, uma potentia mentis, que se exerce necessariamente e plenamente, sem interrupção. Por isso, no início do Prefácio, ele diz que não tratará da potência da vontade, mas da potência da mente, ou seja, da razão

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sobre os afetos (Espinosa 7, EV Praef). E, ainda, completa, dizendo que tratará da potência da razão para coibi-los e moderá-los (coercendum et moderandum), já que não temos sobre eles um império absoluto.

Sendo assim, o império de Espinosa, além de não ser o império absoluto da vontade, se dá como moderatio, isto é, como potência para impor medida e arbitrar o conflito entre os afetos. É um império que tem grau e qualidade, dependendo da potência da mente (potentia mentis) para coibir os afetos, ou seja, sua potestas para agir sobre suas próprias ações. Resta saber como se daria o conflito entre os afetos e como ele se resolveria no interior da razão mesma.

No segundo axioma, Espinosa fala em uma contrariedade no interior de um mesmo sujeito e afirma que dadas duas ações contrárias, necessariamente deverá produzir-se uma mudança (mutatio) em ambas ou em uma delas, até deixarem de ser contrárias10: “se, em um mesmo sujeito, são suscitadas duas ações contrárias, deverá, necessariamente, dar-se uma mudança, em ambas, ou em apenas uma delas, até que deixem de ser contrárias” (Espinosa 7, EV Ax1). Com efeito, segundo o princípio de não-contradição aristotélico, coisas de natureza contrária não podem estar simultaneamente em um mesmo sujeito, pois isso poderia destruí-lo11.

Mas, aqui, ele não usa o termo sujeito para se referir a uma substância pensante ou extensa, no sentido cartesiano. A seu ver, a substância não é sujeito de inerência de predicados, os atributos não são coextensivos a ela, e os modos não são seus predicados, mas suas afecções ou efeitos. Desta forma, quando Espinosa fala em sujeito, ele se refere à essência de uma coisa singular, e de uma contrariedade que se dá em seu interior, traduzida pela diferença de força de afetos contrários que nela entram em embate. Dado isto, a contrariedade a qual Espinosa se refere só pode ser concernente ao conflito entre os afetos, o qual a potência da mente tem o poder (potestas) de arbitrar.

Mas, o que seria então um afeto para Espinosa? Aqui, há a necessidade de uma digressão para a Parte III, pois é lá que Espinosa o define: “por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções” (Espinosa 7, EIII Def.3). Se alguma coisa aumenta ou diminui a potência de agir de nosso corpo, a idéia desta coisa aumenta ou diminui a potência de nossa alma (Cf. Espinosa 7, EIII P11). Pelo mesmo princípio, a alma pode pensar coisas que aumentam ou facilitam, diminuem ou reduzem a potência de agir do corpo (Cf. Espinosa 7, EIII P12). De sorte que mente e corpo são potencializados e despotencializados conjunta e simultaneamente.

Ainda, Espinosa diz que um afeto na mente, enquanto idéia confusa, é uma paixão:

“o afeto, que se diz pathema [paixão] do ânimo, é uma idéia confusa, pela qual a mente afirma a força de existir, maior ou menor do que antes, de seu corpo ou de uma parte dele, idéia pela qual, se presente, a própria mente é determinada a pensar uma coisa em vez de outra” (Espinosa 7, EIII AD).

Esclarece ainda que a mente é passiva apenas enquanto tem idéias inadequadas ou confusas. Isso porque, as ações da mente nascem apenas das idéias adequadas, enquanto as paixões dependem das idéias inadequadas12: “a mente, enquanto (pela prop. 1) tem idéias inadequadas, necessariamente padece. Logo, as ações da mente seguem-se exclusivamente das idéias adequadas e só padece, portanto, porque tem idéias inadequadas” (Espinosa 7, EIII DP3).

Portanto, na mente, in se sola considerata, um afeto é uma idéia que aumenta ou diminui a potência pensante da mente. Segue-se daí que a alma é sujeita a tanto maior número de paixões quanto mais idéias

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confusas ou inadequadas tem ela e, ao contrário, é ativa na medida em que tem maior número de idéias adequadas ou claras e distintas (Cf. Espinosa 7, EIII CP1). Considerando que uma causa adequada é aquela cujo efeito pode ser clara e distintamente compreendido por ela, e que somos ativos quando o que é produzido em nós ou fora de nós decorre única e exclusivamente da nossa natureza, um afeto é uma ação, quando podemos ser a causa adequada dele. Nos outros casos, quando somos passivos, somos causa inadequada, parcial, e não causa total, do que é produzido em nós ou fora de nós (Cf. Espinosa 7, EIII Def. 1;2) 13.

Isso significa dizer que quando as idéias inadequadas são afetos, elas são paixões, ou seja, determinam a impotência ou passividade da mente. Ao contrário, a idéia adequada, quando é um afeto, é uma ação da mente e, por conseguinte, significa o aumento de sua potência. Desta forma, uma idéia verdadeira ou clara e distinta é mais forte do que uma idéia confusa, ou um afeto passivo. Além disso, o tipo de causalidade que opera na paixão é parcial (causa partialis), isto é, uma causa cujos efeitos não podem ser deduzidos única e exclusivamente das leis de nossa natureza. No que concerne à mente, é precisamente o fato de ser causa parcial de seus afetos o que está na origem de sua passividade ou impotência (Cf. Espinosa 7, EIII Def. 2).

Por isso, na Parte II, Espinosa diz que para que na mente predominem as idéias adequadas, ela precisa estar internamente disposta (interne disponitur): “sempre, com efeito, que está, de uma maneira ou outra, interiormente arranjada, a mente considera as coisas clara e distintamente, como demonstrarei mais adiante” (Espinosa 7, EII SP29). Ou seja, a mente precisa ser a causa adequada de todas as suas idéias, as quais seguem apenas de sua própria natureza, não sendo, portanto, determinada por causas exteriores, característica de uma mente externamente determinada (externe determinata). Em vista

disso, apenas uma mente internamente disposta pode ser causa adequada de suas idéias, conhecendo-as clara e distintamente.

Com efeito, na Parte V, a primeira proposição sinaliza a entrada no campo da reflexão, da mente internamente disposta, porque trata de como os pensamentos e as idéias se ordenam e se concatenam na mente (Cf. Espinosa 7, EV P1), segundo a ordem relativa ao intelecto ou razão. Isto é, de uma maneira que é própria ao trabalho intelectual, que é o poder da mente de ordenar e concatenar as idéias segundo sua lógica e potência pensante, sem interferência ou dependência de causas externas.

Em vista disto, Espinosa retoma a definição de amor e ódio, apresentadas na Parte III14, para esclarecer que a causa da flutuação do ânimo (flutuatio animi) é que, na paixão, o que se passa em nós está na dependência de causas externas, o que faz com que sejamos a causa parcial ou inadequada de nossos afetos. Todavia, ele esclarece: “Se separamos uma emoção do ânimo, ou seja, um afeto, do pensamento de uma causa exterior, e a ligamos a outros pensamentos, então o amor ou o ódio para com a causa exterior, bem como as flutuações do ânimo, que provém desses afetos, serão destruídos” (Espinosa 7, EV P2). Isso porque, aquilo que constitui a forma do amor ou do ódio é a alegria ou tristeza acompanhada da idéia de uma causa externa, de modo que, sendo esta suprimida, simultaneamente são suprimidos o amor e o ódio, e, por conseguinte, são combatidos os afetos que deles provém (Cf. Espinosa 7, EV DP2).

Ora, somente uma mente internamente disposta é capaz de separar o afeto de sua causa externa e ligá-lo a outros pensamentos, fazendo assim com que a causa externa desapareça e com ela a flutuação do ânimo, que se origina destes afetos. Ao desfazer a ligação do afeto com a causa externa, conectando-o a outros pensamentos, a mente passará a formar dele uma idéia clara e distinta, fazendo com que deixe de ser uma idéia confusa, um afeto passivo, tornando-se um afeto ativo.

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Em vista disto, na proposição seguinte, Espinosa afirma que um afeto, que é paixão, deixa de sê-lo no momento em que dele formamos uma idéia clara e distinta (Cf. Espinosa 7, EV P3). E, ainda, que podemos ter idéias claras e distintas de todas as afecções do corpo: “não há nenhuma afecção do corpo da qual não possamos formar algum conceito claro e distinto” (Espinosa 7, EV P4). Disso se segue que um afeto está tanto mais em nosso poder e a mente sofre menos por conta dele quanto melhor o conhecemos.

A mente é capaz de conhecer seu corpo, apreendendo-o de acordo com a ordem e a conexão necessária de suas leis, ou seja, segundo as leis universais que regem os acontecimentos corporais e explicam suas afecções. Em resumo, ela pode conhecê-lo adequadamente, pelas noções comuns da razão: “O que é comum a todas as coisas não pode ser concebido senão adequadamente (pela prop.38 da P. II)” (Espinosa 7, EV DP4). Por conseguinte, não há nenhuma afecção do corpo que não se possa formar uma idéia clara e distinta.

Com efeito, na Parte II, Espinosa explica que apenas uma mente internamente disposta tem o conhecimento adequado e verdadeiro das propriedades das coisas, considerando-as clara e distintamente: “Aqueles elementos que são comuns a todas as coisas, e que existem igualmente na parte e no todo, não podem ser concebidos senão adequadamente” (Espinosa 7, EII P38). Portanto, a mente pode perceber a si mesma de forma adequada, seu corpo e os corpos exteriores, pois pode ter o conhecimento adequado das noções comuns, isto é, das propriedades comuns às partes de um todo, a cada parte e ao todo15.

Assim, o efeito que segue da potência pensante da mente é poder conhecer clara e distintamente os afetos, se não absolutamente, pelo menos em parte, e com isso padecer menos por conta deles (Cf. Espinosa 7, EV SP4). Destarte, ela pode perceber as coisas clara e distintamente e

separar o afeto do pensamento da causa externa e uni-lo a pensamentos verdadeiros, e, com isso, destruir não só o amor e o ódio, mas também os apetites ou desejos que nascem de tais afetos. Estes não poderão ter excesso, haja vista que “todos os desejos que nos determinam a fazer algo podem provir tanto de idéias adequadas quanto de idéias inadequadas” (Espinosa 7, EV SP4). E quando os desejos surgem de idéias adequadas são virtudes, e quando provêm de idéias inadequadas são paixões: “todos os apetites ou desejos são paixões apenas à medida que provém de idéias inadequadas” (Espinosa 7, EV SP4)16.

Portanto, a mente tem potência para suprimir afeto passivo ou paixão, através de três grandes poderes: poder formar um conceito claro e distinto de todas as afecções do corpo; poder na mente formar uma idéia clara e distinta dos afetos; poder desligar o afeto da causa externa e ligá-lo a outros pensamentos, evitando a flutuação do ânimo (flutuatio animi). Com efeito, no escólio da quarta proposição, Espinosa conclui que o melhor remédio para os afetos é o conhecimento deles, visto que a mente não tem outro poder que não seja o de pensar e o de formar idéias adequadas (Cf. Espinosa 7, EV SP4).

Dado isto, concluímos que o agente da mudança (mutatio) de qualidade dos afetos, de passivos para ativos, trata-se da potência da mente em considerar as coisas clara e distintamente, porque é causa adequada de suas idéias, as quais seguem apenas de sua natureza17. Assim, o poder (potestas) sobre os afetos não é o da vontade livre e absoluta, mas da mente, para entender clara e distintamente todas as afecções do corpo e seus afetos, evitando a flutuação do ânimo e o excesso dos desejos, provenientes de idéias inadequadas.

Destarte, se Espinosa identifica potência da razão e liberdade, é porque se refere ao poder de uma mente “internamente disposta” (interne disponitur) e não “externamente determinada” (externe determinata), ou

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seja, ele trata da capacidade da mente de ser a causa mesma de seus afetos, de suas idéias, não ficando completamente submetida às causas externas. Não estar submetido à força dos afetos, podendo impor-lhes medida e freio18, não estar sob a dependência das coisas externas é, a partir do campo de reflexão que propomos analisar, o que dá sentido à idéia de liberdade em Espinosa.

Sendo assim, portanto, entendemos porque, para ele, a potência não é a de uma vontade livre, mas se identifica à potência da razão ou intelecto em realizar um império, que não é absoluto, mas que se efetiva como moderatio, isto é, como poder (potestas) para moderar e arbitrar o conflito entre os afetos, através da fortaleza de ânimo para refreá-los. E, com isso, compreendemos o sentido da sinonímia entre potência da razão e liberdade humana, apresentada no título da Parte V.

REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:

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2. CHAUI, M. Essência Singular Livre e Eterna: uma análise da parte V da Ética de Espinosa: curso proferido na Universidade de São Paulo, no curso de Pós-graduação do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH/USP, 2009.

3. __________Ser parte e ter parte: servidão e liberdade na Ética IV (Prefácio, definições e axioma). In: Rev. Discurso 22, São Paulo, Discurso, 1993.

4. DELBOS, V., O espinosismo: curso proferido na Sorbonne em 1912-1913 (Trad: Homero Silveira Santiago). São Paulo, Discurso Editorial, 2002

5. DESCARTES, R. As Paixões da Alma. In: Obras Incompletas (Trad: J. Guinsburg e Bento Prado Júnior). Col. Os pensadores. São Paulo, Victor Civita, 1973.

6. FRANCO DONATELLI, M.C.O. A fisiologia e as paixões em Descartes. Cadernos Espinosanos V, São Paulo, 1999.

7. SPINOZA, B. Ética (Tradução e notas de Tomaz Tadeu). Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2007 [edição bilíngüe latim/português].

8. LEBRUN, G. O conceito de paixão. In: Cardoso (et al.). Os sentidos da paixão. São

Paulo, Companhia das Letras, 1987.9. TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a moral de Descartes. 2ª ed. São Paulo, Brasiliense &

Secretaria de Estado da Cultura, 1990.10. _____________ A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na

filosofia de Espinosa. São Paulo, Editora UNESP, 2001.

PowER oF REASoN AND HUmAN FREEDom: AN ANALySIS oF THE PREFACE, AXIomS AND oF THE FoUR FIRST PRoPoSITIoNS oF

Ethics PART v.

Abstract: This article presents the meaning of the synonymy between power of reason and human freedom in Ethics Part V, based on an analysis of its preface, axioms and the four first propositions. Along our analysis, we show why the power treated by Spinoza is not that of a free will but the power of reason or intellect that creates an empire over the affects, and the exercise of this government is that which gives meaning to the idea of human freedom in Spinoza.Keywords: power, freedom, affect, reason, will.

NoTAS:

1. Segundo Lebrun, os estóicos gregos consideravam a paixão como voluntária, pois ela decorria da interpretação que damos de nossa emoção e da qual somos a “causa perfeita”, assim como de cada um de nossos atos. Mas, o problema colocado pelo estoicismo é: se o logos é constitutivo de nossa natureza, como pode o alogon surgir em nossa alma? Ora, a paixão provém de um desajuste do logos em si, que, através da representação (phantasia), se engana ao julgar a proporção dos acontecimentos. Assim, a paixão não é uma força estranha que nos obriga, mas o sintoma de uma “fraqueza da alma”, o sinal de um “assentimento fraco”. Sendo assim, “o apaixonado não é simplesmente um estouvado que comete um engano: é um desvairado que deu as costas (apostrophê) à razão” (Lebrun 8, p.25).2. De fato, Descartes reconhece que a glândula pineal é a sede da alma, ou a parte do corpo em que ela exerce suas funções mais diretamente. Esta pequena glândula, localizada no centro do cérebro, é impulsionada, tanto pela agitação dos espíritos

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animais como pela ação da alma. Desse modo, a ação da alma sobre o corpo se dá, pois a alma, através da vontade, pode realizar uma agitação nos espíritos, alterar-lhes o curso. Em contrapartida, os espíritos, através destes mesmos movimentos, mobilizam a glândula pineal, provocando diversas percepções na alma. A glândula pineal é, pois, o locus no qual se estabelece o contato entre corpo e alma (Cf. Descartes 5, I, §34-39). Quando o filósofo determina uma sede corpórea para a alma, mormente, pode conferir à relação alma e corpo um caráter mecânico e ainda, tentar responder, de forma mais detalhada, ao problema colocado pela distinção substancial.3. Com efeito, no artigo 50 de As Paixões da Alma, Descartes argumenta que embora os movimentos tanto da glândula como dos espíritos e do cérebro, que representam à alma certos objetos, sejam naturalmente unidos aos que provocam certas paixões, eles podem, por hábito, ser separados destes e unidos a outros. Ademais, este hábito pode ser adquirido por uma única ação e não requer longa prática, de modo que: “quando encontramos inopinadamente uma coisa muito suja num alimento que comemos com apetite, a surpresa do achado pode mudar de tal forma a disposição do cérebro que, em seguida, não possamos mais ver esse alimento exceto com horror, ao passo que até então o comíamos com prazer” (Cf. Descartes 5, I, §50). Segundo Franco Donatelli (1999), para Descartes, “além das ligações naturais, é possível, por meio do hábito, estabelecer outras ligações, que podem ser chamadas artificiais, entre a vontade, os movimentos da glândula e dos espíritos animais. Assim, o hábito pode complementar o que a natureza já instituiu e, até mesmo, substituir o que ela estabeleceu” (Franco Donatelli 6, p.19). Ao ver de Espinosa, é através da idéia de hábito que Descartes tenta explicar como a vontade pode se resguardar do automatismo corporal, produzindo efeitos novos, como mostra o exemplo citado por ele.4. De fato, no artigo 45, que trata do “poder da alma com respeito às suas paixões”, Descartes fala que a vontade não excita, nem suprime as paixões, a não ser indiretamente por meio das representações das coisas que a razão oferece, representações estas que estão unidas às paixões que queremos ter, e que são contrárias as que queremos rejeitar (Cf. Descartes 5, I, §45).5. O problema aqui anunciado por Espinosa é que a teoria cartesiana das paixões exige uma comunicação entre as duas substâncias que compõem o homem, apesar de Descartes ter afirmado a impossibilidade de uma relação causal entre alma e corpo. Também para Espinosa, nem o corpo pode determinar a alma a pensar, nem a alma determinar o corpo ao movimento ou ao repouso, pois o que determina a alma a pensar é um modo do pensamento e não da extensão, e o movimento ou repouso do

corpo devem vir de outro corpo (Cf. Espinosa 7, EIII P2). A diferença é que, para ele, tudo se esclarece quando consideramos alma e corpo como uma e mesma coisa quando concebida, ora sob o atributo pensamento, ora sob o atributo extensão, e não substâncias distintas, como acredita Descartes. Para Espinosa a alma não se identifica a uma res cogitans, mas é “idéia do corpo” e “idéia da idéia do corpo” (idéia de si mesma). Daí resulta, para ele, que a ordem ou encadeamento das ações e paixões no nosso corpo seja simultânea à ordem das ações e paixões na alma, não significando com isso que haja uma relação causal entre alma e corpo (Cf. Espinosa 7, EIII SP2).6. L. Teixeira, em seu Ensaio sobre a moral de Descartes, em resposta aos que criticam a união substancial, pela impossibilidade de comunicação entre res cogitans e res extensa, afirma ser essa união também uma substância, ao mesmo título que a alma e o corpo o são. Com efeito, a união é uma mistura ou confusão de duas substâncias, para formar uma terceira substância, ainda que contingente (Cf. Teixeira 9, p.92). Não obstante, explicita o comentador, sendo confusa a idéia de união entre duas substâncias que, por definição, existem por si mesmas e se concebem cada uma por um conceito que lhe é próprio, considerada esta idéia incompreensível ao entendimento, só resta a Descartes explicá-la pela vontade divina. Isso significa dizer que, ainda que o filósofo coloque como problema o fato de res cogitans e res extensa se encontrarem unidas substancialmente no homem, ele não procura resolvê-lo. Mesmo a apresentação da glândula pineal, como sede da alma, não pretendeu resolver o problema da interação entre as duas substâncias: “É, pois, claro que Descartes afirma a ação da alma sobre o corpo através da glândula pineal: mas o fato de restringir à glândula a sede dessa ação não lhe ocorre que seja uma solução racional ao problema” (Teixeira 9, p.98). A seu ver, Descartes admite uma ação real da alma sobre o corpo, ainda que não possa racionalmente explicá-la: “Trata-se de um mistério da natureza, de algo incompreensível ao entendimento humano, ainda que irrecusável fato da experiência” (Teixeira 9, p.98).7. Para Espinosa, segundo Farias Brito, a extensão e o pensamento não são substâncias distintas, como queria Descartes, mas apenas atributos distintos, mas inseparáveis, de uma só e mesma substância: “só há, pois segundo elle uma existência única; esta é a substancia ou Deus” (Farias Brito 1, p.17). Cada um destes atributos, por seu turno, se desenvolve numa infinidade de modos, como os espíritos e os corpos, de modo que “a relação do attributo para a substancia é a mesma que a do modo para o attributo; tudo se encadeia sem se confundir, tudo se distingue sem se separar” (Farias Brito 1, p.18).8. O argumento da proposição 49 da Parte II é o de que, para a tradição, o entendimento concebe as idéias e a vontade e as relaciona, expressando um juízo. Para Espinosa,

