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José de Souza Martins Biblioteca 11111 I II 100141164 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 1. Classes sociais 2. Marginalidade social 3. Migração interna 4. Pobreza 5. Sociologia rural 6. Trabalho e classes trabalhadoras L Título. Martins. José de Souza A sociedade vista do abismo : novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais / José de Souza Martins. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2002. l" ISBN 85.326.2719-b Ih EDITORA Y VOZES Petrópolis 2003 2'"" Edição Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais A socleôaôe vista ôo abismo I ! I I J , I I CDD-301 Índices para catálogo sistemático: 1. Problemas sociais: Sociologia 30I 02-1696

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José de Souza MartinsBiblioteca M~-PUC/5P

11111 II~ I II100141164

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

1. Classes sociais 2. Marginalidade social 3. Migraçãointerna 4. Pobreza 5. Sociologia rural 6. Trabalho e classestrabalhadoras L Título.

Martins. José de SouzaA sociedade vista do abismo : novos estudos sobre

exclusão, pobreza e classes sociais / José de Souza Martins. ­Petrópolis, RJ : Vozes, 2002.

l" ISBN 85.326.2719-b

Ih EDITORAY VOZES

Petrópolis2003

2'"" Edição

Novos estudos sobre exclusão,pobreza e classes sociais

A socleôaôe vista ôo abismoI!II

J,II

CDD-301

Índices para catálogo sistemático:1. Problemas sociais: Sociologia 30 I

02-1696

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SITUAÇÕES DIFERENCIAISDE CLASSE SOCIAL

Operários e camponeses

Exponho aqui um exercício pedagógico de ensino dire­to na relação com pessoas envolvidas em propostas de pro­moção humanajunto a populações pobres nas regiões ser­tanejas do país.

Na década de setenta, no interior do Brasil, especial­mente na Amazônia, através da'Comissão Pastoral da Terra,comecei a dar cursos para agentes de pastoral das igrejaspreocupadas com as questões sociais, para organizadores desindicatos e dirigentes sindicais, trabalhadores e outros mi­litantes da causa dos direitos humanos e dos direitos sociais.Esse foi um trabalho educativQ que se estendeu até meadosdos anos noventa. Fazia parte do que na minha universida­de, a Universidade de São Paulo, se chama de prestação deserviços à comunidade, modo de fazer chegar a diferentessetoles da sociedade, de diferentes mocios, o conhecimentoque na universidade se produz.

Essas pessoas se defromavam com a missão de difundiros valores da civilização e da sociedade moderna no ambi­ente antagônico e violento da ditadura militar. Um. tempode acentuadas e rápidas transfonnações econômicas com am-

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sltllnções di/mnc/ais...

pIas conseqüências sociais negativas. Sobretudo na violaçãode direitos, tanto os consagrados na lei e nos tratados,quanto, sobretudo, o direito costumeiro, tão significativo ain­da na vida das populações rurais.

Essas pessoas agiam, especialmente, em remotas regiõesdo país, onde mais vulneráveis são os valores e mais fácil é aviolaç~o da lei e do costume, muito além do arbítrio própriodo regtme de exceção. Viviam sob o risco diário da repres­são poli~i~l e da violência privada dos grandes proprietáriose ,dos gnlelros de terra e seus pistoleiros. Justamente porquedIvulgavam nas populações locais o que a própria lei e ostratado~ internacionais, de que o Brasil era e é signatário, re­conhectam como direitos, os direitos humanos os direitos. . ,SOCiaiS e os direitos políticos.

Algumas dessas pessoas haviam sido educadas na tradi­ção da doutrina social da Igreja, habituadas a ver as vítimasdas condições adversas de vida na perspectiva genérica dacategoria de "pobre" e seu mundo, a pobreza. Outras haviamsido ide~logic:ment~formadas nas tradições de uma esquer­da que V1a e ve a SOCIedade como uma estrutura formal e rí­gida ~e_classes sociais. E que nela não reconhecia a condiçãode sUjeito do processo histórico senão na classe operária. Ou­t~as, ai~d~, estavam identificadas com as concepções ideoló­gtcas diSSidentes, maoístas, de que aos camponeses é queestava reservado o papel de timoneiros da História. Semc~mtarque, com exceção de católicos e protestantes, não ha­vIa nesses esquematismos lugar para as populações indíge­nas~ se,m dúvida as maiores vítimas da expansão territorialcapitalIsta das décadas de setenta e oitenta.

Os bispos e os agentes de pastoral das igrejas convida­vam-me a falar e debater, e convidavam outras pessoas, pre­ocupados em fundar sua prática no conhecimento socioló­gico e antropológico. Defrontavam-se com desencontros ed,esco~ecimentos que decorriam das perspectivas que men­CIOneI e de sua formação urbana, não raro sulistd, ou estran-

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geira, ou, sob:e~u.do,das limitações das identificações ideo­lógicas e partldanas dos agentes de pastoral.

Havia, e já não há, uma vantagem pedagógica clara nes­sa demanda que reunia motivações não raro muito discre­pantes: a vantagem da dúvida e da incerteza, ~ recon~eci­

menta do desconhecimento. Da parte da Igreja Cat6hca eda Igreja Luterana havia a opção de romper de vez com atradição secular da pastoral da desobriga, o missionarismode pronto-socorro, ocasional e difuso, praticado nas fazen­das ao abrigo dos grandes donos de terra1.

Multidões de explorados, recrutados sobretudo no Nor­deste e no Centro-Oeste, chegavam diariamente aos povo­ados da chamada Amazônia Legal para derrubar a mata co­mo peGes escravizados sob a chibata dos capatazes e pistolei­ros, para não raro morrer de malária sem assistência e sem di­reitos. O latifúndio queria a bênção da Igreja para sua obrade difusão do progresso, o progresso predatório, violento eviolador da devastdção ambiental desregrada, do parasitis­mo dos incentivos fiscais, da incorporação forçada ao cená­'rio do chamado progresso de grande número de tribos indí­genas até desconhecidas, da exploração impiedosa dos tra­balhadores, da expulsão dos posseiros da terra que ocupa­vam, habitavam e cultivavam, muitas vezes há gerações.

Na Amazônia, uma história de séculos de expansão ter­ritorial violenta era reassumida e resumida em graqde esca-

'la no átimo histórico de uns poucos anos, que recolocava napassividade de uma história inevitável, de um destino in­contornável, centenas de milhares de pessoas e, de certomodo, o país inteiro. Era como se o Brasil todo estivessesendo convocado para o último episódio de uma história

1. Um documento exemplar e um testemunho dessa ruprura e dessa opção é a car­ta pastOral de investidura de Dom Pedro CasaIcLíliga como bispo de São Félix, noMato Grosso (cC Casaldáliga, Pedro. Unw Igreja da AmazÔtlia em (onjlitorom a !alijUn­dia e a marginalização social. São Féli.'C do Araguaia (MT), 1971.

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s/tlUlÇlies diferwcú1is.. ,

repetitiva de genocídio e violação de direitos. Nosso passa­do explodia de repente na cara de todos, como o presentelúgubre de uma história trágica.

Mas, esse passado se alçava diante de um presente decontradições e diversidades, de inquietações éticas e incer­tezas políticas, dos grupos sociais que já nâo tinham compro­misso com o latifUndio e suas seqüelas, Grupos que viam comindignação e espanto essa ressurgência visual daquilo que es­tivera estruturalmente ocultado na história recente do paíspelos muitos e eficientes mascaramentos e dissimulações queesta sociedade desenvolveu para constituir a sua modernida­de anômala e ingressar no mundo moderno.

Na Igreja, na universidade, no sindicato, nos diferentesgrupos sociais não havia lugar suficientemente amplo para aindiferença e a cooptação. A Igreja, em particular, inquie­tou-se, muito mais do que a universidade e os próprios sin­dicatos. Reconheceu imediatamente que o Estado militarpunha esta sociedade no limite da condição humana. So­bretudo, porque definia valores desumanos e desumaniza­dores para o seu desenvolvimento econâmico e para afir­mação de um poder político ditatorial que limitava o reco­nhecimento da condição humana unicamente aos dóceis,aos omissos, aos indiferentes, aos reacionários, aos que seconformassem à sua lógica coisificante, aos integrados.

·A nova pastoral social que se difundiu na década de se­tenta era amplamente inspirada pela defesa dos direitos hu­manos, muitíssimo mais do que por qualquer preocupaçãocom visões políticas de classe ou por uma efetiva orientaçãopela conscientização política e a partidarização dos pobres edas vítimas da adversidade. Nisso, aliás, estava seu grandemérito, o da identificação com os valores universais relati­vos à condição humana e não com os particularismos declasse e de partido que depois tomaram conta da ação pasto­ral e a imobilizaram na perda de criatividade.

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;.

Essas pessoas se defrontavam com as lin~l.Ítações reco­ecidas da categoria "pobre", e da generalIdade de ~ma

nh d b obreza que era a herança conceituaiepção e po re e p . .coIle, d "d de cri'stã Nas situações-hmlte da pasto-mente a carl a· . . fi'nU fi . "pobre" era uma categona pobre, lnsu lCI-t da rontelra, l' h .ra disso os bispos estavam conscientes. Porque a I aVIaente, e. 'd d d "pobres" que se encaixavam mal nessa

a dlversl a e e, dum . emida' havia os índios procedentes e tantos ecategonaespr· .' dd'versificados universos cult~rais; h~vla posselro~~eta.r a-;. s de um processo histónco reSidual e len~o, aVI~ os

uno lonas dos núcleos de colonização públicos e prlV~­nOVOS co . " " I tifi' ndlOd

E havia a sua contrapartida: haVIa o novO a uos. . I' gregavam aos seus

das grandes empresas caplta Istas que a. . ha-, trUmentos de poder e riqueza a propned.ade da ter~a:~: os pistoleiros; havia o Estado que patrocmava e ~e~lt1ma­va o matrimônio contraditório da terra com o caplta .

Com reender a diversidade, relativizar as cat~gorias. so-.' mPliar o conhecimento da realidade SOCial,. acel~r,

clalS, a P .~ 'la era um interlocutor necessárIO, fOI oenfim, que a Clene , . '} _, I vou à procura de cientistas SOCiaiS, antr~po ogos e soq?e e d' 'logo pedagóo1co que amphasse o enten-clólogos, para o la t>"

dimento da situação e do momento. .

Brin uei algumas vezes com os poucos de nós eu,:,olvI­q . -o educativa dizendo que estávamos cnando

dos nessa missa , . N s sa-"universidade popular e itinerante", a U mpop. o:sa

~as de aula eram salões de igreja, galp?~s, ranchos, arv~~:~frondosas. Nossos alunos, padres, religIOsas, p~t~~es, hopos leigos, professores rurais, trabalhador~s.e 10 110S,. d~

, mulheres jovens e velhos. Nosso salano, a a egn~:~~~cimento c~mpartilhado, do n?sso pr6J:>rio aprbendlza­

. h também multO a ensmar 50 re estedo com quem tm a,' I vipaís sobre diferentes grupos humanos, sua cu turah~u: . ­_ 'de mundo sua concepção de esperança. sua lstona,:~~ língua, no;sa lín~a p~ortuguesaainda tão preservada e

tão bela nos ermos e nncoes.

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SiÚ!1lções dijemlcillls...

A dificuldade maior de muitos de nossos "alunos" era ade sua visão urbana da realidade social. Sua consciência so­cial e política dominada pelo reconhecimento de que ape":'nas a classe operária é uma classe que luta por transforma­ções sociais, uma classe dotada do mandato histórico das~~danças ou uma classe reveladora das. contradições so­CIaIS. Quem não pensava através da categoria "classe operá­ria", pensa:va através da categoria "pobre", como a categoriados escolhIdos, dos portadores da verdade profética da His­tória e da renovação do homem e da sociedade (e da Igreja!).

. -As limitações desses entendimentos do que é a sociedadede hoje eram reconhecidas pelos presentes nos muitos en­contros de estudo de que participei. Por isso mesmo, pessoascomo eu eram convidadas para ouvir as narrativas de proble­mas, tensões, conflitos, concepções, mentalidades, dificulda­des culturais de diálogo, interpretá-los, situá-los e explicá-lossociologicamente.

Na diversidade de situações sociais presentes nas inquie­tações dos que compareciam a esses encontros, escolhi acategoria de "~lasse social" para desenvolver uma reflexãocomparativa entre "operários" (em relação aos quais havia"teorias" conhecidas) e "camponeses" (os desconhecidos eportadores do desafio ao entendimento). Era um modo detratar de uma característica fundamental da sociedade con­temporâne~,que é a da diversificação social, não só a das gra­daçQes de nqueza e pobreza, mas também diversificação dasinserções sociais, das situações sociais, das mentalidades, daspossibilidades e limites de atuação social e histórica das dife­rentes classes e categorias.

No geral, havia nos agentes de pastoral e nos militantesp.olíticos a propensão de estender aos camponeses o conhe­CImento que se tinha sobre os operários, especialmente noque se refere ao entendimento doutrinário e ideológico. Oudoe cobrar d.~s ~abalhad~res rurais comportamentos operá­nos e conscIen~Ia operána. Em outras palavras, os agentes ti­nham expectatIvas de que os trabalhadores rurais "existis-

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sem" e se comportassem como classe social, no padrão pró­prio de conduta da classe trabalhadora gestada na fábrica, naempresa capitalista.

Caminhava-se em direção a um rótulo abrangente,uma categoria geral de classificação e defini.ç~o de um s~­

posto sujeito histórico como se fosse um sUjeito substantI­VO a categoria vaga e genérica de "trabalhador". Isso era for­çado, projetava ideologias relativas à classe operária e con­fundia sobretudo os agentes de pastoral, que em sua expe­riência recolhiam a todo momento evidências de severasdiscrepâncias em relação a essa caracterização sumária. Elespróprios iam descobrindo que havia trabalhad?res e ~ra.?~­

lhadores, com diferentes visões de mundo, proJetos hlstor~­

cos e vivências, dependentes da experiência concreta de VI­da e da respectiva situaçã0 social e de classe.

Mesmo nas universidades, houve notórios empenhosem seminários, cursos e congressos para forçar o enquadra­mento do campesinato atual nas categorias e doutrinas ~e1a­

tivas à classe operária, Chegou-se a pensar numa espéCIe deoperário indireto porque seria o.camp?nês tamb.én:. um tra­balhador para o capital. EsquecIa-se aI das.medlaç.oes e d.asparticularidades, aquilo que de?ne a 9~ahdade ~Ifere.nçIal

dos diferentes grupos e categonas SOCIaiS. Uma SImplIfica­ção anti-sociológica que persiste ?,OS s~tores da ação. pasto­ral e da ação política que foram mvadldos, contamma?o;,aparelhados e parasitados por ideólogos e ag~ntes partlda­rios, no geral sem formação acadêmica específica e sem com­petência teórica apropriada.

Meu empenho foi sempre no sentido de enfatizar .asmediações, a diferenciação e a especificidade das categorIassociais. Se queremos entendê-las como sujeitos de vontadesocial e política e sujeitos de possibilidades históricas, éjus~­mente necessário reconhecer-lhes as singularidades, aqUiloque as diferencia e não aquilo que as dilui em cate~rias .abrangentes e genéricas. A força numérica das categonas dereferência de militâncias políticas assim fundamentadas tem

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Sítllilçiits diju(IJCÚlf5•.. -sua contrapartida na sua fraqueza social e histórica. Importa

aquilo que expressa suas possibilidades e limites de situa­

ção, compreensão e atuação histórica,

Foi sempre nessa direção que encaminhei a pedagogia

de minhas propostas de educação popular. Isso me trouxe

não poucos problemas. Agentes ideológicos de partidos

clandestinos, das chamadas tendências, no geral presentes

nesses encontros, tinham barreiras claras àaceitação de uma

pedagogia aberta à indagação, à reflexão crítica e a um reco­

nhecimento da importância auxiliar da antropologia nessa

r~f]exão. Eram as barreiras doutrinárias, apoiadas em rea­

lidades sociais, históricas e políticas muito diferentes das nos­

sas, próprias de outras sociedades (como a Rússia, a China,

Cuba), e não raro desantalizadas historicamente, que nos che­

gavam através da literatura de vulgarização do marxismo. Es­

quemas fechados, sistêmicos, de grande pobreza teórica, in­

terferiam freqüentemente no atendimento das solicitaçõesde ensino e diálogo que recebia.

Os agentes de pastoral eram mais abertos à compreen­

são sociológica das realidades sociais com que lidavam. Ti­

nham uma imensa sensibilidade antropológica, capazes de

precisas etnografias de grande valor científico, coisa que os

agentes e militantes partidários eram incapazes de fazer e

reconhecer. Um colega de grande competência científica e

notável talento como educador, Carlos Rodrigues Brandão,

numa avaliação final e posterior de um desses encontros de

que 'também participei, em Goiás Velho, teve sua atuação

pedagógica questionada porque entendera que os presentes

precisavam de um curso de antropologia cultural e o deu.

