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Reitora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) – Janete Gomes Barreto Paiva

Presidente da Fundação Educacional de Divinópolis (FUNEDI) – Gilson Soares

Coordenador do Centro de Pós-Graduação da FUNEDI/UEMG – Alexandre Simões Ribeiro

Apoio Técnico do Centro de Pós-Graduação da FUNEDI/UEMG – Mônica Diniz, Rosimeire deFreitas Santos Peixoto, Fernanda Stephaine Fernandes (estagiária), Kellen Danielle Pedroso(estagiária) e Tatiane da Costa Souza (estagiária)

Cadernos da Pós-Graduação – ContemporaneumComitê EditorialProf. Dr. Alexandre Simões Ribeiro (Presidente do Comitê – FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. AlyssonRodrigo Fonseca (Coordenador do Centro de Pesquisa e Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG),Profª Drª Ana Mónica Henriques Lopes (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Profª Drª Batis-tina Maria de Sousa Corgozinho (Coordenadora do Centro de Memória e Docente do Mestrado daFUNEDI/UEMG), Prof. Ms. Cláudio Gonçalves Silva (Universidade Federal do Maranhão), Prof.Ms. Daniel Silva Gontijo Penha (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Eduardo Sérgioda Silva (Universidade Federal de São João del-Rei), Profª Ms. Eliete Albano de AzevedoGuimarães (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Profª Drª Francis Paulina da Silva (Centro deEnsino Superior de Juiz de Fora), Prof. Dr. Francisco de Assis Braga (Docente do MestradoFUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Gil Sevalho (Universidade Federal de Minas Gerais), Profa. Dra.Helena Alvim Ameno (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Ivan Domingues (Mem-bro do Comitê Diretor do Instituto de Estudos Avançados sobre Transdisciplinaridade – IEAT/UFMG), Prof. Dr. José Geraldo Pedrosa (CEFET/MG), Prof. Dr. José Raimundo Batista Beche-laine (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr. Leandro Pena Catão (Docente do Mestra-do FUNEDI/UEMG), Profª. Ms. Márcia Helena B. Corrêa (Docente do INESP), Prof. Ms. Marcosde Morais Tavares (Coordenador Geral da FACIG), Prof. Ms. Maria Desidéria Duarte (Coordena-dora Geral do ISED), Prof. Dr. Mateus Henrique de Faria Pereira (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Maura Silva Soares (Coordenadora Geral do ISEC), Prof. Dr. Natanael Atilas Aleva(Pró-Reitor de Pós-Graduação da UNINCOR), Profª. Ms. Neide Wood Almeida (Pró-Reitora dePesquisa e Extensão da UEMG), Prof. Dr. Paulo Sérgio Carneiro Miranda (Universidade Federalde Minas Gerais), Prof. Dr. Pedro Pires Bessa (Docente do Mestrado FUNEDI/UEMG), Prof. Dr.Otávio Dulci (Universidade Federal de Minas Gerais), Prof. Dr. Raul Francisco Magalhães(Membro da Câmara de Assessoramento de Ciências Sociais, Humanas, Letras e Artes daFAPEMIG), Profª. Drª Suely Maria de Paula e Silva Lobo (Pontifícia Universidade Católica –PUC Minas) e Profª Drª Vilma Botrel Coutinho de Melo (Docente do Mestrado da FUNEDI/UEMG)

Consultores ad hoc deste número – Ana Mónica Henriques Lopes (Doutora em História pelaUFMG), Francisco de Assis Braga (Doutor em Ciência Florestal pela UFV) e Helena AlvimAmeno (Doutora em Literaturas da Língua Portuguesa pela PUC Minas)

Projeto gráfico – Arnaldo Pires Bessa e Elvis Gomes (Assessoria de Comunicação da FUNEDI/UEMG)

Diagramação – Elvis Gomes

Revisão – Prof. Dr. Alexandre Simões Ribeiro

Capa – Pablo do Prado e Saulo Rafael

Contatos da revista – www.divinopolis.uemg.br / [email protected]

ISSN – 1517-7890

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃOAlexandre Simões Ribeiro 5

CULTURA ALIMENTAR, SAÚDE E MUNDIALIZAÇÃO:UM OLHAR SOBRE A COZINHA BRASILEIRALeandro Pena CatãoSheila Avelar Fumam 7

CIDADE E CONVERGÊNCIA DE MÍDIA:NOVOS CENÁRIOS DA GLOBALIZAÇÃORenata AlencarTailze Melo 28

JOGOS DE ESCALA: A 2ª GUERRA MUNDIAL (1939-1945) VISTAPELOS JORNAIS DE DIVINÓPOLIS (MINAS GERAIS, BRASIL)Ana Mónica Henriques LopesMateus Henrique de Faria PereiraHeloisa Helena Corgozinho 37

O TRABALHO DOCENTE NA CONTEMPORANEIDADE: MUDANÇAS,REPERCUSSÕES NA SAÚDE E POSSÍVEIS INTERVENÇÕESRenata Cristine de Oliveira 52

IMAGENS E SUBJETIVAÇÕES TRAÇADAS PELOSGRAFFITI NAS CIDADES CONTEMPORÂNEASGesianni Amaral Gonçalves 67

INDÚSTRIA CULTURAL, TRABALHO HIPOSTASIADO E VIDA DANIFICADAJosé Geraldo Pedrosa 91

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CONSIDERAÇÕES SOBRE MITO E GLOBALIZAÇÃOBatistina Maria de Sousa Corgozinho 107

HOJE, AGORA E... TRANSDISCIPLINARIDADE E MODERNIDADE?Cristina Silva Gontijo 123

OCIDENTE VERSUS ORIENTE, DEMOCRACIA VERSUS DESPOTISMO:HERÓDOTO NO CINEMA CONTEMPORÂNEOFlávia Lemos Mota de AzevedoThiago Eustáquio de Araújo 133

EM BUSCA DE UM MÉTODO PARA LIDAR COM OACONTECIMENTO CONTEMPORÂNEO GLOBALIZADOAlexandre Simões Ribeiro 147

BIOÉTICA PARA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:UM PARADIGMA NECESSÁRIOSérvio Túlio Portela 163

PACTO PELA VIDA: A INCLUSÃO DO IDOSONAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDEEliete Albano de Azevedo GuimarãesLinda Maira dos Santos Nunes 174

Resenha: Filosofia e psicologia, o pensamento fenomenológicoexistencial de Karl Jaspers. José Maurício de Carvalho (Lisboa:Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, 256 p.)Por Antonio Paim 186

ORIENTAÇÕES PARA A APRESENTAÇÃODE TEXTOS PARA A PUBLICAÇÃO 191

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APRESENTAÇÃO

Propositadamente, escolhemos um tema amplo, multifacetadoe acolhedor de teorias e campos bem diversificados para estenúmero da Revista Contemporaneum. Um tema, portanto, sem

uma morada única ou exclusiva. Todavia, esta escolha também se feza partir dos planejamentos e dos resultados das pesquisas desenvolvi-das na FUNEDI/UEMG, sob o impulso promovido por seu Mestradoem Educação, Cultura e Organizações Sociais.

Ao longo do primeiro semestre de 2007, tivemos a oportunidadede organizar uma série de encontros nos quais os professores doMestrado, pesquisadores de outras instituições, a comunidade aca-dêmica e o público em geral puderam se debruçar sobre temas quepropunham interrogar os meandros da globalização. Chamamos estasérie de encontros de Seminários Avançados Transdisciplinares.Nossos percursos, juntamente com o adensamento das investiga-ções que já estavam sediadas em nossas linhas de pesquisa (Culturae Linguagem, Espaço e Sociedade, Saúde Coletiva), nos levaram averificar que, para-além das controvérsias envolvidas, a globalizaçãoé múltipla e porta as marcas da complexidade. Em outras palavras, asglobalizações nos convocam para um exame, uma crítica, uma vivên-cia que desestabilizam nossas certezas e instrumentos disciplinares.

Desta forma, o conteúdo que se segue não é exatamente o espe-lho dos Seminários Avançados Transdisciplinares, porém aquilo queos mesmos puderam fomentar no Mestrado, nas graduações, nasatividades extensionistas e de pesquisa de nossa instituição, bem comonas nossas relações inter-institucionais.

A globalização entre nós

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A reflexão que se quer contemporânea (não só no que se refereao seu tempo mas, principalmente, à sua forma de ver as problemá-ticas de nossa sociedade) não deve ser demasiadamente territoriali-zada. Daí, a Revista Contemporaneum ser um veículo de pesquisae debate, uma espécie de work in progress, que se dá a partir doMestrado e, sobretudo, para-além do mesmo. Bem-vindos às globa-lizações: entre nós e com seus nós.

Prof. Dr. Alexandre Simões RibeiroCoordenador do Mestrado em Educação, Cultura e

Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG

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CULTURA ALIMENTAR, SAÚDE E MUNDIALIZAÇÃO:UM OLHAR SOBRE A COZINHA BRASILEIRA

LEANDRO PENA CATÃODoutor em História Social e da Cultura pela UFMG e professor docurso de graduação em História e do Mestrado em Educação,

Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG

SHEILLA AVELAR FUMAMGraduada em Comunicação Social pela PUC Minas e graduada em

Gastronomia e pós-graduada em Alimentação e Saúde pela Estácio de Sá (BH)

Resumo: O artigo trata da formação dacultura alimentar brasileira ao longo dosperíodos colonial, imperial e republica-no a partir de suas três matrizes: a por-tuguesa, a indígena e a africana. Discu-tem-se as implicações da alimentaçãosobre a saúde igualmente nos três pe-ríodos da História do Brasil. Analisam-se as bases da cozinha indígena, so-bretudo o papel contundente exercidopelo milho e pela mandioca, ainda hojefundamentais à cozinha brasileira. Ou-tra matriz fundamental da cozinha bra-sileira tem suas raízes na culinária por-tuguesa, responsável pela introduçãode um universo de novas espécies ve-getais e animais assim como novas téc-nicas. O texto analisa o papel exercidopelas grandes navegações quanto àdifusão de ingredientes e técnicas cu-linárias, o que viria a revolucionar asculturas alimentares na Ásia, África,América e Europa. Também é discuti-do o papel dos africanos nas funda-ções da cultura alimentar brasileira.

Palavras-chave: cultura alimentar;Mundialização; Cozinha brasileira.

Abstract: This paperwork is about theformation of the Brazilian alimentaryculture along the colonial, imperialand republican periods parting fromits three matrices: the Portuguese, theIndigene and the African one. We dis-cuss the implications of alimentationover health in these three periods ofBrazilian History. We also analyze thebases of the indigene cooking; aboveall, we analyze the strong role playedby corn and cassava, also fundamentalto the Brazilian cooking nowadays.Another fundamental die of Braziliancooking has its roots in the Portuguesecooking tradition, responsible for theintroduction of a large universe of newvegetable and animal species such asnew cooking techniques. The textanalyzes the importance of the GreatNavigations in order of diffusion of in-gredients and cooking techniques, whatwould make a revolution in the alimen-tary cultures in Asia, Africa, Americaand Europe. We also discuss the impor-tance of the African people in the foun-dations of Brazilian alimentary culture.

Key-words: alimentary culture; Worl-dwide; Brazilian cooking.

Contemporaneum – v. 1 – ano 11 – nº 6 – p. 7 a 27 – outubro de 2007-

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Este artigo trata da cultura alimentar brasileira na perspectivada longa duração e suas implicações para a saúde e doençasdos brasileiros desde os tempos coloniais aos nossos dias. O

principal intento desta pesquisa é chamar a atenção para a vinculaçãoentre cultura, alimentação e saúde, numa perspectiva transdisciplinar.

Os hábitos alimentares são um dos mais importantes traços cultu-rais de uma sociedade e pode-se dizer muito a respeito de uma soci-edade a partir da análise de sua cultura alimentar. Naturalmente, aalimentação vem sofrendo alterações desde o surgimento das pri-meiras civilizações, que dizem respeito aos ingredientes, técnicas depreparo, comensalidade e outros aspectos relacionados a esse uni-verso. O início das primeiras civilizações está intimamente relacio-nado à uma revolução alimentar que se deu a aproximadamente 12000anos atrás, quando a humanidade descobriu a agricultura, desenvol-veu uma gama de rituais e costumes relacionados a seu cultivo epreparação. Aliás, para os Gregos Antigos, fabricar seu próprio pãoe vinho era um dos traços que distinguia a civilização da barbárie.1

Os hábitos alimentares de uma nação não são meramente reaçãoinstintiva à sobrevivência. São expressão de sua história, cultura,condições climáticas e geográficas, condições social e religiosa. Nessesentido, o gosto alimentar pode diferir profundamente de uma socie-dade para outra. A cultura alimentar tem raízes profundas na identi-dade social de seus indivíduos.2 Os homens comem como sua soci-edade os “ensinou”. Segundo Gilberto Freire: “nossas preferênciasde paladar são condicionadas, nas suas expressões específicas, pelassociedades a que pertencemos, pelas culturas de que participamos,pelas ecologias em que vivemos os anos decisivos de nossa exis-tência”.3

No Brasil, a cultura e a alimentação, entendidas como uma ex-pressão da cultura, carregam as marcas e peculiaridades dos gruposétnicos que as formaram: índios, portugueses e africanos. No início,a culinária indígena se impõe. As populações indígenas eram em ge-ral mais bem nutridas dos que a maioria dos marinheiros europeusque primeiro pisaram no Brasil. Aos europeus não restava outra al-

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ternativa que não assimilar os ingredientes da terra e técnicas depreparo utilizadas pelos indígenas. À medida que a colonização seconsolidava, os portugueses mais abastados procuraram reproduziraqui a mesma alimentação que tinham no velho mundo, buscando noalém-mar a praticamente todos os seus alimentos: queijos, vinho, tri-go para fabrico de pão.