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a volição singular e a idéia são idênticas, já que toda idéia já envolve uma afirmação ou uma negação, sem precisar recorrer a uma vontade “de fora”: “Não há, na mente, nenhuma volição, ou seja, nenhuma afirmação ou negação, além daquela que a idéia, enquanto idéia, envolve” (Espinosa 7, EII P49), de modo que “a vontade e o intelecto são um só e mesma coisa” (Espinosa 7, EII CP49).9. É, sobretudo, nas proposições finais da Parte II que Espinosa demonstra que não há na mente vontade absoluta ou livre. Isso porque a mente, como modo finito, é efeito necessário de causas necessárias, que formam a rede causal da natureza. Nela, cada efeito é também causa, enquanto produtor de outros efeitos: “Não há, na mente, nenhuma vontade absoluta ou livre: a mente é determinada a querer isto ou aquilo por uma causa que é, também ela, determinada por outra, e esta última, por sua vez, por outra, e assim até o infinito” (Espinosa 7, EII P48). Para Espinosa, a necessidade preside o todo da Natureza, pois tudo segue da eterna necessidade da natureza de Deus, ou seja, da causalidade eficiente imanente da substância. Destarte, a mente humana, sendo um modo da substância absolutamente infinita e não uma substância, não pode ser uma causa livre, isto é, causa absoluta, incondicionada ou indeterminada, não podendo assim ter uma faculdade absoluta de querer e não querer.10. Na Parte IV, Espinosa afirma: “um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser refreado” (Espinosa 7, EIV P7). Destarte, quando o corpo é afetado por uma afecção, esta só pode ser suprimida por uma causa corpórea, que afete o corpo com uma afecção contrária e mais forte. Na mente, um afeto somente poderá ser suprimido por outro mais forte e contrário a ele.11. Na Parte III, Espinosa afirma que nenhuma coisa pode ser destruída, a não ser por uma causa exterior (Cf. Espinosa 7, EIII P4), já que não podemos encontrar nela nada que a possa destruir (Cf. Espinosa 7, EIII DP4). Isso porque, cada coisa, enquanto está em suas forças, esforça-se para perseverar na existência (Cf. Espinosa 7, EIII P6), opondo-se a tudo que possa vir a suprimi-la (Cf. Espinosa 7, EIII DP6). Para Espinosa, tal esforço (conatus) pelo qual cada coisa tende a perseverar em seu ser não é senão a essência atual da própria coisa. Mas, apesar de cada coisa perseverar na existência, sua força é limitada e infinitamente superada pela potência de causas externas (Cf. Espinosa 7, EIV P3), de modo que, por sua positividade e indestrutibilidade intrínsecas, sua destruição pode apenas decorrer de uma ação externa a ela.12. De acordo com a Parte II, uma idéia é um ato da mente, já que formar idéias é uma ação própria da mente enquanto coisa pensante (Cf. Espinosa 7, EII Def.3). Além disso, uma idéia pode ser adequada (Cf. Espinosa 7, EII Def.4) ou inadequada

(Cf. Espinosa 7, EII P29). As idéias inadequadas são imaginativas, envolvem a natureza do corpo e dos corpos exteriores e da mente. Elas são formadas a partir de percepções corporais e não podem ser deduzidas unicamente da mente. Quando as idéias inadequadas são afetos elas são paixão, porque há dependência da mente em relação àquilo que ela não é. Já uma idéia adequada exprime a natureza do corpo, dos corpos exteriores e da mente, porque ela se explica ou se deduz unicamente da potência da mente. Esta idéia, quando é um afeto, é uma ação.13. Outra discordância de Espinosa em relação a Descartes diz respeito às concepções de ação e paixão. Descartes define ação e paixão como sendo o mesmo: “o que é uma paixão em relação a um sujeito é sempre ação em qualquer outro respeito” (Cf. Descartes 5, I, §1). Segundo ele, ação e paixão são sempre a mesma coisa com dois nomes, devido aos dois sujeitos diversos aos quais podemos relacioná-las. Espinosa não só recusa a idéia de que mente e corpo sejam substâncias, visto que são modos, mas também recusa a identidade cartesiana da ação e da paixão, distinguido-as a partir das noções de causa adequada e causa inadequada: “Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a causa adequada, isto é (pela def. prec.), quando de nossa natureza se segue, em nós ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só. Digo, ao contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que não somos senão a causa parcial” (Espinosa 7, EIII Def.2).14. “O amor nada mais é do que a alegria, acompanhada da idéia de uma causa exterior, e o ódio nada mais é do que a tristeza, acompanhada da idéia de uma causa exterior” (Espinosa 7, EIII SP13).15. Espinosa aqui trata do segundo gênero de conhecimento, que se refere ao plano das noções comuns. Este, ao lado do primeiro, relativo à imaginação, e do terceiro, identificado à ciência intuitiva, compõe a teoria do conhecimento espinosana. Segundo Teixeira (2001), para Espinosa, as noções comuns, exatamente por serem “comuns”, ainda que claras, distintas e verdadeiras, não nos dão a essência das coisas, já que apreender as essências é uma característica do terceiro gênero de conhecimento. A seu ver, no primeiro momento da Parte V, Espinosa ainda relaciona o segundo e o terceiro gêneros de conhecimento, não apresentando a superação definitiva da razão pela intuição. É somente na parte final da Ética que se dá “uma apoteose, uma deificação que se faz pelo terceiro gênero de conhecimento” (Teixeira 10, p.191).16. Com isso, Espinosa recusa a idéia estóica que coloca o desejo apenas no lado das paixões. Na Parte III, ele identifica o apetite ou desejo ao conatus, como a essência atual

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de uma coisa singular: O apetite “nada mais é do que a própria essência do homem, de cuja natureza necessariamente se seguem aquelas coisas que servem para a sua conservação, e as quais o homem está assim determinado a realizar. Além disso, entre apetite e desejo não há nenhuma diferença, excetuando-se que, comumente, refere-se o desejo aos homens à medida que estão conscientes de seu apetite. Pode-se fornecer, assim, a seguinte definição: o desejo é o apetite juntamente com a consciência que dele se tem” (Espinosa 7, EIII SP9). Estando, portanto, sempre presente, o desejo pode se realizar tanto na adequação, quanto na inadequação, dependendo se a mente está internamente disposta ou externamente determinada. No primeiro caso, a mente é causa adequada, tem idéias adequadas e são adequados os desejos que delas provém, no segundo caso, a mente é causa inadequada, tem idéias inadequadas e, por conseguinte, os desejos que delas nascem são também inadequados ou passivos.17. È importante dizer que, como esclarece Delbos, embora possamos ter um conhecimento claro e distinto de todas as afecções do corpo e afetos da mente, este conhecimento nem sempre é total, até porque o que um afeto tem de passivo nem sempre pode ser completamente destruído. Em vista disto, “nossas afecções devem ser estimadas conforme o que elas comportam de conhecimento claro ou, o que dá no mesmo, de potência proveniente só de nossa natureza” (Delbos 4, p.145).18. Na Parte IV, Espinosa afirma: “chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos” (Espinosa 7, EIV Praef). Para ele, segundo Chaui, a servidão, enquanto impotência humana, é a perda de potência de agir e de pensar do conatus corpo-mente. Ela se manifestaria na incapacidade humana para dominar os afetos, impondo-lhes medida e freio: “a servidão é impotência humana de quem, não estando sobre seu próprio poder e direito, está sob o domínio de uma força impetuoso e violenta, exposto e arrastado por ela: a força dos afetos, affectuum viribus” (Chaui 3, p.71-72).

SUBSTâNcIA INdIVIdUAl E RElAÇÃO ENTRE AlMA E cORPO EM lEIBNIz

SachaZilberKontic*

Resumo: A questão da união entre alma e corpo se apresenta na filosofia leibniziana de um modo único para a tradição da filosofia moderna. Ao invés de tentar entender como se dá essa relação, Leibniz busca explicar porque essa relação ocorre. Através da compreensão da substância individual ou Mônada como ao mesmo tempo sujeito lógico e centro expressivo ontológico será possível compreender porque a maneira como a alma e corpo se comunicam entre si se torna uma questão de pouca ou nenhuma relevância. Através do entrelaçamento dos conceitos de harmonia preestabelecida e expressão o filósofo alemão elimina definitivamente a possibilidade de uma relação causal entre ambos e em seu lugar introduz uma relação analógica que coloca em conexão ambas as séries de predicados. Palavras-chave: Leibniz, substância individual, harmonia preestabelecida, expressão, relação entre alma e corpo.

A identificação operada por Leibniz entre a lógica predicativa e a ontologia permitirá a ele constituir um sistema filosófico que busca resolver talvez a maior questão herdada de Descartes: como se dá a relação entre a alma e o corpo? A substância individual ou Mônada, ao mesmo tempo fruto e semente dessa identificação, será o ponto de partida para entender não tanto como essa relação ocorre, mas por que ela ocorre. O modo como Leibniz a define aparenta, entretanto, levantar mais dúvidas do que respostas. Como uma substância, sendo ao mesmo tempo independente de tudo mais exceto Deus, e um mundo inteiro à parte, pode estar em correspondência com todas as outras? Será necessário para explicar o comércio entre as substâncias afastar a explicação pela via das causas eficientes e ocasionais, erigindo assim uma metafísica que encontra seu fundamento na entre-expressão harmônica das substâncias.

* Graduando em Filosofia no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.

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Para elaborar como se dá essa relação, Leibniz não poderá se satisfazer com uma definição meramente nominal da substância individual: “quando se atribui grande número de predicados a um mesmo sujeito e este não é atribuído a nenhum outro” (Leibniz 6, §8, p.124). É necessário atribuir a essas relações lógicas uma realidade maior, pois “toda preposição tem algum fundamento na natureza das coisas” (Idem ibidem). O sujeito deverá conter em si todos seus predicados in-esse, de modo que uma compreensão perfeita da natureza ou essência do sujeito reconheça nela todos os seus predicados, presentes, passados e futuros, que lhe pertencem.

Essa compreensão completa, entretanto, não cabe ao intelecto humano. O entendimento perfeito das operações lógicas operadas entre o sujeito e suas predicações está presente em sua totalidade apenas no intelecto divino. Assim, Deus, que vê perfeitamente a essência de todas as substâncias, sabe o que ocorrerá a cada delas e, no caso das almas, todos os pensamentos que terá. Na noção perfeita do sujeito Alexandre Magno estão, portanto, contidos a priori os predicados “ser rei” e “vencerá Dario e Poro” e até mesmo se ele morreu envenenado ou por morte natural. Conhecimentos que só podemos ter através da história.

Considerando, como defende nosso filósofo, que os átomos de matéria são contra a razão, e que, conseqüentemente, a matéria é necessariamente divisível ao infinito, as substâncias se apresentam como as únicas verdadeiras unidades da metafísica leibniziana. Verdadeiros “Átomos de substância, ou seja, as unidades reais e absolutamente destituídas de partes” (Leibniz 9, p.71). Ao contrário dos pontos físicos, que são indivisíveis apenas em aparência, e dos pontos matemáticos que são apenas modalidades, esses pontos metafísicos ou de substância são exatos e reais. Eles são os sujeitos e seus predicados são momentos de uma existência que se desdobra no tempo, e contém em si a razão e as leis dessas determinações temporais (Guéroult 2, p.299). A substância, portanto,

contendo tudo que lhe acontecerá na sua própria noção não poderá ter nada externo a si como causa direta ou real de seus predicados.

Desse modo podemos dizer que a substância é independente de tudo mais no universo com a exceção de Deus, que lhe é causa primeira e que a cria continuamente no tempo. Na Monadologia, Leibniz caracteriza novamente as substâncias individuais ou mônadas como substâncias cujas ações e afecções são completamente independentes de ações ou afecções externas: “As mudanças naturais das Mônadas procedem de um princípio interno, pois no seu íntimo não poderia influir causa externa nenhuma” (Leibniz 7, §11, p.106), e “contêm em si uma certa perfeição e têm uma suficiência a torná-las fontes de suas das suas ações internas” (Leibniz 7, §18, p.106). Os acontecimentos que ocorrem a uma substância são deduzidos unicamente de sua noção individual da mesma maneira e com a mesma necessidade que se deduz da noção ou definição específica de uma esfera todas as suas propriedades (Leibniz 5, p.41). Entretanto, a noção individual se diferencia da noção específica por ser necessária apenas ex hipothesi, não absolutamente. Pois Deus é livre para criar ou não, por exemplo, a noção individual de Adão, embora ela seja necessária para que esse mundo seja o melhor dos mundos possíveis. Ela pode então ser concebida tanto no entendimento divino, pois foi criada pela vontade e pela liberdade de Deus, quanto em si mesma, por conter in-esse seus predicados.

Dessa definição se segue uma nova questão essencial à filosofia leibniziana, cuja resposta será um dos pilares fundamentais de sua filosofia: como se dá, então, o comércio entre as substâncias? E, num caso mais particular, a união da alma e do corpo?

A chave para essa resposta encontra-se nos conceitos vitais de expressão e harmonia preestabelecida. Leibniz define o primeiro na carta a Arnauld de 9 de outubro de 1687: “Uma coisa exprime uma outra (em

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minha linguagem) quando há uma relação constante e regrada entre o que se pode dizer das duas” (Leibniz 5, p.136). Nos Novos ensaios, Teófilo- Leibniz se utiliza do exemplo da parábola ou hipérbole, que guarda alguma relação ao círculo do qual é a projeção, para explicar a Filaleto- Locke como se dá a expressão: “existe uma relação exata e natural entre aquilo que é projetado e a projeção que se forma, sendo que cada ponto de um corresponde segundo uma certa relação a cada ponto do outro” (Leibniz 8, II, viii, §15, p.81). A expressão, portanto, é uma relação de ordem entre o que exprime e o que é expresso. O que ocorre com um dos elementos da expressão também ocorre com o outro sem a necessidade de uma relação de causalidade. É necessário somente que se mantenha uma analogia entre ambos. Cada elemento opera segundo suas próprias leis, e analogia garante a correspondência recíproca dessas relações.

Essa relação de ordem de modo algum implica necessariamente uma semelhança. Mas sim uma lei subjacente, um invariante que, segundo Lebrun, “designa justamente uma correspondência tão ampla – entre dois conteúdos, entre duas séries – que uma simples inspeção das imagens não poderia deixar de supor” (Lebrun 4, p.440). Não no sentido de uma fidelidade a um original, como algo que precede essa correspondência. O invariante aparece apenas através do encadeamento das relações. O círculo é tanto projeção da parábola quanto a parábola projeção do círculo. O que obtemos é a ordem única da relação entre ambos. É a partir disso que podemos entender por que, para Leibniz, todo o efeito integral corresponde a causa plena. Qualquer efeito é uma expressão de sua causa e disse se segue que traz em si a regra ou lei que a relaciona com sua causa.

Assim, a substância, sendo criada por Deus, o exprime. Pois, como cada efeito exprime sua causa, e sendo Deus a causa primeira e razão última de toda a existência, todas as substâncias exprimem a mesma causa. E ao exprimir Deus, a substância exprime também todo o universo. Expressão,

todavia, que não é perfeita; ela exprime o Todo apenas confusamente e a sua maneira, do mesmo modo que uma mesma cidade é representada de modos diferentes dependendo das diferentes situações de quem a olha. Assim entendida, a alma tem do universo uma percepção ao mesmo tempo infinita e singular. Pois todas as substâncias expressam o mesmo mundo, mas o que diferencia essas expressões é a perspectiva individual sobre o todo. Assim como um ponto no qual se forma uma infinidade de ângulos pelas retas que para ele convergem, a substância (o ponto metafísico) forma infinitas relações com o que está fora dela. Cada substância individual é, portanto, um conjunto único de relações expressivas. E, consequentemente, todas as substâncias ou Mônadas possuem uma percepção, embora nem todas possuam pensamento ou reflexão.

Compreendida assim, cada substância é então também um ponto de vista particular do conjunto, do invariante.

“Embora todos exprimam os mesmos fenômenos, nem por isso as suas visões se identificam; é suficiente que sejam proporcionais. Do mesmo modo vários espectadores crêem ver a mesma coisa e efetivamente se entendem entre si, embora cada um veja e fale na medida da sua vista” (Leibniz 6, §14, p.130).

É necessário que a geometria aprendida por um cego e por um paralítico “se encontrem, concordem, e até voltem às mesmas idéias, embora não haja imagens comuns” (Leibniz 8, II, ix, §8, p.86). A substância individual pode ser caracterizada então como “um centro expressivo”, pois “sua visão é a sua maneira de exprimir os fenômenos, é a sua expressão desse universo único e multiplicado pelas infinitas visões que se pode ter dele” (Lacerda 3, p.78).

A harmonia preestabelecida é o que vai garantir que as variedades infinitas de predicados de todos esses centros expressivos e suas respectivas

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expressões nas outras substâncias se organizem de modo que ambos se acomodem entre si do modo mais perfeito possível. Pois Deus, no momento da criação, escolheu dentre todos os mundos possíveis aquele em que todos os fenômenos se harmonizem e se entre-expressem entre si do melhor modo. Segundo Yvon Belaval,

“[a harmonia preestabelecida] tem seu fundamento na entre–expressão das mônadas que faz com que tudo se sustente, que nada seja sem efeito (...); e a entre-expressão das mônadas por sua vez encontra seu fundamento nesse modelo inteligível do mundo, concebido por Deus anteriormente a criação” (Belaval 1, p.112).

Os dois conceitos (a harmonia preestabelecia e a expressão) então não só se completam, mas também estão intrinsecamente ligados e se envolvem reciprocamente. E assim todas as substâncias simples simpatizam com todas as outras e cada mudança nelas corresponde a uma mudança no universo (cf. Lacerda 3, p.16).

Portanto quando dizemos que uma substância age sobre outra no nível dos fenômenos está implícita no nível metafísico uma concomitância entre os predicados de ambas e suas respectivas expressões. Ou seja, pela harmonia estabelecida por Deus no momento da criação as substâncias são obrigadas a acomodar-se entre si. Pode ocorrer que uma modificação aumente a expressão de uma substância, diminuindo a de outra, de tal modo que fenomenicamente haja uma causalidade entre elas. Mas o que ocorre na realidade é uma concomitância nos predicados de ambas e nas suas entre-expressões:

“as percepções ou expressões de todas as substâncias se entrecorrespondem de tal sorte que qualquer um, seguindo atentamente certas razões ou leis que observou, se encontra com outro que fez o mesmo, como quando várias pessoas, tendo

combinado encontrar-se reunidas em lugar e dias prefixados, podem efetivamente fazê-lo” (Leibniz 6, §14, p.130).

Por isso, Leibniz pode afirmar, no §10 do Discurso de metafísica, que as formas substanciais não devem ser empregadas no pormenor da física e dos efeitos particulares. Neles a lei da causalidade é uma certeza suficiente para o conhecimento das leis subalternas. Entretanto ela é tem apenas uma certeza moral, é impossível ter delas, pelas razões que vimos acima, uma certeza metafísica. As leis da física são válidas apenas enquanto seus preceitos sejam suficientes para explicar distintamente os fenômenos. Embora não haja nenhuma garantia metafísica que esses preceitos continuem tendo validade no futuro.

Essas conclusões deixam um novo problema para Leibniz, pois sendo a alma e o corpo substâncias distintas, não há como explicar como algo passa da alma para o corpo, ou vice versa. Nas suas próprias palavras:

“Após ter estabelecido essas coisas, eu acreditava entrar no porto; mas assim que me coloquei a meditar sobre a união da alma com o corpo, me encontrei novamente em pleno mar” (Leibniz 9, p.72).

A alma e o corpo não podem manter entre si uma influência real. Segundo ele, os discípulos de Descartes, ao tentar retomar a questão que seu mestre havia deixado no ar, acertaram em dizer que a comunicação entre os movimentos da alma e do corpo é inconcebível. Entretanto, a conclusão “das belas reflexões do autor da ‘A busca da Verdade’” (Leibniz 9, p.72)1, a saber, a crença de que Deus dá ao corpo movimento à ocasião de um movimento da alma e vice-versa (o sistema de causas ocasionais), falha em explicar o que ocorre efetivamente. É recorrer todo o tempo ao milagre de um Deum ex machina, o que não condiz com a economia geral

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do universo. Será, portanto, somente através dos mesmos princípios, a saber, a harmonia preestabelecida e a expressão, aplicados em conjunto à relação entre as substâncias em geral, que será possível explicar, na filosofia leibniziana, como se dá a união da alma e do corpo.