Eles preferiam, como disseram depois, um curso centrado

no privilegiamemo da mudança política e não uni curso pa­

ra entender e decifrar a realidade social. Achavam desneces­

sário conhecê-la para mudá-la, "já que queriam mudá-la"'

Uma atitude própria do voluntarismo político que acabaria

se disseminando pelas pastorais sociais e peJo que se pode­

ria definir como "esquerda popular", nos chamados movi­

mentos populares, cuja despolitização fica evidente em ati-

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"

"

d como essa2 Justamente, a atitude que pede o trabalhotU es .pedagógico do educador popular,

2. <?urr? :iS6:i~~~o;t~:;;;:n%n:~~e~:c~b~r~~~~~:a ~~~se::sC:ld~~~o~~~pcn~nc~m_:C ;s ~gentesde pastoral da pouca receptividade, ~or parte do~ tr:J­

QueIXa , sua militância e :lO seu empenho cm transforma-los numa orça

ba\~~dO~~~~iZ:l.da,Sugeri que os trabalhadores fossem ouvidos. Para is::o, pro­

po mca fossem convidados representantes de todos os lugares da regIao para

pus que '_ Gol'~nl'a de que participei Propus aos trabalhadores que elesma reunJ:lo em .. , . , _ ri-

u . es uisa para descobnr quem eram, que concepçao ,própnos fizcs~edmduma p pqroblcrnas se tinham e qual era sua identidade. HaVla

ham de sua VI a cseus, bl

n tre eles tr.tbalh;dores analfabetos e isso foi ~pOlJtado ~o:nl~ um pro e~a~~:en , ão da es uisa uma investigação SImples e facI e execu~. asl.,.

a reah:uç da trabal~dor'deveria visitar um certo número de seus amigos e VIZI­

mente, ca ntas sobre essas questões, através de um bate-pap~.nhos e fazer algumastergu e levasse um filho ou um amigo alf3beu-

~~~~~ã~S~~~s~s~eu~:a~~cr~~e;~~~ a outr~ pessoa dissera e ambo~c~nfcr~~=' d anota ões. Todos devenam trazer para uma pr Xlma r ,

amJunlosGo ~:o~ as "rclaÇt6n'o" de suas descobertas. Estive presente também

'-o em olama um d 1 enJ;J. • , '. .. d resa dos 3gentes e pastora, qu

~;J.~~~~~:~:~~i~~a~t~:;~~~~~;r~~~ci~6;J.~~;~~:;:do:r~r;~:i~~ev:~~~l~e~~~~;ecd~~!;~~Sdiferen~esmolli<Íades de arividade,. q~e para

qe~s definiam diferentes "identidades" de trabalha~or; ~oIaram mais . c~~:. omar que mcluuam na categona

~~~~~~~~::~a:~~~:~o:~i~r~~~;~~e~uerda não incluiria, como a de;s:~~" 'd fites de pastoral buscavam era apenas ICr-

~ar. Ist~c~' ~al~~a~~::n:df~~~~~e, cujo rnbalhador ~ral n~o exi~ria e o q~~~~~~~~entc deveria existir não se reconheci.a nessa des~~~ç~o, FOI emd::~da pedido que os tr;J.balhadores construísscmJ~n~.s um~;: ~~~:::~m pelo

descobertas, uma "cartilha" como gostavam e Izer~ ai ém escrever ou fa-

mei~ que pusd;~~~~:~~~i~~~=c~nta~~~~r;i dad~um prazo para que

zen o verso f: ' razo foi cumprido, Porém, os meses se passavam e os

o fizessem e de ato? p . b'l" ída da "cartilha" que seria distribuídates de pastor.tl nao Vla 1 lzavanl a sa 'l" AI

agen " b Ihadores, Várias vezes falei com eles por tdelone,. . ega­entre os prop.rlos tr.õl a _ ue talvez fosse o caso de corngI-los;vam que haVia mUItos erros de redaçao, q A ti I "cartilha" saiu

I d - bom nem esclarecedor, etc. o ma, aque o resu ta o n~o e~ título dado pelos próprios agentes de pastoral: Uma lu/il

com e.~te s~):~~~ ~~es manifestaram no título seu des~or:tentamento com a

:c~~~liê~~i~'c a prática dos trabalhadores que quer.i:m :cdlmlr'~~af~~: :~;r~:=~ão do ~pitali~~d~:;~~~;~~en~~~~:ri~:;~c~f~~~~:~r:Sse ~édia" dâ:ses

ores. ma m, o,...., estavam viv:unente empenhados na formaçao de·sm lca-grupos que n3 ep...., '.tos de tr.tb3lhõldores ruraIs na regIao.

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sillUlções tiifereJlcílliS...

Aqui reproduzo, adaptada agora à forma de texto, umadas aulas que dei num encontro de estudo em São Félix doAraguaia (Mato Grosso) na primeira semana de julho de1978. Fi-lo a convite de Dom Pedro Casaldáliga, um persis­tente e paciente pioneiro na proposição e valorização do es­tudo entre os agentes do trabalho de base da Igreja Católica.Montei essa linha de interpretação comparativa lá mesmo,na ocasião, em face das dificuldades e das necessidades decompreensão da realidade do campo que os participantesind~~aram nos primeiros dias do encontro. Carlos Rodri­~es Brandão também participou desse encontro de estudofazendo exposições e análises antropológicas.

Repeti essa exposição, adaptando-a e ampliando-a, emoutros lugares do interior do país, em diferentes ocasiões.Utilizei a concepção sociológica de sÍluafão de classe social pa­ra indicar coincidências e diferenças entre operários e cam­poneses. Sobretudo para indicar as limitações do conceitode classe social ou de uma teoria das classes sociais para ana­lisar e compreender a situação, a realidade e as esperançasde populações claramente à margem da estrutura de classes.De modo que os ouvintes pudessem desenvolver um en­tendimento crítico do conhecimento que tinham a respeitodas classes sociais e das características sociais próprias douni~erso em que estavam atuando.

Suas dúvidas sugeriam a necessidade de compreender oque é a diferenâafão social na sociedade contemporânea, paracompreender o que é a estrutura social de classes. Para com­preender, também, as singularidades sociais e culturais daspopulações com as quais conviviam e de cuja emancipação elibertação queriam ser coadjuvantes. Para compreender, so­bretudo, as promessas de transformação social contidas na si­tuação das populações camponesas, cuja realização é altamente

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'.

-d endente de mediações sociais e políticas que não estão di­

ep ente enraizadas na situação dos trabalhadores rurais3.retarn

Fiz exatamente O que está exposto a partir da página se-. te' l'ndico um tema relevante na caracterização da classe

gU 1n . ., . e ao lado indico como esse tema se caractenza naoperarIa , '

. -o do campesinato. De modo que se possa compreen-Slcuaça .. , . d .der as diferenças SOCiaIS e estruturais entre as uas cat~gon-

sociais. Sem prejuízo, evidentemente, do reconheclmen­as d "diferenciação interna" de cada "classe" social. - Lem-to a . J

bro ao leitor que o texto das colunas se~precontmua na pa-gina seguinte; é assim que devem ser lidas.

Esta exposição decorria de uma explan~çã?inicial sob~estrutura e a dinâmica da sociedade capitalIsta, as condl­

a;es da diferenciação social nessa sociedade, os diferentes~elacionamentossociais com o núcleo do processo repro­dutivo do capital e da sociabilidade que lhe ~orresponde.por isso, o ponto de partida é,a exposição das dlfer::nças nosvínculos sociais fundamentais, aquilo que é radicalmentediverso numa situação de classe e noutra.

3. Em conferência relativamente recente, no Rio de Janei~o, o,s~ci6Iogomexi­cano Armando Bartra nos oferece um quadro interpretativo I.UCldo c bem-hu­morado das transformações na situação e na ação do campesma~ode seu p:ís,que se aplica largamente ao campesinato de diferentes parses e às mterprctaçoes

I I · cr Bartra Armando. Sobrroiviente5 - Historias en lajremlera. Traba-a e e re aUvaS.. • .lho apresentado no Seminário sobre "Reforma~áriae DemocraCIa: a perspec-tiva cbs sociedades civis", Rio de Janeiro, 4 de mala de 1998 [http//ww;N.datatcr-

ra.org.br/seminario!bartra.html·

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SítUJlções difermcÍ1!f5 ... --

4. As referências teóricas par:l compreensão da situação de classe c da consciên­cia real e possível dO,operário, nesta análise, são principalmente as de Marx,KarL EI :aI!ilal- Crítica ~e la economía Política [trad. de Wenceslao Roces}, 3 to­mos, MCXlco-Buenos Aires, Fondo de CultUr:l Económica, 1959. Marx, Karl.Elemmtosfundamentales para la crílita de la economía política (Borrador), 1857-1858,3tomos [trad. Pedro Scaron), Buenos Aires, Sigloveinteuno, 1971-1976. Cf.,tam~m, L~kacs, ,?corg'lf~tojre et cOl1science de classe [trad. Kosta5 Axelos & Jac­queime BOIS}. Pans, Lcs Edltions de Minuit, 1960,

Na relação com a terra e apropriedade da terra, há distintosmodos de ter acesso a ela e depoder usá-la. O mod? mais ca­racterístico do relaCIonamentoentre o nossO camponês e a terraé o da propriedade. É na condi­ção de proprietário que ele asse­gura o caráter independente deseu trabalho. Mas, há, também,distintos modos de ser inquilinodo proprietário da terra, de ser oque de modo mais apropriado sechama de arrendatário.

O arrendamento pode ser fei­to mediante pagamento da rendaem trabalho. Em rroca da permis­são para usar a terra em sU,a 'pró~pria produção, o arrendata~o daao proprietário um certo num~­

ro de dias de trabalho nos cultl­vos dele proprietário; o campo­nês trabalha, então, uma,partedo tempo em roça alheia. E umaforma primitiva e antiquada depagamento da renda da terra.Na fonua, ela institui uma rela­ção entre o camponê: e o pro­prietário muito parecida ~om arelação que havia na SOCiedadefeudal entre o senhor e o servo.A diferença é que lá o camponêsera uma espécie de cc- proprietá­rio enquanto membro da co­munidade camponesa de quefazia parte. Na sociedade capita­lista, não há esses direitos decc-propriedade.

Uma segunda modalidadede renda é a renda em espécie pa-

. baseado na coação física esenaoral e na dignidade.rn ,

O operário é livre e j~aL E

1, e porque livre dos meiOS deXVI" d "ddução, deles estltul o e sepa-pro d' - dn.do. É livre porque não ISpoe e

U de nada além de sua. força dese balho, de sua capacidade de tra­:har. A emergência histórica do

Pitalismo se di quando o traba-ca . d

lhador é separado de seuS meios eprodução. É nesse sentido mate­rial que ele se toma livre.

Sua liberdade é, pois, a con­dição de sua sujeição: ele é .,so­cialmente livre, mas economica­mente dependente, uma vez quedeve vender sua força de trabalhoa quem dispõe dos meios de pro­dução para que se possa trab~­lhar. Quem deles dispõe é o capi­talista. Sua pessoa é livre, mas seutrabalho é dependente, é um traba­lho subordinado ao capital.

Sua liberdade social, sua in­dependência em relaçã~ aos mei­os de produção, na SOCiedade ca­pitalista, se reveste da forma deliberdade jurídica. Desse modo,o operário é juridicamente i~alao capitalista, mas não é m~ter.la~­mente igual a ele. Por ser Jundl­camente igual é que pode contra­tar com aquele a venda de suaforça de trabalho, a troca de capa­cidade de trabalho por dinheiro,por salário. E porque é juridic:­mente igual é que sua relaçaocom ele não está, ao menos não

Caponeses

1. O vínculo do camponêscom o capital não é estabelecidoatravés da venda de sua força detrabalho ao capitalista. Diversa­mente do que acontece com ooperário, cujo trabalho é direta­mente dependente do capital, otrabalho do camponês é um tra­balho independente. O que o cam­ponês vende não é sua força detrabalho e sim o fruto de seutrabalho, que nasce como suapropriedade.

Isso porque ele ainda dis­põe dos instrumentos de pro­dução. Desses instrumentos, omais importante é a terra. Mes­mo que ela não seja sua, que elea alugue de um proprietário,que pague uma renda da terra,ainda assim, durante o períodode vigência do aluguel dela,usará como se fosse sua. Naverdade, ele alugou O meio deprodução, como poderia alugaras ferramentas, as máquinas, acasa. Em princípio, é ele quemdecide o que fazer na terra.

Operários

1. O vínculo do operário como capital e o capitalista é estabele­cido quando aquele vende a estea sua força de trabalho em tTOcade salário, isto é, de pagamentoem dinheiro. O trabalho do ope­rário é, pois, trabalho assalariado.O fruto de seu trabalho já nascecomo propriedade do capitalistaque lhe paga o salário e não comosua. p'ropriedade. Essa modalida­de de relação de trabalho só podese dar quando não só o capitalistaé um homem livre, mas tambémo trabalhador é livre.

A relação salarial não podeser baseada na coação física. Elase baseia na livre vontade do tra­balhador de vender sua força detrabalho e na livre vontade do ca­pitalista de comprá-Ia. Para queessa modalidade d~ relacionamen­to social se estabeleça entre os doisé necessário que ambos sejam li­vres e iguais4. É necessário quese estabeleça entre eles um víncu­lo {on!.ratual e não um v{nculo dedomina§ão, caso em que o vínculo

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SitllJ1ÇÕ(S dijmllcfllÍ5..•-----~-----------

está predominantemente, subordi­nada à vontade daquele. do patrão.do capitalista, ou da sua própria.

Quando há um desacordoentre o vendedor de força de tra­balno, o operário, e o compradorde força de trabalho, o capitalista,o patrão, quem deve decidir deque lado está a razão, quem estásendo prejudicado, é um tercei'­ro, uma pessoa que em nome deUl11a .instituição que nada tem aver diretamente com a relaçãoentre os dois, que decide de quelado está a razão. Esse terceiro éu~ juiz, com base nas regras le­gals em que o contrato entre ooperário e o capitalista foi estabe­lecido. Na relação entre os doisnão deve predominar a vontadepessoal de cada um, caso em queessa relação social seria impossí­vel. Deve predominar a vontade'impessoal da justiça e da lei pormeio da pessoa do juiz.

Essa característica do ope­rário e seu trabalho implica em queele se constitua em indivíduo parater relaCionamentos contratuais.•Mesmo que faça com seu patrãoum contrato coletivo, ao mesmotempo ejuntamente com os ou­tros trabalhadores de sua catego­ria, a base dessa contratação co­letiva está em seus direitos indi­viduais, que não podem ser re­duzidos ou eliminados pelo cará­ter conjunto da ação contratual.Isso quer dizer que a sua liberdadepessoal e seus direitos pessoais

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ga diretamente com uma parteda produção do camponês. Eletem mais liberdade do que ocamponês que paga renda emtrabalho, porque pode usar aparcela de terra como se fossesua enquanto durar o arrenda­mento. No Brasil, o arrendamen­to em espécie se concretiza basica­mente na figura do parceiro, aqueleque paga o aluguel da terra entre­gando ao proprietário uma partede sua produção. No entanto,essa parceria esconde distintosvínculos econômicos. Uma for­ma de parceria que foi muito co­mum entre nós até há poucosanos era a da entrega de metadeda colheita ao dono da terra. É achamada meação e o camponês énesse caso chamado de medro.Isso depende muito do produtocultivado e repartido: pode sermais ou pode ser menos. De­pende, também, do modo comoa terra é entregue ao camponês.Se é terra bruta, ainda cobertade matas, o arranjo entre ele e oproprietário é mais benevolen­te. Se é terra arada, pronta para O

cultivo, implica em renda maior.

Essas relações evoluem comfacilidade para arrendammto emdinheiro, uma característica for­ma de aluguel em que o campo­nês é de fato um inquilino. É aforma mais moderna de arren­damento da terra, difundida so­bretudo entre não-camponeses,entre grandes capitalistas da agri-

n;io podem ser eliminados, redu­zidos ou atenuados por grupos deque eventualmente faça parte.

Mesmo fazendo parte de umafamília, o contrato de trabalho nãoé com sua fanu1ia; é ape~as com

I A família não tem direitOS neme e.obrigações nesse caso. Do mesmomodo, ainda que eventualmenteoriginário de algum grupo c~~_u­

nicirio - de vizinhança, de rehgtao,de nacionalidade, etc. - o contratode trabalho entre ele e o capitalistaenvolve uma relação solitária, nosentido de que não é um contratoentre o capital e algum grupo rpo­ralo religioso ou étnico. Nessa rela­ção ele está sozinho com seu con­tratador, com o agente dos interes­ses opostos aos seus.

cultura. Estes podem preferirnão dispender capital na comprade terra. Preferem alugá-la, o queimplica dispêndios financeirosmuito menores, de retomo maisrápido. É o arrendamento em di­nheiro a forma típica de expan­são do capital na agricultura. Issonão exclui que pequenos agri­cultores também optem por essetipo de vínculo com o proprietá­rio de terra.

Diferente do operário, ocamponês não trabalha sozinho.O característico camponês traba­lha com sua família. portanto,seu trabalho não é um trabalhosolicino, não é trabalho de indiví­duo. Além disso, O característicocamponês não é patrão, não com­pra força de trabal,ho de outrem,não paga salário. E evidente ~u.e .em certos momentos especlaLSou excepcionais do processo deprodução, como na colheita, ocamponês pode precisar de bra­ços adicionais com urgência, parae";tar, por exemplo, que a ch,!vamolhe e destrua a colheita. E o.caso do algodão, do feijão, quepodem apodrecer se molhados.

Tradicionalmente, esse tra­balho excepcional era feito pe­los vizinhos, no chamado muti­rão, uma forma de ajuda mútua.Embora o mutirão ainda sejapraticado, a demanda excepcio­nal de força de trabalho emcircunstâncias como essa tende a

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2. Sendo o operáriojuridica­mente igual a seu patrão e econo­micamente desigual, é preciso co­nhecer em que radica eSsa Contra­dição. Ser igual é a fonna assumi­da pela condição de livre. A igual­dade, condição do caráter con­tratual dos relacionamentos é abase'de uma certa perda da liber­dade, própria do capitalismo, po­is é a igualdade que mascara a de­sigual~ade..A igualdade é aquiuma VlrtualIdade da liberdade.

Ele vende sua força de traba­Iho'porque não dispõe dos meiosde produção para usá-Ia. Vende aquem deles dispõe. Vende-a por­que esse é o único modo de obterseus m.eios de vida, aquilo de quenecessita para sobreviver, isto é odinheiro, o salário, com que p~_derá comprar os meios de vida.

Não é para fazer-lhe um favorque o capitalista compra sua força

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s~r coberta com trabalho assala­nado temporário. Isso ainda não .compromete radicalmente o ca­ráter camponês do trabalho naparcela agrícola. Não comprome_te, mas altera de modo mais oumenos significativo a relação queo camponês tem consigo mesmoe com os outros.

Embora ele seja socialmentede~endente,porque não trabalhas.ozmho, porque é trabalho fami- "har, seu trabalho é independente étrabalhofamiliar independente. )

2. Se, para a definição socialdo ,operir,io, a igualdade jurídi­ca e condIção fundamental, pa­ra o camponês a relevância éoutra. Para ele, o fundamental é~er livre e não necessariamenteIgual. O camponês é livre na~edida em que é dono de seusInstrumentos de trabalho' ouno mínimo, dono de sua vonta~de quanto ao que produzir, co­mo produzir e para quem ven­der. Na medida em que é livredono de seu próprio trabalho.As detenninações do merçadonão estão imediatamente pre­sen~es no processo de trabalho.A lIberdade na situação socialdo camponês está no meio docaminho entre a dependênciapessoal e a igualdade.

Na sua inserção no merca­do e, por meio dele, no proces­so de reprodução do capital, oque o camponês vende não é a

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de trabalho. O capitalista a com­pra porqu.e ele tam~én; está nu~asituação smgular: dlspoe de melaS

----de produção concentrados em suasmãos, mas sozinho não pode fazê­los funcionar, coisa que só a forçade trabalho pode realizar. Portan­tO, se o operário para obter seusmeios de vida tem como única al­ternativa trabalhar para quem temos meios de produção, também ocapitalista para dar utilidade a seus

- meios de produção tem comoúnica alternativa comprar a forçade trabalho do operário.

