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TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010

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TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010

Adriano Nervo Codato (UFPR)Ana Maria F. Almeida (UNICAMP)Antônio Sérgio Guimarães (USP)Benjamin Junge (State University of New York)Carlos Fortuna (Universidade de Coimbra)Claudino Ferreira (Universidade de Coimbra)Frank Marcon (UFS)Franz Josef Brüseke (UFS)Hippolyte Brice Sogbossi (UFS)Joanildo Burity (Fundação Joaquim Nabuco)Jonatas Silva Meneses (UFS)José Ricardo Ramalho (UFRJ)

conselho editorial

CooRdeNAdoR do NPPCSernesto Seidl

edIToReSernesto Seidl

Péricles Andrade

edIToRAÇÃo eLeTRÔNICALucílio Freitas - CeSAd

ReVISÃoClaudia Reginaernesto Seidl

Catalogação na fontes. Ficha catalográfica elaborada pela BICeN/UFS

ToMo, Revista do Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais/Universidade Federal de Sergipe Nº 1 (1998). São Cristóvão-Se, NPPCS/UFS, n. 17 jul./dez., 2010.

INSS 1517-4549

Semestral

1. Ciências Sociais - Periódicos I. Universidade Federal de Sergipe. Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais

As informações e análises contidas nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, portanto, o endosso do Conselho editorial do NPPCS.

esta revista integra a Plataforma dos Periódicos eletrônicos da UFS (www.posgrap.ufs.br/periodicos) e conta com apoio institucional da Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe.

Maria Helena Santana Cruz (UFS)Miguel Pablo Serna Forcheri (UDELAR - Uruguai)Miguel Vale de Almeida (ISCTe - Portugal)Nádya Araújo Guimarães (USP)Paulo Sérgio da Costa Neves (UFS)Renato Monseff Perissinotto (UFPR)Rogerio Proença Leite (UFS)Sadi dal Rosso (UnB)Sílvia Helena Borelli (PUC-SP)Tânia elias Magno da Silva (UFS)Ulisses Neves Rafael (UFS)

dossiê Violência e segurança pública

na contemporaneidade

orGaniZaÇÃo: Paulo sérgio da costa neves

sumário

dossiê

INTRodUÇÃo Ao doSSIÊ “VIoLÊNCIA e SeGURANÇA PÚBLICA NA CoN-TeMPoRANeIdAde”Paulo Sérgio da Costa Neves07

A ReFUNdAÇÃo dA SoCIedAde ModeRNA Richard dubé e Álvaro Pires 15

A LeTALIdAde dA AÇÃo PoLICIAL: PARÂMeTRoS PARA ANÁLISe Adriana Loche 39

ReGULAMeNTAÇÃo de USo de SUBSTÂNCIA PSICoATIVA PARA USo ReLIGIoSo: o CASo dA AYAHUASCAAndréa depieri de Albuquerque Reginato57

FoRMAÇÃo PoLICIAL e VIoLÊNCIA de GÊNeRo: ReLATo de eXPeRIÊN-CIAS NAS deLeGACIAS dA MULHeR de SeRGIPe Maria Teresa Nobre79

“SeGURANÇA PÚBLICA, ReSPoNSABILIdAde de QUeM?”: ANÁLISe de UMA eXPeRIÊNCIA de CoGeSTÃo dA SeGURANÇA eM SeRGIPeGleise Prado Rocha Passos113

A dIMeNSÃo INSTITUCIoNAL do CRIMe oRGANIZAdo e NoVAS TeC-NoLoGIAS: o CASo do PCC No eSTAdo de SeRGIPeLuís Cláudio Almeida Santos131

artigos

A NATUReZA dA NATUReZA eM MARX Cristiano Wellington Noberto Ramalho153

o PRoCeSSo de FoRMAÇÃo de “IdeNTIdAde MARANHeNSe” eM Me-AdoS do SÉCULo XXAntonio evaldo Almeida Barros183

introduÇÃo ao dossiê

Violência e segurança pública na contemporaneidade

Paulo Sérgio da Costa Neves

A segurança pública tornou-se um tema emblemático das transfor-mações que têm ocorrido nas sociedades contemporâneas nas últimas décadas. A proeminência dos discursos securitários e o crescimento do número de prisioneiros em todo o mundo, da mesma forma que as experiências participativas na área e as políticas de segurança voltadas para certas minorias sociais, para não citarmos senão as dimensões mais visíveis do fenômeno, são sintomáticos de uma rápida transformação da segurança nas sociedades contemporâneas. Nesse sentido, não seria absurdo afirmar-se que essas mudanças fazem parte de mudanças mais amplas que estão ocorrendo em diversas dimensões da vida moderna, sobretudo no que se refere ao papel dos estados-nações, os quais, his-toricamente, elegeram a segurança e o controle da violência como um de seus domínios prediletos.

Para muitos autores - a exemplo de Nils Christie, david Garland, Jock Young, Loïc Wacquant, Zygmunt Bauman, dentre outros -, as transformações no mundo da segurança pública dão a ver uma crise do próprio estado moderno, o qual não mais ocuparia o lugar central na regulação social, seja pela inflexão neoliberal, seja como consequ-ência do processo de globalização cultural, econômica e política das últimas décadas.

No entanto, após a crise econômica de 2008 e as medidas tomadas para combatê-la em todo o mundo, podemos dizer que se crise há, ela deve ser percebida como uma crise ao nível das percepções hegemô-nicas sobre o papel do estado. Assim, a crise maior do estado-nação é menos política (no sentido de pôr em prática políticas públicas) do que ideológica, uma vez que o estado já não mais aparece como o ator capaz de unificar a vida social, embora em muitos casos continue fazendo-o.

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Paulo Sérgio da Costa Neves

Isso é visível em uma certa dificuldade da ideologia nacional aparecer como elemento condensador da identidade nacional em relação a rei-vindicações diferencialistas cada vez mais fortes (étnicas, de gênero, de grupos imigrantes, regionalismos etc.).

A questão, ao menos nos países em que o estado está assentado em instituições mais ou menos sólidas, é como fazer conviver essa tensão entre crise ideológica e efetividade da ação política. Uma das possibilidades que se abre é através da unificação da identidade social pela busca da segurança. Aspecto já sublinhado por diversos autores na própria constituição histórica dos estados modernos. Anthony Gi-ddens e Charles Tilly, por exemplo, mostram claramente que o estado moderno se constitui e se consolida através do uso da violência, seja contra inimigos externos, seja contra “inimigos internos”.

Mas então o que há de novo na época atual? A novidade está em que não somente o poder simbólico e identitário do estado está sendo contes-tado por diversos atores, como ainda, em termos ideológicos, o controle da violência tornou-se algo preponderante como estratégia legitimadora da ação estatal. Isso em um contexto em que os discursos democráticos e de respeito pelos direitos humanos tornaram-se amplamente majoritários.

Isso vai colocar como problemática para as elites estatais o fato de precisarem abordar a violência estatal de uma forma crítica ao seu uso e, ao mesmo tempo, de a utilizarem para reforçar os elos “identi-tários” e sociais das sociedades. É essa tensão que explica as políticas de segurança pública atuais, as quais buscam ser simultaneamente “securitárias” e “democráticas”.

Junte-se a isso algumas transformações mundiais do imaginário moderno. Não apenas a democracia e os direitos humanos estão se tornando ideologicamente majoritários no ocidente como, também, as sociedades transformaram-se em sociedades de risco. Ulrich Beck vai chamar a atenção para os riscos ao nível científico; mas, como quer Bauman, um outro elemento que aparecerá como importante será a questão da segurança. Seja pelos riscos de violência urbana, seja os dos atentados terroristas, por exemplo, os riscos securitários vão ocupar um lugar importante no imaginário das sociedades ocidentais.

Assim, embora devamos reconhecer que a cisão entre o estado fiador de solidariedade social e o estado gerenciador de políticas públicas seja

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INTRODUÇÃO AO DOSSIÊ “VIOLÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA NA CONTEMPORANEIDADE”

apenas relativa, ou que a crise do estado-Nação no plano internacional não se faz acompanhar necessariamente de uma crise de legitimidade ao nível interno, forçoso é constatar que o recrudescimento dos discursos securitários nas últimas décadas nos interpela sobre o papel do estado nas sociedades contemporâneas.

No Brasil esse debate aparece nos 1980 sob a roupagem das discus-sões sobre a redemocratização e da necessidade de pôr fim à tradição autoritária das instituições de segurança pública. o aumento da vio-lência urbana e as dificuldades em transformar o modus operandi das polícias indicam o quanto essa questão permanece central no país.

Foi procurando ajudar nesse debate que esse dossiê foi pensado. Buscando conciliar textos teóricos com estudos de casos sobre a rea-lidade contemporânea, sobretudo do Brasil, os textos que se seguem tentam, cada um ao seu modo, entender a centralidade da segurança pública em nossa época.

o primeiro texto, de autoria de Álvaro Pires, criminólogo brasi-leiro radicado no Canadá, e Richard dubé, defende a ideia de que há uma lógica implícita no sistema penal moderno que o leva a priorizar soluções punitivas conservadoras, em detrimento de for-mas alternativas da pena. Ancorados na teoria do sistema de Niklas Luhmann, os autores argumentam que “O sistema de direito penal entrou na segunda modernidade, permanecendo ao mesmo tempo fechado, no plano da reflexão e, em particular, em relação às penas, nos autorretratos dominantes da primeira modernidade”. ou seja, por ser autopoiético, o sistema penal resiste às transformações que ocorrem em outras esferas sociais, permanecendo ancorado na lógica da punição mesmo quando novas formas de abordagem do desvio aparecem em outras esferas sociais.

Isso se torna evidente - dramaticamente evidente, diga-se de pas-sagem -, no segundo texto desse dossiê, de Adriana Loche, sobre a letalidade das ações policiais em São Paulo. Baseada em uma impor-tante base de dados sobre mortes de civis em ações policiais, a autora sustenta que “Quando se analisa o conjunto de indicadores relativos ao uso desproporcional da força letal pela polícia – a proporção entre civis mortos e civis feridos; a proporção entre civis mortos e policiais mortos; e a proporção das mortes provocadas em ações policiais em relação ao

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Paulo Sérgio da Costa Neves

total de homicídios dolosos –, chega-se à conclusão de que, em São Paulo, a violência letal é utilizada como forma de controle social coercitivo, direcionado, na maioria dos casos, contra pessoas não identificadas, rotuladas como “suspeitas” ou por apresentarem uma “atitude suspeita”. Pelos dados analisados pode-se afirmar que, no estado de São Paulo, as polícias, em sua ação rotineira e em nome do estrito cumprimento do dever, mais do que impedir a ocorrência do crime, executam sumaria-mente pessoas, ignorando o direito ao devido processo legal.”

Podemos acrescentar a essa argumentação que, embora os discur-sos sobre a modernização da ação policial sejam uma tônica de vários governantes no país, na prática, muitos dos vícios do passado dessas instituições permanecem vigentes em nossa época. e longe de ser uma simples questão de treinamento dos agentes policiais, essa situação denota uma falta de “autoridade” das corporações policiais no país.

Para Andréa depieri, em seu texto em torno do histórico da legis-lação sobre o uso terapêutico e religioso da ayuasca, a tensão entre proibição/criminalização versus liberação do uso de substâncias alu-cinógenas pode também ser compreendida dentro da lógica punitiva do sistema penal de controle. Ao mesmo tempo, a autora mostra-nos que essa tensão é real, o que significa dizer que nada está posto defi-nitivamente ou para sempre, pois não apenas o estado adota medidas de controle sobre o uso da ayuasca, mas também diversos segmentos se mobilizam para que seja reconhecido o caráter religioso das ervas que compõem a ayuasca.

Por sua vez, Maria Teresa Nobre mostra-nos, no texto seguinte, essa mesma tensão no interior das delegacias de mulheres no estado de Sergipe. A partir de uma pesquisa sobre as modalidades de for-mação policial no interior dessas delegacias, a autora aponta como novas perspectivas de remodelagem do trabalho policial, através das práticas de mediação, provocam atritos e fricções no interior das instituições policiais, as quais se veem como instituições de controle e repressão.

Já o estudo de Gleise da Rocha Passos sobre o policiamento co-munitário em Sergipe ensina-nos que, embora essa modalidade de policiamento pressuponha uma redefinição do trabalho policial, o qual passa a ser percebido mais como mediação social do que como

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INTRODUÇÃO AO DOSSIÊ “VIOLÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA NA CONTEMPORANEIDADE”

repressão, com ênfase na aproximação entre policiais e sociedade, na prática o policiamento comunitário em Sergipe pouco se distingue do policiamento tradicional. Isso nos levanta algumas questões impor-tantes, sobretudo no que se refere à necessidade midiática de muitos gestores públicos da segurança de ostentar medidas modernizadoras e liberalizantes das instituições de controle, sem que isso se torne uma prática efetiva dessas instituições.

Por fim, o estudo de Luís Cláudio Almeida Santos sobre o uso de novas tecnologias pelo crime organizado mostra-nos um outro lado da moeda. Se, como vimos até aqui, o sistema penal tem-se mostrado avesso a demandas sociais que vão no sentido de uma diminuição da repressão aflitiva pelo estado (redução das penas de emprisonamento, técnicas policiais mais participativas e mediadoras etc.), também é verdadeiro o fato de que a criminalidade organizada está cada vez mais poderosa e estruturada, exigindo do estado um nível de intervenção cada vez maior.

Assim, vemos nas análises do autor, que o uso da telefonia celular tem permitido a expansão do PCC (sigla da organização criminosa Pri-meiro Comando da Capital) em diversos presídios no estado de Sergipe, dotando-o de uma agilidade e estrutura organizativa que dificulta o trabalho de repressão de suas atividades.

Como vemos nesta rápida introdução, as questões levantadas pe-los estudos sobre sistema penal e segurança pública não são de fácil resolução. Por analisarem uma dimensão crucial para a formação da modernidade, a saber, o controle da violência e o uso legítimo da vio-lência pelo estado, esses estudos necessitam repor em análise, nem que seja de forma implícita, os termos mesmos dessa modernidade. Modestamente, esperamos apenas que esse dossiê possa auxiliar seus leitores a se situar nesse debate.

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dossiê

TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010

A REFUNDAÇÃODA SOCIEDADE

MODERNA*

Richard dubé**

Álvaro Pires***

resumo

Neste texto, ancorados na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, os autores sustentam que o sistema penal nas sociedades contemporâneas ainda estão presos a uma lógica de repressão e controle. É o que se pode observar em relação à estratégia dominante do sistema de direito penal quanto à possibilidade de constituir e de estabilizar um sistema inovador de ideias sobre a pena criminal que favoreça sanções não carcerárias e desfavoreçam as longas penas de encarceramento. As velhas semânticas da retribuição, da dissuasão, da denunciação (ou reprovação) simbólica e da reabilitação prisional intervêm - cada uma à sua maneira, e isso, tanto no sistema quanto no seu ambiente – para nos lembrar por que é importante punir (comunicar-agir) e fazê-lo de forma “coerente” com relação aos hábitos que foram estabelecidos na historicidade do sistema.

* Este artigo foi originalmente publicado em Richard Dubé, Pascal Gin, Walter Moser e Álvaro Pires (org.), Modernité en transit/Modernity in Transit, Ottawa, Presses de l’Université d’Ottawa/University of Ottawa Press, 2009.

** Departamento de criminologia, Universidade de Ottawa, Canadá.*** Departamento de criminologia e titular da Cátedra de pesquisa do Canadá em Tradições

jurídicas e racionalidade penal, Universidade de Ottawa, Canadá.

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Richard Dubé e Álvaro Pires

the reFoundation oF modern societY

abstract

In this text, anchored in the theory of Niklas Luhmann’s systems, the authors argue that the criminal justice system in contemporary societies is still imprisoned in a logic of repression and control. This is what is to be observed in relation to the dominant strategy of the system of criminal law regarding the possibility to build up and stabilize an innovative system of ideas on the penal sanctions that favors not prison inmates and disfavouring the long sentences of imprisonment. The old semantics of retribution and deterrence, the withdrawal (or disapproval) symbolic and rehabilitation prison intervenes - each in its own way, and that both in the system and in their environment - to remind us why it is important punish (communicate-act) and doing so in a “consistent” with respect to the habits that were established in historicity of the system.

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A REFUNDAÇÃO DA SOCIEDADE MODERNA

introduÇÃo

Um projeto de “refundação da sociedade moderna”, em si, nos envia à ideia de um movimento, de uma trajetória; uma trajetória que se daria em tempos passados, como ponto de partida, um projeto ambicioso de emancipação, de igualdade e de desenvolvimento, e que hoje, a meio caminho, surpreende-nos refletindo sobre as soluções que poderíamos trazer aos problemas maiores e globais, mais ou menos fortuitos, que decorrem diretamente da implementação da “proposta” da primeira modernidade. em algum lugar nesta trajetória, rupturas separaram brutalmente projeto e realidade. essas rupturas vieram, dessa vez, abalar nossa fé no Progresso, mais particularmente essa fé que nos ha-via permitido, durante longo tempo, acreditar que esse Progresso seria linear, cumulativo e certo. As rupturas vieram, além disso, abalar nossa fé no “humanismo” (Foucault, 1966a; 1966b), isto é, nesse elemento vital da autodescrição do sistema [sociedade moderna] como sendo “humano” (Luhmann, 2006, p.271). essa sociedade moderna se via “sem exclusão”; uma sociedade onde os seres humanos seriam vistos, sem exceção, como “pessoas” e não como “corpos” ou simples “indiví-duos” (Luhmann, 1999a, p.632-633), dos quais nos desembaraçamos nas favelas, nas prisões (Luhmann,1999b), nas câmeras de morte, não raramente em nome dos “valores fundamentais” abstratos, ou em nome do “simbolismo” ou ainda para que as coisas ruins não se repitam...

Podemos, evidentemente, dirigir nossas censuras ao passado, la-mentar as promessas quebradas e as decepções acumuladas. Podemos também dizer que nossos valores fundamentais exigem certos sacrifí-cios. Podemos da mesma maneira reconhecer os aspectos mais positivos e os avanços realizados através da busca de nossos primeiros ideais modernos1. Mas uma vez que esse balanço da primeira modernidade venha a ser feito, a questão que poderia aparecer versa certamente sobre o futuro: “Qual o futuro da nossa sociedade moderna”?

No que se segue, propomo-nos sublinhar as implicações teóricas relacionadas a essa última questão, quando ela é levantada no con-

1 Uma pena de encarceramento de 25 ou 30 anos continua, seguramente, mais humana que o suplício em praça pública ou que a pena de morte.

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Richard Dubé e Álvaro Pires

texto de uma sociedade funcionalmente diferenciada; tentaremos, notadamente, explicar, nessa primeira parte, por que a reflexão à qual nos convida essa questão não pode mais ser conduzida do alto de um estrato social hierarquicamente superior aos outros (quer se trate do estrato econômico ou político), mas deve ser desenvolvida no quadro de “uma sociedade sem vértice nem centro; uma sociedade que evolui mas [que] não pode se controlar por si mesma” (Luhmann, 1997, p. 22-23).

os primeiros desenvolvimentos sobre a diferenciação funcional da sociedade e suas implicações serão seguidos de considerações teóricas sobre os diferentes modos de gestão que podem ser privilegiados pelos sistemas funcionais, quando estes empreendem operações de reflexão em resposta às decepções da primeira modernidade, mais particular-mente àquelas decepções associadas ao seu próprio funcionamento. Nessa segunda parte, veremos, além disso, como o modo de gestão privilegiado orienta a evolução do sistema funcional, ao mesmo tempo em que influencia o futuro do sistema global (a sociedade).

a diferenciação funcional da sociedade e a autonomização dos sistemas sociais

de acordo com a teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann (1970), a sociedade é representada como um sistema social que engloba todas as comunicações e no interior da qual, em torno de um função específica, subsistemas sociais operariam e delimitariam, a partir de suas próprias operações, uma fronteira operacional que separa o sub-sistema de um ambiente, de seu ambiente.

Assim, nesse processo de diferenciação que “reproduz sistemas nos sistemas [...] e distinções no que é distinguido” (Luhmann, 1977, p. 15), o sistema jurídico, especializado na eliminação da contingência das ex-pectativas normativas, teria se diferenciado funcionalmente do sistema político, que asseguraria, no que lhe toca, sua própria diferenciação em torno de uma outra função que seria a de permitir a tomada de decisões coletivamente vinculantes. No mesmo sentido, o sistema científico teria se diferenciado de seu ambiente ao se especializar funcionalmente na produção de novos saberes; função diferente daquela especificamente

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A REFUNDAÇÃO DA SOCIEDADE MODERNA

atribuída ao sistema econômico, encarregado, por sua vez, de eliminar a escassez e de garantir os modos de subsistência para o futuro; função ainda diferente daquela própria ao sistema artístico, funcionalmente especializado na produção de observações do mundo (para desenvol-vimentos mais amplos sobre as funções dos subsistemas da sociedade moderna, ver Krause [2001], Ferrarese [2007] e Moeller [2006]).

Historicamente, o tipo de arranjo social via diferenciação social teria começado a se desenvolver a partir do fim da Idade Média, tomando uma forma mais acabada na segunda metade do século XVIII. É nesse momento que se pode dizer que, sobre a base desse princípio de diferenciação fun-cional, a organização da sociedade marca uma “interrupção” (Luhmann, 1997, p.14) em relação às sociedades pré-modernas, que se caracterizam, antes de mais nada, por uma organização que segue o princípio da estra-tificação ou da segmentação. desde então, para Luhmann, a observação da sociedade contemporânea – e não a das outras sociedades – passará necessariamente pela noção da diferenciação funcional (Krause, 2001, p.40): a sociedade moderna é funcionalmente diferenciada.

No quadro dessa teoria sistêmica, e em oposição a todas as outras teorias que empregam o conceito da “estrutura”, a função não é um efeito a obter nem uma prestação a realizar, mas um esquema de regulação de sentido o qual, em face de um problema específico, “circunscreve um campo de soluções funcionalmente equivalentes2” (Friedberg, 1978, p.595). A esse respeito, a teoria distingue entre função e prestações. A função é única e se refere à sociedade; as prestações, por sua vez, são diversas e se dirigem aos subsistemas da sociedade ou ainda aos siste-mas psíquicos (indivíduos). Além disso, a função não se deixa definir imediatamente por uma seleção do observador referida como “positiva” ou, ao contrário, como “negativa”. Por exemplo, a teoria não sustentará que a função da escola (sistema educativo) seria a de “democratizar o

2 É nesse sentido que se pode dizer que as soluções instituídas nos diferentes sistemas funcionais da sociedade permitem reduzir a complexidade. Ao instituírem estas soluções de preferência a uma outra em especial ou ainda a qualquer outra solução possível, os sistemas funcionais operam no universo dos possíveis das soluções específicas que reduzem a complexidade do mundo. Para dizer isso nos termos de Luhmann, esses sistemas sociais servem assim “de mediação entre a extrema complexidade do mundo e a capacidade bastante limitada que tem o homem [...] para assimilar (verarbeiten) suas experiências” (Luhmann, in Guibentiff, 1993, p.22).

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Richard Dubé e Álvaro Pires

ensino” ou, ao contrário, de “reproduzir as desigualdades de classe da sociedade capitalista”. A teoria não pretenderá tampouco que a função de um sistema é hierarquicamente superior à de um outro nem que a função poderia, por outro lado, se determinar de fora do sistema.

Nesses sistemas funcionalmente diferenciados, as soluções instituídas no interior de cada um deles podem, evidentemente, na sua execução con-creta, ser diferentes, e até mesmo incoerentes umas em relação às outras, simultaneamente e no tempo. Mas, do ponto de vista da função do sistema e das exigências de sua reprodução, essas soluções são intercambiáveis no interior de seu campo de operação. Luhmann (1970, p. 20) reaproxima ele mesmo o sentido de seu conceito de função do pensamento de Kant, para quem a função se apresenta como “a unidade da ação que ordena repre-sentações diversas sob uma representação comum” (uma outra tradução: “entendo por função a unidade do ato que consiste em reunir diversas representações sob uma representação comum” [Kant, C1, p.129]. É esse conceito de função que permite a Luhmann descrever a sociedade moder-na como uma sociedade diferenciada, no primeiro plano, pelos sistemas parciais de função (economia, política, direito, arte, ciência, religião, etc.).

Se, nas ciências sociais, aviltamos o conceito de “sistema [social]” ao ponto de reduzi-lo a uma noção “tapa-tudo” (Barel, 1977), sem con-torno nem alcance descritivo, a teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann (1970) parte da distinção diretiva entre sistema e ambiente para circunscrever o conceito de sistema social em torno do conceito de [circuitos diferenciados de] comunicação. esse último conceito se liga assim, de maneira flexível, a uma intuição que se encontrava em dewey (1916, p. 5): “A sociedade existe na comunicação”. Para dewey, “a sociedade não continua somente a existir pela transmissão, pela comunicação, mas na transmissão, na comunicação. Há mais que um nexo verbal entre as palavras comum, comunidade, comunicação” (Ibid).

o ponto de partida da formação de um sistema social é o que Luhmann compartilha com outros, notadamente com os teóricos da geração de Talcott Parsons (ver Rocher [1992]). esse ponto de partida é o encontro originário entre Alter e Ego. No momento “t” do encontro deles, antes que se produza seja lá o que for, antes mesmo que alguma coisa seja determi-nada por um gesto ou por uma palavra, não existe o aspecto propriamente social desse encontro. Lá onde tudo é ainda possível, nada é previsível

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A REFUNDAÇÃO DA SOCIEDADE MODERNA

nem para Alter nem para Ego. essa dupla contingência suspende no tem-po a possibilidade da interrelação pela comunicação e mantém entre os protagonistas “uma desordem não interrompida” (Amado, 1993, p.104).

A dupla contingência vai se dissolver no momento em que um dos atores tentar a comunicação: fazer um gesto, pronunciar uma palavra ou significar alguma coisa. Seja qual for a escolha do ator, o que ele escolheu fazer corresponde à seleção de uma possibilidade dentro de um univer-so insuportável de possibilidades. Sua seleção reduz a complexidade originária não apenas para si mesmo como também para seu “vis-à-vis”.

Ainda que essa primeira seleção não passe da seleção contingente de uma possibilidade entre outras “possíveis”, ela poderá servir de referente significativo para uma segunda seleção. Além de introduzir essa seleção, nesse sentido, um primeiro elemento de ordem, ela se apresenta igualmente como uma proposta implícita para Alter, no presente caso, a proposta é “a de se adstringir ou não ao mesmo horizonte do possível que o torna pela primeira vez acessível segundo uma dicotomia: a aceitação ou a recusa da escolha” (Amado, 1993, p. 104-105). Que a escolha ou a seleção de Alter se concretize por uma aceitação ou uma recusa, trata-se verdadeiramente de uma seleção em relação à qual a outra parte poderá reagir (ou não!).

Com o tempo e à força da recorrência das seleções operadas, ex-pectativas recíprocas se produzem e tomam a forma de estruturas de expectativas que orientam as relações entre Alter e Ego. Alter espera que Ego aja desta ou daquela maneira, nesta ou naquela circunstância, e assim será para Ego em relação a Alter, que esperará também, com base nas seleções passadas, que Alter aja desta ou daquela maneira, nesta ou naquela circunstância. em face dessas expectativas recíprocas, podemos observar o efeito de um sistema social que progressivamente tomou a forma a partir de seleções, decerto contingentes, as quais, entretanto, contribuíram para reduzir a insuportável complexidade3 do mundo a

3 Devemos entender por “complexidade” o conjunto de todas as possibilidades possíveis. Para Luhmann, as capacidades antropológicas do indivíduo em si não são nunca suficientemente complexas para lhe permitir abraçar de maneira consciente um tal universo de possibilidades.Nesse sentido, os sistemas sociais reduzem a complexidade do mundo em benefício dos indivíduos, isto é, ao operarem seleções nesse universo total de possibilidades e ao estabilizarem certas estruturas que limitam a quantidade de possibilidades admitidas nesse sistema, os sistemas sociais reconduzem o mundo a um grau de complexidade que o indivíduo pode gerir apesar das limitações de suas capacidades antropológicas.

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Richard Dubé e Álvaro Pires

um grau de complexidade menor, permitindo ao aspecto propriamente social, isto é, comunicativo, do encontro entre Alter e Ego tomar forma (para um desenvolvimento mais aprofundado desta questão da dupla contingência na teoria dos sistemas, ver Addario [2003]). em outros termos, sistemas sociais surgem quando a comunicação emerge: esta é “uma operação social (e a única verdadeiramente social)” (Luhmann, 1997) (para uma análise mais refinada desta questão, ver Ferrarese [2007, p. 35 et seg.]).

Ao contrário das teses do contrato social e do individualismo me-todológico, para a teoria dos sistemas, os sistemas sociais não são for-mados nem de Alter nem de Ego, mas da emergência e da reprodução da comunicação, isto é, de elementos propriamente sociais. eviden-temente, a comunicação depende, como condição de possibilidade, dos indivíduos e deve ser retomada por outros indivíduos para que a comunicação possa prosseguir sua autopoiese, ao mesmo tempo em que permita aos que dela fazem uso reduzir o universo dos possíveis no instante mesmo de seus encontros. Assim, cada vez que os elementos constitutivos de uma comunicação servem de quadro de referência a novas comunicações, o sistema social se mantém na sua unidade e se reproduz (sem que todos os indivíduos sejam necessariamente impli-cados nesse processo a cada momento).

A unidade dos sistemas sociais da sociedade é, portanto, assegurada por esta autorreferencialidade comunicativa em que comunicações se orientam com referência a comunicações anteriores antes delas próprias servirem de referência a comunicações futuras. Assim, nesse quadro, podemos afirmar que o sistema é, quanto ao seu funcionamento, au-topoiético, quer dizer, que ele faz efetivamente referência a si mesmo para se constituir e se reproduzir (Luhmann, 1984, p. 408): a autopoiese significa aqui a “autorreprodução de um sistema social a partir de sua própria rede de operações comunicativas produzida mediante comuni-cações que se referem recorrentemente aos resultados de comunicações anteriores” (Teubner, 1989, p. 741 [tradução livre]).

evidentemente, nesse contexto, apenas as comunicações da rede de operações comunicativas fazem parte do sistema que comunica; todo o resto se aloja no ambiente do sistema. o indivíduo como tal se encontra assim no ambiente da sociedade [da comunicação], mas seu

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A REFUNDAÇÃO DA SOCIEDADE MODERNA

sistema psíquico continua estruturalmente acoplado com a sociedade (comunicação), à medida que ele, o sistema psíquico, – ou quando ele – participa da comunicação4. em outros termos, são as operações do sistema (as comunicações) que traçam de fato a fronteira entre o sistema “sociedade” e seu ambiente.

No caso da sociedade moderna, cada sistema funcional (direito, política, etc.) aplica, por si e para si, a distinção sistema/ambiente, instituindo, dessa maneira, sua própria diferenciação no interior mesmo da sociedade enquanto conjunto das comunicações. Assim fazendo, cada sistema social se individualiza ao criar um circuito de comunicação que lhe é específico. ele desenvolve então uma identida-de que lhe é própria5, distinta daquela que caracteriza outros sistemas sociais em relação ao seu ambiente. A menos que dois sistemas sociais evoluam paralelamente a partir das mesmas seleções – fenômeno, por outro lado, muito pouco provável tendo em vista a quantidade e a diversidade das possibilidades compreendidas no universo dos possíveis, e tendo em vista igualmente a subjetividade dos indivíduos que operam essas seleções –, cada sistema social reivindica no plano identitário uma qualidade sistêmica que lhe é própria. A identidade sistêmica – ou a individualidade (individuality) em Luhmann – é, nesse sentido, a conseqüência direta e inevitável da reprodução autopoiética de um sistema social.

A noção de autopoiese nos permite aqui contornar o problema suscitado recentemente por Coriat e Weinstein em relação às análises institucionais em que as ferramentas conceituais nos levam a conce-ber a entidade social como sendo puramente “adaptativa” vis-à-vis a seu ambiente. demasiado frequentemente, sublinham os autores, a entidade aparece então como “uma caixa preta passiva operada com base em determinantes macrossociais nos quais está inserida” (Coriat e Weinstein, 2002,p.274).

4 Essa maneira de ver o “social” se aproxima até um certo ponto daquela de Weber, que, sem necessariamente ver no conceito de comunicação o elemento social de base, exclui, todavia, de seu conceito de ação social o comportamento do indivíduo religioso que ora na solidão (Freund, 1966).

5 É preciso não confundir aqui a “identidade” do sistema (seu “endereço”) quanto aos outros e a si mesmo, que é de alguma maneira um envelope vazio, com seus autorretratos identitários, que podem ser múltiplos e se modificam no tempo.

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o conceito de reprodução autopoiética permite neutralizar não ape-nas uma concepção segundo a qual o sistema é determinado ponto por ponto pelo seu ambiente, como também uma concepção do sistema que não se vê tendo maneiras “não adaptadas” de funcionar em relação a seu ambiente. Com efeito, para a teoria dos sistemas, “todos os sistemas [que mantêm suas autopoieses] são adaptados a seu ambiente (caso contrário, eles não existiriam), mas na face interior do campo de ação que os sistemas se atribuem, eles têm todas as possibilidades de agir de maneira não adaptada” (Luhmann, 1998b, p.101 [tradução livre]. o conceito de autopoiese permite então conceber a relação sistema--ambiente como uma relação de autonomia6 (Luhmann, 1997, p.22-223). Assistimos então a uma viravolta de perspectiva na maneira de conceber a entidade social: passamos da entidade puramente “passiva” a uma entidade categoricamente “ativa”; ativa na construção de seu “estado interior” em relação às pressões externas exercidas pelo ambiente. em um contexto de diferenciação funcional, os sistemas sociais não são mais concebidos como entidades sociais determinadas ponto por ponto pelas regras exteriores, mas como entidades sociais autorregu-ladas, autodeterminadas do interior por si e para si mesmas. Isso não significa, é claro, que elas possam “fazer tudo”, e principalmente sem suscitar outras reações.

Não se trata, portanto, de “radicalizar [o] processo de diferencia-ção e de autonomização e de defender uma concepção “insular” do jogo [sistêmico]” (ost, 1997, p. 268). A autonomia não é sinônimo de independência nem de oposição às relações de dependência. de fato, podemos a esse respeito tirar proveito das observações de edgar Morin no sentido de que “a noção de autonomia não pode ser concebida à

6 Encontramos observações semelhantes na modernidade de Touraine e na de Habermas. Em Touraine, “a modernidade, diz ele, implica a diferenciação crescente dos diversos setores da vida social: política, economia, vida familiar, religião, arte em particular, pois a racionalidade instrumental é exercida no interior de um tipo de atividade e exclui que qualquer uma delas seja organizada do exterior...” (Touraine, 1992, p.21 [grifo nosso]). Em Habermas, observamos que “a diferenciação que engendra a ciência, a moral e a arte [...] significa ao mesmo tempo em que os setores doravante tratados por especialistas se tornem autônomos e rompam seus vínculos com uma corrente de tradições que continua, entretanto, a se desenvolver de maneira incontrolada na hermenêutica da prática cotidiana” (Habermas, 1981,p. 958-959).

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margem da ideia de dependência7” (Morin, 1983, p.320). Certamente, acrescenta Luhmann, “se nós virmos a diferenciação funcional, nossa descrição apontará para a autonomia dos sistemas funcionais [e] para seu alto grau de indiferença [em relação ao ambiente]”, mas ao mesmo tempo, precisa ele, é necessário conceber esse alto grau de indiferen-ça como sendo “acoplado” à alta sensibilidade [do sistema] e à [sua] irritabilidade nos aspectos específicos que variam de um sistema a outro” (Luhmann,1997, p. 22-23). Nesse sentido, “a calamidade não é mais [...] o estrangulamento [insular], mas a negligência” (Ibid), isto é, a indiferença do sistema vis-à-vis às injunções de complexificação pro-venientes de seu ambiente ou do próprio sistema, pois poderemos aqui considerar que “a sociedade pode manter suas realizações presentes [e, eventualmente, as ultrapassar], se e somente se todos os sistemas funcionais operarem e se autorreproduzirem a um nível adequado” (Luhmann, 1997, p. 24-25).

Toda a evolução do sistema social será, portanto, concebida segundo a ordem desse equilíbrio delicado entre, de um lado, o desenvolvimento de um grau de sensibilidade suficiente para reduzir adequadamente a complexidade do ambiente e para aumentar sua complexidade interna e, por outro lado, o desenvolvimento de um grau de indiferença igualmen-te suficiente para manter a diferenciação com seu ambiente. Aferrando--se à hipótese da autonomia, ainda que se trate do desenvolvimento de um grau de sensibilidade adequado quanto ao ambiente, Luhmann vai insistir na ideia – como já havia feito antes Gregory Bateson (1980, p. 315) – de que essa sensibilidade em relação ao exterior do sistema e a informação obtida junto ao exterior somente fará uma diferença para o sistema autopoiético, se essa informação puder ser tratada como tal pelo próprio sistema. Se essa relação com o exterior implica – simul-taneamente com o fechamento operacional do sistema – uma forma de abertura cognitiva, a noção de autonomia não se atenua, ao contrário, ela se reitera ao considerar que “qualquer cognição – seja psíquica ou

7 Por exemplo, dentro da perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, reconhece Gunther Teubner que “o direito é dependente de uma multiplicidade [de saberes e] de epistemes autonômas competitivas” (Teubner, 1989, p.742 [tradução livre]), mas que mantém sua autonomia ao definir por si “as condições procedimentais e metodológicas de incorporação desse saber nos seus [próprios] processos decisórios” (Teubner, 1996, p.IX).

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social, científica, política, moral ou cognição legal – é uma construção puramente interna do mundo exterior” (Teubner, 1989, p. 737).

esse derradeiro elemento relativo à cognição do sistema social nos leva a complexificar mais a noção de sistema em Luhmann.

Se todos os sistemas sociais da sociedade se constituem e se repro-duzem graças às operações de reprodução elementares que descrevemos mais acima, certos sistemas sociais alcançarão – como resultado de seu próprio desenvolvimento – um grau de complexidade mais elevado, que lhes permita conduzir operações de “reflexão” que se caracterizam, com efeito, por uma determinada “performance” do sistema (Luhmann, 1984, p. 455). Luhmann utiliza a esse propósito a distinção entre “um nível operacional, em que a comunicação simplesmente acontece, e um nível semântico, ou um nível observacional, em que a comunicação se autodescreve” (Luhmann, in Knodt e Rasch, 2000, p.195).

Ao tomar emprestado ao matemático Spencer-Brown (1972) esse conceito, Luhmann concebe o fenômeno de reflexão sistêmica como uma forma de “re-entry” da distinção “sistema/ambiente” no sistema. A distinção “sistema/ambiente” seria, portanto, inicialmente atualizada no nível operacional e, em seguida, reintroduzida e reafirmada – nos sistemas sociais mais performantes – no nível da “cognição sistêmica” que as operações de reflexão permitem (Luhmann, 1972, p.69-76). essas operações de reflexão8instituem, com efeito, no interior mesmo das fronteiras comunicativas do sistema, um ponto de vista a partir do qual o sistema pode discorrer sobre o mundo como sobre si mesmo; discorrer sobre suas finalidades, sua legitimidade, suas operações, sua identidade, sua função, etc.9. As operações de reflexão tomam, então,

8 Não confundir aqui a noção de reflexão com a de reflexividade, que é teoricamente bem mais exigente do que a reflexão quer implicar. Enquanto a reflexividade se caracteriza simplesmente pelo retorno de uma forma sobre si mesma – um espelho tem propriedades reflexivas -, a reflexão implica o retorno sobre uma forma, mas supõe uma racionalidade, uma “narração” sobre esse retorno. Ver Luhmann (1984, p. 455-477).

9 Isso pressupõe uma diferença – ao menos é necessário pressupô-la epistemologicamente – entre a realidade “objetiva” do funcionamento sistêmico e a realidade à qual nos reenvia subjetivamente o sistema através de suas semânticas de reflexão. No plano da descrição sociológica, enquanto observador externo de um sistema social que se auto-observa, devemos, portanto, postular a não correspondência entre o que o sistema “diz” ser a realidade e o que a realidade pode parecer sob a perspectiva de um outro sistema social – do ponto de vista, por exemplo, do sistema científico que o observa sociologicamente.

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a forma de uma semântica identitária e de autorretratos identitários que o sistema institui e aos quais se refere para (re)orientar suas ope-rações elementares, assim como para determinar o que ele integrará ou não como novidades a partir das “propostas” de complexificação que emanam de seu interior10 ou de seu ambiente. Para nós, é aqui que aparece hipoteticamente um dos obstáculos maiores à evolução de certos sistemas sociais da sociedade.

modernidade, pós-modernidade e modernidade em trânsito

A teoria dos sistemas não utilizou a distinção modernidade/pós--modernidade para descrever a evolução da sociedade moderna. ela privilegiou, a partir de um ponto de vista sociológico, a distinção entre estrutura social (ou tipo de organização social) e semântica (Luhmann, 1998a) para finalmente inscrever as autodescrições da sociedade con-temporânea como “moderna” ou “pós-moderna” na face “semântica” da distinção. essas distinções (pré-moderno/moderno e moderno/pós-

10 Essas propostas de transformação que provêm do interior do sistema social se formulam tipicamente nas comunicações periféricas do sistema: “é na periferia que aparece a informação da estrutura crítica, que é capaz de questionar a mera continuação do “mais do mesmo” no interior de dadas estruturas (Ahlemeyer, 2001,p.63). Em oposição ao centro – onde as operações se caracterizam mais pelo mais alto grau de “consistência autocentrada” (Clam,2001, p.67), a periferia “não é sujeita a operação compulsória” (Luhmann, 2004,p.294). Nesse sentido, explica Luhmann, podemos dizer que “a periferia é especialmente adequada como uma zona de contato com os outros sistemas funcionais da sociedade” (IBID). Por exemplo, em matéria de direito penal, organizações periféricas de reflexão jurídica – como uma comissão de reforma do direito – que operam, no interior mesmo das fronteiras comunicativas do sistema, são mais suscetíveis de instituir propostas de transformação inovadoras, porque elas não respondem através desta “constante busca de coerência interna” (Noreau, 2004, p.89) que caracteriza as organizações jurídicas do centro – os tribunais (Luhmann, 2004,p.294). Na periferia, podemos observar operações de reflexão “críticas” ou “autocorretivas” que levam à formalização de decisões “sobre premissas de decisão”, enquanto que no centro, o que se observará de maneira mais dominante são, de preferência, as operações de reprodução elementares que levam à tomada de decisões “sob premissas de decisão” (Ahlemeyer,2001,p.63).Ahlemeyer introduz respectivamente, a esse propósito, a distinção “gestão [management] por complexidade”/ “gestão [management] de complexidade” (Ibid). Para uma análise mais detalhada desta conceptualização das organizações jurídicas de reflexão periférica, ver Dubé (2007) e Dubé e Cauchie (2007).

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-moderno) se apresentam então, nesse quadro, como autodescrições da sociedade que introduzem e mobilizam, no plano semântico, uma diferenciação em relação ao passado (comparar com Luhmann, 1998a, p.3).elas são construções de autorretratos identitários que exigem “alusões constantes a seu próprio passado” (Ibid). Como a teoria não observa transformações no plano estrutural global – especificamente, no plano da diferenciação funcional - entre a sociedade contemporânea e a sociedade “moderna”, e considera, por outro lado, que não consegui-mos ainda determinar “de que maneira a sociedade é estruturalmente e mesmo semanticamente diferente de suas predecessoras, a teoria não utiliza esta distinção. Com efeito, não podemos ainda distinguir de ma-neira clara o que, sob diversos aspectos e de vários modos, nos parece como sendo (ainda) “similar se não idêntico” (Luhmann, 1998ª, p. 4).

entretanto, o não-recurso a esta distinção não impede a teoria de des-crever as transformações operadas pela sociedade contemporânea desde sua constituição como sociedade funcionalmente diferenciada. A teoria admite que, em certos níveis e sob certos aspectos, “descontinuidades existem” (Luhmann, 1998a, p. 5). Para utilizar nossa linguagem, ela pode descrever a “modernidade em trânsito”. Portanto, a teoria considera pre-maturo se referir a essas transformações e descontinuidades através do conceito de pós-modernidade, o qual sugere a existência de demarcações significativas tanto no plano estrutural quanto no semântico.

A distinção proposta por Beck (1986) entre primeira e segunda modernidade é, nesse sentido, bem menos problemática. Com efeito, essa distinção introduz a dimensão temporal para sugerir a ideia de transformações e de eventuais descontinuidades, mas atenua ao mesmo tempo a ideia de descontinuidades em todos os planos. essa mistura de “continuidade” e “descontinuidade” parece caracterizar empiricamente a sociedade contemporânea em relação a seu passado imediato descrito como “moderno”. A sociedade contemporânea mesma, sob a perspectiva de seus autorretratos identitários, parece ainda encontrar dificuldades para se demarcar claramente – até mesmo se desembaraçar – de certos aspectos centrais desse passado.

Ilustraremos aqui essa “falta de demarcação” com a primeira mo-dernidade tomando como exemplo o caso do sistema de direito penal (observado aqui como um subsistema do direito).

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a evolução dos sistemas sociais e o futuro da sociedade

Se na formação dos sistemas sociais da sociedade, encontramos, na base, escolhas exercidas em relação a um universo indefinido de possibilidades, é forçoso reconhecer que outras seleções poderiam ser operadas, outras possibilidades poderiam ser atualizadas, soluções funcionalmente equivalentes poderiam ser estabilizadas ao mesmo tempo em que se permitiria ao sistema se especializar em torno de sua função. Isso implica reconhecer toda a contingência que se encontra, portanto, no fundamento de cada sistema social; isso implica aceitar “transferir ao acaso [seu] arranque [démarrage] 11” (Amado,1993,p.105). Compreendemos, finalmente, que no nível dessa contingência, as seleções feitas e as decisões tomadas para instituir certas estruturas poderiam ser revertidas por outras sele-ções e decisões, em benefício de novas possibilidades estruturais – as quais, caso necessário, se mostrariam mais complexas, de melhor “qualidade interna” em relação a cada subsistema, e mais sensíveis às transformações e aos problemas do ambiente.

os obstáculos mais determinantes à evolução dos sistemas sociais não seriam mais relacionados às operações elementares que estrutu-ram um campo de possibilidades definidas, mas sim – ao menos, é a hipótese que exploramos através da teoria de Luhmann – às operações de reflexão e às semânticas instituídas nas autodescrições do sistema. É sobre essas “questões cognitivas” (enjeux cognitifs), para retomar uma preocupação de Foucault, que convém agora prestar atenção. São as semânticas relacionadas às operações de reflexão – quando, por exem-plo, elas se dirigem contra as possibilidades de mudança em favor de uma preservação da tradição pela tradição – que produzem efeitos de cristalizações estruturais lá onde, diferentemente, nada impediria a realização do novo.

Nossas análises teóricas e empíricas, notadamente, aquelas que têm versado sobre as semânticas dominantes do sistema de direito penal moderno, levam-nos a pensar que certos (sub) sistemas sociais

11 “Démarrage”, em francês, remete à ideia de pôr um carro em movimento, dar a partida a um veículo. Daí a minha preferência por “arranque”, palavra que me pareceu, no contexto geral da frase, mais clara, isoladamente, do que “partida” (N.T.).

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da sociedade poderiam desenvolver, no nível de suas operações de reflexão, semânticas mais complexas que aquelas que predominam ainda na atualidade. No caso do direito penal – e o do sistema polí-tico, quando ele reflete sobre a legislação penal e a gestão das penas -, pensamos na emergência de semânticas que nos permitiriam, por exemplo, nos demarcar de um sistema de pensamento constituído de ideias fortes sobre a punição; ideias fortes apoiadas por uma articulação das “teorias (modernas) da pena” (retribuição, dissuasão, denunciação simbólica e reabilitação na prisão) (sobre esse sistema de ideias, ver Pires [1998;2006]).

esse sistema de pensamento pode ser observado com a ajuda da distinção exclusão/inclusão social (Pires, 2006). Constatamos, então, que todas as teorias da pena que se integram nesse sistema e que se autoapresentam sob a forma de “conselhos ao Príncipe” recomendam às autoridades políticas, jurídicas e administrativas decidirem, no pri-meiro plano, em favor da exclusão social dos indivíduos declarados culpados de crime. A esse sistema de ideias da primeira modernidade demos o nome de “racionalidade penal moderna” (Pires, 1998; 2006).

observada sob esse aspecto, a sociedade contemporânea nos deixa ver como ela está ainda fundamentalmente (no máximo) na sua “pri-meira modernidade”. e isso mesmo se, no plano da reflexão, sistemas de ideias emergentes sobre a pena em direito penal tentam encontrar um lugar ao sol, e mesmo se, no plano das operações elementares dos sistemas jurídico e político, aberturas em termos de novas sanções e práticas já são bem visíveis. Acontece que essas novas ideias e práticas não são ainda “legitimadas” por novas teorias da pena suficientemente bem construídas no plano da reflexão, e se situando, claramente, em linha de demarcação com o sistema de ideias da primeira modernida-de. Por conseguinte, se há ideias novas, elas não se encontram senão fragilmente institucionalizadas no plano do direito e da política.