No que se refere à História da Alimentação, os navegadores por-tugueses e espanhóis tiveram destacado papel praticando uma ver-dadeira “diáspora” alimentar, levando e trazendo alimentos de ori-gem vegetal e animal mundo a fora. Foi no século XVI que chegouàs Américas o trigo, a laranja, o limão, a manga, a banana, a cana-de-açúcar e animais como o porco, a galinha e boi. A mandioca e omilho formavam a base da alimentação indígena e seguiria funda-mental na formação da cultura alimentar brasileira. O africano con-tribuiu, sobretudo com sua técnica, tempero e manejo de preparo,que viriam a influenciar o sabor do alimento brasileiro, uma vez queos negros trazidos para a América portuguesa na condição de escra-vos não levavam nenhuma bagagem, não tendo introduzido aqui ne-nhum novo alimento. Ingredientes de circulação restrita a uma re-gião ou continente passaram a ser conhecidos em outras partes doplaneta ou mesmo todo o mundo conhecido.4 O açúcar e o chocolate(à base de cacau) são dois bons exemplos. No início do século XV aprodução do açúcar estava restrita a algumas regiões da Índia e ochocolate era um manjar Asteca. Poucos séculos e ambos estariamentre as principais iguarias no Velho Mundo. A mundialização dealimentos, ingredientes e técnicas culinárias antes restritas a uma oupoucas culturas foi uma das principais conseqüências das GrandesNavegações, fato que viria a repercutir decisivamente em váriasculturas em todo o planeta.

Nos tempos coloniais e mesmo durante o período imperial, a mai-or parte da população brasileira, composta de escravos e negros for-ros e mulatos livres pobres, vivia em meio a grande penúria alimen-tar, a fome era constante companheira. Naturalmente, esse fatortrazia considerável prejuízo à saúde. Nos nossos dias, a alimentação,

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ou a má alimentação constituem grave problema de saúde publica aolado da fome, ainda marcante na contemporaneidade.

A culinária indígena foi a base da alimentação dos habitantes darecém descoberta América portuguesa. Apesar de poucos registrosgastronômicos:

(...)as nações indígenas, que, embora muito distintas entre

si, tinham maneiras semelhantes de alimentar-se, baseadas

nas alternativas que a terra farta oferecia, marcadas, prin-

cipalmente, pelo consumo de carnes de caça, peixes, répteis

e mariscos, raízes e tubérculos cozidos, alem de uma infini-

dade de frutas e frutos silvestres.5

Câmara Cascudo, no clássico História da Alimentação no Bra-sil, enfatiza o inhame, o palmito, a mandioca e o milho como muitoutilizadas na alimentação do nativo – e posteriormente de seus colo-nizadores – além de várias frutas, as quais apenas se colhiam e nãocultivavam, como os cajus, mangabas, goiaba, maracujá, jabuticabas,ingás, guarirobas, entre outros.

Alimentavam-se de muitos vegetais e frutas crus, fontes ricas emvitaminas, mas também de preparações cozidas substanciosas à basede cereais, farinhas e caldos de vegetais e carnes, constituindo osmingaus e pirões. Este último fora aprimorado pela técnica portu-guesa, mas antes dela, a mistura de calda à farinha já era popularentre os indígenas. “Pirão é sinônimo da própria alimentação brasilei-ra. Da subsistência total”.6 Era, assim, boa fonte de energia, apresen-tando poucos elementos maléficos a saúde como gorduras, açúcarese sódio em excesso, constituindo uma alimentação de boa qualidade.

Com relação às carnes e pescados, ainda segundo Câmara Cas-cudo, seu processo de cocção preferencial era o assado, os índiospraticamente desconheciam a fritura. Observa-se, também, o costu-me de se alimentar das vísceras das caças, incluindo medulas e mio-los e, nesse hábito “estavam adivinhando a existência mais concen-trada de proteínas, vitaminas e sais animais, valiosos”.7

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Apesar das poucas informações acerca das porções de cada gru-po de alimentos consumidos pelas populações nativas, ou seja, o quantocomiam de cada tipo8, sabe-se que estes se alimentavam não apenascom o intuito de nutrir-se mas também buscar a cura de doenças emoléstias.

A chegada dos europeus representou uma revolução alimentar,tento estes introduzido açucares e gorduras em profusão. Os índiosforam rapidamente seduzidos pelo sabor e aroma dos novos alimen-tos introduzidos pelos portugueses. Segundo Câmara Cascudo, “apresença do europeu foi um terremoto”, se bem que desde os pri-meiros tempos a alimentação dos colonizadores já apresentarem tra-ços da cultura alimentar nativa, fruto do “processo de troca culturalenvolvido no esforço de sobrevivência dos recém-chegados”.9 As-sim, a adaptação dos colonizadores à terra desconhecida e “inimiga,inóspita” fazia ainda com que eles se alimentassem para sobreviver,principalmente.

No contexto dos grandes descobrimentos, os portugueses esta-vam acostumados a sopas grosseiras e mingaus de cereais, carnescozidas, defumadas, salgadas e conservadas em gordura. Eram apre-ciadores de doces e alimentos cozidos, consumidos e geral aqueci-dos. Enquanto isso, os índios alimentavam-se de alimentos em natu-ra, assados e grelhados, cujos ingredientes e técnicas aproximavam-se mais do considerado saudável na atualidade, fazendo uso de fru-tas, legumes, tubérculos, raízes e carnes magras; em lugar de carboi-dratos simples e processados, gorduras e açúcares, que eram a baseda cozinha européia daquele contexto. O mel, frutas e iguarias quecausariam náuseas ao homem ocidental como cérebro de primatas elarvas ou bicho de taquara, constituíam os manjares do Novo Mun-do. Em geral, os nativos não ingeriam comida em excesso. Eramescassas as fontes de gordura utilizadas pelas nações indígenas. Naregião amazônica, a gordura de tartaruga constituía exceção a essaregra.10

Até o início do século XIX, alimentação e saúde eram elementosintimamente vinculados tanto no Velho quanto no Novo Mundo. Se

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para os nativos a alimentação estava diretamente ligada à dietética,sabe-se que os pajés conheciam profundamente a utilidade medici-nal da vasta flora e fauna nativas, fato alias muito bem observadopelos padres da Companhia de Jesus.11 Concomitantemente, os eu-ropeus também reconheciam a vinculação entre alimentação e saú-de. Segundo o médico grego Hipócrates, um dos pilares da medicinadesde a Antiguidade, a alimentação constituía um dos alicerces damedicina. Nesse sentido, segundo o saber médico do tempo dos des-cobrimentos:

muitas coisas que não são boas para engendrar bom san-

gue [são] convenientes para muitas naturezas e valem mais

do que as [...] [que são boas em principio para as pessoas

de temperamento equilibrado] porque se, como diz Avice-

na, [...] o corpo do homem é saudável, quanto mais saboro-

sos são os alimentos ao seu paladar, mais nutritivos se tor-

nam para os seu organismo.12

Entretanto, sob a influencia do Humanismo e mais tarde das Lu-zes, observa-se que entre os séculos XVII e XVIII, é disseminado o“novo gosto” de gastrônomos, cozinheiros e comensais, que passama discutir harmonia de sabores e os prazeres da mesa, enquanto oantigo caráter dietoterápico dos alimentos perde força. “(...) esseafrouxamento dos laços entre cozinha e dietética libera de algumaforma a gulodice; os refinamentos da cozinha não visam mais man-ter a boa saúde das pessoas, mas satisfazer o gosto dos glutões.”13

Com a necessidade progressiva de adaptação dos gostos euro-peus às condições do Brasil, foi-se observando algumas mudançasnos hábitos alimentares. Tanto os indivíduos se hibridavam, quantoseus hábitos de alimentação, mas não de forma uniforme:

Transplantadas para uma terra distante, dividindo espaços

com escravas negras e indígenas, privadas de produtos aos

quais estavam acostumadas, as senhoras portuguesas se

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viam obrigadas a reinventar praticas e costumes tradicio-

nais do Reino, transformando suas novas casas e seus hábi-

tos mais íntimos para adequá-los às exigências da nova

vida.14

Por conta das contingências do Novo Mundo, novos ingredientesforam descobertos e substituíram os habituais dos europeus, como agordura de porco, amendoim e a castanha de caju, utilizadas no lugarda manteiga e das nozes. Passou-se a criar porcos em maiores esca-las, para que deles fossem retirada, além da carne, toda sua gordura,empregada em toda sorte de preparo; além da pele frita: a pururuca.Em afirmativas baseadas em relatos de viajantes do século XVIII eXIX, Paula Pinto e Silva expõe que do porco se extraia o toucinho,cozido com o feijão, frito como torresmo ou guardado em grandespotes para a conservação de carnes que sobrassem. Há, ainda, men-ções a porcos, a pururuca e gorduras empregadas em preparos devários outros pratos. Até o século XIX, a carne de porco era delonge preferida em detrimento da carne bovina. Este último fora ini-cialmente utilizado como animal de trabalho e só a partir da segundametade do século XVII ganha importância na alimentação cotidiana,sobretudo do sertanejo. Quanto à gordura utilizada na América por-tuguesa:

(...) Se o gosto do porco evocava a memória lusitana, tam-

bém recheada de carne suína, o óleo escorrido do toucinho

era o que mais se assemelhava à manteiga consumida no

Reino, importada da Inglaterra pelos senhores mais abas-

tados (...). Desse modo, a gordura passou a ser item de con-

sumo quase vital para a culinária nas terras novas, dando

sabor ao feijão e refogando a serralha. (...) Os alimentos

são preparados com a gordura do porco.15

Não só o português teve sua dieta modificada. Os indígenas tive-ram sua culinária fortemente afetada pelos novos alimentos introdu-

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zidos pelo português. O porco com todos os seus “encantos” culiná-rios ganhou de imediato o paladar dos nativos. Aos negros cativoscabia acatar a dieta imposta por seus senhores. Segundo CâmaraCascudo, os índios aprenderam com os portugueses a empregar asgorduras na culinária com a:

utilização de óleos vegetais na comida e conservação de

caça, o leite da castanha-do-pará (...) no cozido e o óleo

para papas, mingaus, farofa. Confeitamento nos beijus. Veio

também a cana-de-açúcar, excelente para ser mastigada e

bebido o sumo nos torcedores que os portugueses e mestiços

improvisaram nos sertões, não para o açúcar, mas para a

sedução da cachaça irresistível, e para a rapadura, demo-

crática e fácil.16

A partir desse relato, subentende-se a adesão de costumes relaci-onados aos prazeres dos sabores por parte da população da Américaportuguesa, materializado em dois elementos principais: a gordura,acima citada e o açúcar. Nem por isso, os princípios hipocráticosdeixaram de ser observados pelos “médicos” coloniais.17

O grande marco na referida transformação alimentar brasileirafoi a produção de açúcar no nordeste e algumas regiões de São Pau-lo e rio de Janeiro. Para aqueles de mais posses, açúcar refinado edoces finos, para aquelas de menos posses, rapadura, melaços, entreoutros subprodutos da cana. Era comum no Nordeste, região ondepredominavam os Engenhos, que o melaço e a rapadura fossem dadoaos escravos como parte da refeição matinal. O açúcar, produto maisfino, era reservado à casa grande, onde manipulado pelas sinhás nopreparo às velhas receitas de doces portugueses e alguns manjaresnascidos no Brasil, como o quindim, por exemplo.

Segundo Gilberto Freire, em sua obra Açúcar, os hábitos alimen-tares hoje considerados prejudiciais à saúde, foram resultado quaseexclusivamente da cultura monocultora e latifundiária da cana-de-açúcar. Segundo o autor, a questão extrapola o simples consumo de

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açúcar, englobando a diminuição da produção e consumo de vegetaisdiversos e quase substituição do consumo das frutas em natura pelascompotas, técnica européias adaptada aos frutos da terra.18 A cana-de-açúcar, que exigia extensos territórios para seu cultivo, além detempo e atenção, acabava tomando espaço das verduras e legumes,mais saudáveis mas menos rentáveis e menos produtivas que o milhoe a mandioca utilizadas comumente para a subsistência. “(...) A mo-nocultura canavieira sempre dificultou (...) a cultura de vegetais des-tinados à alimentação. Ainda hoje se sente o efeito na dieta do brasi-leiro – na do rico e especialmente na do pobre”.19 Havia produçãode frutas e legumes nos pomares e hortas das casas grandes, masem quantidade insuficiente para a alimentação de toda a população,sobretudo a formada pelos escravos e livres pobres, exceção feitaaos enfermos. O caju, fruta muito rica em vitamina C era utilizada notratamento do escorbuto.