O operário trabalha para. vi­ver, para obter seus meios de vida.O capitalista compra força de tra­balho para poder usar seus meiosde produção, caso contrário seriaminúteÍs. Ora, a utilidade que os me­ios de produção têm para o capita­lista é diversa da utilidade que têm,como bens alheios, para o operário.Assim como o operário quer umresultado de seu trabalho, o salário,o capitalista quer um resultado dosmeios de produção que cede paraque o trabalhador trabalhe. Para ocapitalista esse resultado é o lucro.Ao menos esse é o resultado que­ele, capitalista, pode ver e utilizar.

a ganho do capitalista vemda produção que ultrapassa osmeios de vida necessários à so­brevivência do operário. O ga­nho do capitalista vem daquiloque excede o necessário à repro­dução do operário: sua alimenta-

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sua força de trabalho. Para ele, otrabalho não pode aparecer co­mo coisa em si, separada do pro­duto que dele resulta. Essa se­paração não pode ocorrer por­que ele ainda é dono dos instru­mentos, dos meios utilizados naprodução. Ao final do processode trabalho ele se vê dono dascoisas, dos produtos, geradospelo trabalho. a produto do tra­balho aparece como coisa aca­bada em suas próprias mãos. Oque ele vende é produto e nãoisoladamente o trabalho conti­do no produto. É ele mesmoquem deve vender o produtopara que o produto se transfor­me em dinheiro.

Na sociedade capitalista, ocamponês deve ter algum VÍn­culo com o mercado, com o di­nheirQ e, portanto, com o capi­tal. Mas, ao mesmo tempo, aonão ser empregado, assalariado,de outrem, aparece como a pes­soa que trabalha para si mesma,com sua famma. O seu trabalhoé independente, mas sua vida es­tá residualmente articulada coma trama de relações do mercado.

Seu trabalho não ganha vi­da própria fundamentalmenteporque ele produz diretamenteseus meios de vida. Em princí­pio, nas situações camponesascaracterísticas, os meios de vidanão são adquiridos diretamenteno mercado. Mesmo quando é

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a sobra; é o produto de um cál­culo feito com regras próprias.Esse cálculo é dominado pelaprecedência dos meios de vidana reprodução da família cam­ponesa. Ao contrário do queocorre com o operário, a sobre­vivência do camponês não é, emtese e em princípio, mediada pe­lo mercado. Embora, de fato, devários modos, acabe sendo.

Se a existência do operáriose define pelo trabalho excedente,a do camponês se define peloproduto excedente em relação aosmeios de vida produzidos dire­tamente por ele.

Essa situação característicatem, no entanto, um certo nú­mero de variações. É que na vi­da das populações camponesashá uma tendência crescente,embora oscilante ·e lenta, nosentido de maior influência domercado e do capital.

A pressão crescente do mer­cado pode mesmo aparecer co­mo se fosse uma busca crescentedo mercado por parte do cam­ponês. São muitos és fatores quepodem levar a isso. Uma enfer­midade demorada ou a morte dealguém na faroilia pode forçar atransformação de produtos sepa­rados para a própria subsistência,ou para semente, em mercadoria esua venda ao comerciante. Essavenda acarreta um desequilibriona subsistência da farru1ia, que for-

alh adia ser severamente pu-b ap fi'nida com castigos ISICOS.

Já não J=lode ser_ assim. ~u~a- . ~ed de eUlas reIaçoes SOCiaIS saosoei a ~ . ldbaseadas na liberdade e na 19ua a-

d' 'dI'ca de seus membros. IssoeJun '

po-e diante do problema danos . . tis. tifjcativa para que o caplta ta

~aproprie de p~e ~a p~oduçã.odo trabalhador. AJusttficauva m~s

. simples e lógica é a de que o capI­talista tem o direito d~ fazê-lo por-

.-.-.- e é o dono dos melaS de produ-qu . . _ção. Mas isso amda pona em p~n-

go o seu lucro. Sempre havena orisca de que o trabalhador desco­brisse que o lucro do capitalista é aparte do va1o~que ele .trabalhad9rcriou e que nao lhe fOI paga.

O caráter contratual da rela­ção social entre o operário e o ~a­

pitalista se encarrega de revesti-Iade significado que recobre e en­cobre o caráter de relação de ex­ploração que ela efetivarnente tem.Isso se dá porque o que o traba­lhador vende não é o que o capi­talista compra. O trabalhadorven­de-lhe força de trabalho, capaci­dade de fazer funcionar os meiosde produção. Ele lhe vende, porexemplo, um dia de trabalho. Re­cebe em troca o seu salário. Por­tanto, ele é induzido a crer que osalário é o pagamento por aquiloque efetivamente vendeu, quepara ele é o necessário à aquisiçãode seus meios de vida.

necessário comprar, como de fa­to é, o que se compra é com di­nheiro recebido por algo quetem a mesma qualidade materialdaquilo que foi vendido pelo cam­ponês. Em situações muito à mar­gem da circulação do dinheiro eda mercadoria, muitaS vezes o di­nheiro comparece de forma ape­nas nominal numa relação que ébasicamente de troca.

Nas situações característi­cas, o camponês vende aquiloque excede suas próprias neces­sidades de sobrevivência, suas ede sua família. É como exceden­te que ganha forma seu trabalhoexcedente. Assim como o ope­rário tem um critério lógico pa­ra calcular o valor de sua forçade trabalho e o montante de seusalário, com base nos meios devida de que necessita, assim tam­bém o camponês tem um crité­rio lógico para produzir direta­mente seus meios de vida.

Quando faz a colheita doque produz, elejá tem uma idéiade quanto deve reter para subsis­tência e semente destinada ao pró­ximo plantio. Tem por isso,já noinício, uma idéia de quanto podevender daquilo que colheu. Nãotem que esperar o próximo anoagrícola para vender ao comerci­ante, ao intermediário, aquiloque eventualmente tenha so­brado. Portanto, o que ele ven­de, o que ele comercializa, não é

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ção, sUa moradia, seu vestuário,seu lazer, isto é, seu salário. Etambém o que é necessário paraque sua existência se prolonguealém da morte, de modo que eledeixe substitutos para que o capi­talista possa continuar dando uti­lidade a seus meios de produção.

O que o operário precisa pa­ra sobreviver vem do trabalho ne­cessário a essa sobrevivência. Ele,porém, é capaz de trabalhar maistempo do que o necessário à ob­tenção de seus meios de vida. Eleé capaz de criar mais riqueza,mais valor do que aquele sem oqual não sobreviveria. Esse valor amais, essa mais-valia, é o que ex­cede a suas necessidades. Assim,além do trabalho necessário à conti­nuidade de sua vida, ele produztambém trabalho excedente.

O trabalho excedente é aque­le de que o capitalista se apropria.Assim, a utilidade da concentra­ção dos meios de produção emsuas mãos está no fato de que é omeio de produzir e reter trabalhoexc.edente, sob a forma de valorque excede o qué é necessário àsobrevivência do trabalhador, soba forma de mais-valia.

Nas relações de produçãopré-capitalistaS, a apropriação des­se excedente não precisava ser dis­farçada. No caso do escravo, o se­nhor não precisava de justificati­vas morais para ficar com a pro­dução de seu cativo. A recusa do tra-

SitUAÇões diferellcíllÍ5...

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o que o capitalista comprou,no entanto, foi outra coisa: elecomprou força de trabalho, cujacaracterística é a de produzir maisvalor do que ela própria contém.Isto é, o valor da força de trabalhoé determinado pelos meios de vi­da necessários à reprodução dequem trabalha, do operário. É es­se valor que se converte em salá­rio. Mas, a força de trabalho podecriar mais do que esse valor. Oque"o capitalista compra do traba­lhador é sempre um período de tra­balho que vai além daquele que énecessário para repor os meios devida do operário, o seu salário. Ocapitalista paga, pois, salário e, naverdade, compra mais-valia. Oumelhor, ao pagar o salário se qua­li6ca para 6car, sem pagamento,com o tempo de trabalho exce­dente, o que excede,ao que é ne­cessário ao salário e à sobrevivên­cia do trabalhador.

Em suma, o que o operário pro­duz é trabalho excedente, tempo detrabalho que excede o tempo em­pre~do na produção de seu salá­rio: É isso que ele oferece ao capi­talista, sem saber, em troca do salá­rio. É essa coisa imaterial e absrrataque interessa ao capitalista.

No mundo do operário, o tra­balho se toma separado do produto dotrabalho. É como se ele tivesse umaexistência própria., como se ele fos­se a própria coisa, não sendo, ao mes­mo tempo, coisa pr6pria de q~em atem. A força de trabalho é que

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çará o camponês, antes do iní­cio do novO ano agrícola, acomprar a crédito do vendeiroaquilo que necessitar para viver,para pagar com o produto da sa­fra seguinte.

Essa dependência pode es­tender o desequilíbrio por mui­to tempo, às vezes de maneirairremediável e definitiva. Issoforçará o camponês a dar priori­dade aos produtos que interes­sam ao comerciante e não aosprodutos próprios de sua dieta.De certo modo, o camponês éalcançado pela divisão do traba­lho, que obriga cada um a umacerta especialização em funçãodo mercado.

Outros fatores podem al­cançar o equilíbrio que organi­za o trabalho da família campo­nesa em termos de quais os fru­tos que são convertidos emmeios de vida e quais os que sãoconvertidos em excedentes. Atendência é a da pressão no sen­tido de aumentar o excedente,quase sempre às custas da dimi­nuição do tempo e do espaço deterra destinados aos pr6priosmeios de vida.

A redução progressiva dafertilidade do solo, conseqüênciada agriculrura de roça, de derru­bada e queima para cultivo, co­mo fazem habitualmente os cam­poneses de várias regiões, inclu­sive no Brasil, é um [atar de de­sagregação de sua economia ca-

parece como mercadoria, inde­aeodente da coisa fisica em que

"~e materializa o trabalho.

raeterística. À medida em que setoma cada vez mais difkil encon­trar terras virgens ou descansadaspropícias para a agricultura de ro­ça, a tendência, durante um certoperíodo, é a do aumento da im­portância do excedente comercu­liz.ável e a diminuição da produ­ção direta dos meios de vida naeconomia camponesa.

Às vezes o aumento da pro­porção do excedente é sinal demaior integração no mercado, demaior participação no consumo ede mudança e melhora nos níveisde vida da população camponesa.Mas, o que parece ser o mesmofenômeno do pomo de vista quan­titativo pode ser outro do pontode vista da qualidade de vida doscamponeses. A redução da pro­d ução direta dos m~ios de vidapode ser indício de uma reduçãoaté grave nas condições de vidada família camponesa, sobrerudono que se refere à alimentação.Nesse caso é apenas momento dedesintegração da economia cam­ponesa, da dispersão da família,da migração para aglomeradosurbanos, às vezes distantes, e daproletarização.

Mudanças no balanço dadistribuição do trabalho campo­nês entre a produção direta dosmeios de vida e a produção de ex­cedentes podem ocorrer quandoos filhos casam ou saem da casados pais. Esse balanço dependeessencialmente do caráter fami-

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5. Cf. Gnaccarini,José César A uOrganiz.ação do trabalho c da famnia em gruposmarginais rurais do Estado de São Paulo", in Revista de administração de empresas,vaI. II, n. 1, São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, março 1971, p. 75-93. O recur­so ao casamento por rapto, como forma de evitar as despesas do casamento civil,já havia sido registrado por Antonio Candido em esrudo de 1954. Cf. Candido,Antonio. Os parceiros do Rio Bonito (Estudo $Obre o caipira paulista e a Iransjôrmação dosseus meios de vida). Rio de Janeiro,José Olyrnpio, 1964, p. 186.

SítlUlfões dijmllcÍIl15...

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liar e grupal da mão-de- obra neleenvolvida. Deve--se considerar quenormalmente as próprias criançasjá estão envolvidas na produçãoagrícola. A saída dosjovens e o en­velhecimento dos pais repercutemdireumente no modo como essaagricultura é organizada e funcio­na. Decadências fàmiliares não sig­nificam, por isso, declínio e exUn­~o do mundo camponês, não sig­nificam necessariamente uma ten­dência histórica. São apenas ex­pressões de uma oscilação cíclicaprópria desse mundo, embora nes­sa oscilação, em riono mais lento,possa estar contida uma tendênciahistórica.

Obrigações cerimoniais po­dem afetar esse equilíbrio e pro­duzir conseqüências irreme­diáveis: um casamento, um fu­neral, um batizado podem com­prometer esse equilíbrio por lon­go tempo. Às vezes, há adapta­ções sociais, mudanças nos cos­tumes para ajustar a sociabilidadeàquilo que comporta a economiacamp0l}esa. Em algumas áreasdo Alto Paraíba, em São Paulo, omutirão, que existiu até há pou_'cos anos, foi perdendo sua im­portância social. O ônus de or­ganizá-lo implica em cuidadosobalanço de possibilidades e da exis­tência de recursos que vão alémdo que seria a mera remuneraçãod~ fo~ça de trabalho. Na região dePlraclCaba,josé César Gnaccarini

3. O operano se situa nomundo através do seu trabalho. Seutrabalho não se oculta no produto,pois é por ele vendido especifica­mente como trabalho. As relaçõesde trabalho são suas relações pri­márias e fundantes. São as relaçõesque ele tem em primeiro lugar, nosentido de que sem elas ele nãopoderia existir como operário. Evi­dentemente, a vida social do ope­rário não se esgota no trabalho e nosrelacionamentos que ele estabelecea partir do trabalho; primeiramen­te com o capital, que lhe compra aforça de trabalho.•

observou o aparecimento e a dis­seminação do casamento por rap­to, geralmente rapto consentido,como fonna de evitar as onerosascelebrações nupciais. É uma for­ma de invocar alegações de honrapara evitar a desonra da festa em ca­samento que não resulta da obe­diência do código de honra, casa­mento em que a moça foi roubadae, presumivelmente, desonrada.Com isso, a tradição é protegida eseu custo é evitadoS.

3. O camponês se situa nomundo através do seu produto. Seutrabalho se oculta no seu produto.Seu trabalho não aparece comouma relação de trabalho, emborade fato a seja. É uma relação invisí­vel com o mercado de produtos e,por meio dele, com o capital.

Embora essa relação invisí­vel seja, em graus variáveis, fun­dante de sua existêncía comopessoa e consciência, suas rela­ções sociais imediatas são ou­tras. São as relações de famma.Diferente do operário, cuja fa­mília é essencialmente a família

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SihUlfiit$ difemrctil ís ...

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7. Cf Candido, Antonio, oh. cit., p. 56.

No caso das populações cam­ponesas, o mercado e o dinheiro éque atravessam suas relações so­ciais, não raro de modo desagre­gador, como anomalia. Provavel­mente, por isso, no imagináriocamponês, o dinheiro e a merca­doria tendem a aparecer comoexpressões de forças maléficas,dotadas de um poder próprio,como um perigo, fora do contro­le das pessoas.

N um movimento milena­rista ocorrido entre os índiosKrahô, de Goiás, há algumas dé­cadas, numa fase ainda de conta­to incipiente com os brancos dafrente de expansão, o sonho mi­lenário invertia a relação entrebrancos e índiosS. Estes passavama ser os dominadores daqueles,trazendo do céu carros carregadosde mercadorias. Na literatura decordel não é dificil encontrar tex­tos em que o inferno parece umsupermercado, um lugar cheio demercadorias. E certa vez um tra-

diferentes lugares do país, emque os casamentos cndogâmicostêm efeitos biológicos visíveis, co­mo a proliferação de anões ou aocorrência de casos de hermafro­ditismo, como fiquei sabendo de.uma comunidade no Piauí.

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que lentame~te:às rela,ç~es pró­prias da condlçao operana.

Nas regiões industrializadase altamente urbanizadas, quandose compara o padrão de organiza­ção da mesma família e~ dua.s outrêS gerações, nota-se Imediata­mente uma redução no númeromédio de filhos da família que setomOU família operária. Quandoa família é de origem rural, essaredução pode estar relacionadacom a transformação da família deunidade de produção em unidadede consumo.

Na economia organizada embases estritamente capitalis~, es­pecialmente na fábrica, a unidadede produção é o trabalhador isola­do. Mesmo que pais e fIlhos ve­nham a trabalhar na mesma em­presa, o contrato de compra de suaforça de trabalho é com cada um,isoladamente, sem que haja entreeles, no interior eh empresa, rela­ções outras que não estejam medi­adas pelo capital, como ocorre comtodos os outros trabalhadores.

No interior da fábrica, nãoprevalece entre eles, membros deuma mesma fàrru1ia, sua vontadepessoal, ou, por exemplo, a relaçãode autoridade que há entre pai e fi­lho. Na fábrica, onde as relações

8. Cf Melatei, Julio Cczar. O messianismo KraM, São Paulo, HerdcrlEdusp,1972. Cunha, Manuela Carneiro da. "Logique du mythe e de l'action (Lc mou­vemem messianique Canela de 1963)", ln L'Hol1lme - Revue françaised'anthropologie, torne XIII, n. 4, Paris-La Hayc, Mouron & Co., Occobre-décem­bre 1973.

nuclear, no campo e para o cam­ponês é quase sempre a famíliaextensa, constituída por váriasgerações, que vivem muitas ve­zes próximas, no mesmo espa­ço. São, também, as relações devizinhança, a comunidade, nobairro rural, no povoado, no pa­trimônio, na corrutela, na "rua".

Não é incomum que essassociabilidades vicinais expres­sem, na verdade, uma teia derelações parentais7• Às vezes,em comunidades mais antigas,todos são parentes de todos, pa­rentescos construídos ao longode muitos anos e até de séculos.Há casos extremos e raros, em

Há outras relações sociais queatravessam o seu mundo que com­pletam e complicam os seus re­lacionamentos. É um engano suporque as relações sociais que fazemparte da vida do operário são ape­nas desdobramentos secundáriosdas relações primárias estabeleci­das através do trabalho. Em suavida há relações sociais de outrasépocas, que não nascem no ato donascimento da relação entre o ca­pital e o trabalh06• As relações defamília, por exemplo, são anterio­res às relações sociais de produ­ção que engendraram a figura dooperário. Éverdade que essas rela­ções de família se adaptam, ainda

6. "O trabalhador brasileiro ainda se acha dominado pelo estado de espírito dequem perdeu a segurança material c não sabe como conquistá-Ia sob outras for­mas. As suas vinculações recentes com o mundo rural comunitário não ° dei­xam perceber que a liberdade relativa que a nova ordem lhe propicia é a únicavia por meio da qual ele pode lutar e reconquistar a segurança material. "Emparte, é na procedência hererogênea e recente do proletariado brasileiro que seencontram os motivos da sua lenta aquisição de uma consciência de classe ori­entada segundo os seus interesses imediatos c mediatos" (cC. Ianni, Ocravio,Industn'alizJJção e desenvolvimento social no Brasil. Rio de]aneiro, Civilização Brasí­leira, f963, p. 105-106). "Na definição da situação e das relações do oper5riocom a fábrica, a máquina, o capataz, o gerente, etc, persistem elementos vívidos,de tipo comunitário, que se interpõem entre as pessoas e as coisas. Por isso, adefinição de outro não é política, segundo a conotação para a qual tendem as re­lações entre comprador e vendedor de força de trabalho. "[ ... ] Corno a cons­ciência de classe produz-se numa situação em que as experiências vividas im­pregnam o presen~e, muitas vezes de modo decisivo, a consciência do proletari­ado na fase de sua Incorporação ao universo capitalista está repassada de padrócse perspectivas de car:íter inautêntico. O passado c o futuro biográficos pesam naconsciência dessas pessoas" (cf. Ianni, Octavio. Estado e capitalismo - Estrutura so­dai e industrialização no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileir;,1965, p. 159).