A alma, sendo uma substância individual ou Mônada, e o corpo, um agregado de muitas (para Leibniz não existe uma verdadeira unidade no corpo, ele é apenas um agregado fenomênico de substâncias), não podem ter entre si, como já vimos, uma relação causal. Os dois não sofrem uma “influência mútua”, como pensa Huygens, nem se relacionam através de uma interferência direta de Deus, como pensa Malebranche. Assim como dois relógios que mantém sempre o mesmo horário pelas suas próprias exatidões, a alma e o corpo mantêm entre si uma harmonia perfeita derivada da concomitância entre as duas partes: “um acompanha sempre o outro em virtude da correspondência estabelecida antes, mas cada um tem sua causa imediata em si mesmo” (Leibniz 5, carta de 9/10/1687, p.142). Posso dizer, portanto, que minha mão não se move porque eu quero, mas porque não poderia querer se não fosse justamente o momento em que os recursos de minha mão conspiravam para o seu movimento.

É da natureza da substância, como já foi visto, exprimir todo o universo. Mas a alma, por sua vez, expressa mais distintamente o que se sucede atualmente em relação a seu corpo. Embora o corpo opere segundo suas próprias leis, pela harmonia preestabelecida as ações e sentimentos da alma correspondem ao que acontece no corpo e vice-versa. Não há relação causal entre alma corpo, mas há uma relação analógica que coloca em conexão ambas as séries. De tal modo que uma picada feita por uma agulha no corpo causa na alma a impressão de dor. Porque, explica Leibniz a Arnauld, “os estados da alma são natural e essencialmente expressões dos estados correspondentes do mundo, e, em particular, dos corpos que, nesse momento, são seus” (Leibniz 5, carta de 9/10/1687, p. 139).

Já vimos que a relação de expressão não envolve necessariamente a semelhança entre a expressão e o exprimido. De tal modo que não é um problema para Leibniz que a dor pouco se assemelhe ao movimento do ferro em nossa carne.

“Se a representação é de direito, inútil mostrar como isto está presente naquilo ou se reproduz naquilo. (...) contrariamente à impressão de uma imagem ou à recepção de um sinal, a expressão não implica que haja trajeto, mesmo que metafórico” (Lebrun 4, p.446).

O modo como ocorre essa comunicação torna-se, conseqüentemente, de pouca ou nenhuma importância. Pois, rigorosamente falando, ela não ocorre. A correspondência entre a alma e o corpo é explicada de um modo natural: ela é garantida a priori pela harmonia preestabelecida entre ambas.

Isso nos permite compreender por que Leibniz pode atribuir percepção a alma, assim como a todas as substâncias, independente da presença de um corpo sensível. Não podemos pensar como Descartes, que atribuía nossa percepção a portas e janelas pelas quais nossa alma receberia mensagens recebidas pelo nosso corpo. A percepção da alma, assim como de qualquer outra substância, se deve às próprias relações expressivas que ela mantém com o todo.

Mas o que nos leva a supor, então, que haja efetivamente uma comunicação entre a alma e o corpo? Teófilo explica a Filaleto: do mesmo modo que uma pintura nos engana com o uso de uma perspectiva bem entendida (Leibniz 8, II, ix, §8, p.85). Quando vemos um quadro, existe ao mesmo tempo em nosso juízo um duplo erro: em primeiro lugar há uma metonímia, pois tomamos o efeito pela causa ao julgar ver imediatamente o que constitui a causa da imagem enquanto só vemos propriamente a imagem. Em segundo lugar uma metáfora, ao tomar uma causa pela outra,

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considerando que aquilo que não provém senão de uma pintura plana é derivado de um corpo. O mesmo ocorre, diz ele, quando julgamos, ao sentir nosso corpo ou aquilo que o afeta, que há um intercâmbio entre a alma e o corpo. Julgamos perceber a causa do que afeta nosso corpo fisicamente enquanto só sentimos as relações expressivas que estão dentro de nós.

A questão da relação entre a alma e o corpo é assim deslocada: não importa mais como ela ocorre, mas sim porque ela ocorre. É por isso que Leibniz não reivindica ter resolvido o problema da comunicação do corpo e da alma. Problema que se torna de pouca ou nenhuma importância em seu sistema. A sua metafísica se constrói sob as relações expressivas existentes entre ambas e entre as infinitas outras substâncias do universo. E essa relação entre o uno da substância e o todo do universo, na qual todas as substâncias se entre-expressam da forma harmoniosa, seguindo os desígnios de Deus, é que marcará toda a sua obra filosófica. Não mais unida, estritamente falando, com o corpo, a alma é auto-suficiente e independente de qualquer outra criatura. Engloba o infinito e exprime o universo, sendo, portanto, como um mundo inteiro à parte.

REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:

1. BELAVAL, Y. Leibniz critique de Descartes, Paris: Gallimard, 1960.2. GUÉROULT, M. “Substance and the Primitive Simple Notion in the Philosophy

of Leibniz”, In: Philosophy and Phenomenological Research, Vol. 7, Nº. 2, Blackwell: 1946.

3. LACERDA, T.M. A expressão em Leibniz, Dissertação de doutorado, São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.

4. LEBRUN, G. “A noção de ‘semelhança’ de Descartes a Leibniz”, In: A filosofia e sua história, São Paulo: Cosac Naify, 2006.

5. LEIBNIZ, G.W. Correspondencia con Arnauld, Buenos Aires: Editorial Losada, 2004.

6. ______. Discurso de Metafísica, In: Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1979.

7. ______. A Monadologia, In: Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1979. 8. ______. Novos ensaios sobre o entendimento humano, In: Os Pensadores, São

Paulo: Abril Cultural, 1979.9. ______. Système Nouveau de la Nature, Paris: Flammarion, 1994.

INDIvIDUAL SUbSTANCE AND RELATIoN bETwEEN boDy AND SoUL IN LEIbNIz

Abstract: The issue of the union between soul and body presents itself in the Leibnizian philosophy in an unique way through the modern philosophy tradition. Instead of explaining how this relationship happens, Leibniz inquires why does it happen. Through the understanding of the individual substance or Monad as being at the same time logical subject and ontological expressive center, it will be possible to understand why the fashion of how soul and body communicate with each other becomes a question of little or none importance. Through the intertwining of the concept of pre-established harmony with that of expression the German philosopher definitely eliminates the possibility of a causal relationship between both and introduces instead an analogical relationship that puts both series of predicates in connection. Keywords: Leibniz, individual substance, pre-established harmony, expression, relation between soul and body.

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BREVE APRESENTAÇÃO dE “A TRANScENdêNcIA dO EgO - ESBOÇO dE UMA dEScRIÇÃO

fENOMENOlógIcA”, dE JEAN-PAUl SARTRE

Alexandre de oliveira torres carrasco*

O ensaio “Transcendência do ego – esboço de uma descrição fenomenológica” pode ser considerado o marco zero da identidade filosófica de Sartre. Tal afirmacão, como é de se imaginar, não se deve apenas às razões cronológicas – o primeiro texto propriamente filosófico e de larga visada escrito pelo autor. Sabe-se, ademais, que ele forma um díptico com outro ancestral texto sartreano, a “Idéia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade”, e que ambos, muito provavelmente, foram, senão escritos, pelo menos pensados muito próximos no tempo, entre 1934 e 1936 e são efeitos diretos do descobrimento sartreano da fenomenologia de Husserl, descobrimento que levou o jovem Sartre, de setembro de 1933 a junho de 1934, a um estágio no Instituto Francês de Berlim (De Coorebyter in Sartre 7, p. 7-9) A anedota é conhecida: Raymond Aron, em um café com Sartre e Simone de Beauvoir, ao ouvir o antigo colega normalien expor suas últimas preocupações filosóficas, imediatamente as assimila a (então) nova filosofia alemã, chamada Fenomenologia. Daí, quase imediatamente, Sartre lê o pioneiro livro de E. Levinas, “Teoria da intuição na fenomenologia de Husserl” e propõe substituir Aron no Instituto Francês de Berlim (Cohen-Solal 1, p. 181). O resultado mais visível do dito descobrimento será a publicação, em fins de 1937, do ensaio “Transcendência do Ego. Esboço de uma descrição fenomenológica” na revista Recherches philosophique, dirigida por Alexandre Koyré. O artigo sobre a intencionalidade, mais brutal e em tom de manifesto filosófico, aparecerá em janeiro 1939 na NRF.

* Professor da Faculdade de Filosofia da Unifesp

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De fato, podemos dizer que a datação é necessária mas não suficiente para entendermos todo o escopo inaugural destes dois primeiros textos e as óbvias razões de ordem cronológica podem involuntariamente inverter a ordem do problema. Pois é o sentido filosófico inédito desses textos que os torna um marco (também) cronológico e não o contrário. E, nesta brevíssima apresentação, é disso que se trata.

Comecemos, pois, considerando que TE (junto com a “Intencionalidade”) institui certa “pré-história” (com as devidas aspas) do pensamento sartreano. “Pré-história” cujo sentido somos obrigados a esclarecer. De algum modo o peso filosófico de “O ser e o nada” acabou se superpondo ao díptico TE&Intencionalide e sem querer negar a evidente continuidade da “pré-história” do pensamento sartreano em relação à sua “história” – reconhecida pela crítica e pela historiografia – nem suas possibilidades como via de entrada para as obras ulteriores de Sartre, seria preciso detalhar com maior precisão, eis a questão, por meio de qual diferença esta continuidade se estabelece (e mesmo, institui-se), já que a correlação entre a fenomenologia sartreana (seus textos fenomenológicos) e sua ontologia fenomenológica parece-nos imperfeita, e por motivos que mencionaremos de passagem, na sequência. Evidentemente que aqui também se trata de um pequeno esboço e roteiro dessa ordem da diferença, sem maiores pretensões.

Antes de entrarmos, sumariamente, como convém, na diferença em relação a “O ser e o nada”, seria preciso entender o ato inaugural que estes dois textos estabelecem. A chave pode bem estar já no título de artigo menor e mais combativo: a intencionalidade.

A primeira frase do pequeno artigo sobre a intencionalidade começa, em respeito ao gênero polêmico que o caracteriza, com o famoso “ele comia com os olhos”. E ele, o artigo, reatualiza, por meio dessa abertura, verdade que sob uma feição enragée, um conjunto de

problemas clássicos, tratados pela mais “nova ciência de rigor”. E que poderíamos resumir na seguinte asserção: por que processos, o conhecimento não apenas se põe como conhecimento mas igualmente se valida enquanto tal? A pergunta fenomenológica (muito cartesiana nessa formulação, pode-se suspeitar) já esbarra na série de positivismos a enfrentar: realismo, psicologismo, naturalismo e, enfim, o último de nossos inimigos, o ceticismo. Voltemos pois ao nosso “ele comia com os olhos” que abre o texto, que traduz e estiliza nossos problemas. Nenhuma dessas variantes (de positivismos mais o temível ceticismo, dirá o fenomenólogo) escapa à rigorosa sentença proferida em tons de profeta: oh filosofia alimentar. Retórica à parte, de onde vem essa fome da filosofia? Conteúdos e consciência, dados e consciência, forma e conteúdo. Nessa clivagem já está escrita (quase) todo o problema da fenomenologia porque o que se trata de entender não é tanto como é possível “conteúdos da consciência”, (uma relação exterior de continente e conteúdo a fundamentar o conhecido) mas de como a consciência, para ser consciência, prescinde dessa forma “conteúdo”, submetendo tudo a sua própria forma, a forma de “consciência de (...)”. E eis a intencionalidade. É por meio desse expediente que o outro da consciência, os conteúdos, passa a ser a própria consciência, mas não em sentido realista, substancialista, naturalista... mas no inédito sentido intencional. Escapamos dos positivismos, por um lado, do ceticismo, por outro. É por meio da dessa “forma consciência”, “toda consciência é consciência de (..)”, que o problema do conhecimento (em um primeiro momento) é pensado segundo essa nova visada, a da imanência intencional. A chave do problema (e não só do problema do conhecimento) deixa de ser a “representação”, a conexão de direito entre continente e conteúdo, para ser a intencionalidade como forma de atividade e a atividade da forma como consciência.

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Este é o ponto de partida para as investigações acerca da transcendência do Ego, o lugar de onde parte o ensaio sartreano. Lá Sartre desloca o problema de seu viés de origem, essencialmente epistemológico, para um âmbito que em outros tempos se chamaria de metafísico. Mas, sabidamente, o Autor evita o termo e o deslocamento que produz não significa, de fato, uma volta à metafísica (no seu sentido tradicional), mas um alargamento da própria fenomenologia e sua extensão até as chamadas filosofias da existência. Porque agora estamos diante, guardada as devidas proporções, de uma investigação acerca da “experiência da consciência” e seus mecanismos de efetivação.

Se nos detivermos nas primeiras páginas da TE poderemos depreender, então, sua primeira feição, e por meio dela estabelecer uma chave de leitura provisória.

Temos, inicialmente, como que a apresentação sumária de duas teses contra as quais o Ensaio polemiza e discute para afirmar seu axioma e os corolários que se desdobram dele: o Ego como “habitante” da consciência, logo, objeto transcendente. O problema de saber qual o estatuto desse habitante, sua relação conceitual com a consciência, revela-se à medida que o ensaio qualifica melhor suas duas contra-teses privilegiadas: o Ego como princípio vazio de unificação dos vividos (“Erlebnissen”), isto é, como um dispositivo “formal”, de certo modo “invisível” que operaria às costas da consciência para unificar a multiplicidade de suas operações e o Ego como “presença material” marca visível de cada ato da consciência. Nos dois casos, o Ego determinaria “de fora” a estrutura da consciência. Sartre traduz estas duas teses como as teses da presença formal e material do Ego em relação à consciência respectivamente, o que o obriga a tomar posição tanto em relação a Kant quanto em relação aos moralistas tradicionais que supõe que a consciência dos afetos (as paixões da alma) seja produto de um Ego sub-reptício e não o contrário. As duas frentes pretendem esgotar

os problemas associados ao Ego cobrindo uma extensão que vai da ênfase epistemológica da presença do Ego – princípio formal de unificação – até a ênfase moral (e “psíquica”) de sua presença – o Ego como mentor de nossos estados e afetos. Nos dois casos teríamos um Ego efetivo, não a ilusão necessária que nos espera no final do ensaio.

A importância destas primeiras observações será a de indicar, de forma pressuposta, quais as conseqüências de uma abordagem fenomenológica da consciência. É bom lembrar que aqui consciência nada tem que ver com Ego. O esforço, ao contrário, é purificar a atividade autárquica da consciência do protoplasma pegajoso do Ego, seja transcendental, seja material. E parece que para isso Sartre opta pela via negativa: ele começa falando do que não se trata. E a primeira posição que deve marcar é em relação à filosofia crítica: aqui não se trata de como as operações – da consciência?, das representações?, da subjetividade? devem ser, de apreender a esfera de sua legalidade, mas de como elas são de fato.

A teoria da presença formal do Eu (Je), exemplo do procedimento sartreano

Daí que, já apresentando o que vem a ser este “fato” em questão, Sartre não se furta em enfatizar o caráter “científico” da fenomenologia, o que muito simplesmente significa que ela tem um “objeto”, “um fato”, mesmo que este “objeto”, que este “fato” seja a própria “atividade da consciência” que a põe na exata medida que põe seu objeto, o sentido fenomenológico de aparição. A “presença”, alvo de crítica feroz da geração que se segue aos anos Sartre, a tal “proximidade absoluta com co objeto” é a chave dessa aparição. Eis que para escapar do kantismo à francesa, Sartre revela uma das marcas registradas do discurso crítico: sua radical recusa de objeto. (Analogamente, o discurso crítico se comporta

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como um meta-discurso da razão cujo objeto é a razão tomada como atividade legisladora, como é bem sabido). Mas notem, ultrapassado este sumário acerto de contas com o discurso crítico – Sartre é crítico feroz do neokantismo francês, mas não de Kant – o Autor passa a indicar em que termos se estabelece “seu” discurso, isto é, o “discurso fenomenológico”.

Assim, diz Sartre: “Se abandonamos todas as interpretações mais ou menos forçadas que os pós-kantianos deram do “Eu penso” e, no entanto, ainda quisermos resolver o problema da existência de fato do Eu na consciência, reencontramos em nosso caminho a fenomenologia de Husserl”. E mais uma vez reforçamos: o problema da “transcendência do Ego” – e devemos entender o que significa neste contexto, no contexto do ensaio sobre a TE, “transcendência” (de que em relação a que) e “Ego” – está inscrito nas relações de fato entre Ego (Eu) e consciência, daí ser crucial não confundir o fato de termos consciência – e veremos ser esta consciência qualquer minha independente do Eu – com o fato de como este Eu acompanha ou não, aparece ou não (e em que circunstância) à consciência.

Segue Sartre: “A fenomenologia é o estudo científico e não crítico da consciência”. Se este “científico” decorre de um objeto, de um fato, poderíamos precisar um pouco mais este objeto: é daquela primeira evidência que falamos, é ela que se presta a ser apreendida pela intuição, que, por seu turno, põe-nos em presença da coisa “em carne em osso”. Daí que evidência em sentido largo, intuição, vivido circunscrevem um mesmo fato original da consciência. Ora, e se estamos no domínio dos fatos, o problema que nos concerne, o das relações entre consciência e Eu, é um problema de fato, um problema “existencial”. Paulatinamente passamos do problema da normatividade epistemológica para o de uma ordem “existencial”.

Chega-se, enfim, ao corolário de nosso axioma: o Ego habitante de uma consciência completamente purificada:

“É necessário que ele [“mim” psíquico e psico-físico] seja duplicado em um Eu transcendental, estrutura da consciência absoluta? Vê-se as conseqüências desta resposta. Se ela é negativa, eis o que resulta:1° que o campo transcendental se torna impessoal, ou, se se prefere, “pré-pessoal”, ele é sem Eu;2° que o Eu apenas aparecesse no nível da humanidade e que não fosse senão uma face do “mim”, a face ativa;3°que o Eu penso pode acompanhar nossas representações porque ele sobre um fundo de unidade que ele não contribuiu para criar e que justamente é esta unidade prévia que o torna possível, não o contrário4°que se está livre para perguntar se a personalidade (mesmo a personalidade abstrata de um Eu) é um acompanhamento necessário de uma consciência e se se pode conceber consciências absolutamente impessoais”.

Ora, o que define a consciência? Primeira resposta: a

intencionalidade. O que significa “intencionalidade”? Significa que a consciência se dá – isto é, se realiza como consciência, se define como consciência – na exata medida em que ela se “transcende”, isto é, vai em direção a um objeto qualquer para unificar-se nele como unidade sintética irredutível. Ou em outros termos, só há consciência se aparece algo à consciência. Porque a consciência é sempre consciência de alguma coisa, a consciência deve ser definida como movimento, como não substancial. Porque ela não pode coincidir absolutamente com este objeto qualquer sob pena de deixar de ser consciência, isto é, se a consciência da cadeira for a própria cadeira, ela não é mais consciência e sim cadeira: daí a consciência ser a proximidade absoluta com o objeto, movimento que se realiza como consciência no objeto. Este detalhe delineia algumas características do fato da consciência: a realização da consciência no objeto qualquer não a faz coincidir com este objeto: é a consciência que

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é o fato absoluto, não o objeto. Ela é, portanto, radicalmente autárquica, outro modo de apresentar sua espontaneidade radical.

Sobre o que estes primeiros elementos da análise da consciência nos informam? Ele nos informam que até este ponto a “estrutura da consciência” é tal que ela se realiza por meio deste movimento de transcendência que se ultrapassa em se unificando. Melhor: a definição de consciência se realiza na consciência de um objeto qualquer, neste movimento que produz esta proximidade absoluta com um objeto qualquer que não se confunde substancialmente com a consciência porque ela não é substância. Ele prescinde de qualquer instância fora do escopo de sua operação.

Uma vez isso estabelecido, restará entender a emergência do Ego, seu escopo, sua natureza. Mas isso deixamos para a leitura atenta do texto.

Antes de concluirmos, duas observações, para responder a uma nossa antecipação: como pensar a relação entre a TE e “O ser e o nada”? Parece que temos dois elementos a considerar: a leitura de Heidegger, ainda que citado em a TE, ele não exerce ali papel preponderante e, por outro lado, a presença maciça de Heidegger em “O ser e o nada”, mas muito à maneira sartreana.

Vejamos:

“Insólita leitura sartreana: a impregnação de temas heideggerianos (a transcendência, o ser-no-mundo, diferença entre autenticidade e inautenticidade) é gritante; mas um ajuste capital opera desde sempre em proveito do dualismo entre o em-si e o para-si (dualismo que Sartre vai tentar conjurar): e nesse jogo, é a filosofia da consciência que reaparece e vai se impor novamente”. (Janicaud 2, p 64).

Parece-nos, enfim, que é este novo elemento que impede uma analogia perfeita entre a fenomenologia e a ontologia fenomenológica

sartreana, de que falávamos no início desta apresentação, e que favorecendo o equívoco, favorece a riqueza e a inquietude de um pensamento.

Utilizamos para a tradução a primeira versão da TE, publicada pelas recherches philosophiques, mas não nos furtamos em consultar as edições ulteriores desse ensaio bem como o excelente arrazoado crítico-filosófico de V. De Coorebyter.

REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:

1. COHEN-SOLAL, Annie. sartre 1905-1980. Paris, Gallimard, 1999.2. JANICAUD, Dominique. heidegger en France. Paris, Hachette Littératures/Albin

Michel, 2001.3. SARTRE, Jean-Paul. “La transcendance de l´ego” in recherches philosophiques,

nº 6, 1937.4. ____. L´être et le neant. Paris, Gallimard, 1943.5. ____. carnets de la drôle de guerre. Paris, Gallimard, 1995.6. ____. La trancendance de l´ego, esquisse d´une description phénoménologique.

Introdution, notes et appendices par Sylvie Le Bon, Paris, Vrin, 1998.7. ____. La transcendance de l´ego et autres textes phénoménologiques. Texte

introduits et annotés par V. Coorebyter, Paris, Vrin, 2003.

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A TRANScENdêNcIA dO EgO – ESBOÇO dE UMA dEScRIÇÃO fENOMENOlógIcA*

Jean-paul sartre

Para a maior parte dos filósofos o Ego é um “habitante” da consciência. Alguns afirmam sua presença formal no interior dos “Erlebnisse” como um princípio de unificação vazio. Outros – psicólogos na sua maior parte – pensam descobrir sua presença material, como centro de desejos e de atos, a cada momento de nossa vida psíquica. Pretendemos mostrar aqui que o Ego não está nem formalmente nem materialmente na consciência: ele está lá fora, no mundo, é um ser do mundo, como o Ego do outro.

Io eu e o “mim”

A) Teoria da presença formal do eu

É necessário concordar com Kant que “o Eu penso deve poder acompanhar todas nossas representações”. Mas é necessário concluir disto que um Eu de fato habita todos nossos estados de consciência e opera realmente a síntese suprema de nossa experiência? Parece que isto seria forçar o pensamento kantiano. O problema da crítica, sendo um problema de direito, Kant nada afirma a respeito da existência de fato do Eu penso. Parece, ao contrário, que ele vira perfeitamente que havia momentos da consciência sem “Eu” já que disse: “deve poder acompanhar”. Trata-se, com efeito, de determinar as condições de possibilidade da experiência.

* SARTRE, Jean-Paul (1937) “La transcendance de l´ego” in Recherches philosophiques, nº 6, tradução e apresentação de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco. Todas as notas numeradas (1,2,3...) são do Autor, as demais do Tradutor.

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Uma dessas condições é que eu possa considerar minha percepção ou meu pensamento como meus: eis tudo. Mas há uma tendência perigosa na filosofia contemporânea – cujos traços se encontrariam no neo-kantismo, o empíreo-criticismo e um intelectualismo como o de Brochard – que consiste em realizar as condições de possibilidade determinadas pela crítica. É uma tendência que leva certos autores, por exemplo, a se perguntar o que pode ser a “consciência transcendental”. Se se coloca a questão nestes termos, se é constrangido a naturalmente conceber esta consciência – que constitui nossa consciência empírica – como um inconsciente. Mas Boutroux, em suas lições sobre a filosofia de Kant, já fazia justiça a essas interpretações. Kant nunca se preocupou com o modo pelo qual se constitui de fato a consciência empírica, ele absolutamente não a deduziu, a maneira de um processo neo-platônico, de uma consciência superior, de uma hiper consciência constituinte. A consciência transcendental é para ele apenas o conjunto de condições necessárias à existência de uma consciência empírica. Daí, realizar o Eu transcendental, fazer dele companheiro inseparável de cada uma de nossas “consciências”*, é julgar sobre o fato e não sobre o direito, é se colocar em um ponto de vista radicalmente diferente daquele de Kant. E se, entretanto, afirma-se que isto autoriza considerações kantianas sobre a unidade necessária da experiência, comete-se o mesmo erro que aqueles que fazem da consciência transcendental um inconsciente pré-empírico.

Caso, pois, se concorde com Kant em relação à questão de direito, a questão de fato não é por isso resolvida. Convém, pois, colocá-la claramente: o Eu Penso deve poder acompanhar todas nossas representações, mas ele as acompanha de fato? Suponhamos, ademais, que uma certa representação A passa de um certo estado em que o Eu Penso não a acompanha a um estado em que o Eu penso a acompanha, seguir-

* Empregarei aqui o termo “consciência” para traduzir a palavra alemã “bewusstein” que significa simultaneamente consciência total, a mônada, e cada momento desta consciência. A expressão “estado de consciência” parece-me inexata em virtude da passividade que ela introduz na consciência.

se-á, considerando tal representação A, uma modificação de sua estrutura ou ela permanecerá a mesma? Esta segunda questão nos conduz a uma terceira: o Eu Penso deve poder acompanhar todas nossas representações; mas é necessário entender por isto que a unidade de nossas representações seja, diretamente ou indiretamente, realizada pelo Eu Penso – ou deve-se bem compreender que as representações de uma consciência devam estar unidas e articuladas de tal sorte que um “Eu Penso” constatado seja sempre possível a propósito dessas representações? Esta terceira questão parece se pôr sobre o terreno do direito e abandonar nesse terreno a ortodoxia kantiana. Mas trata-se, na realidade, de uma questão de fato que pode ser formulada deste modo: o Eu que encontramos em nossa consciência é tornado possível pela unidade sintética de nossas representações, ou é ele que unifica, de fato, as representações entre si?

Se abandonarmos todas as interpretações mais ou menos forçadas que os pós-kantianos deram do “Eu penso” e, no entanto, ainda quisermos resolver o problema da existência de fato do Eu na consciência, reencontramos em nosso caminho a fenomenologia de Husserl. A fenomenologia é um estudo científico e não crítico da consciência. Seu procedimento essencial é a intuição. A intuição, segundo Husserl, põe-nos na presença da coisa. Faz-se necessário, pois, entender que a fenomenologia é uma ciência de fato e que os problemas que ela coloca são problemas de fato*, como, aliás, pode-se ainda a compreender considerando que Husserl a chama uma ciência descritiva. Os problemas das relações do Eu com a consciência são, pois, problemas existenciais. A consciência transcendental de Kant, Husserl a retoma e a apreende por meio da έποχή. Mas esta consciência não é mais um conjunto de condições lógicas, é um fato absoluto. Não é igualmente uma hipóstase de direito, um inconsciente flutuando entre o

* Husserl diria: uma ciência de essências. Mas , do ponto de vista em que nos colocamos, isso significa a mesma coisa.

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real e o ideal. É uma consciência real acessível a cada um de nós desde que seja operada a “redução”. Resta que é ela que constitui nossa consciência empírica, esta consciência “no mundo”, esta consciência com um “eu” psíquico e psico-físico. Nós cremos de bom grado na existência de uma consciência constituinte. Nós seguimos Husserl em cada uma de suas admiráveis descrições, em que ele mostra a consciência transcendental constituindo o mundo à medida que se aprisiona na consciência empírica. Estamos persuadidos, como ele, que o nosso eu psíquico e psico-físico é um objeto transcendente, que deve cair sob os golpes da έποχή. Mas nós nos colocamos a seguinte questão: este eu psíquico e psico-físico não é suficiente? É necessário que ele seja duplicado em um Eu transcendental, estrutura da consciência absoluta? Vê-se as conseqüências desta resposta. Se ela é negativa, eis o que resulta:

1° que o campo transcendental se torna impessoal, ou, se se prefere, “pré-pessoal”, ele é sem Eu;

2° que o Eu não aparecesse senão no nível da humanidade e que não é senão uma face do “eu [mim]”, a face ativa;

3° que o Eu penso pode acompanhar nossas representações porque ele surgi sobre um fundo de unidade que ele não contribuiu para criar e que justamente é esta unidade prévia que o torna possível, não o contrário

4°que se está livre para perguntar se a personalidade (mesmo a personalidade abstrata de um Eu) é um acompanhamento necessário de uma consciência e se não se pode conceber consciências absolutamente impessoais.

Ora, Husserl respondeu a questão. Depois de ter considerado que o Eu era uma produção sintética e transcendente da consciência (nas Investigações lógicas), ele retornou, nas Idéias, a tese clássica de um Eu transcendental que estaria como que por detrás de cada consciência, que seria uma estrutura necessária dessas consciências, cujas irradiações

(Ichstrahl) alcançariam cada fenômeno que se apresentasse no campo da atenção. Assim a consciência transcendental se torna rigorosamente pessoal. Esta concepção seria mesmo necessária? Ela é compatível com a definição que Husserl dá de consciência?

Crê-se ordinariamente que a existência de uma Eu transcendental se justifica pela precisão de unidade e individualidade da consciência. É porque todas minhas percepções e todos meus pensamentos se relacionam com esse abrigo permanente que minha consciência é unificada. E porque eu posso dizer minha consciência e que Pedro e Paulo podem igualmente falar em suas consciências que essas consciências se distinguem entre elas. O Eu é produtor da interioridade. Ora, é certo que a fenomenologia não tem precisão de recorrer a este Eu unificador e individualizante. Com efeito, a consciência defini-se pela intencionalidade. Pela intencionalidade ela se transcende, ela se unifica à medida que escapa de si própria. A unidade de mil consciências ativas pelas quais eu somei, eu somo e somarei dois mais dois igual a quatro é o objeto transcendente “dois mais dois igual a quatro”. Sem a permanência dessa verdade eterna seria impossível conceber uma unidade real e haveria tantas operações irredutível quantas fossem as consciências operatórias. É possível que aqueles que acreditam que “dois mais dois igual a quatro” seja o conteúdo de minha representação estejam obrigados a recorrer a um princípio transcendental e subjetivo de unificação, que seria então o Eu. Mas precisamente Husserl não tem necessidade disso. O objeto é transcendente em relação às consciências que o apreende, e é nele, no objeto, que se encontra a unidade das consciências. Poder-se-ia dizer, no entanto, que é necessário um princípio de unidade na duração para que o fluxo contínuo das consciências seja suscetível de pôr os objetos transcendentes fora dele. É necessário que as consciências sejam sínteses perpétuas de consciências passadas e da consciência presente. Exato. Mas é revelador que Husserl, que estudou em

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A consciência íntima do tempo esta unificação subjetiva das consciências, nunca recorreu a um poder sintético do Eu. É a própria consciência que se unifica e concretamente por meio de um jogo de intencionalidades “transversais” que são retenções concretas e reais de consciências passadas. Assim, a consciência remete-se perpetuamente a ela mesma, quem diz “uma consciência” diz toda a consciência e esta propriedade singular pertence a própria consciência, quaisquer que sejam suas relações com o Eu. Parece que Husserl, nas Meditações Cartesianas, salvaguardou por completo esta concepção da consciência se unificando no tempo. Por outro lado, a individualidade da consciência provém evidentemente da natureza da consciência. A consciência (como a substância de Espinosa) não pode ser limitada senão por ela própria. Ela constitui, pois, uma totalidade sintética e individual inteiramente isolada das outras totalidades do mesmo tipo e o Eu apenas pode ser evidentemente uma expressão (e não uma condição) desta incomunicabilidade e desta interioridade das consciências. Podemos, pois, responder sem hesitar: a concepção fenomenológica da consciência torna o papel unificante e individualizante do Eu completamente inútil. É a consciência, ao contrário, que torna possível a unidade e a personalidade de meu Eu. O Eu transcendental não tem, pois, razão de existir.

Mas, além disso, este Eu supérfluo é funesto. Se ele existisse, ele extirparia a consciência dela própria, ele a dividiria, ele deslizaria em cada consciência como uma lâmina opaca. O Eu transcendental é a morte da consciência. Com efeito, a existência da consciência é um absoluto porque a consciência é consciência dela mesma. Isto é, o tipo de existência da consciência implica ser consciência de si. E ela toma consciência de si na exata medida em que é consciência de um objeto transcendente. Tudo é claro e lúcido na consciência: o objeto está diante dela com sua opacidade característica, mas ela é puramente e simplesmente consciência de ser consciência deste objeto, esta é a lei de sua existência. É necessário

completar que esta consciência da consciência – excetuando-se o caso da consciência reflexiva, a respeito do qual trataremos logo adiante – não é posicional, isto é, a consciência não é ela mesma seu objeto. Seu objeto está fora dela por natureza, e é por isto que em um mesmo ato ela o põe e o apreende. Ela mesma apenas se conhece como interioridade absoluta. Nós chamaremos uma tal consciência da seguinte maneira: consciência de primeiro grau ou irrefletida. E perguntamos: há lugar para um Eu nesta tal consciência? A resposta é clara: evidentemente que não. Com efeito, este Eu não é nem objeto (já que ele é interior por hipótese) nem igualmente da consciência, já que ele é alguma coisa para a consciência, não uma qualidade translúcida da consciência, mas em alguma medida, um habitante da consciência. Assim, o Eu, com sua personalidade, é tão formal, tão abstrato que se supõe que seja um centro de opacidade. Ele é para o meu eu concreto e psico-físico o que é o ponto para as três dimensões: um Eu infinitamente contraído. Se, pois, introduz-se esta opacidade na consciência, destrói-se a definição tão fecunda que acabáramos de dar da consciência, a consciência é congelada, é obscurecida, deixa de ser espontaneidade, passar ter nela como que um germe da opacidade. Mas, além disso, somos constrangidos a abandonar este ponto de vista original e profundo que faz da consciência um absoluto não substancial. Uma consciência pura é simplesmente um absoluto porque ela é consciência dela mesma. Ela permanece, pois, um “fenômeno” no sentido muito particular em que “ser” e “aparecer” não são senão um. Ela é leveza completa, plena translucidez. É nisso que o Cogito de Husserl é tão diferente do Cogito cartesiano. Mas, se este Eu é uma estrutura necessária da consciência, este Eu opaco é elevado, pelo mesmo movimento, a ordem do absoluto. Ei-nos, pois, na presença de uma mônada. Esta é, infelizmente, a nova orientação do pensamento de Husserl (veja as Meditações cartesianas). A consciência tornou-se pesada, ela perdeu a característica que fazia dela o existente absoluto por

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força do inexistente. Ele é pesada e mensurável. Todos os resultados da fenomenologia ameaçam arruinar-se se o Eu não for, a mesmo título que o mundo, um existente relativo, isto é, um objeto para a consciência.

b) o CogitoComo consciência reflexiva

O “eu penso” kantiano é uma condição de possibilidade. O Cogito de Descartes e de Husserl é uma constatação de fato. Falou-se da “necessidade de fato” do Cogito e esta expressão parece-me muito justa. Ora, é inegável que o Cogito é pessoal. No “Eu penso” há um Eu que pensa. Atingimos aqui o Eu em sua pureza e é do Cogito que uma “Egologia” deve partir. O fato que pode servir de ponto de partida é, pois, o seguinte: cada vez que apreendemos nosso pensamento, seja por meio de uma intuição imediata, seja por meio de uma intuição apoiada na memória, tomamos um Eu que é o Eu do pensamento apreendido e que se dá, além do mais, como transcendendo este pensamento e todos os outros pensamentos possíveis. Se, por exemplo, quero lembrar-me de tal paisagem percebida ontem no trem, é possível que eu lembre da paisagem enquanto tal, mas eu posso também me lembrar de que eu via esta paisagem. É o que Husserl chama em A consciência íntima do tempo de a possibilidade de refletir na lembrança. Dito de outro modo, eu sempre posso operar uma rememoração qualquer por meio do modo pessoal e o Eu aparece imediatamente. Tal é a garantia de fato da afirmação de direito kantiana. Assim parece que ele não é uma das minhas consciências que eu aprendo como provida de um Eu.

Mas é necessário lembrar que todos os autores que descreveram o Cogito consideraram-no como uma operação reflexiva, isto é, como uma operação de segundo grau. Este Cogito é operado por uma consciência dirigida para a consciência, que toma a consciência como objeto.

Entendamos: a certeza do Cogito é absoluta pois, como diz Husserl, há uma identidade indissolúvel da consciência reflexionante e da consciência refletida (na medida em que a consciência reflexionante* não saberia existir sem a consciência refletida). Não resta dúvida que estamos em presença de uma síntese de duas consciências em que uma é consciência da outra. Assim, o princípio essencial da fenomenologia “toda fenomenologia é consciência de alguma coisa” fica garantido. Ora, minha consciência reflexionante não toma ela própria como objeto quando realizo o Cogito. O que ela afirma concerne a consciência reflexiva. Enquanto minha consciência reflexionante é consciência dela própria, ela é consciência não posicional. Ela apenas se torna posicional a medida que visa à consciência reflexiva, que não era consciência posicional de si antes de ser reflexiva. Assim, a consciência que diz “Eu penso” não é precisamente aquela, a reflexionante, que pensa. Ou melhor, não é seu pensamento que ela põe por este ato tético. Nós somos, pois, motivados a nos perguntar se o Eu que pensa é comum às duas consciência superpostas ou se ele não é antes aquele da consciência refletida. Toda consciência reflexionante é, com efeito, nela própria irrefletida e é necessário um novo ato, um de terceiro grau, para a pôr. Não há, aliás, neste caso reenvio ao infinito já que uma consciência não tem de modo algum necessidade de uma consciência reflexionante para ser consciência dela mesma. Simplesmente ela não se põe a ela própria como seu objeto.

Mas não seria precisamente o ato reflexivo que faria nascer o “Mim”na consciência refletida? Assim se explicaria que todo pensamento apreendido pela intuição possui um Eu, sem cair nas dificuldades que nosso capítulo precedente assinalava. Husserl é o primeiro a reconhecer que um pensamento sofre uma mudança radical tornando-se reflexivo. Mas cabe necessariamente limitar esta modificação a uma perda de

*Refléchissant , traduzido por “reflexionante” por oposição a “refletido”, réflechie

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“ingenuidade”? O essencial da mudança não seria a aparição do Eu? É necessário evidentemente recorrer à experiência concreta e ela pode parecer impossível, já que, por definição, uma experiência deste gênero é reflexiva, isto é provida de um Eu. Mas toda consciência irrefletida, sendo consciência não-tética dela mesma, deixa uma lembrança não tética que se pode consultar. Para isto basta procurar reconstituir o momento completo em que aparece esta consciência irrefletida (o que é, por definição, sempre possível). Por exemplo, eu estava absorvido um pouco antes em minha leitura. Eu vou procurar me lembrar das circunstâncias de minha leitura, minhas atitudes, as linhas que lia. Eu vou desta maneira ressuscitar não apenas estes detalhes exteriores, mas uma certa espessura da consciência irrefletida, já que os objetos não puderam ser percebidos senão por meio dessa consciência e que eles lhe permanecem relativos. Essa consciência, não é necessário a colocar como objeto de minha reflexão, é necessário, ao contrário, que eu dirija minha atenção para os objetos ressuscitados, mas sem a perder de vista, mantendo com ela um tipo de cumplicidade e inventariando seu conteúdo de modo não-posicional. O resultado não é duvidoso: enquanto eu lia, havia consciência do livro, do herói do romance, mas o Eu não habitava esta consciência, ela era apenas consciência do objeto e consciência não posicional dela mesma. Esses resultados tomados não-téticamente faz com que eu possa agora fazer deles o objeto de uma tese e declarar: não havia Eu na consciência irrefletida. Não é necessário considerar esta operação como artificial e concebida para as necessidades da causa: é evidentemente graças a ela que Titchener poderia dizer que em seu Textbook of Psychology que freqüentemente o “Mim” estava ausente de sua consciência. Ele não ia muito longe, aliás, e não tentava classificar os estados de consciência sem Eu.

Alguns serão sem dúvidas tentados a me objetar que esta operação, que essa tomada não-reflexiva de uma consciência por outra consciência,

não pode evidentemente operar senão pela lembrança e que, logo, ela não se beneficia da certeza absoluta inerente ao ato reflexivo. Nós encontrariamo-nos, pois, em presença de uma parte de um ato certo que me permite afirmar a presença do Eu na consciência reflexiva e de outra parte de uma lembrança duvidosa que tenderia a fazer crer que o Eu está ausente da consciência irrefletida. Parece que não temos o direito de opor uma coisa a outra. Mas eu peço para considerar que a lembrança da consciência irrefletida não se opõe aos dados da consciência reflexiva. Ninguém imagina negar que o Eu apareça em uma consciência reflexiva. Trata-se simplesmente de opor a lembrança reflexiva de minha leitura (“eu lia”), que é também ela de natureza duvidosa, a uma lembrança não-reflexiva. O direito da reflexão presente, com efeito, não se estende para além da consciência tomada presentemente. E a lembrança reflexiva, para qual somos obrigados a recorrer para reconstituir as consciências vertidas, além da característica de duvidosa que ela deve a sua natureza de lembrança, permanece suspeita já que, segundo declara o próprio Husserl, a reflexão modifica a consciência espontânea. Uma vez que todas as lembranças não-reflexivas da consciência irrefletida me mostram uma consciência sem eu, uma vez que, por outro lado, considerações teóricas baseadas sobre a intuição de essência da consciência levaram-nos a reconhecer que o Eu não poderia fazer parta da estrutura interna dos “Erlebnissen”, somos obrigados, pois, a concluir: não há Eu no plano irrefletido. Quando corro atrás de um bonde, quando olho o relógio, quando me absorvo na contemplação de um retrato, não há Eu. Há consciência do bonde-adiante-prestes-a-ser-alcançado, etc., e consciência não posicional da consciência. De fato, eu sou afinal atirado no mundo dos objetos, são eles que constituem a unidade de minhas consciências que se apresentam com valores, qualidades atrativas ou repulsivas, mas “mim”, eu desapareci, eu nadifiquei. Não há lugar para “mim” neste nível, e isto não provém do acaso, de uma falha momentânea de atenção, mas da própria estrutura da consciência.