Os fatores de natureza produtiva, ligados à forte demanda deaçúcar pelo mercado europeu, engendraram a uma prática conside-rada pouco saudável nos nossos dias: o grande consumo de açúcar.A cultura alimentar do nordeste é também chamada cultura do doce:“considerado uma especiaria universal, comido puro, misturado à águapara torná-la refrescante, as frutas e flores para a fabricação degeléias, e ao álcool para a produção de licores”.20 O açúcar tanto eraamplamente usado para a produção de doces finos típicos do Reino,como quindins, toucinhos do céu, como para “melhorar” as frutaslocais, cuja maioria só era consumida em forma de doces bastanteaçucarados, cristalizados ou em caldas. Era um recurso para agradarao “paladar excessivamente doce dos senhores e senhoras brancas”.21

Este hábito fora se ampliando no período colonial e imperial, paraalém dos Engenhos nordestinos, instaurando um dos contornos dacozinha brasileira:

De um modo geral, a nutrição da família colonial, tanto nos

engenhos como nas cidades, era de má qualidade: por um

lado, pela deficiência de proteínas de origem animal, vita-

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minas, cálcio e de outros sais minerais e, por outro, pela

riqueza de certas toxinas.22

Nas Minas Gerais colonial, era outra a configuração alimentar.Nos primeiros tempos, devido à falta quase absoluta de infra-estru-tura, a vida dos primeiros mineiros foi bastante dura, marcada pelafome e carestia de uma série de itens que ali não existiam. Não foiraro naquele contexto homens morrerem de fome com verdadeirasfortunas em ouro presa à cintura, ou terem que abandonar regiõesriquíssimas em ouro para não morrerem de fome.23

Era um expediente do homem colonial, e das populações indíge-nas antes da chegada dos europeus a estas terras, a hábito de procu-rar na natureza selvagem parcela importante do seu sustento diário.A natureza era uma fonte praticamente inesgotável de alimentos eoutros recursos indispensáveis à vida.24 Saber como extrair do meioambiente os meios básicos para a subsistência foi uma vantagemvital para aqueles que sabiam tirar proveito de tal situação. Nesteínterim os paulistas levavam uma ligeira vantagem com relação aseus concorrentes reinóis, uma vez que seus laços com as culturasindígenas lhe legavam conhecimentos extraordinários de como vivernaquele meio tão hostil àqueles que desconheciam os segredos dasmatas e sertões. Em determinadas circunstâncias de extrema penú-ria vivida pelos mineiros durante os primeiros anos de mineração nasGerais, tais conhecimentos foram crucias para determinar aquelesque teriam sucesso naquela dura empreitada da mineração. Parasobreviver, muitos homens “se aproveitarão até dos mais imundosanimais” para se alimentarem.25 O alimento era coletado na nature-za das mais diversas formas. Raízes, animais de pequeno e médioporte, frutos e legumes de todo o tipo, ovos, mel, e até mesmo insetoseram utilizados como fonte de alimento por aqueles homens que seaventuravam por meses e não raro anos no coração do Continenteainda “selvagem”.

Naquele contexto, a natureza, ou seja, as florestas e sertões, eramencarados como verdadeiros mananciais de alimentos e outros gê-

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neros de extrema necessidade pelas populações luso brasileiras quehabitavam a América portuguesa. Minas Gerais não foi uma regiãopródiga quanto à disponibilidade destes gêneros de necessidade en-contrados na natureza. Certamente o grande afluxo de homens quepara ali se dirigiu nos primeiros anos de sua colonização foi uma dascausas de tais dificuldades, mas certamente não foi a única. Veja-mos algumas fontes a este respeito: “Com esta notícia de grande-zas, quis logo vir às Minas, mas não o fiz por falta de mantimen-tos nos caminhos e cama, de que morria muita gente....”26 Oautor destas palavras foi um “forasteiro” anônimo que partiu do Riode Janeiro para as Minas Gerais em 1698. Ele relata neste mesmodocumento que fora grande a mortandade de homens nas Minasocasionada pela carência de alimentos. A falta de comida levou mui-tos mineiros “a comerem bichos de taquara, que para os comer énecessário estar um tacho no fogo bem quente, e ali os vão bo-tando; os que estão vivos logo bolem com a quentura e são osbons, e se se come algum que esteja morto é veneno refinado.”27

Em outro relato relativo à este mesmo contexto, o autor tambémacentua a falta de víveres silvestres na região das Minas:

por serem tudo matos e asperíssimas brenhas, e falto do

mais favorável gênero de caças, como veados, antas, emas,

porcos monteses e mais gêneros de animais, e mel silvestre,

que pelos campos gerais eram mais abundantes do que pe-

los sertões de matos incultos montanhosos e penhascosos...28

Como vimos, a topografia acidentada das Minas também foi umobstáculo à obtenção de alimentos na Natureza. Em praticamentetodas aquelas pioneiras incursões até as Gerais, os sertanejos, ma-melucos e principalmente os indígenas cativos tiveram um papel fun-damental, uma vez que dominavam as técnicas necessárias à sobre-vivência naquelas matas ainda pouco conhecidas e exploradas.29

Paulatinamente a questão do abastecimento de gêneros alimenta-res na região mineradora foi equacionada, através da introdução da

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agricultura em mais larga escala nos arredores das principais vilas elocalidades da Capitania das Minas Gerais e com o afluxo cada vezmaior de gado àquela região, proveniente principalmente dos arredo-res do Rio São Francisco e demais terras ao longo do caminho queligava Salvador às Minas Gerais. As principais culturas eram o mi-lho, o feijão e a mandioca, sendo a mandioca mais comum nos ser-tões do Rio São Francisco e o milho prevalecendo nas demais regi-ões das Minas. A principal região produtora de víveres era a Comar-ca do Rio das Mortes. Com o tempo também se estabeleceram nasGerais redes de comerciantes que garantiram o abastecimento detodo gênero de mercadorias àquela região, desde gêneros de primei-ra necessidade, até utensílios do mais alto luxo que alcançavam alipreços muito maiores do que os observados no litoral.30 A estabilida-de referente ao abastecimento e o estabelecimento administrativo daCoroa portuguesa naquela região consolidariam de vez a colonizaçãoda região mineradora. Em meados do século XVIII a população daCapitania de Minas Gerais já oscilava em torno de 450000 pessoas.Isto significou uma pressão tremenda exercida sobre a natureza, emdois aspectos. De um lado a extração do ouro propriamente dita, ede outro o desmatamento de áreas cada vez maiores destinadas aoplantio de gêneros alimentícios destinados ao abastecimento das vi-las e arraiais.31

Na capitania das Minas Gerais, a gordura de porco, assim comonas demais partes da América portuguesa. O porco era presençacerta nas moradas das minas colonial.

a carne de porco, seus miúdos e o toucinho (...) são alimen-

tos que faziam parte do cotidiano das famílias abastadas. O

consumo elevado de toucinho, confirma-nos o seu uso não

só como componente de diversos pratos das pessoas de pos-

se e dos escravos e pobres (no feijão em ‘torresmos’, princi-

palmente), mas como ingrediente na cocção de cereais, tu-

bérculos e hortaliças e, também, como meio de conservação

das carnes.32

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O açúcar também era muito apreciado, mas seu alto custo res-tringia seu consumo aos mais abastados. As hortas, quintais e poma-res existiam mesmo nas vilas, mas a produção era insuficiente para amanutenção de uma dieta saudável segundo os padrões atuais.

No século XIX e início do XX o padrão alimentar brasileiro nãosofreu alterações bruscas, sobretudo nas regiões interioranas. O mi-lho, a mandioca e seus muitos derivados, o feijão e a carne-secaseguiam formando o tripé culinário brasileiro.33 A gordura e demaisderivados do porco e o gosto pelos doces também eram elementospresentes em nosso gosto culinário de norte a sul no Brasil. Contudo,a combinação arroz-com-feijão tão característica da cozinha brasi-leira de nosso tempo nasceu ao longo do século XIX, popularizando-se primeiro nas maiores cidades e posteriormente alcançando todasas partes do Brasil, mas isso não quer dizer que a farinha tenhaperdido sua importância, mesmo nas regiões onde o arroz se impôscom maior veemência. Uma das possíveis causas do ganho de im-portância do arroz no cenário gastronômico no Brasil durante o sé-culo XIX, foi a inclusão do mesmo na alimentação dos soldados.34

No Brasil imperial, alguns eventos vieram reforçar traços de nos-sa culinária. Fatos como a:

(...)ampliação das áreas de cultivo do café, expansão demo-

gráfica e urbana; desenvolvimento dos transportes e das

comunicações; aumento gradativo da faixa de trabalho li-

vre, (...) alta geral nos preços dos alimentos em praticamen-

te todas as províncias do Império [entre outros] prejudicou

a circulação de produtos de outras regiões. 35

Dentre as principais mudanças observadas na sociedade brasilei-ra entre os séculos XIX e XX salientamos uma diretamente relacio-nada à questão alimentar. Durante todo o período colonial, o Nordes-te, principal região produtora de açúcar, possuía, por conta disso,lugar de destaque no cenário político, econômico e social na socieda-de brasileira. Durante o XIX, o Nordeste viu seu prestígio e influen-

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cia diminuírem de forma considerável ao passo que o sudeste, sobre-tudo São Paulo (uma das regiões mais pobres durante o período co-lonial) crescia e ganhava espaço, por conta da introdução da culturado café, entre outros fatores.36

Por conta da precariedade da alimentação, doenças e casos deopilações, cujos sintomas eram cansaço e hábito de comer terra,típicos de indivíduos cuja dieta é extremamente carente de vitaminase minerais era muito comuns. Os médicos sanitaristas do Brasil im-perial apontavam como possíveis causas das referidas moléstias aalimentação fundamentada na farinha de mandioca, milho e feijão,ditos pouco nutritivos e indigestos.37

O padrão alimentar brasileiro sofre uma alteração significativa apartir da década de 1930, durante a Era Vargas, início da “revoluçãoindustrial” no Brasil. É nesse contexto que nascia a indústria alimen-tar, ao mesmo tempo em que se acentuava o êxodo rural. É nessecontexto que os alimentos industrializados começaram a se populari-zar nas grandes cidades brasileiras. Tais produtos vinham atender àsnecessidades da classe trabalhadora, cuja rotina tornara-se mais tur-bulenta e acelerada. Dados históricos confirmam que os operáriosse alimentavam de forma precária, enquanto as classes mais altasmostravam expansão nos excessos alimentares, numa tendência nãomuito diferente da observasa nos períodos anteriores.38

Nos nossos dias, o excesso de peso e obesidade, diabetes, doen-ças cardiovasculares, hipertensão arterial (incluídas nas DCNT, Do-enças Crônicas Não Transmissíveis), problemas renais, de fígado,entre tantos outros, incluindo aqueles de ordem emocional fazemcentenas de milhares de vítimas a cada ano. Segundo o Ministério daSaúde, a má qualidade da dieta está diretamente associada aos ris-cos da pessoa desenvolver as doenças não-transmissíveis supracita-das. Ainda segundo o Ministério, essas doenças estão relacionadasàs causas mais comuns de morte registradas atualmente. O governocalcula que cerca de 260 mil mortes poderiam ser evitadas todos osanos caso o brasileiro optasse ou tivesse acesso a uma alimentaçãosaudável.39

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Todavia, no século XX, a alimentação mostrou-se objeto de inte-resse da saúde pública. A inadequação da dieta nacional, pobre emleite, laticínios, ovos, verduras e frutas, passou a ser percebida aponto de a Nutrição ser reconhecida como ciência. A composiçãodos alimentos, bem como a relação entre estes e as enfermidadespassaram a ser estudadas com mais profundidade e profissionais danutrição a ser requisitados no campo da saúde.