Temos de reconhecer, evidentemente, que qualquer que seja o sis-tema social, a forma sistêmica como tal implica e até mesmo necessita de uma certa resistência diante das propostas de complexificação e de mudança que ressoam constantemente nas fronteiras do sistema. o sistema social precisa de uma certa estabilidade para se regular na ordem de suas operações. Mas, ao mesmo tempo, e retomando o fio de

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nossas observações precedentes sobre a função (que a teoria atribui ao sistema) e sobre as soluções sistêmicas que se estruturam nas outras operações do sistema, essa estabilidade minimamente exigida para a reprodução do sistema social concerne, sobretudo, à função, e não às soluções contingentes elaboradas no tempo originário ou postas em marcha e estabilizadas pela recorrência na “historicidade” do sistema (von Foerster, 1991). Lembremos que para o sistema, as soluções ins-tituídas sob a forma de estruturas podem ser diferentes, e até mesmo incoerentes umas em relação às outras. Assim, no caso do sistema de direito penal, certas “teorias da reflexão” (Luhmann) do sistema e algumas dessas práticas podem, por exemplo, valorizar a exclusão social ou a indiferença à inclusão social, enquanto que outras podem, ao contrário, favorecer, no primeiro plano, à inclusão social . Nesse úl-timo caso, as ideias e as práticas conformes a essas ideias vão valorizar as sanções não carcerárias e se acautelarão de justificar longas penas de encarceramento. do ponto de vista da função indicada pela teoria, a saber, a de eliminar a contingência das expectativas normativas de comportamento, todas essas teorias da reflexão ou essas soluções são funcionalmente equivalentes. A pena de morte ou as longas penas de encarceramento não têm mais condição de eliminar a contingência de uma expectativa normativa que consiste em enunciar que não se deve comunicar-agir matando uma outra pessoa do que outras sanções jurídicas que favorecem, no primeiro plano, a inclusão social (como a indenização da vítima, por exemplo).Simplificando aqui radicalmen-te as coisas tendo em vista o objetivo que traçamos, basta dizer que toda sanção, seja qual for, serve – sempre do ponto de vista da função do sistema (de direito) – para assegurar essa função de eliminação da contingência das expectativas normativas de comportamento.

Um sistema social pode, portanto, manter sua função, ao mesmo tem-po em que modifica internamente suas teorias da reflexão e seu leque de possibilidades estruturais instituídas à guisa de respostas aos problemas de que trata. o que quer que “digam” a esse respeito as autodescrições do sistema (de direito penal), este último pode modificar sua maneira de “pensar” e de agir (mais precisamente, de comunicar) sem nem por isso “desaparecer” ou se confundir com outros sistemas sociais do ambiente. o sistema pode inovar, mas a inovação será sempre confrontada aos au-

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torretratos dominantes, que tenderão, particularmente, a querer conservar a “cognição (a prática) normal” e a rejeitar, esquecer ou marginalizar a “cognição (e a prática) desviante”. A inovação é uma possibilidade, mas sempre permanece “uma trajetória incerta” (Alter, 2005, p. 4).

Sob a égide dessas últimas considerações, podemos agora voltar ao problema do futuro da sociedade moderna. esse problema é observado pela teoria como sendo um problema difuso de evolução, isto é, que concerne a cada sistema social funcional e que se formula no interior dos sistemas. em outros termos, quando a questão do futuro da socie-dade moderna é formulada no quadro de uma sociedade funcional-mente diferenciada, do ponto de vista da teoria, estamos suscitando a questão do futuro do sistema político, do sistema econômico, do sistema de direito (e direito penal) etc. A questão se traduz em saber como esses diferentes sistemas sociais poderão tratar – no exercício de sua própria autonomia e a partir do que será tornado ou não visível nas suas telas respectivas de reflexão – das decepções e problemas associados à primeira modernidade.

A esse respeito, Luhmann chegou mesmo a indicar, ao menos, duas estratégias de “regulação das decepções” ou de regulação dos proble-mas. A primeira é uma estratégia de indiferença ou de isolamento da decepção. ela consiste em canalizar a decepção através de vias que não prejudicam a estrutura interna do sistema, permitindo a sua pre-servação, inclusive quanto ao seu papel dominante. A outra estratégia corresponde ao que Luhmann havia chamado – é preciso ver se esta denominação conceitual ainda convém – uma estratégia de reaprendi-zagem de expectativas (Luhmann, 2001, p.229). ela designa operações de cognição mais complexas, conduzidas no interior de um sistema, mas cujo sucesso pode depender da qualidade da contribuição cognitiva fornecida por outros sistemas funcionais ou, ao menos, depender de sua abertura ou de sua “não-resistência” cognitiva ao que a estratégia possa ostentar. Por exemplo, é difícil para o sistema de direito penal pôr em prática um outro sistema dominante de ideias sobre a pena, enquanto outros sistemas sociais continuam a apoiar o (antigo) sistema dominante; enquanto a filosofia, por exemplo, continuar a fazer a cate-quese das teorias da pena da primeira modernidade; enquanto – outro exemplo – a economia continuar a apoiar ingenuamente as ideias de

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Beccaria e de Bentham sobre a dissuasão (com o amparo, não menos ingênuo de certas correntes sociológicas e criminológicas)12.

A estratégia de isolamento da decepção vai consistir em uma “busca de segurança no interior de uma situação aberta, que se tornou indeterminada” (Luhmann, 2001, p. 228-229). esta busca de segurança se realiza através de tentativas de reflexão e de redução da complexidade que afastam as alternativas ou reduzem seu alcance, ao mobilizar notadamente as semân-ticas tradicionais que têm como objeto premissas pré-decisionais mais ancoradas na memória e na historicidade do sistema. Assistimos, então, a uma forma de reprodução na ordem da redundância firme do mesmo pelo mesmo, para retomar a expressão de Watzlawick. Podemos ver aí a postura que tomam certos sistemas sociais quando, ao se fecharem em uma “filosofia” que preconiza “a tradição pela tradição” ou que glorifica os méritos de um sistema de ideias obsoletas (do ponto de vista de um observador de segunda ordem), esses sistemas se tornam cognitivamente refratários à mudança de suas estruturas internas e, operacionalmente, não podem integrar ou desenvolver possibilidades de “aprendizagem” e de autocorreção, entretanto, possíveis. É o que se passa atualmente em relação à estratégia dominante do sistema de direito penal quanto à possi-bilidade de constituir e de estabilizar um sistema inovador de ideias sobre a pena criminal que favoreça sanções não carcerárias e desfavoreçam as longas penas de encarceramento. As velhas semânticas da retribuição, da dissuasão, da denunciação (ou reprovação) simbólica e da reabilitação prisional intervêm - cada uma à sua maneira, e isso, tanto no sistema quanto no seu ambiente – para nos lembrar por que é importante punir (comunicar-agir) e fazê-lo de forma “coerente” com relação aos hábitos que foram estabelecidos na historicidade do sistema13.

evidentemente, podemos projetar hipóteses sobre o futuro, mas não podemos descrevê-lo. outras possibilidades são também “possíveis”, notadamente, aquela que consiste no desenvolvimento de estratégias de reorientação cognitiva e de reaprendizagem das expectativas. Nesta

12 Certas mudanças cognitivas maiores parecem, com efeito, mais difíceis de serem operacionalizadas que outras, certas mudanças se revelam mesmo altamente improváveis, e impossíveis de serem planejadas completamente.

13 Nesse quadro, será altamente improvável a atualização da possibilidade do sistema se desembaraçar das velhas semânticas da primeira modernidade.

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segunda possibilidade-tipo, o sistema social, sem poder planificar intei-ramente as suas operações, tira pouco a pouco, de maneira reflexiva, a lição de seus próprios passos em falso para “aprender”, para se questionar e para se autocorrigir; a autocorreção implica que o sistema autoriza em seu seio a institucionalização de semânticas inovadoras que permitam a valorização e a estabilização eventual de práticas igualmente inovadoras.

A referência rápida que fizemos aqui ao sistema de direito penal moderno – que conserva ainda de maneira dominante seu sistema de ideias da primeira modernidade sobre a punição – ilustra bem as dificuldades da distinção moderno/pós-moderno, inclusive no plano estritamente semântico. o sistema de direito penal entrou na segunda modernidade, permanecendo ao mesmo tempo fechado, no plano da reflexão e, em particular, em relação às penas, nos autorretratos do-minantes da primeira modernidade. Segundo a teoria dos sistemas, a refundação da sociedade moderna, se ela ocorre, não parece ainda poder ser dissociada da refundação dos sistemas sociais que se diferenciaram em seu interior. Teremos, desde então, de aceitar a renúncia à ideia de que possamos transformar completamente um sistema parcial funcional a partir de um outro sistema: cada sistema deve empreender sua própria “refundação” e encontrar uma forma de coordenação com os outros. eis o que explica por que a teoria dos sistemas não é “otimista” – se selecionarmos a distinção otimista/não otimista -, mesmo se ela não deseja as catástrofes. A modernidade está em trânsito...

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Tradução: Luís Cláudio Almeida Santos

TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010

resumo

o presente artigo apresenta dados sobre o uso da força letal pe-las polícias do da cidade de Nova Iorque e do estado de São Paulo, relacionando-os com três parâmetros convencionados pela literatura internacional para analisar o grau de letalidade da ação policial. os dados apresentados, quando relacionados a estes parâmetos, permitem uma importante reflexão sobre o problema da letalidade policial nas sociedades democráticas.

Palavras chave: polícia, letalidade policial, violência policial

A lEtAlIDADE DA AÇÃO pOlICIAl:

pARâMEtROS pARA ANálISE*

Adriana Loche*

* Este artigo foi originalmente elaborado para compor o dossiê “Mapas do extermínio: execuções extrajudiciais e mortes pela omissão do Estado”. A presente versão foi revisada e atualizada. A autora agradece ao Prof. Dr. Luís Antônio Franciso Souza, da Unesp-Marília, pela leitura e pelas sugestões que permitiram aperfeiçoar o artigo.

** Cientista social, doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo.

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Adriana Loche

the lethalitY oF Police action: Parameters For analYsYs

abstract

This article presents data on the use of lethal force by the police of the New York City and the State of São Paulo, linking them with three parameters agreed by the international literature to analyze the degree of lethality of the police action. data presented as related to these parameters provides an important reflection on the problem of police lethality in democratic societies.

Keywords: police, police lethality, police violence

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A LETALIDADE DA AÇÃO POLICIAL: PARÂMETROS PARA ANÁLISE

o uso da ForÇa Pela Polícia

As reflexões a respeito do uso da força nas práticas policiais remetem à clássica discussão sobre o papel das instituições policiais nas socie-dades democráticas. No estado Moderno o uso legítimo da violência passou a ser monopólio do estado, como um de seus instrumentos específicos de dominação dentro de um determinado território (Weber, 1968). Para o exercício desta dominação, o estado conta com a insti-tuição policial como sendo um dos órgãos encarregados da prevenção, repressão e contenção da criminalidade e da violência1. desta forma, salvo em períodos de exceção, a instituição policial tem como atribui-ção o uso legítimo da violência, dentro de parâmetros delimitados pela legislação, sujeito a imperativos legais que se fundam no respeito aos direitos das pessoas.

A polícia é um mecanismo de distribuição de força justificada por uma situação, no qual a possibilidade do uso da violência é não apenas um elemento intrínseco do trabalho policial, como também aquele que o diferencia de outras atividades profissionais. o uso da força pela polícia é determinado, em parte, pela natureza do poder de polícia e, em parte, pelas decisões tomadas pelos agentes policiais quando executam esse poder. o poder de polícia, por sua vez, é definido pela utilização da coerção para prender criminosos e pela possibilidade do uso da violência nessas situações.

A questão do uso da força2 pela polícia é um tema fundamental para a democracia, pois trata dos limites do uso do poder de polícia. Para tentar definir os contornos destes limites, convencionou-se que o monopólio legítimo do uso da força deve seguir três regras básicas: 1)

1 A ideia contida nesse conceito não é a de que a polícia – como órgão que exerce esse direito – possa ser violenta, mas sim de que não se pode admitir a violência advinda de qualquer outro grupo. “É, com efeito, próprio de nossa época o não reconhecer, em relação a qualquer outro grupo ou aos indivíduos, o direito de fazer o uso da violência” (Weber, 1968). O que o autor pretende demonstrar é que o Estado moderno, fundado na noção de território, reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física, ou seja, ele é a única fonte de “direito” à violência.

2 Para diferenciar a violência legítima – monopólio legítimo do uso da violência – daquela ilegítima – que será definida como violência policial – o termo utilizado será “o uso da força física”, que é o mais difundido na literatura específica.

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o respeito aos direitos das pessoas; 2) a observação de procedimentos legais; e 3) o estrito cumprimento do dever. dessa forma, o uso da força pela polícia assenta-se sobre bases legais que o legitimam. ele não pode ser utilizado de forma arbitrária ou desnecessária à ameaça representada. As bases legítimas do uso da força são definidas, entre outras, pelas seguintes situações: 1) a recusa em se render; 2) a agressão contra um policial; 3) a necessidade de impedir que terceiros sejam feridos; 4) durante o cometimento de um crime. É importante ressal-tar que, mesmo nessas situações, cabe à polícia evitar ferir o infrator, dominando-o (Westley, 1950).

Segundo Bittner (1970), os debates sobre o uso da força se pautam por algumas restrições formais que pouco contribuem para avançar o debate. “O discurso habitual sobre o uso legal da força pela polícia não tem praticamente nenhum sentido (...). A palavra ‘legal’ significa que os policiais não têm direito de cometer crimes, precisão esta evidente e inútil. Além disso, as condições nas quais eles poderiam e seriam levados a usar a força não são sequer definidas”. Para o autor, o debate sobre a violência policial permanece em um impasse e toda a tentativa de aca-bar com ela torna-se impotente, isto porque é praticamente impossível fazer um “julgamento a respeito de ela [a violência] ter sido necessária, desejável e apropriada”.

Skolnick (1994) aponta o caráter conflitivo da atividade policial em uma sociedade democrática. Segundo este autor, ao mesmo tempo em que as polícias são parte do aparato estatal de controle social, elas devem submeter-se aos imperativos legais.

dado que o uso da força pela polícia pode se referir a situações de legalidade, ou de coerção não negociável3, como definir se ela está sendo empregada de maneira proporcional à violência representada? É possível medir o quanto de força seria necessário para cada situação? Se a polícia não pode ser rotulada de violenta por empregar medidas mais duras (pois estas, isoladamente, não podem ser consideradas evidências diretas de culpa), como, então, definir a violência policial?

3 Coerção não negociável, segundo Bittner (1970), refere-se àquelas ações policiais em que o uso da força se deu dentro dos limites legais e os policiais não podem ser responsabilizados pela ação.

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A LETALIDADE DA AÇÃO POLICIAL: PARÂMETROS PARA ANÁLISE

a violência policial: letalidade policial

Há uma permanente tensão entre a manutenção da ordem e o exer-cício legítimo do uso da força. A variação da intensidade da força pode estar associada à necessidade de um controle social mais efetivo – em especial, quando há um recrudescimento da violência urbana – que conduzuria ao uso mais frequente da força. Por esta razão, o tema dos limites do uso da força pela polícia é uma questão central para compre-ender o papel das agências policiais em uma sociedade democrática.

o uso da força pela polícia se caracteriza tanto pelas situações de legalidade quanto por situações em que a margem entre o legal e o ilegal é bastante tênue. o exercício ilegal e ilegítimo4 do uso da força pela polícia, vulgarmente conhecido como violência policial, é um conceito de difícil definição, que abrange muitas nuances do trabalho policial e não há um consenso sobre como defini-lo de forma inequívoca, pois não existe uma violência policial, mas diversas formas que devem ser compreendidas em seus contextos e situações particulares.

Reiss (1968), em artigo em que trata do tema da violência policial, afirma que o que importa na definição da violência policial não é o ato em si, mas o significado desse ato aos olhos dos cidadãos. Para este autor, a violência policial pode ser definida, entre outras formas, como o sentimento de ser tratado de forma pouco digna pela polícia. Como bem ilustraram Skolnick & Fyfe (1993), “podemos não estar capazes de definir a violência policial, mas a reconhecemos quando a vemos”.

em geral, a violência policial refere-se a casos de danos físicos e psicológicos graves a civis, nos quais há uma evidente exacerbação do uso força. Na literatura especializada, o essencial do debate sobre violência policial está relacionado ao uso da força física, em especial ao uso da força letal. Isto porque os dados referentes ao uso excessivo da força em circunstâncias outras são praticamente inexistentes ou, quando existem, difíceis de serem analisados por diversas razões, entre as quais se destacam: problemas de definição; relutância das agências

4 De acordo com Mesquita Neto (1999), a violência policial pode ser interpretada a partir da tradição jurídica – na qual se distingue força e violência com base na legalidade – ou do ponto de vista sociológico – no qual a distinção se dá a partir da legitimidade.

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de polícia para fornecer dados confiáveis; preocupações com aplicação incorreta dos dados notificados; ausência de detalhes necessários para analisar os casos individuais.

letalidade policial: parâmetros para sua aferição

o uso da força letal – ou letalidade policial – refere-se àquelas situ-ações em que a ação policial teve consequências fatais para o cidadão. Ainda que ocorra em situações de legalidade, existem regras específicas sobre seu uso que devem ser respeitadas. desta forma, o uso da força letal seria justificável quando respeitados os parâmetros de razoabili-dade e de necessidade: sempre quando há a necessidade de proteger a vida. Ainda nestes casos, o dever da polícia é o de minimizar o risco de morte, não apenas de terceiros, mas também daquele que comete o delito. Isto porque cabe à polícia eliminar a resistência e não a pessoa que resiste, pois esta, mesmo que tenha cometido um ato punível, tem direito à vida e ao devido processo legal5. Por trás destas regras, estaria o reconhecimento de que o uso da força implica uma série de riscos, em especial quando se trata do emprego de armas de fogo, mas também que a polícia não tem carta “branca para agir”, o que significa restrições ao uso da força letal.

As distintas pesquisas sobre polícia têm mostrado que a violência letal ocorre em diversos países, inclusive aqueles que se pautam por princípios democráticos (Skolnick & Fyfe, 1993; Chevigny , 1991). A letalidade policial, nessas sociedades, não raras vezes, tem servido como um instrumento de controle social, contanto que possa ser carac-terizada como uma justificável resposta ao crime violento (Chevigny, 1991, Mayer, 1983), e seus governos tendem a justificar os tiroteios e as mortes provocadas pela polícia como uma necessidade, como o estrito cumprimento de seu dever legal de combater o crime e de aplicar a lei.

Como a linha que separa a necessidade do abuso é bastante tênue, foram convencionados três parâmetros para aferir se uma polícia usa

5 Uprimny, I.M. (s.d.). Límites de la fuerza pública en la persecución del delito. Bogotá, Defensoría del Pueblo, (serie Texto de Divulgación, 12).

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A LETALIDADE DA AÇÃO POLICIAL: PARÂMETROS PARA ANÁLISE

da força de forma arbitrária ou não, em especial se uma polícia tem um elevado índice de letalidade, que seria incompatível com sua função legal. São eles:

a relação entre civis mortos e civis feridos em uma ação policial;a relação entre civis e policiais mortos;o percentual das mortes provocadas pela polícia em relação ao total

de homicídios dolosos.os parâmetros acima surgem de estudos nos estados Unidos, con-

duzidos por especialistas que tinham por objetivo a redução do número de tiroteios, justificados ou não, nas ações policiais6. É importante esclarecer que estes parâmetros, se considerados isoladamente, não são suficientes para definir o grau de letalidade de uma polícia. Mas, se analisados em conjunto, podem oferecer inúmeras pistas para ve-rificar se as mortes provocadas pela polícia, nos confrontos policiais, se justificam ou não.

Apesar desses parâmetros terem sido desenvolvidos há mais de duas décadas, serem bastante elucidativos sobre o grau de letalidade policial, oferecendo uma importante contribuição para a compreensão do fenômeno do violência policial, eles são totalmente desconhecidos do grande público e permanecem, ainda, pouco utilizados, seja por pesquisadores ou por gestores públicos brasileiros.

Para entender a importância prática destes parâmetros, serão aqui apre-sentados dados sobre as mortes provocadas pela polícia na cidade de Nova Iorque (estados Unidos)7 e no estado de São Paulo8 (Brasil), distribuídos em um período de dez anos. É importante ressaltar que não é objetivo deste artigo comparar os dados entre si, a fim de aferir qual polícia é mais violenta ou qual sociedade é mais violenta. o objetivo é o de analisar os dados disponíveis para cada uma destas sociedades em sua relação com

6 Chevigny (1991); Mayer (1983), Sherman & Langworthy (1979).7 Nos Estados Unidos as polícias responsáveis pelo policiamento ostensivo, preservação da

ordem e por funções de polícia judiciária são subordinadas ao município, no Brasil são subordinadas aos governos estatais. Por esta razão é que serão analisadas as polícias da cidade de Nova Iorque e as polícias do estado de São Paulo.

8 Os dados do estado de São Paulo referem-se às polícias militar e civil. No entanto, cumpre dizer que a quase totalidade de mortes é provocada pela polícia militar, não só pelo caráter de sua atividade, mas também pelo tipo de formação recebida e pela cultura militarista que graça naquela instituição.

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os três parâmetros já mencionados, a partir de uma série histórica de dez anos. desta forma, os anos distintos e as diferenças sócio-econômicas entre as duas sociedades são dados irrelevantes para o este artigo.

dados sobre a letalidade policial em nova iorque e são Paulo os dados que serão apresentados a seguir têm por objetivo a refle-

xão sobre o uso da força letal pelas polícias da cidade do Nova Iorque e do estado de São Paulo. Como dito anteriormente, não se trata de uma comparação entre as duas sociedades ora apresentadas, mas sim de como o uso da força letal pode ser verificado a partir dos seguintes parâmetros: proporção entre civis mortos e feridos; proporção entre civis e policiais mortos; e a proporção do uso da força letal em relação ao total de homicídios.

Para realizar esta análise, foram utilizados dados oficiais, ou seja, aqueles reportados pelas agências policiais. É de amplo saber no meio acadêmico que as estatísticas oficiais apresentam limites de confiabili-dade e de validade, pois estão principalmente baseadas na forma como estas ocorrências são notificadas e registradas. No entanto, mesmo com possíveis problemas de subnotificação, os dados disponíveis permitem analisar a situação da letalidade policial, oferecendo elementos sufi-cientes para verificar se há, ou não, uma atuação policial à margem da legalidade e da legitimidade.

Para a cidade de Nova Iorque, são analisados os dados compi-lados no “Uniform Crime Reports”, que é um relatório nacional de estatísticas criminais, enviadas pelas mais distintas agências de polícia americanas, e aqueles disponíveis no NY Law Enforce-ment Agency, para os dados de tiroteios entre policiais e civis. No caso de São Paulo, serão analisadas as estatísticas publicadas pela Secretaria de Segurança Pública, que agrupa os casos de mortes pro-vocadas pela polícia nas chamadas “resistência seguida de morte”9.

9 Resistência seguida de morte se refere a mortes cometidas por policiais em confrontos, em que supostos suspeitos de crimes resistem à prisão. A categoria não encontra previsão legal, apesar de sua utilização sistemática nos inquéritos policiais. Desta forma, na categoria resistência seguida de morte é existe uma “autorização” implícita do uso da força letal pela polícia.

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A LETALIDADE DA AÇÃO POLICIAL: PARÂMETROS PARA ANÁLISE

estes dados são dispostos como ocorrências envolvendo policiais (civis e militares), em serviço e fora de serviço. Mesmo que estes números não englobem todas as mortes provocadas pela polícia10, eles nos oferecem condições para analisarmos o uso da força letal pela polícia de São Paulo.

indicadores da letalidade policial

os três indicadores que serão analisados a seguir não podem ser tomados isoladamente, mas devem ser compreendidos em seu conjunto. No entanto, para uma melhor compreensão do problema da letalidade policial, os dados referentes a cada um dos indicadores serão apresen-tados separadamente.

1) Civis mortos e feridos na ação policial

A primeira consideração a ser feita é em relação ao número de civis mortos e feridos em cada ação policial. Conforme observou o pesqui-sador Paul Chevigny, especialista em estudos sobre as polícias das Américas, incluindo a polícia de São Paulo, o mais confiável indicador para definir o abuso do uso da força letal não é a morte provocada, mas o número de tiroteios envolvendo a polícia, pois cada tiroteio, em si, pode provocar uma morte em potencial11. em situações de confronto, o que se espera é que o número de feridos seja sempre superior ao número de mortos. Se a polícia mata mais do que fere, isto nos suge-re que a polícia atira deliberadamente, sem levar em consideração a necessidade da ação.

10 Serão aqui analisados apenas os casos registrados como resistência seguida de morte. Outros casos em que posteriormente se comprovou o envolvimento de policiais - como chacinas e outros homicídios - não serão aqui analisados por falta de informações específicas sobre eles, estes casos estão incluídos na categoria “homicídio doloso”.

11 Chevigny, Paul, “Police Deadly Force as Social Control: Jamaica, Brazil and Argentina”, Série Dossiê NEV, n.2, 1991, p.:10. Núcleo de Estudos da Violência, USP, São Paulo.

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tabela 1: Mortes provocadas pela polícia da cidade de Nova York1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 Total

civis mortos 23 30 26 30 20 19 11 14 11 12 196

civis feridos 54 61 55 44 39 43 31 21 17 25 390

proporção* 0,4 0,5 0,4 0,7 0,5 0,4 0,3 0,7 0,6 0,5 0,5Fonte: NY Law enforcement Agency e Uniform Crime Report, Federal Bureau of In-vestigation.

(*) Refere-se ao número de civis mortos para cada civil ferido.

Ao observar a ação da polícia de Nova Iorque (tabela 1), uma das cidades mais populosas e violentas dos estados Unidos, é possível observar que o número de civis mortos pela polícia, nas ações po-liciais, durante um período de 10 anos, não foi superior ao número de civis feridos pela polícia. Isto pode significar que existe uma orientação para se evitar a morte nas ações policiais que culmina-ram em tiroteio.

tabela 2: Mortes provocadas pelas polícias do estado de São Paulo2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Total

civis mortos 595 459 610 915 663 329 576 438 431 549 5565

civis feridos 386 439 420 705 525 450 420 417 368 393 4523

proporção* 1,54 1,05 1,45 1,30 1,26 0,73 1,36 1,05 1,17 1,39 1,24Fonte: Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo

(*) Refere-se ao número de civis mortos para cada civil ferido.

No estado de São Paulo, à exceção do ano de 2005, pode-se perce-ber que número de civis mortos, no período de 10 anos, foi sempre superior ao número de civis feridos (tabela 2). o maior número de civis mortos em relação ao número de civis feridos é um fato preo-cupante. os dados sugerem que há um incentivo – ou uma permis-são - de uma postura mais agressiva da polícia no patrulhamento ostensivo, o que inevitavelmente aumenta o risco de abusos por parte dos policiais contra os cidadãos. Além disso, a permanência desses indicadores revela que não há a adoção do controle da vio-lência policial, nem mesmo para compensar o aumento do risco de abusos por parte dos policiais decorrente da postura mais agressiva da polícia no controle da criminalidade.

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A LETALIDADE DA AÇÃO POLICIAL: PARÂMETROS PARA ANÁLISE

2) Civis e policiais mortos12 na ação policial

Se a polícia está constantemente em ações que colocam a vida dos policiais em risco, a proporção entre civis e policiais mortos em uma ação é um dado muito importante. Muito embora haja uma dificuldade normativa em estabelecer o grau aceitável do uso da força letal pela po-lícia, há uma tentativa de estabelecer uma ratio, que varia muito. o FBI utiliza uma média de 12 não-policiais mortos para cada policial morto, enquanto outros estudos trabalham com uma média de 04 não-policiais mortos para cada policial (Cano, 1997; oliveira, 2008). Muitos estudos desenvolvidos nos estados Unidos13 apontam que quando a proporção de civis mortos em relação a policiais mortos é maior do que 10, a po-lícia usa a força letal de maneira desproporcional à ameaça, servindo a “propósitos outros do que a proteção da vida em emergências”.14

tabela 3: Mortes de civis e policiais na cidade de Nova Iorque1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 Total

civis mortos 23 30 26 30 20 19 11 14 11 12 196

policiais mortos 3 3 2 6 3 3 0 0 0 2 22

proporção* 7,7 10 13 5 6,6 6,3 11 14 11 6 8,9Fonte: NY Law enforcement Agency e Uniform Crime Report, Federal Bureau of Inves-tigation.

(*) Refere-se ao número de civis mortos para cada policial morto.

Ao se observar as mortes de civis e policiais em tiroteios na cidade

de Nova Iorque (tabela 3), é possível aferir que esta proporção foi su-perior a 10 civis mortos por policiais mortos em quatro anos, e que a média do período analisado foi de 8,9 civis mortos para cada policial. estes dados sugerem uma preocupação em agir segundo a ameaça re-presentada, tentando ao máximo a preservação de vidas.

12 Cabe ressaltar que, no Brasil, agentes policiais morrem muito mais fora de serviço – no chamado bico – do que em ações em serviço, ao passo que matam mais em serviço do que fora. No entanto, como o bico é ilegal, essas mortes não são tratadas isoladamente. Apesar de sua importância, esse tema não será desenvolvido aqui, pois representa, ele mesmo, outro fenômeno.

13 Blumberg, M. 1994. “Police use of deadly force: exploring some key issues”. In: Thomas Barker & David Carter. eds. Police Deviance. Cincinnati, Anderson Publishing Co.

14 Chevigny, Paul, “Police Deadly Force as Social Control: Jamaica, Brazil and Argentina”, Série Dossiê NEV, n.2, 1991, p: 10. Núcleo de Estudos da Violência, USP, São Paulo.

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tabela 4: Mortes de civis e policiais no estado de São Paulo2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Total

civis mortos 595 459 610 915 663 329 576 438 431 549 5565policiais mortos

49 49 59 33 27 28 38 36 22 22 363

proporção* 12,1 9,4 10,3 27,7 24,6 11,7 15,2 12,2 19,6 24,9 16,3Fonte: Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo

(*) Refere-se ao número de civis mortos para cada policial morto.

Quando se analisa o que ocorreu nos últimos dez anos no estado de São Paulo (tabela 4), verifica-se uma situação bastante distinta daquela que pode ser observada em relação à polícia de Nova Iorque. No estado de São Paulo, em apenas um ano, em uma década, esta proporção foi inferior a 10 civis mortos para cada policial morto. observe-se que a média na década foi de 16,3 civis mortos para cada policial morto, mais de 63% superior ao que se considera internacionalmente “justificável”.

Como bem ressaltou Tereza Caldeira (2000, p:160), “as mortes de civis em confronto dificilmente podem ser consideradas acidentais ou como um resultado do uso da violência pelos criminosos. Se fosse o caso, o número de policiais mortos também deveria aumentar, o que não é o caso. Em São Paulo, a razão entre mortes de civis e policiais é desproporcionalmente alta”15. Como declarou o ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, Cel. José Vicente da Silva Filho: “quando passa da taxa de dez civis mortos e, principalmente acima de 20 para um, não há dúvidas de que há excesso de força e execuções”16. este dado em si revela que há uma violência desproporcional à ameaça apresentada e que o uso da força letal é uma prática deliberada e reflete uma política de controle da criminalidade pela violência, que coloca não apenas a vida de civis em risco, mas também a vida dos próprios agentes policiais.

3) Mortes provocadas pela ação policial e os homicídios dolosos

e, por fim, o terceiro indicador refere-se à relação entre as mortes pro-vocadas pela polícia e o número de homicídios dolosos registrados em

15 Caldeira, T. 2000. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34/Edusp.

16 Jornal Folha de S. Paulo, 16 de julho de 2007.

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determinada sociedade. este indicador vem sendo amplamente utilizado para medir o uso da força letal pelas polícias e, inclusive, para definir se estas ações se tratam de ações justificadas ou de execuções extra-judiciais17. Apesar de ser um importante indicador, ele não pode ser, assim como os demais, tomado isoladamente, posto que não há uma definição do que seria ou não aceitável como um número mínimo de homicídios em determinada sociedade. estudos feitos nos estados Unidos observaram que as mortes provocadas por policiais representaram 3,6% do total dos homicídios dolosos registrados no país, durante um período de 5 anos18. Isso não significa que este número seja utilizado como um parâmetro internacional, mas apenas que quando as mortes provocadas pela polícia representam um elevado percentual em relação à taxa de homicídios, os números podem sugerir que as polícias não estão agindo aos incidentes mais violentos, mas sim utilizando a força de maneira desproporcional à ameaça representada.

Quando se analisa os dados para a cidade de Nova Iorque (tabela 5), com cerca de 20 milhões de habitantes, percebe-se que o percentual de mortes provocadas pela polícia ao longo de uma década não superou a 3% do total de homicídios registrados naquela cidade. ou seja, ela foi inferior à média nacional definida por estudiosos do tema.

tabela 5: homicídios dolosos e mortes por policiais na cidade de nova iorque

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 Total

civis mortos 23 30 26 30 20 19 11 14 11 12 196homicídio doloso 2420 2016 1510 1353 1093 924 903 952 960 909 13040

proporção* 0,9% 1,5% 1,7% 2,2% 1,8% 2,0% 1,2% 1,5% 1,1% 1,3% 1,5%Fonte: nY law enforcement agency e uniform crime report, Federal bureau of in-vestigation.

(*) Refere-se ao percetual de civis mortos em relação aos homicídios em geral.

Ao analisar os mesmos indicadores para o estado de São Paulo (tabela

6), é possível observar que este percentual é bastante superior àquele

17 Sobre esse tema, ver relatório de Philip Alston, Relator Especial da ONU para Execuções Sumárias, quando da sua visita ao Brasil em 2007 (Relatório ONU - A/HRC/8/3/Add.4, 14/05/2008).

18 Sherman, L.W. & Langworthy, R.H. 1979. “Measuring homicide by police officers”. The Journal of Criminal Law and Criminology, 70, p:546-60.

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verificado na cidade de Nova Iorque, considerada uma cidade de altas taxas de violência. É interessante notar, ainda, que apesar dos homicí-dios dolosos terem reduzido em cerca de 60% entre os anos de 2000 e 2009, as mortes provocadas pela polícia não apresentaram uma queda na mesma proporção. enquanto os homicídios dolosos apresentam uma escala descendente, as mortes pela polícia oscilam entre a queda e o aumento, apontando para um aumento.

tabela 6: homicídios dolosos e mortes por policiais no estado de são Paulo2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Total

civis mortos 595 459 610 915 663 329 576 438 431 549 5565

homicídio doloso

12638 12475 11847 10954 8753 7592 6559 5153 4690 4799 85460

proporção* 4,71 3,68 5,15 8,35 7,57 4,33 8,78 8,50 9,19 11,43 6,5%

Fonte: Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo

(*) Refere-se ao percetual de civis mortos em relação aos homicídios em geral.

Se a violência letal da polícia está correlacionada com crimes vio-

lentos, especificamente, com as taxas de homicídios dolosos, era de se esperar que, com a queda destes últimos, diminuíssem consideravel-mente os primeiros. Mas não é o que está ocorrendo em São Paulo. em sua visita recente ao Brasil, o relator da oNU para execuções sumárias, Philip Alston constatou que as polícias de São Paulo utilizam a força letal e não a inteligência para controlar o crime. Mais do que isso, esta força letal é utilizada para a proteção do patrimônio e não da vida19.

Não se está sugerindo que este percentual deveria ser o mesmo que aquele verificado para a cidade de Nova Iorque ou mesmo para os estados Unidos, mas apenas que o número de mortes provocadas pelas polícias de São Paulo podem revelar as características de uma política de segurança pública que se baseia na repressão arbitrária, e cuja eficácia se mede pelo número de “suspeitos” mortos nos alu-didos confrontos.

19 Em nota explicativa, sobre a queda das taxas de crimes violentos no segundo semestre de 2009, a Secretaria de Segurança Pública afirma: “Desde março a polícia tem focado suas ações em todo o Estado no combate aos crimes contra o patrimônio. A polícia está na rua para impedir o roubo, furto e latrocínio. Os resultados já começam a aparecer.”

http://www.ssp.sp.gov.br/estatisticas/downloads/nota_explicativa_2_tri_2009.pdf)

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A LETALIDADE DA AÇÃO POLICIAL: PARÂMETROS PARA ANÁLISE

conclusões

Quando se analisa o conjunto de indicadores relativos ao uso des-proporcional da força letal pela polícia – a proporção entre civis mortos e civis feridos; a proporção entre civis mortos e policiais mortos; e a proporção das mortes provocadas em ações policiais em relação ao total de homicídios dolosos –, chega-se à conclusão de que, em São Paulo, a violência letal é utilizada como forma de controle social coercitivo, direcionado, na maioria dos casos, contra pessoas não identificadas, rotuladas como “suspeitas” ou por apresentarem uma “atitude suspeita”. Pelos dados analisados pode-se afirmar que, no estado de São Paulo, as polícias, em sua ação rotineira e em nome do estrito cumprimento do dever, mais do que impedir a ocorrência do crime, executam sumaria-mente pessoas, ignorando o direito ao devido processo legal.

Com a escusa de combater o crime, as polícias matam um elevado número de civis em situações pouco elucidativas e em nome do “estrito cumprimento do dever legal”. As autoridades tendem a definir tais ações como necessárias e decorrentes do trabalho policial. As repostas violentas por parte da polícia são, não raras vezes, caracterizadas como “justificáveis respostas” ao crime violento. Quando a violência nas ações policiais, como no caso dos homicídios decorrentes da chamada “resistência seguida de morte”, é considerada normal ou aceitável, perde-se o controle da legalida-de da ação policial. desta forma, transmite-se uma mensagem equivocada sobre a verdadeira função da polícia e cria-se um espaço para que muitos de seus membros passem a agir à margem da lei, sem qualquer controle, no qual qualquer cidadão pode ser vítima desta ação.

estas ações, que envolvem policiais em situação de confronto com civis, recebem a denominação de “resistências seguidas de morte”20, no caso de São Paulo, e raras as vezes chegam a ser investigadas – para

20 No estado do Rio de Janeiro, estes confrontos são conhecidos como “autos de resistência”. A origem da ferramenta jurídica “auto de resistência” está na Ordem de Serviço “N”, nº 803, de 2/10/1969, da Superintendência da Polícia Judiciária, do antigo estado da Guanabara. O dispositivo afirma que “em caso de resistência, [os policiais] poderão usar dos meios necessários para defender-se e/ou vencê-la” e dispensa a lavratura do auto de prisão em flagrante ou a instauração de inquérito policial nesses casos. É importante ressaltar que, naquele momento, o Brasil era uma ditadura militar.

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aferir se a morte resultante era mesmo necessária para defender a vida das pessoas – e seus autores responsabilizados. Isto porque o registro das ocorrências é realizado pelos próprios policiais, que figuram como vítima no boletim. A vítima da morte, em geral, figura como indiciado. A ação policial quase nunca é submetida a investigação e os policiais envolvidos retornam às suas atividades rotineiras, sem qualquer tipo de responsabilização por seus atos21.

No estado de São Paulo, pelos dados apresentandos, pode-se concluir que as polícias têm agido com alto grau de letalidade em suas ações, utilizando a força e a violência de forma desproporcional à ameaça representada e sem respeito aos direitos das pessoas e aos procedi-mentos legais. Boa parte da tarefa de aplicação da lei está concentrada nas mãos das instituições policiais que ignoram o direito ao devido processo legal quando, para além de deter o indivíduo que comete o crime, “condenam, sentenciam e aplicam a pena”. Casos envolvendo policiais nas resistências seguidas de morte raras as vezes são investi-gados e chegam à justiça. Na sua maioria são arquivados e os policiais continuam a agir, sem qualquer responsabilização.

A polícia está autorizada a usar a força e é treinada para usá-la, mas quando o nível de força excede aquele considerado justificável, as ati-vidades da polícia deveriam estar sob escrutínio público, não importa se ela faz parte do comportamento individual de determinado agente policial ou de uma prática institucional.

A violência policial é um problema que afeta a qualidade de vida dos cidadãos, pois gera desconfiança nas agências responsáveis pela aplicação da lei, conduzindo, dessa forma, a respostas cada vez mais privadas – e violentas – de resolução de conflitos. As instituições poli-ciais sabem que quando a força utilizada pelos seus agentes é superior àquela considerada necessária para conter a desordem ou o crime a autoridade policial tende a ser enfraquecida. o uso desnecessário da força pode até ser percebido como um símbolo de poder, mas pode ser igualmente interpretado como um sintoma da ausência de autoridade.

21 Do mesmo modo que é importante esclarecer que os números apresentados de mortes devem ser atribuídos em sua quase totalidade às polícias militares, é fundamental esclarecer que as polícias civis, ao permitirem o registro da ocorrência como resistência seguida de morte (ou seus equivalentes), são, no mínimo, coniventes com este tipo de ação.

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A LETALIDADE DA AÇÃO POLICIAL: PARÂMETROS PARA ANÁLISE

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TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010

resumo

A partir do debate da questão do uso da ayahuasca para fins religiosos, este artigo apresenta e discute os diferentes padrões de normatização ado-tados nos últimos 20 anos no Brasil, com destaque para o debate em torno da criminalização. A sociedade pós-industrial e a condição pós-moderna aparecem como pano de fundo frente aos dilemas que a questão suscita.

Palavras-chave: Ayahuasca; criminalização; descriminalização; pós-modernidade

reGulations on the use oF PsYchoactiVe substances For reliGious PurPoses: the case oF aYahuasca

abstract

Taking into account the religious use of ayahuasca in Brazil, this article describes and discusses the pros and cons of the criminalization process. The post-industrial society, as well as the postmodern condi-tion, provides the cultural background to the debate.

Keywords: Ayahuasca; criminalization; decriminalization; post--modernity

REGUlAMENtAÇÃO DE USO DE SUBStâNCIA

pSICOAtIVA pARA USO RElIGIOSO: O CASO DA

AYAHUASCA

Andréa depieri de Albuquerque Reginato*

* Professora do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, doutoranda no programa de sociologia dessa mesma universidade e doutoranda em criminologia pela Universidade de Ottawa.

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o debate contemporâneo sobre o uso de drogas está indissociavel-mente marcado pela prévia definição acerca de quais substâncias po-demos e quais não podemos (ou não devemos) usar de forma alguma. As drogas, assim como as armas, podem ser consideradas como objetos sócio-técnicos que permanecem integralmente indeterminados até que sejam reportados aos agenciamentos que os constituem enquanto tais (deleuze; Guattari, apud Vargas, 2008). Nessa perspectiva, drogas não são apenas as substâncias que produzem algum tipo de alteração psíquica ou corporal, e cujo uso é objeto de controle ou de repressão por parte do estado, mas também as substâncias que chamamos de me-dicamentos e até mesmo de alimento, como o açúcar1 e o café (Vargas, 2008:41). diferentes processos de controle e normatização, a exemplo dos processos de criminalização, regulamentação ou desjudiciariza-ção, definem o ‘status’ das substâncias e, conseqüentemente, dos seus usuários. Vargas (2008, 54) chama a atenção para o fato de que, há um século atrás, praticamente nenhuma droga era objeto de controle, muito menos de criminalização. É o saber médico-farmacológico que, ao se expandir, vai categorizar as drogas, definindo quais substâncias serão consideradas medicamento, e, portanto, um bem e quais outras, a partir de sua proibição, serão demonizadas, consideradas um mal. de uma forma geral, à exceção do álcool e do tabaco, drogas ilícitas são aquelas rotuladas como psicoativas. Assim, da apropriação do código lícito/ilícito depende o debate acerca das drogas.

o “problema das drogas”, tal como aparece na agenda política contemporânea, refere-se a um conjunto específico de sustâncias proibidas. em todo o mundo, diferentes legislações estabelecem semelhantes proibições, resultado de acordos cooperativos de repres-são, a exemplo das Convenções Internacionais ( Single Convention on Narcotic Drugs, 1961; the Convention on Psychotropic Substances, 1971; and the United Nations Convention against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances,1988). As convenções internacionais têm por objetivos principais: limitar a posse, o uso, a distribuição, o comércio, as exportações e importações, a manufatura e a produção de drogas exclusivamente para uso médico e científico;

1 Vide Sugar Blues, livro de Willian Dufty de1975.

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REGULAMENTAÇÃO DE USO DE SUBSTÂNCIA PSICOATIVA PARA USO RELIGIOSO: O CASO DA AYAHUASCA

deter e desencorajar o tráfico de substâncias ilícitas através da coo-peração internacional.

Para controlar e monitorar a implementação das convenções inter-nacionais, a fim de que sejam alcançados os objetivos acima descritos foi criado, no âmbito das Nações Unidas, o Internacional Narcotics Control Board- INCB2. É o INBC que estabelece quais as drogas que se-rão alvo do controle repressivo internacional e que estimula a adoção, pelos países, de uma política proibicionista marcada pela crimina-lização. A “yellow list”3 apresenta o rol das substâncias proibidas e sua especificação química. É a partir dessa lista - e de outras, que a reproduzem localmente - que se define quais substâncias deverão ser consideradas ilícitas4. A inclusão de uma substância psicoativa na lista, uma vez justificada tecnicamente, tende a ser naturalizada, o que legitimará sua perseguição e controle no âmbito criminal. Nesse contexto, o “problema” das drogas passa a ser visto como uma questão de segurança pública. Fala-se em “war on drugs5.

Contudo, essa não é uma questão simples. Gilberto Gil, ministro da cultura do Brasil de 2003 a 2008 e seu sucessor Juca Ferreira, ministro da cultura de 2008-2010, chamam a atenção para o fato de que as convenções internacionais sobre drogas desconsideram algumas especificidades culturais das nações latino-americanas, especialmente quando não reconhecem as tradições culturais das populações indígenas e afro-descendentes, sobretudo os usos ritu-alísticos e culturais de algumas substâncias psicoativas, a exemplo da ayahuasca e da folha de coca (Gil; Ferreira, 2008, p: 9-11). Indo mais além, reconhecem que o consumo de “drogas” desde sempre esteve relacionado à atividade humana “(...) ligando-se a fenômenos religiosos, movimentos de construção (ou reconstrução) de identidades

2 http://www.incb.org/3 “Lista Amarela” é o “apelido” do documento onde estão listadas as substâncias proibidas.

Conferir em http://www.incb.org/incb/yellow_list.html4 Vale observar que usualmente os tipos penais que proíbem o tráfico, uso, posse, manufatura,

transporte, etc.. de substância entorpecente constituem-se como “norma penal em branco”. Significa dizer que nesse caso a norma jurídica penal só adquire seu sentido completo diante de um outro conjunto normativo que estabeleça quais são as substâncias consideradas “entorpecentes” .

5 “Guerra contra as drogas”.

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de minorias sociais, étnicas, geracionais, de gênero, ou ainda a produ-ções estéticas.” (Gil;Ferreira, 2008. p:11).

o presente trabalho pretende examinar o controverso debate acerca da possibilidade de utilização de substância psicoativa em rituais religiosos. Para ilustrar o debate, escolhi o caso da ayahuasca. A ayuahuasca é uma bebida ancestral, que apresenta propriedades psicoativas e é utilizada como sacramento por vários grupos religiosos brasileiros. os debates acer-ca do uso da ayahuasca (ou da sua criminalização) no Brasil têm mais de 25 anos e intensificaram-se novamente em 2010, a partir da publicação, em janeiro, da legislação que permite e regula o consumo da ayahuasca em rituais religiosos e da trágica morte de Glauco Vilas Boas, um famoso cartunista brasileiro, que era, ao mesmo tempo, líder religioso da Igreja do Santo daime (Labate, 2010). em março desse ano, Glauco e seu filho foram assassinados por um jovem de classe média, membro da sua própria igreja, durante um surto psicótico. este último fato deu fôlego a uma nova onda de ataques com o intuito de proibir, por completo, o uso da ayahuasca. A radicalização de posições acerca do assunto, em um acalorado debate público, através da mídia e também da internet, permite-nos observar com clareza os diferentes pontos de vista e nos conduz a uma reflexão que situa-se muito além da questão local, sobretudo porque evidencia a condição estratégica das normas jurídicas penais.

Minha exposição será conduzida da seguinte maneira: (i) inicialmen-te apresentarei a ayahuasca e um breve relato histórico do surgimento e expansão dos cultos religiosos ayahuasqueiros no Brasil, apenas para situar o leitor; (ii) discutirei, a partir de diferentes momentos da legislação brasileira, as estratégias de controle/normatização; (iii) confrontarei os dife-rentes argumentos da controvérsia, surgidos a partir do debate público; (iv) procurarei analisar a situação-problema em face da condição pós-moderna, entendida aqui como posição filosófica, como forma de evidenciar a enor-me complexidade que acompanha o processo de criminalização.

a aYahuasca como sacramento reliGioso

Ayahuasca, que significa “vinho dos espíritos” ou “vinho das almas”, é o nome dado a uma bebida preparada a partir de um cipó,

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banesteriopsis caapi, conhecido como jagume ou mariri e de folhas de psicotrya viridis, conhecida como chacruna ou rainha. No sagrado casamento das duas plantas, o jagume, que é um cipó, é combinado com a chacruna, a folha, no preparo de um chá sagrado. Ambas as espécies são nativas da floresta tropical amazônica. No Brasil, a ayahuasca (que é o termo escolhido para ser utilizado nesse trabalho) é também conhecida como daime, santo daime, caapi, hoasca ou vegetal. Reconhecem-se ainda os nomes yagé, natema, natem, pindé, dápa, mihi, vinho da alma, professor dos professores, pequena morte, todos eles referentes à ayahuasca. Yagé é o nome mais conhecido em inglês, tendo sido popularizado pelos escritores da geração beat, William S. Burroughs e Allen Ginsberg, na conhecida obra Cartas do Yage (The Yage Letters).

A ayahuasca sempre esteve na floresta. No passado, constituía-se como fundamento das mais diversas culturas tribais da floresta tropical amazônica, no Peru, Brasil, equador, Bolívia e Venezuela. Historicamen-te, a ayahuasca foi condenada pelas autoridades coloniais e religiosas como sendo um “feito do diabo” e, desde então, seu uso tem sido constantemente desencorajado, especialmente em face de seus efeitos alucinógenos6 (dobkin de Rios, 2008, p:140). Contudo, a infusão ainda hoje é largamente utilizada por curandeiros em toda a região (dobkin de Rios, 2008; Shanon, 2003).