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Para isto que uma descrição do cogito nos torna ainda mais sensível. Pode-se dizer que o ato reflexivo apreende apreende com o mesmo grau e da mesma maneira o Eu e a consciência pensante? Husserl insiste sobre o fato de que a certeza do ato reflexivo decorre de que lá se apreende a consciência sem facetas, sem perfis, completamente inteira (sem “Abschattungen”). Evidentemente. Ao contrário, o objeto espaço-temporal entrega-se sempre por meio de uma infinidade de aspectos e não é, no fundo, senão a unidade ideal desta infinidade de aspectos. Quanto às significações, às verdades eternas, elas afirmam sua transcendência pelo fato que elas se dão desde que são independentes do tempo, enquanto a consciência que as apreende é, ao contrário, rigorosamente individualizada na duração. Ora, perguntamos: quando uma consciência reflexiva apreende o Eu penso, é dado a ela apreender uma consciência plena e concreta recolhida em um momento real da duração concreta? A resposta é clara: o Eu não se dá como um momento concreto, uma estrutura perecível de minha consciência atual. Ele afirma, ao contrário, sua permanência para além dessa consciência e de todas as consciências e – ainda que, por certo, ele praticamente não se assemelha a uma verdade matemática – seu tipo de existência reaproxima-se bem mais do tipo de existências das verdades eternas que do tipo de existência da consciência. É mesmo evidente que é por ter acreditado que o Eu e penso são no mesmo plano que Descartes passou do cogito à idéia de substância pensante. Víramos um pouco antes que Husserl, embora mais sutilmente, merece, no fundo, a mesma censura. Eu compreendo que ele reconheça no Eu uma transcendência especial que não é a do objeto e que se poderia chamar uma transcendência “pelo alto”. Mas com que direito? E como explicar o tratamento privilegiado do Eu se não graças a preocupações metafísicas ou críticas que nada têm a ver com a fenomenologia? Sejamos mais radicais e afirmemos sem temor que toda transcendência deve cair sob a έποχή, o que nos evitaria de escrever

alguns capítulos tão embaraçantes quanto o parágrafo 61 de Ideen. Dado que o Eu se afirma como transcendente no “Eu penso”, ele não é da mesma natureza que a consciência transcendental.

Notemos, aliás, que ele não aparece para a reflexão como consciência refletida: ele se dá por meio da consciência refletida. Por certo que ele é apreendido pela intuição e é objeto de uma evidência. Mas sabe-se o serviço que Husserl prestou a filosofia distinguindo diversas espécies de evidência. Desta maneira, é muito certo que o Eu do Eu penso não é objeto de uma evidência nem apodítica nem adequada. Ela não é apodítica já que quando digo Eu afirmamos muito mais do que sabemos. Ela não é adequada pois o eu se apresenta como uma realidade opaca em relação a qual seria necessário desdobrar o conteúdo. Seguramente ele se manifesta como a fonte da consciência, mas isto nos deveria levar a refletir: com efeito, ele aparece velado, mal distinto por meio da consciência, como uma pedra no fundo da água, – deste fato segue-se que ele é enganador, pois nós sabemos que nada, exceto a consciência, pode ser a fonte da consciência. Além disso, se o Eu faz parte da consciência, haveria então dois “Eu”: o Eu da consciência reflexiva* e o Eu da consciência refletida. Fink, o discípulo de Husserl, conhece mesmo um terceiro Eu, o Eu da consciência transcendental, liberado pela έποχή. Daí o problema dos três “Eu” cujas dificuldades ele menciona com alguma complacência. Para nós este problema é simplesmente insolúvel, pois não é admissível que uma comunicação se estabeleça entre o Eu reflexivo** e o Eu refletido, se eles são elementos reais da consciência, nem sobretudo que eles se identifiquem enfim com um Eu único.

* Parece-nos que aqui o “reflexivo” (réflexive) tem o mesmo sentido topológico/conceitual do “reflexionante”, isto é, ocupa o lugar da “consciência que pensa” do “eu penso” por oposição à consciência que “é pensada”. ** Ou reflexionante. Ver nota anterior.

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Concluindo esta análise, parece-me ser possível fazer as seguintes constatações:

O eu é um existente. Ele tem um tipo de existência concreta, diferente sem dúvida daquela das verdades matemática, das significações ou dos seres espaço-temporais, mas igualmente real. Ele se dá ele próprio como transcendente.

Ele se entrega a uma intuição de um gênero especial que o toma por detrás da consciência reflexiva, de um modo sempre inadequado.

Ele nunca aparece senão por ocasião de um ato reflexivo. Neste caso, a estrutura complexa da consciência é a seguinte: há um ato irrefletido de reflexão sem Eu que se dirige sobre uma consciência refletida. Esta se torna o objeto da consciência reflexionante sem cessar, entretanto, de afirmar seu próprio objeto (uma cadeira, uma verdade matemática, etc.). Ao mesmo tempo um novo objeto aparece que é a ocasião de uma afirmação da consciência reflexiva e que não está, por conseguinte, nem sobre o mesmo plano da consciência irrefletida (porque esta é um absoluto que não tem necessidade da consciência reflexiva para existir) nem sobre o mesmo plano do objeto da consciência irrefletida (cadeira, etc.). Este objeto transcendente do ato reflexivo é o Eu.

O Eu transcendente deve cair sob o golpe da redução fenomenológica. O Cogito afirma demais. O conteúdo certo do pseudo “Cogito” não é “eu tenho consciência desta cadeira”, mas “há consciência desta cadeira”. Este conteúdo é suficiente para constituir um campo infinito e absoluto de pesquisas para a fenomenologia.

C) Teoria da Presença material de “Eu [mim]”

Para Kant e para Husserl o Eu é uma estrutura formal da consciência. Nós tentamos mostrar que um Eu nunca é puramente

formal, que ele é sempre, mesmo abstratamente, concebido como uma contração infinita do Eu material. Mas é-nos necessário, antes de irmos adiante, desembaraçarmo-nos de uma teoria psicológica que afirma, em virtude de razões psicológicas, a presença material do “Mim” em todas nossas consciências. É a teoria dos moralistas do “amor próprio”. Segundo eles, o amor de si – e por conseqüência o “Mim”- estaria dissimulado em todos os sentimentos sob mil formas diversas. De uma maneira geral, o “Mim”, em função deste amor que ele traz nele mesmo, desejaria para ele todos os objetos que ele deseja. A estrutura essencial de cada um de meus atos seria um apelo a mim mesmo. O “retorno a mim” seria constitutivo de toda consciência.

Fazer objeção a esta tese que este retorno a mim mesmo não é de nenhuma maneira presente à consciência – por exemplo, quando tenho sede, que eu veja um copo d’água e que ele me apareça desejável – não seria suficiente para embaraçá-la: ele nos concederia voluntariamente isto. La Rochefoucauld é um dos primeiros a ter feito uso, sem o nomear, do inconsciente: para ele o amor próprio dissimula-se sob as mais diversas formas. É necessário despistá-lo antes de apreendê-lo. De uma maneira mais geral, admiti-se na seqüência que o “Mim”, se ele não está presente à consciência, ele está escondido por detrás dela e que ele é pólo de atração de todas nossas representações e de todos nossos desejos. O “Mim” busca, pois, adquirir o objeto para satisfazer seu desejo. Dito de outro modo, é o desejo (ou se se prefere o “Mim” desejante) que é dado como fim e o objeto desejado como meio.

Ora, o interesse desta tese nos parece ser o de pôr em relevo um erro muito freqüente dos psicólogos: ele consiste em confundir a estrutura essencial dos atos reflexivos com aquela dos atos irrefletidos. Ignora-se que sempre há duas formas de existência possíveis para uma consciência, e, cada vez que as consciências observadas se dão como irrefletidas,

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sobrepõe-se-lhes uma estrutura reflexiva que se pretende imprudentemente que ela permaneça inconsciente.

Eu tenho piedade de Pedro e vou o socorrer. Para minha consciência uma única coisa existe neste momento: “Pedro-que-deve-ser-socorrido”. Esta qualidade de “deve-ser-socorrido” se encontra em Pedro. Ela agi em mim como uma força. Aristóteles dissera: é o desejável que move o desejante. Neste nível o desejo é dado à consciência como centrífugo (ele se transcende, ele é consciência tética de “deve-ser” e consciência não tética dele próprio) e impessoal (não há “Mim”: eu estou em face da dor de Pedro como diante da cor deste tinteiro. Há um mundo objetivo de coisas e ações feitas ou a fazer, e as ações vêm se aplicar como qualidades nas coisas que as reclamam). Ora, este primeiro momento do desejo – supondo que ele não tenha escapada completamente ao teóricos do amor-próprio – não é considerado por eles como um momento completo e autônomo. Eles imaginaram por detrás dele um outro estado que permanece na penumbra, por exemplo, que eu socorro Pedro para fazer cessar o estado desagradável em que me pôs a visão de seus sofrimentos. Mas este estado desagradável não pode ser conhecido como tal e não se pode tentar suprimí-lo senão por meio de um ato de reflexão. Com efeito, o desagradável sobre o plano do irrefletido transcende-se da mesma maneira que a consciência irrefletida de piedade. É a apreensão intuitiva de uma qualidade desagradável de um objeto. E, na medida em que ele pode acompanhar-se de um desejo, ele deseja não se suprimir ele próprio, mas suprimir o objeto desagradável. Não serve, pois, de nada pôr atrás da consciência irrefletida de piedade um estado desagradável do qual se fará a causa profunda do ato piedoso: se esta consciência do desagradável não se volta para ela mesma de modo a se pôr como estado desagradável, nós permaneceremos indefinidamente no impessoal e no irrefletido. Assim pois, sem mesmo se dar conta, os teóricos do amor-próprio supõem que o refletido é anterior, original e

dissimulado no inconsciente. É penoso precisar evidenciar a absurdidade de uma tal hipótese. Mesmo se o inconsciente existisse, o que nos faria acreditar ser ele o depositário de espontaneidades da forma refletida? A definição do refletido não é a do que é colocado por uma consciência? Mas, além disso, como admitir que o refletido seja anterior em relação ao irrefletido? Sem dúvida, pode-se conceber que uma consciência apareça imediatamente como refletida, em certos casos. Mas assim mesmo, então, o irrefletido tem prioridade ontológica sobre o refletido uma vez que ele não tem nenhuma necessidade de ser refletido para existir e que a reflexão supõe a intervenção de uma consciência de segundo grau.

Chegamos, pois, a seguinte conclusão: a consciência irrefletida deve ser considerada como autônoma. É uma totalidade que não tem de maneira nenhuma precisão de ser completada e nós devemos reconhecer sem mais que a qualidade do desejo irrefletido é de se transcender à medida que apreende no objeto a qualidade desejável. Tudo se passa como se vivêssemos em um mundo em que os objetos, além de suas qualidades de calor, de odor, de forma, etc., tivessem a de apartar, a de atrair, a de encantar, a de ser útil, etc., etc., como se estas qualidades fossem forças que exercessem sobre nós certas ações. No caso da reflexão, e apenas neste caso, a afetividade se põe ela própria como desejo, temor, etc.; apenas no caso da reflexão eu posso pensar “Eu odeio Pedro”, “Eu tenho piedade de Paulo, etc.”. É pois, contrariamente ao que se sustentou, sobre este plano que se coloca a vida egoísta e sobre o plano irrefletido que se coloca a vida impessoal (o que não quer naturalmente dizer que toda vida reflexiva é necessariamente egoísta nem toda vida irrefletida necessariamente altruísta). A reflexão “envenena”o desejo. Sobre o plano irrefletido eu socorro Pedro porque Pedro está “adiante-para-ser-socorrido”. Mas seu meu estado transforma-se repentinamente em estado refletido, eis que me vejo agir no sentido em que se diz de alguém que se escuta falar. Não é mais

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Pedro que me atrai, é minha consciência de socorrer que me aparece como devendo ser perpetuada. Mesmo se eu penso apenas que devo perseguir minha ação porque “isto é bom”, ser bom qualifica minha conduta, minha piedade, etc. A psicologia de La Rochefoucauld encontra-se em seu lugar. E, no entanto, ela não é verdadeira: não culpa minha se minha vida reflexiva envenena “por essência” minha vida espontânea, aliás, a vida reflexiva supõe, em geral, a vida espontânea. Antes de ser “envenenados” meus desejos foram puros: foi o ponto de vista que tomei sobre eles que os envenenou. A psicologia de La Rochefoucauld é verdadeira apenas para os sentimentos particulares que extraem sua origem da vida reflexiva, isto é, que se dão de início como meus sentimentos em vez de se transcender de início em direção a um objeto.

Assim, o exame puramente psicológico da consciência “intra-mundana” conduz-nos às mesmas conclusões que nosso estudo fenomenológico: o “mim” não deve ser buscado nos estados de consciência irrefletidos nem por detrás deles. O “Mim” apenas aparece com o ato reflexivo e como correlato noemático de uma intenção reflexiva. Começamos a entrever que o Eu e o “Mim” não são senão um só. Nós experimentaremos mostrar que este Ego, cujo Eu e o “Mim” são a dupla face, constitui a unidade ideal (noemática) e indireta da série infinita de nossas consciências refletidas.

O Eu é o Ego como unidade de ações. O “Mim” é o Ego como unidade de estados e qualidades. A distinção que se estabelece entre estes dois aspectos de uma mesma realidade parece-nos simplesmente funcional para não dizer gramatical.

IIConstituição do Ego

O Ego não é diretamente unidade das consciências refletidas. Existe uma unidade imanente destas consciências, é o fluxo da Consciência em se constituindo ele próprio como sua própria unidade* – e uma unidade transcendente: os estados e as ações. O Ego é unidade de estados e de ações – facultativamente de qualidades. Ele é unidade de unidades transcendentes e ele próprio transcendente. É um pólo transcendente de unidade sintética, como o pólo-objeto da atitude irrefletida. Apenas este pólo não aparece senão no mundo da reflexão. Vamos examinar sucessivamente a constituição dos estados, das ações e das qualidades e a aparição do “Mim”como pólo destas transcendências.

A) os estados como unidades transcendentes das consciências

O estado aparece à consciência reflexiva. Ele se dá a ela e faz-se objeto de uma intuição concreta. Se eu odeio Pedro, meu ódio de Pedro é um estado que eu posso apreender pela reflexão. Este estado está presente diante do olhar da consciência reflexiva, ele é real. É necessário concluir disto que ele seja imanente e certo? Seguramente não. Não devemos fazer da reflexão um poder misterioso e infalível, nem crer que tudo que a reflexão atinge é indubitável porque é alcançado pela reflexão. A reflexão tem limites de direito e de fato. É uma consciência que põe uma consciência. Tudo o que ela afirma sobre esta consciência é certo e adequado. Mas se outros objetos lhe aparecem por meio desta consciência, estes objetos não têm nenhuma razão para participar das características da consciência. Consideremos uma experiência reflexiva

* Cf. Zeibewusstsein, passim.

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de ódio. Eu vejo Pedro, eu sinto como que uma alteração profunda de repulsão e de cólera no momento em que o avisto (já estou no plano reflexivo): a alteração profunda de repulsão é consciência. Eu não posso me enganar quando digo: experimento neste momento uma violenta repulsão por Pedro. Mas esta experiência de repulsão é ela ódio? Evidentemente que não. Ela não se dá, aliás, como ódio. Com efeito, eu odeio Pedro desde muito tempo e eu penso que sempre o odiarei. Uma consciência instantânea de repulsão não saberia ser meu ódio. Mesmo se eu me limitasse ao que ela é, a uma instantaneidade, eu não poderia mesmo falar de ódio. Eu diria: “Eu tenho repulsão por Pedro neste momento” de modo a não comprometer o futuro. Mas precisamente por esta recusa de comprometer o futuro eu cessaria de odiar.

Ora, meu ódio me aparece simultaneamente a minha experiência de repulsão. Mas ele aparece mediante essa experiência. Ele se dá precisamente como não se limitando a essa experiência. Ele se dá em e por cada movimento de desgosto, de repulsão e de cólera, mas ao mesmo tempo ele não é nenhum deles, ele escapa a cada um deles afirmando sua presença. Ele afirma que ele já aparecia quando ontem eu pensei em Pedro com tanto furor e que ele aparecerá amanhã. Ele opera por sua conta uma distinção entre ser e aparecer já que ele se dá como continuando ser mesmo quando estou absorvido em outras ocupações e que nenhuma consciência o revela. Eis, pois, que isto já é o suficiente para poder afirmar que o ódio não é da consciência. Ele transborda a instantaneidade da consciência e não se dobra a lei absoluta da consciência segundo a qual não há distinção possível entre a aparência e o ser. O ódio é, pois, um objeto transcendente. Cada “Erlebnis” o revela completamente, mas, simultaneamente, ele não é senão um perfil , uma projeção (um “Abschattung”). O ódio é uma crença para uma infinidade de consciências coléricas ou de repúdio, no passado e no futuro. Ele é a unidade transcendente desta infinidade de

consciências. Dizer igualmente “eu odeio” ou “eu amo” na ocasião de uma consciência singular de atração ou repulsão é operar uma verdadeira passagem ao infinito análoga a que nós operamos quando percebemos um tinteiro ou o azul do mata borrão.

Não se necessita de mais para que os direitos da reflexão estejam singularmente limitados: é certo que Pedro me repugna, mas é e sempre será duvidoso que eu o odeie. Esta afirmação ultrapassa de maneira infinita o poder da reflexão. Não é necessário disso concluir, naturalmente, que o ódio seja uma simples hipótese, um conceito vazio: ele é um objeto real, que eu apreendo por meio do “Erlebnis”, mas este objeto está fora da consciência e a natureza da sua existência implica sua “dubitabilidade”. Também a reflexão tem um domínio certo e um domínio duvidoso, uma esfera de evidências adequadas e uma esfera de evidências inadequadas. A reflexão pura (que não é necessariamente a reflexão fenomenológica) orienta-se ao dado sem estender suas pretensões ao futuro. É o que se pode constatar quando alguém, depois de ter dito em estado de cólera, “Eu te detesto”, reconsidera e diz:”Não é verdade, eu não te detesto, eu disse isto quando estava com raiva”. Vê-se aqui duas reflexões: um impura e cúmplice, que opera a passagem ao infinito sobre o campo e que constitui bruscamente o ódio por meio do “Erlebnis” como seu objeto transcendente. A outra, pura, simplesmente descritiva, que desarma a consciência irrefletida lhe devolvendo a sua instantaneidade. Estas duas reflexões apreenderam os mesmos dados certos, mas uma afirmou mais do que ela sabia e ela se dirigiu por meio da consciência refletida a um objeto situado fora da consciência.

Desde que se abandone o domínio da reflexão pura ou impura e que se medite sobre seus resultados, se é tentado confundir o sentido transcendente do “Erlebnis” com sua nuance imanente. Este confusão conduz o psicólogo a dois tipos de erros: ou bem eu me engano freqüentemente em relação aos meus sentimentos, o que ocorre quando, por exemplo, eu acredito amar

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quando odeio, eu concluo que a introspecção é enganadora, e, neste caso, eu separo definitivamente meu estado de minhas aparições; eu estimo que é necessária uma interpretação simbólica de todas as aparições (consideradas como símbolos) para determinar o sentimento e eu suponho uma relação de causalidade entre o sentimento e suas aparições: eis o inconsciente que reaparece. Ou bem eu sei, ao contrário, que minha introspecção é correta, que eu não posso duvidar de minha consciência de repulsão na medida em que eu a tenho, eu me creio autorizado a transportar essa certeza sobre o sentimento, eu concluo que meu ódio pode se encerrar na imanência e na adequação de uma consciência instantânea.

O ódio é um estado. E por este termo eu tentei exprimir a característica de passividade de um estado constitutivo. Sem dúvida se dirá que o ódio é uma força, uma impulsão irresistível, etc. Mas a corrente elétrica ou a queda d’água também são forças temíveis: isto é basta para tirar a passividade e a inércia da sua natureza? Isto faz com que recebam menos sua energia de fora? A passividade de uma coisa espaço-temporal se constitui a partir de sua relatividade existencial. Uma existência relativa apenas pode ser passiva já que a menor atividade a liberaria do relativo e a instauraria no absoluto. Da mesma maneira, o ódio, existência relativa à consciência reflexiva, é inerte. E, naturalmente, falando da inércia do ódio nada queremos dizer senão que ela aparece como tal à consciência. Não se diz, com efeito: “Meu ódio foi revelado...”, “Seu ódio era combatido pela violência do desejo de..., etc.,”? As lutas do ódio contra a moral, a censura, etc., não são figuradas como conflitos de forças físicas, ao ponto de Balzac e a maioria dos romancistas (por vezes o próprio Proust) aplicarem aos estados o princípio da independência das forças? Toda a psicologia dos estados (e a psicologia não fenomenológica em geral) é uma psicologia da inércia.