Sob a influência dos avanços da bioquímica, que propicia-

ram uma melhor compreensão do funcionamento do orga-

nismo e a identificação de novas substâncias, como as vita-

minas, o mote passa a ser investigado, abordado ou questi-

onado por vários estudiosos em diversas áreas do conheci-

mento. É dentro desse contexto efervescente, entre os anos

de 1930 e 1940, que Gilberto Freyre, Josué de Castro e

Nelson Chaves realizaram importantes estudos sobre a ali-

mentação brasileira, justamente num período em que a ques-

tão da fome mobilizava vários setores da sociedade brasi-

leira em decorrência da inflação do custo de vida provoca-

da pela crise de 1930.40

A partir desses estudos e dos outros mais que se seguiram a es-tes, cada vez mais embasados cientificamente, iniciou-se o desenhoda situação alimentar no Brasil contemporâneo. Durante o séculoXX assiste-se a uma redução dos índices de subnutrição, sobretudonos centros urbanos, mas acentuam-se distúrbios relacionados à mánutrição. A partir da década de 1960 até 1990, observa-se um mar-cante declínio da desnutrição em crianças (porém, ainda existente epreocupante). Mas, por outro lado, há elevação da obesidade emcrianças e adultos nesse mesmo período, que chegou a triplicar emalgumas regiões do Brasil nos extremos da série temporal analisada.Outro efeito do acelerado processo de industrialização e urbaniza-ção sobre as crianças é uma melhora no nível de estatura das crian-ças da ordem de 72% nas cidades e 54,4% no meio rural.41 Na con-

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temporaneidade, outro fator que interfere diretamente na qualidadealimentar é a renda familiar. A análise dos dados do período mostramque a obesidade, antes mais relacionada as classes mais ricas dapopulação independente da região do país, fora atingindo tambémaquelas populações de renda mais baixas inclusive no Nordeste. To-davia, esse quadro é paradoxal quando comparado ao nível de ane-mias da referida época:

(...)elevada a prevalência de anemia, com uma freqüência

modal entre 40 a 50% em menores de cinco anos e de 30-

40% em gestantes (...) A anemia representa, em termos de

magnitude, o principal problema carencial do país, aparen-

temente sem grandes diferenciações geográficas, afetando,

em proporções semelhantes, todas as macrorregiões (...).42

Os dados apresentados evidenciam que a obesidade, ou seja, osobrepeso, não garante uma boa saúde. Grande quantidade de ali-mento não é sinônimo de qualidade. Segundo o Guia Alimentar paraa População Brasileira de 2005, o desequilíbrio nutricional se carac-teriza, sobretudo pela queda da ingestão de verduras, legumes, frutas– queda de 19,3% – e peixes, cujo consumo fora reduzido pela meta-de em detrimento do aumento de consumo de alimentos industrializa-dos como: óleo de soja, açúcar, farinhas e mesmo o arroz e o feijão.

Os dados do Guia Alimentar mostram uma tendência de aumentono consumo de carnes e leite. Carnes gordurosas, entretanto, contri-buem para doenças cardiovasculares. Já o aumento do consumo deleite é positivo, mas não atingiu ainda as porções nutricionalmenteconsideradas ideais. O guia recomenda a restrição do consumo desódio, gorduras – principalmente as saturadas e trans – e açúcares.As gorduras são fontes de ácidos graxos essenciais e de vitaminaslipossolúveis, entretanto, em 2003, o consumo de gorduras totais ex-trapolou os limites recomendados nas Regiões Centro-Oeste, Sudes-te e Sul e em segmentos populacionais de maiores rendimentos nasdemais regiões. Já o açúcar, que do ponto de vista nutricional não é

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essencial ao organismo, uma vez que a energia que necessitamospode ser adquirida através de carboidratos complexos e açúcaresnaturalmente presentes em alimentos in natura, é largamente con-sumido por todas as classes em todas as Regiões do Brasil, seguindouma tradição alimentar com profundas raízes, estabelecidas no perí-odo colonial. O excesso de consumo do açúcar simples (sacarose)está diretamente associado ao aumento de peso, a ocorrência decáries, a ocorrência de diabetes, doenças do coração, entre outras.Já o consumo de sal, que também aumentou consideravelmente noséculo XX, bastante presente nos produtos industrializados, está re-lacionado a doenças coronarianas, como a hipertensão.43

Todavia, enquanto parte da população tem sofrido com os malescrescentes da obesidade, alto consumo de alimentos industrializados,ricos em gorduras e açúcares, outra tem dado cada vez mais aten-ção a alimentação visando melhorar a saúde, através do consumo dealimentos saudáveis, aumento da atividade física e mesmo a preocu-pação com a saúde mental. Tem ganhado cada vez mais espaço aalimentação macrobiótica, que exclui alimentos de origem animal,processados e congelados e afirma que os alimentos existem emdois grupos “yin e yang” e devem ser consumidos em combinaçãodesses elementos. Outro método alternativo em expansão e o daAlimentação Viva, a qual considera que o corpo, composto por célu-las vivas, precisa de alimentos vivos para manter a saúde (somentevegetais são consumidos, principalmente em forma crua). Estão, ainda,em destaque no país também a alimentação natural, o vegetarianis-mo, e as dietas não convencionais.44 Todavia, a alimentação ideal éaquela variada, equilibrada, harmônica, sendo que pode-se comer detudo, desde que com moderação e respeitando as necessidades docorpo com relação a cada tipo de alimento.45

Na atualidade, seja no Brasil ou em qualquer país capitalista in-dustrializado, um dos maiores obstáculos a uma saúde equilibradaconsiste em promover uma ampla educação alimentar, alertando apopulação quanto aos riscos em se consumir em excesso gordurastrans, gorduras saturadas, açúcares e agentes químicos nocivos à

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nossa saúde. Cabe também uma ação mais incisiva do Ministério dasaúde e demais Órgãos relacionados à comercialização de alimen-tos, coibindo a venda de determinados produtos.

REFERÊNCIAS

CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação no Brasil. 3ª edição.São Paulo: Global, 2004.FILHO, Malaquias B. e RISSIN, Anete. A transição nutricional no Brasil:

tendências regionais e temporais. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2003.FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimenta-

ção. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.FREYRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasilei-

ra sob o regime da economia patriarcal. 50ª ed. São Paulo: Global, 2005.MAGALHAES, Sonia Maria de. Alimentação, Saúde e Doença em Goiás

no Século XIX. Tese de Doutorado. Franca, SP. 2004.MENESES, Jose Newton Coelho. O Continente Rústico: abastecimento ali-

mentar nas Minas Gerais setentistas. Diamantina MG: Maria Fumaça, 2000.Ministério da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. Brasí-lia – DF 2005.SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca: um tripé culinário no

Brasil colônia. São Paulo: Editora Senac, 2005.

NOTAS

1 FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo.História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.2 FRANCO, Ariovaldo. De caçador a Gourmet: uma História da Gastrono-

mia. São Paulo: Ed Senac, 2004. pp. 23-24.3 FREIRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 10.4 LEMPS, Alain Huertz. As bebidas coloniais e a rápida expansão de açú-

car. In: FLANDRN, Jean-Louis; MONTANARI, Máximo. História da Ali-

mentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 611-616.

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5 SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC,2005, p. 26.6 CASCUDO, Luis de Câmara. História da Alimentação no Brasil. SãoPaulo: Global, 2004. p. 48.7 Idem. P. 146.8 O Guia Alimentar Brasileiro atual recomenda que: Os cereais, de preferên-cia, integrais, frutas, legumes e verduras, e leguminosas (“feijões”), no seuconjunto, devem fornecer mais da metade (55-75%) do total de energia diá-ria da alimentação; Gorduras: 15-30% do valor energético total (VET) daalimentação. Proteínas: 10-15% do valor energético total (VET).9 SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC,2005, p. 26.10 Idem. Ver: capítulos I e II.11 Ver, entre outros: DEAN, Warem. A ferro e fogo: história da devastação

da mata Atlântica no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.12 FLANDRN, Jean-Louis. Da dietética à gastronomia, ou a libertação da

gula. In: FLANDRN, Jean-Louis; MONTANARI, Máximo. História da Ali-

mentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 676.13 FLANDRN, Jean-Louis. Tempos Modernos. In: FLANDRN, Jean-Louis;MONTANARI, Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Li-berdade, 1998. p. 549.14 SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC,2005, p. 39.15 Idem. p. 44.16 CASCUDO, Luis de Câmara. História da Alimentação no Brasil. SãoPaulo: Global, 2004. p. 147.17 Ver, entre outros: FERREIRA, Luís Gomes: Erário Mineral. (org) FURTA-DO, Júnia Ferreira. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002.18 FREIRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das letras, 1988.19 FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasi-

leira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005. p. 149.20 SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SENAC,2005, p 38.21 Idem. p. 38.

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22 MAGALHAES, Sonia Maria de. Alimentação, Saúde e Doença em Goiás

no Século XIX. Tese de Doutorado. Franca, SP. 2004. p. 36-37.23 BOXER, Charles R. pp. 71-72. ANTONIL, André João. pp. 164-168 e 181-186.24 Para maiores informações a este respeito ver: HOLANDA, Sergio Buar-que de. Caminhos e Fronteiras.

25 Idem. p. 56.26 “NOTÍCIAS do descobrimento das minas de ouro e dos governos políti-cos nelas havidos.” In: Códice Costa Matoso. Vol. 1 p. 245.27 Idem. p. 245.28 NOTÍCIAS dos primeiros descobridores das primeiras minas do ouro eestas Minas Gerais, pessoas mais assinaladas nestes empregos e dos maismemoráveis casos acontecidos desde os seus princípios. In: Códice CostaMatoso. Vol.I pp. 170-171.29 Acerca das habilidades e técnicas de indígenas e mamelucos com relaçãoà obtenção de alimentos e outros do meio ambiente ver: HOLANDA, SergioBuarque de. Caminhos e Fronteiras.30 BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil. pp. 70-80.31 DEAN, Warren. op. cit. pp. 108-109.32 MENESES, José Newton. O continente rústico: abastecimento alimentar

nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina: Maria Fumaça: 2000. p. 114.33 Ver: SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca. São Paulo: SE-NAC, 2005.34 MACIEL, Maria Elnice. Uma cozinha à brasileira. Estudos Históricos,Rio de Janeiro, nº 33, 2004. p. 8-9.35 MAGALHAES, Sonia Maria de. Alimentação, Saúde e Doença em Goiás

no Século XIX. Tese de Doutorado. Franca, SP. 2004. p. 29.36 Ver: Parte II: IGLESIS, Francisco. Trajetória política do Brasil. São Paulo:Companhia das Letras, 1995.37 Idem. p. 29.38 Ver: LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. História da Gastronomia.

São Paulo: Senac, 2004. pp. 63-91.39MINISTÉRIO da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira.Brasília – DF 2005.40 Idem. p. 36.

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41 FILHO, Malaquias B. e RISSIN, Anete. A transição nutricional no Brasil:

tendências regionais e temporais. Rio de Janeiro: Cad. Saúde Pública: 2003.42 Idem.43 MINISTÉRIO da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira.Brasília – DF 2005.44 Ver: GONZALEZ, Alberto Peribanez. Lugar de Médico é na Cozinha. Riode Janeiro: Editara Estácio de Sá, 2006.45 Ver: FLANDRIN, Jean-Louis; TEUTEBERG, Hans Jurgen. Transforma-

ções do consumo alimentar. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI,Máximo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

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CIDADE E CONVERGÊNCIA DE MÍDIA:NOVOS CENÁRIOS DA GLOBALIZAÇÃO

RENATA ALENCARProfessora do Departamento de Comunicação Social da FUNEDI/UEMG

e coordenadora do curso de pós-graduação lato sensu Processoscriativos em palavra e imagem, do IEC-PUC Minas

e-mail: [email protected]

TAILZE MELOProfessora do Departamento de Comunicação Social da Faculdade

Estácio de Sá (BH) e coordenadora do curso de pós-graduação latosensu Processos Criativos em palavra e imagem, do IEC-PUC Minas

e-mail: [email protected]

Resumo: O artigo propõe discutir acidade como espaço catalisador detrocas e de um tipo particular de pro-dução simbólica atravessada pelachamada convergência de mídia, nocenário do conjunto de mudançasque pode ser sintetizado no termoglobalização. O projeto Canal Moto-boy, de autoria do artista catalão An-toni Abad, se apresenta como con-texto analítico, por incorporar a dinâ-mica da cidade contemporânea quese revela em signos fugazes, carto-grafando novos territórios estéticos.Dessa forma, a mobilidade, inerenteao processo de globalização, consti-tui-se como operador de leitura paraa compreensão das trocas urbanas,da permanente reciclagem simbólicae das paisagens citadinas, bem comodas tecnologias nômades.

Palavras-chave: cidade; mobilidade;globalização; produção simbólica.

Abstract: This article approachs thecity as catalytic space of exchangesand a particular type of symbolicproduction crossed by the call me-dia convergence. In this context, theset of changes can do examined inthe scene of globalization. The pro-ject “Canal Motoboy”, of the Cata-lan artist Antoni Abad, to introduceoneself how an analytical contextbecause it incorporates dynamics ofthe city contemporary, mapping anew aesthetic territories. Of thisform, mobility, inherent to the glo-balization process, consists as ope-rator of reading for the understan-ding of the urban exchanges, thepermanent symbolic recycling andthe landscapes city, as well as of thenomadic technologies.

Key-words: globalization; mediaconvergence; city.

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Motoboys circulam freneticamente pela cidade de São Pau-lo. Costuram cartografias urbanas fixadas em cenas cap-turadas por potentes celulares utilizados como suportes de

narrativas que se deslocam pelas mais variadas enunciações textu-ais: fotografia, produções audiovisuais, mensagens de texto e grava-ções sonoras. O registro é exibido, instantaneamente, em um site1,gerando uma recepção quase da ordem do tempo real.