No Brasil, mais especificamente ao longo do século XX, diferentes grupos religiosos, sincréticos, combinaram a tradição indígena da ayahuasca com elementos religiosos diversos, advindos do cristianismo,

6 A ayahuasca provoca vômitos e diarréias para a maioria dos que bebem o chá. “Mesmo quando utilizado como parte de uma atividade de cura ou espiritual provoca uma série de efeitos sobre o organismo humano. As alterações de consciência duram menos de seis horas. Começam de 30 a 40 minutos após a ingestão da infusão e atingem o pico depois de duas horas. Após seis horas, os efeitos praticamente desaparecem. A bebida provoca um estímulo cardiovascular, com aumento moderado na freqiência cardíaca e pressão arterial diastólica. Os efeitos psicoativos da ayahuasca, descritos nos últimos 50 anos, incluem a estimulação visual ou auditiva, confusão entre diferentes planos sensoriais – sinestesia “e introspecção psicológica, o que pode incluir grande exaltação, medo, iluminação, ou depressão. Conhecida também como “la purga” (o expurgo) em espanhol, a bebida é vista frequentemente como apta a oferecer limpeza física ou espiritual” (Dobkin de Rios, 2008, p:1). Nota: Assim como nessa citação, todas as traduções dos originais em inglês ou francês foram feitas pela autora.

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do espiritismo kardecista e das religiões afro-brasileiras. dentre esses grupos destacam-se a Igreja do Santo daime7, a Barquinha8 e a União do Vegetal - UdV9 (Shanon, 2003).

A Igreja do Santo daime é a mais antiga. Começa com a cristianização da ayahuasca, que será incorporada como sacramento na ritualística dessa nova religião. o Santo daime é uma religião essencialmente cristã, mas é ao mesmo tempo profundamente ecumênica e sincrética. Raimundo Irineu Serra (1892-1971), conhecido como Mestre Irineu, fundou a religião do Santo daime após uma visão de Nossa Senhora, em uma das primeiras vezes que tomou a ayahuasca. A partir da década de 30 começou a receber seu hinário (conjunto de hinos usados nas cerimônias) reforçando os ensinamentos cristãos, como amor, caridade e fraternidade humana. Mestre Irineu passou a chamar a ayahuasca de daime, numa referência aos pedidos que deveriam ser feitos: - dai--me amor, dai-me luz (Santo daime Home Page, 2010). Mestre Irineu era um “majestoso homem de sete pés de altura10” que aprendeu com os indígenas da floresta os poderes da bebida conhecida como ayahuasca. Foi ele quem adaptou essa tecnologia ancestral do sagrado ao cristia-nismo (Larsen, 1999, p:xii).

em 1945, daniel Pereira de Matos, amigo de Mestre Irineu, fun-da a Capelinha, depois Capelinha de São Francisco e, finalmente, a Barquinha, no estado do Acre, em Rio Branco. em 1961, José Gabriel da Costa, em Porto Velho, no estado de Rondônia, funda no dia 22 de julho a UdV - União do Vegetal. Atualmente, a UdV possui filiais nos estados Unidos e na espanha.

Sebastião Mota de Melo (1920-1970) foi discípulo de Mestre Irineu e já havia sido iniciado no espiritismo kardecista, trazendo outros elementos para a crença do daime. Foi o Padrinho Sebastião, como era chamado, que em 1974, registrou a Igreja do Santo daime (Centro eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra - CeLFLURIS). em 1982, acompanhado por mais de 300 pessoas, fundou o assentamento que hoje é conhecido como Vila do Céu do Mapiá, no estado do Amazonas.

7 http://www.santodaime.org/institucional/index.htm8 http://www.abarquinha.org.br/sys/index.php?option=content&task=view&id=3&Itemid=39 http://www.udv.org.br/10 Cada pé corresponde a 30,48 cm.

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Larsen (1999:xi) descreve o Céu do Mapiá como uma “utopia da vida real na floresta” (a real-life utopia in the jungle). A comunidade do Céu do Mapiá usa os recursos da floresta de forma sustentável e incorpora hoje à religião uma pauta de desenvolvimento ambiental para preservação da floresta11. A igreja do Santo daime também está presente fora do país.

A partir do início dos anos 80 o daime vai, aos poucos, transcenden-do o espaço da região amazônica e instalando-se também nas grandes cidades brasileiras. As primeiras igrejas daimistas fora da região ama-zônica foram o Céu do Mar, no Rio de Janeiro; o Céu da Montanha, em Mauá, e o Céu do Planalto, em Brasília. A primeira igreja daimista de São Paulo foi fundada no ano de 1988 (Labate, 2010). Nesse período, a religião do Santo daime se tornou bastante conhecida e popular, es-pecialmente pela adesão de artistas e intelectuais. É exatamente nesse período, com a expansão e popularização da igreja do Santo daime, que o estado Brasileiro começa a se preocupar e a se posicionar quanto à regulação do uso da ayahuasca.

histÓrico do controle da aYahuasca

em 1985 a banesteriopsis caapi, uma das espécies vegetais que compõe a ayahuasca, foi incluída na listagem brasileira de substâncias entorpecentes proibidas (Resolução 02/85 dIMed) por conter alcalóides proibidos, como a dMT (N-dimethyltryptamine), que é uma das substâncias constantes da Tabela I da Convenção de substâncias psicotrópicas de 1971. Aqui é im-portante esclarecer que a inclusão de uma substância na listagem daquelas consideradas entorpecentes proibidos, muito embora ato administrativo do poder executivo, corresponde à criminalização da substância, vez que, a partir daí, todas as condutas genericamente já tipificadas, a exemplo do uso e do tráfico de substância entorpecente, passam a ser também consideradas crime em relação à nova substância incluída na lista.

Após essa decisão, que teve como efeito prático a criminalização da ayahuasca, o Conselho Federal de entorpecentes, através da Resolução

11 Com esse objetivo foi criado o Instituto de desenvolvimento ambiental Raimundo Irineu Serra. Conferir em http://www.idacefluris.org.br/index.php.

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Andréa Depieri de Albuquerque Reginato

04/85 de 30 de julho de 1985, instituiu um primeiro grupo de trabalho com o objetivo de pesquisar a bebida e sua utilização em rituais religiosos.

em 4 de fevereiro de 1986, o mesmo Conselho Federal de entorpecentes, através da Resolução 06/86, decidiu retirar provisoriamente a baneste-riopsis caapi da lista de substâncias entorpecentes, mantendo o grupo de trabalho antes instituído para finalizar os estudos e elaborar um relatório. em 1987 o relatório final deste grupo de trabalho concluiu que as espécies vegetais usadas na elaboração da bebida conhecida como ayahuasca - o Banisteriopsis Caapi, vulgarmente chamado de cipó jagube ou mariri e a Psychotria Viridis, conhecida como folha, rainha ou chacrona - deveriam permanecer excluídas da listagem de substâncias entorpecentes.

em 1992, em um novo reexame, em reunião ordinária, por mais uma vez, o Conselho Federal de entorpecentes reconheceu o uso legítimo da ayahuasca (Ata da 5a Reunião ordinária).

em dezembro de 2002, o Conselho Nacional Antidrogas – CoNAd, órgão que substituiu o Conselho Federal de entorpecentes, através da Resolução 26 de 31 de dezembro de 2002, decidiu pela criação de um novo e ampliado grupo de trabalho, com o objetivo de estabelecer nor-mas de controle social concernentes ao uso da ayahuasca.

em 17 de agosto de 2004 a Câmara de Assessoramento Técnico e Ciêntífico sobre o uso da Ayahuasca apresentou parecer favorável à liberdade de uso da ayahuasca para fins religosos, consideran-do: (i) os posicionamentos anteriores do CoFeN; (ii) o parecer do International Narcotics Control Board –INCB12 ; (iii) a autonomia individual e os princípios da bioética; (iv) os efeitos terapêuticos

12 “É nosso entendimento ser a ayahuasca o nome comum para uma preparação líquida (decocção) para uso oral feita a partir de plantas indígenas da bacia amazônica da América do Sul, essencialmente extrato da casca de diferentes espécies de uma trepadeira da selva (Banisteriopsis sp) e de uma planta rica em triptamina (Psychotria viridis). Segundo a literatura científica, a ayahuasca geralmente contém uma série de alcalóides psicoativos, incluindo o DMT, que é uma substância incluída na Lista I da Convenção de 1971 sobre Substâncias Psicotrópicas. Nenhuma planta (matéria natural) contendo DMT é actualmente controlado pela Convenção de 1971 sobre Substâncias Psicotrópicas.Consequentemente, as preparações feitas com essas plantas, incluindo a ayahuasca ,não estão sob controle internacional “. Carta de Herbert Schaepe, Secretário do INCB para R. Lousberg, inspetor para cuidados da saúde do Ministério da Saúde Pública da Holanda em 17 de janeiro de 2001. In www.bialabate.net/texts.

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REGULAMENTAÇÃO DE USO DE SUBSTÂNCIA PSICOATIVA PARA USO RELIGIOSO: O CASO DA AYAHUASCA

do uso da ayahuasca e a necessidade de se avançar nas pesquisas sobre esses usos.

em 04 de novembro de 2004, através da Resolução 05/04, o CoNAd confirma o parecer da Câmara de Assessoramento Técnico e Cien-tífico sobre o uso da ayahuasca e reconhece a legitimidade jurídica de seu uso para fins religiosos, inclusive por mulheres grávidas e crianças, segundo a convicção religiosa de seus pais. essa resolução criou também um novo grupo multidisciplinar de trabalho para ela-borar um documento que estabeleça uma deontologia da ayahuasca, estabelecendo os direitos e obrigações morais concernentes ao uso religioso da ayahuasca. em novembro de 2006 este grupo produziu seu relatório final, que foi aprovado em todos os seus termos pela Resolução 01/10, de 25 de janeiro de 2010.

em 15 de abril de 2010, o deputado Paes de Lira apresentou projeto (PdC 2491/10) para criação de nova legislação, visando a suspensão da Resolução 01/10 do CoNAd e, novamente, a criminalização da ayahuasca. Mas já em maio, conforme noticiado13,admitiu em audiência pública realizada pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime organizado, diante do debate altamente qualificado, a possibili-dade de retirar seu projeto de tramitação. em 1º de dezembro de 2010 a Federação Goiana de Ayahuasca apresentou proposição sugerindo a realização de audiência pública para discutir o tema “Uso religioso da ayahuasca: soluções responsáveis para uma legislação federal”, tendo a mesma recebido parecer favorável da relatoria.

Como visto, em 1985, a ayahuasca foi criminalizada no Brasil. Nos anos seguintes, diferentes formas de controle foram adotadas em substituição ao controle penal, em um movimento de despenalização. Contudo, a possibilidade de criminalização nunca deixou de ser levada em conta por alguns setores mais conservadores, que croni-camente questionam a adoção de formas de regulação não punitivas. A tabela a seguir, elaborada a partir das categorias de Michel van de Kerchove (1987, p:295-351), permite perceber a diferença entre os conjuntos normativos.

13 http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/DIREITOS-HUMANOS/148370-DEPUTADO-ADMITE-ARQUIVAR-PROJETO-QUE-SUSTA-REGULAMENTACAO-DO-AYAHUASCA.html

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NORMA CRITERIO CARACTERÍSTICAS

Resolução 02/85- DIMED14 CriminalizaçãoO uso da ayahuasca é considerado crime, sujeitando o usuário às penas previstas na Lei de entorpecentes

Resolução 06/86 –COFENLegalização simples Essa legislação determina que as substâncias

utilizadas na preparação da ayahuasca não devem constar da listagem brasileira de substâncias consideradas como entorpecentes. Nessa "hipótese (...) há uma mera neutralidade ou indiferença jurídica em relação ao comportamento descriminalizado (permissão em um sentido “fraco” do termo, melhor dizendo uma abstenção de interdição, não acompanhada de um interesse juridicamente protegido). Nós a classficamos como – legalização simples" ou ‘dejudiciarização–“. (Van der Kerchove1987, p:314).

Ata da 5a Reunião Ordinária do COFEN de 1992

Legalização simples

Resolução 05/04 – CONADLegalização restritiva

O uso da ayahuasca é permitido para uso religioso.Em hipoteses desse tipo há “o reconhecimento do direito de realizar um comportamento, mas o exercício desse direito vem acompanhado de condições mais ou menos restritivas. Nós as chamamos de ‘legalização restritiva’ ou ‘regulamentação’ (regulação)” . (Van der Kerchove 1987, p::314)

Resolução 01/10 – CONADLegalização restritiva

Projeto nº 2491/2010 CriminalizaçãoO uso da ayahuasca para quaisquer fins, inclusive os religiosos, passa a ser considerado crime.

Como se pode observar nos casos em que ocorre a legalização restritiva, muito embora a ação não seja considerada criminosa, ela é regulada pelas agências estatais, o que permite o enfrentamento direto das mais diferentes situações-problema relacionadas à questão que se quer regular. Por isso mesmo a legalização restritiva é uma interessante estratégia de controle. As resoluções brasileiras que disciplinam o uso da ayahuasca para fins re-ligiosos são exemplos de conjuntos normativos que implicam uma técnica jurídica de intervenção estatal alternativa aos processos de criminalização.

14 Divisão Médica. Atualmente quem cumpre esse papel é a ANVISA.

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a controVÉrsia em torno da ‘leGaliZaÇÃo’ da aYahuasca Para Fins reliGiosos

14

embora o uso da ayahuasca tenha sido permitido no Brasil desde 1986, a última Resolução, regulando seu uso religioso, gerou uma enorme polêmica, com a retomada de vários argumentos favoráveis à criminalização. As revistas Veja e Isto é, que podem ser consideradas, em função do número de exemplares distribuídos semanalmente, as mais importantes do Brasil, publicaram recentemente, em suas versões impressa e eletrônica15, vários artigos defendendo a proibição do uso da ayahuasca. o assunto também esteve presente em outros meios de comunicação de massa.

Com uma enorme carga de dramatização na observação, as falas a favor do controle penal da ayahuasca, presentes na revista Veja (‘Li-berado’, edição 2150:3/2/2010 e “Alucinação Assassina” edição 2157: 24/03/2010), na Revista Isto é (‘As encruzilhadas do daime’, edição 2100: 5/2/2010) e em diversos artigos do jornalista Reinaldo Azevedo (2010), demonizam a ayahuasca e podem ser assim resumidas:

•aposiçãodogovernobrasileiroéirresponsável,eaResolução01/10 é o resultado de repetidos equívocos;

•aayahuascaéumabebidaperigosa,compropriedadespsicoa-tivas e que causa vômito, diarréia e alucinações;

•aancestralidadedaayahuascanãomudasuacomposiçãoquímica;•aayahuascapossuiDMT,substânciaproibidapeloInternational

Narcotics Control Board –INCB;•aliberdadedecultoreligiosoéuma“desculpa”paraocultaro

uso de drogas ilícitas;•determinadasramificaçõesusamtambémmaconha(chamada

de erva de Santa Maria) nos cultos;•apermissãoconcedidapelogovernoabreumprecedenteperigoso;•nãoháestudoscientíficossuficientessobreaayahuasca;não

se sabe se há interações medicamentosas, nem quais os efeitos do chá em pessoas com problemas psíquicos;

15 Conferir em URL: http://veja.abril.com.br/busca/resultado.shtml?qu=daime e http://www.istoe.com.br/busca.htm?searchParameter=daime

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•pessoasqueprecisamdeajudamédicapodemserenganadas;•intelectuaiseartistasmitificamaayahuascaporqueacrença

veio de gente simples da floresta. É uma moda “new age”. •permitirquecriançasemulheresgrávidasconsumamaayahuas-

ca é inaceitável;•nãoháprovasdosefeitosterapêuticosdaayahuasca;•gruposqueusamaayahuascasãoinconsistentes,mesclando

elementos de várias outras religiões e até da psicanálise. São seitas e não grupos religosos;

•aspráticasreligiosasdevemdependerdeféenãodequímica;•ousodaayahuascatrazriscos,éumaquestãopública,desaúde

e segurança públicas;•oconsumodaayahuascaestáassociadoaduasmortesrecentes;•hátraficodeayahuascanopaísignoradopelogovernobrasileiro;•aayahuascaéutilizadapara ‘ficarviajandão’(sic)etemsido

vendida livremente pela internet.

de outro lado, argumentos que não consideram o uso da ayahuasca um mal podem ser representados pela nota de repúdio dos pesquisado-res do Núcleo de estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – NeIP às notícias veiculadas pelas revistas Veja e Isto é16:

•“Odireitoàliberdadereligiosaeaopluralismoreligiosoestãoprevistos na Constituição Federal do Brasil”;

•oSantoDaime,aBarquinhaeaUniãodoVegetalconstituem-secomo expressão legítima da cultura e religiosidade brasileiras;

•osgruposayahuasqueirostêmsidosistematicamentepersegui-dos e é preciso combater a estigmatização de minorias religiosas;

•oprocessoderegulamentaçãodousodaayahuascanoBrasiléproduto de um extenso diálogo, envolvendo governo, religiosos e estudiosos;

•aestratégianormativautilizadapeloBrasilpararegularaques-tão é pioneira, influenciando outras legislações;

16 http://www.neip.info/index.php/content/view/1381.html É importante destacar que esses argumentos não tiveram a mesma divulgação e alcance que o primeiro conjunto de argumentos, principalmente junto às mídias de massa.

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•nãoháevidênciascientíficasnemempíricasdequeousodeayahuasca por gestantes e crianças seja perigoso;

•nãoháevidênciascientíficasnemempíricasdequeaayahuascacause dependência ou morte;

•“oconsumodesubstânciaspsicoativasfazpartedahistóriahu-mana”. deve-se abandonar o modelo de debate público pautado unicamente na sua demonização;

outras questões ainda podem ser levantadas com relação ao uso da ayahuasca. Mais recentemente, como um prenúncio do futuro, a ayahuasca chegou à europa e à América do Norte. embora seu uso legítimo como um sacramento esteja regulado (neste momento) no Brasil, seu consumo nos estados Unidos, na europa e no Canadá é visto com alguma preocupação (dobkin de Rios e Rumrrill, 2008), ao tempo em que se consolida uma jurisprudência que reconhece e garante o uso religioso.

A União do Vegetal - UdV do Novo México, nos estados Unidos, obteve uma decisão favorável da Suprema Corte permitindo o uso da ayahuasca para fins religiosos (Gonzales v. o Centro espírita Beneficente União do Vegetal, 546 eUA 418, 436 [2006]17). Ainda nos estados Unidos, a Igreja do Santo daime, no oregon, também garantiu o uso sacramental do chá do daime (Church of the Holy Light of Queen v. Mukasey18). Na Holanda, o Tribunal distrital de Amsterdã deliberou da mesma forma, admitindo o uso ritualístico da ayahuasca19.

No Canadá, um curandeiro indígena do equador, Juan Uyankar, da nação Shuar, cumpriu pena de um ano por liderar uma cerimônia na qual uma mulher mais velha morreu. Apesar da decisão condenatória, essa mesma sentença declarou a ayahuasca como um remédio tradicio-nal sagrado. Na sua decisão, o juiz Gerald Michel reconheceu que “o objetivo da cerimônia é a cura’’ e que o ritual é “praticado com sucesso desde tempos imemoriais’’(Logan, 2003).

17 Conferir em :http://www.oyez.org/cases/2000-2009/2005/2005_04_108418 Todas as peças processuais podem ser consultadas em http://www.bialabate.net/texts/

oregon-daime-case-documents19 http://libertedusantodaime.free.fr/nouvelleshollande/nouvelles_hollande.php

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Se por um lado, aos poucos, vai se consolidando a percepção da ayahuasca como sacramento religioso, por outro sabe-se que o consumo do chá também acontece sem nenhuma estrutura religiosa. Na Holanda, por exemplo, há relatos de que guias ad hoc ajudam os amigos ao longo de uma noite de consumo de drogas, em sessões no estilo dos anos 60. A prática conhecida como “do it yourself20 – dIY – é generalizada. o consumo da ayahuasca aparece relacionado também, e cada vez mais, a um contexto mais lúdico em todos os lugares. o dIY, o aumento dos xamãs brancos, os falsos xamãs, o turismo relacionado à ayahuasca; a investigação acerca de suas propriedades terapêuticas e sua incorpo-ração a um modelo médico, além do seu uso para fins religiosos, são temas recorrentes quando se discute a ayahuasca (dobkin de Rios e Rumrrill, 2008: p: 136-146) e em torno dos quais parece haver ainda pouco consenso.

de qualquer forma, é interessante acompanhar a difusão de uma tradição oriunda da gente simples da floresta. É curioso pensar nos homens e mulheres das cidades, em São Paulo, Amsterdam ou Montreal, encontrando-se com os antigos rituais da Amazô-nia. Normalmente, busca-se a redução da depressão, a superação de um trauma, o entendimento acerca da própria identidade ou algum outro alívio psicológico.

aYahuasca e a condiÇÃo PÓs-moderna

A controvérsia sobre a legalização da ayahuasca no tocante ao seu uso religioso pode ser observada à luz do que se convencionou chamar pós-modernismo. No pós-modernismo há uma inversão daqueles valores considerados positivos à razão, ao individualismo abstrato, à nação, à cultura comum, passando-se a valorizar, inver-samente, as noções de identidade, de cultura específica, o plura-lismo, a diversidade, a multiplicidade de vozes, o reconhecimento das particularidades e a promoção de atores antes marginalizados (Bonny, 2004, p:68).

20 Faça você mesmo.

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Kumar (1997) procura identificar o contexto histórico em que se instala o pós-modernismo. Para tanto, resgata elementos presentes em outras teorias que acabaram incorporados à teoria pós-moderna, a exemplo da teoria da sociedade pós-industrial de daniel Bell e do pós-fordismo. A sociedade pós-industrial é a sociedade da informa-ção. o avanço da cibernética e das telecomunicações, e em especial sua convergência, acaba por transformar as operações da sociedade industrial tradicional. A sociedade da informação opera em um contexto global e a revolução tecnológica comprime espaço e tempo, com o fim das distâncias e o encurtamento do tempo. o mundo está interligado em tempo real21 (Bell, Williams, Meyrowitz, Lash e Urry apud Kumar, 1997, p:23).

o pós-fordismo destaca em sua análise as novas relações de produção, pautadas em processos de descentralização produtiva e integração social, a exemplo das cooperativas e das pequenas em-presas que lançam no mercado produtos diferenciados, sinalizando para processos de especialização flexível. Se o fordismo, estudado por Gramsci, podia ser identificado com linha de montagem, lei seca e puritanismo, entendidos como formas de controle da vida privada do trabalhador, o pós-fordismo descreve profundas mudanças nas relações de produção das sociedades contemporâneas com o sur-gimento do mercado global, o enfraquecimento do estado-nação, a especialização flexível, a descentralização da produção, o aumento dos processos de terceirização e a contratação de trabalhadores temporários ou autônomos que trabalham a partir de suas casas. Consequentemente aponta para um enfraquecimento dos sindicatos e da luta por pautas de “classe”; as negociações salariais passam a ser localizadas e os benefícios sociais se precarizam. em contrapar-tida, estabelecem-se novas redes sociais temáticas (fundadas em questões como religião, raça, gênero, sexualidade, meio-ambiente, imigração...) e há a promoção de comportamentos individualistas e da cultura da livre iniciativa. Aumentam a fragmentação e o pluralismo

21 O texto de Kumar, de 1997, fala em “tempo quase real”, mas hoje, em 2010, podemos considerar que o mundo está, de fato, conectado em tempo real através da telefonia celular, da internet e de programas como MSN, Skype e mais recentemente o Twitter, dentre outras tecnologias.

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relativo aos estilos de vida, que são muitos e diferentes (Kumar, 2007, p:64). A cultura assume um papel preponderante na vida social, política e econômica. As questões são globais e, ao mesmo tempo, em todos os lugares, grupos identitários são reforçados. A sociedade contemporânea não encontra mais sua legitimidade na idéia de soberania popular, efi-ciência econômica ou nas conquistas militares, mas sim nos deuses, mitos e tradições comunitárias (Touraine, 1999, 12).

o processo político acima descrito em linhas gerais é identificado como característico de uma sociedade pós-industrial ou pós-fordista e constitui-se no pano de fundo para a percepção e o debate acerca da condição pós-moderna.

o pós-modernismo pode ser considerado como um movimento cri-tico a partir de três pontos de vista: filosófico e cultural; epistemológico e teórico; social e político (Bonny, 2008, p:71). embora seja possível operar uma diferenciação, marcadamente com relação às suas origens, os termos pós-modernismo e pós-estruturalismo são utilizados como sinônimos por vários autores (Peters, 2000). Aqui, embora se reconheça o termo pós-modernismo como mais abrangente, opta-se por tratar o termo como sinônimo do pós-estruturalismo, marcado pelas lições da lingüística estrutural de Sassure e Jakobson, pela herança do estru-turalismo daí advindo (Barthes, Althusser, Lacan, Piaget, Foucault) e especialmente por releituras de Nietzsche e Heidegger.

o pós-modernismo, em seu sentido filosófico, possui, segundo er-marth (apud Peters, 2000, p: 16) dois pressupostos centrais:

Primeiramente o pressuposto de que não existe qualquer denomina-

dor comum – a ‘natureza’ ou a ‘verdade’ ou ‘deus’ ou o ‘futuro’ – que

garanta que o mundo seja Uno ou a possibilidade de um pensamento

natural ou objetivo. em segundo lugar, o pressuposto de que todos

os sistemas humanos funcionam da mesma forma que a linguagem,

que são sistemas auto-reflexivos e não sistemas referenciais – siste-

mas diferenciais, que são potentes, mas finitos, sistemas dos quais

dependem a construção e a manutenção do significado e do valor.

em linhas gerais, o debate pós-moderno critica a filosofia humanista do esclarecimento, a começar por sua crença em um sujeito racional,

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autoconsciente, capaz de conhecer a si mesmo e ao mundo através da razão – Sapere aude!22. o sujeito pós-moderno é compreendido como um sujeito genérico, discursivamente constituído (dependente do sistema linguístico), submetido a estratégias de normalização e indivi-dualização, constrangido por estruturas que acabam por governar-lhe o comportamento. Nessa perspectiva o sujeito perde o papel central que lhe fora conferido pelo iluminismo e passa a ser compreendido como um “sujeito descentrado”. Indo além, o pós- modernismo ataca os valores universais, a forma científica do conhecimento e o estabe-lecimento de oposições binárias (lícito/ilícito, nós/eles, cidadão/não cidadão, homem/mulher...)

o debate contemporâneo sobre multiculturalismo tem como ponto central a desconstrução das oposições binárias e o questio-namento das noções de representação e consenso que decorrem daí. No pós- estruturalismo, especialmente com as chamadas “filosofias da diferença” (derrida, deleuse, Foucault), se processa, de forma direta, a crítica aos valores eurocêntricos considerados universais pelo iluminismo, “questionando-se as justificações fundacionais e filosóficas para o estabelecimento de certos ‘direitos’, os quais vão ser analisados em termos de sua construção genealógica e discursi-va, destacando-se, nessas análises, as transições do ‘direito divino’ para o ‘direito natural’ e do ‘direito natural’ para o ‘direito humano’’’ (Peters, 2002, p:42).

essas desconstruções são interessantes porque vão permitir pen-sar, por exemplo, como as democracias liberais modernas constroem sua identidade e, a partir daí, seu padrão normativo. em que medida a criminalização, justificada como defesa de direitos universais não oculta um processo de exclusão social justificado por uma série de oposições binárias que não são percebidas como socialmente

22 Expressão latina utilizada por Kant no célebre ensaio O que é esclarecimento? (Was ist Aufklärung?), 1783, que significa “ouse saber”. Nesse texto, Immanuel Kant defende a idéia de que só depende do próprio homem libertar-se da menoridade (entendida como submissão do pensamento de um homem ou de um

povo a um poder tutelar alheio) à qual está submetido, bastando-lhe ter coragem,

ousadia, para fazer uso do seu próprio entendimento URL: ateus.net/ebooks/acervo/o_

que_e_esclarecimento.pdf

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construídas? Pensemos na questão da ayahuasca. de um lado os que defendem a criminalização consideram-na um “mal em si” e a proibição é vista como uma questão de ordem pública, de segurança pública, por isso as estratégias de controle devem recrudescer. de outro lado, a defesa da legalização do uso da ayahuasca se sustenta no reconhecimento de direitos individuais, como o direito de liber-dade religiosa ou o direito à intimidade e à privacidade (argumentos que aparecem na defesa da possibilidade da utilização da ayahuasca para fins recreativos).

Quando se considera a ayahuasca uma droga ilegal ela se transforma em um mal em si mesmo. A proibição e a consequente perseguição aparecem como expedientes corretos. os usuários são “naturalmente” tidos como criminosos, assim os “cidadãos de bem”, os não criminosos, são instados a lutar na defesa de princípios morais contra o mal. Fica claro então que o sentido de cada um dos conceitos implicados (droga/sacramento, crime/direito, criminoso/cidadão, bem/mal) depende do seu oposto no processo de significação.

conclusÃo

A difusão do uso da ayahuasca em todo o mundo, e por que não dizer, a sua globalização, deve nos conduzir a diferentes caminhos no futuro. As diferentes visões de mundo reivindicam estratégias diversas de controle (às vezes diametralmente opostas) e que se afirmam através de padrões normativos distintos, de outras lógicas jurídicas. A obtenção de um consenso mínimo para fins de normatização é um trabalho árduo, mormente quando se reconhece o enorme grau de fragmentação com relação ao uso da ayahuasca para fins religiosos. A questão do uso da ayahuasca para fins religiosos nos permite observar um grave problema da contemporaneidade: a dificuldade de produzir e legitimar normas jurídicas na sociedade pós-industrial, tomados em conta os típicos dilemas da condição pós-moderna.

É bem verdade que a compreensão da condição pós-moderna não é suficiente, por si só, para evidenciar qual é a melhor estratégia nor-mativa, a mais legítima; para assegurar a coexistência pacífica e os princípios republicanos. Todavia, a crítica pós-moderna nos permite

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observar as diferenças de opinião, de expressão e de projeto político que tomam parte no debate. A partir daí podemos pensar em regula-ções mínimas, de consenso, capazes de incluir e garantir os direitos e interesses da maior parte possível.

A regulação brasileira do uso da ayahuasca para fins religiosos merece destaque não só por sua estratégia político-jurídica (legaliza-ção restritiva), que se contrapõe à hegemônica lógica proibicionista, mas especialmente enquanto processo. de fato, a Resolução 01/10 do CoNAd, atualmente em vigor, é o resultado de um longo processo de construção, negociado exaustivamente por mais de duas décadas, en-volvendo o governo, pesquisadores, estudiosos e religiosos. Sabemos, contudo, de antemão, que o debate deve prosseguir, tensionado de um lado pelos argumentos que sustentam a lógica da proibição e de outro por uma perspectiva ainda mais libertária, que considera legítimo o uso da ayahuasca para fins terapêuticos e recreativos, desvinculando-o do contexto religioso.

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TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010

resumo

o artigo descreve e analisa duas experiências pioneiras de formação policial em Sergipe voltadas ao trato da violência de gênero, dirigidas a policiais das delegacias da Mulher. discutindo os limites dos programas de capacitação a reflexão que o artigo propõe consiste em tomar as prá-ticas policiais no seu cotidiano como elemento balizador da formação policial e estratégia para repensar o atendimento às demandas das mulhe-res em situação de violência e a função social das delegacias da Mulher.

Palavras-chave: formação policial, delegacias da Mulher, violência de gênero.

FORMAÇÃO pOlICIAl E VIOlÊNCIA DE GÊNERO:

RElAtO DE EXpERIÊNCIAS NAS DElEGACIAS DA

MUlHER DE SERGIpE*

Maria Teresa Nobre**

* O artigo é resultado da pesquisa: Formação policial e práticas institucionais das Delegacias da Mulher em Sergipe: entre a capacitação e a educação continuada, desenvolvida com recursos advindos de edital do Ministério da Justiça e da ANPOCS para realização de pesquisas na área de segurança pública e justiça criminal, em 2005. Participou da realização da pesquisa a Profa. Lianna de Melo Torres, do Departamento de Educação da UFS, a quem devemos muitas das reflexões políticas e pedagógicas aqui apresentadas (PEREIRA, TORRES, 2005). Participaram também da equipe as psicólogas: Ana Cristina Costa Araújo, Jacqueline Monte de Hollanda e Michele de Freitas Vasconcelos, às quais registramos nossos agradecimentos.

** Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe. Membro do GEPEC (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Exclusão, Cidadania e Direitos Humanos).

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Police traininG and Gender Violence: rePortinG eXPeriences in Women Police stations in the state oF serGiPe

abstract

The article describes and analyzes two pioneer experiences of police formation in the State of Sergipe directed to the dealing with gender violence, addressed to female police officers from Women Po-lice Stations. discussing the limits of the capacitation programs, the reasoning the article proposes consists in taking daily police practices as a parameter of policial formation and strategy to rethink the meeting of the demands of women in violence situation and the social function of Women Police Stations.

Keywords: police formation, Women Police Stations, gender violence

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FORMAÇÃO POLICIAL E VIOLÊNCIA DE GÊNERO: RELATO DE EXPERIÊNCIAS NAS DELEGACIAS DA MULHER DE SERGIPE*

introduÇÃo

este artigo descreve e analisa duas experiências realizadas em Sergipe, junto a policiais civis (delegadas, agentes de polícia, investi-gadores) e técnicas lotados nas delegacias da Mulher de Sergipe, que eram apenas 2 (duas) à época da pesquisa realizada para o Ministério da Justiça, em 2005: uma em Aracaju, capital sergipana e outra em Ita-baiana, no interior do estado. Tais experiências se constituíram como duas iniciativas pioneiras dirigidas à formação policial específica no trato da violência de gênero no estado: a primeira, desenvolvida pela Comissão de direitos Humanos da Universidade Federal de Sergipe, for-matada como Grupos de Discussão e Reflexão de Práticas Institucionais, realizada entre 2001 e 2002, e a segunda, pelo Ministério da Justiça/ MUSA (Programa de estudos em Gênero e Saúde do ISC–Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, formatada como Capacitação para Policiais que atuam com Mulheres em Situação de Violência realizada em 2002. Ambas tiveram como objetivo contribuir para a formação de policiais, visando a uma melhor qualidade no aten-dimento à população e maior resolutividade do serviço. entretanto, algumas especificidades se verificam nas duas experiências, a partir de uma concepção diferenciada sobre educação, modos de interven-ção institucional e relação polícia-sociedade. A pesquisa identificou essas singularidades e as contribuições/impasses de cada experiência à formação de policiais que lidam com violência de gênero e apontou algumas questões, problematizando os processos de formação policial em geral, e de formação policial como política de enfrentamento à violência contra a mulher, em particular.

Passados mais de 5 (cinco) anos da realização da pesquisa da qual deriva este artigo, muitas mudanças foram efetivadas no cenário das políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero, objeto das delegacias de Atendimento à Mulher (deAMs). Tais mudanças se verificam tanto em âmbito nacional, no tocante a um programa de formação dos quadros policiais encampado pela SeNASP e pelos im-pactos produzidos nos modos de funcionamento institucional destas delegacias decorrentes da Lei 11.340, (Lei Maria da Penha, de agosto de 2006), quanto em âmbito local, pela expansão dos números de deAMs

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no estado de Sergipe, renovação do contingente policial admitido sob concurso público e pela própria conformação de novos serviços de atendimento à mulher em situação de violência, que se apresentam de modo diverso daquele que existia há 5 anos atrás.

deste modo, temos aqui um relato de experiências pioneiras, enfati-zando o contexto sócio-histórico no qual, pela primeira vez em Sergipe, se problematizou e se viabilizou, através de programas de intervenção no campo da formação policial, o atendimento policial das deAMs às mulheres em situação de violência. Assim, num primeiro momento apresentamos uma discussão sobre o cenário do funcionamento das deAMs à época da realização da pesquisa, seus desafios e impasses, de algum modo hoje reconfigurados pela Lei Maria da Penha. Nesse contexto apresentamos uma discussão que problematiza a questão da formação tomada como capacitação ou como educação permanente. A seguir, descrevemos o campo da pesquisa e as estratégicas meto-dológicas adotadas para inserção no campo, levantamento e análise dos dados, para depois descrevermos as experiências realizadas em Sergipe, entre 2001 e 2002, objeto da pesquisa que realizamos para o Ministério da Justiça e a avaliação feita pelos atores institucionais que participaram dos dois projetos. Por fim, tendo em vista as mudanças implantadas pela Lei Maria da Penha no funcionamento das deAMs faremos algumas considerações a respeito desse impacto em Sergipe, naquilo que se relaciona com o produto da pesquisa aqui apresentada.

desafios históricos das delegacias da mulher no brasil: a formação policial em questão

Apesar do avanço que representou a criação das delegacias da Mulher (deAMs) na construção da cidadania das mulheres no Brasil, logo nos primeiros anos após sua implantação, passou-se a questionar a sua eficácia como lócus privilegiado da política de segurança públi-ca no combate à violência de gênero. Inúmeros estudos e pesquisas apontaram exaustivamente a deficiência do atendimento prestado por este órgão e sua baixa resolutividade, que aliadas aos modos de fun-cionamento institucional dos Juizados especiais Criminais, pautados

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em uma cultura jurídica conservadora, configuraram um quadro de profundo descrédito, sobretudo nos casos de violência doméstica. (SA-FFIoTTI, s.d.; SILVA, 2001; deBReT, 2002; CARRARA eT ALLI, 2002; MACHAdo, 2002). Acrescenta-se a isso o sucateamento, abandono e distanciamento da missão para a qual foram criadas a falta de infraes-trutura básica para garantir boas condições de trabalho e atendimento à população, até e principalmente, as práticas institucionais que não guardavam, substancialmente, diferenças em relação a muitas outras delegacias de polícia. As críticas dirigiam-se também à manutenção de preconceitos, a banalização da violência denunciada, ao lado de uma forte burocratização dos procedimentos policiais.

desde a sua criação, constatou-se que a maioria das denúncias registradas nas deAMs remete à violência praticada contra a mulher por pessoas da família, em geral pelo companheiro. Por isso, na gran-de maioria dos casos, a vítima usava a delegacia como uma instância mediadora do conflito privado, na expectativa de que a intervenção da autoridade policial pudesse propiciar uma conciliação com o agres-sor. disso resultava as inúmeras retiradas das queixas prestadas e na frustração profissional das agentes policias, por não levarem a cabo os processos que conduziriam à criminalização e punição do agressor.

Ao analisarmos, à época da pesquisa, perspectivas que orientam experiências de formação policial para as deAMs, identificamos duas concepções norteadoras: uma centrada numa formação de gênero, a qual, por si só, garantiria uma mudança nas práticas institucionais destas delegacias de polícia (SAFFIoTTI, s.d.; AMARAL, 2002), e outra que acena a insuficiência desta perspectiva para uma mudança nos modos de funcionamento destes órgãos, indicando a necessidade de uma análise mais profunda da organização policial e da cultura insti-tucional que embasa as práticas dos agentes policiais que aí trabalham. (NoBRe, ToRReS, FARIAS, 2004; RIFIoTIS, 2004).

A educação tem sido vista não só como um meio de disseminação de conhecimentos formais, mas também como um meio de integração da população à cidadania. Segundo Neves (2002) esta foi uma das preocupações que levou inúmeros reformadores a instituírem a escola pública obrigatória, a partir da segunda metade do século XIX, nos países europeus e nos eUA. No Brasil, diz ele, diante da crescente

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exclusão social, a “dimensão socializadora” da educação sempre foi uma das vertentes mais exploradas por educadores renomados. Nessa esteira, o debate em torno da chamada “educação para a cidadania” tomou fôlego nas últimas décadas como uma das ações mais valorizadas no processo de redemocratização do país, após a ditadura militar. entre estas iniciativas situam-se os Cursos de direitos Humanos para Policiais, os Fóruns Permanentes de debate sobre essas temáticas disseminadas ao longo de todo o País e os Cursos de especialização em Gestão e Segurança Pública, oferecidos por inúmeras universidades brasileiras.

Por outro lado, os programas formais, ligados aos currículos dos cursos de formação policial, estão se desenvolvendo em torno de uma matriz curricular definida pela SeNASP, que se “propõe a ser um refe-rencial nacional para as atividades de formação em Segurança Pública e tem como princípios os direitos humanos e a cidadania, a formação e a capacitação continuada, humana e profissional dos diferentes atores sociais”, buscando, enfim, a construção democrática de saberes e prá-ticas renovados (BRASIL, 2005). Além de terem a função de construir e/ou contribuir com uma nova formação policial, essas várias ações educativas na área da segurança pública fornecem elementos para entender as corporações policiais, os códigos, crenças e valores dessa cultura institucional, e as formas como estes são incorporados/repro-duzidos pelos seus quadros, nas relações com segmentos da sociedade, em particular com os grupos vulneráveis e em situação de conflito.

entretanto, tanto em relação às experiências ligadas à educação for-mal quanto às demais que se encontram desvinculadas dos currículos acadêmicos da corporação policial e se caracterizam como intervenções que buscam a constituição de um novo modo de operar das organiza-ções públicas, cabe indagar, como sugere Neves (2002: 147): É possível educar alguém para ser cidadão? São a cidadania e os direitos humanos conteúdos “formais” que possam ser aprendidos como outras disciplinas em cursos de formação ou treinamentos? Pode-se dar consciência a alguém? A indagação do autor sugere a necessidade de superar a noção de educação como transmissão de conhecimentos e informações, e de acrescer a ela a concepção de educação como “exercício sistemático de reflexão de crenças e valores” (MeNdoNÇA FILHo, 2000: 41) que orientam práticas sociais.

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Adotando as premissas dessa construção teórico-política entende-mos que a mudança das práticas policiais, almejadas pela sociedade e por parte dos membros dessas corporações, tem sido efetivada no Brasil à medida que se estabelece lentamente um controle das ações policiais pela comunidade às quais elas se dirigem, e não apenas pela aquisição de conhecimentos teóricos e técnicos ministrados em cursos voltados à formação policial. Neste sentido, canais de debate e discussão entre a polícia e a sociedade civil organizada começam a se abrir, o que têm permitido identificar parceiros e estabelecer alianças que possam contribuir para a implantação de novas políticas de segurança pública.

Considerando que a discussão teórica e a instrumentalização técnica são insuficientes para consolidar um processo de formação continuada, faz-se necessário inserir nesses processos a reflexão crítica sobre as práti-cas cotidianas. Assim, a formação dos agentes policiais que trabalham nas deAMs deveria investir não só em programas de formação continuada, mas também na melhoria das condições de trabalho, na problematização das relações de poder, não apenas dentro da própria organização policial, mas também no trato com a população. desta forma, um processo de formação policial que se proponha a pensar com seriedade na melhoria dos serviços prestados pelas deAMs passa por questionar o estado nas estratégias de controle e desvalorização dos policiais. Considerando a atividade dos agentes policiais que trabalham nas deAMs como uma atividade complexa e multifacetada, questionamos: até que ponto cursos de aperfeiçoamento, treinamentos, capacitações e outros que tenham o objetivo de informar ou socializar modelos ou experiências exitosas, são suficientes como propostas eficazes de formação? Qual o espaço capaz de garantir a reflexão das práticas policiais institucionalizadas? Parece-nos que a resposta deve ser construída colocando em análise experiências que estão se realizando. É essa a proposta deste artigo.

o campo da pesquisa e as estratégias metodológicas adotadas

Vinculada à Secretaria de Segurança Pública do estado de Sergipe, a deAM de Aracaju criada em de outubro de 1986, funcionou, até 2004, como uma delegacia autônoma em relação às demais delegacias do

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município. Porém, em meados do segundo semestre de 2004, passou a integrar um Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis (CAGV), composto por três delegacias especializadas, que têm como público: a) mulheres vítimas de violência doméstica e de violência sexual atendidas pela Delegacia Especial de Atendimento à Mulher; b) menores de 18 anos, vítimas de violência, atendidos, privativamente, pela Delegacia Especial de Atendimento à Criança e ao Adolescente; c) idosos, homos-sexuais e profissionais do sexo, portadores de necessidades especiais e qualquer pessoa vítima de discriminações em razão de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional, atendidos pela Delegacia de Atendi-mento a Grupos Vulneráveis (SeRGIPe, s.d.).

o novo complexo policial inclui um Núcleo de Mediação de Confli-tos, visando a um melhor atendimento das delegacias. de acordo com Marques e Teles (2004), a mediação pretende transcender o modelo punitivo para um modelo de justiça penal diferenciado, pautado no restabelecimento do diálogo, na negociação de interesses e na mediação de contendas, buscando a construção de relações solidárias entre as partes. Para que o instrumento da mediação seja eficaz, “é necessário qualificar os serviços prestados à população, ampliando os serviços de atendimento, tornando-os satisfatórios e hábeis na capacidade de resolver tais questões” (MARQUeS, TeLeS 2004: 50).

essas mudanças de ordem organizacional e funcional verificadas na deAM exigiram de nós um novo modo de inserção no campo da pesquisa e acercamento do nosso objeto de estudo. deste modo, conhe-cer como tem sido pensada a formação dos quadros policiais lotados no CAGV, em Aracaju, e em especial na deAM, foi um objetivo que se agregou ao nosso Projeto de Pesquisa inicial, anteriormente assim definidos: a) Conhecer as propostas das duas agências formadoras res-ponsáveis pelas experiências, enfocando os princípios, fundamentos, pressupostos e objetivos que as embasaram; b) Mapear os conteúdos programáticos, metodologia utilizada, recursos pedagógicos emprega-dos e temas emergentes nos encontros com os/as alunos/as policiais; c) Levantar dificuldades, limites, impasses e avanços na execução dos projetos; d) Investigar o impacto que as duas experiências tiveram sobre a formação policial em termos de mudança das práticas institucionais das deAMs e; e) Conhecer a avaliação que as duas agências formado-

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ras, a corporação policial e representantes de movimentos de mulheres fazem das experiências.

À época da realização da pesquisa a maioria dos profissionais lota-dos nas deAMs de Sergipe havia concluído o ensino médio e muitos tinham nível superior, entre os quais se destacavam cursos de direito e Serviço Social. o contingente era, como ainda hoje, formado predo-minantemente por mulheres, havendo também a presença de policiais do sexo masculino, sobretudo no trabalho externo e no setor de investi-gação. As delegadas e agentes policiais são concursados, embora ainda existissem naquele período, profissionais contratados, transferidos e/ou cedidos de outros órgãos.

os policiais que participaram da pesquisa seguiram a mesma trajetó-ria de formação profissional dos demais policiais civis: quando do seu ingresso na organização policial, se submeteram a um treinamento dado pela ACAdePoL (Academia de Polícia Civil), que contemplou, entre outros conteúdos, matérias de direito Constitucional, Criminal e Penal, incluindo disciplinas obrigatórias sobre direitos Humanos, Relações Humanas e Balística. Quando do ingresso da maioria deles não havia programa de formação voltado às especificidades da função, sendo a atividade profissional aprendida por estratégias rotineiras junto aos/às policiais mais antigos/as e experientes. Com a criação do CAGV a oferta de outros cursos tornou-se mais freqüente e outras temáticas passaram a fazer parte do processo: legislação específica de proteção à mulher, legislação de proteção a grupos vulneráveis, atendimento ao público, disciplinas com conteúdos da área de sociologia, psicolo-gia, ética, informática e português. Na opinião dos agentes policiais a mudança possibilitou não só a ampliação e melhoria do atendimento à população e maior eficácia na resolução dos casos atendidos, mas também melhoria no processo de formação. Apesar da freqüência aos cursos/capacitações/treinamentos ser compulsória, os agentes policiais alegavam interesse profissional/pessoal como motivação à participação dos mesmos.

os requisitos básicos necessários para o desempenho das funções policiais na deAMs, na opinião dos agentes eram: “conhecimento da legislação”, “capacidade de entender a vítima”, “relacionar-se bem com o público” e “ser solidário”. esta maneira de conceber o processo

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de formação centrado em habilidades e atitudes pessoais revela uma concepção que não valoriza suficientemente a perspectiva reflexiva que deveria fundamentar o exercício da função policial.

Ressaltamos que proceder a uma discussão e avaliação de experiên-cias das quais participamos como atores exigiu uma constante análise da nossa implicação com o campo e objeto da nossa investigação. esse dado remete a uma questão central nas ciências sociais: a complexidade da relação sujeito-objeto, frente à possibilidade concreta de tratarmos de uma realidade da qual nós próprios somos agentes. Considerar-se parte integrante da pesquisa, tornar-se um observador capaz de observar-se a si próprio, saber impregnar-se do objeto, para depois fazer o movi-mento inverso de distanciamento (LAPLANTINe, 1995), na busca de categorias analíticas próprias do discurso científico/acadêmico e não mais do discurso “nativo” ou militante, foi uma tarefa que requereu de nós disciplina, rigor e sensibilidade. Submetendo-nos a uma análise coletiva das implicações, porém, essa aproximação-distanciamento tornou-se possível.

A pesquisa foi qualitativa, em função da própria natureza do ob-jeto que nos propusemos investigar, constituído por um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis mensuráveis e atravessado por aspectos bastante complexos e multifacetados. As metodologias qualitativas procuram introduzir um rigor, que não o da precisão numérica, aos fenômenos que não são passíveis de serem estu-dados quantitativamente (MARTINS, BICUdo 1994) e que necessitam ser considerados sob a perspectiva de uma abordagem mais abrangente e multidimensional. Assim, optamos por utilizar um conjunto de ins-trumentos que privilegiam a própria voz dos atores sociais, para a partir delas efetuar a análise dos dados, sem a pretensão de generalização dos resultados. Para tanto, realizamos entrevistas com participantes das experiências, totalizando 18 sujeitos: 3 (três) delegadas, sendo 2 (duas) participantes da Capacitação promovida pelo MUSA e 1 (uma) delegada que participou das 2 experiências; 8 (oito) das 12 (doze) participantes dos Grupos de discussão formados pela CdH/UFS e que também parti-ciparam da Capacitação oferecida pelo MUSA/UFBA; 5 (cinco) membros das agências formadoras, sendo 3 (três) da CdH e 2 (duas) do MUSA

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e 1 (uma) representante do movimento de mulheres que participou da Capacitação e que, à época da pesquisa também ocupava o cargo de Presidente do Conselho Municipal dos direitos da Mulher.

em relação à experiência do MUSA/UFBA, que teve a participação de todos/as os/as policiais das deAMs do estado de Sergipe, encontra-mos maior dificuldade, pois muitos policiais da deAM de Itabaiana sofreram rotatividade com as mudanças de delegadas naquela unidade policial, ocorridas nos 3 (três) anos posteriores à Capacitação. em fun-ção desse quadro, optamos por aplicar um questionário a todos/as os/as funcionários/as das deAMs de Sergipe que se dispuseram a colaborar com a atividade, independentemente de terem ou não participado das experiências. Foram aplicados 49 questionários com questões abertas, aos/às agentes policiais lotados nas deAMs de Aracaju e Itabaiana, dos quais 18 foram devolvidos devidamente preenchidos.