O estado é dado de alguma maneira como intermediário entre o corpo (a “coisa” imediata) e o “Erlebnis”. Apenas não lhe é dado agir da

mesma maneira do lado do corpo e do lado da consciência. Do lado do corpo sua ação é francamente causal. Ele é causa de minha mímica, causa de meus gestos: “Por que foste tão desagradável com Pedro?” “Porque eu o detesto”. Mas ele não saberia ser da mesma maneira (exceto nas teorias construídas a priori e com conceitos vazios, como o Freudismo) do lado da consciência. Em nenhum caso, com efeito, a reflexão pode ser enganada sobre a espontaneidade da consciência refletida: este é o domínio da certeza reflexiva. Também a relação entre o ódio e a consciência instantânea do dissabor é construída de maneira a administrar simultaneamente as exigências do ódio (ser primeiro, ser origem) e os dados certos da reflexão (espontaneidade): a consciência do dissabor aparece à reflexão como uma emanação espontânea do ódio. Vemos aqui, pela primeira vez, esta noção de emanação, que é tão importante cada vez que se trata de religar os estados psíquicos inertes às espontaneidades da consciência. A repulsão dá-se de alguma maneira como se produzindo ele própria na ocasião do ódio e graças ao ódio. O ódio aparece por meio dela como aquilo de que ela emana. Reconheçamos voluntariamente que a relação do ódio ao “Erlebnis” particular de repulsão não é lógico. É certamente uma ligação mágica. Mas nós apenas queríamos a descrever e, além disso, ver-se-á logo que é em termos exclusivamente mágicos que é necessário falar de relações do “mim” à consciência.

b) Constituição das ações

Nós não tentaremos estabelecer uma distinção entre a consciência ativa e a consciência simplesmente espontânea. Parece-nos, por sinal, que é um dos problemas mais difíceis da fenomenologia. Gostaríamos simplesmente de notar que a ação concertada é antes de tudo (e qualquer que seja a natureza da consciência ativa) um transcendente. Isto é evidente

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para ações como “tocar piano”, “conduzir um carro”, “escrever” porque estas ações são “tomadas” no mundo das coisas. Mas as ações puramente psíquicas como duvidar, raciocinar, meditar, fazer uma hipótese, devem, elas também, ser concebidas como transcendências. O que engana nesta caso é que a ação não é apenas a unidade noemática de um fluxo de consciência, também é uma realização concreta. Mas não se deve esquecer que a ação exige tempo para se realizar. Ela tem articulações, momentos. A estes momentos correspondem consciências concretas ativas e a reflexão que se dirige sobre as consciências apreende a ação total em uma intuição que a entrega como unidade transcendente das consciências ativas. Neste sentido se pode dizer que a dúvida espontânea que me invade quando entrevejo um objeto na penumbra é uma consciência, mas a dúvida metódica de Descarte é uma ação, isto é, um objeto transcendente da consciência reflexiva. Vê-se aqui o perigo: quando Descartes diz “Eu duvido então eu sou” trata-se da dúvida espontânea que a consciência reflexiva apreende em sua instantaneidade ou se trata justamente da tarefa de duvidar? Esta ambigüidade, como vimos, pode ser fonte de graves erros.

C) As qualidades como unidades facultativas dos estado

O Ego é diretamente, vamos ver, a unidade transcendente de estados e ações. Entretanto, pode haver um intermediário entre um e outro: a qualidade. Quando experimentamos várias vezes ódios diante de diferentes pessoas ou rancores tenazes ou longas cóleras, nós unificamos essas manifestações diversas intencionando uma disposição psíquica para as produzir. Esta disposição psíquica (eu sou rancoroso, eu sou capaz de odiar violentamente, eu sou colérico) é naturalmente mais e outra coisa que uma simples média. É um objeto transcendente. Ele representa o substrato dos estados como os estados representam o substrato dos “Erlebnissen”.

Mas sua relação com os sentimentos não é uma relação de emanação. A emanação apenas religa as consciências às passividades psíquicas. A relação da qualidade ao estado (ou à ação) é uma relação de atualização. A qualidade é dada como uma potencialidade, uma virtualidade que, sob a influência de fatores diversos, pode passar à atualidade. Sua atualidade é precisamente o estado (ou a ação). Vê-se a diferença essencial entre a qualidade e o estado. O estado é unidade noemática de espontaneidades, a qualidade é unidade de passividades objetivas. Na ausência de toda consciência de ódio, o ódio se dá como existente em ato. Ao contrário, na ausência de todo sentimento de rancor a qualidade correspondente permanece uma potencialidade. A potencialidade não é a simples possibilidade: ela se apresenta como alguma coisa que existe realmente, mas cujo modo de existência é ser em potência. Deste tipo são naturalmente as faltas, as virtudes, os gostos, os talentos, as tendências, os instintos, etc. Estas unificações são sempre possíveis. A influência de idéias pré-concebidas e de fatores sociais é aqui preponderante. Por outro lado, elas nunca são indispensáveis porque os estados e as ações podem encontrar diretamente no Ego a unidade que eles exigem.

D) Constituição do Ego como pólo de ações, de estados e de qualidades.

Acabamos de aprender como distinguir o “psíquico” da consciência. O psíquico é o objeto transcendente da consciência reflexiva*, e também é o objeto da ciência chamada psicologia. O Ego aparece à reflexão como um objeto transcendente realizando a síntese permanente do psíquico. O Ego está do lado do psíquico. Notaremos aqui que o Ego que nós consideramos é psíquico e não psico-físico. Não é pela abstração que separamos estes

* Mas ele pode ser também visado e atingido por meio da percepção de comportamentos. Nós pretendemos explicar em outro lugar a identidade fundamental de todos os métodos psicológicos.

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dois aspectos do Ego. O “Mim” psico-físico é um enriquecimento sintético do Ego psíquico que pode suficientemente bem (e sem nenhum tipo de redução) existir em estado livre. É certo, por exemplo, que quando se diz: “Eu sou um indeciso” não se visa diretamente o “Mim” psico-físico. Seria tentador constituir o Ego em “pólo-sujeito” como este “pólo-objeto” que Husserl coloca no centro do núcleo noemático. Este pólo objeto é um X que suporta as determinação.

Predicados são predicados de “alguma coisa”, essa “alguma coisa” pertence também ao núcleo em questão e é patente que não pode se separar dele. Ele é o ponto de unidade central sobre o qual falávamos acima. Ele é o ponto de ligação dos predicados, seu suporte, mas não é de nenhuma maneira unidade dos predicados. Ele deve ser necessariamente distinguido deles, embora não se possa pô-los de lado nem o separar deles. Da mesma maneira eles são seus predicados: impensáveis sem ele e, no entanto, a distinguir dele*.

Por esse caminho Husserl entende indicar que ele considera as coisas como sínteses ao menos idealmente analisáveis. Sem dúvida, esta árvore, esta mesa são complexos sintéticos e cada qualidade está ligada a outra. Mas ela está ligada enquanto ela pertence ao mesmo objeto X. O que é logicamente primeiro, anterior são relações unilaterais segundo as quais cada qualidade pertence (diretamente ou indiretamente) a este X como um predicado a um sujeito. Resulta disto que uma análise sempre é possível. Esta concepção é bastante discutível. Mas aqui não é o lugar de a examinar. O que nos importa é que uma totalidade sintética indissolúvel e que se suportaria ela própria não teria nenhuma precisão de X suporte, sob a natural condição dela ser realmente e concretamente

* Ideen, #131, p. 270.

inanalisável. É inútil, por exemplo, em se considerando uma melodia, supor um X que serviria de suporte para as diferentes notas. A unidade decorres neste caso da indissolubilidade absoluta dos elementos que não podem ser concebidos como separados, exceto por abstração. O sujeito do predicado será neste caso a totalidade concreta e o predicado será uma qualidade abstratamente separada da totalidade e que não assume todo seu sentido senão se ele é ligado novamente à totalidade*.

Por estas mesmas razões nós recusaremos ver no Ego uma sorte de pólo X que seria o suporte dos fenômenos psíquicos. Um tal X, por definição, seria indiferente às qualidades psíquicas de que ele seria o suporte. Mas o Ego, como veremos, nunca é indiferente a seus estados, ele é “comprometido” por eles. Ora, precisamente, um suporte não pode ser assim comprometido pelo que ele suporta senão no caso em que ele é uma totalidade concreta que suporta e contém suas próprias qualidades. O Ego não é nada fora da totalidade concreta dos estados e ações que ele suporta. Sem dúvida ele é transcendente a todos os estados que ele unifica, mas não como um X abstrato cuja missão seria apenas a de unificar: antes, é a totalidade infinita de estados e ações que nunca se deixa reduzir a uma ação ou a um estado. Se procurássemos um análogo para a consciência irrefletida do que é o Ego para a consciência de segundo grau, pensaríamos antes que seria necessário imaginar o Mundo, concebido como a totalidade sintética infinita de todas as coisas. Acontece também, com efeito, que nós aprenderíamos o Mundo para além de nosso entorno imediato, como uma vasta existência concreta. Neste caso, as coisas que nos envolvem aparecem apenas como o ponto extremo desse mundo que as ultrapassa e engloba. O Ego está para os objetos psíquicos assim como o Mundo está para as coisas. Apenas a aparição do Mundo como segundo plano das coisas é assaz rara, são necessárias circunstâncias especiais (bastante bem

* Aliás, Husserl conhece muito bem este tipo de totalidade sintética, ao qual ele consagrou um estudo notável: L.U. II, Untersuchung III.

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descritas por Heidegger em Sein und Zeit) para que ele se “desvele”. O Ego, ao contrário, aparece sempre no horizonte dos estados. Cada estado, cada ação se dá como não podendo sem abstração ser separado do Ego. E se o julgamento separa o Eu de seu estado (como na frase: Eu sou amoroso) isso não pode ser senão para os ligar prontamente: o movimento de separação conduziria a uma significação vazia e falsa se ele não se desse como incompleto e se ele não se completasse por meio de um movimento de síntese.

Esta totalidade transcendente participa da característica duvidosa de toda transcendência, isto é, que todo o que nos entrega nossas intuições do Ego sempre pode ser contradito por intuições ulteriores e se dá como tal. Por exemplo, eu posso ver com evidência que sou colérico, ciumento, etc., e, entretanto, eu posso me enganar. Dito de outro modo, eu posso me enganar pensando que eu tenho um tal “Mim”. O erro não se comete, aliás, no nível do julgamento, mas já ao nível da evidência pré-judicativa. Esta característica duvidosa de meu Ego – ou mesmo o erro intuitivo que eu cometo – não significa que eu tenha um verdadeiro “Mim” que eu ignoro, mas apenas que o Ego intencionado porta, nele próprio, a característica da dubitabilidade (em certos casos mesmo a da falsidade). A hipótese metafísica segundo a qual meu Ego de elementos tendo existido na realidade (há dez anos ou há um segundo) mas seria apenas constituído de falsas lembranças não está excluída. Este poder do “Gênio Maligno” se estende até aqui.

Mas se é da natureza do Ego ser um objeto duvidoso, não se segue que ele seja hipotético. Com efeito, o Ego é a unificação transcendente espontânea de nossos estados e de nossas ações. A este título ele não é uma hipótese. Eu não me digo: “Talvez eu tenha um Ego”, como eu posso dizer: “Talvez eu odeie Pedro”. Eu não procuro aqui um sentido unificador de meus estados. Quando unifico minhas consciências sob a rubrica “Ódio”, eu completo-lhe um certo sentido, eu as qualifico. Mas

quando eu incorporo meus estados à totalidade concreto “Mim”, eu não completo nado. É que, com efeito, a relação do Ego às qualidades, estados e ações não é nem uma relação de emanação (como a relação da consciência com o sentimento) nem uma relação de atualização (como a relação da qualidade com o estado). É uma relação de produção poética (no sentido de ποιεϊν) ou, se se quiser, de criação.

Cada um, reportando-se aos resultados de sua intuição, pode constatar que o Ego é dado como produzindo seus estados. Nós levamos a cabo aqui uma descrição deste Ego transcendente tal como ele se revela à intuição. Nós partimos, pois, deste fato inegável: cada novo estado está ligado diretamente (ou indiretamente pela qualidade) ao Ego como à sua origem. Este modo de criação é uma criação ex nihilo, no sentido em que o estado não é dado como tendo sido antes no “Mim”. Mesmo se o ódio se dá como atualização de uma certa potência de rancor ou de ódio, ele permanece como alguma coisa de nova em relação à potência que ele atualiza. Assim, o ato unificador da reflexão religa cada estado novo de um modo muito especial à totalidade concreta do “Mim”. Ela não se limita a tomá-lo como confluindo a esta totalidade, como que se fundindo nela: ela intenciona uma relação que atravessa o tempo pelo avesso e que oferece o “Mim” a fonte do estado. O mesmo se dá para as ações em relação ao “Eu”. Quanto às qualidades, ainda que elas qualifiquem o “Mim”, elas não se oferecem como alguma coisa por meio da qual ele existiria (como é o caso, por exemplo, para um agregado: cada pedra, cada tijolo existe por ele mesmo e sua agregado existe para cada um deles). Mas, ao contrário, o Ego mantém suas qualidades graças a uma verdadeira criação continuada. Entretanto, nós não apreendemos o Ego como sendo enfim uma fonte criadora aquém de suas qualidades. Não nos parece que poderíamos encontrar um pólo esquelético se tirássemos uma a uma todas as suas qualidades. Se o Ego aparece como para além de cada qualidade

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ou mesmo de todas é que ele opaco como objeto: seria necessário que procedêssemos a uma depuração infinita para retirar todas suas potências. E, ao fim desta depuração, nada restaria, o Ego teria evaporado. O Ego é criador de seus estados e sustenta suas qualidades na existência para uma sorte de espontaneidade conservadora. Não seria o caso confundir esta espontaneidade criadora ou conservadora com a Responsabilidade, que é um caso especial de produção criadora a partir do Ego. Seria interessante estudar os diversos tipos de procissões do Ego à seus estados. Trata-se, na maior parte do tempo, de uma procissão mágica. Algumas vezes ela pode ser racional (no caso da vontade refletida, por exemplo). Mas sempre com um fundo de ininteligibilidade cuja razão apresentaremos adiante. Com as diferentes consciências (pré-lógica, infantil, esquizofrênica, lógica, etc) a nuance de uma criação varia, mas ela sempre permanece uma produção poética. Uma caso particular e de considerável interesse é o da psicose de influência. Que quer dizer o doente com estas palavras: “Fizeram-me ter pensamentos ruins”? Tentaremos estudar isto em outra obra. Notemos, entretanto, que a espontaneidade do Ego não é negada: ela é de alguma modo encantada, mas permanece.

Mas esta espontaneidade não deve ser confundida com a da consciência. Com efeito, o Ego, sendo objeto, é passivo. Trata-se, pois, de uma pseudo espontaneidade que encontraria símbolos convenientes no brotar de uma fonte ou no esguichar de um gêiser. Quer dizer que não se trata senão de uma aparência. A verdadeira espontaneidade deve ser perfeitamente clara: ela é o que ela produz e nada pode ser do outro. Ligada sinteticamente a outra coisa que ela própria, ele envolveria, com efeito, alguma obscuridade e mesmo uma certa passividade na transformação. Seria necessário, com efeito, admitir uma passagem de si mesmo à outra coisa que suporia que a espontaneidade escapasse dela própria. A espontaneidade do Ego escapa do próprio Ego à medida que o

ódio do Ego, ainda que não possa existir por ele próprio, possui, malgrado tudo, uma certa independência em relação ao Ego. De sorte que o Ego é sempre ultrapassado pelo que ele produz, ainda que, de um outro ponto de vista, ele seja o que ele produz. Daí os espantos clássicos: “Eu, como eu pude fazer isso!”, “Eu, eu não posso odiar meu pai!”, etc., etc. Aqui, evidentemente, o conjunto concreto do “Mim” intuicionado até aquele momento carrega, adensa o Eu produtor e retém-no um pouco atrás do que ele acaba de produzir. A ligação do Ego com seus estados permanece, pois, uma espontaneidade ininteligível. É esta espontaneidade que descreve Bergson nos Dados imediatos, é ela que ele toma pela liberdade sem se dar conta que ele descreve uma objeto e não uma consciência e que a ligação que ele põe é perfeitamente irracional porque o produtor é passivo em relação à coisa criada. Por mais irracional que ela seja esta ligação não é menos a que constatamos na intuição do Ego. E nós compreendemos o sentido disso: o Ego é um objeto apreendido mas também constituído pela consciência reflexiva. É um lar virtual de unidade, e a consciência o constitui em sentido inverso aquele que segue sua produção real: o que é realmente primeiro são as consciências, por meio das quais se constituem os estados, depois, mediante os estados, o Ego. Mas como a ordem é invertida por uma consciência que se aprisiona no Mundo para escapar de si, as consciências são dadas como emanando dos estados e os estados como produzidos pelo Ego. Segue-se que a consciência projeta sua própria espontaneidade no objeto Ego para lhe conferir o poder criador que lhe é absolutamente necessário. Ocorre que esta espontaneidade, representada e hipostasiada em um objeto, torna-se uma espontaneidade bastarda e degradada, que conserva magicamente seu poder criador na exata medida em se torna passiva. Donde a irracionalidade profunda da noção de Ego. Nós conhecemos outros aspectos degradados da espontaneidade consciente. Eu citaria apenas um: uma mímica expressiva e fina pode entregar-nos

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o “Erlebnis” de nosso interlocutor em todo seu sentido, com todas suas nuances, com toda sua frescura. Mas ela nos entrega degradada, isto é, passiva. Somos, deste modo, cercados de objetos mágicos que guardam como que um lembrança da espontaneidade da consciência, ainda que sendo objetos do mundo. Eis por que o homem é sempre um feiticeiro para o homem. Com efeito, esta ligação poética de duas passividades em que uma cria a outra espontaneamente, é o próprio fundo desta feitiçaria, isto é, o sentido profundo da “participação”. Eis por que nós somos igualmente feiticeiros para nós mesmos, a cada vez que consideramos nosso “Mim”.

Em virtude dessa passividade, o Ego é suscetível de ser afetado. Nada pode agir sobre a consciência porque ela é causa de si. Mas, contrariamente, o Ego que produz sofre o contra- choque do que ele produz. Ele está “comprometido” porque ele produz. Há aqui uma inversão de relação: a ação ou o estado se volta sobre o Ego para o qualificar. Isto ainda nos conduz à relação de participação. Todo novo estado produzido pelo Ego tinge e nuança o Ego no momento em que o Ego o produz. O Ego está, de alguma maneira, envolvido por esta ação, ele participa dela. Não é o crime cometido por Raskolnikoff que se incorpora ao seu Ego. Ou antes, para ser exato, é o crime, mas sob uma forma condensada, sob a forma do assassinato. Assim, tudo o que produz o Ego o impressiona. E cabe completa: e apenas isto que ele produz. Poder-se-ia objetar que o “Mim” pode ser transformado por acontecimentos exteriores (ruína, luto, decepções, mudança de meio social, etc.). Mas apenas no caso deles serem ocasião de estado ou ações. Tudo se passa como se o Ego estivesse garantido por sua espontaneidade fantasmal de todo contato com o exterior, como se ele apenas pudesse se comunicar como o Mundo por meio dos estados e das ações. Vê-se a razão deste isolamento: simplesmente o Ego é um objeto que não aparece senão pela reflexão e que, em virtude disto, está radicalmente separado do mundo. Ele não vive sobre o mesmo plano que o mundo.