Em suas motos, assumem o papel de cronistas da cidade ao re-cortar flashes do cotidiano urbano, registrando impressões de umolhar em movimento constante e que, portanto, não se fixa em nada.São apenas rasgos de cenas de uma cidade inquieta, marcada porsuas tensões e encantos.

Guardadas as devidas diferenças contextuais2, não seria impró-prio afirmar que a atividade parece configurar um tipo de flâneriecontemporânea, pois tal qual o flâneur da Modernidade, os moto-queiros criam uma singular poética da observação. No delírio da ci-dade, o caleidoscópio da vida se apresenta apenas como um volúvelespetáculo registrado por um grupo situado fora do circuito da mídiahegemônica.

O grupo de motoboys faz parte do projeto Canal Motoboy, coor-denado por Antoni Abad. O artista catalão possui experiências ante-riores da mesma linhagem em outros países, sempre trabalhando comgrupos alijados da produção exibida no cenário midiático contem-porâneo. Não que os protagonistas dos projetos de Abad – prostitutas,taxistas, ciganos e motoboys – não apareçam como pauta na mídia,mas não é comum encontrar, nesse espaço enunciativo, produçõesdiscursivas de autoria desses segmentos sociais. Trata-se, pois, de umainiciativa com importância política, já que algumas produções artísticaspropiciam visibilidade a manifestações culturais construídas por reali-dades outras e, por conseqüência, podem fomentar o debate públicoacerca das tensões que envolvem o cotidiano de certos grupos sociais.

Apesar do engajamento do projeto de Abad ser de real importân-cia, neste artigo, será feito outro recorte de discussão, qual seja, acidade como espaço catalisador de trocas e de um tipo particular de

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produção simbólica atravessada pela chamada convergência de mí-dia. Esse recorte tem como ponto fundamental a compreensão doespaço-tempo na chamada globalização.

Itinerâncias urbanas: a cidade e a globalizaçãoO projeto Canal Motoboy parece ser emblemático para se tecer

uma reflexão sobre a via de mão dupla estabelecida entre o que Ste-ven Johnson (2001) chamou de mundo da cultura e mundo-objetoda tecnologia.

Para o autor, ao tempo que o mundo da cultura alimenta o mun-do-objeto da tecnologia com suas dúvidas, necessidades e cons-trutos, o mundo-objeto da tecnologia inova o mundo da culturana medida em que oferece condições para que novas formas depensar e perceber o mundo se ergam. Assim, o contexto cultural e ocontexto tecnológico dialogam em um exercício constante de retro-alimentação.

Nesse sentido, há que se pensar que o mundo contemporâneoengendra-se sob as lógicas da aceleração, do deslocamento e dohibridismo de linguagens, atravessando fronteiras nacionais e tor-nando nossa experiência de mundo mais interconectada. Essa com-plexa trama de relações tem sido denominada de globalização. Da-vid Harvey, citado por Stuart Hall (2000, p.70), enfatiza que:

À medida que o espaço se encolhe para se tornar uma al-

deia “global” de telecomunicações e uma “espaçonave pla-

netária” de interdependências econômicas e ecológicas –

para usar apenas duas das imagens familiares e cotidianas

– e à medida em que os horizontes temporais se encurtam

até ao ponto em que o presente é tudo que existe, temos que

aprender a lidar com um sentimento avassalador de com-

pressão de nossos mundos espaciais e temporais.

Nota-se, pois, que a cada contexto cultural e tecnológico, há umasensibilidade própria que se impõe. Sensibilidade esta que diz respei-

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to tanto aos processos de enunciação quanto aos atos de recepçãoque a esfera midiática suscita. Vale dizer que a experiência com osmeios, atravessada pela dimensão sensível do tempo presente, é ca-paz de atualizar as linguagens e seus agenciamentos semióticos. Se-gundo Plaza (1987, p.10),

(...) as formas da linguagem atual, junto com as formas téc-

nicas produtivas, contaminam e semantizam a leitura da

história assim como determinam a recepção, ao mesmo tem-

po em que elas definem sua própria historicidade. Passado-

presente-futuro estão atravessados pelas antigas e novas

formas tecnológicas.

As tecnologias digitais não apenas transformam nossa forma deação e percepção sobre o mundo – a maneira como construímosnossos signos da realidade – como também transformam as lingua-gens e as técnicas pré-existentes. Trata-se de uma configuraçãocultural cumulativa que remodela, à sua maneira, dispositivos e lin-guagens anteriores.

Quando pensamos em cultura como o modo pelo qual uma deter-minada sociedade constrói seus códigos simbólicos e padrões soci-ais, não há como ignorar o intercâmbio entre a produção de tais có-digos e padrões com a cidade, pois o espaço urbano talvez seja omais importante operador de leitura de um determinado tempo histó-rico/cultural. Obviamente, a cidade é um grande texto em que é pos-sível detectar todas as nuances de uma época. Nesse sentido, a cul-tura se dá em consonância com a modelagem urbana de um determi-nado tempo e, por isso, torna-se importante pensar na rede semânti-ca que, hoje, cerca o significante cidade.

A tarefa não é fácil, pois nosso tempo, a pós-modernidade, pare-ce mesmo ser avesso a definições engessadas, por isso mesmo apalavra itinerante pode ser tomada como paradigma no qual orbitauma rede semântica3 formada por outros significantes como: globali-zação, nomadismo simbólico, híbrido, convergência de mídia, etc. Por

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sua vez, tal rede semântica, está intrincada às enunciações espaciaispróprias da cidade contemporânea cujas tessituras simbólicas estãoengendradas sob a ordem do híbrido.

A política urbanística da chamada Modernidade, cujo planejamentourbano foi norteado por uma organização racional das políticas espa-ciais ao lado de mecanismos de controle, valeu-se de princípios comoo do progresso e da ordem para atuar como instrumento que permiteconservar um modelo de dominação política, social, econômica ecultural segregacionista (GOMES, 1999). Nesse sentido, a tentativade projetar a cidade nos moldes de um cartão-postal foi amplamenteexercida com vistas a conformar um imaginário citadino baseado nocontrole dos dejetos que assume inclusive uma conotação social4.

No entanto, o mencionado projeto da Modernidade falhou. A ci-dade contemporânea não pode mais ser vislumbrada sob a égide deuma falsa assepsia. Ao contrário, o espaço urbano se revela nasfissuras, nas contaminações, formando uma trama que pode ser vi-sualizada como um novelo que, no entanto, não se encerra em umponto de origem e chegada. Pelo novelo da cidade coexistem fios dedensidade e texturas diversas que, por vezes, se encontram em nós,gerando curta-circuitos de significação. É a cidade-dispositivo5 quese apresenta. Cidade, esta, cujas linhas de força regulam padrões deinteração. No entanto, para além das instâncias reguladoras de tro-cas, há linhas de fuga que a fazem espaço também de deslocamen-tos e rupturas. É nesse âmbito que a cidade se apresenta como ter-reno da permanência, da gestão de uma memória coletiva, mas tam-bém como desencadeadora de mudanças, migrações e não-fixação:características próprias da globalização.

Nessa perspectiva, a cidade se revela em camadas em que oavesso do cartão postal se desloca para a ordem do visível. Bastaum vaguear pela cidade para observar as impressões da diversidadeem seus vários domínios: simbólico, social, político.

A questão das construções simbólicas emergentes do referidocontexto urbano ganha centralidade na discussão aqui apresentada,uma vez que criam cartografias de territórios estéticos pautados por

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circuitos nômades e pela ubiqüidade das trocas. Nesse âmbito, amídia não pode ser abordada apenas como um aparato técnico, mascomo espaço no qual circulam produtos simbólicos condicionadoresde práticas interacionais6, modelando imaginários coletivos. Dessaforma, a mídia se apresenta para além de seu aspecto transmissivo,visto que se constitui como espaço social capaz de encarnar em simesma a retro-alimentação, mencionada por Johnson, entre mundoda cultura e mundo objeto da tecnologia. O espaço midiático digital,particularmente, constitui-se como importante veículo para mensa-gens e, inclusive, veículo para outras mídias, mas suas especificida-des o fazem ser, sobretudo, produtor de linguagem.

Nesse sentido, pode-se mencionar o projeto Canal Motoboy comoexpressão tradutora de um tipo de vivência urbana marcada pelotrânsito. Interessante pensar na figura do motoboy como um repre-sentante genuíno dessa cidade contemporânea. Há uma lógica daeficácia que atravessa o nosso tempo; nesse contexto, o motoboytransita para que outros não precisem transitar. De forma paradoxal,a cidade apresenta uma dialética entre o movimento e a clausura,sintoma de um mundo em que as experiências se fazem cada vezmais mediadas pela tecnologia e suas globalizações.

Nesse contexto, os motoboys, no projeto de Abad, assumem aautoria de signos fugazes tradutores de uma dinâmica também volá-til, criando uma topologia eletrônica a partir de seu trânsito no es-paço urbano. O ponto de encontro agora não mais é a cidade, mas atela eletrônica que a revela. No entanto, essa tela não se constituicomo ruptura das vivências pessoais, tal como coloca Virilio (1993).A tela pode ser abordada como um novo espaço interacional, capazde conectar experiências individuais e, assim, atuar na ordem da coleti-vidade. As mídias móveis, no caso celulares, se oferecem para cons-truir signos da mobilidade a partir de olhares em permanente itine-rância no espaço citadino. Dessa forma, pode-se inferir uma redupli-cação da mobilidade entre a experiência de um sujeito, a configura-ção urbana e a mediação tecnológica de que se vale esse sujeitopara singularizar seu estar no mundo.

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Considerações finaisAs reflexões aqui apresentadas constroem um prefácio de um tema

que não se esgota facilmente, pois abriga em sua própria existência adimensão processual e a construção cotidiana de seu horizonte de pos-sibilidades. Interessante apontar alguns caminhos possíveis para umaabordagem dos novos territórios estéticos que se evidenciam com pro-duções simbólicas realizadas a partir de situações de não-permanên-cia que a natureza de mobilidade de alguns dispositivos midiáticospermitem capturar. Tal natureza dialoga efetivamente com o contextode globalização no qual se encontra a sociedade contemporânea.

Caminhos apontam possibilidades. No entanto, há um ponto deconvergência capaz de costurar as várias ramificações que eclodemdessas travessias. Aqui a cidade é o ponto.

A cidade parece encarnar em uma espacialidade singular, ao mes-mo tempo catalisadora e acolhedora, construções simbólicas genuina-mente contemporâneas em torno das quais se desenham novos territó-rios estéticos. Esses territórios se caracterizam, em um primeiro mo-mento, pela produção de signos fugazes, escrituras de um homem or-dinário, em trânsito pelo espaço urbano. Exercita-se, pois, uma novapoética da observação pautada na superfície pela qual o olhar vagueiainquieto e, paradoxalmente, acomodado pela velocidade do tempo real.Por sua vez, a singularização desses olhares acontece mediada pordispositivos portáteis que assumem aspectos multifuncionais, dentreos quais se inclui a produção de diversas enunciações: a palavra, aimagem fixa, a imagem em movimento, o som. Enunciações essas quetambém projetam sobre a cidade um imaginário que possui como signi-ficante primordial a mobilidade. A cidade é em si mesma objetos erepresentações nas migrações do mundo contemporâneo.

REFERÊNCIAS

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VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Tradução: Paulo Roberto Pires. Rio deJaneiro: Ed. 34, 1993.

NOTAS

1 Disponível em: www.zexe.net/saopaulo.2 Vale lembrar que o flâneur, típico personagem do início do século XX,vagueava pelas ruas da cidade em ritmo despreocupado e lento, captandodetalhes de paisagens e personagens urbanos. No Brasil, durante a chama-da Belle Époque carioca, o hábito de flanar definiu o modo de ser de algunsde nossos escritores, dentre eles João do Rio, para quem o verbo Flanarpode ser definido como: “A distinção de perambular com inteligência” (RIO,1997, p.51). Nesse âmbito, obviamente, quando aproximamos os motoboysdo projeto de Abad do flâneur, é apenas no sentido de capturar a cidade pormeio do olhar em constante movimento, já que seria improvável uma analo-gia entre esses transeuntes urbanos por meio do critério de ritmos de per-cepção.3 João Anzanello Carrascoza (1999) define paradigma como uma palavrageradora de um campo associativo em que outras palavras orbitam, cons-truindo uma determinada rede semântica.4 No Brasil, o processo de afastamento do “lixo social” de áreas valorizadasaconteceu de forma significativa durante a chamada Belle Époque carioca.O Rio de Janeiro, sob o comando do prefeito Pereira Passos, sofreu umprocesso de remodelação urbana que ficou conhecido como operação “Bota-abaixo”. Nesse contexto, a modernização carioca não se limitou ao espaçogeográfico, antes se ampliou para o social e o existencial, afetando brusca-mente as socialidades e os hábitos da população de baixa renda. Cortiços ecasas simples que se situavam próximos ao centro foram simplesmente de-molidos, obrigando os pobres a migrarem para os subúrbios e para os espa-ços que ficaram conhecidos como favelas.5 Sobre o conceito de dispositivo: Cf. DELEUZE, 1990.6 Sobre as interações comunicacionais: Cf. BRAGA, 2001.