Ao lado dessas fontes, consultamos outros registros sobre as expe-riências de formação policial nas deAMs de Sergipe, realizadas pela CdH/UFS e pelo MUSA/UFBA, de modo a permitir um entrecruzamento dos dados e possíveis significações diferenciadas dos mesmos fatos: relatórios da CdH/UFS sobre a experiência dos Grupos de discussão, memórias das reuniões feitas com as agentes policiais na deAM de Aracaju, material didático utilizado na Capacitação do MUSA, diários de campo disponibilizados pelos membros da CdH, que contém registros sobre as 2 (duas) experiências.

Todas as entrevistas foram transcritas através das quais se identificou temas emergentes, escolhidos como unidades de registro (BARdIN, 1970). o mesmo mapeamento foi adotado em relação aos questionários e aos dados obtidos através das fontes documentais. A seguir foram classificados em categorias, estabelecidas segundo alguns princípios, tais como a exaustividade e exclusividade entre elas (GoMeS, 1994). Ao mesmo tempo, atentamos para a necessidade de considerar esses elementos em conjunto, na sua totalidade e em inter-relação. essa categorização permitiu uma maior visibilidade entre os dados, reve-lando em que aspectos as informações, opiniões e imagens aproximam--se, distanciam-se ou contrapõem-se. Identificar os pólos de tensão, oposição e semelhança entre os sujeitos, tanto num plano horizontal (policiais, professores, representantes de movimentos sociais), quanto

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verticalmente (nos atravessamentos entre essas categorias) revelou não só os consensos, mas as contradições que permeiam as relações, idéias, imagens e percepções entre esses segmentos.

Foram definidas as seguintes categorias de análise, com base na Aná-lise Temática realizada, que tiveram como eixo articulador a formação profissional dos policiais que trabalham com mulheres em situação de violência: a) Inserção no campo e estratégias de articulação e implan-tação das experiências; b) Pressupostos teóricos e metodológicos que embasam as experiências; c) Formatação das ações: público atingido, carga horária, conteúdos programáticos, recursos metodológicos e temáticas emergentes; d) Impactos das experiências sobre as práticas institucionais; e) Avaliação da experiência: pela corporação policial, pelas agências formadoras, por representantes de movimentos sociais.

o procedimento de análise das entrevistas englobou sínteses dos relatos acerca dos temas, destacando-se as semelhanças e as diferenças entre os vários discursos. As sínteses, que em alguns momentos apare-cem como “falas reconstruídas” (ZANNeLI, 1994), foram intercaladas com depoimentos, na tentativa de preservar o sentido atribuído aos temas abordados. Suas versões, independentemente da veracidade ou não das informações que fornecem, não são tomadas como o olhar de um indivíduo sobre uma experiência vivenciada, mas como significa-dos produzidos e marcados pelo coletivo: crenças, valores, atitudes e projetos que norteiam as práticas sociais dos grupos sociais que pro-tagonizaram as duas experiências num determinado contexto social e momento histórico.

discutindo as experiências de formação policial em sergipe: a construção dos projetos e os pressupostos políticos e teórico-metodológicos das intervenções

1. A experiência da CdH/UFS: Grupos de discussão e Reflexão de Práticas Institucionais

entre 1999 e 2002, a Comissão de direitos Humanos da Universida-de Federal de Sergipe realizou um trabalho de extensão universitária, caracterizado como pesquisa-intervenção, através do Curso “A Polícia como Protetora dos direitos Humanos”, do qual participaram policiais

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civis e militares. o Curso foi realizado em convênio com a Secretaria de Segurança Pública do estado de Sergipe, a oNG pernambucana GAJoP (Gabinete de Assessoria Jurídica às organizações Populares) e a FAPeSe (Fundação de Apoio à Pesquisa do estado de Sergipe), com financiamento da Fundação FoRd, atingindo cerca de 400 policiais militares e civis, com carga horária de 40 horas cada (CoMISSÃo, 2002).

Após a realização de 17 turmas do curso, a avaliação feita pela CdH/UFS apontou para a conquista de um espaço de problematização da relação polícia e sociedade no âmbito das corporações. embora tenha tido um conteúdo programático formal discutido com os alunos du-rante as aulas, segundo relatório e depoimentos de membros da CdH, o maior impacto do curso foi ter produzido a tematização do exercício da função policial, com ênfase nos problemas estruturais e de funcio-namento interno das organizações policiais.

deste modo, o formato Curso de extensão havia chegado a um impasse: se por um lado permitia o trânsito de informações e conhecimentos sobre a temática “a polícia como protetora dos direitos humanos”, por outro desencadeava a reflexão em torno dos problemas institucionais da própria polícia, o que impunha a necessidade de aprofundamento das questões levantadas, que, com o término do curso não tinham continuidade. Surgiu então a proposta de modificar o formato do projeto anterior e a intervenção passou a ser caracterizada, não mais como Cursos de direitos Humanos para policiais, mas como Grupos de Discussão e Reflexão de Práticas Ins-titucionais. A proposta era que os grupos se reunissem sistematicamente nas duas corporações policiais, durante 6 meses, em reuniões quinzenais, de modo a permitir uma discussão mais sistemática dos problemas insti-tucionais evidenciados na primeira fase da experiência.

Nesta segunda fase foram constituídos 4 (quatro) grupos: 3 (três) grupos na Polícia Militar (Coronéis, oficiais e Patrulhamento Urbano); e 1 (um) grupo na Polícia Civil (delegada e Agentes de Polícia Judiciária da delegacia da Mulher de Aracaju). Na deAM, a expectativa institu-cional, que se constituía como uma encomenda da delegada era que a intervenção ajudasse a “melhorar o atendimento à população”. dessa forma, vislumbrou-se a possibilidade de construção de um espaço de debate sobre as práticas institucionais desenvolvidas na deAM, onde os/as policiais se dispusessem a repensá-las.

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Para que o trabalho na deAM fosse viabilizado foram realizadas 3 (três) reuniões de negociação/construção da proposta, na sede des-sa delegacia, em Aracaju. As reuniões ocorreram durante o horário de trabalho, nos turnos da manhã e tarde, das quais participaram a delegada e todos/todas os/as agentes policiais, técnicas e investigado-res lotados na unidade. Foi discutida a proposta de constituição dos grupos, a encomenda da delegada e as expectativas dos/das policiais frente ao trabalho. A CdH construiu, a partir daí, um primeiro mape-amento da natureza da intervenção, com levantamento das demandas iniciais, ficando a proposta a ser construída com o grupo, à medida que a experiência fosse se desenvolvendo, em termos de temáticas a serem discutidas e dinâmicas das reuniões, que totalizaram 9 (nove), durante 6 (seis) meses, tendo sido adotado o critério de participação não compulsória dos agentes policiais. deste modo, dos 26 (vinte e seis) policiais presentes nas reuniões iniciais, apenas 12 (doze), participa-ram sistematicamente da experiência, além da psicóloga e da delegada Titular. esse projeto de formação teve uma carga horária de 24 horas e como temáticas trabalhadas: A banalização da violência na sociedade brasileira e a violência contra a mulher. o atendimento às mulheres vítimas de violência e a especificidade do trabalho policial na deAM. o lugar da deAM na Polícia Civil. As demandas das mulheres em relação à deAM e a sua função na mediação de conflitos. Condições de trabalho e relações interpessoais na deAM. Relações de gênero na polícia. Formação policial: percursos e dificuldades específicas para ação na deAM. Construção de um projeto de formação policial para a deAM: aspectos político-educacionais e técnicos.

Segundo depoimentos dos membros da CdH, a proposta dos grupos era “nova e ousada”, pois significava que “pessoas estranhas à organi-zação queriam discutir e problematizar, com a polícia, os problemas da própria polícia”. diferentemente da experiência dos Cursos de direi-tos Humanos, oferecidos anteriormente, a experiência dos Grupos de discussão, tanto na Polícia Militar como na deAM, representava uma “construção coletiva”. entretanto, ao mesmo tempo em que os policiais que “queriam uma polícia diferente e cidadã” viam nos Grupos de discussão uma possibilidade de fazer alianças com representantes da sociedade, desencadeavam-se resistências institucionais. Tais resistên-

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cias eram expressas em dificuldades para articular e manter o funcio-namento das reuniões: ausência de participantes, dificuldade de local disponível para os encontros, disponibilidade de horário dos policiais, encontros com duração variável a depender da rotina institucional, etc (CoMISSÃo, 2002). Segundo dizem membros da CdH, “os policiais demandavam aquele tipo de intervenção, mas as condições de suporte institucional eram muito limitadas”. de acordo com depoimento de uma das delegadas da deAM, muitas questões discutidas eram delicadas, “às vezes ficava muito evidente as lacunas e limitações das policiais, tanto pessoais quanto profissionais, para o exercício da função”.

o trabalho junto às polícias, incluindo a experiência na deAM, é definido pela CdH como uma modalidade de pesquisa-intervenção, por meio da qual se buscava conhecer o campo e provocar uma análise coletiva do funcionamento institucional, embasada nos princípios bási-cos da Análise Institucional (LoURAU, 1993), através da participação ativa das policiais nas discussões e temas propostos pelo próprio grupo (CoMISSÃo, 2002). A discussão centrou-se no exercício da função policial e nas práticas institucionais da delegacia da Mulher como órgão da Polícia Civil, inserida numa cultura organizacional, onde se reprodu-zem valores e crenças consolidados, observados, inclusive, em outras delegacias. Foi considerado, entretanto, as especificidades do público atendido e suas demandas singulares: as mulheres e seus agressores.

As diretrizes que nortearam o trabalho centraram-se em dois eixos: a) estimular a construção de uma prática de discussão, através da re-flexão dos modos de funcionamento naturalizados nesse órgão e das práticas policiais, sobretudo com relação às formas de atendimento às mulheres que registram queixas na deAM; b) estabelecer a possibili-dade de um diálogo entre a polícia e a sociedade onde se discuta e se repense o exercício da função policial no atendimento das demandas específicas das mulheres que sofrem violência. A CdH “se propôs como dispositivo de enunciação que objetivava analisar as questões sociais no plano institucional, entendido como plano abstrato das crenças e valores que se materializam nas organizações sociais” (CoMISSÃo, 2002: 4). A discussão acerca dos direitos humanos em geral e dos di-reitos das mulheres em particular, foi centrada no âmbito das ações do estado, isto é, no modo de execução das funções públicas, onde não se

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enfatizava as práticas individuais dos agentes, mas o modo como uma determinada cultura policial era reproduzida e naturalizada no espaço específico da deAM.

Nessa perspectiva a estratégia metodológica deu ênfase à discussão crítica sobre o cotidiano da atividade policial, numa proposta aberta, onde não havia temas definidos a priori, sendo estes sugeridos pelas próprias agentes policiais, a cada encontro, para a reunião seguinte. Nesta proposta o enfoque de gênero estava contemplado, embora con-tido numa perspectiva mais ampla de formação em direitos humanos e cidadania, permitindo uma maior aproximação com a complexidade da segurança pública. Procurava-se, também, valorizar o trabalho das policiais e a função social da deAM como mediadora de conflitos, dentro de uma perspectiva mais democrática de segurança pública, que extrapola a tarefa investigativa e repressora da polícia.

os recursos utilizados (músicas, dramatizações, estudos de caso, relatos de pesquisa, etc), foram mobilizados como recursos auxiliares na condução do trabalho e não como procedimentos técnicos para a obtenção imediata de resultados. Buscava-se quebrar os lugares postos da relação de poder professor x aluno para então problematizar as ques-tões e permitir outras falas diferenciadas (CoMISSÃo, 2002). Além dos recursos técnicos, foi utilizada a observação livre do funcionamento da delegacia com registro etnográfico em diário de campo, cujos dados abasteciam a intervenção, se constituindo como material de discussão das reuniões. As policiais fazem referência a essa postura metodológica, anunciada por Lourau (2003) como “análise em situação”.

2. A experiência do MUSA/UFBA: Capacitação para Policiais que atuam com Mulheres em Situação de Violência

Com o objetivo de conhecer e analisar criticamente as condições de funcionamento das deAMs ao longo de todo o território nacional, o Conselho Nacional dos direitos da Mulher/SedIM, em parceria com o Ministério da Justiça/SeNASP realizou, em 2000, uma ampla pesquisa que atingiu 78% das 370 deAMs então existentes no País. A pesquisa intitulada “Condições de Funcionamento das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres”, investigou, entre outros aspectos, a infraestrutura, condições de trabalho policial e formação do

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contingente lotado nesses órgãos. A pesquisa apontou a precariedade de funcionamento das deAMs, enfatizando a urgência de capacitação específica de seus agentes policiais e técnicas, cuja carência represen-tava o maior entrave ao funcionamento deste órgão em todo o País, que se expressava, sobretudo, na baixa qualidade do atendimento prestado às mulheres vítimas de violência e no atendimento insatisfatório de suas demandas específicas (SILVA, 2001).

decidiu-se, então, pela execução de um programa de formação policial, estruturado como capacitação, que atingisse todas as dele-gacias da mulher ao longo do território nacional. Buscou-se parcerias com oNGs e universidades para pensar a elaboração de um projeto. o treinamento de agentes multiplicadores para execução do curso nos estados e municípios foi realizado pela CePIA, no Rio de Janeiro. de acordo com depoimento de um membro do MUSA, como não houve representantes do estado de Sergipe no treinamento dado pela CePIA, a UFBA, através do MUSA foi convidada para executar o projeto em Sergipe. o programa da Capacitação inseriu-se, portanto, num projeto mais amplo, a partir de uma iniciativa do Ministério da Justiça, em parceria com outras instituições.

A Capacitação foi realizada durante uma semana, com uma carga horária de 4 horas de aula durante 5 dias, totalizando 20 horas e teve a participação compulsória de todos os policiais lotados na delegacia da Mulher do estado, 46 agentes policiais (28 do sexo feminino e 18 do sexo masculino) 2 delegadas e 1 assistente social. Contou também com a participação eventual de 1 policial da divisão de ensino da ACAdePoL; 1 funcionária do IML; 1 assistente social da Casa Abrigo (em implantação); 3 membros da CdH /UFS e de movimentos sociais. Teve como conteúdo programático: Panorama da violência no Brasil, a violência urbana, violência doméstica e de gênero. Saúde e direitos reprodutivos e a interface com a violência. Violência como uma questão de saúde pública. Legislação de proteção à mulher no campo do direito Civil e direito Penal. A Convenção de Belém do Pará. Aspectos jurídi-cos da Lei 9099/95, a criação dos JeCRIMs, a punição aos agressores. Formação de redes de apoio à mulher que sofre violência (aspectos médicos, assistenciais, jurídicos, educacionais,etc). elaboração de propostas e encaminhamentos

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Um mês antes da Capacitação, foi convocada uma reunião com várias entidades que trabalham com gênero em Sergipe, pela Secretaria de estado da Segurança Pública para discutir a sua realização. o programa da Capacitação já estava elaborado para ser aplicado, não sendo possível alteração no seu conteúdo. Propunha-se, entretanto, a participação de professores das universidades locais para ministrar as aulas; quadros da Polícia Civil e representantes dos movimentos de mulheres foram também convidados, para participar de atividades de mesas-redondas e na abertura do evento, ao lado de outras autoridades. de acordo com o MUSA, houve a possibilidade de articular vários parceiros locais para a realização da Capacitação, de modo que as condições institucionais necessárias ao sucesso da experiência foram garantidas, sobretudo em relação à liberação dos/das funcionários/as.

os critérios utilizados pelo MUSA para pensar os projetos de capacita-ção de policiais das deAMs são construídos em torno de uma metodologia específica de gênero, montada em parceria com núcleos de saúde pública de duas universidades brasileiras: a UFRGS (Universidade Federal do Rio do Sul) e a UeRJ (Universidade estadual do Rio de Janeiro), de acordo com depoimento da coordenadora da Capacitação em Sergipe. As idéias norteadoras da intervenção estão ancoradas em dois pressupostos: a) capacitar os agentes públicos no trato da violência contra a mulher, para uma melhor operacionalização das ações das deAMs; b) estimular a criação de uma rede de atendimento integral que se desdobre em ações de outras instituições (serviços assistenciais e jurídicos).

A Capacitação pretendeu identificar os avanços conquistados pelas deAMs e os impasses que impedem um melhor desempenho no aten-dimento às mulheres. o foco da ação estava voltado para a necessidade de intervir sobre as práticas dos policiais a partir do levantamento das dificuldades enunciadas pelos agentes policiais referentes ao trabalho que executam. Identificava-se ainda a necessidade de repensar os preconcei-tos e discriminações dos próprios policiais no atendimento às mulheres.

em relação às estratégias metodológicas a Capacitação privilegiou a transmissão de um conteúdo programático, com enfoque de gênero, abordando as principais temáticas voltadas ao trabalho policial no atendimento às mulheres em situação de violência. o programa repetiu os mesmos conteúdos programáticos em todos os estados brasileiros,

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mas segundo depoimento da coordenadora, quanto maior o envolvi-mento de instrutores e profissionais locais, maior a possibilidade de viabilizar a formação da rede, contemplando outros serviços de aten-dimento à mulher. Nessa perspectiva não só os policiais deveriam ser contemplados na formação, mas membros de outras instituições, como o pessoal das Casas Abrigo e da rede de saúde pública. A experiência do MUSA tem revelado que há ações isoladas ou incipientes de várias instituições no atendimento das mulheres vítimas de violência, que se configuram como uma rede informal. A perspectiva da Capacitação era a de contribuir para a articulação dessas várias entidades de modo que a rede possa ser tecida e formalizada para oferecer um atendimento integral e integrado às mulheres.

As capacitações coordenadas pelo MUSA utilizam como recursos metodológicos workshops, palestras, aulas-debate e mesas redondas. Na ocasião, são distribuídos materiais de apoio, em forma de caderno, contendo os textos referentes ao conteúdo programático com temas tra-balhados para que possam ser consultados posteriormente pelos partici-pantes, caso desejem se aprofundar. Freqüentemente, há participação de instrutores convidados de outros estados para abordar algumas temáticas: em Sergipe houve a participação da delegada da deAM de Salvador e de um magistrado de um dos Juizados especiais Criminais de Pernam-buco. de acordo com depoimentos dos policiais, ambos contribuíram com o relato de experiências bem sucedidas no campo do atendimento policial às mulheres vítimas de violência e na aplicação da Lei 9099/95, respectivamente. Contudo, alguns policiais se referiram ao grande volume de informações, à quantidade de participantes e à necessidade de um maior conhecimento da realidade local por parte dos instrutores. Alguns consideraram o conteúdo muito teórico, pouco aplicável.

os impactos dos projetos de formação e a avaliação das experiências

Na perspectiva dos policiais o impacto das 2 (duas) experiências se reflete principalmente nos modos de atendimento à população. essa mudança segue duas direções: uma no sentido de modificar a visão

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que eles/elas próprios/as tinham do trabalho policial na deAM como um lugar desprestigiado dentro da Polícia Civil; e outra, no sentido de um novo entendimento dos/as próprios/as policiais sobre a função das deAMs, levando-as a pensar no espaço policial não apenas como lugar de punição ao agressor, mas como um espaço educativo junto à mulher que sofre violência. essa reflexão contribuiu para superar a visão estere-otipada da mulher que denuncia, mas não pretende a criminalização do agressor e apontou a necessidade de encaminhá-la para outros espaços de assistência, dentro da própria delegacia ou para outras instituições. Houve ainda uma sensibilização em relação à necessidade de buscar parcerias com outros órgãos para que o atendimento à mulher vítima de violência não se encerre na deAM, mas se desdobre em outras ações que possam oferecer soluções mais conseqüentes e de longo alcance, sem o caráter paliativo que muitas vezes representa a ação policial diante da complexidade do problema.

A percepção da deAM como espaço de mediação, de orientação e de cuidado, segundo depoimentos das delegadas, e a necessidade de criação de uma rede de apoio que preste um atendimento integrado e integral às mulheres em situação de violência (policial, jurídico, médico, psicológico, social) foram as contribuições mais significativas das duas experiências. Isso, segundo depoimentos de algumas, teria influenciado a busca por novos modelos de funcionamento, que se materializou no projeto do CAGV.

Toda a idéia da criação do CAGV começou com essas experiên-

cias da UFS e do pessoal da Bahia, que nos fizeram fomentar de

que tinha que mudar alguma coisa em termo de ambiente e nos

procedimentos. Porque quando você procura uma delegacia o que

você quer é providência e se a gente não consegue sequer atender

a providência que você solicitou, a gente não está conseguindo

fazer nada. Mas não bastava estar com os procedimentos em dia, a

gente tem que ter qualidade de trabalho e de atendimento e fomos

evoluindo. (uma delegada).

Segundo as policiais, a mudança do formato da deAM e sua vincu-

lação a um complexo policial, localizado no mesmo espaço físico, com uma coordenação unificada e com setores comuns, garantiu melhores

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condições de trabalho e tem produzido um aumento no nível de satis-fação e valorização profissional, embora se registre uma sobrecarga das atividades sobre o contingente policial. o novo desenho organizacional aumentou o número de queixas e proporcionou maior visibilidade na mídia, facilitando o acesso da população ao CAGV. Houve ainda, segundo esses depoimentos, uma maior preocupação com a qualida-de do atendimento às mulheres. esses avanços são entendidos como “não fazer a vítima esperar” e “na pouca reincidência de casos, após as audiências de mediação”.

Na avaliação das experiências as especificidades de cada uma são evidenciadas apenas em relação à metodologia: o Grupo de discussão é percebido pelas agentes policiais como inserido no cotidiano institucio-nal, sem conteúdos definidos a priori pela equipe da CdH, mas “nego-ciados” com os participantes, o que é valorizado mais positivamente em relação à Capacitação dada pelo MUSA, que apresentou um programa já elaborado, com uma pauta definida de temas a serem discutidos.

outra diferença evidenciada diz respeito à continuidade das expe-riências: a primeira é percebida como uma presença contínua durante 6 (seis) meses, e a segunda, concentrada em 1 (uma) semana, embora ambas tenham contemplado a mesma carga horária. evidenciam-se também especificidades na abordagem das policiais: a experiência do MUSA trabalhou com aulas-debate, em uma situação formal e “distante da realidade cotidiana”; a experiência da CdH utilizou como recurso, algumas vezes, a própria prática institucional. Por outro lado, na Capa-citação houve melhores condições de infra-estrutura e não se verificou, explicitamente, o que os membros da CdH chamam de “resistências institucionais” ao desenvolvimento da proposta. A visibilidade que a experiência do MUSA teve junto à corporação policial, à mídia e aos movimentos sociais foi significativamente maior do que a experiência da CdH, que ficou circunscrita a um pequeno grupo de policias da deAM de Aracaju. Foi ressaltada, ainda, em relação à Capacitação a possibilidade de conhecer experiências de outros estados, através da participação de instrutores convidados de Pernambuco e da Bahia.

outros pontos positivos das duas experiências são evidenciados, sobretudo no que se refere à relação da polícia com a sociedade: ambas promoveram uma abertura ao diálogo entre esses dois segmentos, contri-

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buindo para pensar criticamente a função das deAMs. o “diálogo com outras instituições, com pessoas que vem de fora e abrem um espaço de expressão e reflexão” é valorizado por quase todas as policiais entre-vistadas, incluindo as delegadas. deste modo, ambas as experiências, em um nível mais imediato, sensibilizaram o contingente policial para a especificidade do trabalho nas deAMs e para a necessidade de um maior acolhimento às mulheres vítimas de violência; em um nível mais amplo, as experiências contribuíram com a idéia de criação do CAGV. A falta de continuidade das experiências é apontada como aspecto negativo, principalmente em relação à Capacitação.

Passemos agora à perspectiva de análise das agências formadoras: os membros da CdH da UFS, ao contrário dos policiais, apontam as limitações dos cursos ou da experiência dos grupos de discussão, em termos de impactos sobre as práticas, capazes de produzir mudanças substanciais nos modos de operar das organizações policiais. Para eles, essas mudanças são decorrentes de muitos fatores interligados, tais como: conjuntura da segurança pública em nível nacional e local, ascensão de alguns quadros policiais aos cargos de maior hierarquia dentro das corporações, organização da própria categoria na busca de solução para os problemas institucionais das organizações policiais, etc. dentro desse contexto, a CdH se vê como estimuladora da criação de um espaço público de tematização dessas questões e uma interlocutora na relação polícia-sociedade:

eu não poderia estar pensando só a experiência do grupo, eu teria

que estar considerando várias outras coisas de uma dimensão mais

ampla do que propriamente a experiência. A experiência entra no

meio, no miolo, no movimento de várias outras coisas: a educação

para cidadania que vem dentro de uma política nacional de direitos

humanos, de direitos da mulher, a polícia como um dos temas dessa

política, enfim... o grupo entrava no meio disso, só que querendo

outras coisas que não uma mera transmissão mecânica de coisas.

o grupo queria, por exemplo, que um policial começasse a poder

se permitir problematizar a relação dele com a sociedade. eu não

tenho como avaliar isso pelo lado da relação concreta do policial

com o cidadão, mas eu guardo de memória algumas reflexões de

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pessoas que estavam no grupo que se permitiram pensar. Por eu ter

testemunhado esses exercícios de crítica e autocrítica eu acho que

a experiência do grupo acaba tendo uma repercussão indireta... Se

aquele policial continua oprimindo as pessoas, pelo menos eu sei

que ele construiu reflexões críticas sobre isso, não é mais um com-

portamento automático (membro da CdH).

em termos de impacto a avaliação da CdH aponta as limitações do trabalho realizado no que diz respeito a mudanças das práticas. Neste sentido, o grupo considera que sua contribuição foi problematizar as relações polícia-sociedade e estimular o debate, pelos próprios poli-ciais, das questões institucionais. Na avaliação da CdH, a experiência desenvolvida junto às polícias do estado, tanto na primeira fase (Cursos de direitos Humanos para Policiais) quanto na segunda (Grupos de discussão e Reflexão das Práticas Policiais) representou uma expansão do debate público sobre o exercício da função policial. Neste sentido, o trabalho desenvolvido na deAM remete sempre a um trabalho mais amplo, não circunscrito a essa unidade policial, mas ao conjunto da Polícia Civil e Militar.

Sobre a experiência na deAM, é enfatizada a importância da reflexão feita sobre a especificidade do trabalho policial nessa delegacia e sobre o descompasso entre as representações e demandas das policiais e das denunciantes em torno da função da deAM, apontando a necessidade de se repensar o papel da polícia para além de sua função repressora e punitiva. É valorizada, também, a expressão do desejo das policiais de realizar um bom trabalho, de melhorar a imagem do policial e sua credibilidade social, e de buscar soluções mais eficazes para o aten-dimento às mulheres. Avalia-se também positivamente a presença da delegada em quase todas as reuniões do grupo, contribuindo para o aprofundamento das discussões e para a busca de soluções.

Um dos frutos da experiência do Grupo de discussão foi a construção coletiva, de um projeto de formação policial para as deAMs, elaborado pela equipe da CdH e pelas policiais. entretanto, não houve recursos financeiros nem para a execução deste projeto nem para a continuidade do trabalho que vinha sendo desenvolvido. A interrupção do processo é apontada como o aspecto mais negativo da experiência.

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Na avaliação do MUSA, o grande ganho da Capacitação foi a pos-sibilidade do intercâmbio entre os estados de Sergipe e Bahia e “pela primeira vez realizar um trabalho voltado à melhoria do atendimento, através da criação de um espaço de discussão”. Isso permitiu apro-fundar o debate em torno da função de uma delegacia especializada no atendimento à mulher vítima de violência, buscando alternativas para suas demandas. “os policiais puderam colocar as dificuldades do trabalho, sem serem criticados”. Foi sugerido pelos agentes que o curso fosse estendido aos policiais militares e de outras delegacias, e que a carga horária fosse ampliada.

Como aspectos negativos foram apontados a falta de infra-estrutura dada pela Secretaria de Segurança e a impossibilidade imediata de formação de uma rede de atendimento. Foi ressaltada também, como limitação da proposta, a impossibilidade de atender às demandas dos policiais, em termos de melhores condições de trabalho e remuneração. o MUSA também pontua limitações acerca da experiência, em termos de impactos sobre as práticas policiais. Segundo sua análise o formato de capacitação adotado não possibilita o acompanhamento de ações posteriores e seus desdobramentos.

Infelizmente eu não tenho esse dado de avaliação porque o ideal

realmente é que se tivesse feito uma avaliação de impacto, mas

o projeto nacional não previu isso imediatamente (...) Parte-se do

pressuposto que se melhorou, mas como também tem uma alta

rotatividade nas delegacias, mudam os policiais à revelia deles,

então assim, eu não tenho as devoluções se melhorou ou se piorou.

eu acredito, pela minha experiência, que melhorou. Piorar eu acho

difícil, ou pelo menos estagnou (...) eu acho que depois a rede não

conseguiu ser formada, até deixei alguns contatos pra que o pessoal

da delegacia lá pudesse fazer contato aqui com Salvador, e até eu

soube que depois a delegada titular de lá veio aqui, participou de

alguns eventos, mas eu acredito que a rede ainda está pra se fazer lá.

Não tenho tido notícias de que tenha prosseguido aquele potencial

que a gente começou (membro do MUSA).

do ponto de vista do movimento de mulheres, que participou

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apenas da experiência do MUSA, a Capacitação produziu impacto sobre as práticas de atendimento, em termos de melhoria no acolhi-mento às mulheres. Mas, assinala que mudanças mais significativas se devem a fatores mais amplos e complexos, vinculados à cultura policial já consolidada.

(...) Mas eu me preocupo, porque a pessoa fez um curso desses,

será que ela tá preparada para essa nova forma de ver a violência,

de acolher, sem que ela tivesse tido condições de absorver mesmo,

absorver rompendo paradigmas e desconstruindo o que ela tinha

acumulado de entendimento sobre as coisas, de visão sobre o mundo,

de visão sobre a mulher, de visão sobre a violência contra a mulher?

ou assim, você agregou, ao que já era cultural desses profissionais,

um pequeno conhecimento? Você agregou, mas no momento que

ela precise de uma tomada de decisão, ela vai fazer um resgate que

vem toda a carga cultural acumulada. Porque é uma cultura, quando

colocam aquele uniforme, eles já assumem superioridade... o que

está por trás daquilo tudo? então não é um curso que vai formar ou

que vai desconstruir. o que nós precisamos antes é de construir essa

nova mentalidade (membro do movimento de mulheres).

Neste sentido foi ressaltada a importância do diálogo entre policiais, movimentos sociais, universidade e “todos que tinham interesse em discutir o assunto”. Foi apontada como limite da Capacitação a falta de continuidade da experiência, uma vez que os movimentos de mulheres entendem que esse modelo de formação via capacitação não é uma estratégia eficaz para a mudança da cultura policial.

embora embrionárias, considerando o curto período de tempo em que ocorreram e a baixa carga horária das duas experiências, é neces-sário considerar que os programas de formação policial aqui analisados estão inseridos dentro de propostas de trabalho mais amplas que as duas agências formadoras possuem, com experiências significativas em educação para a cidadania: junto à polícia (no caso da CdH/UFS) e junto aos movimentos sociais, especialmente de mulheres (no caso do MUSA/ISC/UFBA). A contribuição das experiências para a formação policial e o impacto que tiveram sobre as práticas policiais mostram-

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-se vinculados à abertura de um espaço de diálogo, crítica e reflexão entre a polícia e a sociedade, e não apenas aos conteúdos instrucionais trabalhados. observam-se, neste sentido, ênfases diferenciadas: enquan-to a ênfase da Capacitação do MUSA recaiu prioritariamente sobre a transmissão de conteúdos e informação, a dos Grupos de discussão da CdH incidiu sobre a reflexão das práticas policiais cotidianas, sem conteúdos predefinidos.

o grande impacto das experiências parece estar relacionado à con-tribuição que ambas deram na elaboração da proposta de criação do CAGV, que se assenta em dois pilares centrais: a mediação de conflitos, e o atendimento integrado e em rede às mulheres e demais grupos vul-neráveis e em situação de risco, elaborado por um grupo de delegadas e delegados de carreira, quase todos recém-concursados. Neste sentido, podemos dizer que as contribuições dadas se refletiram prioritariamente num nível hierárquico superior, embora os agentes policiais possam ter sido sensibilizados para mudanças, direta ou indiretamente.

A criação do CAGV, contudo, dependeu de inúmeros fatores vin-culados à conjuntura local da Polícia Civil, tais como: a contratação de delegados/as novos/as por meio de concurso público, quase todos/as sem inserção anterior na polícia e com uma visão mais democrática de segurança pública (entre os quais foram escolhidas as atuais dele-gadas titulares das deAMs do estado); a organização desse grupo para fazer frente às práticas consideradas violadoras de direitos humanos e ilegais dentro da corporação; e a articulação com quadros policiais antigos e em ascensão, que dentro da Polícia Civil já tinham idéias e práticas diferenciadas. Além disso, houve mudança na conjuntura em nível nacional, no âmbito das políticas de segurança pública. deste modo, consideramos que as experiências realizadas com os Grupos de discussão e a Capacitação, desenvolvidos respectivamente pela CdH/UFS e pelo MUSA/UFBA, somam-se a esse contexto de mudanças, no qual as agências formadoras são vistas pelos policiais como parceiros na construção de novas propostas de funcionamento para a deAM.

o projeto que criou o CAGV aponta a necessidade de “formação de agentes públicos aptos tecnicamente para lidar com as diferenças existentes no espaço social” (SeRGIPe, s.d.). o texto reconhece que essas unidades policiais, embora tenham por missão o atendimento à

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população específica, “não possuem, em seu quadro de pessoal, pro-fissionais preparados para o trato de tais demandas”. deste modo, se reafirma a necessidade de uma formação específica, pois como revela a experiência de 2 (duas) décadas das deAMs, não basta a criação de no-vos espaços policias para que se assegure bom atendimento, conquista de cidadania, proteção às mulheres e garantia de direitos.

Adotando uma concepção de formação na qual o próprio educando deve ser implicado acreditamos que cursos específicos, para atender ne-cessidades emergenciais, não garantem um processo que torne possível aos agentes policiais o enfrentamento do problema da violência contra as mulheres, capaz de lhes garantir um atendimento especializado e diferenciado dentro da Polícia Civil. Tal formação deveria fomentar uma atitude problematizadora dos profissionais em relação às práticas institucionais vigentes. É sobre o exercício do fazer cotidiano e a re-flexão dessas práticas institucionais que a teoria e a técnica devem ser discutidas. essa, porém, é uma perspectiva antes política do que técnica e implica, necessariamente, repensar a função social das deAMs.

considerações atuais

Após 5 anos da realização da pesquisa aqui apresentada e quase 10 das experiências de formação policial que foram objeto da nossa in-vestigação, fazem-se necessárias algumas considerações que atualizem as discussões acima.

Atualmente o principal parâmetro de avaliação do funcionamento das deAMs recai sobre a aplicação da Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha e a implantação das mudanças que ela prescreve, tanto no campo policial, quanto no judiciário. No que diz respeito à experiência sergipana, particularmente referente à deAM de Aracaju, a nova legislação sancionada em 7 de agosto de 2006, pelo Presidente da República, que dispõe sobre a violência doméstica e familiar, modificou substancialmente a experiência que vinha sendo realizada a partir de 2004, com a implantação do Núcleo de Mediação de Conflitos.

Como já dito acima, a construção do CAGV e a criação desse nú-cleo foram os principais impactos produzidos pelas experiências de

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formação policial que analisamos na pesquisa da qual trata este artigo. Como assinalamos anteriormente, a consolidação desse projeto estava vinculada não apenas às experiências de formação policial sob a respon-sabilidade da CdH/UFS e do MUSA/UFBA, mas a muitos outros fatores externos ao CAGV e à própria deAM, relacionando-se diretamente às políticas de segurança pública, e ao funcionamento organizacional e institucional da Polícia Civil em Sergipe. As possibilidades de sucesso dessa experiência pareciam estar ligadas, sobretudo, ao diálogo entre a polícia e representantes da sociedade civil, através dos movimentos sociais e em especial, do movimento feminista e de outros segmentos sociais, que pudessem efetivamente estabelecer um controle social sobre as ações executadas nessa unidade policial, em especial, pelo Núcleo de Mediação de Conflitos. entretanto, a Lei Maria da Penha restringe sobremaneira as possibilidades de renegociação, conciliação e mediação de conflitos que caracterizou o trabalho das deAMs ao longo de duas décadas, sendo essa a maior demanda das mulheres que pretendiam com a sua denúncia reduzir ou abolir a violência doméstica, sem a pretensão de criminalizar seus maridos ou companheiros.

Por outro lado, o enfrentamento da violência de gênero além de exigir ações pontuais e uma política pública abrangente passa por um processo mais amplo de desnaturalização da violência na sociedade brasileira e da ressignificação das representações sociais da punição como vingança, consolidadas inclusive dentro das organizações sociais responsáveis pela execução das políticas públicas nesta área. o que nos parece necessário pensar, é a necessidade de uma reflexão acerca da cultura policial e jurídica que ancoram as práticas institucionais dos órgãos responsáveis pelo enfrentamento da violência doméstica e familiar, aos quais cabe a aplicação da nova lei, uma vez que valores e crenças consolidados nessas culturas acerca da violência de gênero e em especial das violências que ocorrem na família, não são efetivamente mudados por força da legislação. Neste sentido, pensar a formação do contingente policial e dos operadores do direito que lidam com essa matéria torna-se uma necessidade imperiosa.

em se tratando da violência doméstica, pensamos que é preciso cada vez mais, conhecer e compreender os mecanismos pelos quais a dominação se exerce e se mantém nas relações entre homens e mu-

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lheres, identificando os valores, as crenças e as “lógicas” que estas utilizam quando permanecem nas relações violentas, e, sobretudo, seus movimentos de ruptura, que se configuram como produção de contra-dominação. Fortalecer suas resistências ativas, através das redes comunitárias que já existem (entre vizinhas, parentes, amigos, associações de bairros, grupos de mulheres, clubes de mães, etc), e promover o enfrentamento da violência de gênero na esfera pública, viabilizando condições de suporte institucional para a constituição de redes formais que articulem a assistência policial, jurídica, social e no campo da saúde, são medidas capazes de garantir soluções estruturais à violência de gênero, com efeitos mais profundos e duradouros. A experiência histórica de enfrentamento da violência tem mostrado que esses efeitos não são garantidos, por si só, através de medidas legais e procedimentos burocráticos, tais como a instituição de normas, sanções e a punição aos agressores.

Para concluir, retomamos a questão da função social das deAMs. os impasses, dilemas e desafios que fazem o cotidiano dessas unida-des policiais estão, em parte, relacionados ao fato de que as atividades nelas desenvolvidas extrapolam as ações de investigação que levariam à criminalização dos agressores, sobretudo dos casos de violência do-méstica. Falta aos policiais comprometidos com as funções educativas e preventivas das deAMs, um reconhecimento institucional e social--comunitário dessas formas de operar. essa falta de reconhecimento os impede de se identificar como “autênticos policiais” ao desenvolvê--las. essa não identificação e valorização profissional que os órgãos do sistema de segurança pública fazem e os próprios policiais sentem em relação às atividades que executam dependem, em parte, de como as ações desenvolvidas nessas unidades policiais são avaliadas.

Pensamos que dois caminhos podem nortear essa reflexão. o primei-ro consiste em avaliar a ação das deAMs a partir da noção de produti-vidade: seria, então, o número de agressores acusados judicialmente e condenados criminalmente que indicaria uma política bem sucedida de redução ou contenção da violência de gênero materializada pelas deAMs. Adotar as categorias da criminalização e punição como pontos centrais desta análise levaria à conclusão da falência dessa política pú-blica, uma vez que os números de casos encaminhados à Justiça pelas

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deAMs, com julgamento e punição do agressor, são ínfimos. entretanto, embora haja um consenso entre pesquisadores e militantes em torno da necessidade imperiosa de mudar os modos de funcionamento das deAMs, há também outro consenso referente ao reconhecimento do papel histórico das deAMs em selar o fim do silêncio, dar visibilidade à questão da violência contra as mulheres, contribuir para garantir legitimidade à sua desnaturalização e politizá-la no espaço público.

o segundo caminho seria avaliá-la a partir da ótica das mulheres. Para as denunciantes que mantêm a sociedade conjugal ou para aque-las que a dissolveram, mas mantêm vínculos afetivos com o agressor, o “sucesso” dessa política se mede pela possibilidade de publicização de um conflito muitas vezes cronificado, num espaço que extrapola a esfera do lar e das relações familiares, no qual o fenômeno da violên-cia é “julgado” a partir de outra ordem e racionalidade. As mulheres esperam que esse espaço lhes garanta proteção e direitos, lhes permita negociar interesses e que a intermediação da autoridade policial via-bilize a resolução dos conflitos que vivem e o fim da violência. Nessa perspectiva de análise, os baixos índices de casos encaminhados à Justiça expressam, não a falência de um “projeto emancipador” das mulheres, mas a existência de um outro nível de resolutividade dos casos recebidos pelas deAMs, que não é o da lógica da produção de resultados numericamente quantificados.

Privilegiando o segundo viés, avaliamos que as deAMs se caracte-rizaram, não apenas como um espaço de resistência institucional das mulheres contra a violência, mas como um espaço de resistência dos policiais lotados nestas unidades frente à lógica da produção do tra-balho policial. diante do crescente quadro de insegurança que assola a sociedade brasileira, a produtividade de uma delegacia de polícia é medida pelo estado e pela população, em função dos resultados que apresenta: números de ocorrências registradas, inquéritos instaurados e enviados à Justiça, flagrantes executados, mandatos de busca e apre-ensão realizados, prisões efetuadas. Vinte anos de funcionamento das deAMs, porém, mostram que a resolutividade dessas unidades policiais deve ser pautada em outros critérios, condizentes com as demandas das mulheres que as procuram e com o trabalho realizado nelas por seus profissionais, buscando atendê-las.

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A experiência que estava sendo implantada na deAM de Aracaju, que durante 2 anos adotou o instrumento jurídico de mediação de conflitos segundo critérios bem determinados, diferenciando-se da conciliação e da arbitragem, através de um trabalho de qualificação de mediadores para este fim especifico, se caracterizou como espaço de resistência de delegadas e agentes policiais que pensaram a Polícia sobre outros moldes e que protagonizaram práticas institucionais dife-renciadas nessa unidade policial. elas provocaram fissuras, rachaduras, fendas, capazes de inverter momentânea e circunstancialmente lógicas cristalizadas de funcionamento institucional. Consideramos, por fim, que mudanças nos modos de operar da Polícia estão limitadas pela própria razão de ser de uma organização social, que ao lado das Forças Armadas, da Justiça e do sistema prisional formam o circuito do poder repressor do estado. desse circuito repressivo nenhuma delegacia de polícia pode escapar, seja ela especializada ou distrital, embora seja possível aos policiais que nelas desenvolvem seu trabalho, resistir.

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TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010

resumo

o policiamento comunitário surgiu no Brasil como a grande su-gestão de alternativa ao policiamento tradicional. Também chamado de “Polícia Cidadã”, ele aposta na integração com a comunidade e na prevenção como solução para os problemas de segurança pública. o novo modelo de policiamento foi proposto e louvado, dentro e fora do Brasil, como a solução dos problemas de segurança e das dificuldades de integração entre polícia e sociedade, entretanto, importa saber até onde a implantação desse policiamento resultou em solução e conseguiu distinguir-se do policiamento tradicional. dessa forma, esse artigo visa discutir sobre o desenvolvimento do policiamento comunitário em Ser-gipe, enfatizando, sobretudo, os desafios e limites que o novo modelo de policiamento tem apresentado como também suas potencialidades.

Palavras-chave: Policiamento Comunitário; Segurança Pública; Interação Polícia-Sociedade

“SEGURANÇA pÚBlICA, RESpONSABIlIDADE

DE QUEM?”: ANálISE DE UMA EXpERIÊNCIA

DE COGEStÃO DA SEGURANÇA EM SERGIpE

Gleise Prado Rocha Passos*

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia.

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Gleise Prado Rocha Passos

“Public saFetY, liabilitY For Whom?”: an analYsis oF a co-manaGement saFetY eXPerience in the state oF serGiPe

abstract

Community policing emerged in Brazil as a great suggestion for an alternative to traditional policing. Also called the “Citizen Police”, it counts on community integration and prevention as a solution to the problems of public safety. The new policing model was proposed and praised both within and outside Brazil, as the solution of security problems and difficulties of integration between police and society, however, it’s important to know how far policing has resulted in solu-tion and could distinguish to traditional policing. Therefore, this article aims to discuss the development of community policing in Sergipe, emphasizing, above all, the challenges and limitations presented by the new policing model as well as its potential.

Key words: Community Policing; Public Safety; Interaction Police--Society

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“SEGURANÇA PÚBLICA, RESPONSABILIDADE DE QUEM?”: ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA DE COGESTÃO DA SEGURANÇA EM SERGIPE

introduÇÃo

As altas taxas de criminalidade e a ineficiência do estado no controle do crime têm provocado várias críticas às estratégias tradicionais de policiamento. No Brasil, a grande sugestão de alternativa ao policia-mento tradicional foi o policiamento comunitário, também chamado de “Polícia Cidadã”.

essa “nova polícia” surge justamente no novo cenário político inau-gurado pela redemocratização e marcado pelo aumento da participação da sociedade civil nas questões públicas. No campo da segurança públi-ca, diversos segmentos sociais, além de exigirem da polícia uma postura voltada à defesa e promoção dos direitos humanos e um controle mais eficaz da violência, passaram a propor um papel mais participativo na elaboração, implementação e fiscalização das políticas de segurança.

Como o estado de Sergipe não está fora dessa nova conjuntura polí-tica e do desejo de mudanças tanto no enfrentamento da criminalidade quanto na própria relação polícia-sociedade, minha pretensão neste artigo é tecer uma breve discussão, à luz do referencial empírico do estado sergipano, sobre como se deu a implantação do policiamento comunitário e como este tem se desenvolvido, tanto no que se refere à sua estruturação operacional e logística quanto nos aspectos mais sub-jetivos como, por exemplo, a relação polícia-sociedade. desejo enfatizar, sobretudo, os desafios e limites que o novo modelo de policiamento tem apresentado, mas também as potencialidades deste. Ao fazer isso tomo como pano de fundo uma concepção atualizada de segurança pública que tem sido evocada de forma recorrente para justificar e até mesmo motivar a efetivação do policiamento comunitário, isto é, a ideia de que “Segurança pública é responsabilidade de todos”.

segurança pública voltada para a participação comunitária No modelo clássico de segurança pública adotado em vários países, há

um claro abismo entre a polícia e o cidadão. Seus contatos são esporádicos e sempre em situações de tensão. Ademais, a oferta pública de segurança parece nem sempre corresponder ao que os cidadãos demandam.

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o isolamento do estado, associado a sua incapacidade de reduzir a violência e os índices de criminalidade, provocou o surgimento de iniciativas de segurança cidadã firmadas num modelo de polícia de orientação comunitária, com a integração entre mecanismos partici-pativos e o trabalho da polícia. desde os anos 1960, várias autorida-des políticas, acadêmicos e reformistas têm sugerido a comunidade como a solução para o problema das limitações do estado na tarefa de controle do crime.

o policiamento comunitário foi um dos programas comunitários fruto de um movimento de reforma policial que começou no Reino Unido após a Segunda Guerra Mundial, foi importado para os estados Unidos na década de 60 e hoje já está espalhado em boa parte do mundo. este tipo de policiamento buscou promover a imagem da polícia mediante uma atuação mais próxima e responsável junto às organizações comunitárias e suas lideranças. Contudo, nos anos 1980, o policiamento comunitário já havia se tornado uma retórica usada para descrever toda e qualquer prática policial por mais díspares que fossem. Mesmo assim, provocou mudanças significativas no policiamento. “A mais importante destas foi o crescente esforço empenhado em alcançar e atrair as atividades de atores não-estatais, ligando suas práticas informais de controle do crime aos mecanismos formais da polícia” (GARLANd, 2008, p:269).

As agências estatais passaram então a se desenvolver uma “estraté-gia de responsabilização”, redistribuindo com atores do setor privado e da comunidade a tarefa de controlar o crime. essa nova abordagem, relativa à prevenção do crime, segundo a qual o estado não pode ser o único responsável pela segurança fez os governos reconhecerem uma verdade sociológica básica: “os mais importantes processos de produção da ordem e conformidade são processos visceralmente sociais, situados dentro das instituições da sociedade civil, e não fruto da ameaça incerta de sanções legais” (GARLANd, 2008, p:272).