Da mesma forma que o Ego é uma síntese irracional de atividade e passividade, ele é síntese de interioridade e transcendência. Ele é, em um sentido, mais “interior” à consciência que os estados. Trata-se, muito exatamente, da interioridade da consciência refletida, contemplada pela consciência reflexiva. Mas é fácil de compreender que a reflexão, em contemplando a interioridade, faz dela um objeto posto diante dela. O que entendemos, afinal, por interioridade? Simplesmente que para a consciência ser e se conhecer são uma única e mesma coisa. O que pode ser expresso de modos diferentes: posso dizer, por exemplo, que, para a consciência, a aparência é o absoluto enquanto ela é aparência, ou ainda, a aparência é o absoluto enquanto ela é aparência ou, ainda, que a consciência é um ser cuja essência implica a existência. Estas diferentes fórmulas nos permitem concluir que se vive a interioridade (que se “existe interiormente”), mas que não se contempla esta interioridade já que ela estaria para além da contemplação, como condição da contemplação. De nada serviria objetar que a reflexão põe a consciência refletida e por isto põe sua interioridade. O caso é especial: reflexão e refletido não são senão um, como mostrou com propriedade Husserl, e a interioridade de uma se funda com a da outra. Mas, pôr diante de si a interioridade, é forçosamente a rebaixar como objeto. É como se ela se encerrasse em si mesma e não nos oferecesse senão seu perímetro externo: como se fosse necessário “dar a volta” em torno dela para a compreender. É desta forma que o Ego se entrega à reflexão: como uma interioridade encerrada nela própria. Ele é interior para ele, e não para a consciência. Naturalmente, trata-se de um complexo contraditório: com efeito, uma interioridade absoluta em hipótese nenhum tem fora. Ela não pode ser concebida senão por ela própria e é por isto que nós não podemos apreender as consciências do outro (e apenas por isso e não porque os corpos nos separam). Na realidade, esta interioridade degradada e irracional se deixa analisar por meio de duas estruturas muito particulares:

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a intimidade e a indistinção. Em relação à consciência, o Ego dá-se como íntimo. Tudo se passa como se o Ego fosse da consciência, com uma única e essencial diferença que ele é opaco à consciência. E esta opacidade é tomada como indistinção. A indistinção, da qual se faz, sob diferentes formas, um uso freqüente em filosofia, é a interioridade vista de fora ou, se se prefere, a projeção degradada da interioridade. É esta indistinção que se reencontraria, por exemplo, na famosa “multiplicidade de interpenetração” de Bergson. É também esta indistinção, anterior às especificações da natureza naturada, que se encontra no Deus de numerosos místicos. Ela pode ser compreendida tanto como uma indiferenciação primitiva de todas as qualidades, tanto como uma forma pura do ser, anterior a toda qualificação. Estas duas formas de indistinção pertencem ao Ego, conforme a maneira que ele é considerado. Na espera, por exemplo (ou quando Marcel Arland explica que é necessário um acontecimento extraordinário para revelar o verdadeiro “Mim”), o Ego se entrega como uma potência nua que se precisa e se congela no contato com os acontecimentos*. Ao contrário, depois da ação, parece que o Ego reabsorve o ato realizado em uma multiplicidade de interpenetrações. Nos dois casos, trata-se sempre de uma totalidade concreta, mas a síntese totalitária é operada com intenções diferentes. Talvez se possa ir até o ponto de dizer que o Ego, em relação ao passado, é multiplicado de interpenetrações e, em relação ao futuro, potência nua. Mas é necessário, neste caso, desconfiar de uma esquematização excessiva.

De qualquer forma o “Mim” permanece desconhecido. Isto é facilmente compreensível: ele se dá como um objeto. Logo, o único método para o conhecer é a observação, a aproximação, a espera, a experiência. Mas estes procedimentos, que convém perfeitamente a toda transcendência não íntima, não convém neste caso em virtude da intimidade do “Mim”. Ele é muito presente, tão presente para que se tenha sobre ele um ponto de

* Como no caso em que o apaixonado, querendo significar que ele não sabe até onde o levará sua paixão, diz: “eu tenho medo de mim”.

vista verdadeiramente exterior. Se se recua para ampliar o campo de visão, ele acompanha-nos neste recuo. Ele é infinitamente próximo e não há como eu fazer “a volta”. Sou preguiçoso ou trabalhador? Eu decidirei esta questão, sem dúvida, se eu dirigi-me àqueles que me conhecem e se lhes pergunto sua opinião. Ou ainda posso colecionar fatos que me concernem e tentar os interpretar tão objetivamente quanto eles dissessem respeito a outra pessoa. Mas seria vão interpelar o “Mim” diretamente e tentar aproveitar-me da intimidade dele para o conhecer. Pois é ela, ao contrário, que nós impede o caminho. Assim, “se conhecer bem”, é fatalmente tomar sobre si o ponto de vista do outro, isto é, um ponto de vista forçosamente falso. E todos aqueles que tentaram se conhecer se convencerão que esta tentativa de introspecção se apresenta desde a origem como um esforço para reconstituir com peças separadas, com fragmentos isolados, o que é dado originalmente de um único golpe, em um único movimento. Também a intuição do Ego é uma miragem perpetuamente decepcionante, pois, simultaneamente, ela tudo nos entrega e não nos entrega nada. Como seria de outra forma, aliás, se o Ego não fosse a totalidade real das consciências (esta totalidade seria contraditória como todo infinito em ato), mas a unidade ideal de todos os estados e ações? Sendo ideal, esta unidade naturalmente pode abarcar uma infinidade de estados. Mas concebe-se bem que o que se dá à intuição concreta e plena é apenas esta unidade enquanto ela incorpora o estado presente. A partir deste núcleo concreto, uma quantidade maior ou menor de intenções vazias (de direito, uma infinidade) se dirige em direção ao passado e em direção ao futuro e visa os estados e as ações que não estão presentemente dados. Aqueles que têm algum conhecimento de Fenomenologia compreendem sem esforço que o Ego é simultaneamente uma unidade ideal dos estados, de que a maioria está ausente, e uma totalidade concreta que se dá completamente à intuição: o que significa simplesmente que o Ego é uma unidade noemática

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e não noética. Uma árvore ou uma cadeira não existem de outra forma. Naturalmente, as intenções vazias podem ser preenchidas e não importa qual estado, não importa qual ação pode sempre reaparecer à consciência como sendo ou tendo sido produzida pelo Ego.

Enfim, o que impede radicalmente que se adquira conhecimentos reais sobre o Ego é a maneira especial que ele se dá à consciência reflexiva. Com efeito, o Ego nunca aparece senão quando ele não é olhado. É necessário que o olhar reflexivo se fixe sobre o “Erlebnis”, enquanto ela emana do estado. Então, atrás do estado, no horizonte, o Ego aparece. Ele nunca é vista senão “pelo rabo do olho”. Uma vez que eu volte meu olhar para ele e que eu o queira alcançar sem passar pelo “Erlebnis” e pelo estado, ele se evapora. Com efeito, procurando apreender o Ego por ele mesmo e como objeto direto de minha consciência, eu caio sobre o plano irrefletido e o Ego desaparece com o ato reflexivo. Daí esta impressão de incerteza exasperante, que muitos filósofos traduzem colocando o Eu aquém do estado de consciência e afirmando que a consciência deve voltar-se sobre ela mesma para aperceber o Eu por detrás dela. Não se trata disto: por natureza o Ego é fugitivo.

É certo, entretanto, que o Eu aparece sobre o plano irrefletido. Se alguém me pergunta “que fazes?”, e eu respondo ocupado, “Eu tento pendurar este quadro”ou “Eu troco o pneu traseiro”, estas frase não nos transportam para o plano da reflexão, eu as pronuncio sem cessar de trabalhar, sem cessar de visar unicamente às ações na medida em que são ou serão feitas – não enquanto eu as faço. Mas este “Eu” aqui em questão não é, entretanto, uma simples forma sintática. Ele tem um sentido: é simplesmente um conceito vazio e destinado a permanecer vazio. Da mesma forma que posso pensar em uma cadeira na ausência de toda cadeira, posso, por simples conceito, pensar o Eu na ausência de Eu. É o que torna evidente a consideração de frases tais como: “Que faz esta tarde?”, “Eu vou ao escritório” ou “Encontrei

meu amigo Pedro” ou “Preciso lhe escrever”, etc., etc. Mas o Eu, caindo do plano refletido ao plano irrefletido, não se esvazia completamente. Ele se degrada, perde sua intimidade. O conceito não saberia nunca ser preenchido pelos dados da intuição, pois agora ele visa a outra coisa que eles. O eu que encontramos aqui é de algum modo o suporte das ações que (eu) faço ou devo fazer no mundo enquanto elas são qualidades do mundo e não unidades de consciências. Por exemplo: a lenha deve ser cortada em pequenos pedaços para que o fogo pegue. Ela deve: é uma qualidade da lenha e uma relação objetiva da lenha com o fogo que deve ser aceso. Neste instante eu corto a lenha, isto é, a ação realiza-se no mundo e o suporte objetivo e vazio desta ação é o Eu-conceito. Eis por que o corpo e as imagens do corpo podem consumir a degradação total do Eu concreto da reflexão ao Eu-conceito, servindo este último de um preenchimento ilusório. Eu digo “Eu” corto a lenha, eu vejo e sinto o objeto “corpo” cortando a lenha. O corpo serve, pois, de símbolo visível e tangível para o Eu. Vê-se, então, a série de refrações e de degradações de que uma “egologia” deveria se ocupar.

Plano refletido {Consciência refletida – imanência – interioridade {Ego intuitivo – transcendência – intimidade {(domínio do psíquico)

Plano irrefletido {Eu-conceito (facultativo) – vazio transcendente – sem “intimidade” {Corpo como preenchimento ilusório do Eu-conceito {(domínio do psico-físico)

E) o Eu e a Consciência no Cogito

Poder-se-á perguntar por que o Eu aparece na ocasião do cogito já que o cogito, se ele é operado corretamente, é apreensão de uma consciência pura, sem constituição nem de estado nem de ação. De

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fato, o Eu não é necessário aqui, já que ele nunca é unidade direta das consciências. Pode-se mesmo supor uma consciência operando um ato reflexivo puro que a dispusesse a ela mesma como espontaneidade não pessoal. Apenas é necessário considerar que a redução fenomenológica nunca é perfeita. Quando Descartes efetua o Cogito, ele o efetua em ligação com a dúvida metódica, com a ambição de “fazer avançar a ciência”, etc., que são ações e estados. Assim, o método cartesiano, a dúvida, etc., se dão naturalmente com empreendimentos de um Eu. É completamente natural que o Cogito, que aparece no termo destes empreendimentos e que se dá como logicamente ligado à dúvida metódica, veja aparecer um Eu em seu horizonte. Este Eu é uma forma de ligação ideal, uma maneira de afirmar que o Cogito é bem apreendido na mesma forma que a dúvida. Em uma palavra, o Cogito é impuro, é uma consciência espontânea sem dúvida, mas que permanece ligada sinteticamente à consciências de estados e ações. A prova disto é que o Cogito se dá simultaneamente como resultado lógico da dúvida e como o que lhe põe fim. Uma apreensão reflexiva da consciência espontânea como espontaneidade não pessoal exigiria ser realizada sem nenhuma motivação anterior. Ela sempre é possível, de direito, mas permanece bastante improvável ou, pelo menos, extremamente rara em nossa condição de homens. De toda maneira, como disséramos acima, o Eu que aparece no horizonte do “Eu penso” não se dá como produtor da espontaneidade consciente. A consciência produz-se diante dele e vai à sua direção, vai ao seu encontro. E isto é tudo que se pode dizer.

Conclusão

Nós gostaríamos, a título de conclusão, apresentar as três observações seguintes:

A concepção do Ego que propomos parece-nos realizar a liberação do Campo transcendental ao mesmo tempo que realiza sua purificação.

O campo transcendental, purificado de toda estrutura egológica, recobra sua limpidez primeira. Em certo sentido ele é um nada, já que todas as verdades, todos os valores estão fora dele, já que meu “Mim” cessou ele próprio de fazer parte dele. Mas este nada é tudo já que ele é consciência de todos estes objetos. Ele não é mais da ordem da “vida interior”, no sentido em que Brunschvicg opõe “vida interior” e “vida espiritual”, porque ele não é mais nada que seja objeto e que possa simultaneamente pertencer à intimidade da consciência. As dúvidas, os remorsos, as pretensas “crises de consciência”, etc., em suma, toda a matéria dos diários íntimos tornam-se simples representações. E talvez se pudesse tirar de lá alguns preceitos sãos de discrição moral. Mas, além disso, é necessário notar que, deste ponto de vista, meus sentimentos e meus estados, meu próprio Ego, deixam de ser minha propriedade exclusiva. Precisemos: até aqui se fazia uma distinção radical entre a objetividade de uma coisa espaço-temporal ou de uma verdade eterna e a subjetividade dos “estados” psíquicos. Parecia que o sujeito teria uma posição privilegiada em relação aos seus próprios estados. Quando dois homens, segundo esta concepção, falam de uma mesma cadeira, ele falam de uma mesma coisa, esta cadeira que se toma e levanta é a mesma que o outro vê, não há simples correspondência de imagens, há um único objeto. Mas parecia que quando Paulo tentava compreender um estado psíquico de Pedro, ele não podia alcançar este estado, cuja apreensão intuitiva cabia exclusivamente a Pedro. Ele apenas podia visar a um equivalente, criado por conceitos vazios que tentavam em vão alcançar uma realidade subtraída, por essência, do alcance da intuição. A compreensão psicológica se fazia por analogia. A fenomenologia veio ensinar-nos que os estados são objetos, que um sentimento enquanto tal (um amor ou um ódio) é um objeto transcendente e não saberia se contrair na unidade da interioridade de uma “consciência”. Por conseguinte, se Pedro e Paulo falam todos os dois do amor de Pedro, por exemplo, não é mais verdadeiro que um fala cegamente e por analogia daquilo que o

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outro apreende plena e completamente. Eles falam da mesma coisa; eles a apreendem sem dúvida por procedimentos diferentes, mas podem ser igualmente intuitivos. E o sentimento de Pedro não é mais certo para Pedro que para Paulo. Um e outro pertencem à categoria de objetos que se pode pôr em dúvida. Mas toda esta concepção profunda e nova permanece comprometida se o “Mim” de Pedro, este “Mim” que odeia ou que ama, permanece uma estrutura essencial da consciência. O sentimento, com efeito, permanece-lhe ligado. Este sentimento “cola” no “Mim”. Se se atrai o “Mim” à consciência, atrai-se o sentimento junto com ele. Pareceu-nos, ao contrário, que o “Mim” era um objeto transcendente como o estado e que, em virtude desse fato, ele fosse acessível a dois tipos de intuição: uma apreensão pela consciência de que é o “Mim”, uma apreensão intuitiva menos clara, mas não menos intuitiva, par outras consciências. Em suma, o “Mim” de Pedro é acessível à minha intuição como à de Pedro e nos dois casos ele é o objeto de uma evidência inadequada. Em assim sendo, não resta mais nada de “impenetrável” em Pedro, isto não sendo sua própria consciência. Mas a consciência é radicalmente. Nós queremos dizer que ela não é apenas refratária à minha intuição mas igualmente ao pensamento. Eu não posso conceber a consciência de Pedro sem fazer dela um objeto (já que eu não a concebo como sendo minha consciência). Eu não a posso conceber porque seria necessário pensá-la como interioridade pura e transcendência simultaneamente, o que é impossível. Uma consciência não pode conceber outra consciência senão como ela mesma. Assim, podemos distinguir, graças a nossa concepção de “Mim”, uma esfera acessível à psicologia, na qual o método de observação externo e o método introspectivo têm os mesmos direitos e podem se ajudar mutuamente – e uma esfera transcendental pura, apenas acessível à fenomenologia.

Esta esfera transcendental é uma esfera de existência absoluta, isto é, uma esfera de espontaneidades puras, que nunca são objetos e que

se determinam elas próprias a existir. O “Mim”, sendo objeto, é evidente que nunca poderei dizer: minha consciência, isto é, a consciência de meu “Mim” (salvo em um sentido puramente designativo, como quando se diz, por exemplo, o dia de meu batismo). O Ego não é proprietário da consciência, é objeto dela. Seguramente nós constituímos[instituímos] espontaneamente nossos estados e nossas ações como produções do Ego. Mas nossos estados e ações são igualmente objetos. Nós jamais teremos intuição direta da espontaneidade de uma consciência instantânea como produzida pelo Ego. Isto é impossível. É apenas no plano das significações e das hipóteses psicológicas que nós podemos conceber uma produção semelhante – e este erro não é possível senão porque neste plano o Ego e a consciência são visados no vazio. Neste sentido, se se compreende o “Eu penso” de uma maneira a fazer do pensamento uma produção do Eu, já se constituiu o pensamento como passividade e estado, isto é, como objeto; abandonou-se o plano da reflexão pura, no qual o Ego aparece, sem dúvida, mas no horizonte da espontaneidade. A atitude reflexiva é exprimida corretamente pela famosa frase de Rimbaud (na carta do vidente): “Eu é um outro”. O contexto prova que ele simplesmente quis dizer que a espontaneidade da consciência não saberia emanar do Eu, ela vai em direção ao Eu, ele o encontra, ela deixa-o entrevisto sob sua espessura cristalina, mas ela se dá sobretudo como espontaneidade individuada e impessoal. A tese comumente aceita, segundo a qual nossos pensamentos fluiriam de um inconsciente impessoal e se “personalizariam” à medida que se tornassem consciência, parece-nos uma intuição grosseira e materialista de uma intuição justa. Ela foi sustentada por psicólogos que tinham compreendido bastante bem que a consciência não saía do Eu, mas não podiam aceitar a idéia de uma espontaneidade que se produzisse ele mesma. Estes psicólogos, então, imaginaram ingenuamente que as consciências espontâneas “saíam” do inconsciente onde elas já existiam,

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sem perceber que eles nada mais faziam que recuar o problema de sua existência, que é necessário que seja formulado ante de se encerrar, e que eles o obscureciam já que a existência anterior das espontaneidades nos seus limites pré-conscientes seria necessariamente uma existência passiva.

Nós podemos, então, formular nossa tese: a consciência transcendental é uma espontaneidade impessoal. Ela se determina à existência a cada instante sem que nada se possa conceber antes dela. Assim, cada instante de nossa vida consciente nos revela uma criação ex nihilo. Não uma arranjo novo, mas uma nova existência. Há algo de angustiante para cada um de nós, uma vez apreendido o fato dessa criação irresoluta da existência de que nós não somos os criadores. Neste plano, o homem tem a impressão de escapar de si sem cessar, de transbordar, de surpreender-se por uma riqueza sempre inesperada e é ainda o inconsciente que ele encarrega de dar conta deste ultrapassamento do “Mim” pela consciência. De fato, o “Mim” nada pode em relação a esta espontaneidade, pois a vontade é um objeto que se constitui por e para esta espontaneidade. A vontade se dirige sobre os estados, sobre os sentimentos ou sobre as coisas, mas ela nunca retorna à consciência. Nós nos damos conta disso em alguns casos em que experimentamos querer uma consciência (eu quero adormecer, eu não quero mais pensar nisso, etc.). Nestes diferentes casos é necessário por essência que a vontade seja mantida e conservada pela consciência radicalmente oposta àquela que ela quis fazer nascer (se eu quero adormecer, eu fico acordado, se não quero pensar em tal ou qual acontecimento, precisamente por isto eu penso nele). Parece-nos que esta espontaneidade monstruosa está na origem de numerosas “psychasténies”. A consciência assusta-se com sua própria espontaneidade porque ele a sente para além da liberdade. É o que se pode ver claramente em um exemplo de Janet. Uma jovem casada ficava aterrorizada, quando seu marido a deixava sozinha, de se pôr a janela e de interpelar os passantes a maneira das prostitutas. Nada em

sua educação, em seu passado, em seu caráter pode servir de explicação a semelhante temor. Parece-nos simplesmente que uma circunstância sem importância (leitura, conversação, etc.) determinou nela o que se poderia chamar de vertigem de possibilidade. Ele se encontrava monstruosamente livre e este liberdade vertiginosa lhe aparecia na ocasião do gesto que ela temia fazer. Mas esta vertigem não é compreensível senão se a consciência aparece repentinamente a ela mesma como transbordando infinitamente nas suas possibilidades o Eu que lhe serve de unidade ordinária.

Talvez, com efeito, a função essencial do Ego não é tanto teórica que prática. Nós observáramos, com efeito, que ele não abarca a unidade dos fenômenos, que ele se limita a refletir uma unidade ideal, enquanto que a unidade concreta e real é operada desde muito. Mas talvez seu papel essencial seja mascarar à consciência sua própria espontaneidade. Uma descrição fenomenológica da espontaneidade mostraria, com efeito, que esta última torna impossível toda distinção entre ação e paixão e toda concepção de uma autonomia da vontade. Estas noções não têm significação senão em um plano em que toda atividade se dá como que emanando de uma passividade transcendente, ou seja, em um plano em que o homem se considera simultaneamente como sujeito e como objeto. Mas decorre de uma necessidade de essência o fato de não se poder distinguir espontaneidade voluntária da espontaneidade involuntária.

Tudo se passa, pois, como se a consciência constituísse o Ego como uma falsa representação dela própria, como se ela se hipostasiasse neste Ego que ela constituiu, se absorvesse nele, como se ela fizesse dele sua salvaguarda e sua lei: é graças ao Ego, com efeito, que uma distinção poderá se efetuar entre o possível e o real, entre a aparência e o ser, entre o querido e o sofrido.