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pessoa, O ser inteiro ainda quemediado pela coisificação damercadoria.

A consciência do operárioexpressa a consciência do indi­víduo vinculado aos seus iguaispelo contrato de trabalho e pe­las relações de interesse de suaclasse. Vínculo contratual quese estende com intensidades va­riáveis às outras relações sociais:a contratualidade dos relaciona­mentos está presente em tudo,do casamento ao trabalho, da fa­mília à classe social.

A consciência do camponêsexpressa a consciência da pessoa,que é extensão da família e dacomunidade e dos laços comu­nitários. É mais uma consciênciaafetiva de pertencimento a umsujeito coletivo real, um corponatural de que se faz parte desdesempre, desde o nascimento.

Já o operário é parte do cor­po coletNo estritamente por for­ça do vínculo de trabal ho, umcorpo abstrato, contratual, que sedissolve na própria consci~ncia

operária a partir da mera situaçãode desemprego. É a produçãoque faz do operário um membrode sua classe e não o nascimentoe o pertencimenta natural.

Por isso, nas comunidadescamponesas tradicionais, no li~

mite, o trabalho e a festa semesclam nos mutirões, nas fes­us celebrativas do fim da colhei­ta, como a Festa do Divino, ou

7Cí

-dar um caráter religioso

~n~r • 1-smo mágico a sua re açao

oU me 'máquinas e ferramentas. E·com •

--0'-que se pode ver, as J:,e~es,

ando uma imagem re Iglosaqu uma efigie religiosa é coloca­~~perto da máquina ou do localde trabalho. .

Isso apenas sugere q uç rela­ções sociais de o~igens .diferen­tes e datas hist6ncas dIferentespodem se adaptar. reciprocamen-

- _..._.. te sem grande dlficuldade,.sem. q~e uma se reduza n:c~en­

te à outra. Isso, porem, nao querdizer que não haja influências re­cíprocas entre essas relaçõ~s; co­mo vimos no caso da famílIa.

A lógica de uma modalidadede relação social tende a submer­gir na lógica daquela que domi­na, no caso a relação capitalista deprodução. E como vimos no casoda religião, nesse caso a tendênciaé atenuar e até mesmo suprimirum certo misticismo próprio derelações outras, como as do cam­ponês com sua terra.

Poderíamos, ainda, falar deoutras relações sociais, como asde lazer, as de vizinhança, etc.,que têm suas peculiaridades, seupróprio ritmo e encerram con­cepções e justificativas específi­cas, até porque têm outras ori­gens. Essa diversidade de relacio­namentos se mantém ou se mo­difica em função do modo comoneles influi, limitando-os ou não

'..

balhador rural explicou-me quesomando o valor nominal ins­crito no elenco das notas do di­nheiro então em circulação o re­sultado seria 666, o número daBesta-Fera.

Essas concepções indicamuma aguda percepção, e uma mo­dalidade camponesa de consciên­cia, da coisificação das pessoasatravés dessas mediações. Elas nosmostram que a coisa produzidapelo trabalho humano dele se tor­n~u independente, com vida pr6­pna, como coisa estranha e adversaao produtor. A consciência cam­ponesa faz um Contorno "por fo­ra" da realidade imediata para per­ceber o poder alienador da mer­cadoria e do dinheiro, seu equi­valente geral. Por isso, ela expres­s~ de modo mais completo a crí­tIca do capitalismo e da moderni­dade. Mas, por isso também, elaeJ<Pressa deformadamente, de mo­do místico e milenário, pré- poli­tiC?9, a alienação no mundo capi­~hsta e a diversidade antropoló­gtca dessa alienação.

Er:quanto no operário o quese marufesta é o indivíduo, o frag­mento a que ele foi reduzido pelac??tratualidade das relações so­CIaIS, no camponês manifesta-se a

SillUlções dtftmecÍJ!íL.

sã? formais e contratuais, podeate ocorrer do pai ser um subor­dinado do filho, devendo-lheobediência e acatamento. No li­n: ite, ~m função da própria ra­cIonalIdade do capital na produ­ção, pode acontecer do filho terque demitir o pai para substi­tuí-lo por outro trabalhador. Por­que, na verdade, esse filho-chefena empresa cumpre uma vonta­de qu~ não é sua, mas do capital,da COIsa que o usa, que dele sevale como seu instrumento parafaze: com que o processo de pro­duçao de que ambos são parteproduza a única coisa que interes­sa, o lucro.

Os que estão vinculados a al­guma instituição religiosa estãotambém, por esse vínculo, situa­dos num tempo que é diverso da­quele que define a relação de; tra­balho do operário. Esta relação éformal e contratual. Nela não in­t~rferem as concepções religiosasdIre.ta~e~te. Isso não quer dizerque nao Interfiram de vários mo­dos até mesmo no processo de~rodução.Os operários cuja.vidae regrada peja ética protestantepr~va:,e~mentese ajustam melhora dISCIplina fabril, incorporada co­~c:> se fosse um dever moral e re­lIgtoso. Outros operários podem

9. Sobre o cerna dos movi e . . . .cia pré-polftica, cf. Hobsb~~to~s~:>clals pré-polJ.tJc~.s e da respectiva consciên­a,.caicas de I " .' ncj.Rebeldespmm(llIos-Estudíosob,.eIasjo,.mas

os mOlllmll:nlns soclales en los siglos XIX .xx [d .Maura], Barcelona, Ariel, 1968. y tra . ] oaquln Romero

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F"-.. 'd'

SítlUlfiirs dilmllcÍIlls...

76

10. C( Araújo, Alceu Maynard. Poranduba Paulista, São Paulo, Escola de Socio­logia e Polírica de São Paulo, 1958, csp. 7-79. Brancüo, Carlos Rodrigues. ODi­vino, o santo e a senhora_ Rio de Jaqciro, Ministério da Educação e Cultura _FUNARTE, 1978, p. 68. - Os CaipirM de São Pauw, São Paulo, Brasiliense,1983, esp. p. 485_

,,;,

às relações fundantes, que sãoaquelas acima mencionadas, pró­prias e definidoras da condiçãooperária.

portanto, o vínculo com asociedade não é, no caso do ope­rário, substantivamente, um vín­culo pessoal e direto. É um víncu­lo mediatizado, pelas coisas visí­veis e invisíveis, que se interpõementre ele e os outros e, até, entreele e -ele- mesmo.

Isso tem uma razão de ser. Éque, embora o vínculo do operá­rio com o capital seja um vínculocontratual, que exige a sua indivi­dualização, que exige que vista amáscara de indivíduo só e isolado,de fato é uma relação de trabalhoem que o seu trabalho se dilui namassa de trabalho de todos. Ele éindividualmente produtor de tra­balho s'aciaL Seu trabalho é frag­memo, é atividade que se junta ese dá simult:meamente às ativida­des dos outros operários.

Mas ele é sobretudo agente detrabalh9 social porque a dMsão dotrabalho que o anexa à linha deprodução faz com que ele se tomeapenas um membro do corpo co­letivo que produz a riqueza. Seutrabalho é social, ainda, porque

nas festas propiciat6rias que an­tecedem o novo plantio, como aFesta de São joão'o. O trabalho éaí substancialmente diverso dotrabalho fabril e operário que ocapital reduziu a mera quantida­de materiaL

Entre nós, ainda persistemas Festas do Divino, há séculosdeslocadas do calendário litúrgi­co para o calendário agrícola, paraindicar,justamente, a gratidão pe­Ja colheita, a sacralidade do traba­lho. São festas da fanura_ São tam­bém festas da generosidade co­munitária, da partilha, da comu­nhão e da refeição comunitárianos vários dias da sua ocorrência.Numa escala menor, em outromomento do calendário religiosoe agrícola, as Folias de Reis, osReisados, do tempo da pamonhae do milho verde.

O vínculo do camponês coma sociedade é um vínculo pessoal;a pessoa inteira se põe nele, e nãoapenas aquilo que diz respeito aotrabalho. É, também, um vínculomediado pelo caráter de merça­daria, que seus produtos, real oupotencialmente, têm. Mas essamediação não lhe aparece comomediação primária e fundamen­tal, embora ela seja, sem dúvida ",

seu salárío é a fração dinheiro queresultou da conversão do produtoem dinheiro no mercado.

O preço do produto que eleproduziu para .0 ~apitalist~ quelhe paga o saláno e determmadopelo mer~ado.' longe d;lS vonta­des indivlduals de trabalhadorese capitalistas. Em princípio, o pre­ço pago pelo produto que es~ sen­do vendido é a contrapartIda dovalor que o produto tem, istO é,do tempo de trabalho socialmen­te necessário à sua produção. Issoquer dizer que não é exatlmenteo tempo gasto de fato na pr,?du­ção daquele artigo, daquele bem,que determina o seu preço.

Um produto pode ser o re­sultado de um processo de traba­lho atrasado, lento, em que é ne­cessário muito tempo para produ­zir uma coisa determinada. Nossetares e~ que o processo de tra­balho é mais rápido, em que é ne­cessário menos tempo de trabalhopara produzir uma determinaehcoisa, a mercadoria conterá me­nos tempo de trabalho e, portan­to, menos valor. Essa mercadoriaproduzida mais rapidamente afe­tará e determinará quanto vale,qual é o seu valor, qual é o tempode trabalho socialmente necessá­rio de produção que ela e a outracontém. Aquela que foi produzi­da mais lentamente terá mais va­lor do que a outra, porque há nelamais tempo de trabalho. Mas, o

77

causa de problemas, desagrega­ções, mudanças e sofrimentosou alegrias. Mas, é sempre umamediação irreconhecível, que semanifesta no caráter problemá­tico e reconhecidamente misteri­oso e mágico do dinheiro e damercadoria.

Justamente nesse mistérioestá o caráter social do seu traba­lho, que aparece à sua consciên­cia como trabalho pessoal e ehfamília. Mesmo que sua situaçãosocial não lhe permita clara eampla consciência do que é O

mundo das mercadorias e do di­nheiro, mesmo que com elemantenha uma relação residualatravés dos excedentes que co­mercializa, O camponês tem suaexistência mediada e constituídapor essa forma peculiar e margi­nai da mercadoria que produz.

Nas situações de maior inte­gração no mercado, em que parteponderável do tempo do campo­nês e de sua família é dedicada àprodução de mercadorias, ainehassiJTI têm elas um certo caráterde excedente. Porque, no geral, oagricultor familiar mesmo espe­cializado na produção de fumo,milho, feijão, suínos, soja, man­dioca, frutas ou o que for, tende aproduzir diretamente seus meiosde vida, aquilo que se destina aoconsumo diário da pr6pria família.

Nesse sentido, os proble­mas que o mercado e o dinheiro

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sItuações difmllclitis...

79

11. Sobre o paroquialismo camponês, c( Sereni, Emilio. II Capitalismo nellecampagne. Torino, Piccola Biblioteca Einaudi, 1968, pa.ssim.

mercado, na troca de mercadori­as, é que dirá que a mercadoriade produção mais lenta terá defato o mesmo valor da produzi­da mais rapidamente, quandouma for considerada equivalen­te da outra. O valor a mais deuma não poderá ser realizado.

Isso tudo para dizer que nãoé a vontade nem a necessidade dotrabalhador que lhe dirá quantoefetivamente vale o seu trabalho.Ele não poderá visualizar aquiloque interfere tão poderosamenteem sua vida, de modo invisível.Seu vínculo com o mundo é atra­vés do trabalho socializado.

78

podem trazer e trazem para ointerior dessa produção mer­cantil simples podem ser atenu­ados pela produção direta departe ou de tudo aquilo que énecessário à sobrevivência. Si­tuação diferente da do operário,que pode ser integralmente al­cançado por qualquer crise eco­nómica, no desemprego, na re­dução dos salários, no aumentodo custo de vida, etc.

Quando o agricultor familiarmergulha plenamente na divisãodo trabalho social e se torna umprodutor especializado, mergulhatambém nas incertezas e nos mis­térios do mercado, expressões deurna vontade que IÚO é a sua. Apossibilidade de ganhos altos coma produção da soja., anos depoisdesta exposição, levou muitos pe­quenos agricultores do sul à ruínae à miséria., pois não tinham a so­brevivência assegurada por suaprópria produção de gêneros desubsistência. Toda a terra dispo­nível fora ocupada pela soja. Bas­tou os consórcios americanosd~ejarem no mercado a sojaacumulada., para que os preçosdespencassem e a soja produzidapelos pequenos agricultores dosul tivesse que ser vendida pormenos do que "valia".

Essa característica do capesi­nato adiciona elementos de con­servadorismo na mentalidade eno modo de vida do camponês.

4. Independentemente de suavont:lde pessoal, o operário estávoltado para "fora", para o mundoda mercadoria e dos relacionamen­tos sociais deia derivados, para a so­ciedade inteira, mesmo que não te­nha expressa consciência disso.

Seu modo de inserção no pro­cesso do capital, através do trabalho,demarca o âmbito de sua consciên­cia possível. Ainda que no dia-a-diasua consciência. social seja uma cons­ciência cori~ ~ circu~ci~

de seu viver e de seu agir abrem-lheapossibilidade de ganhar uma com­preensão, no limite, totalizadora darealidade em que vive e que cons­trói com seu trabalho.

Quando se sente motivado a lu­tar "contra o capitalismo", sualuta é uma luta residual, decor­rente de um vínculo residualcom o mercado e o capital e deuma consciência residual e par­cial de sua situação social.

Seu vínculo com o mundoé esse, residual, que é tambémseu limite de compreensão des­se mundo e de sua ação sobreesse mundo. É o vínculo de umsolitário, confinado à sociabili­dade imediata da família, da co­munidade e da paróquia!!. Nãoé o vínculo de alguém mergu­lhado diretamente no mundoque o capital criou.

4. Independentemente de suaefetiva inserção no mundo damercadoria, o camponês está vol­tado para "dentro", para o peque­no mundo concreto que conhe­ce e identifica, como a família e obairro, isto é, a vizinhança e a co­munidade.

Mesmo que cada vez maisalcançado pela dispersão e pelasmigrações que a pobreza e o ca­ráter dclico da produção com­binados viabilizam e induzem,a família e a comunidade conti­nuam sendo grupos sociais dereferência do trabalhador rural.Mesmo definitivamente na ci­dade e fora da agricultura, quem

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81

1.1. Cf. Ianní, Octavio. lndustrializafão e desenvolCJinunto social no Brasíl. Cit., pas­

sim.

r.r"SillUlÇiic5 diferellclllí.s...

Mesmo que, evidentemen­te, esteja inserido em relações defamília, a família é aqui, geral­mente, uma unidade social de re­ferência mínima, reduzida à cha­mada família nuclear, constituídapelo casal e pelos filhos. Filhosque um dia, também, se desloca­rão segundo as regras e conve­niências do mercado de trabalho.O que agrupa não é, primaria­~ente, o afeto e o parentesco esIm. a .produção. As pessoas nãosão de um lugar, mas de um em­prego transitório e temporário. Avizinhança é basicamente umavizinhança passageira, continua­mente dilacerada pelas mudançasde casa e de bairro, pelas migra­ções, pelo não voltar a ver-se. Nolimite, nos prédios populares deapartamento, mais sociabilidadede vizinhança têm as crianças doque o~ pais, que geralmente malconhecem seus vizinhos de por­ta, a conversação e a convivênciano limite reduzidos a um mero eocasional cumprimento.

Quando o operário se en­volve ~m atividades e lutas "co­munitárias", envolve-se invaria­velmente em relações de inte­resse .e, . portanto, já não podeconstitUIr e manter verdadeirasrelações de comunidade. Isto ésão relações racionais com rela~ção a fins, mesmo que os fins se­jam sociais e não estritamentepessoais. A figura desses relacio­?amentos é o indivíduo e seusInteresses. Suas relações sociais

80

saiu do mundo rural continuapor longo período ainda man­tendo essas referências sociais.Nas grandes cidades brasileirasisso pode ser constatado nas es~tações rodoviárias: linhas de ôni­bus regulares para remotos luga­res do sertão, literalmente manti­das por esses migrantes no retor­no peri?dico ao lugar de origem.A condIção operária não cria essevínculo de pertencimento por­~ue.suas relações sociais são qua­litativamente diferentes e outras.

As atividades e lutas sociaistendem a ser lutas verdadeira­mente comunitárias, motivadaspelo sentimento do dever emrelação ao outro, pelo elemen­tar motivo de que o próprio cam­~onês é membro do corpo cole­tlvo do "n6s", de que o outrofaz parte. São relações de reCi­pr?cidade, motivadas por umaonentação social básica que temO outro como referência.

Quando deslocado de seum~ndo comunitário para o in­tenor de relações contratuais demercado e de trabalho, o cam­ponês tende a se confundir. Nãoé raro que atribua ao patrão vir­tudes patriarcais pr6prias de seumundo de origem e que inter­prete como relações paternalis­tas as relações que de fato sãocontratuais. Essa mentalidadetende a se projetar intensamentepara fora das relações de trabalho,

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·1I-1I

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são relações orientadas para o "eu",ern que o "outro" entra no geralcorno um associado ocasional porurn interesse comum apenas cir­cunstancial. A classe social pode as­sumir formas e características cor­porativas, mas de fato não pode as­sumir características verdadeira­mente comunitárias.