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JOGOS DE ESCALA: A 2ª GUERRA MUNDIAL(1939-1945) VISTA PELOS JORNAIS DEDIVINÓPOLIS (MINAS GERAIS, BRASIL)

Este texto é dedicado à Batistina Corgozinho

ANA MÓNICA HENRIQUES LOPESDoutora em História pela UFMG e professora do Mestrado emEducação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG

E-mail: [email protected]

MATEUS HENRIQUE DE FARIA PEREIRADoutor em História pela UFMG e professor do Mestrado em Educação,

Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMGE-mail: [email protected]

HELOISA HELENA CORGOZINHOLicenciada em História pela FUNEDI/UEMG

Resumo: Considerando-se que oacontecimento ganhou, a partir demeados do século passado, umanova legitimidade como objeto, pre-tende-se refletir sobre sua constru-ção através do olhar do jornalista deDivinópolis no período da 2ª GuerraMundial (1939-1945), levando emconta o fato de tropas brasileiras te-rem sido enviadas à Itália durante oconflito. Por meio deste objeto pre-tendemos pensar a relação entre osconceitos de globalização e aconte-cimento como articuladores que pos-sibilitam a compreensão e explicaçãodos sentidos, traços e apropriaçõesde que um “acontecimento global etraumático”, a 2ª Guerra Mundial, re-cebeu em Divinópolis (Minas Gerais).

Palavras-chave: Acontecimento; Glo-balização; Jornalismo e Divinópolis.

Resume: En se considérant quel’événement a gagné, à partir de mi-lieux du siècle passé, une nouvellelégitimité comme objet, se prétendrefléter sur sa construction à traversle regard du journaliste de Divinó-polis dans la période de la 2ª Guer-re Mondiale (1939-1945), dans lemoment que les troupes brésilien-nes avoir été envoyé à l’Italie pen-dant le conflit. Au moyen de cet ob-jet nous prétendons penser la relati-on entre les concepts de globalisa-tion et l’événement comme articula-dores qui rendent possible la com-préhension et l’explication des sens,traces et appropriations dont une“événement global et traumatique”,la 2ª Guerre Mondiale, a reçu dansDivinópolis (Minas Gerais).

Mots-clef: Événement, Globalisati-on, Journalisme et Divinópolis.

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(...) porque raciocinar sobre as causas e sobre os efeitos é

coisa muito difícil, creio que o único juiz possível é Deus. Já

temos a maior dificuldade em apreender uma relação entre

um efeito tão evidente como um árvore queimada e o raio

que a incendiou: assim, remontar encadeamentos às vezes

muito longos de causas e efeitos parece-me tão louco quan-

to procurar construir uma torre que vá até o céu (Umberto

Eco. O Nome da Rosa)

Enfocar a Segunda Guerra Mundial como um acontecimentosignifica tentar apreender o olhar dos indivíduos no momentoo que o mesmo se desenvolvia. Trata-se de buscar nos regis-

tros deixados – em nossa abordagem textos jornalísticos – as expec-tativas, esperanças e leituras produzidas de um processo em desen-volvimento.

Considerando-se que o acontecimento ganhou, a partir de mea-dos do século passado, uma nova legitimidade como objeto, preten-de-se refletir sobre sua construção através do olhar do jornalista deDivinópolis no período da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), levandoem conta o fato de tropas brasileiras terem sido enviadas à Itáliadurante o conflito. Por meio deste objeto pretendemos pensar a rela-ção entre os conceitos de globalização e acontecimento como articu-ladores que possibilitam a compreensão e explicação dos sentidos,traços e apropriações de que um “acontecimento global e traumáti-co”, a 2ª Guerra Mundial, recebeu em Divinópolis (Minas Gerais).

Nossa reflexão insere-se no que Paul Ricouer (2000) denominade grande conquista ou liberdade metodológica: o jogo de escalas,pois indica um caminho de saída para a falsa alternativa entre ospartidários do acontecimento e os da longa duração. O princípio devariação não opera com a escolha de uma escala particular, mascom a mutação intrínseca sem, no entanto, ter a pretensão de passa-gem da microanálise à macroanálise. A transposição das conclusõesde uma micro para a macro escala deve ser feita com o cuidadonecessário para evitar o decalque ou o mero encaixe por correspon-

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dência direta de elementos comuns. Em cada escala vêem-se as-pectos que não são vistos em outra e cada olhar tem a sua legitimida-de (RICOUER, 2000, p. 276-277).

Para Jacques Revel, “variar a objetiva não significa apenas au-mentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa modifi-car sua forma e trama” (1998, p. 20). Não existe, assim, oposiçãoentre a história do particular ou história local e história global:

O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um

espaço permite perceber é uma modulação particular da

história global. Particular e original, pois o que o ponto

de vista micro-histórico oferece à observação não é a ver-

são atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades mi-

crossociais: é, (...), uma versão diferente (REVEL, 1998, p.

27-28).

No entanto, não há unanimidade entre os adeptos da microanáli-se. Existem, pelo menos, duas posições sobre as abordagens micro-analítica. A primeira, “relativista” considera que a variação de esca-las possibilita construir objetos, tendo em vista que nenhuma escalatem privilégio sobre outra, pois é a confrontação das mesmas quetraz benefícios analíticos. A segunda, “fundamentalista”, sustenta umprivilégio do “micro”, na medida em que este engendra o “macro”(REVEL, 1998, p. 14). Neste texto experimental alternamos, a partirde um ponto de vista narrativo, as duas posições. Porém, do ponto devista teórico, nossa postura frente a Micro-História está relativa-mente próxima a de Ronaldo Vainfas que afirma:

não chegaria ao ponto de dizer que a microanálise é a mais

esclarecedora, preferindo ‘apostar’ nas possibilidades de

compatibilização – embora elas sejam restritas – e reconhe-

cendo, antes de tudo, uma diferença que não implica hierar-

quia sobre qual escala se sai melhor na tarefa de recons-

truir a história (2002, p. 67).

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Nossa escala: Divinópolis, Minas Gerais, BrasilDivinópolis situa-se na Região Centro-Oeste do Estado de Minas

Gerais e se apresenta hoje como importante pólo para o desenvolvi-mento na Região do Alto São Francisco. A facilidade de desloca-mento para a capital, Belo Horizonte e São Paulo, além de sua privi-legiada situação geográfica, influenciam em seu crescimento. Se-gundo o último senso realizado, ela apresenta uma população de apro-ximadamente 200 mil habitantes. Com uma economia antes voltadapara o setor siderúrgico e metalúrgico, apresenta, a partir da décadade 1980, um aumento significativo no setor confeccionista – ataca-dista e varejista. Devido ao desenvolvimento econômico Divinópolisé vista como um lugar de oportunidades empregatícias; o que explicaa presença de uma população flutuante.

A cidade é centro de referência das outras cidades da região poroferecer diversos serviços públicos, bancários, judiciários, educacio-nais e uma ampla rede de serviços de saúde. Estas característicassomadas às visitas diárias das chamadas “sacoleiras” aos vários cen-tros de compras, trazem para a cidade um grande fluxo de visitantesque, consequentemente, contribui para o comércio em geral e osserviços de transportes. A maioria da população é de baixa renda,assalariados que trabalham direta ou indiretamente com o setor deconfecções.

Esse crescimento econômico já fazia parte do surto desenvolvi-mentista da primeira metade do século XX. Em 1939 foi publicadoem uma revista local um artigo que retrata as alguns aspectos sócio-culturais da cidade no início da 2ª Guerra Mundial:

A nenhum espírito dotado do censo de justiça passa des-

percebido o impressionante surto de progresso que pene-

trou em Divinópolis. A administração pública, a indús-

tria, o comércio, a iniciativa particular, tudo se canali-

zando para um objetivo único: para a grandeza de Divinó-

polis. (...) A população atual as cidade é de 16.000 habi-

tantes. A cidade possue (sic) um traçado moderno, com

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amplas ruas e avenidas, conta com ótimos prédios residen-

ciais e tem um comércio e uma indústria dos mais desenvol-

vidos do oeste (Revista Itapecerica. Apud CORGOZINHO,

2003, p. 96-97).

A sociedade divinopolitana das décadas de 1930 e 1940 convivia,desse modo, com novas idéias de progresso e desenvolvimento. Nãoera mais uma sociedade estritamente rural e tradicional. O Divinó-polis Jornal, por exemplo, afirma: “povo que trabalha incansavel-mente, erguendo nas vias públicas prédios de apuro arquitetônico,movimentando o comércio e a indústria. Divinópolis caminha sem-pre, com desenvoltura e arrojo” (Divinópolis Jornal, 1942, s/pág.).Com a chegada da estrada de ferro e da mão de obra industrial, apopulação passou a conviver com um novo modo de vida (CORGO-ZINHO, 2003). Para Lázaro Barreto, a Rede Ferroviária transformaos trabalhadores da cidade em “homens de direitos assegurados emcontratos coletivos de trabalho, promovendo-o, por assim dizer, deroceiro a operário” (BARRETO, 1992, p. 63)

Nos trilhos da RMV foram transportados novos valores sócio-culturais, novos conceitos e novas esperanças de desenvolvimentoindividual e da coletividade. Este “novo” homem não poderia viveralheio ao que acontecia, era preciso discutir e participar do que ocor-ria pelo mundo. A população divinopolitana da época protagonizou osurgimento e o desenvolvimento de uma “nova era”. A cidade esta-va em marcha, rumo ao progresso, bem como o Brasil. O Divinópo-lis Jornal de 1942 afirma, a esse respeito que

Há quem afirme ser Divinópolis uma cidade eminentemente

operária. Na realidade, Divinópolis tem a sua indústria bem

desenvolvida. Possue (sic) florescente fábrica de tecidos,

diversas fábricas de manteiga, banha e macarrão, máqui-

nas de beneficiar café e arroz; possue (sic) várias oficinas

mecânicas, duas fundições de ferro, aço e bronze (estas –

das maiores da zona oeste de Minas).

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Além de ser sede de uma das maiores oficinas ferroviárias daAmérica do sul, a cidade se tornava também sede de novas siderúr-gicas. Era cidade de morada de médicos, advogados, engenheiros eprofessores, e primava pela intelectualização de seu povo. Na déca-da de 1940 é fundado o Ginásio São Geraldo. Contando com umdiretor estimado e valorizado pela população, Martin Cyprien, umfrancês, o novo ginásio iria ser,

O ponto alto na garantia do nosso progresso, porque per-

mitirá ensanchas ao desenvolvimento intelectual da nossa

gente, conciliando os interesses dos que buscam alcançar

este grande objetivo – o trabalho material aliado ao traba-

lho mental (Divinópolis Jornal, 1942, s/pág.).

Em Divinópolis, os primeiros jornais surgiram após sua emancipa-ção política no início do século XX, em 1912. O perfil dos jornaisapresentava características de panfletos e se destinavam, em suamaioria, à divulgação política em épocas de eleições. Houve um apa-recimento de diversos pequenos jornais com duração variável (COR-GOZINHO, 2003). Eles serviam aos propósitos de determinados pe-ríodos, como em épocas de eleições, já serviam como meio deexpressão das idéias e ideais políticos. Essa imprensa local influen-ciou de forma significativa o desenvolvimento da cidade, compondoseu processo de modernização e a conseqüente formação e debatede idéias na população.

Os dois jornais que utilizamos surgiram nas décadas de 1930 e1940. O Divinópolis Jornal foi criado em 1939 e resistiu até osfinais da década de 1940. No período de sua existência, passou pordiversas transformações em sua aparência. O formato A4 foi adota-do em sua origem, no ano de 1939; evoluiu para um tamanho maispróximos dos jornais que conhecemos hoje medindo 30 cm de largu-ra por 45 cm de altura. Sua tipografia também sofreu mudançasocasionando transformações em sua aparência. As notícias eramapresentadas na forma de colunas e, além das notícias locais, divul-

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gava notícias internacionais, reservando uma página para publicida-de. O jornal A Semana surgiu, no mesmo período, como Órgão ofici-al das Paróquias de Divinópolis e Círculo Operário e Educandários.Foi criado pelos franciscanos da cidade, tendo assim, o caráter religi-oso. Este jornal apresentava em sua estrutura várias colunas quealertavam os católicos para acontecimentos locais, regionais e tam-bém internacionais, como a Guerra em questão.

O envio das tropas brasileiras à 2ª Guerra MundialEm artigo apresentado no Divinópolis Jornal, percebe-se um

tipo de sentimento que a 2ª Guerra Mundial causou naquela cidadeeminentemente católica:

Guerra! Palavra sinistra que enche de terror a todos! Pala-

vra que a humanidade vem repetindo, através dos séculos, e

sentindo seus efeitos desastrosos como o peso de uma maldi-

ção. Tudo isso porque o homem, na sua eterna ignorância

esquece a sua condição humilde para guindar-se as asas

negras do orgulho, apagando com a tinta rubra de seus

crimes o Quinto Mandamento da lei Divina, inscrito no gra-

nito do cristianismo (Divinópolis Jornal, 1943, nº 20, s/pág.).