Mas pode acontecer que a consciência se produza repentinamente ela própria no plano reflexivo puro. Talvez não sem Ego, mas como

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que escapando do Ego por todos os lados, como que o dominando e o sustentando fora dela por uma criação continuada. Sobre este plano não há mais distinções possíveis entre o possível e o real já que a aparência é o absoluto. Não há mais barreiras, mais limites, mais nada que dissimule a consciência a ela mesma. Então, a consciência, apercebendo-se daquilo que se poderia chamar a fatalidade da espontaneidade, angustia-se completamente: é esta angústia absoluta e sem remédios, este medo de si, que nos parece constitutivo da consciência pura e é ela que dá a chave da pertubação “psychasthénique” de que falávamos. Se o Eu, do Eu penso, é a estrutura primeira da consciência, esta angústia é impossível. Se, ao contrário, adota-se nosso ponto de vista, não apenas temos uma explicação coerente desta pertubação como também temos um motivo permanente para efetuar a redução fenomenológica. Sabe-se que Fink, em seu artigo Kantstudien, confessa, não sem melancolia, que tanto quanto se permaneça na atitude “natural”, não há razão, não há motivo para praticar a έποχή. Com efeito, esta atitude natural é perfeitamente coerente e não encontraria lá contradições que, conforme Platão, conduzissem a filosofia a fazer uma conversão filosófica. Assim, a έποχή aparece na fenomenologia de Husserl como um milagre. O próprio Husserl, nas Meditações cartesianas, faz uma alusão muito vaga a certos motivos psicológicos que conduziriam a efetuar a redução. Mas estes motivos quase não parecem suficientes e sobretudo a redução não parece poder operar senão ao termo de uma longe estudo: ela aparece, pois, como uma operação savante [puramente científica], o que lhe confere um a certa gratuidade. Contrariamente, se a “atitude natural” aparece inteiramente como um esforço que a consciência faz para escapar dela mesma à medida que se projeta no “Mim” e nele se absorve, e se este esforço nunca é recompensado, basta um simples ato de reflexão para que a espontaneidade consciente se arranque bruscamente do eu e se dê como independente, a έποχή não é mais um milagre, ela

não é mais um método intelectual, uma procedimento científico: é uma angústia que se impõe a nós e que não podemos evitar, é simultaneamente um acontecimento puro de origem transcendental e uma acidente sempre possível de nossa vida cotidiana.

2) Esta concepção do Ego nos parece a única refutação possível ao solipsismo. A refutação que apresenta Husserl em Lógica formal e transcendental e nas Meditações cartesianas não nos parece poder atingir um solipsista determinado e inteligente. Tanto o Eu permaneça uma estrutura da consciência, sempre será possível opor à consciência, com seu Eu, todos os outros existentes. E finalmente será este “Mim” que produzirá o mundo. Pouco importa se certas camadas deste mundo necessitem, em virtude de sua própria natureza, de uma relação com o outro. Essa relação pode ser uma simples qualidade do mundo que eu criei e de maneira nenhuma me obriga a aceitar a existência real de outros Eu s. Mas se o Eu se torna um transcendente, ele participa de todas as vicissitudes do mundo. Ele não é um absoluto, de maneira nenhuma ele criou o universo, ele cai, como as outras existências, sob os golpes da έποχή; e o solipsismo torna-se impensável desde que o Eu não tem mais posição privilegiada. Em vez de se formular “apenas eu existo como absoluto”, deveria se enunciar “apenas a consciência absoluta existe como absoluto”, o que é, evidentemente, um truísmo. Meu Eu, com efeito, não é mais certo para a consciência que o Eu de outros homens. Ele apenas é mais íntimo.

3) Os teóricos de extrema esquerda têm, por vezes, reprovado a fenomenologia por ela ser um idealismo e afogar a realidade na torrente das idéias. Mas se o idealismo é a filosofia sem mal de M. Brunschvicg, se é uma filosofia em que o esforço de assimilação espiritual nunca encontra resistências exteriores, em que o sofrimento, a fome, a guerra se diluem em um lento processo de unificação das idéias, nada é mais injusto que chamar os fenomenólogos de idealistas. Há séculos, ao contrário, que

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não se percebia na filosofia uma corrente tão realista. Eles novamente imergiram o homem no mundo, eles deram-lhe todo o peso às suas angústias e aos seus sofrimentos, e também às suas revoltas. Infelizmente, desde que o Eu permaneça uma estrutura da consciência absoluta, ainda se poderá condenar a fenomenologia por seu uma “doutrina refúgio”, de ainda tirar uma parcela do homem fora do mundo e de desviar, em virtude disto, a atenção dos verdadeiros problemas. Parece-nos que esta censura não tem mais razão de ser se fazemos do “Mim” um existente rigorosamente contemporâneo do mundo e cuja existência tivesse as mesmas características essenciais do mundo. Sempre me pareceu que uma hipótese de trabalho tão fecunda quanto o materialismo histórico não exigisse de maneira nenhuma por fundamento a absurdidade que é o materialismo metafísico. Não é necessário, com efeito, que o objeto preceda o sujeito para que os pseudo-valores espirituais evaporem e para que a moral reencontre suas bases na realidade. Basta que o “Mim” seja contemporâneo do mundo e que a dualidade sujeito-objeto, que é puramente lógica, desapareça definitivamente das preocupações filosóficas. O Mundo não criou o “Mim”, o “Mim” não criou o mundo, eles são dois objetos para a consciência absoluta, impessoal, e é por isso que eles se encontram ligados. Esta consciência absoluta, quando purificada do Eu, nada tem de um sujeito, igualmente não é uma coleção de representações: ela é simplesmente uma condição primeira é uma fonte absoluta de existência. E a relação de interdependência que ela estabelece entre o “Mim” e o Mundo é suficiente para que o “Mim”apareça como que “em perigo” diante do Mundo, para que o “Mim”(indiretamente e por intermédio dos estados) tire do Mundo todo seu conteúdo. Nada mais é necessário para fundar filosoficamente uma moral e uma política absolutamente positivas.

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RESENhA: cOMO TORNAR-SE lIVRE E fElIz

Marcos Ferreira de paula*

Resumo: Resenha do livro Le devenir actif chez Spinoza, de Pascal Sévérac, publicado na França em 2005. Palavras-chave: devir, alegria, passividade, admiração, eternidade.

Lançado na França há cinco anos, Le devenir actif chez Spinoza, de Pascal Sévérac, é uma dessas obras de comentário que se tornam “referência obrigatória” assim que são publicadas. O tema de que trata Sévérac toca o cerne da filosofia de Espinosa: como “tornar-se ativo”? Pergunta que, em Espinosa, pode ser perfeitamente reescrita assim: como afinal chegamos a ser livres e felizes? É por isso que devenir, aqui, é melhor traduzido por “tornar-se”, em vez de “devir”, já que o tema do livro não é outro senão o processo mesmo de conquista da felicidade e da liberdade. Há contudo, como veremos, um lugar da obra em que o termo pode ser traduzido como devir.

A importância das paixões alegres

Um pouco na esteira de Deleuze, Sévérac põe a “alegria passiva” no centro do problema do “torna-se ativo”. De fato, pergunta-se Sévérac, pode-se ser feliz, isto é, potente, em meio a uma passividade que é constitutiva, já que somos parte da Natureza em relação com outras partes? Como pensar a passividade ou impotência numa filosofia que propõe uma ontologia da afirmação absoluta? São problemas éticos e ontológicos que poderiam ser focalizados num só ponto: a existência de alegrias passivas. De um lado, elas mostram que não se pode identificar passividade e sofrimento; de outro, elas deixam ver há um paradoxo: enquanto alegria é aumento

* Professor de filosofia do Departamento de Saúde, Educação e Trabalho da Unifesp-Santos.

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da potência, mas enquanto paixão é negação da potência; paradoxo que, porém, não chega a ser uma contradição, já que a alegria passiva não é ao mesmo tempo aumento e diminuição, mas aumento e negação que só podem ocorrer em momentos afetivos diversos, e por causas que não dizem respeito à alegria em si mesma. Como se poderia, com efeito, distinguir subjetivamente a alegria passiva da alegria ativa? A diferença objetiva, como bem lembra Sévérac, não é um problema: somos causa parcial do afeto de alegria, num caso, e causa total no outro. Mas se não há diferença, o que explica a passagem? Qualquer leitor de Espinosa sabe que não se trata de dever moral: não somos obrigados a buscar a felicidade, por uma determinação extrínseca à nossa própria experiência afetiva. A questão, portanto, não é o que se deve ou não fazer, mas o que se ganha e o que se perde ao se passar da alegria passiva à ativa. Assim, como indica a leitura atenta que Sévérac faz de Espinosa, é preciso perguntar como se explica o problema, considerando-se a realidade efetiva do desejo. E aqui questão do livro ganha toda a sua força e coerência, indo ao cerne do problema ético: como afinal chegamos a desejar, no interior mesmo da vida passiva, o tornar-se ativo? É assim que a abordagem do problema do “tornar-se ativo” ou da conquista da felicidade passa pela consideração, por um lado, daquilo que na própria vida passiva nos impede de ser ativos, mas, por outro lado, daquilo nela justamente nos leva a desejar o tornar-se ativo. Vê-se então que não saímos do campo das paixões ao explicar a passagem à atividade, porque é aí que o problema se explica.

A estrutura da passionalidade admirativa

E a explicação de Sévérac nos traz uma contribuição original, ao enfatizar o papel de um afeto em particular: a admiratio. A admiração é de fato um afeto bastante particular na teoria das paixões de Espinosa: ela

mantém a mente fixada numa coisa através de uma “imaginação singular” (singularis imaginatio) que não tem nenhuma conexão com as outras coisas (Spinoza 2, Def. dos Afetos 4, p. 241). Dada assim a sua estrutura particular, a admiração é o afeto que, segundo Sévérac, oferece o maior obstáculo ao processo liberativo. O problema maior é que, afirma o autor, muitos afetos passivos não comportam a mesma estrutura da admiração, e é por isso que a esses afetos nós tendemos a aderir tenazmente, isto é, de forma obessiva (fixação afetiva).

A fixação e a obsessão nos distraem de outros bens que poderiam aumentar nossa capacidade de agir e pensar. Elas limitam nossa potência. Riqueza, libido e honras são assim, na leitura de Sévérac, bens que nos distraem (o termo de Spinoza é distrahitur), mas a distração não é ela mesma um sofrimento, uma tristeza – ou seja, uma diminuição da atividade de pensar: ela é um impedimento dessa atividade, um obstáculo, uma barreira. Nessa medida, escreve Sévérac: “ (...) a distractio, a qualquer bem que ela se reporte, não envolve nenhum sofrimento em si mesma. Ela consiste de fato em um impedimento para aceder ao verdadeiro bem, mas esse impedimento não é sentido como tal: ele não é sentido como um mal (Sévérac 1, p. 235). A admiração, portanto, impede a potência sem necessariamente entristecer. Eis por que os afetos que ocorrem sob a estrutura da admiração podem nos manter fixados e obsedados num determinado bem, numa determinada coisa ou alegria, limitando nossa capacidade de agir e pensar. Se o tornar-se ativo é a aptidão para o “múltiplo simultâneo”, para usar uma expressão de Chaui, então o maior problema é o pensamento ou afeto obsessivo. É portanto sob a estrutura da admiração que um afeto adere tenazmente. E o afeto tenaz é justamente o grande inimigo a ser combatido, na interpretação de Sévérac.

As teorias da admiração, do afeto tenaz e da distração levam a uma outra: a “Teoria da ocupação da mente”, assunto de todo o capítulo IV do

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livro. Todas estas teorias estão intimamente interligadas, em Sévérac: a admiração é a estrutura afetiva que leva à fixação em certos afetos, aos afetos que aderem tenazmente; com isso, causando um desejo excessivo e nos fazendo admirá-los sem cessar, nós somos distraídos a tal ponto que não podemos pensar noutra coisa, e portanto não podemos pensar em outro modo de vida melhor, o que em Espinosa significa não pensar num “modelo de natureza humana”; assim, a mente então pode estar ocupada, ou com o que nos distrai, ou com o que nos permite pensar no novum institutum. É da distração, e da fixação num “modelo de natureza humana”, esses dois modos por excelência de ocupação da mente sob as paixões, que trata o capítulo IV.

A idéia de modelo é importante na argumentação de Sévérac. Trata-se de pensar, ainda no campo próprio das paixões, um novo modo de vida. É portanto ainda no campo do imaginário que o tornar-se ativo se impõe. Se tudo se passa no universo passional, ser salvo é ser salvo através do corpo: não podemos, só pela razão, abandonar nossas alegrias. É que a negação da potência não significa necessariamente tristeza, como o demonstra a alegria passiva, mas antes polarização dos afetos, fixação e obsessão afetiva. Mas justamente toda a dificuldade em tornar-se ativo está em que a conquista da felicidade deve ser realizada em meio à passividade alegre, em que o problema é, especificamente, o afeto tenaz. É sob o afeto tenaz que somos dominados pelas paixões, e é esse o maior obstáculo ao devir ativo. O pensamento de um “modelo de natureza humana”, tal como aparece no Tratado da Emenda do Intelecto e no prefácio da Parte IV da Ética, exemplifica a utilidade da imaginação. Para Sévérac, o devir ativo exige a substituição de um “imaginário da obsessão” por um “imaginário da salvação”.

Assim, as paixões que nos dominam devem ser combatidas no próprio campo da passividade: forjamos um “modelo de natureza humana”

que é ele mesmo um objeto admirado e sobre o qual nos fixamos de algum modo. Há portanto, ainda no campo da imaginação, uma mudança de idéia, isto é, de afeto. Mas se toda obsessão se dá, como toda paixão, sob a estrutura da passionalidade admirativa; se todo imaginário fixo é “imaginário admirativo”, de que modo o imaginário do modelo não nos manteria fixos numa outra ilusão? A resposta está em como se opera uma tal mudança. E aqui Sévérac não hesita em nos remeter à idéia de que tudo se passa num campo de forças: não basta que uma idéia seja verdadeira para nos livrar de uma paixão, é preciso que ela nos seja um afeto mais forte e contrário aos afetos a serem combatidos. A própria racionalidade encontra então seus meios de se afirmar contra os amores excessivos, exclusivos e fixadores, pela constituição de um imaginário que a toma por objeto (Sévérac 1, p. 434).

o eterno devir ativo

O livro de Sévérac é extenso e sua análise é minuciosa. O leitor tem a impressão de que o autor tenta resolver todos os problemas que aparecem no desenrolar da argumentação, de que todas as questões devem ser enfrentadas sem economia (na medida do possível) de tempo e espaço. Não cabe aqui tratar de todas elas. Mas uma questão importante que Sévérac teve que enfrentar, evidentemente, é a do problema da eternidade em Espinosa. Aqui talvez o termo devenir possa ser melhor traduzido por devir. É o problema do “devenir actif éternel”: como se poderia falar de um devir ativo numa metafísica em que nossa participação no Real, na Natureza e na Substância é proclamada eterna? Ou seja, se somos já de algum modo eternos, como pensar um devir ativo, ou um vir-a-ser feliz? Em outras palavras, o problema da conquista da felicidade, o tornar-se ativo, se colocaria então em termos da conquista

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de nós mesmos, daquilo sempre fomos mas não sabíamos que éramos. É o assunto do último capítulo do livro.

A eternidade em Espinosa parece pôr em questão a possibilidade do tornar-se ativo como conquista através de um “supremo esforço”, summum conatus. A eternidade é uma descoberta ou uma revelação? Uma invenção ou uma produção? (Sévérac 1, p. 417). O escólio da proposição 34 da Parte V da Ética afirma que os homens têm consciência de sua eternidade, mas a confundem com a imortalidade. Para Sévérac, há duas maneiras possíveis de ler essa afirmação: ou bem há uma eternidade em si que não é por si (ela está lá, dada, mas não temos – a maior parte dos homens – consciência dela); ou bem a crença na imortalidade é uma consciência da eternidade, mesmo que seja uma idéia confusa, e neste caso não há eternidade que não seja ao mesmo tempo em si e para si. O escólio da proposição 23 da Parte V parece concordar com essa segunda interpretação, já que afirma que toda mente é em parte eterna, e, mais do que isso, afirma que nós “sentimos e experimentamos” ser eternos.

Mas o problema da eternidade, diante do tema do tornar-se ativo, aparecerá com toda clareza no escólio da proposição 31 do De libertate, onde Espinosa afirma que, embora só agora estejamos certos da eternidade da mente, consideraremos como se só a partir de então ela começasse a o ser, como se a eternidade da mente tivesse tido um começo no momento em que compreendemos que ela é eterna em parte. Por esse escólio Sévérac afirma que podemos diferenciar o fato de a mente ter uma parte eterna do fato de temos a certeza disso (Sévérac 1, p. 423). Para ele, é justamente porque nos tornamos eternos, porque começamos a experimentar o amor intelectual, que nós fazemos como se começássemos a ser eternos (Sévérac 1, p. 424). Contudo, assim como, para formar uma idéia verdadeira do círculo forjando o movimento de um semi-círculo em torno de seu centro, é preciso já ter uma idéia de

círculo, assim também, para formar a idéia verdadeira de nossa eternidade é preciso forjar a idéia de seu começo. Porque, segundo o autor, é a ficção do devir eterno que engendra a certeza do devir eterno, da eternidade, com o que nos tornamos verdadeiramente mais e mais eternos:

“Os comentadores sem dúvida insistiram bastante sobre o fato de que nos é preciso ser eterno para em seguida tornarmos-nos certos dessa eternidade; é preciso quanto a nós insistir sobre o fato de que só podemos nos tornar certos de sermos eternos se engendramos a partir da ficção de um devir essa certeza, e portanto essa existência eterna” (Sévérac 1, p. 425).

É então a ficção do devir eterno que nos permite ter a certeza de nossa eternidade (Sévérac 1, p. 426), e é a idéia fictícia do devir ativo – o que ele chama de “ficção verdadeira” – que eliminará contudo a idéia de um engendramento da eternidade: “...a ficção do devir faz vir efetivamente o que retrospectivamente não pode mais ser concebido adequadamente em termos de devir” (Sévérac 1, p. 427). Assim a passagem à atividade é uma idéia fictícia que precisa ser forjada. Não há de fato passagem: o que há é um esforço que vai de uma atividade reduzida, porque limitada pelas potências exteriores, à uma atividade expandida, porque determinada antes de tudo pela atividade interna da mente na produção dos afetos.

O devir ativo eterno não é portanto inexplicável. Ele se deixa apreender no momento mesmo em que se realiza. No ponto onde tudo pareceria problemático – de onde um devir eterno se já estamos necessariamente na eternidade? –, tudo se resolve, segundo Sévérac, pois no momento mesmo em que nos tornamos eternos, já não podemos mais nos pensar como não eternos (Sévérac 1, p. 435). Sévérac nos fala assim em processo eterno de engendramento da certeza da eternidade. Partindo da passividade, cabe-nos engendrar a atividade eterna, e é a isso que nos conduz nosso “supremo

Cadernos Espinosanos XXII

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esforço”, que recorre à ficção de nosso “nascimento na beatitude”, mas essa ficção “faz advir o que retrospectivamente não pode mais ser concebido senão como eterno”. O devir ativo reabsorve todo o passado, que se torna ele mesmo eterno, sendo concebido em sua eternidade.

Os estudiosos de Espinosa não deixarão de encontrar, nessas leituras de Sévérac, os motivos de um grande prazer intelectual.

REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:1. SÉVÉRAC, Pascal. Le devenir actif chez Spinoza. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2005.2. SPINOZA, B. de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Abstract: Review of the book Le devenir actif chez Spinoza, Pascal Sévérac, published in France by 2005. Keywords: becoming, joy, passivity, admiration, eternity.

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cONTENTS

the position oF the Agent oF FreedoM in ethics V

Marilena chaui..................................................................................11

existence And predicAtion oF existence in gAssendi’s critiQue oF

cArtesiAn ontologicAl prooF in FiFth MeditAtion

elane Maria Farias de carvalho........................................................27

froMthePhySiCSoftheintenSiVetoanaeSthetiCSofintenSiVe:

deleuze And the singulAr essence in spinozA

CíntiaVieiradaSilva.........................................................................37

the MeAning oF sui iurisinSPinoZa’SPhiloSoPhy André dos santos campos................................................................55

Merleau-PontydialogueSwiththe

rationaliSMandthePaintinginthe“eyeandMind”

Valéria loturco.................................................................................85

PowerofreaSonandhuManfreedoM:

ananalySiSofthePrefaCe,axioMSandofthefourfirSt

propositions oF ethics pArt V.

Adriana belmonte Moreira.............................................................141

indiViduAl substAnce And relAtion

BetweenBodyandSoulinleiBniZ

SachaZilberKontic..........................................................................161

240

short presentAtion oF “trAnscendence oF the ego: sketch For A

PhenoMenologiCaldeSCriPtion”,ByJeanPaulSartre

alexandredeoliveiratorresCarrasco......................................173

trAnslAtion oF “trAnscendence oF the ego: sketch For A

phenoMenologicAl description”

Jean-paul sartre...........................................................................183

aBStraCt:howoneCanBeCoMefree?

Marcos Ferreira de paula.............................................................229