S. O mundo do operário e aidentidade do operário são consti­tuídos pelo antagonismo de classe.Esse antagonismo oscila entre ornero antagonismo de interessesentre O empregado e o patrão (umquerendo ganhar mais e outroquerendo pagar menos) e o efeti­vo antagonismo de classe social,dominado pela consciência deque o que separa o mundo de ume de outro é a contradição entre ocapital e o trabalho. Contradiçãoque opõe, na sociedade capitalis­ta, o trabalho social à apropriaçãoprivada dos resultados do traba­lho. Portanto, contradição queanuncia, ao mesmo tempo, umapossibilidade social do trabalho eo bloqueio a que essa possibilida­de se realize.

É o trabalho social e sua es­pedfica competência para criar ariqueza modema que anuncia oque é socialmente possível e queestá objetivamente negado nasprivações de quem trabalha. Essa

como se viu no demorado fenô­meno do populismo político '2 .

5. O mundo do camponêse a identidade do camponês miosão necessária ou.fUndamentalmenteconstituúJos por antagonismos in­ternos à sua situação social. Eles sãodestrnfdos pelos antagonismos so­ciais. Se eventualmente houverantagonismos entre o campo­nês e o proprietário da terra, oque é menos comum na situa­ção brasileira, esse é um antago­nismo que vem de "fora" da si­tuação camponesa.

·Mesmo que objetivamentepossamos dizer que de algummodo o camponês é um traba­lhador para o capital, como mui­tos fazem, a possibilidade dessapercepção por parte do própriocamponês é remota, quase sem­pre"postiça consciência introdu­zida por agentes de fora da reali­dade camponesa.

Sociologicamente, porém,o que importa é saber quais sãoas condições de compreensão daestrutura de relações sociais em

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13. "[ ... ] é o proletariado que fornece aos membr~s das o~n:s c!asses.as ~oss~­bilidades de compreensão das condições c tendênCias de e;.aste~cla.socla~.E a SI­tuação típica da classe operária que abre possibilidades à conSCiênCIa sOCIal, tan,­to dos próprios membros como de elementos de OUtTólS classes" (cf. lanm,

Octavio. Gp, dt., p. 172).

SitWIÇ&S dYaeflcÍAís...

contradição não propõe apenas esimplesmente o conflito de inte­resses, como é comum nos quefazem o discurso sindical, ou omero discurso humanitário emfavor dos pobres.

Independentemente da von­tade subjetiva do próprio trabalha­dor, demarcada por sua ineviúívelalienaçio, e independentemente dovoluntarismo partidário dos quefal~rnemnome dos pobres, a con­tradição propõe a sua inevitável su­peraçiúJ. Uma superação, porém,que precisa ser construída, que de­pende de superações progressivasda própria alienação, de progressi­va descoberta desse possível pro­posto na própria situação de classe.

Para compreender o histori­camente possfvel que se anuncia epropõe na situação de classe dooperário e, portanto, a crítica queele encerra ao capitalismo e a prá­tica que viabiliza, é preciso ter emconra a questão do tempo socialcontido na situação da classe ope­rma. Um tempo que não é maisdo que ínruído na consciência co­tidiana do operário e que só tem seviabilizado como alternativa deação na socialização das possibili­dades que ele contém. Isto é, namedida em que essa percepção sedifunde nas diversas classes e cate­gorias sociais que, de algum mo­do, possam compreendê-la e elabo­rá-Ia interpretativamente. A expe­riência operária, o vivido, não é emsi esma, imediatamente, consciên-

que o camponês está inserido,compreensão por parte do pró­prio camponês, como virtuali­dade de sua situação social.

Mesmo que submetido amecanismos de exploração porparte do capital, é exploração in­teiramente diversa da exploraçãoque sofre o operário. Não é umaexploração cotidiana, presente emcada momento do processo detrabalho. É exploração que se tor­na evidente na consumação davenda dos produtos do trabalho ena contrapartida daquilo cujacompra essa venda possibilita.

Como, no limite, o campo­nês pode sobreviver de seus pró­prios meios de vida, seus antago­nismos mercantis não se tomamevidentes senão em condições ecircunstâncias especiais. Isto é,'sua reprodução social não é signi­ficativamente atravessada e ame­açada pela presença imediata daoutra classe social, a classe que oexplora.

Quando a exploração se tor­.na evidente e seu mundo comu­nitário ganha visibilidade comoclasse social, como meio que ocapital utiliza para ampliar osganhos propriamente capitalis­tas, suas demandas e lutas se tor­nam, no geral, lutas anticapita­listas. Isto é, não são lutas parasuperar e transformar o capitalis­mo, para resolver sua contradi­ção fundamental que está naprodução social e na apropriação

1,

. perária e projeto histórico,ela o r ~ ,fundamento e relerenCla

mas h' " dde compreensão da Istona o

presente.Diferente do que ocorre com

o camponês, o operário vivenciao processo social. co~o, ser fr~­

. ntário, como mdlvíduo e naome d' ~ dcomo pessoa. Sua con lçao e

essoa está oculta e só se chega.a~Ia por mediações i:'"terpre~~­

as quando o própno operano:e ~ompreende como vítima de

rocessOS alienadores e como serp d' -de contra lçoes. .

Diferente do que ocorre <.:omo camponês, a vivência do operárioé a vivência do processo de traba­lho. Isto é, o operário percebe e sepercebe imedia:unente no_proce:­so de reproduçao das relaçoes SOCI­

ais, como agente de um processode conúnua recriação do mesmo,de conÚIlua repetição de gestos, pro­cedimentos e entendimentos,

Esse processo se rompe lon­ge dos olhos do operário e longede sua co~preensão imediata. Aruptura se dá na acumulação decapital. É a acumulação que pedeou recomenda inovaçóes tecno-

privada dos resultados dessa mo­dalidade de produção.

São lutas antagônicas, fre­qüentemente demoniz.adoras depessoas e negadoras de todas ascaraCterísticas constitutivas da 50­

cieda.de capitalista, mesmo aque­las que já representam a realiza­ção das possibilidades sociaisabertas e viabilizadas pelo capital.

Por isso, as lutas campone­sas tendem a essa característica,tendem a ser lutas pré-políticas.Quando politizadas, é uma po­litização postiça e pobre, insufi­ciente, dependente de referên­cia a outras classes sociais, emparticular a classe operária. Sóem circunstâncias muito pecu­liares e limitadas essas lutas po­dem se juntar às lutas operáriasno sentido de uma transfonna­çáo social profunda13.

Muito mais facilmente doque a classe operária, o campe­sinato em seu protesto pode evi­denciar alguns dos aspectos maisdesumanos do processo do ca­pital, geralmente aspectos im­perceptíveis para a classe operá­ria. É que, historicamente, com odesenvolvimento do capitalis-

82 83

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85

14. Um estudo sociológico clássico sobre esse tema é o de Mannheim, Karl. "Elpcnsamiento conservador". Ensayos sobre 50âologfa YPS;'OÚJgía social [tr.t~. Fioren­tina M. Tomer]. México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1963,

p.84-183.

raso Embora não o sejam necessa­riamente, são elas componentesda sitUação social em que usual­mente floresce o pensamento con­serv.ldor, no sentido clássico doconceito14• É na situação do cam­ponês que estão presentes os ele­mentos hist6ricos que propõemuma visão totalizadora do proces­so social e da pessoa. A totalizaçãose expressa nela completamente,sem necessidade de mediações decunho metodológico. A tradiçáoconservadora se funda no privile-­gíamento das referências de tota­lidade na compreensão do pro­cesso social.

6. Os conflitos sociais quetêm o camponês corno protago­nista, como classe social que sedefronta com o capital, quandonão são apenas conflitos de in­teresse em torno de preços, ten­dem a ser conflitos externos, es­tranhos ao que se possa consi­derar efetivamente capitalismo.Esse é, certamente, um dos fa­tores que levam muitos pesqui­sadores nas ciências sociais a de­dicar um tempo enorme à dis­cussão sobre "modo de produ­ção" ou sobre "fonnação social"para decidir se as lutaS campone-

b lho pelo capital, o tempo da críti-Ira a d· I'(a ílLtema do capital e o cap~ta umo.

O operário nã~ te~ cond~­ções sociais, culturaiS e ldeológl-

de adotar uma ideologia cam-caS .ponesa como se fosse um projetohistórico. Embora poss~, cultu­ralmente, se beneficiar da críticatotalizadora do capitalism? .q.ue avivência camponesa pOSSlblhta eque gan?a corpo e visibilidadenoS movimentos camponeses, no

-protesto camponês. Nessas lutas,aspectoS fundamentais do capi~-lismo são íluminados, esclareCI­dos e revelados à consciência .so­cial, coisa que o operário e a lutaoperária náo podem lograr.

6. Os conflitos sociais quetêm o operário como protagonis­ta, como classe social que se opõeao capital; são, também, conflitosintemos, próprios e constitutivosdo processo sociaI na sociedadecapitalista. São conflitos que pro­põem a inovação social, as trans­formações sociais, no próprio in­terior do processo de reproduçãodas relações sociais e de reprodu­ção do capital. Isto é, que pro­põem as mudanças a partir dascontradições internas do capital e,portanto, do processo que, ao mes­mO tempo, propõe a reprodução

--

\\I\

-1

mo, o camponês é condenado aodesaparecimento, à proletariza­ção, à transformação em operá~

rio. Na relação com o camponês,o que o capital faz é tentar sepa­rá-lo dos meios de produção, con­vertê-lo em força de trabalho pa­ra o capital. É o que se chama deacumulação primitiva.

As rupturas históricas, parao camponês, se dão de maneiravisível, diretamente em sua vidado dia-a-dia, sem nenhuma ocul­tação possível que possa ser re­metida causalmente ao própriocapital. Embora as causas não fi­quem evidentes, na percepçãodas mudanças está presente quasesempre uma substantiva intuiçãode causas, do capital e do dinhei­ro como fatores de transformaçãosocial negativa para o camponês.

Por isso, as lutas camponesasgeralmente não são lutas pela trans­formação social. São lutas contrao perecimento, são lutas pela pre­servação da condição camponesa,são lutas contra a conversão da ter­ra em instrumento direto ou indi­reto do capital. São lutas de reco­nhecimento do caráter transforma­dor da acumulação de capital no seucontrário, na desttUição social quea acumulação também promove.

O tempo que elas encerramsão o tempo do pretérito, o tempo daresistênâa às traniformações, de crítkaexterna do capital. Com freqüênciase diz que as lutas camponesassão tradiçionalista5 e conservado-

84

lógicas, transformações no pro­cesso de trabalho, mudanças quemudam o que é o trabalho e, nãoraro, tornam o próprio trabalha­dor supérfluo e descartável. Asinovações produtivas e sociaisestão divorciadas do caráter re­produtivo do processo de traba­lho. Por isso, não raro, no limite,o operário s6 descobre o possíveldo capital no impossível do tra­balho, no desemprego, na condi­ção de operário em busca de tra­balho e não na condição de ope­drio no trabalho.

Portanto, a ruptura se dá noâmbito da acumulação de capitale não no âmbito do trabalho. Nomais das vezes, as transformaçõescapitalistas não são percebidas co­mo rupturas ou catástrofes. Di­versamente do que acontece como camponês, são rupturas inte-,grativas, que tendem a reincluir otrabalhador no processo de traba­lho como trabalhador para o capi­tal. Diferente do que se dá com ocamponês em face do capital, queo capital exclui ou transforma emoper!rio, o destino do operário'está no interior do processo dereprodução do capital. Mesmo aconsciência de classe que questi­ona o capitalismo só pode emer­gir no interior do processo, comoconsciência das contradições en~

tre o capital e o trabalho.

O tempo que essas rupturasencerram é o tempo do possível, otempo da superação da exploração do

SftwlÇj;~5 difame/nu...

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SílJlAfiies dijeretlcÍ1IÍJ...

86

15. C[ Lefebvre, Henri. La survie du capitalisme - La re-production des rapports deproduction. Paris, Anthropos, 1973, esp. p. 57-126.

87

ceiros de que o grande capital seapropnou.

Além disso, a situação docamponês é peculiar, porque seuprincipal instrumento de produ­ção é a terra. A terra, porém, queainda é a base fisica da produçãoagrícola, é um instrumento não­capitalista de produção, pois elaprópria não é produto do capital,como ocorre com os outros mei­os de produção. Ela não é, senãocontabilisticamente, capital cons­tante. Para que a agricultura entreno circuito capitalista de produ­ção é necessário fazer investi­mentos de capital, não só o capi­tal constante representado pormáquinas e ferramentas, semen­tes e insumos, mas também emcapital variável, o pagamento dotrabalho de quem trabalha, o sa­lário. Ou o capital variável do sa­lário oculto de quem trabalha emlavoura própria.

A terra representa, portan­to, uma irracionalidade quandoconvertida em equivalente decapital, quando é preciso pagarpor ela. Essa irracionalidade é arenda da terra capitalizada, opreço da terra. A renda territo­rial representa uma dedução do

'aI O camponês que aindaSoCI . .duz diretamente seus meIos

Pdro

'da mesmo que produzindoe VI , . d' .térias-primas para a 10 ustna,

:~ra na divisão social do traba­lho de outrO modo.

O caráter social de seu traba­lho se oculta no produto, na me­dida em que esse prod.utojá é pro­duto que pode se realizar no con­sumo. Coisa que não acontece comos produtoS fragmentários do tra­balho do operário ou com os ges­toS fragmentários do trabalhadorcoletivo na linha de produção.

Além do mais, como tendên­cia geral, o operáriojá não dominao integral conhecimento envol~­

do naquilo que produz. O capItalse apropriou do velho e sofIstica­do conhecimento dos velhos arte­sãos e dos trabalhadores da manu­fatura. E o decompõs para recom­pô-lo, elaborado e desenvolvido,num operário coletivo que é, nogeral, a línha de produção.

A sujeição do trabalho ao ca­pital tornou-se sujeição real: Otrabalhador já não tem como tra­balhar sem se sujeitar ao capital;ele se tomou mera extensão damáquinae de um processo de tra­balho que já contém em si mes­mo o saber que o alimenta l6•

16. Marx distinguc dois níveis históricos de realização ~~ ~odo capitalista de pro­dução; o modo de produção capitalista, ccntr:ld? n..a sUJclçaojõrmal d~ c.r:balho aocapital, e o modo de produção espe(ijUamente cap~~IISta, centr.l;do na sUJelÇ30 real dotrabalho ao capital A distinção entre classe oper.ma e campesm~to dep~nde de qu,cse considere essa concepção fundamental. Cf. Marx, Karl. El capItal - Llbro I - CapI­tulo VI (Inédito). [Trad Pedro Searan], Buenos Aires, Signos, 1971, csp. p. 56-63.

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sas são pré-capitalistas e "antifeu­dais" ou se o campesinato é efe­tivamente uma classe social dasociedade capitalista.

Convém ter em conta que,em sua expansão, o capital nãose apropria apenas da força detrabalho, destituindo completa­mente o artesão e o camponêsdos meios de produção necessá­rios à preservação de Sua auto­nomia como produtor. Comoconvém ter em conta que o ca­pitalismo não é formalmente omesmo em todas as partes.

O capital precisa se apropriardo trabalho para se apropriar dosfrutos do trabalho, isto é, da ri­queza adicional que o trabalhopode criar em relação aos custosde reprodução da força de traba­lho. Apropriar-se dos meios deprodução foi o meio históricoque o capital préexistente desco­briu para se apropriar da mais-va­lia. Mas, uma vez constituído osistema capitalista, o capital teve etem tido condições de se apro­priar da mais-valia, mesmo dostrabalhadores que ainda não fo­ram separados de seus meios deprodução. É o caso dos campo­neses que para comercializar seusprodutos tornaram-se dependen­tes dos setores comerciais inter­mediários e dos setores finan-

das relações sociais e a produçãode relações sociais novas l5. Essa éa forma característica da trans­formação possibilitada a partir dasituação social da classe operária.

Os conflitos operários sãoconflitos latentes, inscritos naspróprias contradições que reú­nem o capital e o trabalho no pro­cesso de valorização do capital.Independentemente da vontadesu~je~vado operário, sua relaçãocom O capital é conflitiva. A lutapelo salário é apenas uma luta deinteresses, mas ela indica o de­sencontro entre o que o operáriorecebe e o que o operário produz.Indica, portanto, essa interiorida­de do conflito. Indica, também, adimensão social da contradiçãoque une e opõe trabalhadores ecapitalistas. Indica, ainda, a di­mensão oculta do modo de cria­ção e apropriação da riqueza pormeio do trabalho.

Diferente do camponês, ooperário não luta, a não ser porequívoco, pela máquina em quetrabalha, como o camponês lutapela (erra, por sua terra de traba­lho. Até porque, para o operário,seu trabalho e sua máquina sãoapenas fragmentos do processode trabalho e do processo de cri­ação da riqueza. A divisão do tra­balho faz de seu trabalho, desdeo ato de trabalhar, um trabalho

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SitUilÇÚCS d1jmflcIIlÜ...

Não é estranho, portanto,que em mamemos de crise dotrabalho, crises de desemprego,seus conflitos de interesse sejamatenuados e sua luta pelo traba­lho se tome, na verdade, luta pe­lo emprego. Isso quer dizer que,na impossibilidade de uma apro­priação social do capital, a lutaoperária pode refluir para umaluta pela preservação do capital epela preservação das relações ca­pitálistas como forma do operá­rio preservar-se como operáriopara o capital, como operário em­pregado. As lutas operárias só têmsentido como lutas no interior doprocesso capitalista de reprodu­çáo do capital.

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capital disponível para fazer oempreendimento agricola funcio­nar como empreendimento capi­talista. Essa é a razão pela qual ogrande capital prefere não se tor­nar proprietário de terra, para po­der amar como agente efetiva­mente capitalista. Essa é a razão,também, pela qual o grande capi­tal prefere, muitas vezes, assegu­rar que o camponês sobreviva,obrigando-o a modernizar-se, is­to é, a tornar-se um capitalista pe­queno ou um trabalhador que vi­ve como trabalhador, mas queproduz como pequeno capitalistapara o capital.

Seu conflito com o capitalpode se abrir em duas frentes.Ou a luta pela terra quando sedefronta com o especulador imo­biliário que há no capitalista docapitalismo renrista, como o nos­so, diferente do capitalismo clás­sico, europeu e americano. O ca­pitalista cujo ganho, além do lu­cro, inclui a renda da terra. Ou aluta pela elevação de preços oupela redução de juros, um carac­terístico conflito de interesses,próprio da sociedade capitalista enão estranho a ela, que não repre­senta, de fato, nenhuma possibili­dade de superaçáo do capitalismo.

O mais importante dessesconflitos, do ponto de vista his­tórico, é a luta pela terra. Na ver­<hde, uma luta pelo capitalismomoderno contra o capitalismorentista, o capitalismo do capita-

.~.

lista que vive de lucro e renda daterra, que tenta suprimir a irra­cionalidade da renda territorialsem suprimir o latifúndio, tor­nando-se ele próprio capital la­tifundista.