De forma literária, religiosa e até poética o artigo reflete o espan-to ante a atitude irracional humana. Percebe-se a condenação, comdevotismo religioso, à morte de crianças e civis, assim como a des-truição de monumentos históricos, hospitais, igrejas e até cidadesinteiras pelas bombas lançadas.

Em 1943 é divulgado o sacrilégio cometido pelo Terceiro Reichque rodeou a Praça de São Pedro e o Vaticano, a população católicaassiste, perplexa a quebra do trato de respeito à neutralidade do Es-tado pontifício:

O mundo católico experimenta um ansioso momento de su-

per-agitação. O Vaticano está sob as garras da Gestapo. A

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guarda alemã circunda a praça de S. Pedro. O Papa acha-

se em poder do fuehrer. Cristo está diante de Califas. Pio XII

é prisioneiro de Hitler. A situação do sumo sacerdote é de-

mais perigosa. Mentiram os covardes camisas-negras ao

mundo, afirmando que respeitariam a neutralidade do Es-

tado pontifício. Os Bárbaros germanos não respeitam nada.

São vandálicos em suas façanhas. Os bandoleiros do velho

continente rasgam os tratados e as concordatas do mesmo

jeito que apunhalam pelas costas as suas infelizes e desgra-

çadas vítimas. Não há nem jamais póde (sic) haver harmo-

nia entre os escravos da cruz gamada e os servos da cruz

divina. (Divinópolis Jornal, 03/10/1943, nº 53).

O Papa enquanto representação do amor entre os homens, dorespeito e da prática das Escrituras bíblicas, prega o “amai-vos unsaos outros como a vós mesmos” e o fuehrer, Hitler, visto como sím-bolo da maldade e da crueldade em relação ao próximo. Assim, oPapa é visto na época como o mensageiro do amor em contraposi-ção a imagem “demoníaca” de Hitler. Os textos presentes na im-prensa registram a composição no imaginário popular da personifica-ção do bem e mal.

Os problemas ocasionados pela guerra em Divinópolis, como oencarecimento do custo de vida, é motivo de debate: “A guerra trou-xe, para todas as nações, uma infinidade de problemas novos”. “Dentreos problemas que nos trouxe a conflagração, nenhum é mais com-plexo e premente de solução como o do encarecimento do custo devida” (A Semana, 12/12/1943, nº 63).

Naquela época a imprensa se constituiu num veículo de divulga-ção do desenvolvimento do conflito, das questões relacionadas aocomunismo e ao fascismo que definiam prática políticas que inter-feriam no cotidiano e nos conflitos bélicos de diversas nações; operíodo foi marcado pelo temor e a produção de um imaginário deinsegurança. Pretende-se explicar didaticamente os dois sistemaspolíticos:

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O Comunismo ou Bolchevismo nasceu na Rússia, em 1917

(...) O fascismo surgiu na Itália, trazendo como principal

escopo a restauração do antigo império romano. Seu cria-

dor, o ex-socialista Benito Mussolini, realizando em 1922 a

celebre “Marcha sobre Roma”, toma em seus pulsos o desti-

no amargo do povo italiano. Se o mito do Comunismo é a

classe, o do Fascismo é a Nação. Para o indivíduo nada,

por ela e para ela tudo. Absorvente como o Comunismo,

totalitário como o Fascismo, nasceu na Alemanha o Nazis-

mo, partido político de Adolf Hitler, ex-combatente da Gran-

de Guerra. Seu mito é a supremacia da raça germânica so-

bre tudo e sobre todos; sua moral, a força; seu Deus, o pró-

prio Hitler (Divinópolis Jornal, 24/01/1943, nº 18, s/pág.).

Percebe-se também, em 1943, a esperança da vitória pelas “for-ças do bem” identificadas aos aliados: “A guerra será vencida pelasforças do Bem. Todos os povos terão o direito de viver no gôzo(sic)da Liberdade e da Justiça. Façamos a guerra, a guerra da morte dosque se insurgem contra a confraternização dos povos” (DivinópolisJornal, 03/01/1943, nº 15, s/pág.). Os Aliados buscam justiça, poissão cristãos, e não vingança, que é própria de bárbaros e carrascosinsanos, dos gananciosos que matam que torturam que aniquilam embusca do poder máximo sobre os povos frágeis.

Ao totalitarismo, marcante na guerra, é atribuída a responsabili-dade pela morte de povos pacíficos, pela irracionalidade humana:

Esta guerra está escrevendo páginas épicas na história dos

povos. Os fatos que se precipitam no tempo, são os capítulos

formidáveis e horripilantes de uma epopéia, onde o homem

parece ter perdido por completo a senso exato de civiliza-

ção. (...) O totalitarismo invadiu e levou a morte a muitos

povos pacíficos. Os seus exércitos continuando as suas ações

devastadoras e façanhas criminosas ainda sacrificam mi-

lhares de pessoas. (...) O homem tornou-se fera, parece, é um

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ser inconsciente. Creanças (sic) de ontem, jovens de hoje,

embrutecidos pela guerra, fanatizados por uma ideologia

exótica são estirados nos campos de luta sem vida. O espe-

táculo de sangue não póde (sic) ser contemplado por olhos

humanos. É um inferno de fogo e sangue (Divinópolis Jornal,22/11/1942, nº 09, s/pág.).

Esse artigo se refere à batalha de Stalingrado e afirma que detodas as batalhas que se tem notícia na história do mundo a de Stalin-grado demonstra que ainda existem “verdadeiros heróis, e o poderda vontade de vencer como da razão e do direito ainda são armasvitoriosas sobre o crime e o extremismo. Stalingrado que se defendeé a maior refutação ás ideologias totalitárias” (Divinópolis Jornal,22/11/1942, nº 09, s/pág.). Esta batalha teve conseqüências decisivasna guerra entre os nazistas e os soviéticos. Foi a partir desta vitóriaque a URSS deu início à sua trajetória para se tornar uma superpo-tência. Foi, também um sinal de que o projeto de Hitler de submetera Europa à ordem imposta pela Alemanha nazista, teria seu fim. Nestemomento, o Brasil nem cogitava a participação na guerra, mantinha-se ainda neutro. Como Pregava Getúlio Vargas, era mais fácil a co-bra fumar. O ponto de vista o de quem se mantêm afastado do con-flito e do perigo. No entanto, quando se decidiu pelo apoio aos alia-dos, o discurso da imprensa muda, e há o constante estímulo à parti-cipação, pela honra e dignidade brasileiras, mesmo que haja o derra-mamento do sangue dos jovens soldados, e o escárnio por aquelesque desejam se omitir da convocação. Em 1944, os pracinhas brasi-leiros não se tornam feras na defesa dos ideais de sua Pátria, sãobravos heróis que defendem a honra do Brasil: “A hora presentereclama a união dos brasileiros! Devemos, antes de tudo, ter o nossopensamento voltado para os que, na Europa, estão defendendo asnossas tradições de honra e bravura” (Divinópolis Jornal, 26/11/1944, nº 109, s/pág.)

Em 1943, as Forças Armadas Brasileiras, apesar de não possuíremequipamentos bélicos modernos, prontificaram ao desempenho do com-

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bate no exterior figurados na Força Expedicionária Brasileira. A im-prensa também atua como agente estimulador do espírito cooperati-vista entre os países. A ideologia presente no discurso dos editoresjornalísticos e seu empenho em apoiar a solidariedade brasileira pe-los países em guerra, podem ser observadas nos artigos publicadosnos jornais.

Por ocasião do envio dos pracinhas, a posição dos editores dosjornais divinopolitanos era de admiração e respeito pela atitude dogoverno brasileiro, e também pelo heroísmo daqueles que partiram emapoio aos aliados. O Divinópolis Jornal divulga solenemente o fatocomo o mais importante da semana e afirma: “cumpre a Brasil, assim,com sua palavra, com seu compromisso de honra, porque a história doBrasil nunca teve a mácula da traição e da covardia” (23/07/1944, nº94, s/pág.). Percebe-se aqui que o jornal se afasta do discurso cristãoaludido, pois já não se condena todas as formas de guerra.

Esse ponto fica mais claro se analisarmos como o jornal trata arecusa brasileira em participar da Guerra. A população de Divinópo-lis via os pracinhas, 28 no total, como “heróis”, embora houvesseconstatação de certa relutância às chamadas de convocação. Issofez com que parte dos divinopolitanos expressassem um sentimentode desprezo e desejo de mau agouro em relação aqueles que não dedispunham a servir. A condenação é categórica na afirmativa de quea guerra tem seus horrores, porém ela “trará, por uma fatalidade,benéfica experiência. E, depois da guerra, saberemos medir a ido-neidade de muita gente. Um castigo implacável cairá na cabeça dosque não souberem amar a terra em que nasceram. O crime de desa-môr (sic) á Pátria é o maior dos crimes” (Divinópolis Jornal, 23/07/1944, nº 94, s/pág.).

O heroísmo dos soldados da FEB, como representantes da digni-dade e honra brasileira, merece constante destaque no DivinópolisJornal: “O soldado brasileiro, na Europa, com seu sangue, escrevemais uma epopéia que dignifica o povo do Brasil” (Divinópolis Jor-nal, 22/10/1944, nº104, s/pág.). Os espíritos de honra e dignidade sãoexacerbados constantemente pelos editores. O jornal se torna veícu-

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lo de divulgação e de estímulo à aceitação da participação brasileirana guerra: “O general Gaspar Dutra, na inspeção que fez ao fronteuropeu, pôde constatar que os nossos soldados sabem que a vidavale muito pouco para aqueles que não se divorciam do ideal deliberdade” (Divinópolis Jornal, 05/11/1944, nº 106, s/pág.).

O jornal A Semana também traz estampado em suas páginas ar-tigos que demonstram o caráter religioso contido em seu discurso econclama à população que tenha fé para que as tropas retornem sãse salvas. Segundo artigo publicado em suas páginas,

São muitas as pessoas preocupadas com a vida dos soldados

Brasileiros nas Fôrças (sic) Expedicionárias. De fato, os pe-

rigos serão grandes mas...também para Roma o perigo era

incalculável e se salvou. Quando toda a cristandade rezou

Deus Nosso Senhor nos deu esta graça. Agora pedindo por

nossos soldados, nossos patrícios, irmãos, Êle (sic) protege-

rá também as nossas tropas (A Semana, 11/06/1944, s/pág.).

O artigo pede que se reze com devoção e que, se as orações porventura forem imperfeitas, Santo Antonio será um mediador pela sal-vação dos soldados, pois, ele também é um oficial do exército nacional.No período da guerra, juntamente com os soldados brasileiros, forampadres católicos, designados para a função de aliviar a consciência dopecado de matar um irmão nos campos de batalha; e também para arealização de missas pelas almas daqueles que lá faleciam.

Ainda em maio de 1945, os líderes dos aliados, responsáveis pelosucesso na defesa da causa do bem, evitando o avanço do nazismosão exaltados e juntamente com eles, Getúlio Vargas, que proporcio-nou ao Brasil a glória de estar, sem medir esforços entre os paísesque lutaram pelo ideal de progresso no mundo. A seguir, parte dareportagem:

E hoje, abaixo de Deus, graças a Churchill, Stalin, Truman,

Chiang-Kai-Sheik, DeGaulle e Getúlio Dorneles Vargas (o

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presidente que tem sabido honrar, elevar e dirigir os destinos

do nosso sempre querido e invencível Brasil) todos símbolos

da ainda moça e extinta 2ª grande guerra e, sob a luz radiosa

e abençoada de uma nova aurora, o Mundo renasce feliz em

venturosa Paz (Divinópolis Jornal, 20/05/1945, nº 132)

Mesmo com a vitória dos aliados, um ano após o término da guer-ra que se travou no mundo, matando milhões de inocentes, o repúdioaos resultados proporcionados é demonstrado, destacando a religiãoe a fé como conforto para aqueles que acompanharam e principal-mente para aqueles que participaram dela:

E a religião acompanhou nos sofrimentos da guerra os es-

colhidos da Pátria. E como nos dias venturosos de paz, o

conforto da fé não faltou aos combatentes, em todas as situ-

ações e fases da peleja. Sempre ao seu lado e expondo-se

aos mesmos perigos, ai estavam os ministros de Deus, em

sua sagrada e voluntária missão de prestar ao Soldado da

Pátria, não só assistência espiritual, como também o socor-

ro material (A Semana, 18/08/1946).

Portanto, os bravos representantes do povo brasileiro enviadospara as frentes de batalha são fortemente reconhecidos e constante-mente exaltados em sua imensurável bravura. As preces são sempreoferecidas em proteção àqueles que barram o avanço nazista, afimde que ele não se alastre pelo globo, atingindo as terras pacíficas desua terra natal. O discurso católico é, assim, utilizado para condenara guerra, buscar a vitória aliada e manter a vida do soldados brasilei-ro. No entanto, como foi mostrado, não existe a mesma compaixãopor aqueles que se recusaram a servir a Pátria brasileira em guerra.