Antes de ser um conjunto de estratégias e táticas operacionais, o poli-ciamento comunitário é antes de tudo uma vontade de renovar a relação entre polícia e população, fazendo das expectativas e demandas expressas pela comunidade o princípio de hierarquização das prioridades policiais.

o policiamento comunitário propõe uma segurança pública em parceria entre o estado e a comunidade, capacitando o mapeamento

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dos problemas e a proposição de soluções de caráter preventivo. esta modalidade de política pública incorpora uma nova dinâmica de parti-cipação e co-responsabilidade entre sociedade e polícia. o novo modelo de policiamento reconhece que a segurança não é sua alçada exclusiva, porém, essa proposta de coprodução da segurança não significa o ha-bitual jogo de empurra pelo qual os serviços públicos colocam um no outro as responsabilidades. Trata-se da ideia de que a polícia tem um papel direto de animação e apoio às organizações comunitárias e que, no tocante à prevenção cabe-lhe assegurar a liderança e o controle.

embora existam vários tipos de programas de policiamento co-munitário em diversos países, alguns elementos podem ser tomados como comuns na sua definição: uma nova definição do papel da polícia; enfoque na prevenção e solução se problemas mais do que no policiamento direcionado ao incidente (ampliando o que seria considerado “trabalho da polícia”); uma reciprocidade mais intensa entre polícia e comunidade; descentralização de comando e dos ser-viços policiais; reconhecimento de que a sociedade executa um papel crítico nas soluções dos problemas que lhe afetam (GReeNe, 2002; RoSeNBAUM, 2002).

o policiamento comunitário tem tido relevante destaque em debates no mundo inteiro a respeito dos problemas de segurança pública. Mas é verdade também que muitas análises têm questionado “o potencial” desse tipo de policiamento comunitário, afirmando que ele não tem surtido o efeito que todos esperavam. Além disso, a maior parte das avaliações que tem sido feita sobre seus “resultados” é incompleta, problemática e pouco confiável (BAYLeY, 2001; BRodeUR, 2002; MoNJARdeT, 2003).

Portanto, não há consenso quanto aos efeitos do novo policiamento, nem resultados unívocos que demonstrem seu sucesso ou o fracasso. Por outro lado, já se pode ver um efeito positivo no que diz respeito à melhora das relações entre a polícia e a população. Uma forte potencia-lidade da polícia comunitária é que ela tece relações sociais e motiva a população a sair do individualismo que mata a vida pública, visto que “ela testemunha, num certo número de locais e de serviços de polícia, uma inegável capacidade de mudança, e é dessa maneira que provoca um interesse maior” (MoNJARdeT, 2003, p:264).

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No Brasil, a Constituição Federal de 1988 no Art. 144 definiu que a segurança pública é “direito e responsabilidade de todos”. A fazer isso, ela estabeleceu o “fundamento jurídico dos arranjos institucionais que permitem a participação popular na formulação e no controle da gestão das políticas de segurança” (NeTo, 2010, p:51). A gestão da segurança pública passa, então, a ser concebida não somente como função exclu-siva do estado, mas como responsabilidade de toda a sociedade; que é conclamada a assumir sua parte na promoção de uma vida comum menos insegura e violenta. A segurança pública continua a ser “dever do Estado”, porém, é entendida também como “responsabilidade de todos”, sofrendo, portanto, um processo de redefinição que atinge tanto seus aspectos conceituais quanto o campo prático de suas políticas.

No Brasil, são os conselhos de segurança pública que, em ge-ral, fazem a ligação entre a comunidade e a polícia militar. esses conselhos não podem interferir diretamente na atuação dos órgãos estatais; eles operam como “fóruns de debate e controle deliberati-vo da gestão governamental” (NeTo, 2010, p:52). Apesar da pouca participação popular efetiva que ainda caracteriza os conselhos de segurança, a sua atuação contribuiu para a democratização das políticas de segurança.

A participação social nas políticas públicas de segurança, mediante conselhos, comitês, associações, oNG’s etc., tem suscitado muitas críti-cas, não pela participação em si, mas pela forma como ela se processa.

Muitas das tentativas feitas neste sentido (de participação comunitá-

ria na segurança pública) devem-se ao estado e a governos de plan-

tão, de forma improvisada, utilitária e com o intuito de buscar uma

maior legitimação à atuação policial e a outras políticas públicas da

segurança (sem olvidar o uso eleitoreiro emprestado ao expediente)

(RodRIGUeS, 2009, p:249)

Um questionamento que surge logo de início sobre a participação so-cial é a representatividade dos cidadãos que participam desses espaços de organização comunitária. Uma vez que a comunidade não é homogênea. Nela existem várias culturas, valores e grupos de interesses diferentes. Por isso importa saber se os conselhos são representativos dessa diversidade.

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Um forte empecilho ao desenvolvimento da participação social é também o fato de que o próprio estado tem mostrado uma enorme di-ficuldade em agir de forma coordenada e cooperativa com os diversos perfis comunitários.

outro grande desafio da segurança pública hoje é fazer com que a comunidade fortaleça seus vínculos (afrouxados pelo individualismo, pela apatia política e pela própria violência) e participe. Vivemos hoje numa sociedade heterogênea e fragmentada onde nem os indivíduos nem os grupos conseguem reconhecer valores comunitários comuns. o homem moderno realiza-se na esfera privada. É aí, portanto, que ele busca sua liberdade e seu bem-estar, por isso as dificuldades de uma participação comunitária ativa nos assuntos de interesse público. No entanto, a eficiência dos modelos policiais de orientação comunitária depende diretamente da participação social: “Assim, comunidades em que a população participa [...] tendem a ter menores taxas de crimina-lidade em relação às demais” (RodRIGUeS, 2009, p:262).

Policiamento comunitário em sergipe

os primeiros programas comunitários de policiamento surgiram nas cidades de Guaçuí e Alegre, no espírito Santo, em 1988, e em Copacabana no Rio de Janeiro entre 1994 e 1995. o programa de Co-pacabana foi fruto de uma parceria entre o movimento VIVA RIo e alguns setores progressistas da Polícia Militar do Rio de Janeiro, mas teve muitas dificuldades para ser consolidado, dentre elas: o acesso à comunidade, a busca de colaboração de outras agências públicas e o ambiente institucional da própria Polícia Militar (MUNIZ et al.,1997). diante desse contexto, embora houvesse tido o apoio da sociedade civil, o projeto de foi dissolvido poucos meses depois, em 1995, pelo novo comando da Secretaria de Segurança do estado, sem qualquer avaliação prévia dos seus resultados.

Sergipe foi o primeiro estado do Nordeste a implantar o policiamen-to comunitário. em fevereiro de 1996, a Polícia Militar tomou como bairro-piloto o Bairro América, um bairro popular da cidade de Aracaju conhecido por seus altos índices de violência. A partir daí estendeu-se

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por outros bairros e atualmente tem-se tentado implantar em alguns municípios do interior, porém, tal iniciativa ainda é muito incipiente, estando limitada à tentativas de aproximação, por exemplo, através de cursos com a comunidade e a polícia sobre polícia comunitária.

A Polícia Militar de Sergipe não é totalmente direcionada como polícia comunitária. Atualmente o policiamento comunitário fica a cargo de algumas 3 unidades operacionais denominadas Batalhões de Polícia Comunitária (1º BPCom, 5º BPCom e 8º BPCom) e suas subu-nidades ditas Companhias Comunitárias (12 no total). esses Batalhões são responsáveis pelo policiamento da chamada “Grande Aracaju” que compreende, além da capital Aracaju, os municípios de Nossa Senhora do Socorro, São Cristóvão e Barra dos Coqueiros.

Além dos BPCom’s, a atual estrutura administrativa comporta uma série de unidades como, por exemplo, a Polícia de Trânsito, o Coman-do de operações especiais (Coe), Companhia de Polícia de Choque (CPChoque), a Polícia de Rádio Patrulha (CPRp), a Polícia Fazendária, o Grupamento especial Tático de Motos (GeTAM), o Grupamento Tá-tico Aéreo, a Polícia Ambiental e o Pelotão especial de Policiamento em Área de Caatinga.

de modo geral, a implantação do policiamento comunitário em Ser-gipe se deu por meio da instalação dos PAC’s (Postos de Atendimento ao Cidadão) instalados apenas em alguns conjuntos e bairros “Grande Aracaju”. Segundo pesquisas realizadas anteriormente, havia em 2005, 26 Postos de Atendimento distribuídos nesses locais (NeVeS, 2005; PASSoS, 2005). Atualmente, não há um número exato desses postos porque há inconstância no tocante a permanência e funcionamento desses postos é enorme.

No tocante à participação comunitária, são os Conselhos Comu-nitários de Segurança (CoNSeG’s) que fazem a intermediação entre a comunidade e a Polícia Militar. em tese, deveria existir pelo menos um CoNSeG para cada PAC, mas em Sergipe o número de CoNSeG’s também é incerto porque muitos deles são o que se chama de instituição “fantasma”, isto é, existem apenas no papel- isso quando o Conselho tem o seu estatuto registrado em cartório. Além disso, os conselhos são criados e dissolvidos com freqüência. Segundo a FeCoNSeG (Federação dos Conselhos de Segurança de Sergipe), federação criada em 2006 e

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que coordena todos os conselhos de segurança do estado, em 2009, existiam 37 conselhos, 35 na capital e 2 no interior.

embora a Polícia Comunitária tenha sido criada oficialmente em 29 de fevereiro de 1996, somente em 03 de maio de 2002 foi regulamentada a atuação da Polícia Militar do estado de Sergipe junto aos Conselhos de Segurança Comunitária, através do decreto n.º 20.62 de 03 de maio de 2002, publicado no diário oficial do estado de Sergipe, em 24 de maio de 2002 (SeRGIPe, 2002). este define que os CoNSeG’S são “organizações não-governamentais (oNG’s), sem fins lucrativos e que devem ser de utilidade pública, devem promover e buscar, em parce-ria com os órgãos públicos, medidas e soluções para aumentar o grau de segurança das comunidades”; ademais, afirma que a PMSe deve incentivar a criação dos Conselhos e ser responsável pela difusão ou divulgação da filosofia e de princípios e regras de polícia comunitária e pela coordenação destes mesmos Conselhos. em 12 de novembro de 2003 foi publicado no Boletim Geral ostensivo nº 201 da PMSe a “Normatização dos Conselhos de Segurança Comunitário” que dispõe sobre a formação, estrutura, direitos, eleições, reuniões, administração e até mesmo a ética e disciplina dos CoNSeG’s.

os Postos de Atendimento situados na Zona Norte da capital são os mais deficientes e que se encontram em condições precárias1 (os policiais, por exemplo, trabalham sem água e sem material de higiene pessoal; viaturas quebradas, instalações inadequadas etc.), os localiza-dos na Zona Sul são os melhores estruturados e os da Zona Centro-oeste estão em condições intermediárias. Além de divisão geográfica, essas zonas indicam também uma certa divisão sócio-econômica, posto que na cidade de Aracaju, de modo geral, a Zona Sul é onde se localiza a maioria dos bairros de classe média e alta e as zonas Norte e Centro--oeste abrigam os bairros mais pobres.

Além de promoverem reuniões entre a polícia e a comunidade, os CoNSeG’s acabam contribuindo financeiramente. Teoricamente, a cooperação da comunidade no desenvolvimento do trabalho da polícia comunitária nunca é pensada em termos pecuniários e logísticos. Sem-pre está claro que esse tipo manutenção é de inteira responsabilidade da

1 As exceções ocorrem naqueles bairros em que a participação da comunidade é ativa.

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instituição policial, porém, em muitos casos é a população local quem acaba arcando com os custos da manutenção dos postos de atendimento da polícia que o estado não provê. Isso vai desde o fornecimento de alimentação para os policiais que trabalham nos postos até a compra de armas e coletes à prova de balas2.

A interação polícia-comunidade tem sido apontada, mesmo por aqueles que não concordam com a ideia de sucesso do policiamento comunitário, como elemento que possibilita a superação dos estere-ótipos e preconceitos que impedem a cooperação e o relacionamento mais construtivos entre ambos e contribui para esclarecimento dos poderes, tarefas, recursos e limites da instituição policial, desfazendo falsas expectativas da sociedade em relação à capacidade policial. Contudo, aquilo que constitui vantagem na relação entre polícia e comunidade é também fonte de riscos e desafios, somados às dificuldades que encontramos no funcionamento do policiamento comunitário no estado.

No modelo tradicional a polícia se faz presente apenas nas situações emergenciais, na polícia comunitária a presença policial é cotidiana na vida local. Uma das consequências disso é a atenção a problemas não-criminais, ou seja, a problemas relacionados à desordem. Assim, de forma especial, a demanda de ocorrências assistenciais demonstra que o policiamento comunitário acaba lidando nos bairros mais carentes com problemas que não estão diretamente ligados à segurança pública. As vezes, por exemplo, a viatura do posto policial funciona como am-bulância para aqueles que não conseguiram usufruir do atendimento médico adequado no posto de saúde da região. outro exemplo é a questão do Som Alto, que pode ser enquadrada nas ocorrências Contra os Costumes/Paz pública como Perturbação do Sossego/Tranquilidade, é uma das reclamações mais recorrentes.

No policiamento comunitário o policial deve sempre se dispor a in-formar o público sobre as atividades policiais e os problemas geradores de insegurança na área. Há, entretanto, o risco de que a polícia esconda

2 Convém ressaltar que esse provimento por parte da comunidade diminuiu bastante nos últimos anos devido ao maior investimento do governo em termos de logística, por exemplo, viaturas e combustível. Mas algumas dificuldades persistem, tais como alimentação inadequada dos policiais, gasolina racionada e instalações precárias.

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ou manipule informações em vista de seus próprios interesses e/ou por medo de expor publicamente seus erros e limitações.

Ao contrário do que ocorre no policiamento tradicional, na polícia comunitária o policial deixa de ser visto como um simples aplicador da lei penal e passa a assumir as funções de planejador, solucionador de problemas, organizador comunitário e elo de informações. ele tem mais liberdade para decidir como deve agir na comunidade em que atua porque na polícia comunitária ocorre uma descentralização do poder de decisão para situações mais próximas. No entanto, as competências desse policial precisam ter limites bem definidos a fim de serem evitados abusos de autoridade e distorções.

Sendo o policial um indivíduo com valores, experiências e per-cepções próprias pode-se considerar que a visão dos problemas locais pode ser influenciada por suas pré-concepções. o policial pode ainda se envolver com os problemas locais de tal maneira que acabe tomando para si o papel de representação de interesses específicos. Com o apoio popular pode ainda valer-se do seu prestígio para isentar-se do controle da instituição da qual faz parte. Tais riscos podem ser diminuídos por treinamento, supervisão e outros instrumentos de coleta e análise dos dados, como entrevistas, contatos com organizações comunitárias, análise periódica das estatísticas policiais (NeTo, 2000).

em Sergipe, a questão da formação dos policiais que hoje trabalham nas unidades de policiamento comunitário é muito problemática. Pri-meiro, porque nem todos eles passaram por um curso que abordasse esse tipo de policiamento e, segundo, porque os mais novos que frequen-taram um curso de formação tiveram policiamento comunitário como disciplina de um curso mais amplo. Para os oficiais da PMSe que têm nível superior, são algumas vezes ofertados cursos de especialização em Policiamento Comunitário, em geral, promovidos em parceria com Instituições de ensino Superior fora do estado.

Assim sendo, os policiais vão aprendendo na rotina do seu trabalho, ou seja, informalmente, como lidar com essa nova realidade de policiamento. disso, pode-se imaginar como a relação polícia-comunidade pode ser prejudicada como também o funcionamento legal da própria instituição.

A mudança freqüente dos policiais que trabalham nos PAC’s tem sido uma das queixas mais recorrentes dos moradores e até dos poli-

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ciais que trabalham no posto há mais tempo. Como os policiais não demoram muito tempo eles não conseguem se adaptar à realidade local nem conhecer a comunidade. Também os moradores, que precisam de tempo para se aproximar dos policiais, acabam sem conhecê-los. Como o envolvimento mais duradouro entre polícia e público é peça chave na polícia comunitária, o rodízio dos turnos de trabalho dos policiais comunitários impede o desenvolvimento da identificação de proble-mas, pois é essencial a estabilidade das tarefas destes policiais para a realização de um trabalho de aproximação dentro de sua comunidade (CeRQUeIRA, 1999).

É inegável que, como o policiamento comunitário depende de um en-volvimento maior com o público, existem aspectos, tais como: pressões sociais indevidas e a corrupção, que põem em risco o bom desempenho da atividade policial. Muitas vezes, por causa do aumento da violência e do sentimento de insegurança, a comunidade pode pressionar ilegiti-mamente o policial para que realize ações repressivas e até arbitrárias. existe também o aumento do risco de que indivíduos ou grupos em busca de vantagens façam propostas ilícitas ao policial justamente pela proximidade nas relações. Neste caso, métodos e critérios tradicionais de controle não poderiam detectar, por exemplo, se quando um policial visita diariamente um estabelecimento comercial ou recebe um presente de uma associação comunitária por seus serviços prestados, isso seria um indício de corrupção (NeTo, 2000).

Além da possibilidade de privilégios a respeito da proteção da polícia comunitária a algum grupo ou estabelecimento comercial, a configura-ção que a polícia comunitária sergipana tem tomado nos últimos anos dá margem a uma importante questão: a privatização da segurança, nesse caso, da segurança pública.

ora, se a comunidade local tem a possibilidade de contribuir material-mente com a polícia através da compra de equipamentos, de suprimentos para os policiais etc., ela também roga para si o direito de exigir ainda mais da polícia um serviço de boa qualidade. dessa forma, a lógica levar--nos-ia a deduzir que a comunidade que pode contribuir mais desfrutará de um melhor atendimento, ou seja, de um melhor policiamento.

Além dos riscos e dilemas que comporta, a nova filosofia e estraté-gia de policiamento comunitário enfrenta sérios desafios. Um deles é

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motivar e manter a participação da comunidade, principalmente nos locais onde há um forte individualismo e desinteresse do público. A implantação do policiamento comunitário aqui em Sergipe tem de-monstrado que o “sucesso” da pareceria polícia-comunidade depende muito do fato de na localidade onde for implantação haver um histórico anterior de mobilização social, como é foi o caso do Bairro América.

Além de inserida nesse contexto da sociabilidade moderna, a difi-culdade de participação da comunidade no policiamento comunitário tem outro agravante: o isolamento histórico entre polícia e sociedade. A polícia, que outrora entrava em contato com a população apenas em situações esporádicas, precisa agora “sair” das viaturas e “entrar” nas ruas dos bairros, dos conjuntos, enfim, na vida da comunidade. É de grande relevância, então, que essa parceria polícia-comunidade não se restrinja a um ou vários incidentes ou a um determinado pe-ríodo e que a população local não seja vista como um mero prestador de serviços de informações e um patrocinador do funcionamento do Posto, ao invés de um interlocutor que tem voz e vez nesse diálogo sobre segurança pública.

A parceria polícia-comunidade tem sofrido ainda com as resistências internas da instituição à nova forma de policiamento. Resistências que têm a ver principalmente com a questão do controle da sociedade sobre a atividade policial. o contato estreito entre policial e comunidade tem sido defendido como instrumento de controle relevante segundo alguns argumentos, dentre eles, o de que a perda do anonimato torna o policial mais responsável por suas ações e ajuda o seu supervisor na obtenção de informações sobre a atuação policial na localidade. Com efeito, a instituição policial “deve ter autonomia para realizar julgamentos e conciliar as expectativas sociais às prioridades, aos recursos disponí-veis e às restrições legais de sua autoridade” (NeTo, 2000, p:72), não devendo servir a interesses puramente privados de grupos, associações ou conselhos de segurança. entretanto, isso não pode servir como des-culpa da instituição para barrar as interferências possíveis e legítimas da comunidade no desenvolvimento do policiamento comunitário.

Um exemplo de resistência da polícia para com a nova forma de po-liciamento foram as mobilizações realizadas em 2000 pela população e por membros de alguns CoNSeG’S da cidade, inclusive do Bairro Amé-

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rica, contra o então Secretário de Segurança Pública, João Guilherme, que deu uma declaração dizendo que a polícia comunitária não existia.

Pesquisas realizadas mostram que os próprios policiais que trabalham no policiamento comunitário confirmam as dificuldades da Polícia Mi-litar, enquanto corporação, em aceitar o novo modelo de policiamento (PASSoS, 2005). Além do fato de se sentirem “mandados” pelos mora-dores e de reclamarem das condições de trabalho nos postos, um dos motivos alegados para a resistência dos policiais seria o fato de que, quando estão lotados nas unidades de policiamento comunitário ganham bem menos do que noutras onde teriam gratificação somada ao salário.

A partir de 2002, o policiamento comunitário tem passado por diversas crises. Uma explicação para isso pode ser a transferência do Frei Raimundo - líder religioso que ajudou a implantar o policiamento no Bairro América e que tinha grande influência política - para uma paróquia em outro estado da federação e a chegada ao poder nesse mesmo ano no governo do estado de grupos políticos declaradamente contrários ao policiamento comunitário. Trabalhos recentes têm mostra-do que a polícia tem padecido com a precarização e que as autoridades têm reforçado o policiamento dito tradicional por meio, por exemplo, de novos investimentos em armas, viaturas, coletes etc. para a Rádio Patrulha, Companhia de Choque, Coe, dentre outros (oLIVeIRA, 2008).

considerações Finais

enquanto política pública que propõe uma reformulação radical da ideia de segurança e de responsabilidade do estado para com as garantias de liberdade e as condições de vida (urbana em especial) dos indivíduos, o policiamento comunitário sugere que é possível tratar de questão tão polêmica e complexa no âmbito de uma proposta de ampliação da ação cidadã e de um maior entrosamento entre poder público e comunidade.

experiência já disseminada em outros países (com resultados positivos ou nem tanto), a implantação da polícia comunitária é uma questão bem atual e candente sobre as prioridades do estado brasileiro em relação à reestruturação de suas ações e investimentos, reestruturação adminis-trativa e de gestão e reestruturação dos procedimentos deliberativos e de

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políticas de intervenção com resultados mais imediatos e transparentes para a sociedade. Por isso, a relevância de que analisemos a fundo essas ações que, propondo inovações na condução das políticas de segurança através dessa co-responsabilidade, têm integrado esse processo de cons-trução de uma nova cultura política pautada na democracia.

Temos visto que, assim como ocorre com outros temas que têm sido constantes na mídia e nos discursos públicos, o policiamento comuni-tário corre um sério risco de servir apenas como instrumento retórico, sendo usado para mascarar programas tipicamente tradicionais. Nesse sentido, tomando como referência o desenvolvimento do policiamento comunitário no estado sergipano, percebemos que, embora haja um discurso sobre a importância da participação social nas questões de segurança, na prática, essa participação é ainda muito limitada.

Além disso, a forma como ele tem se configurado aqui, mostra que a população local é tida mais como informante (“os olhos e ouvidos da polícia”) e financiador direta do policiamento que em um copartícipe das políticas de segurança.

decerto, tais considerações não podem nos fazer negar os avanços e inovações que a implantação da polícia comunitária provocou em algumas localidades e segmentos da própria polícia. Muitos relatos de moradores mostram que o tratamento da polícia e seu relacionamento com ela melhoraram bastante nesses lugares, bem como a confiança na atividade policial. Também alguns policiais afirmam ter mudado sua visão sobre a comunidade e apostam na eficácia da parceria com esta no combate à criminalidade (PASSoS, 2005). Porém, o que ainda tem tido peso maior no policiamento comunitário aqui no estado é uma postura paternalista, clientelista e tradicional da instituição policial da qual a sociedade ainda não tem conseguido fugir.

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TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010

resumo

A dimensão institucional do crime organizado está relacionada com os custos de transação das atividades criminosas e com sua tendência à expansão e à preservação da continuidade das operações. o telefone celular, por ser acessível econômica e cognitivamente, foi um fator de redução dos custos de transação do PCC, organização criminosa atuante nos presídios brasileiros. entretanto, a falta de uma terceira parte garantidora dos negócios ilícitos não apenas aumenta os custos de transação do crime organizado, como também constitui, para a organização criminosa, uma ameaça permanente de fragmentação e de desintegração, no caso de conflitos não resolvidos pelas regras internas. Trata-se da aplicação do neoinstitucionalismo de douglass North e do modelo de análise de rede a uma pesquisa empírica de mais de cinco anos.

Palavras-chaves: dimensão institucional; crime organizado; custos de transação

A DIMENSÃO INStItUCIONAl DO CRIME

ORGANIZADO E NOVAS tECNOlOGIAS: O CASO DO pCC NO EStADO DE

SERGIpE

Luís Cláudio Almeida Santos*

* Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. [email protected].

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Luís Cláudio Almeida Santos

the institutional dimension oF the orGaniZed crime and the neW technoloGies: the case oF Pcc in the state oF serGiPe

abstractThe institutional dimension of the organized crime is related to

the transacting costs of the criminal activities and to its tendency to expansion and to preservation of the continuity of the operations. Thanks to its economical and cognitive accessibility, the cell phone has been a factor of reduction of the transacting costs of PCC, crimi-nal organization acting in the Brazilian prisons. However, the lack of a third party guaranteeing the illegal business not only increases the transacting costs of the organized crime, but also means, for the organi-zation, a permanent threat of fragmentation and dissolution, in case of conflicts unresolved by the internal rules. We applied douglass North´s neoinstitucionalism and the network analytical model to a more than five-year empirical research.

Key words: Institutional dimension; organized crime; transacting costs; third party

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A DIMENSÃO INSTITUCIONAL DO CRIME ORGANIZADO E NOVAS TECNOLOGIAS: O CASO DO PCC NO ESTADO DE SERGIPE

introduÇÃo

o que faz uma organização empresarial ser distinta de uma organi-zação criminosa? essa questão que formulamos em nossos termos já foi suscitada por Santo Agostinho, na “Cidade de deus”, com o objetivo de defender a justiça divina como fundamento da comunidade política em contraposição a um mero bando de salteadores.

A defesa da fundamentação divina encontraria resistência de quem não compartilha o argumento da fé. Propomos responder ao nosso questionamento, fazendo uso, ao contrário, dos conceitos da teoria institucional, representada em nosso artigo pela corrente neoinstitucio-nalista de douglass North (1990)1. Investigar o impacto da tecnologia do celular no fortalecimento da organização criminosa denominada PCC, ou Primeiro Comando da Capital, é o segundo objetivo deste artigo. Além disso, acreditamos que a análise da relação entre telefonia móvel, forma de organização em rede e dimensão institucional do crime orga-nizado, embora se desenvolva no quadro limitado da expansão do PCC, ilumina, sob a perspectiva teórica, aspectos interessantes do mundo da criminalidade que, nos debates que se travam sobre segurança pública, mereceriam uma atenção maior.

Na falta de consenso quanto aos critérios de definição do crime organizado, optamos por considerar como crime organizado todo grupo mais ou menos estruturado de três ou mais indivíduos que, ao longo de um certo período contínuo de tempo, dedica-se, através do uso frequente da violência e da corrupção, à obtenção de vantagens financeiro-patrimoniais. devemos esclarecer ainda que, apesar de se tomar como ponto de partida empírico a atuação do PCC nos presídios do estado de Sergipe, as reflexões teóricas e conceituais que este artigo desenvolve têm potencial, segundo nossa estimativa, para ultrapassar os limites do espaço pesquisado. Como sabemos, o “local” ou “micro”, quando analisados com as ferramentas teóricas adequadas, podem conter o “global” ou “macro”.

1 A distinção metodológica, segundo North (1990), entre instituições – regras que constrangem ações – e organizações – grupos de indivíduos que operam com objetivos comuns sob instituições – foi mantida por sua funcionalidade.

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1.excurso sobre a história do Pcc: de trasímacoao institucionalismo despótico

A relação entre a dimensão institucional do grupo de indivíduos chamado “PCC” e a sua capacidade de se expandir em quase todos os sistemas prisionais estaduais pode ser útil para demonstrar a ope-racionalidade dos postulados da teoria institucional, em particular o “teorema de Coase”. Conforme explica North (1990), exceto nos modelos neoclássicos de custos de transação zero, o grau de efici-ência econômica depende sempre da capacidade de as instituições reduzirem os custos de transação. esses custos são oriundos do fato de os agentes possuírem, em uma economia de trocas impessoais, informação incompleta sobre aspectos relativos à definição, à proteção e à efetivação dos direitos de propriedade.

Quanto à história do PCC, registra-se que seu ato inaugural ocor-reu em 31 de agosto de 1993, no Centro de Reabilitação Penitenciária de Taubaté, quando um de seus fundadores decepou o pescoço, em plena partida de futebol, de um dos seus adversários. os altos custos de transação do processo expansivo do grupo exigiram, contudo, a passagem da justiça dos fortes prevista por Trasímaco2 ao insti-tucionalismo despótico da sociedade sem “estado de direito”. Por isso, os mentores do PCC aprovaram os “estatutos” do “partido”, cujo texto recebeu divulgação na imprensa, inclusive no Jornal da Cidade, edição de 29.03.2009. entre as normas que devem ser sublinhadas nesses “estatutos”, estão o princípio da proibição do uso da organização para o fim de resolver conflitos pessoais com terceiros, a vedação da prática dentro do “sistema” de certas ações criminosas como estupro, assalto e extorsão, a instituição, sob a pena de morte, de contribuição para financiar as atividades do grupo e, enfim, o estabelecimento de um mecanismo de solução de conflitos em que os litigantes são ouvidos, mas a decisão compete apenas aos “fundadores”.

2 N´ “A República”, de Platão, Trasímaco define a justiça como a “conveniência do mais forte”.

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A DIMENSÃO INSTITUCIONAL DO CRIME ORGANIZADO E NOVAS TECNOLOGIAS: O CASO DO PCC NO ESTADO DE SERGIPE

segurança e celular: um problema de “trade-off”

A tecnologia pode ser vista como um sistema aplicativo da ciência ou de outro conhecimento, que se materializa eventualmente em objetos ou formas organizacionais visando a fins práticos. As novas tecnologias, como o celular e o computador, apresentam-se, entrementes, como portadoras de características próprias das novas mídias digitais, tais como a interatividade, a possibilidade de manipulação fácil e a compre-ensibilidade autoexplicativa do modo operacional. Nesse particular, a teoria institucional investiga o modo como as tecnologias ou as mídias em sentido amplo afetam e são afetadas pelas instituições.

A teoria institucional de North (1990) reconhece a importância da tecnologia para reduzir os custos de transação ou de participação no mercado, e assim, facilitar a mudança institucional. Se, por um lado, a complexidade da sociedade leva a um grau crescente de formalização das instituições, por outro lado, a tecnologia pode reduzir os custos de transação, ao padronizar, por exemplo, os pesos e as medidas.

A partir de uma perspectiva que foge tanto ao determinismo social quanto ao determinismo tecnológico, Schneier (2009) mostra que, no respeitante a aspectos de segurança e de controle, isto é, quanto aos mecanismos que visam a garantir a conformidade com as instituições, as novas tecnologias devem ser pensadas dentro do que se chama em inglês de “trade-off”, expressão que se traduz pelo compromisso entre vantagens e benefícios.

Há uma contradição entre tecnologia e segurança. enquanto a tec-nologia desinibe os agentes, a segurança é inibidora. o caminho do meio entre o otimismo tecnológico e o extremismo controlador parece ser a solução desejável. A esse respeito, o problema do “trade-off” explica por que o simples bloqueio dos celulares nos presídios tem encontrado resistência. É que esse bloqueio impede eventualmente as comunicações móveis na vizinhança das unidades prisionais, e pode interferir em outros sistemas de comunicação dos próprios presídios. Talvez as autoridades prefiram as “maletas” ou “rastreadores móveis de celulares”, que identificam e desligam pelas respectivas “identidades” os celulares intrusos. Como equipamentos de controle da entrada e da utilização indevida de celulares dentro das unidades prisionais,

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estão sujeitos esses “rastreadores”, entretanto, aos mesmos problemas institucionais dos mecanismos não tecnológicos.

dois traços específicos da telefonia móvel tornam os celulares tecno-logias importantes para os estudos do crime organizado: a possibilidade de ação à distância e as comunicações rastreáveis. Nesse particular, entretanto, também existe um “trade-off”. Se, por um lado, é possível comandar operações, em diferentes espaços e ao mesmo tempo, através dos celulares, por outro lado, graças aos traços deixados por essas liga-ções, as autoridades repressivas podem mapear tanto as ações quanto os agentes que participam dos crimes à distância.

ora, o que pode explicar o efeito desinibidor das novas tecnologias é a constatação de que os celulares servem de fontes de “alavancagem” ou, em inglês, “leverage” (SCHNeIeR, 2009), pois aumentam as possibi-lidades de ação, inclusive de ação criminosa, deixando os sistemas de controle cada vez mais vulneráveis. Não somente um ataque pode ser comandado por uma organização, mas uma série de ataques como os do PCC que paralisaram a cidade de São Paulo, em 2006. É da supervalori-zação da “alavancagem” que nutre, aliás, o sentimento de insegurança gerado pelo medo de um ato isolado de “loucura” em uma sociedade cada vez mais segura. Como se nota, o que as novas tecnologias fazem é, se bem analisarmos, tornar visível na prática o “campo dos possíveis que era oculto pelos variados determinismos teóricos.

As tecnologias nem são neutras nem separadas da sociedade, mas interligadas com as instituições sociais e os seus problemas. Há per-manentes negociações entre as entidades sociais – cultura, economia e política – e os sistemas sociotécnicos (LYoN,2006).Por isso, um outro aspecto importante das novas tecnologias como os celulares, para a teoria institucional, está na superação do argumento da caixa-preta defendido pelos teóricos da autonomia da tecnologia.

em primeiro lugar, a expertise necessária para o uso desses artefatos é acessível independentemente da condição até mesmo de letrado. em segundo lugar, a padronização dos sistemas tecnológicos facilita o que Schneier chama de “class breaks” (“recreios escolares”). É possível emular um console de operador de telefone para fazer ligações gratuitas. Pode um preso semianalfabeto ou mesmo analfabeto valer-se de um hardware de celular sem incidir no risco de ser flagrado com o aparelho

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móvel, desde que esconda em local secreto o respectivo chip. Cada vez mais a metáfora do “panóptico”, que vê tudo sem ser visto, parece ultrapassada. Ao contrário, a “alavancagem” tecnológica tem efeito semelhante ao “anel de Giges”, que, segundo Platão, n´”A República”, torna os indivíduos temporariamente invisíveis aos controles externos institucionais. É bem verdade que, no caso do celular, a rastreabili-dade a posteriori das suas ligações pode permitir a identificação dos autores do crime.

Como se vê, o dilema do “trade-off” parece inevitável. os fins prá-ticos a que se destinam as novas tecnologias são incapazes de impedir as conseqüências indesejadas de certos usos. Por isso, a metáfora do pêndulo oscilante descreve bem a relação entre tecnologia e segurança: a cada ataque surpreendente com as novas tecnologias, novas contra-medidas são postas em prática, invertendo a vantagem instável dos controlados em favor dos controladores (SCHNeIeR, 2009).

3. a expansão do celular e o crescimento do Pcc: dificuldades institucionais

A expansão das atividades do PCC até as ações espetaculares de 2006 em São Paulo coincide com o período de popularização crescente da telefonia móvel. o grande salto na difusão dos celulares no Brasil ocorreu em 1999, quando o número de celulares passou de 7,4 para 15 milhões, e em janeiro de 2001, com a liberação das Bandas C, d e e. Segundo as estatísticas da Anatel, há hoje 185 milhões de celulares no Brasil, isto é, uma média de 95,92 cel/100 habitantes.

ora, tendo em vista os custos convencionais de transação em co-municação por telefone fixo ou mediante interações face a face, não é preciso fazer um grande esforço de raciocínio para concluir que a expansão do PCC não seria viável na amplitude, velocidade e inten-sidade em que se processou, se não fosse o acesso barato e simples a uma nova tecnologia como o celular.

As estatísticas sobre a quantidade de presos supostamente en-volvidos com o PCC em Sergipe mostram, como se pode ler abaixo, uma progressão de 450% de 2006 a 2007 do PCC e uma certa esta-

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bilização do grupo a partir de 2008. o aumento por salto de 2006 a 2007 explica-se pela combinação paradoxal de mais repressão com incapacidade para bloquear pela via repressiva e institucional o crescimento do PCC.

Aliás, a legislação federal que transformou a posse ou a utilização de celular em falta grave somente veio a lume em março de 2007, quando ao fim desse ano já havia no Brasil 120 milhões de celulares. Quanto aos dados coletados sobre detentos do PCC, é preciso, contudo, ter em mente que as informações são baseadas em serviços de inteligência, já que os presos temem se autodeclarar membros do PCC, sobretudo por causa dos custos de serem reconhecidos como integrantes do crime organizado (e.g. transferência para presídios de segurança máxima, aplicação de regime disciplinar diferenciado, etc.). esse comportamento demonstra, por sua vez, como diria Weber, a crença dos detentos na validade das regras formais.

Quadro 1 - Nº de Presos Supostamente envolvidos com o PCC

UNIDADE PRISIONAL 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 TOTAL

Cadeia de N. Sra.do Socorro - - - - - - 0 0 0

Complexo Antônio Jacinto Filho - - - - - - 2 9 11

Complexo Dr. Manoel Carvalho Neto 0 2 1 4 22 31 50 40 150

Hospital de Custódiae Tratamento 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Penitenciária de Areia Branca 1 semiaberto 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Penitenciária de Areia Branca 2 semiaberto - - - 1 - - - 1 0

Presídio Feminino 0 0 0 0 0 1 0 0 1

Presídio Manoel Barbosa de Souza 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Presídio SenadorLeite Neto 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Casa de Detençãode Aracaju - CDA 0 0 0 0 - - - - 8

TOTAL 0 2 1 4 22 32 52 49 162

Informação até março de 2010 (Fonte: Unidades Prisionais)

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Apesar da correlação entre aumento da oferta de celulares e ex-pansão do PCC em todo o país, foi só depois dos ataques às forças da segurança pública paulista, e em virtude da possibilidade de objeção judicial a regras locais que sancionavam a posse ou uso de celulares em presídios, que se aprovou a Lei Federal no. 11.466, de 28 de março de 2007. essa lei pune como falta grave a posse, a utilização ou o for-necimento de “aparelho telefônico, de rádio ou similar que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo”. Note-se que quando aplicada, a falta grave implica, nos termos da legislação da execução penal, o isolamento do preso por até 30 dias, além da perda de benefícios concedidos judicialmente.

Se essa punição administrativa visa aumentar os custos de transação do uso de celulares dentro dos presídios, qual o impacto da nova regra no contexto carcerário? ora, a “dialética do controle” (GIddeNS,2003) que se estabelece entre controladores e controlados mostra que nenhu-ma dominação é total. os controlados se servem, para burlar as regras formais, dos meios disponíveis, sempre levando em conta os custos de cada ação. Assim, embora a punição pela falta grave funcione como inibidor do aumento desenfreado do número de celulares no sistema prisional, três estratégias têm sido amplamente utilizadas pelos presos em Sergipe com o propósito de driblar a lei. A primeira consiste em separar o hardware do chip, de forma a permitir o uso, muitas vezes remunerado, do mesmo hardware por vários portadores de chips. A vantagem desse procedimento está na facilidade de esconder os chips. Uma segunda estratégia é a prática de corrupção dos guardas ou agentes penitenciários. e a terceira estratégia, que pode estar asso-ciada à primeira, consiste em dificultar a identificação do responsável pelo celular na medida em que o aparelho é escondido em local não associável a qualquer preso individualmente. No terceiro caso, que é o mais freqüente, ocorre o confisco do aparelho telefônico, mas não se consegue punir o seu portador ou usuário.

Por fim, a última iniciativa institucional para reprimir os celulares nos presídios veio da Lei Federal nº 12.012, de 6 de agosto de 2009. essa lei incluiu entre os crimes a ação de ingressar ou de facilitar o ingresso em presídios de aparelho telefônico, de rádio ou similar, sem autorização legal. A efetividade dessa regra formal tem dependido, como

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acontece com a regra da punição por falta grave, dos mecanismos insti-tucionais de controle interno e externo da administração penitenciária.

os dados que coletamos sobre as apreensões de celulares em Sergipe revelam, por seu turno, um salto expressivo de 146,43% de 2006 a 2007, seguido de aumentos crescentes de 53,62% e de 72,64% a partir de 2007, o que mostra a persistência das regras informais de aceitação de propina para permitir a entrada dos aparelhos de telefonia móvel. Registre-se que, dos 490 celulares apreendidos, 169 aparelhos, excluí-da a possibilidade de subenumeração, deixaram de ter, por não serem identificados os seus usuários e titulares, procedimento administrativo, e 35 foram encontrados externamente com visitantes.

de qualquer modo, é evidente que o aumento contínuo e exponen-cial das apreensões de celular com procedimento interno não se deve imputar somente ao incremento da população carcerária, já que ela cresceu a uma taxa de 22,56%, isto é, de 2262 presos no ano de 2008 a 2742 em 2009. em resumo, no balanço entre perdas e ganhos, os ganhos prováveis com o uso do celular nos presídios, seja como “moeda” de troca, seja como instrumento de crimes, continuam sendo vistos pelos presos como superiores às perdas decorrentes de eventuais punições administrativas.dada a relativa proporção entre prisões de membros do PCC e apreensões de celulares, em matéria de eficiência do controle formal, parece estar prevalecendo, entretanto, como se nota, a lógica incremental de mudança (LeVI, 1991).

Quadro 2 - Nº de Celulares Apreendidos nos Presídios em Sergipe

UNIDADE PRISIONAL 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 TOTAL

Cadeia de N. Sra. do Socorro - - - - - - 0 0 0

Complexo Antônio Jacinto Filho - - - - - - 1 0 1

Complexo Dr. Manoel Carvalho Neto 0 0 0 2 19 33 95 29 178

Hospital de Custódia e Tratamento 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Penitenciária de Areia Branca 1 semiaberto 1 2 2 1 7 5 5 2 25

Penitenciária de Areia Branca 2 semiaberto - - - 18 21 33 41 25 138

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A DIMENSÃO INSTITUCIONAL DO CRIME ORGANIZADO E NOVAS TECNOLOGIAS: O CASO DO PCC NO ESTADO DE SERGIPE

Presídio Feminino 0 0 0 0 0 16 11 17 44

Presídio Manoel Barbosa de Souza 2 4 6 7 8 10 16 3 56

Presídio Senador Leite Neto 0 0 0 0 14 9 14 11 48

Casa de Detenção de Aracaju - CDA 0 0 0 0 - - - - 0

TOTAL 3 6 8 28 69 106 183 87 490

Informação até março de 2010 (Fonte: Unidades Prisionais)

Registre-se que nem todos os celulares apreendidos pertencem a membros do PCC, como também nem todas as ligações de celulares são necessariamente com objetivos criminosos. Todavia, os dados empíri-cos coletados durante a pesquisa sobre os presos sergipanos, ao serem interpretados à luz da teoria institucional, permitem concluir que a “ala-vancagem” proporcionada pela telefonia móvel e o déficit de efetividade do controle formal nos presídios tiveram um papel decisivo no processo de consolidação e de expansão das atividades criminosas do PCC.

4. o Pcc como organização em forma de rede

Para compreender melhor como esse processo se deu, parece-nos que o modelo analítico de rede pode descrever a forma de organização que o PCC adotou para se expandir no Brasil e em Sergipe. Aliás, o modelo de rede foi associado por Saviano (2008) à máfia napolitana conhecida como Camorra. e a Camorra, segundo divulgou o jornal “O Estado de São Paulo” de 25 de janeiro de 2009, manteve contato com líderes do PCC, através dos irmãos Bruno e Renato Torsi. esses dois irmãos ca-morristas eram foragidos da justiça da Itália, quando foram presos em 18 de maio de 1990 no Brasil. eles ficaram recolhidos exatamente na Casa de Custódia de Taubaté, onde nasceu o PCC.

Quando se trata de rede, é sabido que o foco da investigação recai sobre os nós e os laços. Quanto aos nós, investigamos os elementos ou unidades que compõem a rede, isto é, os indivíduos ou grupos de indi-víduos, informais ou formais, as corporações ou outros agregados. Como

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mostram von Lampe e ole Jihansen (2003), a força do laço no crime organizado depende basicamente de confiança, haja vista a ausência de uma terceira parte garantidora dos contratos. e confiança existe quando A tem a expectativa, embora sua informação seja incompleta, de que não será prejudicado por B, ainda que B possua, como é do conhecimento recíproco, a condição de prejudicar A. Sem o mínimo de confiança não haveria a possibilidade de cooperação no crime organizado.

em se tratando de redes criminosas, podemos identificar as se-guintes modalidades de confiança: a confiança individualizada, que pode ser pessoal ou mediada pelo terceiro garantidor, a confiança baseada na reputação notória pelas proezas de alguém e, enfim, a confiança generalizada, que se traduz na certeza do compartilha-mento das normas de conduta da subcultura delinquente. A única confiança que parece ausente nessas redes é a abstrata, pois a ilega-lidade das operações é incompatível com a crença racional-abstrata que depositamos no governo ou no sistema monetário. Por isso, a confiança nas redes criminosas tem sempre alguma base pessoal, a despeito das mediações.

A confiança e a cooperação entre os “nós” da rede são fonte de capital social. esse capital social é visto pelos membros da or-ganização criminosa como um “bem social” proporcionado pelas conexões ou laços dos agentes e pelos recursos a que têm acesso através da rede. Tais laços sociais permitem informações úteis sobre oportunidades e escolhas, influenciam a tomada de decisão pelos agentes em posições estratégicas, são vistos como credenciais que oferecem uma via rápida aos recursos disponíveis da rede, além de reforçarem a identidade e o reconhecimento dos agentes criminosos, ao menos, junto às demais unidades da rede. Um dos efeitos mais relevantes do capital social para o crime organizado é o de induzir à conformidade e à dedicação ao “coletivo”, em detrimento da au-tonomia individual. Além da perda abrupta dos recursos a que se faz jus, a exclusão da rede geradora de capital social implica não apenas a possibilidade de ser mais facilmente apanhado nas malhas repressivas das autoridades, como também a total vulnerabilidade a ataques de outros membros da organização, eventualmente presos junto com os “desertores”.

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5. a terceira parte como solução do problema agostiniano

Sucede que o crime organizado tende a se expandir, mesmo porque opera com base em motivações semelhantes àquelas das empresas lícitas, a saber, o dinheiro, o poder e o reconhecimento. Ao tratar das economias com ou sem lei, dixit (2004) relaciona determinadas carac-terísticas das atividades econômicas que, para nós, são comuns tanto ao crime organizado quanto às empresas não criminosas, a saber, a criação de propriedade, o oferecimento de insumos pelos agentes que se incorporam às organizações e os contratos.

ora, as disputas pela partilha dos recursos obtidos geram conflitos que, na impossibilidade de desaguarem em uma esfera “neutra”, devem ser resolvidos através de mecanismos internos. As regras previstas nos “estatutos” do PCC proíbem o uso da organização para interesses pessoais e a prática de crimes entre os membros do grupo. essas regras mostram a importância da dimensão institucional como mecanismo de redução dos custos de transação relativos aos negócios celebrados pela organização criminosa, sobretudo em face do estado de incerteza que envolve o cumprimento das obrigações.

A instituição de um “processo” com sanções draconianas e julga-mento a cargo dos “fundadores”, evidencia, de um lado, o grau de forta-lecimento da organização, e do outro, a fragilidade das redes criminosas desprovidas de uma terceira parte como o estado. Para a infelicidade dessas organizações criminosas, os conflitos tendem a ser violentos e a colocarem em risco o capital social gerado pela rede, justamente por escaparem a uma instância externa de controle.

A essa altura, diante das semelhanças entre os grupos crimi-nosos organizados e as diversas formas de organização dos gru-pos empresariais, está na hora de retomarmos o velho problema agostiniano. Na releitura que empreendemos da dúvida de Santo Agostinho, quando do início deste artigo, formulamos a seguinte pergunta: como distinguir entre uma associação criminosa e uma associação empresarial?

A chave para responder a essa indagação, segundo a perspectiva neoinstitucionalista, está na ausência, como já antecipamos, de uma terceira parte “neutra” encarregada de fazer cumprir os contratos. em

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Luís Cláudio Almeida Santos

uma sociedade hipoteticamente sem estado, a falta de implementação (“enforcement”) externa dos contratos não constitui um impedimento às trocas de bens e serviços, na medida em que os agentes se conhecem pessoalmente e as trocas são sempre as mesmas. Nesse caso, os custos de transação são baixos e as normas de comportamento informais com-partilhadas por todos tornam dispensáveis o contrato formal e a coação externa. A autoimplementação dos contratos opera por si, dispensando o apelo a uma instância externa judicial.

No tocante às redes criminosas como o PCC, embora os nós dessas redes estabeleçam laços com base na confiança individualizada, na con-fiança generalizada e na confiança fundada na reputação, entre os nós dos diferentes níveis hierárquicos e funcionais há tantos mediadores que dificilmente podemos comparar essas organizações ao modelo hipotético de sociedades sem estado há pouco exposto. organizações criminosas que se expandem como o PCC se assemelham mais ao segundo modelo de sociedade, a sociedade com estado, onde o volu-me de recursos que são consagrados às transações a fim de garantir a cooperação aumenta exponencialmente, e as trocas tendem a assumir um caráter impessoal, na medida em que os nós se afastam uns dos outros. Por isso mesmo, a interdependência especializada entre os membros do grupo criminoso por causa da divisão do trabalho e a extensão inevitável das trocas através do tempo-espaço podem acabar levando a um processo mínimo de institucionalização formal, como aconteceu com o PCC.

Todavia, os custos de transação do crime organizado, determinados pela carência de informação perfeita sobre as trocas, são crescentes, porque falta a essas organizações criminosas a ameaça coercitiva do estado como garantia da observância dos contratos criminosos. daí a necessidade de o PCC se valer, nos seus “estatutos”, de sanções rigorosíssimas como a pena de morte, somente porque os seus mem-bros deixaram de pagar a contribuição para a manutenção do grupo. Tidos como juridicamente nulos pelo direito estatal, os contratos cri-minosos repousam, em primeira instância, na confiança e, na última instância, na possibilidade de eliminação física dos descumpridores de obrigações, ambos fatores de instabilidade quando as trocas se tornam extralocais.