A luta pela terra difere com­pletamente da luta entre o capitale o trabalho. Ela não propõe a su­peração do capitalismo, mas a suahumanização, o estabelecimentode freios ao concentracionismona propriedade da riqueza sociale à sua privatização sem limites.Ela propõe o confronto entre apropriedade privada e a proprie­dade capitalista. E proclama a su­perioridade social e moral da agri­cultura familiar, que na proprie­dade privada se apóia.

Mesmo que os trabalhado­res rurais adotem formas co­munitárias de apropriação daterra, porque inseridas na lógicado capital, essas formas tendema ser variantes sociais ricas e cri­ativas da propriedade privada,verdadeiros condomínios. Anun­ciam, sem dúvida, a possibilida­de de sujeição da propriedade àsua função social e nesse senti­do indicam a presença contradi­tória de uma transformação e deum tempo que é futuro, umacerta utopia.

Mas, ao mesmo tempo, a lu­ta pela terra põe em questão o di­reito de propriedade e o regimeem que ele se funda, o da proprie­dade privada como fundamento

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17. Numa linha de interpretação mais claramente sociológica do que a do cs­quematism~do Manifrsw Comunista, escrito porM~ e Engels, o tem.a das. rela­ções c desencontros entre a situação de classe SOCial e a complexa d1V~rsJdadc

dos elementos constitutivos da consciência de classe está rratado, a partir de umacontecimento histórico. em M.arx, Karl. "O 18 Brumário de Luís Bona~arten,

iII Marx, Karl & Engels, Frederic. Obras Escolhidas. Rio dcJaneiro. Vitóna, v. I,1956,p.199-285,esp.p.276-277.

1.::::-, SIfUllções tlífU(JlclJlíL.

da propriedade capitalista. É nessesentido que a luta pela terra ques­tiona o sistema em seu conjunto epropõe, no fundo, que o sistemaseja reinventado. Tentativas de fà­zer História revendo o passado,mais do que antecipando o futu­ro, resultam diretamente dessacircunstância estrutural, dessa re­ferência inevitável.

É nesse sentido que a lutapela terra questiona ocapitalismo, ques­tionando umafimna de capitalismo.É nesse sentido que ela, queren­do ou não, propõe uma visãototalizadora e crítica do que é ocapital, de seus efeitos social­mente desagregadores.

Uma certa consciência doque é o capital como antago­nismo existe no camponês tam­bém, porque, mesmo como tra­balhador para o capital, integra­do no processo de reproduçãoampliada do capital, sua sujei­ção tende a permanecer comosujeição formal. Isco é, ele se su­jeita formalmente, mas não re­almente, aO' capital, pois pre­serva integralmente o conheci­mento, o saber, necessário à pro­dução, além de que seu produtoé produto acabado, mesmo quedestinado a ser matéria-prima deprocesso de produção mais ex­tenso, na indústria.

7. A consciência operária éermanentemente mediada pelo

P . . d tconflito constitutivO a est~ u-de classes. Isso não quer dizerra .A' , • •

ue a consClencla operana sejaq. dnecessanamente, to o o tempo,uma consciência da luta de clas­ses. Quer dizer, no entanto, quemesmo não tendo as classes soci­ais objetivamente visibilidadeconstante como tais, os elemen­toS próprios dessa conflitividadese manifestam todo o tempo dediversos modos, sob diversas for­mas. As classes sociais são classesem sí, independentemente da v~m­tade de seus membros, o que nãoas torna necessariamente classespara Si 17 .

De fato, sociologicamente, acondição de classe se manifestaapenas em situações e circuns­tâncias específicas. No mais dasvezes, a consciência operária ten­de a ser uma consciência de classediluída, esfumada, penneada pormediações estranhas à situação declasse, na relação com a existênciaobjetiva da classe operária e as con­tradições que nela se expressam.

7. A consciência campone­sa não é permanentemente me­diada pelo conflito constitutivoda estrutura de classes. Porqueo conflito propriamente de clas­ses não se instaura de modo cons­tante e cotidiano na sua situaçãosocial. Isso não quer dizer que nãohaja conflitos de interesses cadavez mais presentes na vida das po­pulações camponesas, disputas emtomo de preços, empréstirnos,juros.

O agricultor familiar, que,ainda que modernizado, é o nos­so característico camponês, é do­no dos meios de produção, é umprodutor autónomo. Sua relaçãocom o capital não se dá por meioda exploração direta de seu traba­lho pelo capitalista... A exploraçãode seu trabalho aparece ocultadana extração de renda fundiária,aparece sob a forma de pagamen­to de renda da terra.

Isso não quer dizer que nãoexista no campo o operário agrí­cola, o assalariado que, esse sim,se defronta diretamente com ocapital que utiliza e explora seutrabalho.

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18. Cf.• cm particular, o Terceiro Manuscrito, de Marx, Karl. Manuscrits de: 1844(trad. Émile Botrigclli], Paris, Édirions Sociales. 1962, p. 79-149.

SHllJl fões dijerCllciIlÚ...

Convém sempre lembrar quea consciência que o operário temde sua classe é atravessada neces~

sariamente por mecanismos ide­ológicos alienadores, ilusões edeformações, cuja função social éa de torná-lo acima de tudo agen­te ativo da reprodução da socie­dade e não agente ativo de suatransformação.

No próprio processo de pro­du~ão capitalista, que é o proces­so de sua exploração e, pOrtanto,o processo de extração da riquezanão paga, há mecanismos ilusó­rios dele constitutivos, que impe­dem a percepção do que efetiva­mente está sendo produzido: ovalor que ultrapassa a reproduçãoda própria força de trabalho co­mo propriedade de quem exploraO trabalho.

Do mesmo modo' que ooperário percebe sua assimilaçãopelo processo do capital comointegração e não como explora­ção e privação, percebe ilusoria­mente sua presença em outrosâmbiCos da realidade social. Essaassimilação o torna produtor demercadorias, de coisas.

Sua inserção no mundo so­cial se dá, portanto, indiretamen­te, através de mediações, por meiodas coisas que produz. Ao produ­zir coisas e ao ver-se como pro­dutor de coisas e produtor de re­lações sociais que não existem se­mo por meio das coisas, das mer-

o conOito de classes, no mun­do camponês, está essencial­mente na posse da terra. Em nos­so país, é a terra que pode estar nocentro do corúlito de classes dosamponês, do agricultor familiar.E, portanto, um corúlito que nãoatinge toda a classe nem mesmo asua maioria.. O conflito se instauraquando há disputa pela posse daterra ou disputa em tomo da ren­da da terra.

N um extremo, temos tido ocaso dos posseiros, ocupantes deterra que não dispõem de títulode propriedade ou cujo título estásujeito a litígio. No outro extre­mo, os trabalhadores em terraalheia que pagam uma renda fun­diária em trabalho, espécie ou di­nheiro para ter acesso à terra detrabalho. Neste último caso ocorúlito de classes é o conflito ~mtorno da renda, em tomo do ins­trumento de produção, da condi­ção da produção, e não primaria­mente em tomo da apropriaçãodos resultados da produção.

A renda constitui um tribu­to que o produtor paga ao donoda terra, uma dedução de seuspróprios ganhos. Essa é uma re­lação invertida quando compa­rada com a relação operária: ooperário também sofre uma de­dução na riqueza que produz,re~ebe menos do que o valor quecnou. A dedução, porém, é dis­farçada pela equivalência apa­rente entre o salário recebido eas horas trabalhadas.

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cadorias, é a relação social coisi­ficada que o socializa, que se pro­põe como alteridade na sua cons­tituição como ser social. Ele setoma, pois, socialmente produtoda coisificação dessa relação so­cial mediada pela coisa, pela mer­cadoria. Ele se desumaniza nessarelação e nessa socialização. Ele setoma produto do seu produto18•

Ele se vê ao contrário do que efe­tivamente é - produtor de coisase de relações sociais, de idéias e deinterpretações.

Sua consciência se move comdificuldade na relação com s.ua si­tuação social de classe. No entan­to, a conflitividade dessa situação"está lá", latente e subjacente à.sua consciência e à sua sociabilida­de operária. Ela se manifesta nosmomentos de -crise das mediaçõesque impedem que a sitUação declasse se manifeste como consciên­cia de classe. São OS momentos emque a reprodução das relações so­ciais entra em crise, o imaginárioda reprodução se debilita, as ilu­sões da integração são confron­tadas com a realidade crua dos salá­rios insuficientes, do emprego ine­xistente, dos sonhos impossíveis.

São os momentos em que aacumulação capitalista, Para se pre­servar, se propõe como prioritáriaem relação àcondição humana; em

A dedução do camponêsaparece como pagamento de umtributo cujo direito decorre deum monopólio de classe sobreum pedaço do planeta, comodizia Marx. O operário deixa de serpago numa parte de sua jornadade trabalho. O camponês paga pa­ra cumprir suajornada de traba­lho. O operário recebe um salárioincompleto. O camponês pagaum tributo excessivo, a renda daterra, mesmo quando é proprie­tário dela, porque deve pagarpor ela para ter o direito de nelatrabalhar.

Uma forma peculiar de con­flito em nossa sociedade decor­re, portanto, da luta pela terra,da luta contra o monopólio declasse da terra. Esse fenômenofoi e ainda é muito intenso emvárias regiões do país, especial­mente na Amazônia. Lá, a lutaentre posseiros e grileiros é lutapeIa terra e luta por uma con­cepção de direito à terra. Con­flitos desse tipo houve no Para­ná e em outros estados até anosrecentes.

O conflito se configura pe­lo confronto entre proprietáriosreais ou supostos e os ocupantesde terra. Os proprietários reaisquerem extrair de sua terra umarenda territorial. Os proprietá­rios supostos, senhores, não ra-

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19. A excepcional relevância da prática da grilagcm de terras no país está de­monstrada .num.d~cu~entoofiCial recente. Cf. Livro Branco da Crilagem de Ter­ras no Bras~l,. ~mls[é,:o do Desenvolvimento Agrário, Brasflia, 2000. Numav~rr~dura ln;clal relativa ~ est3?elecimcntos com mais de lQ,OOOha de tcrras,dUVidas recalram sobre a titularIdade de 93 milhões de hectares. Convocados oss.upostos proprietários a apresentarem as provas da legalidade de seus títulos ostitulares de pouco mais de 60 milhões de hectares não conseguiram fazê-lo:

Diferente do contido no mo­delo teórico clássico de desenvol­vimento do capitalismo n.a agri_cultura, não tivemos aqui, ao me­nos de maneira significativa, entreo capital e a terra, o conflito políti­co entre os capitalistas e os propri­etários de terra em tomo d.a ques­tão d.a renda fundiária, conm uns,a favor outros.

Aqui, o capital se tomouproprietário de terra e ampliou eacelerou sua expansão territorialespecialmente durante o regimemilitar. Pode-se falar em acumu­lação primitiva justamente por­que por trás da figura do proprie­tário de terra estava a figura doempresário capiulista. Neste ca­so, porém, uma acumulação pri­mitiva diversa do modelo clássi­co, pois o objetivo não era separaro trabalhador de seus meios deprodução para convertê-lo emtrabalhador para o capital. Con­cretamente, o que a expansao ter­ritorial do capital pretendeu foi seapossar da terra para se apossar darenda territorial viabilizad.a pelapolítica de incentivos fiscais,meio de usar a renda fundiáriacomo meio de acumulação não­capitalista de capital.

Essa busca de renda territo­rial, como forma de ampliaçãodos rendimentos do capital, nãotem se limitado às regiões defronteira, onde o direito de pro­priedade é instável e incerto. Elase estende ao país inteiro.

temente a consciência confonnis­ta determinada pelo processo dereprodução das relações de produ­ção e de reproduçã':. das :elaç&:ssociais. Porque ela nao está refen­da a um mundo fechado e autár­quico como tende a ser o mundocamponês. Ela está referida à con­tradição entre o caráter social dotrabalho e o caráter privado d.aapropriação dos resultados do tra­balho. Essa contradição mediatizatodo o tempo, cotidianamente,mesmo que de modo invisíve~

tanto a situação de classe do operá­rio quanto a consciência ope~a.

É a referência dessa contra­dição que traz para a possibilida­de de consciência do operário otempo da sociedade nova e futu­ra, a sociedade que supera e trans­forma as relações sociais do pre­sente. Enquanto o tempo novodo camponês está no passado ide­alizado, o tempo novo do operá­rio está no futuro, numa socieda­de que ainda não existe a não sercomo possibilidade.

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ro, de títUlos obtidos na grila­gem de terras, querem rece­ber o tributo indevido poraquilo que de fato não lhespertence 19•

Os lavradores que chegam ase envolver na luta pela terra sãoaqueles que não reconhecem es­se direito e, não raro, não escloem condições de pagar essa ren­da fundiária, seja mediante com­pra da terra, seja mediante paga­mento de aluguel, a renda.

Entre nós, a expropriaçãoterritorial dos trabalhadores as­sumiu características de acumu­lação primitiva. IstO é, foi formade promover a separação do tra­balhador rural de seu meio fun­damental de prodUção, a terra.Essa separação se deu tanto nasupressão de arrendamentos, es­pecialmente-em trabalho (comono caso do colonato das regiõesde café ou da moradia das re­giões de cana de açúcar) ou emespécie (nos casos em que a uti­lização da terra se dá mediante aparceria ou a meação), quanto sedeu, de marteira violenta, na ex­pulsão de posseiros em várias re­giões do país.

SítUJIfões dijermciaú...

que a coisa, o capital, se proclamahumano e revela a redução doshumanos a meras coisas, merca­dorias, trabalhadores como ven­dedores de força de trabalho oucomo seres descartáveis.

A consciência operária dizrespeito ao caráter alienado do tra­balho, dominada pelas abstraçõese ficções que tomam possível o .trabalho as:>:alariado. É uma cons­ciência.abstrata porque dominadapelo princípio da equivalência ge­ral, da igualdade fictícia que es­conde as desiguald.ades e contra­dições próprias da mercadoria.

Ao se socializar pela media­ção das coisas que circulam, istoé, que são trocadas porque redu­zidas a quantidades e equivalên­cias, o operário se constitui emexpressão dessas equivalênciasquantitativas, próprias das coisasproduzidas de modo capitalista.Sua consciência expressa esse seumodo de ser e expressa o modocomo o capital invade e dominasua vida, por meio da exploraçãodo trabalho.

Sua consciência, porém, nãoé necessariamente nem permanen-

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SillUlfões difer",clill5...

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Aos jovens camponeses quese tornam adultos, aos que pro­cedem da tradição e da experiên­cia da agricultura familiar, invia­biliza o acesso à terra, a sua per­manência na agricultura fami­liar. Faz da renda da terra umairracionalidade social e política,mais do que uma irracionalidadeeconômica. que é o que ocorreno capitalismo clássico.

Quadro que se agrava numsistema econâmico que vem fe­chando rapidamente a possibili­dade de acesso às ocupações in­dustriais em conseqüência datransformação da estrutura pro­dutiva. É nesse quadro de ten­sões que a legitimidade do direi­to de propriedade entra em cri­se, que a concepção do direito àterra se desborda sobre os limi­tes estreitos de um direito queas circunstâncias sociais toma­ram obsoleto.

A conflitividade na vida docamponês não vem da expLoraçãodo trabaLho, mas sim da expropria­ção territoriaL, da privação de aces­so à terra como meio de traba­lho. Sem dúvida, seu conflito éconflito de classes, mas um con­flito escamoteado pelo fato deque, embora conflito com o ca­pital, não o é com ° capital per­sonificado pelo capitalista, por­que não é conflito entre o capitale o trabalho na situação de traba­lho, e sim capital personificadopelo proprietário da terra.

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A disputa é pela mesma coi­sa - a terra - entre os que não atêm e querem tê-la e os que a tême não querem abrir mão deIa. En­tre nós sequer chega a haver umdebate sólido sobre o que de fatopoderia configurar uma disputade classes - o regime jurídico dapropriedade fundiária e sua ob­solescência.

Nesse sentido, quando seinstaura, é esse um conflito tem­pariria, episódico. Ele dura otempo da expulsão do trabalha­dor da terra ou da efecivação deseus direitos territoriais, peIaforça ou por via judicial. Podelevar dias, semanas. ou, não raro,longos anos. Mesmo em relaçãoàs novas características da lutapela terra, envolvendo terras daqual os que lutam não foram ex­pulsos, a lpta tem um ritmo pró­prio e se esgota na consumaçãodo acesso à terra.

Trata-se mais de um inter­valo cOqjuntural na história decamponeses individuais ou gru­pos particulares do que de u:nape-rmanêr'l.cia estrutural ~a V1dade todos os camponeses. B, por­tanto, uma conflitividade opostaà conflicividade própria das rela­ções entre o capital e o trabalho,que é cotidiana e pennanente.

Enquanto o capital invade edomina a vida do operário, inte­grando-o ao sistema capitalis~.ocapital, sob a forma de prop~e­

tmo de terra, expulsa e exclUI o

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SflJi/lções illjemrcÍIlú ...

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camponês da terra, transfonna-oem excedente populacional.

Por isso, a consciência cam­ponesa tende a ser uma consciên­cia dessa expulsão, uma consciên­cia de fim de era, de fim dos tem­pos, porque de fato expressa epi­sódios de supressão da condiçãocamponesa. Não é incomum quea consciência dessa finitude assu­ma a dimensão de uma consciên­cia de catístrofe, de um "fim fi­nal", de apocalipse dos trabalhado­res da tert<L De furo é isso que, in­dividualmente, tende a aoom:ecer.

Essa é a razão pela qual nemsempre a consciência camponesaé uma consciência política. Elatende a ser uma consciência pré­política. Enquanto a consciênciapolítica descobre no conflito opossível, as indicações de saída, aconsdênda pré- poLítica não conseguedescobrir nada em re1a{ão ao futuro,porque para o camponês o futuroé o final, o perecimento de suaclasse e de sua condição. A cons­ciência camponesa com maisfacilidadese abre em relação ao passado, embusca das evidências dos temposidealizados da fartura e da alegria.

Não raro, ela explica os fa­tos e desastres por meio da cul­pa coletiva, de modo propria­mente apocalíptico, como casti­go que pede expiação, castigo,sacrificio e demonjzação, pró­prios ou de terceiros. Mesmoquando a consciência se alarga,como ocorre nas novas fonnasde lUta, o vocabulário que sus-

tenta essa consciência é um vo­cabulário apocalíptico, demoni­zador e punitivo20 •

Diferente da esperança ope­rária, que é a esperança fundadana superação das contradições emque a exploração do trabalho sefunda, a esperança camponesa éuma esperança milenarista., a ex­pectativa no advento de um tem­po novo em que a realidade puni­tiva do presente será invertida, se­rá transformada no seu contrário.