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A DIMENSÃO INSTITUCIONAL DO CRIME ORGANIZADO E NOVAS TECNOLOGIAS: O CASO DO PCC NO ESTADO DE SERGIPE

6. o Pcc como instância reguladora

Quanto ao objetivo do PCC de lutar contra a opressão no sistema prisional, podemos considerá-lo, segundo a lição interacionista (Be-CKeR,1977), como “a racionália” ou a autojustificação utilizada pelo grupo criminoso para neutralizar as inibições convencionais que os seus membros podem ter. Parece claro que as condições degradantes das nossas prisões não são uma fantasia do PCC para camuflar as suas motivações econômicas. de qualquer forma, o estado ainda medieval dessas prisões funciona menos como causa no sentido mecânico e mais como uma “estrutura de incentivos” ao descumprimento das regras formais de disciplina. Por isso, o desrespeito aos direitos mínimos dos presos contribui para a percepção de que o detento ou não “tem nada a perder” ou “tem mais a ganhar” se aderir ao crime organizado.

Finalmente, note-se que o crime organizado, quando mina a credi-bilidade das instituições formais e da democracia, seja ao estabelecer uma institucionalidade informal concorrente, seja ao se apropriar do poder político com fins meramente predatórios, tem efeitos negativos que não podem ser obliterados. Apesar desses efeitos negativos sobre as instituições e a democracia, o crime organizado pode trazer uma contribuição positiva à sociabilidade carcerária, tradicionalmente orientada por relações de dominação violenta entre os presos e entre os presos e os guardas.

A partir de uma institucionalidade interna que visa à diminuição dos seus custos de transação em um ambiente de crescente incerteza, o PCC passa a atuar como instância reguladora dos conflitos. Nesse papel, a organização criminosa busca o direcionamento da violência no sentido dos interesses da rede. Assim fazendo, tem impedido a proliferação de assassinatos nos presídios à margem das ordens dos “fundadores”. Ajustes sangrentos de contas atraem a atenção das au-toridades e podem colocar em risco as lideranças da organização. esse “efeito institucional” positivo explica, conforme se pode verificar no quadro abaixo, por que, independentemente das medidas de controle da violência tomadas pela administração prisional, o número de presos supostamente envolvidos com o PCC tem aumentado em Sergipe e o número de homicídios no sistema penitenciário tem caído.

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Luís Cláudio Almeida Santos

Quadro 3 - Nº de Homicídios no sistema prisional sergipano

UNIDADE PRISIONAL 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 TOTAL

Cadeia de N. Sra. do Socorro - - - - - - 0 0 0

Complexo Antônio Jacinto Filho - - - - - - 0 0 0

Complexo Dr. Manoel Carvalho Neto 0 1 0 2 0 0 0 0 3

Hospital de Custódia e Tratamento 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Penitenciária de Areia Branca 1 semiaberto 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Penitenciária de Areia Branca 2 semiaberto - - - 1 - - - 1 2

Presídio Feminino 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Presídio Manoel Barbosa de Souza 1 1 0 1 0 0 0 0 3

Presídio Senador Leite Neto 1 0 2 2 2 1 0 0 8

Casa de Detenção de Aracaju - CDA 3 3 1 1 - - - - 8

TOTAL 5 5 3 3 7 2 0 1 24

Informação até março de 2010 (Fonte: Unidades Prisionais)

7. conclusões

Antes do fecho deste artigo, convém retomar, sinteticamente, os principais tópicos da análise institucional e sociológica da relação entre as novas tecnologias, o crime organizado e a respectiva forma de organização. Como nova tecnologia, tomamos o exemplo da telefo-nia móvel. No tocante ao crime organizado, a escolha recaiu sobre a atuação do PCC nos presídios sergipanos. e quanto aos aspectos ins-titucionais, analisamos como a expansão do PCC tende a aumentar os seus custos de transação, ao ponto de compelir o grupo criminoso a um grau mínimo de institucionalidade. ora, por ser interativo e acessível econômica e cognitivamente, o celular reduziu os custos de transação da organização criminosa, viabilizando a sua presença em quase todos os presídios brasileiros, inclusive os do estado de Sergipe. Seja como

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A DIMENSÃO INSTITUCIONAL DO CRIME ORGANIZADO E NOVAS TECNOLOGIAS: O CASO DO PCC NO ESTADO DE SERGIPE

for, a despeito das regras formais para punir tanto o ingresso quanto o uso do celular nos estabelecimentos penais e até da provável implan-tação de rastreadores de celulares, o controle efetivo desses artefatos tecnológicos no contexto carcerário dependerá sempre de um delicado equilíbrio institucional entre regras formais e informais.

A forma de organização em rede do PCC deu maior flexibilidade e garantiu até o momento a expansão das suas atividades criminosas. entretanto, como argumentamos a propósito do problema agosti-niano de saber qual a diferença entre uma associação criminosa e uma associação política, a falta de uma terceira parte “neutra” garantidora dos negócios crescentes do crime organizado aumenta exponencialmente os seus custos de transação, o que explica o risco de fragmentação ou dissolução e, em alguns casos de crime organizado, a mistura eventual de negócios lícitos e ilícitos. enfim, sujeito a conflitos violentos que não podem ser resolvidos no âmbito de uma institucionalidade interna, o PCC mostra, na perspectiva da teoria institucional, os limites de uma organização criminosa que, a par dos seus efeitos negativos, tem atuado positivamente como instância reguladora da violência dentro dos presídios, e até mesmo fora do contexto carcerário, quando se trata, nesse segundo caso, de disputas entre os membros da organização.

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artigos

TOMO São Cristóvão-SE Nº 17 jul./dez. 2010

resumo

este artigo afirma que Marx não negligenciou as relações sociedade e natureza. Aliás, as considerou também por meio das categorias alie-nação, metabolismo, corpo orgânico e corpo inorgânico.

PalaVras-chaVe: Natureza em Marx; Marxismo e Meio Ambiente.

the nature oF nature in marX

abstract

This article argues that Marx has not neglected the relations society and nature. Moreover, he also considered them by the categories of disposition, metabolism, organic and inorganic body.

KeYWords: Nature in Marx; Marxism and the environment.

A NAtUREZADA NAtUREZA

EM MARX*

Cristiano Wellington Noberto Ramalho**

* Agradeço a leitura atenta e a sugestão do título feita pelo Prof. Dr. Emílio Negreiros (UFS). Contudo, qualquer lacuna analítica presente neste escrito é de minha inteira responsabilidade.

** Doutor em ciências sociais pela UNICAMP. Atualmente é professor (adjunto I) de sociologia do Departamento de Ciências Sociais (DCS) da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

apresentação

A história é a verdadeira histó-ria natural do homem

(Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos).

Karl Marx e Friedrich engels não foram estudiosos socioambientais. Aliás, na época em que viveram, esse problema sequer estava colocado como hoje está para os pensadores sociais em termos concretos e con-ceituais. Porém, mesmo sob tal constatação, o tema da natureza não escapou aos seus escritos, já que os referidos autores o relacionavam às reflexões que faziam sobre o processo de produção e reprodução social, a partir de algumas categorias centrais em suas teorias.

diante disso, este artigo resulta do seguinte pressuposto: quando Marx elaborou as categorias alienação, metabolismo, corpos orgânico e inorgânico, ele não desvalorizou as relações sociedade e natureza, pois as analisou, inclusive, como fruto das contradições inerentes ao capitalismo e suas formas de bloqueio à realização humana; aspectos esses que anunciam a natureza da natureza em Marx e sua rica atuali-dade teórico-metodológica, como mostraremos pela articulação entre as categorias aludidas, tendo como eixo central a questão da alienação.

alienação e metabolismo

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, de 1844, Karl Marx escre-veu que o ato da alienação humana também se relacionava à natureza (corpos inorgânico e orgânico1 com quem a sociedade mantém um

1 Há, aqui, uma distinção de cunho ontológico. O Corpo orgânico ou a natureza inorgânica (ar, minerais, água, terra) não dispõe de elementos para se reproduzirem e a natureza orgânica (plantas, animais) sim, ou seja, esta se reproduz biologicamente. No caso do ser social, há uma distinção ontológica essencial e fundante provocada pelo trabalho, que possibilitou um salto ontológico, uma ruptura com a mera reprodução biológica (a espécie humana é orgânica também) sem negar os vínculos inelimináveis com as naturezas orgânicas e inorgânicas ou corpos inorgânicos e orgânicos (Lukács, 1981; 1978; Netto; Braz, 2008).

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

processo contínuo para não perecer) em decorrência da organização do trabalho e, ao existir isso, o ser social explicitava a alienação de sua própria atividade vital e fundante, o trabalho. Assim, homens e mulheres alienavam-se individual e genericamente.

Na medida em que o trabalho estranhado 1) estranha do homem a

natureza, 2) [e homem] de si mesmo, de sua própria função ativa,

de sua atividade vital; ela estranha do homem o gênero [humano]

(Marx, 2004: 84, grifo do autor).

Prosseguindo nessa assertiva, Marx concluiu:

o trabalho estranhado faz, por conseguinte:

3) do ser genérico do homem tanto da natureza quanto da faculdade

genérica espiritual dele, um ser estranho a ele, um meio da sua exis-

tência individual. estranha do homem o seu próprio corpo, assim

como a natureza fora dele, tal como a sua essência espiritual, a sua

essência humana (Idem: 85, grifos do autor).

Ao desconhecer a natureza inorgânica sobre a qual volta a obje-tivação de seu pôr teleológico (ideação orientada para atingir certo fim, através do trabalho2), o ser humano nega-se, porque ele é parte do mundo natural, embora se distinga ontologicamente dele por criar e ampliar uma segunda natureza no decorrer da história, um mundo

2 Cabe aqui um esclarecimento. Quando Marx apontava o valor da questão teleológica, ligava sua importância ao universo do trabalho, isto é, não o vinculava ao caminhar histórico linear da humanidade. Sobre isso escreveu o próprio Karl Marx n’O 18 Brumário: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1997: 21). Desnudando tal aspecto, abordou György Lukács (1969: 10-11): “O processo global da sociedade é um processo causal, que possui suas próprias normatividades. Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem realizar suas finalidades, os resultados produzem, via de regra, algo que é inteiramente diverso daquilo que havia pretendido”. Sartre escreveu o seguinte sobre o tema: “Mas se a história me escapa, isso não resulta do fato de que eu não a faço: mas do fato que o outro também a faz” (Sartre, 2002: 75). Sendo assim, o pôr teleológico vincula-se ao trabalho, porém isso não faz com que os resultados oriundos do processo de trabalho sejam plenamente previstos e/ou dominados pelo ser social, visto que a causalidade é algo ineliminável da própria práxis produtiva, na sua insuperável dialética, no próprio movimento do real (Lukács, 1981).

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

cada vez mais social (moral, política, cultura, ciência, religião, arte, direito, mercadoria) que diminui – sem eliminar - sua dependência do ambiente. Mesmo resultando das relações de produção, a segunda natureza não deixa de incidir sobre elas, constituindo-as e sendo por elas constituída dialeticamente (Lukács, 1979; 1981).

desconhecer a relação com o mundo combina-se com o processo de negação do ser humano frente à sua atividade vital; e negar seu traba-lho é também tornar-se alheio à própria natureza. emerge daí relações desumanizadas do ser social com ele mesmo e dele para com o meio ambiente. Na visão de Giannotti (1962: 141), o momento de alienação desumanizou o ser social, revelando “[...] a maneira pela qual o homem incorpora a natureza em seu processo de trabalho, ou melhor, como a natureza vem a ser paulatinamente para o homem”. No entender de Marx, “a história mesma é uma parte efetiva da história natural, do devir da natureza até ao homem” (Ibidem: 112, grifos do autor). Fica evidente que, portanto, “para Marx, a alienação no processo do trabalho, do produto deste e das circunstâncias, está inseparavelmente ligada à alienação de si próprio, de seus semelhantes e da natureza” (Fromm, 1962: 59).

entrementes, isso assumiu caráter único com a mercantilização da força de trabalho e sua subsunção real pelo modo de produção capita-lista. então, quando o trabalho transformou-se em mercadoria, o fenô-meno da alienação ganhou proporções ostensivas, devido à separação do trabalhador ante aos seus meios diretos de vida (instrumentos de trabalho, natureza), da oposição entre capital e trabalho e da extração do trabalho excedente (gerador de mais-valia) daqueles que passaram a ser proprietários apenas da sua força de trabalho, o operário.

Quando começou a trocar sua força de trabalho, sua única merca-doria, por dinheiro pago pelo capitalista, em forma de salário, para que pudesse exercer determinada atividade na fábrica, no campo ou no mar, o trabalhador efetivou uma relação entre coisas, que se desdobrou em sua dependência total frente ao mercado, no intuito de também adquirir produtos para viver (alugar casa, comprar alimentos, roupas, utilizar os meios de transportes, diversão). Aqui, “processa-se uma descaracteri-zação das coisas e não apenas uma redução dos homens a condição de coisas” (Konder, 1965: 111). então, a natureza e suas potencialidades

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

de apropriação humana (materiais e imateriais) viraram mercadorias ou foram vistas apenas enquanto obstáculos para realizações lucrativas, como os manguezais são para os carcinicultores3 e a mata atlântica e a terra foram para os senhores de engenho, situação que atingiu cam-poneses, pescadores e indígenas na forma da acumulação primitiva4.

Forjou-se, assim, uma coisificação do mundo, uma reificação das relações sociais, uma fetichização imposta pelo capital, que se apre-sentou por meio de um conjunto vasto de mediações sociais (lazer, consumo, ideologia, cultura, política, sociabilidade) e da intensa e verticalizada divisão social do trabalho, na clara hierarquização entre capital e trabalho, entre proprietários, planejadores e/ou gerentes frente aos executores da produção. Segundo Antunes (2005: 130), “tem-se, no plano da consciência, a coisificação, a reificação; o trabalho estranhado converte-se num forte obstáculo à busca da omnilateraliedade e pleni-tude do ser”. Na realidade, “a sociedade burguesa é o mundo da inver-são, na medida em que o poder social, apesar de ser produzido pelos homens, separa-se deles e os subjuga” (Ranieri, 2001: 23), emergindo como uma potência “independente do querer e do agir dos homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir” (Marx; engels, 2007: 38).

Com a crescente expansão do mundo da mercadoria, a relação entre homens, deles com o processo produtivo e a natureza, agudi-zou-se a ocultação do caráter social do seu trabalho, de sua riqueza

3 Criadores de camarão.4 Classicamente, na origem do capitalismo e da sua dinâmica de expropriação, encontra-

se o processo da acumulação primitiva, que Marx (livro 1, vol. 2, 1982: 830) definiu do seguinte modo: “O sistema capitalista pressupõe a dissociação entre os trabalhadores e a propriedade dos meios de produção pelos quais realizam o trabalho. Quando a produção capitalista se torna independente, não se limita a manter essa dissociação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios sociais de subsistência e os de produção e converte em assalariados os produtores diretos. A chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista”. Em relação a esse processo e suas particularidades no caso brasileiro, vale ler os seguintes livros: Martins, José de Souza. O cativeiro da terra. 8ª edição. São Paulo: Hucitec, 2004; Mello, Alex Fiúza. A pesca sob o capital: a tecnologia a serviço da dominação. Belém: Editora da UFPA, 1985; SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

criadora, das relações sociais que lhes dão sentido, ao envolvê-los sob o manto fetichista.

Uma relação social definida, estabelecida entre homens, assume a

forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um

símile, temos que recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os pro-

dutos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras

autônomas que mantêm relações entre si e com os sêres humanos.

É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das

mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado

aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É

inseparável da produção de mercadorias.

Êsse fetichismo do mundo das mercadorias decorre conforme de-

monstra a análise precedente, do caráter social próprio do trabalho

que produz mercadorias (Marx, livro 1, vol. 1, 1982: 81).

esse processo de fetichização atingiu o pôr teleológico do trabalho e as relações humanas com a natureza, por meio do consumo desenfreado, exploração do trabalho (trabalho excedente) e produção para além das necessidades e possibilidades de uso.

N`O Capital, Marx elaborou um conceito importante para se enten-der a insuprimível relação do ser social com os recursos naturais, o qual chamou de mediação do metabolismo do ser humano com a natureza.

Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por

isso, uma condição de existência do homem, independentemente de

todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação

do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana

(Marx, 1983: 50, grifo meu).

Tal mediação metabólica significa, de um lado, estruturas naturais

que governam processos físicos e químicos da natureza e, por outro, formas de organização da produção material e do seu controle decisó-rio, que se apresentam na divisão social do trabalho na sociedade, em épocas distintas, com o objetivo de se apropriarem das potencialidades do ambiente natural e do mundo da produção material da vida. desse

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

modo, o trabalho e a sua forma de estruturação tornam-se peças-chave na constituição do processo sociometabólico em sua constante e inso-fismável troca com a natureza.

o conceito de metabolismo, com suas noções subordinadas de trocas

materiais e ação regulatória, permitiu que ele expressasse a relação

humana com a natureza como uma relação que abrangia tanto as

“condições impostas pela natureza” quanto a capacidade dos seres

humanos de afetar este processo (Foster, 2005: 223, grifos meus).

em Contribuição à crítica da economia política - texto de 1859 -, Marx caracterizou a centralidade do trabalho ao escrever que “[...] o trabalho é a condição natural do gênero humano, a condição – inde-pendentemente de qualquer forma social – da troca de substância entre o homem e a natureza” (Marx, 2003: 22, grifos meus).

Como aspecto do desenvolvimento histórico, a posição teleológica primária do trabalho (metabolismo direto do ser social com a natureza) passa a ser determinada pelo pôr teleológico secundário, a ampliação da segunda natureza. Todavia, no capitalismo, os valores contidos na teleologia secundária expressam relações de classe e suas formas de cooperação e de exploração, que vão interferir nas posições primárias, na qual a finalidade espelha as vontades das classes sociais dominantes.

[...] o modo de manifestação típico da necessidade passa a ser, cada

vez mais e nitidamente a depender do caso concreto, aquele de indu-

zir, impelir, coagir etc., os homens a tomarem determinadas decisões

teleológicas, ou então de impedir que eles o façam (Lukács, 1978: 10).

Ao desconhecer seu trabalho - fruto do fetichismo oriundo do mundo da mercadoria e da ideologia do capital -, o ser humano colocou também sob dinâmicas fetichistas seu metabolismo com os recursos naturais, ao ver-se, por um lado, apartado da natureza inorgânica e orgânica e, por outro, por compreender, sentir e valorizar, em várias situações, o meio ambiente como uma mercadoria capaz de gerar renda, lucro (florestas, terra, pescado, água, minério, etc.), fato que incidiu diretamente sobre o pôr teleológico e levou a superexploração dos recursos ecológicos.

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

Assim, a natureza ou muitas de suas propriedades, que eram antes ape-nas reguladas pelo valor de uso, foram subordinadas ao ritmo do valor de troca, quando foi possível ao capital fazê-lo a partir de suas forças produtivas (a exemplo da privatização de áreas do mar para a criação de pescados em fazendas marinhas, como vem acontecendo no Brasil).

István Mészáros caracterizou o capitalismo de ordem de reprodu-ção sociometabólica do capital, que ganhou proporções devastadoras social e ambientalmente em decorrência de sua produção e consumo incontroláveis mundialmente. o valor principal do capital é o de sua própria reprodutibilidade, cuja necessidade de ampliação, de caráter totalizante, vem levando aos limites do esgotamento total a natureza e as condições da existência humana, nas mais diversas regiões do planeta, ou seja,

A degradação da natureza ou a dor da devastação social não têm

qualquer significado para seu sistema de controle sociometabólico,

em relação ao imperativo absoluto de sua auto-reprodução numa

escala cada vez maior (Mészáros, 2002: 253).

Isso interfere diretamente na constituição do pôr teleológico, que clarifica a plenitude da ordem sociometabólica do capital, na qual a ciência colaborou (e colabora) decisivamente para retirar o controle decisório daqueles que trabalham e atuam diretamente no mundo da produção material, no campo ou na cidade, objetivando intensificar e salvaguardar os interesses capitalistas.

A passagem abaixo ilustra bem a presença desse fenômeno destru-tivo, em termos socioambientais.

As práticas de produção e distribuição do sistema do capital na agri-

cultura não prometem, para quem quer que seja, um futuro muito

bom, por causa do uso irresponsável e muito lucrativo de produtos

químicos que se acumulam como venenos residuais no solo, da

deterioração das águas subterrâneas, da tremenda interferência nos

ciclos do clima global em regiões vitais para o planeta, da explora-

ção e da destruição dos recursos das florestas tropicais etc. Graças à

subserviência alienada da ciência e da tecnologia às estratégias do

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

lucrativo marketing global, hoje as frutas exóticas estão disponíveis

durante o ano inteiro em todas as regiões – é claro, para quem tem

dinheiro para comprá-las, não para quem as produz sob o domínio

de meia dúzia de corporações transnacionais. Isso acontece contra

o pano de fundo de práticas irresponsáveis na produção, que todos

nós observamos impotentes. os custos envolvidos não deixam de

colocar em risco – unicamente pela maximização do lucro – as futuras

colheitas de batata e safras de arroz. Hoje, o “avanço de métodos de

produção” já coloca em risco o escasso alimento básico dos que são

compelidos a trabalhar para as “safras de exportação” e passam fome

para manter a saúde de uma economia “globalizada” paralisante

(Mészáros, Idem: 255).

Sobre isso, Marx revelou sua grande atualidade:

e todo progresso da agricultura capitalista significa progresso na arte

de despojar não só o trabalhador mas também o solo; e todo aumento

da fertilidade da terra num tempo dado significa esgotamento rápido

das fontes duradouras dessa fertilidade. [...] A produção capitalista,

portanto, só desenvolve a técnica e a combinação do progresso social

de produção, exaurindo as fontes originais de toda riqueza: a terra e

o trabalhador (Marx, livro 1, Vol. 1, 1982: 578-579).

Fenômeno similar explicita-se na aqüicultura (criação de organismos

aquáticos em cativeiro – moluscos, peixes, camarões, algas) e nas suas formas de dominação social manifestadas na concentração de capital, expropriação sócio-territorial das comunidades pesqueiras e na explo-ração intensa e instrumental da natureza, as quais se apresentam no pôr teleológico e no metabolismo quimificado dessa atividade com a natureza, contando com o servil e essencial apoio científico.

o desenvolvimento da aqüicultura tem gerado um consumo acentu-

ado de drogas terapêuticas. Apesar da dificuldade de se obter dados

reais de consumo em muitos países, na Noruega foi comprovado o

uso de 50 toneladas de antibióticos só em 1990. esta quantidade foi

aproximadamente o dobro da utilizada pela medicina humana nesse

- 162 -

Cristiano Wellington Noberto Ramalho

país. [...] o tratamento terapêutico dos organismos de cultivo com

drogas resulta na liberação de grandes quantidades de substâncias

ativas e de seus metabolitos para dentro do hábitat aquático. este

fator, em conjunto com os resíduos orgânicos dos peixes e camarões

de cultivo, agrava os quadros de poluição. os antimicrobianos acu-

mulam-se na fauna aquática (peixes e invertebrados) que circundam

as fazendas de cultivo e podem chegar a apresentar concentrações

acima dos valores aceitáveis destas substâncias. Por outro lado, estas

substâncias podem ser encontradas nos sedimentos marinhos e,

dependendo de sua natureza, podem ser metabolizadas ou podem

persistir por longos períodos (Arana, 1999: 71).

Com o modelo aqüícola vigente (de capital extensivo e intensivo), provoca-se um empobrecimento da biodiversidade e a quebra da riqueza de alimentos plurais anteriormente encontrados localmente, que se juntam à qualidade quimificada dos pescados monocultiva-dos pelas fazendas, graças aos processos industriais nelas presentes. Ademais, aliando-se a isso, há a transformação dos pescadores, antes produtores autônomos, em fiscais de gaiolas e tanques das fazendas de camarão. Assim, “mais do que fiscal, tem-se, agora, um proletário das águas” (Valencio, 2007: 85).

No capitalismo, a exploração de classe vincula-se à da natureza, já que a efetivação de uma não sobreviveria sem a outra, bem como a existência da alienação.

esta associação direta entre a exploração do proletariado e a da

natureza, a despeito de seus limites, abre um campo de reflexão

sobre a articulação entre luta de classes e a luta em defesa do meio

ambiente, em um combate comum contra a dominação do proleta-

riado (Löwy, 2004: 97).

A alienação também é ocasionada pelo fracionamento do trabalho, através da divisão social do mesmo, cujo comando (o pôr teleológico) parte de fora, e assume situação extrema na separação do produtor direto frente aos seus meios de produção e ao produto final de sua ati-vidade. Nesse fracionamento e abolição do controle dos seus meios de

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

produção, o trabalhador assalariado perdeu o comando de todo saber--fazer do ato produtivo, que foi deslocado para a máquina e definido pelo planejamento feito extrinsecamente por outrem com objetivos apenas mercantis, numa clara divisão e conflito – às vezes explícitos – entre capital e trabalho (basta lembrar dos modelos fordista, taylo-rista, toyotista e o da acumulação flexível; da subsunção do trabalho vivo pelo morto). Ao realizar sua hegemonia, o capital produziu um trabalhador (o operário) que passou a ter apenas uma função parcial que complementava outras parcialidades, objetivando atender ao valor de troca, ao trabalho abstrato.

Por exemplo, em romance datado de 1904 e que recebeu o título de O lobo do mar, Jack London narra a história do norueguês Lobo Larsen, capitão do barco escuna Ghost destinado à caça de focas no mar do Pa-cífico, para a indústria de pele na europa. Ao mesmo instante em que revelava a vida e o comportamento do mencionado capitão, London ofertou dura descrição de um cotidiano marítimo estruturado sob va-lores da sociedade capitalista, no que ela tem de mais individualista, competitiva e desumana, cuja coloração foi avivada intensamente no micro-mundo da embarcação ilustrado pelo brilhante escritor. Na escuna Ghost, o trabalho dos seus tripulantes desnuda os imperativos da existência meramente mercantil, ao voltar-se, segundo o persona-gem Humphrey Van Weyden, para “uma sórdida existência, a caçar focas para alimento da vaidade das damas que lhes vestem a pele” (London, 2001: 93), na qual “a insensibilidade daqueles homens, aos quais a organização industrial entrega a vida de outros homens, era espantosa” (Idem: 62).

Isolado dos seus meios de vida (natureza e instrumentos de traba-lho), do produto da sua atividade e subordinado ao valor de troca, o trabalhador apartou-se, em grande parte das situações, de relações mais humanizadas no seu ato produtivo.

o trabalhador assalariado cumpre com todos os requisitos de rup-

tura do metabolismo com a natureza: está separado da terra como

condição natural de produção; está separado dos instrumentos

como intermediários de seu corpo em relação à natureza externa;

está separado de um “fundo de consumo” prévio ao trabalho – de-

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

pende de vender sua força de trabalho para comer -; e está separado

do próprio processo de produção como atividade transformadora

(Foladori, 2001: 108).

Mesmo não sendo assalariados devido às mediações particula-res, o cotidiano de alguns pescadores do município de Itapissu-ma, litoral norte de Pernambuco, especialmente pelo fato desses trabalhadores não deterem os instrumentos de trabalho, reflete a dinâmica mercantil e suas imposições valorativas alienadas no como e no por que pescar; fenômeno constatado empiricamente por Lima e Quinamo (2000):

Por um lado, a maneira como se dá a subordinação dos pesca-

dores em geral, com relação aos proprietários de embarcações

e armadilhas, praticamente tira daqueles todo poder de decisão

quanto às características dos equipamentos e técnicas de pesca

utilizadas, como, por exemplo, tamanho da malha da rede e tipo

de pescaria, se de cerco, de camboa, de arrasto etc. Por outro

lado, limita acentuadamente a capacidade de ganho financeiro

do pescador, por volume de pescado, induzindo-o ao recurso de

práticas predatórias – como o uso exaustivo de rede de malha fina

e a pesca de camarão na época do defeso, por exemplo -, “para

salvar o dia-a-dia” [...] (Idem: 205).

Sendo assim, até quando vários grupos campesinos e pesqueiros são proprietários dos seus instrumentos de trabalho, isso não os torna imunes, em muitas situações, à força do capital, visto que em seu pôr teleológico e suas alternativas recebem decisivas influências da supremacia do modo de vida capitalista, de seu poder fetichista e/ou de suas imposições decorrentes da estrutura de comércio, da integração vertical da produção (as relações da empresa Sadia com os agricultores familiares no sul do Brasil e da Netuno Pescados com os pequenos aquicultores em Pernambuco são emblemáticas nesse aspecto) e dos tipos de financiamentos públicos que favorecem hie-rarquias sócio-econômicas, com pacotes tecnológicos controlados por indústrias e empresas privadas; aspectos esses que reverberam

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

no metabolismo societário dessas frações de classes com a natureza, levando-os à alienação e ao declínio de suas autonomias.

Internacionalmente estudiosos constataram:

Passo a passo o agricultor é submetido, há trinta anos na europa (e

muito antes nos estados Unidos), a uma nova fase de expropriação.

Seu objetivo é a instalação de um imenso dispositivo tecnológico

e institucional destinado a pôr fim ao que sempre tinha parecido

um processo imutável, isto é, a manutenção do controle dos agri-

cultores sobre suas reservas de sementes. Trata-se de proibir aos

agricultores o plantio de parte dos grãos que colhem, tanto pela

lei internacional, a da proteção pela organização Mundial do

Comércio (oMC) do patenteamento sobre o vivente, quanto por

uma técnica de tansgênese – batizada pela Monsanto pelo nome

explícito e já célebre de Terminator -, que permite produzir um

grão (e, em breve muitas, outras sementes) estéril, que não pode

ser novamente plantado. As conseqüências previsíveis em caso

de sucesso do capital financeiro são de uma gravidade incomen-

surável nos países pobres com grande população camponesa. A

menos que haja uma resistência social e política de grande força,

o capitalismo terá conseguido alcançar o término de seu processo

de expropriação dos produtores e de dominação do vivente. Terá

passado da expropriação dos camponeses à expropriação do direito

geral dos seres humanos de reproduzir, e em breve de se repro-

duzir, sem empregar técnicas patenteadas, sem pagar um pesado

tributo ao industrial e, por detrás, a seus acionistas e às bolsas de

valores (Chesnais; Serfati, 2003: 54, grifo dos autores).

Tudo isso interferiu (e interfere) direta e decisivamente no valor que vai se apresentar no saber-fazer produtivo, decorrente do enqua-dramento dos camponeses e pescadores e suas alternativas, através de seu pôr teleológico, aos “sutis ditames” e a eterna necessidade de reprodução do capital e de seu domínio. o valor que os fazem (cam-poneses e pescadores) objetivar seu trabalho e forjar suas alternativas, nesse caso, condena-os às vontades alheias resultantes das disputas no mercado, da própria divisão social do trabalho e, portanto, do controle

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

indireto de seu saber-fazer produtivo ancestral ou pela subsunção total do mesmo, impactando negativamente o meio ambiente.

de modo geral, ao gestar e consolidar essa dinâmica de subordina-ção na sociedade, seja indireta, seja diretamente pelo assalariamento, o capital limitou o trabalho a uma imposição externa ao ser humano, para que ele conseguisse sobreviver, tornando seu ato produtivo um mal necessário à vida e, por isso, uma atividade não-livre, um peso insuportável. o trabalhador vivencia sua atividade vital como algo extrínseco às suas vontades e, “então, ele se relaciona com ela como atividade a serviço de, sob o domínio, a violência e o jugo de outro homem” (Marx, 2004: 87). esse processo atuou, portanto, na esfera valorativa do pôr teleológico, limitando-a, aprisionando-a, deformando-a e a desumanizando, para que se edificasse a supre-macia do capital, sua reprodutibilidade, e apagasse o potencial da sociabilidade do trabalho, reificando e fetichizando as relações sociometabólicas.

3. alienação, corpo orgânico e corpo inorgânico

o corpo é o momento inicial de aprendizagem e de identidade dos grupos humanos, fato valorizado por uma diversidade de autores. Para Marx (Idem: 112), “a sensibilidade tem de ser a base de toda ciência”; segundo Mauss (2003: 407), “o corpo é o primeiro e o mais natural ins-trumento do homem”; na leitura de Hegel (1996: 133), “a consciência sensível é, no homem, a primeira, a que precede todas as outras”; e para Foucault (1979:151), “é pelo estudo dos mecanismos que penetram nos corpos, nos gestos, nos comportamentos, que é preciso construir a arqueologia das ciências humanas”.

Mesmo generalizando essa certeza, “o corpo do burguês não é o corpo do artesão ou do operário” (Le Goff; Truong, 2006: 30), pes-cador ou canavieiro. Formas de sociabilidades produzem educações corporais e sensitivas distintas no transcurso do tempo e nas me-diações sociais particulares, seja em seus aspectos materiais, seja nos ingredientes simbólicos (Ramalho, 2008). de fato, na visão de Marx, “não só pensar, portanto, mas com todos os sentidos o homem

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

é afirmado no mundo objetivo” (Ibidem: 110, grifo do autor), espe-cialmente pelo trabalho.

A questão da fruição sensível não é simples, na medida em que a vida instrumental e utilitária potencializou deformações das forças humanas (intelectuais e físicas), alienando-as, fato que esterilizou possibilidades de humanização do próprio mundo sensitivo de homens e de mulheres. Nessa vida, o indivíduo em seu trabalho expropriado “mortifica sua physis e arruína seu espírito” (Marx, op. cit: 82-83).

Por um lado, a contemporaneidade produziu riquezas materiais, culturais, científicas, sociais e individuais como nunca na história; mas tudo isso se deu sobre custos humanos terríveis e aumento da degradação ambiental, que atingiram em graus distintos às classes sociais. desse modo,

A existência sensorial é despida, num nível as necessidades básicas,

só para ser extravagantemente inflamada num outro nível. A antítese

do escravo assalariado, cegamente biologizado, é o ócio exótico, o

parasita em busca de prazeres [...] (eagleton, 1993: 149).

Assim, a fruição das forças vitais humanas sob a égide da sociedade da mercadoria voltou-se para negar a própria realização do ser humano, ao aprisioná-la em carências e torná-la, em outra ponta, demasiada-mente hedonista; retrocedeu a vida, de um lado, à “animalização” e, em contrapartida, espetacularizou a mesma em excessos existenciais frugais; impôs miséria ao mesmo instante que forjou riqueza. Tudo isso acabou tornando-se partes de um mesmo tempo histórico por compor a dinâmica avassaladora do capital e sua reprodutibilidade sobre o trabalho, na sua alienação.

de fato, com a revolução industrial, agudização da desigualdade entre as classes sociais e o acelerado crescimento das cidades européias, engels - em 1871 - constatou que os piores locais de moradia e os am-bientes mais insalubres eram os espaços onde residia a classe operária, situação que a tornava vítima de várias enfermidades.

As ciências naturais modernas provaram que os “bairros sujos”,

onde se amontoam os trabalhadores, constituem focos de todas as

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

epidemias que periodicamente invadem as nossas cidades. os germes

da cólera, do tifo, da febre tifóide, da varíola e de outras doenças

devastadoras espalham-se no ar pestilento e nas águas poluídas

desses bairros operários [...] (engels, 1975: 45).

Nota-se que a expansão das forças produtivas provocou em seu ca-minho de consolidação devastações humanas e naturais mais sentidas pelos setores populares:

No desenvolvimento das forças produtivas advém uma fase em que

surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no marco

das relações existentes, causam somente malefícios e não são

mais forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e

dinheiro) – e, ligado a isso, surge uma classe que tem de suportar

todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens [...]

(Marx; engels, Idem: 41) 5.

Para melhor desvelar tal questão em Marx, vale recuperar as noções de corpo orgânico e inorgânico.

A primeira diz respeito ao corpo humano (suas funções metabólicas, que precisam da inorgânica para sobreviver porque são partes dela) e a segunda noção refere-se à natureza (suas leis e estruturas físico--biológicas de funcionamento dos ecossistemas, água, solo, etc.). Através da força de trabalho, o corpo humano e seus sentidos mantêm-se em conexão insuperável com o corpo inorgânico mediado pelo trabalho, enquanto elo insofismável da existência humana mesmo que esta se encontre (ou não) sob relações e condições alienadas. Na realidade, “não

5 Essa passagem não estaria se contrapondo a um tipo de crítica que tenta associar o pensamento de Marx à noção de que o mesmo seria defensor de um modelo produtivista? Por isso, é essencial resgatar o que escreveu Michael Löwy: “Os ecologistas acusam Marx e Engels de produtivismo. Esta acusação é justificada? Não, na medida em que ninguém denunciou tanto quanto Marx a lógica capitalista de produção pela produção, a acumulação de capital, de riquezas e de mercadorias como um fim em si. A idéia mesma de socialismo – ao contrário de suas miseráveis contrafações burocráticas – é a de uma produção de valores de uso, de bens necessários à satisfação das necessidades humanas. O objetivo supremo do progresso técnico para Marx não é o crescimento infinito de bens (“o ter”) mas a redução da jornada de trabalho e o crescimento do tempo livre (“o ser”) (Löwy, 2005: 23-24).

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

se pode considerar o ser social independentemente do ser da natureza, como uma antítese que o exclui” (Lukács, 1992: 93).

o processo sociometabólico, a partir das formas de manifestação da vida e de sua (re)produção material, é inerente à existência de homens e mulheres, desnudando o caráter integrado do ser humano com o meio ambiente, com seu corpo inorgânico, seja no aspecto mais imediato do trabalho ou não.

A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza en-

quanto ela mesma não é corpo humano. o homem vive da natureza

significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num

processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do

homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido

senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o

homem é uma parte da natureza (Marx, op. cit.: 84, grifos do autor)6.

No passado, as formas de organização societárias não capitalistas

tinham na natureza “prolongamentos de seu próprio corpo” (Marx, 1991: 85), extensão inevitável de objetivação do mundo humano subjetivo e da criação sensível do ser social, enquanto manifestação concreta da vida.

Na atual base do processo de exploração e de alheamento, situa-se a mercantilização das relações sociais, em especial o da força de trabalho:

Por fôrça de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o

conjunto das faculdades físicas e mentais, existentes no corpo e na

personalidade viva de um ser humano, as quais êle põe em ação tôda

a vez que produz valôres-de-uso de qualquer espécie (Marx, Livro

1, Vol. 1, 1982: 187).

Ao trocar suas forças naturais por um salário, o trabalhador coloca suas

energias corporais e intelectuais (seu trabalho) a serviço do comprador

6 Marx, nesse texto, vai incluir na sua noção de natureza inorgânica (ou corpo inorgânico) também a orgânica, que não está vinculada ao próprio orgânico (constituição biológica) do ser social, isto é, plantas e animais (os seres vivos). Questão que recebeu maior clareza em escritos posteriores, a partir de 3 distinções ontológicas. Acerca dessa distinção ver nota 3.

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

delas. A mais essencial efetivação humana é consumida no processo de produção pelo capitalista, deixando de pertencer aos produtores diretos para ser do proprietário da empresa que pagou pela utilização e fruição sensível da mesma, como acontece com as máquinas e o produto final da atividade produtiva (a mercadoria). Ademais, nessa venda, explicita-se o que vai ser executado pelo intelecto e o corpo, que funcionam para responder as “sutis” imposições oriundas da previa-ideação do capitalista e resultam num determinado produto final. Aqui, o fazer empobrecido, graças ao trabalho fragmentado e em série, resulta de um saber que nasce asfixiado pelo pôr teleológico alheio, tornando-se meras práticas instrumentais.

deforma o trabalhador monstruosamente, levando-o artificialmente

a desenvolver uma habilidade parcial, à custa da repressão de um

mundo de instintos e capacidades produtivas, lembrando aquela

prática das regiões platinas onde se mata um animal apenas para

tirar-lhe a pele ou o sebo. Não só o trabalho é dividido e suas

diferentes frações distribuídas entre os indivíduos, mas o próprio

indivíduo é mutilado e transformado no aparelho automático de um

trabalho parcial, tornando-se, assim, realidade a fábula absurda de

Menennius Agrippa que representa um ser humano como simples

fragmento de seu próprio corpo (Idem: 412-413).

o trabalho subsumido pelo capital fez com que “as diferentes funções que o indivíduo pode exercer são reduzidas ao uma só, ou a algumas. o corpo global do indivíduo se reduz a um corte do próprio corpo” (Fausto, 2002: 116).

Sobre esse fenômeno, Christophe dejours (1992) afirmou, ao fazer um estudo sobre a psicopatologia do trabalho, que:

A alienação seria, talvez, a etapa necessária e primeira, da qual falamos,

a propósito da sujeição do corpo. A organização do trabalho aí aparece

como vínculo da vontade de um outro, a tal ponto poderosa que, no

fim, o trabalhador se sente habitado por um estranho (Idem: 137).

É equivocado pensar que os usos parciais e mecânicos do corpo sejam aspectos do passado industrial. Atualmente inúmeras pessoas

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

trabalham em funções de caixas de supermercados, bancos, empresas de telemarketing e/ou tele-atendimento e são vítimas das lesões por esforços repetitivos (Ler), ficando (várias delas) inutilizadas em suas vidas produtivas, situação que já se transformou em um problema de saúde pública. No trabalho do corte da cana-de-açúcar, essa questão deixa de ser “apenas” lesões físicas, para se transformar em perdas de vidas dos canavieiros exauridos pelo esforço sobre-humano a que submetem as energias vitais de seus corpos pela imposição do capital.

Já em alguns empreendimentos aquícolas o uso de produtos quími-cos revela os impactos danosos sobre o corpo dos assalariados das águas:

[...] as pessoas que manipulam tais antibióticos nas instalações de

aqüicultura podem chegar a sofrer conseqüências devido ao contato

prolongado com estas substâncias. Um exemplo disso é a anemia

aplásica irreversível, provocada pelo cloranfenicol, doença que é

fatal em mais de 70% dos casos (Arana, Idem: 71).

Há mais de 1 século Marx concluiu que em grupos nos quais a sociabi-lidade do capital tornou-se força absoluta, a natureza e o modo de viver de homens e mulheres expressaram os limites dessa supremacia, de um novo e devastador sociometabolismo. desse modo, a subordinação e o casamento entre a indústria e a agricultura revelam a quebra de antigos metabolismos e a chegada de um novo entre o corpo orgânico e o inorgânico.

A grande indústria e a grande agricultura industrialmente empre-

endida atuam em conjunto. Se na origem se distinguem porque a

primeira devasta e arruína mais a força de trabalho, a força natural do

homem, e a segunda, mais diretamente, a força natural do solo, mais

tarde, em seu desenvolvimento, dão-se as mãos: o sistema industrial

no campo passa a debilitar também os trabalhadores, e a indústria e

o comercio, a proporcionar à agricultura os meios de esgotar a terra

(Marx, Livro 3, Vol. 6, 2008: 1071).

No caso de trabalhadores não atingidos pela proletarização, como

é a situação dos pescadores artesanais, a dinâmica mercantil fez-se presente da seguinte forma:

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

A subordinação ao capital ainda leva a outras limitações. em inúme-

ras situações, vários pescadores depredam, por exemplo, a natureza,

com a utilização de redes de malha fina, com a captura de pescados

em fase juvenil e/ou com excesso de extração de pescados, levando

à diminuição de espécies, como aconteceu com a lagosta em muitas

localidades brasileiras. Porém é interessante notar como isso passa

pela auto-exploração do próprio corpo, que se efetiva na crescente

subordinação ao mercado (comércios, atravessadores e empresas de

pesca) e no aumento de miséria dos pescadores em cidades litorâ-

neas, produzindo um estranhamento do metabolismo inorgânico e

orgânico (Ramalho, 2007: 209-210).

As práticas sociais passaram a estabelecer uma atitude utilitária com o meio ambiente, cujo valor da sociabilidade do trabalho diluiu-se no valor da sociabilidade do capital e em seu fazer alienante. o apareci-mento e a supremacia do capital sobre o trabalho afetaram e mudaram radicalmente o metabolismo social, impondo dinâmicas intensas e uti-litárias, tanto ao corpo orgânico, quanto ao corpo inorgânico, forjando desumanidades nos dois.

[...] então a “racionalidade” do capitalismo passou a predominar, su-

primindo a convivência dos elos inerentes do homem com a natureza.

Não é de surpreender, portanto, que a natureza enquadrada nesse

quadro revisto seja degradada, desumanizada (Mészáros, 1981: 175).

A relação com o meio ambiente, na racionalidade utilitária do capitalismo, é antagônica à realização da naturalização do humano e da humanização da natureza, já que a depredação ambiental reflete o instante em que o ser humano desconhece-se na efetivação sensível da sua própria natureza, gerando alienações da fruição humana frente ao meio ambiente e em relação a si e ao gênero humano. de qualquer forma, “ainda que em figura estranhada, é a natureza antropológica verdadeira” (Marx, 2004: 112, grifo do autor) que aí aparece, na qualidade de sua manifestação sensível no seu sociometabolismo, que se concretiza no momento em que põe em ação as forças vitais da natureza humana, objetivando-as, seja em situações favoráveis ou não à sua realização.

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

A natureza antropológica é a própria manifestação da vida capaz de revelar existências societárias, em suas formas de sociabilidades, conte-údos históricos e culturais. de maneira geral, a natureza antropológica revela-se nos corpos inorgânicos e orgânicos, no constante processo histórico do fazer da sociedade sobre si e sobre o meio ambiente, de dotá-lo de significados culturais, políticos, econômicos e sociais.

Como um ser social produtivo, ele transforma o mundo à sua volta

de uma maneira específica, deixando nele a sua marca; a natureza

se torna, assim, a “natureza antropológica” nessa relação entre

homem e natureza; tudo passa a ser, pelo menos potencialmente,

parte das relações humanas (a natureza, nessas relações, surge sob

uma grande variedade de formas, indo dos elementos materiais

de utilidade a objetos de hipótese científica e de prazer estético)

(Mészáros, Idem: 155).

A maneira específica e as marcas humanas (concretas e imateriais) na natureza são objetivações oriundas de momentos históricos, de formas de existência humana, ora traduzidas em mediações importantes como os valores religiosos, mágicos, culturais e políticos, ora pelas dinâmicas sócio-econômicas, sem deixarem de ter no trabalho aspectos relevantes, fundamentalmente em várias populações tradicionais (pescadores, camponeses, quilombolas).

As marcas societárias revelam também a natureza antropológica alienada de muitos sujeitos sociais. A saber, em decorrência da inten-sificação do domínio do capital, houve uma oposição entre homem e a natureza ao apartá-lo cada vez mais de suas potencialidades humanas, de sua existência sensível humanizada, do seu trabalho feito de maneira plena e, com isso, da sua própria natureza inorgânica. Assim sendo, o processo de alheamento do corpo orgânico (humano) para o inorgânico aparece como resultado, em grande medida, da condição de subalterni-dade socioeconômica e das formas de expropriação, fundamentalmente forjada no decorrer da história, do apogeu da mercantilização da vida humana e da sua relação mediadora com o corpo inorgânico.

o meio ambiente emerge ao trabalhador assalariado ou não, em várias situações, como ser extrínseco a ele, onde o mesmo não realiza

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

sua subjetividade e não se reconhece como parte da natureza; negação que atinge, embora guarde particularidades, também aos donos dos meios de produção. Ambas as classes também passam a desconhecer à natureza. Seus sentidos estão educados para vidas fragmentadas e parciais. Assim, até mesmo o burguês torna-se vítima das contradições do modo de produção burguês, embora em grau distinto qualitativa e quantitativamente.

A moderna sociedade burguesa, com suas relações de produção,

troca e propriedade, sociedade que deu surgimento a gigantescos

meios de produção e troca, assemelha-se ao feiticeiro que perdeu

o controle dos poderes infernais que pôs em movimento com suas

palavras mágicas (Marx; engels, 2006: 39).

Gilberto Freyre, apesar de não identificar esse processo como alie-nação e tampouco ser um marxista, construiu um exemplo importante na quebra dessa conexão humanizada (corpo orgânico e inorgânico) ao descrever o processo de expansão dos canaviais sobre a ecologia e os homens da zona mata.

A monocultura da cana no Nordeste acabou separando o homem da

própria água dos rios; separando-os dos próprios animais – “bichos

do mato” desprezíveis ou então considerados no seu aspecto único de

inimigos da cana, que era preciso conservar à distância dos engenhos

(como os próprios bois que não fosse os de carro). e não falemos aqui

da distância social imensa que a monocultura aprofundou, como

nenhuma outra força, entre dois grupos de homens – os que traba-

lham no fabrico do açúcar e os que vivem mal ou volutuosamente

dele (Freyre, 2004: 81).

o alheamento e a desumanização da natureza antropológica geraram

sistemáticas depredações dos rios, que se voltaram sobre o ser humano. Assim, os rios pernambucanos (Goiana, Una, Beberibe, Capibaribe, Ja-boatão e Ipojuca) foram vitimados pela forma de produção econômica unilateral e, por isso, hostil do açúcar, que se fez, a qualquer preço, sobre o metabolismo do seu próprio corpo inorgânico, desrespeitando-o

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

ao alienar-se dele. Freyre chegou a revelar esse impacto sobre popula-ções ribeirinhas:

esses rios secaram na paisagem social do Nordeste da cana-de-açúcar.

em lugar deles correm uns rios sujos, sem dignidade nenhuma, dos

quais os donos das usinas fazem o que querem. e esses rios assim

prostituídos quando um dia se revoltam é a esmo e à toa, engolindo

os mucambos dos pobres que ainda moram pelas suas margens e

ainda tomam banho nas suas águas amarelentas ou pardas como se

o mundo inteiro mijasse ou defecasse nelas (Idem: 71).

o trecho acima de Freyre lembra uma passagem escrita por Friedrich engels - em 1845 - sobre as condições degradantes dos bairros operários e do sociometabolismo desumanizado refletido também no uso de um rio na região de Manchester.

embaixo corre, ou melhor, estagna o Irk, estreito curso d´água,

negro, nauseabundo, cheio de imundície e detritos que lança sobre

a margem direita, mais baixa; aí, no período da seca, alinha-se uma

série de charcos lamacentos, esverdeados e fétidos, do fundo dos

quais sobem bolhas de gás mefítico, cujo cheiro, sentido mesmo do

alto da ponte, quarenta ou cinqüenta pés acima da água, é insupor-

tável; ademais, o próprio rio tem seu curso detido a cada passo por

barragens, junto às quais se depositam e apodrecem lama e detritos.

Acima da ponte, vêem-se grandes curtumes e, mais acima ainda,

tinturarias, moinhos para pulverizar ossos e usinas de gás cujas

águas servidas e dejetos vão todos parar no Irk (que também recebe

os esgotos) – é fácil imaginar, pois, a natureza dos resíduos que se

acumulam no leito. Abaixo da ponte, avistam-se os montes de lixo,

as imundícies, a sujeira e degradação dos pátios situados na escarpa

margem esquerda (engels, 2008: 92-93).

Mesmo que Freyre não mencionasse a relação do ser humano com a natureza enquanto processo sociometabólico alienado, torna-se evi-dente que, em sua compreensão, o mundo estruturado pela produção açucareira, na sua expansão efetivada através das usinas, empobreceu

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

percepções, olhares, metabolismos, sensibilidades humanas diante do seu corpo inorgânico, com o empobrecimento do solo, dos rios, da fauna e do conhecimento humano acerca da ecologia local.

É possível relacionar, por um lado, o monocultivo canavieiro com o empobrecimento dos sentidos humanos e a deformação da vida, e, por outro, conectar a maior biodiversidade ambiental com a maior “biodi-versidade” de sentidos humanos mais educados e capazes de dialogar e compreender o corpo inorgânico. Nesse caso, a produção econômica e a dinâmica ecológica estão profundamente relacionadas com o fazer de uma educação sensitiva, existencial, de homens e mulheres.

Assim, saber e sentidos especializados caminham articulados, em boa medida, para edificação de impactos ambientais. diegues (2004) oferta-nos um exemplo disso:

Cada vez mais, as chamadas pescas tradicionais artesanais foram

incorporadas ao mercado e uma das conseqüências desse processo

foi uma maior especialização numa só atividade e o abandono de

outras. o efeito combinado da expansão da pesca industrial e as

transformações na pesca artesanal têm levado freqüentemente à

sobrepesca (Idem: 37).

essa questão vai reverberar na conformação sensitiva, pois tipos de técnicas e de empregos tecnológicos gestão e são gestadores de educa-ções corporais distintas.

A existência sensível, portanto, vincula-se, em grande medida, à organização material da existência dos indivíduos em seu processo de desenvolvimento e criação (no metabolismo humano com a natu-reza), que reproduz e desenvolve também os sentidos humanos, como pressupostos dessa organização. Assim, a produção objetiva da vida humana tornou-se:

[...] tanto uma pré-condição de sua atividade, como é sua própria

pele, como são seus órgãos sensoriais, pois toda a pele, e todos os

órgãos dos sentidos são, também, desenvolvidos, reproduzidos,

etc., no processo da vida, quanto pressupostos deste processo de

reprodução (Marx, 1991: 78).

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A NATUREZA DA NATUREZA EM MARX

o desvirtuamento da relação verdadeiramente humanizada em re-lação ao meio ambiente forjou unilateralizações da vida do ser social, com o desconhecimento das potencialidades dos seus corpos orgânico e inorgânico, por exemplo. A anti-naturalização do humano torna-se igual à desumanização da natureza inorgânica. A exploração capitalista é, sobretudo, uma exploração corporal orgânica e inorgânica.

os limites da relação sociometabólica, no que concerne ao vínculo ineliminável do corpo orgânico com o corpo inorgânico, expressam os processos alienantes vividos sob a hegemonia do modo de vida capi-talista, da sua lógica de reprodução, da valorização das suas relações mercantis e das formas de exploração humana e ambiental nelas (e por elas) engendradas.

dessa maneira, o embrutecimento do ser social e o empobrecimento dos sentidos humanos aliam-se e se desnudam nos impactos negati-vos sobre a natureza e sobre a vida humana no planeta, revelando as características sociometabólicas de nossa sociedade, de nosso tempo histórico e do modo de estruturação do capitalismo.

4. conclusÃo

Para Marx e engels, a existência do ser social liga-se ao seu ineli-minável metabolismo com a natureza e suas formas, no capitalismo, de alienação. A partir daí descortinam-se distinções ontológicas, trans-formações históricas, o desenvolvimento das formas de produção e de reprodução social, bem como as mediações societárias experienciadas e construídas por homens e mulheres através de suas maneiras de ver, sentir, representar, agir e experimentar o mundo e as naturezas orgânica e inorgânica.

Nesse sentido, as categorias alienação, metabolismo, corpo orgâ-nico e corpo inorgânico ganham sentido, articulam-se e se alimentam diacrônica e sincronicamente, desnudando a natureza da natureza em Marx e a importância do tema da alienação.

Ademais, é notável perceber como Marx não desloca a história huma-na da história da natureza e a história da natureza da história humana em sua processualidade. deslocar seria apagar, por um lado, do corpo

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Cristiano Wellington Noberto Ramalho

inorgânico as bases para melhor desvelar muito de suas conformações, conteúdos e ritmos, e, do outro, negaria ao ser social sua riqueza material e espiritual, a sua própria natureza e marcas antropológicas, seu fazer histórico e, assim, humano. Por isso, quando Marx e engels afirmaram a existência de uma única ciência, a da história, isso não ecoa sem sen-tido, mas com qualidades insofismáveis, inclusive interdisciplinares.

Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A história

pode ser examinada de dois lados, dividida em história da natureza

e história dos homens. os dois lados não podem, no entanto, ser

separados; enquanto existirem homens, história da natureza e his-

tória dos homens se condicionarão reciprocamente (Marx; engels,

2007: 87-88)7.

Nos dias de hoje, separar natureza e sociedade, ao dicotomizá-las

agudamente, especialmente no atual quadro de crise planetária ambien-tal, é reduzir o pensamento social à mera especulação, uma simples e vulgar transcendência negadora da matéria. Ver e compreender natureza e a sociedade como vínculos sólidos e insuprimíveis – particularmente para o ser social e resguardando sua ontologia e segunda natureza – mostra, por si só, a força de muitas das elaborações de Marx e engels.

olhar o tema natureza e sociedade a partir das influências de Marx é resgatar algo clássico e fundante para os marcos das humanidades, das ciências sociais. Voltar a Marx não significa estar ausente do nosso tempo presente e da necessidade de melhor compreendê-lo cientificamente, mas é trazer consigo o atributo de revigorar nossa análise para que possamos ser mais inventivos, profundos, críticos e por que não atuais.

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7 O presente trecho é uma nota de rodapé.

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resumo

Atualmente, a relação entre identidade maranhense e manifestações culturais de caráter popular e negro – como o bumba-meu-boi e o tambor de mina – é apresentada como harmônica, atávica e natural. entretanto, uma análise atenta desse fenômeno evidencia, em primeiro lugar, seu caráter histórico, já que é relativamente recente a identificação positiva de práticas culturais ditas populares ou negras com a identidade do Maranhão. em segundo lugar, trata-se de um processo construído em meio a dissensos, ambigüidades, conflitos e tensões. em terceiro lugar, as teias desse fenômeno são, antes de tudo, as múltiplas diferenças e desigualdades existentes na região.

Palavras-chave: identidade regional, diferenças, desigualdades, história do Maranhão

O pROCESSO DE FORMAÇÃO DE

“IDENtIDADE MARANHENSE” EM

MEADOS DO SÉCUlO XX*

Antonio evaldo Almeida Barros*

* O presente artigo consiste, sobretudo, numa adaptação de Barros (2007; 2009). ** Professor assistente da área de História do Curso de Ciências Humanas da Universidade

Federal do Maranhão (UFMA) – Campus III. Licenciado em História pela UFMA, Licenciando em Filosofia pelo Instituto de Estudos Superiores do Maranhão, Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia e Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]

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Antonio Evaldo Almeida Barros

the Formation Process oF a “maranhense identitY” in the middle oF the XXth centurY

abstract

Currently, the relationship between Maranhense identity and popular and black cultural performances – like the Bumba-meu-boi and the tambor de mina – is presented as harmonious, natural and atavistic. However, a careful analysis of this phenomenon shows, firstly, its historic character; in fact, is relatively recent the posi-tive identification of popular and black cultural practices with the identity of Maranhão. Secondly, it is a process built in the midst of disagreements, ambiguities, conflicts and tensions. Thirdly, this phenomenon is formed in the multiple differences and inequali-ties in the region.

Keywords: regional identity, differences, inequalities, history of Maranhão

Hodiernamente, a relação entre o que se convencionou denomi-nar de identidade maranhense e manifestações culturais de caráter popular e negro – como o bumba-meu-boi e o tambor de mina – é frequentemente apresentada como harmônica, atávica e natural. entretanto, uma análise atenta desse fenômeno evidencia, em pri-meiro lugar, seu caráter histórico, já que a identificação positiva de práticas culturais ditas populares ou negras com a identidade do Maranhão (hoje afirmada como maranhensidade) é relativamente recente, tendo iniciado sua consolidação sobretudo a partir dos anos 1930. em segundo lugar, trata-se de um processo construído em meio a dissensos, ambigüidades, conflitos e tensões. em ter-ceiro lugar, as teias desse fenômeno são antes de tudo as múltiplas diferenças, a exemplo das diferenças sociais e raciais que, mais ou menos inventadas, são usadas para justificar desigualdades bas-tante concretas. É exatamente este fenômeno social, observável de maneira paradigmática em meados do século XX, que se pretende aqui analisar, destacando-se como determinadas manifestações culturais, também identificáveis como heranças étnico-culturais,

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O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE “IDENTIDADE MARANHENSE” EM MEADOS DO SÉCULO XX

conformam-se em meio aos processos de modelação de identidade maranhense.1

A dois graus ao sul do equador, na fronteira sociogeográfica entre a Amazônia e o Nordeste do Brasil, o Maranhão é atualmente co-nhecido e propagandeado por ter a única capital brasileira fundada por franceses (e que também é Patrimônio Histórico da Humanidade devido ao seu acervo arquitetônico – o mais homogêneo de origem portuguesa nas Américas) e, particularmente, pela riqueza e diversi-dade de sua cultura e religiosidade popular e negra. esta diversidade se relaciona ao conjunto múltiplo de povos que formaram essa região e à heterogeneidade das interações entre eles estabelecidas desde o período colonial. eram diversos os povos nativos que habitavam esse torrão quando da vinda dos primeiros europeus no século XVI. A es-trutura social da região foi ainda mais complexificada com a chegada massiva de africanos a partir do século XVIII, quando o Maranhão, assim como a Bahia, passou a se constituir como uma das áreas mais negras do Brasil e, do mesmo modo que a Amazônia, continuou uma importante região indígena.

A identificação positiva da identidade regional com elementos populares e negromestiços, e não somente com aspectos brancos e eurocentrados (a exemplo da identificação de São Luís e do Mara-nhão como Atenas Brasileira), é um processo que se construiria de maneira intensa especialmente a partir do segundo terço do século XX. Certamente, a análise desse fenômeno tem muito a dizer sobre as histórias de diferentes sujeitos, particularmente pobres e negros do Maranhão. Identidade maranhense – isto é, o processo por meio do qual o maranhense e o Maranhão são demarcados, definidos, ne-gociados – parece ter sido modelada tanto nos caminhos da “cultura” e da “tradição” como nas trilhas do “povo” e da “raça”. Além disso, a definição de identidade maranhense, o processo de identificação

1 Tenho analisado como cultura, tradição e identidade se processam enquanto construções cujo papel é fundamental na representação da região. Em documentos de época, a expressão mais utilizada para demarcar identidade maranhense é “tradições maranhenses”. Entretanto, tão ou mais importantes que essas nomeações diretas, em geral reveladoras sobretudo da visão das elites letradas, são os múltiplos meios através dos quais a região era vivida e representada, o que conduz a um leque mais amplo de práticas e representações sociais.

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dos símbolos vistos como “adequados” para compor o quadro das “tradições regionais”, constituiria uma ocasião significativa para se observar formas de teatralização do poder, para se notar modos como os sujeitos acionam determinadas estratégias e negociam entre si em uma sociedade hierarquizada.2

2 Perspectivas teóricas que norteiam estudos sobre identidades regionais têm se fixado basicamente em evidenciar que elas são invenções e construções. Dá-se, aqui, particular atenção às produções dos intelectuais e artistas. Por exemplo, Alburquerque Júnior (1994) analisa “a invenção do Nordeste” partindo sobretudo do conceito foucaultiano de “episteme” – conjunto de condições que possibilitariam a emergência de certas formas de pensar em dada cultura e tempo; R. Corrêa (1993), H. Corrêa (2003) e Lacroix (2002), interessados nos processos de “invenção” e “construção” dos sentidos do Maranhão e do maranhense, dão especial atenção à atuação de alguns intelectuais nesse processo, tanto na construção do Maranhão erudito, ateniense (Corrêa, 1993) e francês (Lacroix, 2002) quanto na invenção do Maranhão popular (Corrêa, 2003). Como notaria Bourdieu (1989), a região é, “em primeiro lugar, representação”, a identidade regional é um produto da construção humana, a região é uma construção do sujeito. Ainda neste viés teórico, alguns trabalhos acentuariam o caráter ideológico dessas construções identitárias. Estudando “a Idéia de Bahia”, embasando-se especialmente em Homi Bhabha (1990, 1992), Pinho (1998) entende que “baianidade” é “um objeto discursivo construído e reposto como argamassa ideológica para a Bahia como comunidade imaginada e como ‘dissolvente’ simbólico de contradições raciais, de modo a concorrer para a construção do consenso político (hegemonia), base para a dominação”. Analisando “paulistanidade” (“ideologia da paulistanidade”, “regionalismo paulista”), tendo como norte teórico Leite (1983), Cerri (1998) discute “a construção de determinadas imagens utilizando a história tradicional por parte dos intelectuais da oligarquia paulista, bem como a projeção dessas características histórico-tradicionais dessa ideologia através do tempo via ensino público”. Uma outra perspectiva interpretativa, ainda pouco explorada, têm se ocupado com o problema das diferentes experiências que os sujeitos podem vivenciar redefinindo e transformando aquelas identidades. Este seria o caso de Albernaz (2004), que estuda identidade maranhense e analisa processos que demarcam essa identidade em meio a políticas, narrativas e instituições, sobretudo a partir dos anos 1960, dando especial atenção à questão da “experiência”, como pensada por Thompson (1981). Para Albernaz (2004: 296), mais significativo que insistir na discussão de processos de “invenção”, o que traz “um certo tom de denúncia, que parece ter subjacente uma intenção de desnudar a falsidade das afirmações feitas para exprimir identidade”, e “construção”, o que seria redundante, pois “tudo na cultura humana é construção”, de identidades regionais, é mostrar como elas são transformadas, afirmadas, como funcionam, como operam com desigualdades. Penso que esses dois prismas precisam se complementar. Desse modo, só faria sentido analisar processos de modelação e (re)invenção de identidade maranhense inserindo-a no conjunto das relações sociais e mudanças históricas das quais ela própria é agente e produto.

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1. A adaptação de identidade maranhense em meados do século XX

Seria difícil entender como identidade maranhense é transformada a partir de final dos anos 1930 sem considerar diversas práticas, insti-tuições e representações de caráter nacional e mesmo global, uma vez que, algumas vezes, elas se coadunam aos usos do local. A maioria delas se efetiva entre as décadas de 1930 e 1960. Algumas se iniciam antes, mas se intensificam nesse período.

É preciso considerar o estado Novo, que institui uma política ao mesmo tempo paternalista e repressiva em relação às culturas popular e negra, de “louvação” a “raça negra”, modelo de trabalhadores (Gomes, 1988), mas também período de forte disciplinamento e perseguição a elementos das manifestações de cultura popular e negra (Matos, 1982); a institucionalização da ação do estado brasileiro no campo da cultura, quando, entre 1937 e 1966, a preservação dos bens de valor cultural visava desenvolver atividades como estudar, documentar, consolidar e divulgar os bens culturais isolados, promovendo um mapeamento cujo objetivo era não deixar que esses bens desaparecessem em ruínas (Telles, 1977); a representação da nação como democracia racial e como positivamente mestiça a partir dos anos 1920 e de modo mais intenso a partir da década de 30, no Brasil (ortiz, 1994) e em outros países da América Latina, como México e Cuba (Stepan, 1991); o debate em torno da questão nacional retomado no pós-guerra (1946-1964), no qual se apresenta a “necessidade de uma vanguarda para ajudar a produzir uma autêntica cultura nacional para o povo, categoria vaga e policlassita” (oliven, 2003: 216); o modernismo, um projeto comprometido com a tradição que buscava nas classes populares os motivos da cultura nacional, ocupando a atenção de seus intelectuais a apreciação de questões nas quais se imbricavam modernidade, brasilidade, tradição e origens populares (Moraes, 1978); o movimento regionalista, que pretendia buscar as raízes da região, no caso o Nordeste, inventando, legitimando ou supondo a existência de tradições, identidades e di-ferenças regionais dentro do território nacional (Albuquerque Júnior, 1994); o movimento folclórico que, pensando encontrar nas “obras do povo” os sinais de brasilidade comumente identificados com culturas e

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identidades afro-brasileiras, tem uma forte mobilização nacional entre 1947 e 1964 (Vilhena, 1997); as discussões levantadas pelos congressos afro-brasileiros realizados em Recife (1934) e Salvador (1937) em torno do “problema do negro” no território nacional; e a institucionalização acadêmica das discussões sobre as relações entre negros e brancos no Brasil, a partir dos anos 1930 (Sansone, 2002). em grande medida, os processos de adaptação de identidade maranhense nos anos 1937-65 po-dem ser interpretados como produtos e agentes dessas transformações.

Se o processo de centralização se acentua com o estado Novo, o caso do Maranhão sugere que esse poder estatal também contribuiu, através da estruturação de máquinas administrativas nos estados, concedendo poder político a homens da região, e da ambivalente relação com o “povo”, para a promoção de novas formas de pensar regiões dentro da nação. A partir de então, de modo cada vez mais freqüente, intelectuais, políticos, jorna-listas e artistas, e não somente os populares, passam a representar a região como popular e negra. A primeira metade da década de 1960 se apresenta como outro bom momento para refletir sobre esta história. em 1962, ano festivo, ocorre a celebração oficial de comemoração do aniversário de 350 anos de São Luís. Na ocasião, louvavam-se, através de desfiles, encenações, recitais, pelas ruas e praças da capital, ao mesmo tempo, a origem francesa e ateniense da cidade e suas culturas de marca popular, mestiça e negra. em 1965, um grupo de tambor de mina se apresentou nos jardins do Palácio dos Leões, sede do governo do estado, para o pre-sidente da República, Castelo Branco, e para o governador, José Sarney, e ministros de estado. estes eventos podem ser vistos como marcos da emergência de um outro cenário, o da “cultura [popular e negra] no poder ‘instituído’”, quando essa cultura “se ‘reifica’ como estratégia de luta e embate, pois se há um poder nas representações culturais, existe um duplo poder nas representações culturais quando estão no poder” (Santos, 2005: 234). Assim como na Bahia e em outros estados do Brasil, no Maranhão esse fenômeno se intensificará nos anos 1960-70, com a criação, pelo governo estadual, de diversos órgãos e instituições que privilegiam a cultura dita popular (Albernaz, 2004).

A adaptação porque passou identidade maranhense em meados do século XX poderia ser visualizada através de três movimentos comple-mentares e interdependentes, a seguir especificados.

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1.1 Louvando “a brancura lirial de nossas tradições gloriosas” e perseguindo e disciplinando a “herança perniciosa”

As manifestações de cultura e religiosidade popular, mestiça e negra, especialmente bumba-meu-boi, tambor de mina e pajelança, são perce-bidas por membros da imprensa escrita, do clero e da intelectualidade como herança perniciosa dos antepassados índios e pretos do povo maranhense. Trata-se da perseverança de representações que têm como modelo uma dada europa, sendo os ideais de civilização e progresso os nortes que guiavam a produção de textos e falas. Se, de um lado, aquelas manifestações são identificadas como sinais de decadência da região, de outro, identidade maranhense é repetida e insistentemente construída como refinada, erudita e branco-européia; o Maranhão é reatualizado como Atenas Brasileira e São Luís como única capital brasileira fundada por franceses.

Na tentativa de construção da identidade nacional sob o patrocínio do estado Imperial, no início do século XIX, uma série de intelectuais e poetas maranhenses começou a se destacar no plano nacional. Por causa dessa cultura inclinada às letras, a região recebeu (ou se deu!) o aposto de “Atenas Brasileira”. essa condição, de ateniense, de prosperidade, foi transposta a todos os maranhenses como sua condição essencial. Um provincianismo tão ou mais refinado que o nacionalismo. (Corrêa, 1993) durante a Primeira República, as elites letradas dessa região tentaram recuperar o presente através da rememoração de exemplos do passado, especialmente do período 1850-1900, cuja geração teria justificado o título de Atenas Brasileira,3 o que serviria como uma espécie de remédio para sanar as mazelas provocadas pela estagnação econômica e ainda inspirar renovação nas letras maranhenses. Contudo,

3 A Atenas Brasileira oitocentista “viveu com Odorico Mendes, fundando o humanismo brasileiro; João Lisboa, liberal a distância dos balaios, bailando com a erudição histórica; Gonçalves Dias, o preferido dos deuses para cantá-los em verso, e Gomes de Sousa, escolhido deles para reinventar em números o universo; Maria Firmina dos Reis, abolicionista, professora primária de pobres no interior e a primeira romancista do Brasil; Joaquim Serra, talento jornalístico e companheiro de Nabuco na luta abolicionista e nas desventuras políticas do liberalismo, viveu, enfim, com Sousândrade, visionário, retórico e republicano que lia, escrevia e falava grego, quando a Atenas Brasileira enfrentava, com seu sebastianismo, a solidão dos escombros.” (Corrêa, 1993: 63).

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os esforços e propósitos foram forjados sem a consideração devida das condições reais necessárias para sua realização. (Martins, 2002). Após a Primeira República, nos anos 1940-50, alguns letrados maranhenses, particularmente aqueles que viviam no estado, numa espécie de auto-flagelo, afirmavam que o Maranhão não era mais Atenas, mas Apenas brasileira. Apesar disso, eles insistiam em reviver os supostos tempos de glórias do estado através, por exemplo, da fundação de jornais e revistas com nomes sugestivos (como a Revista Athenas publicada ao longo do estado Novo sob patrocínio da administração estatal), da fundação de grêmios estudantis e, de modo particular, por ocasião das comemorações do aniversário de morte de Gonçalves dias, que ocorre-ram durante toda a primeira metade do século XX (desaparecendo na década de 1950), e quando das cerimônias de posse dos novos membros da Academia Maranhense de Letras – AML (Barros, 2005; 2006) como, por exemplo, a do advogado e jornalista Fernando Perdigão em 1955 e a do político e advogado Antenor Bogéa em 1963. em seu discurso de posse, Perdigão (1998, p. 64) dizia se sentir “deslumbrado [...] pela presença subjetiva dos semideuses da nossa terra, cujos nomes são aqui de contínuo invocados, pela comunhão sempre repetida do pão da sabedoria e do vinho capitoso da beleza, que prodigaliza em forma de discursos, conferências”. Bogéa (1998, p. 47), por seu turno, afirmava que a AML o receberia “para compor o seu augusto conjunto quadragenário, insigne assembléia dos doutos, que mantém as tradições de cultura da Atenas Brasileira”.

o fato é que parece haver uma “ideologia da singularidade” ma-ranhense, que poderia ser vista “como um sentimento de ‘orgulho’ exacerbado da diferença do Maranhão e da figura do maranhense, impresso no modo de ver a história e, principalmente, nas expressões locais da cultura, no contexto da história e da sociedade brasileira” (Soares, 2002). Além da idéia de que no Maranhão se falaria o melhor português do Brasil (que consiste num substrato da Atenas Brasileira), uma outra singularidade seria o fato de São Luís ser a única capital brasileira fundada por franceses. Como toda invenção, esta também tem seu momento de nascimento.

No início dos anos 1980, alguns historiadores se sentiram motiva-dos para pesquisar os meios pelos quais as nações conseguiram tornar-

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-se uma referência fundamental para a constituição de sentimentos de pertença. dentre outras coisas, esses pesquisadores mostraram que comunidades nacionais – e, se poderiam acrescentar, as comu-nidades regionais – constituem fortes referenciais para a formação de identidades e contextos nos quais podem nascer ou se intensificar conflitos (ver, dentre outros, Anderson, 1991 e Balakrishnan, 2000). Hobsbawm e Ranger (1997), por exemplo, demonstraram que o mo-mento em que as sociedades passam por situações difíceis é propício para a invenção de tradições. Seguindo essa perspectiva analítica, a historiadora Maria de L. L. Lacroix (2002) questiona as análises históricas que afirmam terem sido os franceses os fundadores da capital maranhense. A historiadora analisa como se deu a passagem da valorização da fundação portuguesa, cujo resultado é um forte lusitanismo da cidade e do estado, para a valorização da fundação francesa pela população e, particularmente, pela elite de São Luís. ela nota que é somente no momento em que o crescimento econô-mico maranhense declina, em fins do século XIX, que se começa a falar sobre a fundação francesa da cidade, oficialmente fundada em 1612. ora, o século XIX foi o período de maior influência da cultura francesa no mundo, o “século do galicismo”. Assim, numa tentativa de se mostrarem diferentes diante dos outros estados da federação, os contemporâneos lançam mão de um elemento que os singularize. Mistura-se ilusão de origens e presunção de superioridade intelectual. “No bojo do discurso laudatório, constituindo a comunidade mara-nhense como a mais erudita, elegante, gentil e hospitaleira, surgiu a construção de uma distinção: a da fundação de sua capital pelos franceses” (Lacroix, 2002: 120).

Como argumentaria o historiador Flávio Soares (2002), é importan-te que se pergunte sobre como pensar um mito como o da fundação francesa de São Luís numa cidade “onde a maioria dos habitantes, seu contingente de negros e mestiços, nela nascidos ou não, parece marcada antes pela indeterminação das origens, míticas ou históri-cas”. o “mito”, talvez, mantenha “intocada a idéia em si da fundação, afastando a possibilidade, esta sim terrível, de que São Luís seja uma cidade sem origens”. Pensar a história e a memória da cidade “à falta de expressão exata, poder-se-ia chamar de longa vivência do falso”.

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essa vivência aponta para uma “situação onde as tentativas visando a invenção de identidades esbarraram sempre com esse campo de indeterminação constitutivo”: primeiro a elite ludovicense quis ser portuguesa, depois francesa...

enfim, aqui, o maranhense seria descendente direto dos atenien-ses do mundo antigo e dos franceses do mundo contemporâneo. Nesta perspectiva, a substância de identidade maranhense é essen-cialmente européia. Porém, não se trata de qualquer europa, mas da representação desta vista através da Grécia antiga, em seu momento glorioso, o século de Péricles, e da França contemporânea em seu século máximo, o século XIX.

enquanto se afirmam positivamente algumas – inventadas – heranças européias maranhenses, se anunciam pejorativamente e se perseguem as práticas que na época eram identificadas como heranças de África e dos povos nativos, a exemplo dos bumbas e dos variados tambores. o bumba-meu-boi é proibido de ser realizado ou de ir ao centro das cidades, particularmente da capital do estado, por que seria barafunda de pretos e da dita semibárbara caboclada. Na década de 1940, ainda se denuncia que o Maranhão é um estado débil e doente resultado do sangue de negros e índios circulando nas veias dos regionais, algo que só a imigração européia poderia sanar.

de fato, uma narrativa da história dos homens e mulheres pobres e negros e de suas produções culturais e cognoscitivas no Maranhão não deveria escamotear ou esquecer que, por um longo período, diversos daqueles sujeitos foram perseguidos e presos por estarem envolvidos com tambores, bumbas e outras práticas vistas como bárbaras e sinais do atraso da região. Para muitos membros das elites, aquelas práticas não deveriam existir em lugares como São Luís ou nas áreas centrais das cidades maranhenses, afinal o Maranhão seria a terra de uma gente culta e refinada. e saliente-se: boa parte dos pesquisadores que tratam do Maranhão, quando ocupados com as desigualdades, referem-se às desigualdades fundadas em diferenças de classe, mas costumam des-valorizar, desprezar, esquecer ou escamotear as diferenças fundadas na “raça”, na cor, etc. Também falam de cultura (popular, erudita...) e se esquecem que no mundo ocidental, pelo menos desde Gobineau, o mais explícito teórico da ambivalente teoria racial, proposições sobre cultura

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e “raça” se confundem, e que “um racismo implícito subjaz às noções ocidentais de cultura. ele é velado, mas difundido” (Young, 2002: 11).

de fato, é significativo o uso constante de metáforas racialistas e racistas para falar sobre diferentes repertórios culturais da região, quando, comumente, os bumbas, por exemplo, eram vistos como “usan-ça africana que nos veio com a escravidão do negro e continua, aqui mesmo dentro de nossa Capital, a dar-nos o triste espetáculo de uma civilização bastarda” (Lisboa, 1947), enquanto que outros símbolos da região, notadamente aqueles de marca européia, seriam “a brancura lirial de nossas tradições gloriosas” (Brito, 1957).

A exemplo do que ocorreu em diversos lugares do Brasil, como na Bahia e em Pernambuco, e em outros países da América Latina, no Maranhão também foi intensa a construção negativa das práticas e representações relacionadas aos repertórios sociais identificados com África ou com os povos nativos. os rituais e festas realizados em terreiros, casas ou a céu aberto, expressos indistintamente como pajelança, tambor, tambor de mina, macumba, feitiçaria, bruxaria, canjerê, magia negra, mandinga, eram descritos como “arte diabólica” (Cruzeiro, 21/6/1947), “prática nociva” (o Globo, 30/7/1941), “pagodes fetichistas” (Cruzeiro, 21/6/1947), “imbecilidade que provém do anal-fabetismo”, “meio de exploração torpe”, “válvula de escape” cujo efeito seria o mesmo da diamba (maconha) e da tiquira (cachaça destilada de mandioca), “narcóticos que nutrem a fantasia dos que vivem na pobreza” (o Globo, 9/6/1947), ocasião de “cachaçadas”, incentivos ao crime (o Globo, 30/5/1948), “a mais completa anulação da dignidade humana, do bom senso e da moral” (Cruzeiro, 21/6/1947). “Mal social de profundas raízes”, o tambor de mina e a pajelança eram vistos como uma espécie de pecado original da sociedade maranhense. os povos nativos e africanos eram responsabilizados por essa “herança perni-ciosa” dos maranhenses (Cruzeiro, 22/3/1949), que se evidenciaria na própria dança dos pajés, com seu “ritmo meio indígena e meio africano” (o Globo, 9/6/1947).4

essas interpretações depreciativas, em sua maioria, não se pre-tendem científicas. elas são, sobretudo, de caráter estético e ético,

4 Optei por manter a grafia tal como disponível ou acessível na documentação de época.

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estruturam-se nas fronteiras subjetivas do belo e do feio, do certo e do errado, do bem e do mal, do grosseiro e do refinado. elas destilam uma mistura de repulsa, nojo e raiva. Muitas vezes, ao descrever aquilo que denominavam de fetichismo, os articulistas pareciam estar falando das partes mais íntimas e fétidas de algo, urgindo sua eliminação. Tratar--se-ia da necessidade de uma ação cirúrgica, pois se supunha que parte do corpo social estava irreversivelmente em putrefação, apresentando--se como única solução possível sua amputação, o que deveria se dar através das perseguições policiais.

durante praticamente toda a primeira metade do século XX, en-quanto se louvavam através de celebrações, festas e outras comemo-rações os símbolos maranhenses eurocentrados, tentava-se disciplinar ou mesmo banir práticas como o bumba-meu-boi e o tambor de mina. Até início dos anos 1950 tentou-se afastar legal e oficialmente os bumbas do centro de São Luís, embora este movimento tenha sido descontínuo e heterogêneo. As idas e vindas em relação à permissão ou proibição de os bumbas serem realizados, ou se poderiam freqüentar o perímetro urbano, além dos subúrbios e dos interiores, parece ter sido a tônica da Primeira República e dos anos 1930-7. Nos anos 1910, pagando pelas suas licenças alguns bumbas poderiam brincar tanto na “cidade” quanto no interior da Ilha. Ao longo do século XX, o mo-mento em que houve uma política regular e de médio prazo proibindo que os bumbas freqüentassem o centro da capital maranhense foi do estado Novo a início dos anos 1950, mais precisamente, de 1938 a 1952. Neste período, quando também se intensificaria a atuação de diferentes letrados preocupados com o lugar e o significado do que chamavam de “tradições populares”, identificando os bumbas como símbolo máximo da cultura e identidade regional, essa parece se tornar uma política do estado e não dependente da personalidade ou do estilo de um ou outro chefe da polícia civil, ou chefe político municipal ou estadual, como parece ter sido em períodos anterio-res. Algumas vezes as portarias policiais proibiam a realização dos bumbas, mas geralmente o que se estabeleciam eram critérios para a realização dos festejos juninos, determinando em especial exata-mente até que ruas os bois poderiam brincar, tentando afastá-los das zonas centrais de São Luís.

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As manifestações relacionadas diretamente à religiosidade popular e negra enfrentam, sobretudo até início dos anos 1950, uma forte campa-nha de perseguição, bem mais intensa que as tentativas de disciplina-mento ou banimento dos bois. em meados do século XX, destacam-se no complexo e múltiplo panteão religioso popular e negro o tambor de mina e a pajelança.5

As possíveis diferenças entre tambor de mina e pajelança, como a ênfase terapêutica da última (daí também ser denominada de cura), devem ser interpretadas dentro de contextos sociais e históricos especí-ficos. Tanto a memória oral quanto a escrita, sustentam que até as pri-meiras décadas do século XX, o tambor de mina e a pajelança existiam como tradições separadas. Independentemente da (im)precisão desta informação, argumento que nos anos 1930-60 está em intenso processo

5 Tambor de mina é o nome dado sobretudo no Maranhão a cultos religiosos de origem africana, também presentes em outros estados do Brasil, como o candomblé na Bahia, o xangô em Pernambuco e o batuque no Rio Grande do Sul, bem como em outros países da América Latina, como a Santería, em Cuba, e o Vodun, no Haiti. O tambor de mina faz referência aos “negros minas”, denominação genérica dada aos escravos trazidos de regiões da África ocidental, muitos dos quais embarcavam no forte de El-Mina, atual Gana. Como em outras religiões afro-brasileiras, o tambor de mina abriga nações ou modalidades rituais cuja origem se associa a povos distintos, a exemplo dos jeje, nagô, cambinda, cacheu e fulupa, nomes presentes na memória do povo-de-santo maranhense. Entretanto, apenas duas destas nações teriam se cristalizado e perpetuarado como identidades religiosas demarcadas com certa nitidez, a mina jeje e a mina nagô, cuja origem remonta aos dois terreiros mais antigos do Maranhão, a Casa das Minas Jeje e a Casa de Nagô, fundados provavelmente na primeira metade do século XIX. Equivalente ao catimbó (jurema), em Pernambuco, e ao candomblé-de-caboclo, na Bahia, a pajelança, que também guarda algumas semelhanças com o culto a María Lionza, na Venezuela, e o espiritismo de Cordón, em Cuba, refere-se a um conjunto de práticas e representações que engloba diversos elementos da cultura e religiosidade populares do Maranhão, especialmente do catolicismo popular e do tambor de mina, e, possivelmente, reminiscências de costumes ameríndios. Embora no Código Criminal de 1830, o primeiro elaborado pelo Estado brasileiro para substituir aquele ditado pelo Estado português, não se falasse em perseguição aos “feiticeiros” (Dantas, 1998: 165) os Códigos de Postura de Codó, de 1848, e de Guimarães, de 1856, no Maranhão, mostram que bem antes da abolição, os negros se dedicavam a práticas curativas ditas “pajelança”, associada pelos grupos dominantes à “feitiçaria”. A “pajelança”, nos anos 1870-80, era apresentada como uma “religião” que estava se organizando na capital (Ferretti, 2001: 36), uma prática “contra feitiçaria” (Codó, 1848), uma sociedade suspeita de negros de “classe baixa” voltada para feitiçaria, prática de crimes, e também cura e exorcismo de demônios, religião ou culto politeísta e fetichista. Tudo indica que pajelança/pajé passara a ser um termo genérico utilizado pejorativamente, particularmente durante o século XIX, para designar quaisquer manifestações não-católicas consideradas feitiçaria no Maranhão (Ferretti, 2004: 35), o que deve estar relacionado à entrada massiva de africanos no estado a partir do século XVIII.

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aquilo que Bastide (1971: 256) denominara de “zona de transição onde o catimbó [leia-se pajelança] e o tambor de mina abandonam-se às mais estranhas uniões”, o que desembocará, a partir dos anos 1950, e mais profundamente nas décadas seguintes, no que Parès (1997) chama de mina de caboclo, um universo de múltiplas fusões entre tambor de mina, umbanda, kardecismos, terecô e candomblé.

Realizadas de modo intenso até pelo menos final dos anos 1950, as perseguições às manifestações de religiosidade popular e negra no Maranhão consistiam num conjunto de campanhas em que autoridades policiais, freqüentemente aliadas com agentes do campo intelectual e religioso e com membros da imprensa escrita, adentravam em terreiros à procura do povo-de-santo, muitas vezes quando ali se realizavam festas e rituais. em geral, levavam-se utensílios e objetos encontrados naque-les ambientes, e se fazia uso de uma violência simbólica e material. A memória oral (Barbosa, 2007; Gomes, 2003; Ribeiro, 2003; Santos; Santos Neto, 1989) caracteriza esse período como o tempo em que a “brincadeira” costumava ser feita sem tambor, “só no oculto”, “só nas palmas e nos maracás” ou com outros instrumentos que produzissem apenas sons de baixa freqüência e amplitude, como tabocas e litros; nestas circunstâncias, não seria incomum que os rituais e festas fossem iniciados num lugar e terminados em outro.

Se até o século XVII, os batuques eram permitidos, com o estabele-cimento do estado Nacional Imperial, em 1822, tentou-se limitá-los a lugares fora das cidades e vilas (Assunção, 1999). Na segunda metade do século XIX, o país passou por profundas transformações, sobretudo de-vido a leis referentes à escravidão. essas mudanças tiveram implicação direta no desenvolvimento da religiosidade popular e negra no Brasil.

durante a Primeira República e no pós-Revolução de 1930, quando as principais cidades do Maranhão já possuíam uma imprensa minima-mente organizada, as perseguições podem ser observadas em diversos jornais da capital e de cidades do interior do estado. Nesse período, diferentes leis e códigos legitimavam a prisão de pajés e pais-de-santo, o fechamento de terreiros e a apreensão de objetos de culto. As per-seguições continuaram, de modo intenso, durante as duas décadas seguintes. A memória oral, ao se referir ao estado Novo, comumente constrói Flávio Bezerra, chefe da polícia civil, como aquele que teria

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sido o maior perseguidor da cultura popular da história da região. A forte atuação de Bezerra e de outros chefes de polícia é confirmada pelos documentos de época. Particularmente após o estado Novo, até os anos 1950, a ação da polícia, concentrada particularmente nos subúrbios das cidades do estado, era classificada pela imprensa, ora como intensa, ora como permissiva.

A clientela que procurava a “gente que tem ligação com o pessoal do fundo”, como amiúde eram denominados os envolvidos com mina e pajelança, era quantitativamente significativa e composta por indiví-duos de diferentes estratos sociais. embora a ação da polícia ocorresse algumas vezes dia e noite, seu numerário parecia ínfimo para coibir as manifestações de religiosidade popular disseminadas por todo o estado e, participadas, inclusive, por alguns policiais.

Homem que, segundo o historiador Mário Meirelles (1980: 378), cometeria “excessos de autoridade”, o bacharel Flávio Bezerra também está na memória de policiais, como o senhor Bráulio Cruz (2005), nas-cido em 1931, para quem Bezerra era uma pessoa “que só não mexia juiz”, que regulava “até o comprimento dos vestidos das mulheres” e que “tinha muita fama sobre questão de terreiro”. Como diziam, na época, diversos articulistas: “sempre zeloso e cumpridor dos seus deveres, o dr. Flávio Bezerra, vem há muito combatendo eficazmente os macumbeiros, que infestam a cidade” (o Globo, 30/6/1940). Pes-soas atualmente ligadas à mina ou à pajelança também se referem a Bezerra como “muito rígido” para com pajés, pais e mães-de-santo (Santos, 1997; Santos, Santos Neto, 1989). o fato é que Flávio Bezerra parecia ser um especialista em comandar e executar operações para “desencantar” pajés e pais-de-santo.

As perseguições aconteciam em diversos lugares. Houve uma maior atuação policial nos subúrbios e também no centro das cidades. embora sem a mesma freqüência e intensidade, elas também foram realizadas nas áreas consideradas “interior”. A atuação da polícia nesta última zona deve ter sido mais intensa na ilha de São Luís que em outros municípios. o ato de tirar licença para realização de festas no Maranhão dos anos 1937-65 parece ter sido sobretudo um fenômeno urbano e suburbano. deve-se lembrar que muitos populares realizavam seus rituais e festas sem o uso de tambor. É provável que as legislações fossem algo obtuso

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ou mesmo desconhecido para os populares, e que muitas delegacias municipais as desconhecessem ou as descumprissem.

dentre os elementos que levavam às perseguições policiais, destaca-se a real existência, a presença efetiva das manifestações de religiosidade popular e negra, o que ocorria em praticamente todo o estado, escasseando mais para sua parte sul. Isto é, mais que a pre-sença de representações do tambor de mina e da pajelança no imagi-nário social, que para muitos era crendice dos ignorantes e incautos, o que mais incomodava quem desaprovava aquelas manifestações religiosas era sua presença efetiva, visual e sonoramente detectável. As perseguições costumavam se intensificar quando se percebia que essas produções culturais e religiosas estavam se desenvolvendo e conquistando espaço social.

outros fatores devem ser considerados enquanto razões para a realização das perseguições, como o estilo, o temperamento e a visão social do chefe de polícia da região, e a presença da imprensa no lugar, que freqüentemente exigia a realização de prisões e o combate ao que denominava de feitiçaria e macumba. Se essa imprensa fos-se controlada por setores ortodoxos da Igreja Católica, aumentava a possibilidade de uma intensificação da ação policial. Algumas vezes, havia relações de cumplicidade entre a imprensa e chefes de polícia. estes podiam ser elogiados publicamente quando agiam de acordo com as perspectivas da imprensa. Se os objetivos de ambos convergissem seu alvo poderia ter menos paz. Policiais que não se empenhavam na caça às bruxas pretendida por setores da imprensa eram comumente criticados.

Uma das cidades do interior do Maranhão onde houve fortes e in-tensas campanhas de perseguição policial foi Caxias. Para tanto, con-tribuiu significativamente a presença da imprensa católica da região. As perseguições eram intensificadas de acordo com as exigências e reclamações dos clérigos, cujas idéias circulavam em seu semanário, Cruzeiro, publicado a partir de 1936. As reclamações teriam começado em outubro de 1937, quando se noticiava que “nestes ultimos mezes, vem se notando uma crescente infiltração de grosseira feitiçaria nos suburbios operários de Caxias”. era grande o número de operários e camponeses que se reuniam quase diariamente “em torno de feiticeiros

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e feiticeiras”. eles bebiam, cantavam e dançavam “na maior das liber-tinagens”. diante disso, o semanário exigia que a polícia desse termo à questão. (Cruzeiro, 9/10/1937)

embora nem sempre se satisfizessem por completo os anseios do clero caxiense, composto de padres europeus, até os anos 1940, a polícia de Caxias teve uma atuação forte “contra a macumba e a feitiçaria”. em 1949, por exemplo, Cruzeiro pedia que o delegado de polícia da cidade, José Palhano, continuasse a campanha de repressão à “macumba, não só nos subúrbios de Caxias”, mas que estendesse sua ação ao interior do município. Nesse ano, a polícia apreendeu “um arsenal de apetrechos bem interessantes, usados pelos pagés da macumba: capas de seda ver-melha, brancas, cordões, grandes rosários, boinas, óleos perfumados, garrafas de beberagens”. Na ocasião, a campanha policial teria surtido efeito, “tendo cessado os rumores soturnos dos tambores e as toadas plangentes dos ‘baiás’ provocadores dos encantamentos, quando se manifestam os sortilégios dos espíritos endiabrados na subconciência dos ‘médiuns’”. (Cruzeiro, 22/3/1949)

em São Luís, em 1941, o jornal O Globo (30/7/1941) noticiava que a polícia dera “uma batida na Macumba do Cutim Grande”, interior da ilha. Chefiada e organizada pessoalmente por Bezerra, uma diligência composta por um tenente e oito investigadores se dirigiu para aquele lugar. Ali existia um terreiro organizado e conhecido em diversas esferas sociais. A chefa da casa, pejorativamente denominada por membros da imprensa de “macumbeira”, Altina de Sousa, era famosa nos arredores. Mulher poderosa despertara a ira de parte da imprensa. o fechamento desse terreiro seguramente serviria como um troféu para o chefe de polícia. Na noite do dia 29 de julho de 1941 se realizava na casa de Altina um “brinquedo”. Rituais, danças, corpos e espíritos compunham o cenário festivo e religioso. Por volta da meia-noite, a festa fora inter-rompida quando o chefe de polícia e sua diligência cercaram a casa em que se realizavam “os trabalhos de cura” e o “brinquedo”. Cerca de vinte pessoas foram detidas, inclusive um policial, “que, entusiasma-do, assistia os ‘prodígios’” realizados pela mãe-de-santo. Certamente Altina mantinha contatos com o comissário Gomes Filho. era a serviço dele que estava o policial encontrado na festa pela diligência policial. daí a crítica do articulista àquele comissário que “amparava a prática

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perniciosa, já permitindo o comparecimento de policiais, já levando pessoas conhecidas ao ‘brinquedo’” de Altina.

de fato, havia dissensos dentro da polícia no que concerne ao trata-mento que deveria ser dado à mina e à cura. eram comuns insinuações e acusações de que a própria polícia se envolveria com pajés e pais--de-santo ou que, ao invés de puni-los, “dorme na roupa” (o Globo, 25/2/1948). embora fizessem parte da mesma corporação de ofício, os policiais se relacionavam de modo variado com as manifestações de cultura e religiosidade popular. Nem todos seguiam as linhas de chefes de polícia como Bezerra.

desde meados do século XIX os curandeiros eram objeto de perse-guição policial. embora não fosse algo generalizado, era relativamente comum que alguns deles tirassem licença para realizar “tambor de mina” quando também realizavam “cura”. Lembre-se que nunca houve “licença” oficial para a pajelança, como acontecia com o tambor de mina, que podia ser entendido como baile ou diversão, como atestam pedidos de licença pelo menos desde o século XIX. daí, muitas vezes, pais-de-santo realizarem “na sombra do tambor” o “brinquedo”, o que podia ser denunciado pela imprensa.

A prática de festas e rituais religiosos populares, particularmente aqueles nos quais havia cura, motivou a prisão de muitos agentes so-ciais. em grande medida, o jornal Diário do Norte tinha razão quando, no final de 1937, afirmava que “os pagés estão em maré vasante” (diário do Norte, 30/11/1937). Nesse ano, noticiara-se a prisão de dois homens “da gente que tem ligação com o pessoal do fundo quando praticavam a macumba por meio de cobras embalsamadas e santas amarradas” (diário do Norte, 28/10/1937) e um outro que “a segunda delegacia auxiliar mandou recolher ao xadrez” (diário do Norte, 29/11/1937).

ora, é importante lembrar ainda que embora a representação maranhense-ateniense (a identificação do Maranhão como Atenas Brasileira) seja um pretenso marcador identitário regional, que visa diferenciar a região de outras regiões e da própria nação, instituindo o Maranhão em padrões branco-europeus, em grande medida, parece ter se tornado possível no contexto da ideologia do branqueamento, que é de caráter nacional e mesmo latino-americano. A Atenas Brasileira poderia ser interpretada como uma refinada idéia-imagem local, gestada

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e estruturada pelas elites, da ideologia do branqueamento. A invenção da Atenas Brasileira deu-se exatamente nos anos fortes dessa ideologia, de 1822 aos anos 1930. Nesse período, quando se discutia a viabilidade de uma civilização nos trópicos, dois obstáculos eram encontrados: a “raça” e o clima. A solução visualizada seria o branqueamento da população através da vinda de imigrantes europeus. (Schwarcz, 1993) Além disso, diferentes legislações concentravam-se em tudo aquilo que era considerado básico para a europeização cultural do Brasil, es-pecialmente vestuário, e festas e religiosidades populares e negras. o fato é que as idéias de civilização e cultura europeiamente entendidas foram levadas muito a sério pelas elites letradas do Maranhão, que tentaram, a todo custo, europeizar e, sob certo aspecto, embranquecer o patrimônio cultural e identitário regional. e tal operação, muitas vezes, foi acompanhada por um outro empreendimento, a tentativa de ignorar ou execrar os elementos que eram identificados como herança de indígenas e africanos. elas aceitavam que havia altas culturas, e que estas se localizavam na europa. Crentes de que a civilização se desen-volveu plenamente em regiões recordadas em um passado distante, como a Grécia, acreditavam poder compartilhar de um pedaço, ainda que ínfimo, dessa civilização e dessa cultura. Fazendo-o, tinham certeza de que estavam contribuindo para o progresso do Brasil e da América. Nessa perspectiva, a representação Atenas Brasileira poderia ser enten-dida como uma rebuscada tentativa de europeização e branqueamento cultural e identitário do Maranhão e do maranhense. A idéia de Atenas Brasileira não é essencialmente racista, mas o racismo parece ser uma de suas principais marcas. enfim, a representação sobre o Maranhão a partir de padrões eruditos e eurobrasileiros, de um lado, e os precon-ceitos e perseguições às produções culturais negromestiças, de outro, constituíram, muitas vezes, o avesso e o direito de um mesmo processo.