Muitas vezes, há aí a expec­tação do retomo do messias queinstituirá o reino da abundân­cia, a festa pennanente, a con­versão dos velhos em jovens,dos tristes em alegres, dos fa­mintos em fartos. As contradi­ções serão resolvidas na utopiada reversão e da paralisação daHistória21,.

20. Um dirigente de uma organização político-partidária de luta pela terra,falando no programa "Roda Viva", da TV Cultura de São Paulo, usou estasignificativa expressão para justificar a peleja dos trabalhadores rurais: "... pu­niro latifúndio" (grifo meu).

21. Cf Queiroz, Maria Isaura Pereira de. lA ''guerre soin/e" ou Br6il: Le moullt'­menr messianique du "Con/estado n

• São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências eutras da Universidade de São Paulo, 1957. Queiroz, Mauricio Vinhas de.Messianismo e confliJo social (Aguerro sert4neja do Conteswdo: 1912-1916). Rio deJaneiro, Editora Civilização Brasileira, 1966. Monteiro, Duglas Teixeira. 05errantes do novo século. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1974.

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SílJlIlçôes dYerellcíllÍs ...

8. Como verdadeira classesocial, o operariado não s6 é classeem si, mas contém a permanentepossibilidade de se tornar classe pa­ra si. O tornar-se classe para si de­pende de circunstâncias hist6ri­cas, de conjunturas crfticas, demomentOs em que a dimensão re­produtiva e legitimadora da explo­ração do trabalho se dilacera. Mo­mentos em que o auto-engano jánão. é possível.

No geral, essa ruptura nãoocorre no próprio processo de tra­balho e de valorização do capital.O desemprego é uma ruptura noprocesso de trabalho. No entanto,ele não tem sido um fator deconsciência de classe e de mani­festação das virtualidades da classeoperária enquanto classe para si.Ao contrário, o desemprego fragi­liza a classe operária, !an:ça traba­lhadores desempregados contratrabalhadores empregados na com­petição pelas oponunidades de tra­balho. Atenua o poder de reivindi­cação do operariado, diminui suasresistêhcias à exploração, sua solida­riedade de classe e sua intolerânciacom a injustiça e a exploração.

Mesmo que o desempregorevele à consciência do trabalha­dor uma das mais perversas ma­nifestações da exploração capita­lista do trabalho, não revela aomesmo tempo a classe social.Antes, expõe fatores de negaçãoda classe no sentimento de exclu-

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8. Como classe social, O

campesinato é classe em si, quenessa condição pode ser observa­da objetivamente. Ela se manifestacomo classe de um ponto de vistapuramente externo, a partir desuas formas convergentes de pro­duzir e de se relacionar com seuprincipal instrumento de produ­ção, a terra. Como classe em si,pode ser observada sociologica­mente e pode ser compreendidapoliticamente, na sua contraditó­ria inserção no processo social ehistórico. Ela se manifesta comoclasse, também, por sua capaci­dade de questionamento históri­co e político implícito da expan­são capitalista, especialmente suaex:pansão territorial.

Embora sua vivência dra­mática, e não raro trágica, per­mita aos membros dessa classeuma aguda consciência crítica doque a expansão territorial do ca­pitalismo representa para os cam­poneses e o que é, de fato, comofenômeno histórico, o campesina­to, em princípio, niio rem como seconstituir em classe para si. Isto é,classe social dotada de consciên­cia de classe. Não tem, porque suaexistência social não é constituti­vamente mediada pelas abstra­ções próprias da igualdade fonnaldo mundo da mercadoria, emque a força de trabalho tenha sidoconvertida, ela própria, em mer­cadoria. A não separação entre oprodutor e o produto no mundocamponês não libera o trabalho

são e de privação. Nem mesmooS mecanismos de formalizaçãoe aglutinação da c~asse social sãosuficientes e efiCIentes na pre­servação de uma identidade declasse em condições de adversi­dade, como essa. No mais das ve­zes, essas circunstâncias revelamuma face da condição operária quenão a afirma nem confirma neces­sariamente como classe, a dimen­são burocrática, formal e institU­cional das lideranças.

No limite da sua plena ma­nifestação como classe social, aclasse operária existe como çlas­se para si quando tem condiçõesde expor e efetivar o seu projetode classe, o seu projeto social ehist6rico. Isto é, o projeto de su­peração da exploração do traba­lho pelo capital. Nesse momento,

.a classe operária se afinna e se ne­ga. ao mesmo tempo, como clas­se. Ao tomar consciência de queseu destino hist6rico é o destinoda superação da sujeição do tra­balho pelo capital, a classe operá­ria torna reais as suas vinualida-

.des de classe e torna visível parasi e para a sociedade a universali­dade libertadora de sua práxis, desua luta.

Isso não quer dizer que todosos operários ou que mesmo a maio­ria dos operários tenha essa niti­dez de consciência. Ou que só osoperários possam tê-la. Quer dizerapenas que a condição operária, aoconter potencialmente a possibi-

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daquilo que produz e não lhedã, portanto, as caraCterísticaspróprias de uma coisa em si,que possa se tornar equivalentede mercadoria, de coisa.

Isso não impede que o cam­pesinato tenha consciência, al­guma consciência de suas difi­culdades, de seus problemas e,sobretudo, de sua finitude, co­mo finitUde imposta pelo assé­dio do capital e pela expropria­ção territorial que se impõe es­pecialmente nos momentos eepis6dios, muitas vezes longos edemorados, da acumulação pri­mitiva. Mas, não é consciênciaque venha de um antagonismointerior e constitutivo, reproduti­lIO. O antagonismo com o capitalé "externo", mesmo quandovem da circulação dos produtosdo trabalho rural e camponês.Não é reprodutivo, é destrntilJO.Por isso, as lutas camponesastendem a ser típicas lutas de re­sistência à expansão capitalista eresistência à sua destruição pelocapital. Por isso, também, a cons­ciência camponesa tende a sermarcadamente uma consciênciaconservadora, embora o conser­vadorismo camponês não deixede carregar consigo, no seu radi­calismo inevitável (porque dizrespeito à raiz existencial do cam­ponês) as contradições de umaoposição ao capital e àquilo queo capital representa como des­truição de um modo de vida.

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22. Sobre a concepção de necessidades radicais, cf LefebVTc, Henri. La procltl.matiotl de la commune. Paris, Gallimard, 1965, p. 20. Heller, Agnes. La théorie desBesoim Chez Marx. Paris, Union Générale d'Editions, 1978, esp. p. 107-135.

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SltllJ!fões diferenciais...

lidade dessa clareza, abre umaperspectiva de consciência quepode afetar toda a sociedade.

Sua exteriorização, porém,depende do momento histórico,depende de que as comradiçõessociais se tornem insuportáveis.Depende de que as necessidadessociais, que são as necessidadesque movem a História, se tor­nem necessidades radicais22• Istoé, depende de que as necessida­des sociais não possam ser satis­feitas sem transformações sociaisradicais, que interfiram na raizda constituição da sociedade.

Nesse momemo as relaçõessociais entram em processo dereordenamento, reconfiguraçãoe redefinição. Elas ganham outrosentido na consciência social. Nes­se momento, a classe operária sedescobre não como classe em si,como corporação de interesses,mas como classe portadora daconsciência da História. Não sedescobre como classe de produ­tores de mais-valia e menos ain­da como classe de produtores decoisas. Mas, como classe de pro­dutores de possibilidades histó­ricas para toda a sociedade.

A classe para si depende des­sa negação no interior da classeoperária para que o caráter uni-

É essa contradição, justa­mente, que traz as lutas campo­nesas para o mundo moderno.Ao pretender afirmar os valorese o modo de vida consagradosna concepção conservadora quelhe é própria e, ao mesmo tem­po, ao fazê-lo em oposição aocapital e à expansão capitalista, ocampesinato se toma inevitavel­mente protagonista de uma uto­pia anticapitalista. Uma utopiaque só pode se resolver na hu­manização do processo do capi­tal, no estabelecimento de con­dições e limites à expansão capi­talista. Essa contestação tem suaeficácia justamente porque faz acrítiCa do capitalismo na própriaação desde o exterior do proces­so do capital, uma crítica "exter­na", por isso dotada de uma certaobjetividade histórica.

Mas nem por isso as lutascamponesas têm ou podem teras características e as qualidadespróprias das lutas operárias. Oscamponeses se encontram comos operários no desencontro desuas formas de consciência, deseu modo de compreender o queé o capital e o que é o capitalis­mo. Essas consciências externa einterna do prOcesso do capital sóse encontram no trabalho inte­lectual e interpretativo e, eventu­almente, quase sempre mal, nos

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versaI e libertador contido na suasituação de classe se socialize, setorne um dom de toda a socieda­de, de todos os que têm careci­mentoS de mudança, de trans­formação social, de todos os quenão podem ser saciados nos li­mites estabelecidos da explora­çã.o do trabalho e da rentabilida­de do capital.

Nesse sentido, há desencon­trOS entre a classe operária real, aclasse dos que estão mergulhadosno processo de trabalho industrial,e suas virtualidades filosóficas esociológicas. O poder transfortna­dor da classe operária está nesseplano virtual. Sua experiência se:cia! de classe nos fala das contradI­ções do processo do capital, quesão contradições radicais da His­tória. Tais contradiçQes se mani­festam através de múltiplas me­diações na concreta experiênciasocial da classe. Esse é o plano daconsciência real, sempre desen­contrado com a consciência possí­vel. Só em momentos excepcio­nais do processo histórico na s0­

ciedade contemporânea é que aconsciência real e a consciênciapossível se encontram.

Henri Lefebvre distinguiu osplanos desencontrados da cons­ciência e da prática de uma manei­ra esclarecedora e definitiva. Elesugere que reconheçamos as dife­renças entre o vivido, o percebido e ocoruebido. O vivido é o plano da vi-

programas políticos em favor detransformações sociais.

A exterioridade da consciên­cia camponesa, em relação ao de­senvolvimento capitalista, tendease expressar em movimentos so­ciais pré-políticos, pré-capitalis­tas, além do mais. Isto é, a cons­ciência camponesa ganha consis­tência nos movimentos sociais decunho totalizador, marcados porum antagonismo absoluto em re­lação ao mundo não-camponês,não raro sob fonna de guerra santae de demonização do capital e detodos aqueles que são seus agen­tes, na gestão e no trabalho, todosos que estão, de algum modo,condenados à condição de agen­tes de reprodução das relaçõessociais da sociedade capitalista.

Por essa razão, mesmo emsituações de capitalismo avança­do, ou de adiantado desenvolvi­mento capitalista, nos nichos re­siduais da sobrevivência campo­nesa, os efeitos destrutivos da di~

nâmica do capital tendem a gerarmovimentos camponeses de cu­nho milenarista ou de cunho mes­siânico. São movimentos queanunciam e procuram realizaruma inversão do mundo e dasrelações sociais que o caracteri­zam, uma anulação de relações,situações e mesmo pessoas e gru­pos sociais demonizados pela aui­buição a eles da responsabilidadepeIo advento do apocalipse, daera da Besta e do Maligno, pela

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24. C( Hobsbawm, Eric J. Rebeldes primitivos - Estudio sobre las formas arcaiCtls de105 movjmientos socia/es r:n los siglos XIX. yXX [trad. JoaquCn Romero Maura], Bar­celona, Ariel, 1968.

expressa como classe "para si" ofaz pela mediação interpretativade outros grupos sociais, comoos grupos de militância políticados setores radicais da classe mé­dia. É o outro que vê o campesi­nato como classe, o trata comoclasse e o dirige como classe, co­mo se vê na interferência e naação de igrejas, de sindicatos, deentidades humanitárias, parti­dos, que interferem e, mesmosem querer, acabam impondodireção e ideologia política às lu­tas camponesas.

Justamente aí surgem fre­qüentes problemas. Não sendo enão podendo ser de fato classepara si, as características desagre­gadoras de sua situação social ede classe tendem a se manifestarna fragmentação da classe emmovimentos sociais nem sempreconvergentes e grupos de interes­se discordantes.

Mesmo quando um grupo,a partir da experiência de classede uma fração do campesinato,.tenra impor sua hegemonia aoconjunto do campesinato, só po­de fazê-lo através de grupos demediação. Esses grupos podemser até expressão da diferencia­ção social do campesinato, queem muitos lugares gera até mes­mo sua própria intelectualidade,como é o caso de religiosos e re­ligiosas, professores rurais, téc­nicos agrícolas. Mas, a experiên­cia social de classe desses grupos

lOS

do capital sublinhou a importân-'a daquilo que no processo de

C1 d'dtrabalho pode ser compreen 1 oilusoriamente como sendo a ~e~'"

lidade da relação entre o operarIae o capital, estava nos falando daceno-alidade ordenadora do per­cebido nas relações sociais da so­ciedade capitalista. O operáriovende ao capitalista a sua força detrabalho. Em troca recebe o salá­rio. O salário aparece, portanto,como o equivalente do, valor desua força de trabalho. E equiva­lente porque ele cobre o custo dereprodução da força de trab~ho,

custo de reposição do que o traba­lhador, enquanto operário e en­quanto reprodutor da c1ass~ ope­rárU, portanto, enquanto paI, ma­rido e mantenedor da casa, precisapara retomar diariamente à fábricae ao trabalho.

Se o que o operário vende éa sua força de trabalho, o que ocapitalista compra já não o é. Ocapitalista compra a outra face daforça de trabalho, que é sua capa­cidade de produzir mais valor doque O valor contido no operário,do que o valor consumido na suareprodução. Isto é, o que o capi­talista compra é a capacidade dooperário produzir mais-valia, ri­queza excedente à. que foi em­pregada para tornar o processocapitalista de produção possível.

Portanto, o percebido é umpercebido concreto, é o percebi­do necessário e real a que a rela-

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insuuração do tempo da perdi­ção, o tempo purificador da se­paração entre bodes e ovelhas;do expurgo dos condenados àperdição e da instauração do rei­no dos salvos e escolhidos.

Ou, quando não tem essas ca­racterísticas escatológicas, ou nemmesmo se configuram em movi­mentos sociais, as situações adver­sas gestam os bandidos sociais, osjusticeiros, como mostrou Hobs­bawrn, os que tiram dos ricos paradar aos pobres24 •

Mesmo que se tomem pro­tagonistas de movimentos so­ciais, as populações camponesasnão se expressam como classepara si, como classe social. Suasreivindicações tendem a ser rei­vindicações tópicas, o que tam­bém pode acontecer com a clas­Se operária. Quando as lutas cam­ponesas se tomam mais abran­gentes e radicais tendem, poroutro lado, a se manifestar nãocomo classe para si e sim comohumanidade em face de umacrise final e não em face de ummomento de transformação. Ou,ainda, quando supostamente se

23. C( Lefcbvre, Henri. La prodllction de l'espace. Paris, Anthropos; 1974,pas­sim. - "Entrevista", jn Michel Antoine Burnier (cd.). Conversaciones com los ra­dicales [trad.]. Luis López). Barcelona, Kairós, 1975, esp. p. 108. - Sociologje deMarx. Paris, Presses Universiuires de France, 1966, csp. p. 20-48.

vência, da práxis ao mesmo tem­po repetitiva e inovadora, da rea­lidade social do dia-a- dia, dotrabalho, da casa e do trânsitoentre um lugar e outro. É a vida,se poderia dizer. É a vida cotidiana,se poderia dizer melhor23 •

O vivido encerra mais do queo percebido. Porque nem tudo oque é criado e nem tudo o que re­sulta da vivência no trabalho, naru~ e-rn asa, pode ser percebidopelas pessoas, mesmo pelos ope­rários. No vivido tudo parece re­petir-se, a mesma lógica, os mes­mos gestos, os mesmos procedi­mentos, as mesmas palavras, osdias e as noites, os encontros. Ovivido parece expressar-se na roti­na, na mesmice. É no plano desse"parece", do que parece ser ou doque aparece e se deixa ver, que seestabelece o percebido.

O percebido está no planoda consciência cotidiana do pro­cesso social. Ele tende a limi­tar-se ao que confirma a legiti­midade das relações sociais esta­belecidas. Quando Marx, na aná­lise da distinção entre pro.ceSso detrabalho e processo de valorização

SítlUlfiies diferwcltlls...

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O engano não se faz neces­sário no interior do próprio pro­cesso de trabalho do camponês.Ele tende a. aparecer na relaçãocom o mercado. Nessa relação,não há separação, num caso co­mo o nosso caso brasileiro, entreterra, trabalho e capital. Os três"fatores" da produção não se au­tonomizam para cobrar, cadaum por si mesmo, a parte alí­quou que lhe cabe na produçãoda riqueza e, mesmo, da produ­ção da mais-valia.

Nesse sentido, o engano nãodepende de uma modernizaçãodas relações de trabalho, reves­tindo-as de um caráter contratu­al. O engano depende da preser­vação de relações tradicionais,ainda não alcançadas pela desa­gregação dos fatores de produ­ção. O manterjuncos terra, trabalhoe capiCll, como um único agente deprodução e um único agente a rei­vindicar sua parte no conjunto dariqueza produzida, faz com que otrabalhador rural, o camponês,nunca saiba exatamente onde estásendo lesado, de onde está saindosua contribuição como produtorde mais-valia.

isto é, o conjunto de relações so­dais, de coisas, de riqueza, de con­cepções, de criações sociais e esté­ticas que se levantam como umpesadelo ou como estranha cria­tura diante de quem produz a ri­queza e todas essas possibilidades.

É a compreensão do enganoque nos fala do concebido. Elanos fala do que justamente acabade ser exposto, de que a produ­ção capitalisu é ao mesmo tem­po produção de um engano queoculta uma verdade, averdade daacumulação capitalista. O con­cebido está na concepção cientí­fica do processo social, na com­preensão abrangente e totaliza­dora do que aparece e do que ne­le se oculta.

É no concebido que a com­preensão do possível se antecipaàs circunstâncias históricas reve­ladoras das possibilidades da prá­xis. Sobretudo, é no concebidoque o cientista compreende, tam­bém, a eficácia social do engano eseu lugar no processo de re-pro­dução das relações sociais,·de con­tenção do processo histórico, deretardamento do real em relaçãoao possível.

O concebido está no planoda criação e da criatividade emface do desvendamento do pos­sível, do historicamente possí­vel. O concebido se situa no mo­mento da práxis inovadora, dapráxis revolucionária, como opróprio Lefebvre interpreta.