1.2 O crescente interesse positivo por elementos das culturas popular e negra

Há um interesse crescente, sobretudo a partir do estado Novo (1937-45), de membros das elites intelectuais e políticas pela cultura popular e negra, e por uma tentativa de integração, de caráter sim-

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bólico, do negro maranhense na história da região. Aqui não se trata somente de vozes dissidentes, presentes antes dos anos 1930, mas sim do surgimento de um conjunto crescente de discursos e práticas sobre os elementos ditos populares, mestiços e negros, que os inscrevem como idéias-imagem e práticas culturais essenciais da região. essa foi uma ação seletiva. Através dela alguns desses elementos comporiam o quadro identitário regional.

o estudo do negro maranhense emerge como um resgate, a paga de uma dívida, algo necessário para se entender a formação sócio-histórica da região. Tenta-se construir a idéia de que a Atenas Brasileira só teria sido possível por causa da mistura racial; que o fundamental do maranhense havia sido infiltrado pela seiva imaginativa do africano; e que deste viera o elemento essencial da identidade regional: o amor e apego a terra.

embora este tenha sido um movimento descontínuo, sobretudo a partir da década de 1920, diferentes órgãos da imprensa escrita e alguns letrados, contrariamente ao que ocorreu durante o século XIX e praticamente toda a Primeira República, passaram a identificar o bumba-meu-boi como o elemento fundamental do patrimônio cul-tural regional, que pertenceria e deveria ser preservado por todos os maranhenses, independentemente de suas diferenças e desigualdades, enquanto o principal elemento diacrítico da região. Assim, de folguedo insólito e oposto à boa ordem, à civilização e à moral (o Imparcial, 15/6/1861), “bárbaro brinquedo” (Sacramento, 1868: 7), ocasião de violência e “cenas lamentáveis” (Pacotilha, 25/6/1902), “incômoda usança” (Pacotilha, 25/6/1902), batuque e berreiro perturbador do sossego público que “quase sempre termina em confusão” (Pacotilha, 23/6/1922), o bumba-meu-boi passaria a ser identificado como “festa rústica” produzida graças à “índole mansa do povinho do Maranhão” (Pacotilha, 23/6/1922), “quadra de satisfação para o caboclo” (diário do Norte, 25/6/1938), “o maior divertimento de nossa classe inculta” (Lemos, 1940), e, finalmente, seria definido como “tradição da terra maranhense, exemplo único no Brasil” (o Globo, 5/7/1948), cujos “propósito” e “espiritualidade” seriam compartilhados por “brancos e pretos, velhos e moços” (o Globo, 2/7/1942), sendo “assistido por to-dos, em terreiros, praça pública ou salões aristocráticos” (Melo, 1952), enfim, “coisa essencialmente nossa” (Pacotilha o Globo, 4/4/1950).

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este movimento se processaria em intensa aproximação com a busca de definição de “cultura brasileira” e da “identidade nacional”.

Se, durante o estado Novo, de um lado, como já foi observado, continuaram campanhas de perseguição policial a festas e rituais de Tambor de mina e pajelança, de outro, alguns elementos dessas práticas começaram a ser ditos e vistos, de modo constante, como idéias-imagem e práticas culturais centrais para o quadro das “tradições” regionais, até então identificadas tão somente com os sentidos do Maranhão alcunha-do de Atenas Brasileira. esses movimentos se processaram em meio a múltiplas, e mesmo díspares, dinâmicas sociais. Para que esta operação se efetivasse não se deve subestimar – nem superestimar – o papel de alguns letrados, geralmente vinculados a instituições públicas, e em contato com discussões que se faziam em nível nacional e internacional sobre “folclore”, “cultura popular” e “africanismos”.

Basta um primeiro olhar sobre os dois principais jornais de circula-ção diária do Maranhão estado-novista para se observar a ambivalên-cia do período. o jornal O Globo, publicado a partir de 1939, auxilia simbólica e concretamente os membros da polícia empenhados na sua caça às bruxas. Por seu turno, Diário do Norte, durante seus nove anos de publicação, entre 1937 e 1945, não descreve pejorativamente o mundo material e humano da mina e da cura, e, mais que isso, algumas vezes anuncia e convida para o tambor de mina. Certamente, um dos elementos que contribuiu para isso foi a presença de Antonio Lopes como diretor do Diário do Norte. Lopes era um respeitado estudioso daquilo que na época se denominava de “tradições populares” mara-nhenses. Além disso, ele tinha trânsitos pessoais e profissionais com a administração estatal.

o fato é que, a partir de final dos anos 1930, outros e novos ven-tos sopram para alguns elementos desse panteão cultural e religioso, especialmente para aqueles que eram vistos como herança autêntica e legitimamente africana. em 1938 seriam realizadas, em São Luís, as duas primeiras pesquisas sobre o tambor de mina. Uma delas, realizada na Casa das Minas, foi a do etnólogo português que ministrou cursos na Bahia e pesquisou no Norte do Brasil, edmundo Correia Lopes (1939; 1947), que estava interessado sobretudo pela língua ritual daquele terreiro. A outra foi da Missão de Pesquisa Folclórica do departamento

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de Cultura da Prefeitura de São Paulo, no terreiro de dona Maximinia-na, interessada especialmente nas músicas do tambor de mina (ver o relatório dessa missão elaborado por Alvarenga, 1948). Parecem datar de 1938 os primeiros convites e anúncios de festas de tambor de mina, publicados em um jornal maranhense, de que se tem notícia. Localizei--os em Diário do Norte, periódico publicado em São Luis durante o estado Novo, que, nesse ano, provavelmente na pessoa de seu diretor, Antonio Lopes, anunciava e convidava para as festas a serem realizadas por Andressa Ramos (diário do Norte, /6/1/1938) e “no vasto terreiro da Noemia”, no subúrbio de São Luís (diário do Norte, 10/8/1938). entre novembro de 1943 e junho de 1944, esteve na capital do Maranhão, realizando pesquisa para sua tese de pós-graduação nos estados Unidos, o pesquisador paulista Costa eduardo (1948). este é um período em que, no Maranhão, é crescente a influência do modernismo, momento em que a pajelança serve de referencial estético para a produção poética apresentada na terra de Gonçalves dias. Simbolicamente, poetizava-se o “pucuntum” dos tambores e o “xiquiti” dos maracás do “pajé Pai-de--santo”, capazes de vencer “quebrante no corpo” (Moreaux, 1941), ou a “‘gente do fundo’”, os pajés, com suas “‘curanças’ misteriosamente realizadas” (Silva, 1950).

A Casa das Minas, a mais antiga casa de culto do tambor de mina, é então reconhecida como tradição religiosa afro-brasileira do Mara-nhão. em 1940, duas fotos da “dança sagrada das minas na sua perfeita cadência com os ritmos do culto afro, no tradicional terreiro”, foram publicadas na Revista Athenas (12/7/1940). em 1942, Nunes Pereira escrevia sua monografia sobre aquela casa, que viria a ser publicada em 1948, inaugurando as publicações da Sociedade Brasileira de An-tropologia e etnologia, então presidida por Artur Ramos, para quem, o Maranhão constituiria “um dos pontos do Brasil mais interessantes para a pesquisa de africanismos culturais” (Ramos, 1979: 11). A Casa das Minas “reflete a alma africana” herdada e conservada “sem defor-mações”, observando-se essa “Casa negra [...] podemos compreender [...] os aspectos das sociedades ainda hoje constituídas em várias províncias do Continente Africano”, ela é “um aspecto da tradição maranhense” (Pereira, 1948: 21; 48). em 1952, Pierre Verger sugeriu que a Casa das Minas fora fundada por uma rainha do daomé vendida, entre fins do

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século XVIII e início do XIX, como escrava, pois, segundo ele, alguns voduns daquela casa identificavam-se com membros daquela família real, inclusive o rei Agonglo ou Agongono, como é conhecido no Mara-nhão. Um dos motivos que a levou ao edifício da identidade regional foi, como enfatizava o folclorista Vieira Filho (1954: 80), o fato de “não” se verificar naquela casa “o ritual complexo e barbaresco” como ocorreria com os da Bahia e de outros lugares. A Casa Grande das Minas é, por assim dizer, desbarbarizada. Intelectuais como Nunes Pereira e Vieira Filho acabam por tentar separar o joio do trigo: “Na Casa das Minas não se cuida de feitiçaria, isto é, da prática de malefícios ou do preparo de filtros, amuletos, etc.” (Pereira, 1948: 47), o que seria característico da pajelança; “Quer na periferia urbana, nos subúrbios ou nos distritos rurais o culto é processado sem perseguições policiais. Porque uma coisa é o fetichismo simples, vozes da África que nos ficaram, e outra é a macumba, a magia negra, o baixo espiritismo, práticas nocivas e fora da lei”. “estas manifestações mórbidas, sim, merecem repressão policial de início, para depois se tornarem objeto de tratamento de higiene mental” (Vieira Filho, 1954: 80).

em 1954, o jornal O Globo publicaria a primeira grande reportagem em um jornal de circulação diária do Maranhão interpretando o tam-bor de mina como uma tradição regional. Importante lembrar que O Globo era um dos periódicos mais ocupados nos anos 1930-40 com a limpeza social através da eliminação dos tambores entendidos como prática nociva e fora da lei. o terreiro selecionado pela imprensa não é nenhum daqueles já escolhidos pelos intelectuais, as Casas das Minas e de Nagô, os “africanos”. elege-se o de Zé Negreiros, que curiosamente guarda as mesmas características daqueles que o mesm’O Globo vinha descrevendo desde final dos anos 1930 como peste social. Se o que define a escolha dos intelectuais é sobretudo a relação África-América, o que parece reger os princípios seletivos da imprensa é a capacidade de mobilização dos pajés e pais-de-santo diante da sociedade local, especialmente no que concerne às suas relações com políticos e a de-nominada “gente de sociedade”. Trata-se de terreiros que, em alguns casos, começam a se aproximar da espetacularização, o que, de alguma forma, não parece combinar com os anunciados modos e práticas das Casas das Minas e de Nagô. Se há bem pouco tempo os tambores eram

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vistos de modo predominantemente depreciativo, novas possibilidades são apresentadas. “Mete gosto ver, nos dias e nas noites de cerimonial, na liturgia sagrada dos terreiros, essa gente em remígios de fé elevando, aos seus santos, a cantilena votiva que lhe ensinaram os antepassados e que passa, de geração a geração” (Pacotilha o Globo, 3/9/1954).

duas décadas depois do início efetivo do reconhecimento social do tambor de mina, a pajelança continuava, de modo geral, percorrendo caminhos bem mais tortuosos. Sobretudo em decorrência da criação da Faculdade de Ciências Médicas do Maranhão, em 1957, cujo diretor era um médico e líder católico – Bacelar Portela, intensificar-se-iam campanhas de repressão à cura.

1.3 A “gente comum” no processo de construção do Maranhão Negro-Popular

este é um momento em que os mais pobres e os não brancos re-sistem de diversas formas aos preconceitos e perseguições em relação às práticas e conhecimentos que lhes são característicos. e, mais que isso, eles contribuem diretamente para os processos de modelação e adaptação dos sentidos da identidade da região. eles constituem um conjunto múltiplo e diverso de indivíduos que freqüentemente desen-volvem estratégias e redes de sociabilidade, e conformam um campo de contínuo encontro entre práticas culturais e religiosas e construção de identidades. As práticas e representações dos populares são estra-tégica e criativamente comunicadas e ressignificadas, e os diferentes estratos sociais são influenciados – embora manifestamente muitos indivíduos não o desejem – por elas. obviamente, a intensa difusão dos repertórios culturais identificados com África e com os povos nativos contribuiu para minar a construção de uma identidade regional fundada em padrões branco-europeus. Se não foram ações revolucionárias, as estratégias e práticas de resistência cotidiana dos sujeitos produtores dessas organizações festivas não deixaram de promover transformações, como a inflexão da imagem da região, que passou a ser pensada desde o universo festivo dos bumbas e da dita cultura popular e negra.

No caso das legislações que visavam disciplinar ou banir os bum-bas, talvez o mais fundamental seja notar que as portarias e licenças

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constituíam um campo de batalha particularmente entre os brincantes e as autoridades, que nem sempre conseguiam impedir a entrada dos bumbas na zona mais urbanizada da cidade. Alguns grupos, por exem-plo, ignoravam as proibições oficiais, o que poderia acarretar-lhes, por exemplo, a perda de suas licenças. Pessoas que moravam no centro da cidade, muitas das quais promesseiras, podiam pedir para que os grupos de boi fossem se apresentar às portas de suas casas. de fato, era comum que sujeitos de diferentes setores sociais desejassem pagar uma promessa oferecendo um boi aos santos, para o que, pediam e patrocinavam outrem, em geral, um “dono” ou “dona” de boi, para que este organizasse a brincadeira. Situações como esta implicavam em muitos desdobramentos e constituíam ocasiões significativas para se observar formas de teatralização do poder, para se notar modos como os sujeitos acionavam determinadas estratégias e negociavam entre si em uma sociedade hierarquizada. A presença dos bois era intensa e difundida. essas práticas pareciam estar sedimentadas em firmes padrões costumeiros, mais ou menos, coletivamente partilhados, e as portarias, decretos e códigos oficiais foram muitas vezes construídos em negociações nas quais o povo-de-boi teve participação efetiva.

o fato é que os processos através dos quais “identidade maranhen-se” passou a ser identificada como “popular”, e também o tímido, mas crescente, reconhecimento social das práticas e saberes relacionados à mina e à cura, não podem ser pensados sem a participação dos pajés, pais e mães-de-santo e de seus voduns, encantados e orixás.

No estado Novo, um dos motivos que levou a Casa das Minas a permanecer no perímetro urbano de São Luís e poder realizar suas festas teria sido, como informa Maria Celeste Santos (1997: 63-66, grifo meu), o fato de mãe Andressa, chefa daquela casa, ter sido recebida por Paulo Ramos, o interventor federal, e este ter liberado o toque na casa. essa liberação foi estendida à Casa de Nagô, a pedido de Andressa. observa-se, assim, que alguns terreiros conquistavam certo prestígio perante representantes do poder institucionalizado. Celeste Santos afirma ainda que “mãe Andressa foi de família de escravos, que perten-ceram a fazenda da família de Paulo Ramos”, daí viria seu sobrenome, Andressa Ramos. A memória oral também informa que a esposa do chefe de polícia Flávio Bezerra recebera uma entidade espiritual, sendo

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liberada de suas obrigações para com ela por Mãe Andressa, em troca de algo em prol dos cultos dos voduns (Ferretti, 1985), de modo que o não alcance da proibição às Casas das Minas e de Nagô, nesse período, resultou de uma negociação em que se podem notar múltiplas dinâmicas sociais, envolvendo diversos atores sociais. Além da participação de políticos e intelectuais, foram fundamentais os trânsitos interpesso-ais, o poder de barganha e a capacidade de mobilização de membros do povo-de-santo. No caso, Mãe Andressa, que reagiu e conseguiu a permanência da sua casa, bem como da Casa de Nagô, no centro da cidade. Lembre-se que a filha de Polibogi (entidade espiritual guia de Mãe Andressa) foi uma das principais responsáveis pela abertura da Casa das Minas a pesquisadores. Já em sua época, sobretudo dos anos 1930 até sua morte, em 1954, Mãe Andressa era personagem conhe-cida e respeitada. Sua história é uma página importante nas culturas do “Atlântico Negro”6 e nos processos através dos quais indivíduos e grupos subalternos enfrentaram obstáculos para viver segundo seus conhecimentos, convicções e tradições.

Talvez a principal estratégia de luta e resistência social, a parti-cular ação política, dos sujeitos envolvidos com o tambor de mina e a pajelança tenha sido sua capacidade e habilidade de integração, o que se dá tanto em sua história vivida quanto na memória sobre essa história. o recebimento de uma entidade espiritual por parte da esposa de Flávio Bezerra é, em última instância, um mecanismo atra-vés do qual o chefe de polícia é rendido às práticas e representações daqueles repertórios culturais e religiosos. os voduns, encantados e orixás também não admitiram ficar de fora desses processos, eles atuaram e, muitas vezes, em momentos decisivos, estabelecendo uma relação dialogal com homens e mulheres, fazendo-se parte constitutiva da vida social.

Também se deve considerar a maximização, nesse período, de uma cultura viajante, constituída por diferentes agentes da mina e da cura, cujas idéias, símbolos e valores seriam estruturados em uma

6 O Atlântico Negro é uma formação intercultural e transnacional. Nele, as culturas negras do século XX relacionam-se, ao mesmo tempo, com a própria terra onde se diz que elas têm suas raízes, e com o Atlântico – configurado como um sistema de trocas culturais. (Gilroy, 2001)

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perspectiva translocal,7 o que parece ter tido influência profunda no desenvolvimento de diferentes práticas culturais e religiosas num estado até então predominantemente rural,8 redimensionando os modos de atuação daqueles que se envolviam com essas práticas. estes continuaram a agir nas frestas da oficialidade. entretanto, cada vez mais, passaram a usar, de maneira inteligente, ousada e criativa, os instrumentos e mecanismos do mundo oficial, como a impren-sa, que outrora e ainda naquele momento, insistia em inscrevê-los depreciativamente.

embora o reconhecimento público, particularmente do campo intelectual, tenha sido dado tão somente para aqueles repertórios que seriam herança africana, e não indígena, nem misturada com esta, no Maranhão de meados do século XX, os padrões do imaginário e as formas de sensibilidade eram profundamente marcados pela idéia de poder dos pajés e pais-de-santo, poder este que teria relação direta tanto com África quanto com os povos indígenas nativos. Certamente, isso tem relação, de um lado, com a atuação dos diferentes sujeitos produ-tores da mina e da cura e, de outro, com a participação de intelectuais, políticos e, particularmente, da imprensa, que, para além da promoção do preconceito, acabou contribuindo (na maioria das vezes a contra-gosto) para a divulgação, entre membros das classes intermediárias e das elites, de elementos da mentalidade e das práticas religiosas que insistiam em acusar como sinais de atraso. Apesar de serem festas, ce-lebrações e convicções, na maioria das vezes, socialmente posicionadas na periferia, essas manifestações de cultura e religiosidade, através de uma linguagem que perpassa e se comunica com os diversos estratos

7 Tornava-se cada vez mais contínuo o trânsito de pessoas ligadas à mina e à cura que viajavam do Maranhão para outros estados do Brasil e geralmente retornavam e viajavam novamente, especialmente mães-de-santo. Algumas delas saíam do estado muitas vezes jovens e já “feitas”. Muitas retornavam anos depois, procuravam jornais e deixavam seus registros. Elas denunciavam aberta e publicamente chefes de polícia, construíam mini-autobiografias, nas quais apresentavam-se como mulheres, mães-de-santo, fortes e poderosas, usando, para justificar tais características, um vasto conhecimento que teriam adquirido em suas visitas do norte ao sul do Brasil, reivindicavam para o Tambor de Mina o mesmo status do bumba-meu-boi, festejo popular valorizado na região, argumentavam que em outros estados “grandes figuras” freqüentavam os terreiros. (Jornal Pequeno, 27/10/1955; 18/8/1957).

8 Até os anos 1960, mais de 82% da população maranhense vivia nas zonas rurais do estado (Maranhão, 2004).

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sociais, não raro, definiam valores, normas e comportamentos daquela sociedade, tornando-se elemento simbolicamente central naquela en-grenagem sócio-histórica.

enfim, o povo-de-santo e de encantado contribuiu diretamente para a redefinição de identidade maranhense. Através de um processo de intensas e múltiplas mobilizações, interações e conflitos, pajés, pais e mães-de-santo foram capazes de questionar e romper com representa-ções pejorativas que os emolduravam pictórica e pitorescamente num mundo de bestialidade e malignidade, e afirmaram-se como agentes centrais nos processos sócio-culturais do Maranhão de meados do século XX.

2 “Povo” e “raça” nos processos de representação do maranhão

dizer que o Maranhão começa a ser representado, pensado e propa-gado, de modo diferente, implica afirmar que estão emergindo novos conceitos, imagens e temas ou novas roupagens para velhas práticas e representações, que possibilitam que se fale dele de modo diferencia-do de como se vinha falando. A identificação de culturas e elementos populares com identidade maranhense pode ser observada através do constante acionamento da idéia de “povo maranhense” e por tentativas de mudanças nas percepções sobre negros, pretos ou afro-maranhenses, e dos discursos e práticas que lhes eram característicos. Identidade ma-ranhense foi modelada tanto nos caminhos da “cultura” e da “tradição” como nas trilhas do “povo” e da “raça”.

2.1 Buscando identidade maranhense na alma do “povo”

Antes dos anos 1930, vozes dissidentes ligadas às elites, particular-mente alguns letrados, já destacam as “coisas do povo” no Maranhão, no Brasil e na América Latina, alçando-as a símbolos de diferentes regiões e nações. Neste contexto, cabe lembrar o maranhense Celso de Magalhães, precursor dos estudos de folclore no Brasil. No Maranhão, a obra de Magalhães é continuada por seu sobrinho, Antonio Lopes.

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Pelo menos desde o século XVIII, observa-se na europa uma íntima relação entre a investigação acerca dos costumes populares e a criação de uma dada nacionalidade ou manifestação do caráter nacional. o fato é que passaram a ser constantes e crescentes as associações entre estética, povo, “raça”, folclore, cultura e identidades nacional e regional, quando ali ocorre “a descoberta do povo”. (Burke, 1989; davis, 1990)

No século XIX, do mesmo modo que para teóricos europeus, para brasileiros e latino-americanos, “raça”, povo e cultura se tornam ele-mentos fundamentais no processo de definição da nação. Celso de Magalhães, que começa sua obra dedicando-a ao romanceiro popular, entendia a poesia como reveladora do gênio, da índole e do caráter do povo, “um documento de sua vida, da sua vitalidade”. Para ele, as criações do povo são imemoriais, reveladoras da evolução humana segundo leis naturais. Não à toa sua pesquisa sobre a formação da poesia a relaciona ao “povo” e à “raça”. o povo brasileiro seria formado por “raças” inferiores, isto é, índios, negros e mesmo os portugueses, que seriam inferiores a germanos e anglo-saxões. Apesar disso, a poesia popular, que dele brotaria, poderia revelar uma singularidade nacional por possuir originalidade, embora sendo transplantada de além-mar. (Magalhães, 1973: 31-67)

de fato, a operação de identificação das tradições e caracterís-ticas regionais com a cultura popular e negra é anunciada, ainda que timidamente, já durante o século XIX, movimento este que não se restringia exclusivamente às letras dos intelectuais. em 1893, informava-se que o Maranhão seria representado na exposição de Chicago através do bumba-meu-boi, do tambor e do chorado (diário do Maranhão, 22/5/1893).

No Maranhão, a obra de Magalhães, dedicada ao romanceiro e cen-trada sobretudo na busca da definição de uma identidade nacional, será continuada, mas os ares já não serão os mesmos. Livro publicado postumamente em 1967, Presença do romanceiro. Versões maranhen-ses, de Antonio Lopes, foi concluído em 1948. Nele, Lopes pretende continuar a obra de seu tio, Magalhães, ampliando a coleta sobre o romanceiro maranhense. Assim como Magalhães, Lopes se detém nas contribuições das três “raças”, brancos, negros e índios, para a formação da nação. Relaciona o povo aos pobres incultos em oposição aos ricos

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e cultos. diferentemente de Magalhães, Lopes considera fundamental a coleta junto ao povo, como uma espécie de prova de fidedignidade do romanceiro.

ele entende que a poesia popular, ao mesmo tempo, transforma-se e revela a índole do povo. Longe de ser resultado de transformações históricas ou culturais, as criações do povo resultariam dos atributos psicológicos que o povo traz em si. Nessa perspectiva, Lopes localiza as seguintes características nos maranhenses: a ironia, “a facilidade no apreender o lado ridículo de tudo e a habilidade no criticar sem azedume”; a compaixão, sendo o homem maranhense um “inimigo de vinganças e castigos violentos”; “nada inclinado e quase de todo ou todo emancipado de fanatismos religiosos, a ponto de parecer até cético a quem não lhe conheça a sinceridade das crenças”; um regional de “espírito crítico”, de “pendor para a poesia”, de “graça” e “espiritualidade” (Lopes, 1967: 59; 65; 213). o povo, diferentemente das elites, usaria uma linguagem mais simples. entretanto, ambos seriam marcados por uma essência regional, uma identidade cuja índole seria tecida em espírito crítico, ironia, graça e espiritualidade, e, particularmente, em inclinação à poesia.

de fato, Lopes interpreta o romanceiro popular “pelos conteúdos constitutivos dos símbolos de Atenas”, de modo que, “a experiência de identificação como maranhense, retorna constantemente à valorização de ser ateniense” (Albernaz, 2004: 177). entretanto, ao relacionar o “povo” à identidade regional ele contribui para a crescente associação e interconexão entre identidade maranhense e cultura popular. Mesmo que em suas linhas essa operação seja mediada por padrões eruditos. Se sua intenção foi localizar o Maranhão – Atenas Brasileira em meio à índole dos maranhenses não-letrados, esse mesmo movimento por ele efetivado mostra que elementos populares redimensionavam a identidade regional pretensamente erudita. Ao mesmo tempo em que se apropriava de elementos populares, indicando neles seus vestí-gios de erudição, aqueles elementos escrupulosamente selecionados contribuíam para redefinir a imagem erudita da região e de seu tipo regional. Não relacionando a identidade regional somente aos valores característicos das elites ditas letradas, ele acaba se posicionando como uma importante peça na complexa engrenagem através da qual

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identidade maranhense é ressignificada em sinais negros e populares. A bipolaridade entre o popular e o erudito, embora freqüentemente anunciada na época pelos sujeitos sociais e muitas vezes usada como justificativa moral e ideológica para o disciplinamento e perseguição às produções culturais populares e negras, já durante os anos fortes da Atenas Brasileira era questionada.

Como se sabe, a partir dos anos 1930, no Brasil, são publicadas algumas obras que se tornam emblemáticas em meio aos processos de modelação de identidades regionais e da própria brasilidade, no que concerne aos seus elementos populares, mestiços, negros e negro--populares. Além de Casa Grande & Senzala (1933), “marco inaugural nas análises da cultura brasileira” (Souza, 2003: 40), que trazia uma proposta de interpretar o Brasil enquanto nação, é importante destacar A influência africana no português do Brasil, de Renato Mendonça, e O elemento afro-negro na língua portuguesa, de Jacques Raymundo, ambas publicadas em 1933. Contemporaneamente a Freyre, cuja abordagem “valoriza sobretudo o aporte cultural africano” (Souza, 2003: 40), eles analisam a participação africana na língua nacional, destacando listas de palavras de origem africana e apontando influências prováveis dessas línguas na fonologia e sintaxe do português do Brasil. Nesse conjunto de obras, deve-se destacar ainda A cozinha africana no Brasil, obra de Luís da Câmara Cascudo na qual a culinária nacional emerge como mestiça, com marca predominantemente negra.

No Maranhão, além de presente em textos e livros, os elementos identificados como folclore, tradição popular ou cultura popular e negra passaram a ser estilizados e levados por letrados, artistas e produtores culturais para espaços na época vistos como aristocráticos, a exemplo de teatros e clubes elitizados. em 1938, dilu Melo, a “genial intérprete do folclore” da Rádio Nacional, e Jaci Meneses, da Rádio Transmissora do Rio de Janeiro, estiveram em São Luís e se apresentaram no teatro Artur Azevedo (diário do Norte, 6/7/1938). dilu, artista e folclorista, teria mostrado a “expressão divina de nossa nacionalidade”, que “descobriu no grito cavo, famelico do pregoeiro” (Calvet, 1938, p. 3). em excursão pelo interior do Brasil, em 1940, também esteve em São Luís, em sua “tarefa de brasilidade”, Nery Camello, quando realizou palestras sobre “os costumes dos nossos sertanejos” (o Globo, 23/10/1940). No São João

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de 1941, Fulgêncio Pinto, o “estudioso do folklore maranhense”, havia organizado para ser apresentado “no salão nobre do Casino Maranhense” (diário do Norte, 15/6/1941), clube que reuniria “o que existe de melhor em nossa sociedade” (diário do Norte, 27/6/1939), “uma página inte-ressante de aspectos da vida do nosso povo”. o trabalho tratava “dos costumes do caboclo da Ilha” e era realçado “por músicas típicas, toadas estilizadas do bumba-meu-boi, cantigas populares”. Tratar--se ia de uma “festa regionalista” (diário do Norte, 15/6/1941). em 1954, anunciava-se a apresentação, no teatro Artur Azevedo, da peça “Lamento de Xangô”, “a teatralização de uma lenda afro-brasileira que mostra a cerimônia de um ritual ao deus Xangô. debaixo dos ruídos dos atabaques, agogôs e doutrinas cantadas, desenrola-se uma cena de romance profano que provoca a ira do deus, sendo o profano castigado”. Como nas cenas se mostrava tão somente “passos de candomblé baiano e carioca”, José Brasil, que os executava, decidiu estilizar a coreografia das “pupilas” – filhas-de-santo – do então famoso pai-de-santo José Ne-greiros, “que se prontificou a ajudar o Teatro Maranhense de Amadores com a sua valiosa colaboração”. (Jornal Pequeno, 4/7/1954)

Resgatar e preservar os elementos populares é a tarefa de domin-gos Vieira Filho, que escreve a partir dos anos 1950. Sua perspectiva, centrada na identificação de elementos africanos e do “seio do povo”, estava consoante com as agendas de diversos pesquisadores nacionais. Vieira Filho incorpora seletivamente traços das culturas populares e negras ao patrimônio cultural da região. Pensando em contribuir para o estudo das variações regionais da “linguagem popular do Brasil”, ele publica em 1953 um dicionário com verbetes que indicam “certos detalhes da curiosa língua falada quotidianamente entre nós e que é inconscientemente moldada pelo povo”. Uma “obra do povo”, a qual se necessita “fixar, para o futuro” (Vieira Filho, 1953: 67).

dentre essas obras estão as comidas vistas como “afro-maranhenses”, o angú e o arroz-de-cuchá; o bumba-meu-boi, “auto popular”; o crivador, “nome de um dos atabaques da dansa tambor-de-crioula”; a matraca, “ins-trumento usado no cortejo do bumba-meu-boi. É composto de dois pedaços de madeira rija que atritados produzem sons rascantes”; a punga, “umbigada violenta e lasciva que homens e mulheres, na dansa do ‘tambor-de-crioula’, se aplicam mutuamente”; o “bambaê”, dança, batuque; o “côioiô”, feitiço; o

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terecô, “dansa de preto” em Codó; a diamba, maconha; e ainda “pajelança” e “feitiçaria”. Muitos desses termos são continuamente associados à desordem e mesmo violência, como o bumba-meu-boi e a matraca. esta última não raro era usada como arma durante as brigas entre grupos de bois. o próprio termo angú, ainda hoje, é também sinônimo de confusão, arruaça, chin-frim, diz-se “não me meta nesse angú” (não me meta nessa confusão). o fato é que este é um momento em que ícones diversos do universo popular são pensados como parte do patrimônio identitário regional.

2.2 Renegociando identidade maranhense nas trilhas da “raça”

No Maranhão do período em análise, é possível notar a continui-dade de idéias baseadas na ideologia do branqueamento, a emergência de discursos que positivam a mestiçagem, a tentativa de efetivar um “resgate” da história de negros, e algumas vezes a construção dos afro--maranhenses como os produtores maiores da identidade regional. estas representações podem ser observadas em diversos lugares, e foram cada uma delas paradigmaticamente desenvolvidas por três intelectuais maranhenses aqui destacados, Achiles Lisboa, domingos Vieira Filho e Astolfo Serra. Tais representações se imbricam às interpretações dadas às manifestações culturais populares e negras.

este é um momento em que os afro-maranhenses são esquecidos e rejeitados; são simbolicamente colocados ao lado de brancos e índios como as “raças” que constituem a “raça maranhense” ou os grupos que formam a “alma da região”; aparecem como elementos cuja história deve ser resgatada para melhor se entender a história da sociedade; e, algumas vezes, são apresentados como os responsáveis primeiros pela formação psicológica, social e histórica da gente maranhense. em uma ou outra perspectiva, e no emaranhado ambíguo e conflituoso que elas constituem, identidade maranhense é modelada.

2.2.1 Imaginando um Maranhão branco e a caminho do branqueamento

“Raça” era um termo invocado para asseverar a necessidade do branqueamento da sociedade maranhense. Nos anos 1940, o médico

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Achilles Lisboa afirmava que o Maranhão era um estado débil e doente resultado direto de seus antepassados negros africanos. As identidades africanas e afro-brasileiras são inscritas em suas penas como resultado da associação irremediável entre sangue e “raça”. Lisboa não abandona a perspectiva que se concentra entre fins do século XIX e primeiras décadas do século XX, segundo a qual a mestiçagem é “uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da nação” (Schwar-cz, 1993: 13). Mas a postura de Lisboa é um tanto quanto solitária no Maranhão dos anos 1940.

“Representa a imigração para nós uma verdadeira transfusão de sangue, que nos venha levantar o valor da circulação da fortuna”. Com estas palavras Achilles Lisboa, tido como “um dos mais abalizados bo-tânicos e leprologos brasileiros” (diário do Norte, 28/8/1940), iniciava um texto publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM), em junho de 1947, intitulado “a imigração e a lepra”. os argumentos desenvolvidos no artigo são reveladores dos entrelaces entre “raça”, “povo”, civilização, cultura e identidade diante da neces-sidade manifesta do embranquecimento da população pela infusão de sangue europeu no Maranhão.

depois de seus estudos e de viajar pelo interior do Maranhão “em costa de burro, demoradamente portanto”, Lisboa ( 1947: 103-107) não tinha dúvidas de que a “imigração européia” traria racionalidade e vitalidade para a vida econômica e produtiva do estado. ele estava seguro de que os trabalhadores nativos, além de serem poucos para uma vasta extensão territorial – “escassez numérica”, também apresentavam “escassez energética”. Referindo-se a empédocles, filósofo grego antigo, pré-socrático, ele salientava que “a vida está no sangue e povos, por isso, anemiados, são organisações humanas sem valor produtivo” que, aos menores esforços pela civilização, esmorecem.

Lisboa tinha segurança de que a “imigração africana” trouxera vários “males”, tais como “a lepra, a bouba, a ainhum, a diamba, o timbó, a bilharzia [esquistossoma], o tambor, o bumba-boi” e “o Necator”. Note--se que o membro do IHGM coloca num mesmo grupo, associando indelevelmente um a outro, doenças (lepra, bouba e ainhum), verme (esquistossoma), parasito (necátor), sintomas de doenças, desnutrição ou simplesmente indisposição (timbó), manifestações de cultura po-

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pular e negra (tambor [de mina, de crioula, etc.] e bumba-meu-boi) e outras práticas comumente relacionadas ao povo, como fumar maconha (diamba). o que unifica esses elementos todos e os permite fazer parte de um único conjunto é sua suposta origem: “males outros muitos da imigração africana”. (Lisboa, 1947: 130)

o pior de todos, o necátor, ancilóstomo, era visto como “mais do que o próprio paludismo, o fator essencial da nossa anemia tropical, portanto, da preguiça, da inaptidão e moleza, dos nossos trabalhadores rurais”, “o maior entrave ao nosso progresso agrícola, porque é essen-cialmente o fator discrásico do sangue da nossa gente, cujos hábitos antihigienicos lhe facilitam a infestação”. Portanto, o problema do atraso social do estado estaria menos na quantidade de trabalhado-res, nas condições de higiene e saúde, do que no sangue vindo de África e circulando nas veias dos regionais. Aqueles primeiros fatores apenas maximizariam o problema. A preguiça é apresentada como resultante da doença, a malandragem da indisciplina, e ambas do sangue africano. “Com o que temos, por melhores que nos venham as medidas corretivas pela educação e pelo saneamento, não podemos contar no grau de urgência das necessidades econômicas atuais.” (Lisboa, 1947: 104)

Há aqui a construção de uma ordem de caráter espacial-racial em que os não-brancos são pejorativa e desigualmente pensados, uma construção ideológica dos regionais que tem como resultado uma leitura racista do mapa do território regional. enquanto os centros urbanos são inscritos como espaços de modernidade, as áreas rurais, habitadas principalmente pela população não-branca, são impressas como lugares de inferioridade racial, violência, atraso e barbarismo.

Para “regenerar a raça, dando-lhe vitalidade e energia que lhe levan-tem a capacidade civilisadora [...] só o processo de renovação rápida da introdução de um sangue novo”. A presença européia funcionaria como princípio emulador, “estímulo inconsciente da verdade evolucionista” que levaria os nativos a se transformarem sob pena de perecerem. (Lisboa, 1947: 104)

É importante notar os usos do argumento ambiental por Lisboa. en-quanto observava os trabalhadores locais, deixava claro que o sangue africano circulando nas suas veias era o responsável pela decadência

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da região. Quando trata da possibilidade real da imigração européia, então pretendida para a cidade de Alcântara, ele lembra que aquela localidade embora tivesse uma situação territorial e condições comer-ciais favoráveis, não possuía uma situação nosológica das melhores, haja vista que estaria infestada por uma doença infecto-contagiosa, a lepra. Neste caso, para que os imigrantes europeus pudessem “esta-belecer a agricultura proveitosa” havia a necessidade primeira de um “saneamento completo, baseado em medidas profiláticas de todo rigor”. (Lisboa, 1947: 105-107)

Lisboa trata de modo desigual os regionais e os europeus. enquanto o sangue dos trabalhadores locais, independentemente da situação do ambiente, estaria submetido às determinações negativas do sangue africano, o sangue purificador dos esperados trabalhadores europeus (no caso, italianos que, por sinal, nunca chegaram àquelas glebas) só conseguiria surtir efeito caso encontrasse um ambiente saneado. ob-servando indivíduos e grupos populares e negros, suas práticas, modos de vida e formas de comportamento, ele imagina um Maranhão e um maranhense degenerados que necessitam de uma ajuda externa para prosperar e contribuir para o desenvolvimento da nação. A identidade desses grupos é inscrita a partir de seu sangue que se tornara impuro pelo sangue africano. o homem do interior, trabalhador agrícola, com tais determinações sanguíneas e condições ambientais, num “amorteci-mento progressivo”, para temperar as durezas da vida, entrega-se “aos vícios da diamba e do álcool” e à festa do bumba-boi. (Lisboa, 1947: 105)

Lisboa não pensa uma identidade regional com os sinais dos mundos popular e negro. Nele, uma tal representação da região é inconcebível. ele é um dos que se empenha em uma só direção, “em contribuir no transporte homérico da bandeira da fama ateniense do Maranhão”. Considerava-se mesmo um dos “sacerdotes” do “egrégio templo das le-tras”, a AML (Lisboa, 1998 [1948]: 43-44). esta construção da identidade regional priva de humanidade negros e mestiços, ao mesmo tempo em que exalta valores e padrões identificáveis com uma europa branca. o Maranhão aqui sonhado é o mundo dos gregos do tempo de Péricles. o maranhense imaginado é erudito e branco. Sinais populares e negros, que lembrem algo de África ou dos nativos, soam como degeneração. enfim, esta é uma representação da região na qual negros e mestiços, e

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suas produções culturais, permanecem marginais, pois sua ascendência e descendência é identificada como impura e doente, contaminadora do patrimônio genético e cultural maranhense.

2.2.2 “Democracia racial” e “ideologia da mestiçagem” significando o Maranhão

É criticando a idéia de pureza racial e louvando a mestiçagem ma-ranhense e brasileira que Vieira Filho se apresenta em O engano das raças. o título do artigo é uma referência ao livro do cubano Fernando ortiz intitulado “el engano de las Razas” que, para Vieira Filho, punha “em evidência a falsidade do conceito de raça superior e raça inferior”. o intelectual era muito otimista em relação à ciência e acreditava que era tarefa dos cientistas sociais desfazer aquele tipo de preconceito. ele se posicionava como um combatente de atitudes preconceituosas e discriminatórias. Num país como o Brasil, “de rica e intensa misci-genação”, não faz sentido sonhar “com possíveis arianismos”. Vieira Filho não duvidava que houvesse raças. entretanto, afirmava ser um erro pensá-las hierarquicamente. e, sobretudo, acreditava num Mara-nhão e num Brasil positivamente mestiços. (Vieira Filho, 1951: 11-12)

Recordando criticamente Arthur Gobineau, o intelectual salienta que esse é o responsável pela teoria da pureza racial do europeu, “‘dou-trina’, hoje sem fundamento científico, mera curiosidade intelectual”. Mas o arianismo é uma “mistificação política, sem apoio na ciência [...] e por mais paradoxal que pareça foi um alemão, Leo Frobenius, que mais tarde revelou ao mundo a riqueza emocional e a fôrça criadora da raça negra”. (Vieira Filho, 1951: 11-12) o fato é que, para Vieira Filho, “os preconceitos raciais não têm mais cabimento nos dias de hoje. A antropologia cultural tem provado, à farta, que não há povos sem a eiva de cruzamento”. (Vieira Filho, 1951: 12)9

9 Este é o período em que ocorre, especialmente na antropologia física, a transição de “raça” para “população”. Transição que não foi abrupta, mas “híbrida e singular”: “raça” vai perdendo conotação tipológica e descritiva e vai assumindo tons evolutivos, aproximando-se de “população”, cuja ênfase é em variabilidade e dinamismo. A partir dos “Estudos de Raça” da Unesco o debate ganha status de interesse público, e não somente acadêmico. (Santos, 1996: 124).

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depois de notar que, na cidade de São Luís, o preconceito racial existe, mas não é aberto, franco, ostensivo e que, mesmo quando se apresenta, é atenuado, não havendo, desse modo, hostilidades deliberadas por parte de brancos em relação aos negros, Vieira Filho mostra o espaço religioso como lugar privilegiado para a manifestação dessa amistosidade. “No terreno das relações religiosas, brancos e pretos confraternizam, movidos todos de sentimentos idênticos”. Um exemplo dessa fraternidade ele loca-liza no culto de “um dos santos de maior devoção na terra maranhense”, “o prêto São Benedito, cuja procissão reune massa incomputável de fiéis de vário matiz, num desfilar que se arrasta durante horas”. Momento significativo para mostrar a confraternização seria quando “dezenas de meninos brancos são tisnados e vestidos com a túnica do santo milagroso, em pagamento de promessas.” (Vieira Filho, 1954: 8)

enfim, as idéias que levavam a pensar um Brasil positivamente mestiço ou mesmo que haveria nessa nação uma espécie de democra-cia racial se constituem como repertórios que davam sentido e forma a muitos modos de ver e fazer a região.

2.2.3 O resgate do elemento negro

este é também um momento em que, ao mesmo tempo em que se louva a mestiçagem, proclama-se a necessidade de se fazer um res-gate da história de negros para melhor se compreender a história e a gente/“raça” maranhense e brasileira. No Brasil, a partir dos anos 1930 ocorre a canonização das ciências humanas e a redescoberta do africano. Busca-se fazer relações entre o negro e a história, a civili-zação, a cultura, a sociedade, etc., tentando-se mostrar a influência social e histórica dos afro-brasileiros. No Maranhão, tal perspectiva é ladeada por dois extremos. Num deles, como analisei anterior-mente, há a tentativa de se legitimar abertamente o branqueamento da população do estado, num outro, como tentarei mostrar, os afro--maranhenses são apresentados como os responsáveis primeiros pela formação psico-sócio-histórica da região. e essas narrativas usam os mesmos canais para se manifestar: no caso, os jornais, revistas e outros materiais escritos nos quais a intelectualidade maranhense costumava publicar seus textos.

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A idéia de que os negros constituem um dos “agrupamentos hu-manos” de maior destaque ao longo do tempo emerge em diversos lugares. embora esta seja uma operação que freqüentemente repete estereótipos de velhas visões sobre os negros, ela contribuirá para o enfraquecimento das múltiplas formas de pensar o Maranhão como unicamente branco-europeu, e para a consolidação da imagem da região como negra e popular.

em Notas para um estudo do negro maranhense, de Astolfo Serra (padre, jornalista, poeta e escritor, participou da Coluna Prestes, da Aliança Liberal e da Revolução de 1930, e membro da AML e do IHGM), publicado em 1950, cristaliza-se claramente uma operação cujo objetivo é inserir o negro, entendido como afro-maranhense, afro-brasileiro, na Atenas Brasileira. operação tão complexa quanto ambígua. em alguns momentos Serra se apresenta como uma espécie de antípoda do médico e como ele, imortal da AML, Achilles Lisboa. em outros, eles se aproximam. A história do Maranhão é vista por Serra como um livro no qual falta escrever um im-portante capítulo e “êste capítulo é de reparação”. Seu objetivo é “reintegrar na história o negro maranhense” e “contribuir para o estudo do elemento africano nos vários circulos de nossa formação histórica”. (Serra, 1950)

A operação de inserção dos negros na identidade regional, na “raça” maranhense é, então, atualizada; o “sangue negro” é inscrito como elemento-chave para a constituição da Atenas Brasileira na figura de seus poetas conhecidos e anônimos.

de onde vieram essas correntes sentimentais, êsses rítimos de lirismo;

tôda essa amável harmonia de nossos poetas, de nossos cantores

anônimos, que encheram quase três séculos de nossa história com

os transflôres de uma bonita tradição de povo culto?

e aquele fatalismo conformado de nossa gente rica de imaginação,

opulenta de bravura? Quem no-lo deu? o sangue cálido e sofredor

do negro escravo! [...]

essa poderosa reserva humana fez prosperar a terra das palmeiras.

(Serra, 1950: 61)

Sacerdote cristão católico que fora, afirmava ainda que essa foi uma “mistura racial” que “fez um milagre maior, o de criar os mitos e

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símbolos inesquecíveis que nos povoaram os céus de nossa juventude sem nos descristianizar”. Tal mistura racial singularizada pelo sangue negro deu ainda “o sete estrêlo de nossas afeições ao lar, germinando em nós raizes que nos prendem à terra-berço com tamanha resistência, que, mesmo ausentes dela não nos separamos, vivendo os nossos sonhos redivivos na dôce evocação de seus encantos seculares....” (Serra, 1950: 61) Portanto, o próprio sentimento de pertença à terra natal e as raízes do apego dos regionais à região não poderiam ser entendidos sem se considerar o sangue africano circulando na alma regional.

Nesse âmbito, é fundamental encontrar um herói. Seleciona-se o “preto Cosme”, conhecido personagem de uma das principais revoltas do Brasil pré-República, a Balaiada, então construído pela historiografia oficial como bandoleiro e desordeiro. “Chamem-no de paranoico; digam que foi um bandido; julguem-no apressa-damente à luz dos preconceitos da época, ou do conceito oficial que o condenou. Uma cousa é verdadeira: o negro Cosme foi um leader à altura dos de sua raça”. Cosme, “rompendo com as leis do cativeiro, agiu impelido pela mais bela e mais humana das virtudes, o amor à liberdade”. Lutando pelos seus irmãos de servidão, foi “uma expressão de humanitarismo, sentimento de solidariedade”. (Serra, 1950: 69-70) Na capital que se imagina de origem francesa não é estranho que seu herói negro também seja pensado nos sinais gálicos de liberdade, igualdade e fraternidade. de fato, os mesmos símbolos e idéias podem ser usados de maneira variada por diferentes grupos e em contextos sociais e momentos históricos diversos.

Importante lembrar que já no contexto estado-novista, notícias do pan-africanismo circulavam na imprensa maranhense como em 1938 (diário do Norte, 27/1/1938). Certamente, a emergência de regiões e nações positivamente negro-mestiças na América Latina e, particularmente, no Brasil na primeira metade do século XX, relaciona-se não somente à descoberta do povo na europa, como também ao pan-africanismo, cujo auge vai de 1920 a 1960. Apesar de se tratar de um movimento manifesto sobretudo em língua inglesa e, em menor grau, em língua francesa, mereceria um estudo a parte tentar perceber suas relações com países da América Latina. Talvez

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não seja à toa que emergem, ao mesmo tempo, um movimento que coloca no centro de suas argumentações, uma imaginada “África” (mundos anglófono e francófono), e um outro, que apresenta, no cerne de suas construções, culturas populares e culturas negras (mundos lusófono e hispânico latino-americanos). Se a idéia de ne-gro, de uma “raça” africana, é um elemento inevitável no discurso pan-africanista (Appiah, 1997), o mesmo ocorre com a construção do Brasil, de Cuba e do México como nações positivamente mestiças e, especialmente, negro-mestiças.

considerações finais

Longe de ser algo natural e atávico, identidade maranhense consiste em um processo identitário e, como tal, passa por modelações, adapta-ções e transformações, como se pode observar em meados do século XX, particularmente quando se enfoca, de modo inter-relacionado, o campo das representações e do imaginário, e as dinâmicas, conflitos e interações entre os diferentes e desiguais sujeitos, setores e grupos sociais.

Uma breve reflexão mereceria ainda ser feita. As pesquisas têm demons-trado que, nos anos 1920-30, quando se consolida uma auto-imagem do Brasil que privilegia os aspectos “mestiços” da nação, muitos homens e mulheres negros se posicionaram como agentes de sua presença enquanto símbolos nacionais, isto é, eles contribuíram para a formação (simbólica) do Brasil positivamente mestiço e negro-mestiço (ver, por exemplo, Gomes, 2001). Mas é importante atentar para a obviedade de que inclusão simbólica não necessariamente implica inclusão sócio-econômica.

ora, tome-se o caso do Maranhão atual. Apesar do propagado discurso da maranhensidade ou do Maranhão Novo, no qual temas, formas e conteúdos populares, eruditos, negros e brancos se fazem presentes, houve é há algo no Maranhão dito Atenas Brasileira e não São Luís desejada francesa (isto é, eurobrasileiros) que detesta e elimina negritudes (culturas e pessoas).

durante muito tempo, no Maranhão Atenas Brasileira se perseguia aberta e oficialmente tudo que lembrasse África e os povos nativos. depois, passou-se a elogiar alguns elementos culturais índio e afro-descendentes. entrentanto, continua-se a não se saber como promover

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oportunidades iguais para pessoas de todas as cores e classes. Isto é, no Maranhão, assim como no Brasil, houve uma apropriação simbólica de alguns elementos das culturas negras e populares, mas não uma in-serção sócio-econômica das pessoas pobres e não brancas – fenômeno ainda por ser manifestado.

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