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deixa de ser a de sua classe de ori­gem para ser a do seu novo grupode pertencimento, a classe médiade que fazem parte. Isso não im­pede que de algum modo mante­nham sua lealdade à categoria so­cial de origem, mas uma lealdademediada por uma visão de mun­do que é a da classe média.

Portanto, nesses casos, o cam­pesinato como classe para si só p0­

de sê-Io desvinculado de si mesmo,desfigurado por uma experiên­cia de classe social que não é a sua.

Nesse plano, o campesinatopode se conceber e perceber co­mo classe unicamente na medidaem que se nega como classe, por­que se afirIlla e afirma sua identi­dade através do outro, da media­ção do outro. Diferente da classeoperária que é sua própria refe­rência. Aí o concebido só podeser formulado fora da situação declasse, como teoria ou como ide­ologia. E o percebido, que é tlm­

bém um percebido mutilado eenganoso, não tem na situação docampesinato . nenhuma funçãosocial estruturante. Não há nadaque deva ou possa ser ocultado narealidade social do camponês queseja essencial a que continuecumprindo sua função históricana relação com o capital e com asociedade. Ao contrário, o quecumpre a função integrativa, lon­ge de ser o engano, é a clareza e acerteza de que o trabalho per­tence ao próprio trabalhador.

Sí!JUlções dij,mICfJús.•.

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ção social se efetive, a que a ex­ploração do trabalho pelo capiulse concretize. Se o percebido nãoescamoteasse a essência do vivi­do, não resulusse de um oculta­menta socialmente necessário, arelação capitalista não seria possívele o capitalismo seria igualmenteimpossível. O auto-engano é, nes­se caso, instrumental, constitutivoda própria relação social.

.Ao expor as funções históri­cas do percebido, Marx, ao mes­mo tempo, mostra que o perce­bido esconde o possível ao es­conder a realidade essencial darelação capitalista. O percebidoesconde o modo como é extraídaa riqueza social no capitalismo.Ele é momento constitutivo dochamado modo de produção ca­pitalista, que é essencialmenteum modo de produção de mais-va­lia, um modo de produção do en­gano essencial a que a mais- valiase corporifique em coisas que nãoparecem produzidas pelo traba­lho gue as produziu. Porque sónesse engano é que se pode com-opreender o que é esse modo socialde produção de relações sociais.

É a equivalência acessível aopercebido que viabiliza a cons­trução da relação capitalista. Aomesmo tempo, essa análise deixaclaro que o que escapa ao perce­bido se realiza longe dos olhosde quem percebe e produz o quenão se percebe. Esse é o produto,

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si!U/lriics difmncÍIlÍS...

o possível se propõe no pla­no da realização e da distribuiçãoda mais-valia, embora engendra­do no mOmento de sua produ­ção. Por isso, o possível socializao que a produção criou e viabili­zou. É nesse plano, justamente,que o trabalhador aparece comosendo efetivamente o que é, co­mo trabalhador coletivo e o seutrabalho como trabalho social:

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. Ultas pessoas que não es-tão direumente envolvidas naprodução material, na fábrica, sãomembros desse trabalhador cole­tivo. Como o professor, que ensi­na e prepara quadros para que areprodução social se dê, para quese dissemine o conhecimento semo qual o trabalhojá não é possível.

9. A classe operária é, teorua­mente, uma classe transfomladora,istO é, urna classe cuja situaçãosocial contém a possibilidade datransformação social. Mesmo alie­nado, como não pode deixar deser para que cumpra sua funçãohistórica no processo de repro­duçã0 das relações sociais da so­ciedade capitalista, o operádo es­tá mergul hado numa prática queenvolve a delicada combinaçãodos contrários: a produção sociale a apropriação privada dos resul­tados da produção social, acober­tada pela igualdadejurídica e rea­lizaga na desigualdade econômi­ca. E essa contradição que anun­cia urna certa inevitabilidade do

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9. O campesinato, enquan­to classe dispersa e fragmentá­ria, é, teoricamente, uma classeconservadora, de consciência so­cial conservadora, no geral nor­teada pelos valores e concepçõescentrados na família, na terra, nareligião, na comunidade e notrabalho.

A visão conservador:a do mun­do, da vida e do trabalho que éprópria do carnpesinato, é, maisdo que gestada, reafirmada na ex­pansão do opitalismo. Porque nes­sa expansão o capital ameaça em pri­meiro lugar a autonomia e o modode vida das populações camponesas,seu acesso à terra, sua liberdade, suavisão de mundo.

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possível: a apropriação social dosresultados da produção social, asuperação da apropriação privadados resultadOS da produção social.

Quando se fala em inevita­bilidade, fala-se na tendência ge­ral do processo histórico, mas fa­Ia-se também na necessídade deconhecer a diversidade de formaspossíveis dessa superação. A socie­dade contemporânea não estácondenada a uma única forma desuperação de seus dilemas, seusdesencontros, suas contradições.Muitos fatores interferem no mo­do como essa superação se dá: aestrutura de classes, a organizaçãodo poder, a cultura, a eficácia dosmecanismos de reprodução dasrelações sociais, as condições his­tóricas, polfticas, sociais e econó­micas da superação. As vezes a es­trutura social é mais rígida, maiseficaz na reprOOução das relaçõessociais. Às vezes, e em cerus con­junturas, é mais frágil ou mais fle­xível, mais "competente" para rea­lizar a possibilidade do novo e dainovação social.

O operário pode compreen­der essa contradição de um mo­do alienado e tentar resolvê-Iaalienadamente por meio da bus­ca da ascensão social. Nesse sen':'tido, ele procura escapar da arma­dilha da exploração individual eisoladamente, com base nas regrasda reprodução da sociedade capi­talista, sem questioná-la, sem su­perar de fato as contradições queo alcançam.

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A expansão do capital ame­aça, em primeiro lugar, a visãoordenada e integral do mundoque é própria do camponês, suaconcepção totalizadora da vida.O capital a ameaça porque im­põe a separação entre o trabalha­dor e seus meios de vida, porquecoisifica as relações sociais, por­que acoberta a solidariedade en­tre situação social e consciênciasocial, porque impõe o descom­passo entre a compreensão e aação, porque fragmenta a vida e acompreensão do viver, porqueimpõe o estranhamento do ho­mem em relação a si mesmo e aoseu mundo.

Por isso, diferente do operá­rio, o camponês, em face da ex­pansão do capital, pode facilmen­te reconhecer que seu mundo es­tá ameaçado de destruição, que O

capital de fato é adverso e adver­sário. É o que faz com que as lu­tas camponesas tenham, no maisdas vezes, a dimensão de resistên­cia à expansão capitalista naquiloque ela tem de destrutivo e, tam­bém, de transformador das rela­ções sociais para impor relaçõescapitalistas de produção, modo ca­pitalista de apropriação dos meiosde produção.

Do ponto de vista histórico,a expansão capitalista pode re­presentar de fato um progresso,um avanço nas relações sociais,uma modernização do mundosocial. Ela remove os obstáculosa que cada homem, e, portanto,

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Por isso, do ponto de vistasocial e imediato, das pessoas queo vivenciam, o processo de ex­pansão capitalista difunde sofri­mento, pobreza e humilhação. di­funde um certo sentimento de pri­vação, de perda, de expropriação.

Ai reside uma certa ambi­güidade da situação camponesa.Ambigüidade porque condena­do ao perecimento, em termoshistóricos. Ambigüidade, tam­bém, porque condenado a viverurna transição histórica que nãotermina, mergulhado numa ago­nia lenta, obrigado a viver a re­criação constante, ainda que par­cial, das relações sociais que aconsciência contemporânea jádefiniu como rebções do passa­do, embora não sejam.

Vive, portanto, mergulha­do numa situação sociaJ que per­dura. Diante dele não se abre umpossível histórico similar ao quese abre diante do operário. Por­que sua contradição com o capi­tal é externa e localizada, não éconstitutiva do seu relaciona­mento, senão indiretamente ou,ao menos, sob outra forma quenão a do operário.

Quando urna certa cons­ciência da superação a ele sepropõe, propõe-se como retro­cesso, como reversão do pro­cesso histórico. Daí os messia­nismos e milenarismos tão pró­prios da cultura camponesa. Asuperação é buscada numa am-

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são e a lógica própria da reprodu­çáO dessa sociedade, seus meca­nismos autodefensivos do capi-

. ulis01o.

também os camponeses, sejamlibertados dos laços patriarcaisque o prendem ao outro. Laçosque o tornam sujeito da domi-.. _ ........­nação pessoal e de uma econo­mia limitada e limitante, domi­nada pela autonomia de produ­zir diretamente os meios de vi­da e de produzir excedentes co­mercializáveis ou dominada pe­la autonomia aparente de ser odono do trabalho e dos meiosde trabalho, a terra e o capital.

DUIdIlte muito tempo, as es­querdas entenderam que todos ostrabalhadores deveriam passar poresse processo, deveriam liber­tar-se das subjugações que os im­pedem de entrar plenamente nomundo do contrato social.

Porém, estamos no mundoda divisão social do trabalho. Di­ferentes momentos do processode produção estão distribuídospor uma escala desigual de de­senvolvimento técnico e de de­senvolvimento social. Ao con­trário da suposição ideol6gicamais fácil, os diferentes setoresda produção não se desenvol­vem de modo igual. Cada umtem seu próprio tempo e seu~r6prio riono. Justamente porISSO, o campesinato se preserva,recriado pelo próprio capital,numa espécie de relação colonialdas relações mais avançadas edesenvolvidas com as relaçõesmais atrasadas.

SitJuJções dIjmllc!aIJ...

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Mas, na situação de classe dooperariado a contradição é social.Para de fato agir diretamente so­bre o núcleo dessa contradição, ooperário não pode se libertar, nãopode superá-la, sem libertar a so­ciedade inteira. Quando tenta es­capar pela ascensão social que oinduz, age sozinho, voltado para simesmo. Porém, quando a contra­dição de fato se revela a ele, suaação tende a ser uma ação coleti­va, uma ação de classe, isto é, prá­xis social, práxis inovadora. Nessesentido, ele age como personifica­ção do trabalho social, que é a for­ma do trabalho no capitalismo. E énesse sentido, também, que suaação s6 tem sentido como ação declasse, como protagonista coletivoda possibilidade de superação dascontradições que alcançam sua si­tuação e sua vivência.

Insisto neste ponto: a situa­ção de classe e suas contradiçõesapenas indicam uma possibilida­de de ação e um projeto social ehistórico possível. Não quer di­zer que o operário vá agir neces­sariarriente desse modo e nessadireção. Porque o trabalho nasociedade capitalista é trabalhoalienado, isto é, trabalho domi­nado pelos mecanismos da re­produção das relações sociais cons­titutivas dessa sociechde. À possi­bilidade da produção do novo,das novas relações sociais, da no­va sociedade, antepõem-se opõe­se os mecanismos, a compreen-

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pIa reversão da História, na ten­tativa de voltar a um passadoidealizado, fantasioso.

Mesmo que numerosas, taisreações dificilmente alcançam oconjunto da classe ao mesmotempo. Quando se vê ações emque os camponeses parecem nu­merosos, como hoje no Brasilisso se deve ao poder dos grupo~de mediação, geralmente gruposde classe média, de igrejas, de sin­dic~dos, de organizações parti­dánas, etc., náo de fato à realiza­ção política da situação de classepotencial do campesinato.

No entanto, embora mer­gulhado no mundo do conserva­dorismo, o camponês é, também,um ser mergulhado no mundo~ l.iminaridade, do limite, seja o]~mlte do tempo histórico, seja ol~mite de uma classe pré-capita­lIsta que foi revitalizada e recria­da no mundo do capital. Essa li­minaridade dá ao camponês umavisão crítica do processo de ex­pansão do capital que o operáriogeralmente não pode ter. Por­que ele pode ver "de fora paradentro", em perspectiva, de ma­neira radical, a partir da raiz. Daíque as lutas camponesas tendamao radicalismo e à revolta, mes­mo que sob inspiração da críticaconservadora, que fundamentaseu protesto.

Suas lutas não propõem asuperafão do capitalismo, mas a re­sistência ao capitalisnuJ. Daí que, fre-

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q.üemen:ente, o discurso operá­no e o discurso camponês se en­contrem em sociedades em queessas classes coexistem. Eles seencontram no anticapitalismode ambas. No entanto, o doscamponeses é substantivamentedistinto do dos operários.

A falta dessa compreensãonão raro produz equívoCOS gra­ves na ação política dos chama­dos partidos sociais ou dos par­tidos de esquerda. Porque o con­servadorismo camponês só setoma positivamente anticapita­list<l, isto é, só engrossa açõespolíticas de superação do capi­talismo quando encontra me­diações que sejam capazes dearticular um projeto social quefaça da resistência camponesauma força auxiliar da superaçãodo capitalismo ou de sua trans­formação. Porque, do própriomundo camponês, estrutural­mente falando, não pode emer­gir uma prática de superação docapitalismo, que seja mais doque uma prática de contestaçãoe de resistência aO capitalismo.

A concepção social e do so­cial das populações camponesas,diferente da dos operários, nãoestá diretamente contida na con­tradição de sua existência social.Ela está contida na sua cultura eno modo como se organiza seumundo comunitário e, em gran­de parte, em suas relações face-

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sItJUlções dijerrllcÍJtÍ5.•.

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a-face. Ela está contida na éticado pequeno mundo em que vive.

Além do vivido e do visível,para ele, está o estranho e o estra­nhamento, o que não faz parte donós senão de modo postiço e frá­gil, o que inclui todos aqueles quese pensam seus aliados, que que­rem ajudá-lo ou apoiá-lo. O nósdo operário, diversamente, é da­do pela situação de classe e na tra­ma abstrata de suas relações so­ciais, que se toma visível nos gran­des e massivos encontros e de­monstrações de pessoas, na maio­ria, desconhecidas, que se encon­tram porque assumem a legitimi­dade dessa abstração e da invisibi­lidade dos relacionamentos teci­dos pela mercadoria e pela acu­mulação do capital.

Mesmo acolhidos, como épróprio do mundo camponês,os estranhos permanecem nu­ma espécie de sala da rua ou doterreiro, coisa que se nota naprópria estrutura da casa cam­ponesa e no modo como nesseespaço ritual são recebidos osque merecem ultrapassar a solei­ra da porta, mas muitíssimo ra­ramente o vestíbulo do acesso àintimidade da casa. Essa espaci­alidade da consciência está sem­pre muito presente na vida daspopulações rurais, em seus ritosinterativos e na quase semprerigorosa observância do decorono trato de quem é estranho ou

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de quem, quando muito. é rece­bido no limiar da intimidade.

A rigor, camponeses e ope­rários se distinguem até pelo es­paço e pela concepção de espaçoem que se manifestam como clas­ses. O espaço da manifestaçãopolítica da classe operária não é,evidentemente, a fábrica e sim arua, a praça, o espaço público ?acidade em que mora e transItacotidianamente.

Já o campesinato não dispõede um espaço próprio de mani­festação política no lugar ondemora. Porque, no mais das ve­zes, ele mora onde trabalha, on­de sofre as privações e os medosque o mundo roral ameaçado lheimpõe. O campesinato não vivenem transita cotidianamente pe­los lugares de encontro próprioda sociedade moderna. O lugardo seu viver é o lugar do isola­mento e do desencontro.

Seus encontros sociais nãose dão na espacialidade ampla domundo da política. Ocorrem ape­rias nas estruturas da viziumnça edo parentesco, cujas funções nãose desdobram numa espacialidadepolftica. Quando se manifesta po­liticamente, o faz num espaço quenão lhe é próprio nem familiar,que é o espaço da cidlde, um es­paço que faz dele um estranho eum estrangeiro.

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rega consigo a possibilidade. ~esuperação das relações SOCiaiSdominantes e nem mesmo derestauração de suas relações so­ciais fundantes. Nestas últi~as,

subsumidas pelo capital de dife­rentes modos, já não existe a au­tonomia suposta nas suas onen­uçóes utópicas. Des~re~~ ~sgrandes valores telatlvos a dlgru­dade e à condição humana e, emsua resistência, a importância re­volucionária desses valores no es­tabelecimento de limites éticos àexpansão capitalista.

10. O alcance político e his­tórico dos conflitos camponesesse define pela mediação dos ou­tros conflitos sociais, em parti.,.cular a dos conflitos de alcancehistórico, como é a luta operá_ria. Justamente por isso, o al­cance das lutas camponesas po­de oscilar e muito de acordo coma conjuntura histórica e as cir- .:cunstâncias de sua ocorrência, _'~ _ ._

A inserção do campesinato na ".modernidade e nas lutas pelas~__ ..transformações sociais é vicária, ._~__ ....

d:pe~dentede dinamismos que ...~:'nao sao os seus. ,'.,

.'.,. ~ .., ,Ele pode flutuar entre extre-

mos discrepantes. Mesmo um j"'"conflito grave, como não poucos .:~que temos tido ao longo da histó-ria republicana, po~e aPI~r~cler tcomo mera ocorrênCia po tCla esem nenhum alcance histérico epolítico.

Como, em outras circuns­tâncias, pode dar a impressão deter grande impacto político e,mesmo, grande alcance históri­co, como neste momento em queé em grande parte instrumentodas inquietações e descontenta­mentos de certos setores daclasse média ou de certos parti­dos políticos. Mas raramenteultrapassam seu limite históricoque é o de pôr em questão a or-dem social e política que se ali-cerça sobre o capital.

Porque, de fato, a práxis cam­ponesa que conhecemos não car-

10. o alcance político e his­tórico das lutas operárias é am­plo e abrangente porque são lu­tas da classe social cuja situaçãose abre para o possível, para auniversalidade possível do ho­mem, como afirmação do hu­mano contra a coisificação que oassedia e aprisiona. Porque é pormeio da existência e da atividadeda classe operária que se tomaconsistente e constitutivo O queé p~oRriamente social, como qua­lidade nova e diferente dos rela­cionamentos humanos. Porqueé por meio dela que a historici­dade do homem pode ser des­vendadOl como uma lei e, portan­to, como uma possibilidade.

É verdade que isso não querdizer que toda luta operária éuma luta transformadora. Nemquer dizer que todo operário éum revolucionário. Sua situaçãode classe é revolucionária, mashá grande distância entre ela e asua consciência e sua ação.

Vencer essa distância é quedefine o que é propriamente prá­xis política como contfmu e reno­vada descoberta do possível e con­tínua transformação conscientedas relações sociais que impedema emancipção do homem de suascarências e necessidades. É esse oespaço da construção conscienteda sociedade nova e possível, dastransformações que desbloquei­em o acesso de todos ao que é detodos, que democratizem efetiva­mente a sociedade.

SíUU1ções difmlldllís...

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