Considerações finaisSem dúvida, a guerra marcou a vida de milhões de pessoas, foi

um conflito que envolveu diferentes objetivos políticos, religiosos,

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sociais e o racismo desencadeado nas mentes dos arianos que acre-ditavam ser a matriz de uma raça pura, eliminando todos aquelesvistos como diferentes e inferiores. A guerra deixou suas seqüelasnos corpos, nas mentes e na vida de todas as pessoas que viveram ea acompanharam mesmo que a distancia.

Os divinopolitanos, como demonstram as reportagens apresenta-das nos jornais analisados, não só discutiam os embates da guerra,como também foram envolvidos nela pelo envio de pracinhas para acomposição da FEB. Sentiram o medo da carestia, da falta de ali-mentos e do aumento do custo de vida. Viveram as expectativas pelofim da guerra. Acompanharam o desenrolar dos acontecimentos porocasião do sítio dos alemães ao Vaticano e ao Papa. Esperaram peladerrota de Mussolini e de Hitler. Segundo os jornais, notoriamentecatólicos, a população assistiu o envio das tropas da FEB à Itália erezou por seus conterrâneos. Cada batalha, como o ataque à PearlHarbor, a tomada do porto de Cherburgo, a esperança pela paz epela queda dos diabólicos mestres da guerra, bateram às portas dasociedade divinopolitana.

Uma das características básicas da modernidade é a separaçãoentre tempo e espaço. Nas sociedades pré-modernas, espaço e tem-po coincidem, pois as dimensões espaciais da vida social são domi-nadas pelas relações face a face e atividades localizadas. A moder-nidade fomenta relações com “ausentes”, através de livros, jornais,almanaques, telefone, TV, dentre outros. O lugar, assim, torna-secada vez mais “fantasmagórico”, afinal ele é influenciado por diver-sos outros lugares (GIDDENS, 1991). Os acontecimentos locais vi-vidos em Divinópolis, por exemplo, foram e são modelados por even-tos ocorrendo a milhares de quilômetros de distância e vice-versa. Amodernidade é, dessa forma, inerentemente globalizante. Sendo as-sim, a globalização diz respeito à interseção entre presença e ausên-cia, ao entrelaçamento de eventos e relações sociais à distância comcontextualidades locais: “por globalização entendemos o fato de vi-vermos cada vez mais num ‘único mundo’, pois os indivíduos, osgrupos e as nações tornaram-se mais interdependentes” (GIDDENS,

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2004, p. 52). Desse modo, os sentidos do acontecimento global etraumático, que foi a 2ª Guerra, são constituídos e indissociáveis dapluralidade de narrativas que reorganizam e ressignificam ao longodo tempo o evento.

Pode-se perceber, desse modo, a partir de Revel (1998) e de nossaanálise, que a escolha de uma “realidade histórica” que seja “micro”ou “macro” não é mais ou menos “verdadeira”. Na medida em que, oacontecimento 2ª Guerra Mundial, pensada a partir do olhar que aimpressa de Divinópolis deu ao envio das tropas brasileiras, é feito deuma pluralidade e complexidade de níveis. Desse modo, a análise em-preendida visou reconstruir e recriar partes dessas camadas.

REFERÊNCIAS

FONTESJornal A Semana

Divinópolis Jornal

LIVROS E ARTIGOSBARRETO, Lázaro. Memorial de Divinópolis: história do município. Divi-nópolis: Prefeitura Municipal de Divinópolis, 1992.CORGOZINHO, Batistina Maria de Souza. Nas Linhas da Modernidade:continuidade e ruptura. Divinópolis, MG, 2003.GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP,1991.REVEL, Jaques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Riode Janeiro: FGV, 1998.REVEL, Jaques. Apresentação In: REVEL, Jaques (Org.). Jogos de escalas:a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000.VAINFAS, Ronaldo. Micro-História. Rio de Janeiro: CAMPUS, 2002.

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O TRABALHO DOCENTE NACONTEMPORANEIDADE:

MUDANÇAS, REPERCUSSÕES NASAÚDE E POSSÍVEIS INTERVENÇÕES

RENATA CRISTINE DE OLIVEIRAMestranda em Educação, Cultura e Organizações Sociais

pela FUNEDI/UEMG

Resumo: Discute-se nesse artigo aprofissão docente, sob um breve en-foque histórico, buscando esclare-cer que, embora no princípio do sé-culo XX, tenha se observado o perí-odo de ouro do modelo escolar e daprofissão docente, ela não é feita so-mente de conquistas, mas, também,de muitas mudanças, principalmenteno que diz respeito à organização dotrabalho. Observa-se que, para alémda enorme insatisfação manifestadapelos docentes, frente a essas mu-danças muitos estão adoecendo. Éaberto no artigo um espaço de refle-xões sobre quais ações de promoçãode saúde podem ser adotadas com oobjetivo de auxiliar os docentes emseu trabalho.

Palavras-chave: profissão docente;trabalho docente; docentes; contem-poraneidade; mudanças; repercus-sões; saúde; adoecimento; interven-ções.

Abstract: It discusses the educatio-nal profession in this article, on abrief historical focus, attempting toclarify it, although in the beginningof the century XX, have observed thegolden period of the school modeland of the educational docent, it isnot only done of conquests, but also,of a lot of changes, mainly, to whatconcerns the working organization.It is observed that, far beyond thehuge dissatisfaction manifested bythe teachers, facing those changes,many are getting sick. It is open aspace for reflections on which acti-ons produce health can be adoptedwith the objective of aiding the tea-chers in their job.

Keywords: educational profession;educational work; educational;contemporariness; changes; reper-cussions; health; sickness; interven-tions.

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Introdução

As mudanças ocorridas no contexto social e econômico mundial têm tido impacto direto na escola. Elas têm produzidoefeitos perversos e repercussões negativas na vida dos do-

centes, que se vêem pressionados pela sociedade a cumprir papéisque, de acordo com Esteve (1999), não correspondem à realidade.

O atual estado em que se encontra o trabalho na escola e, emparticular, o trabalho dos docentes, tem chamado a atenção de mui-tos pesquisadores devido ao aumento de adoecimento e afastamentodesses profissionais. Emerge a necessidade de se estabelecer açõesde promoção de saúde com o objetivo de auxiliar os docentes em seutrabalho. Tentar-se-á, nesse artigo, abrir um espaço de reflexões noqual todas essas questões serão abordadas.

Breve histórico sobre a profissão docenteConsidera-se importante afirmar que, na história da educação e

da profissão docente, a segunda metade do século XVIII representaum período-chave. Buscava-se esboçar, por toda a Europa, um perfildo docente ideal. Indagava-se, dentre outras coisas, quem pagaria oseu trabalho (JULIA, 1981). Essa indagação fazia parte de um mo-vimento de secularização e estatização do ensino.

De acordo com Nóvoa (1991), o processo de constituição dossistemas de ensino nos diversos estados-nações encontra-se estrei-tamente vinculado ao desenvolvimento dos modos de produção nosistema capitalista.

Vale mencionar que a escola, ao constituir-se, tem como papelprincipal atuar na construção de uma unidade nacional, buscada atra-vés de um controle mais rigoroso dos processos educativos, dos pro-cessos de produção e reprodução, da forma como os homens conce-bem o mundo. Esse controle é adquirido pelo processo de estatiza-ção do ensino, que acontecia de modo disperso e vinculado às Igre-jas. “A estratégia adotada prolongou as formas e os modelos escola-res elaborados sob a tutela da Igreja, dinamizados agora por [um corpodocente] recrutado pelas autoridades estatais” (NÓVOA 1991, p. 15).

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Segundo Julia (1981), o processo de estatização do ensino consis-te na troca de um corpo docente sob o controle da Igreja por umcorpo docente sob o controle do Estado, sem que transformaçõessignificativas tenham ocorrido nas motivações, nas normas ou nosvalores originais da profissão docente. A origem da profissão docen-te tem lugar no seio de algumas congregações religiosas que, maistarde, transformaram-se em verdadeiras congregações docentes(NÓVOA, 1991).

Os jesuítas e os oratorianos, ao longo dos séculos XVII e XVIII,progressivamente, foram configurando um corpo de saberes e de téc-nicas, bem como um conjunto de normas e de valores específicos, quecontribuíram para a profissionalização dos docentes (NÓVOA, 1991).

A partir do século XVIII, não é permitido ensinar sem uma licen-ça ou autorização do Estado. Essa licença ou autorização é concedi-da após a realização de um exame no qual os solicitantes devempreencher algumas condições, tais como: habilitações, idade, com-portamento moral, etc.

Na medida em que colabora para a delimitação do campo profis-sional de ensino e para a atribuição ao professorado do direito exclu-sivo de intervenção nessa área, a licença ou autorização pode servista como um suporte legal ao exercício da atividade docente (NÓ-VOA, 1991).

No século XIX, a expansão escolar é acentuada sob a pressão deuma grande busca social. Vê-se, nesse século, graças à conjugaçãode vários interesses advindos do Estado e dos docentes, a criação deinstituições de formação. Além disso, ocorre a feminização do pro-fessorado que, segundo Nóvoa (1991), é um fenômeno bem visívelna virada do século.

No princípio do século XX, “a época de glória do modelo escolaré também o período de ouro da profissão docente” (NÓVOA, 1991,p. 19). Entretanto, a profissão docente não é feita somente de con-quistas e progressos, mas, também, de lutas e conflitos, aproxima-ções e distanciamentos e muitas mudanças, principalmente no quediz respeito à organização do trabalho.

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Significativas mudanças no trabalho docentePercebe-se que:

[...] na medida em que os docentes vão se atrelando ao Es-

tado empregador e tornando-se assalariados, acabam por

distanciarem-se das comunidades e tendo uma ação cada

vez mais direcionada para a consolidação do Estado e para

o atendimento das necessidades políticas, ideológicas, pe-

dagógicas e culturais do capitalismo emergente (GONÇAL-

VES, 2003, p. 24).

Conseqüentemente,

as formas de desenvolvimento da organização escolar assu-

mem cada vez mais um modelo racional de organização aná-

logo às formas de organização do trabalho em outros seto-

res da produção, particularmente o fabril. Vão absorvendo,

assim, com o tempo, a lógica gerencial-capitalista do tra-

balho [...] (HYPÓLITO, 1997, p. 34)

Pode-se dizer que, desde os primórdios da escolarização moder-na, a organização racional do trabalho docente está presente, poden-do ser vista em obras de didática e métodos de ensino que acompa-nharam os movimentos educacionais. Esse tipo de organização trou-xe algumas implicações para o trabalho docente e foram analisadaspor Sacristán (1991).

Sacristán (1991) afirma que a burocratização1 existente no modode organização do trabalho escolar condiciona as práticas dos do-centes a prestar mais contas às exigências institucionais que a seusalunos. Essa postura contribui para inibir a autonomia e a criativida-de profissional dos docentes.

Salienta Enguita (1991) que, se por um lado, há um movimento deprofissionalização docente2 com o aumento das demandas e das com-petências exigidas, a proletarização é o seu contraponto.

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Enguita (1991) acredita que o trabalho docente está passando porum profundo processo de proletarização3, entendido como a perdagradativa do controle do processo de trabalho e de autonomia dasações, em função da centralização das decisões sobre os resultadosdo mesmo, além do aspecto relativo à venda da força de trabalhocomo mercadoria4

.

Os docentes vendem a sua força de trabalho para suprirem suasnecessidades materiais e afetivas, mas o saldo dessa equação nemsempre é positivo. Nem sempre “o valor da força de trabalho é ovalor dos meios de subsistência necessários para a conservação deseu possuidor” (MARX, 1975, p. 31).

Vasconcellos (1995) enfatiza que, na contemporaneidade, faltaclareza aos docentes quanto à finalidade daquilo que fazem. Paraele, os docentes vivenciam uma situação de alienação, expropriaçãodo seu saber. Tudo isso os deixa à mercê de pressões, de ingerênci-as, “[...] de modelos que são impostos, como ‘receitas prontas’, im-possibilitando um trabalho significativo e transformador [...]” (VAS-CONCELLOS, 1995, p. 23). E, conseqüentemente, leva-os “[...] dosofrimento ao desgaste, ao desânimo, ao descrédito na educação, àacomodação, à desconfiança, chegando mesmo à falta de compa-nheirismo e de engajamento em lutas políticas e até sindicais” (VAS-CONCELLOS, 1995, p. 23).

Gonçalves (2003) comenta que uma outra mudança visível notrabalho docente é a sua intensificação. Essa intensificação, muitasvezes, concretiza-se através da imposição e sobrecarga de ativida-des e tarefas, presença de mecanismos de cobrança e pressão porcertos resultados e a perda do poder aquisitivo, a falta de tempo parainvestir no próprio trabalho e o isolamento do trabalho docente naescola.

A intensificação do trabalho docente também pode acontecer comouma conseqüência da complexificação, ao trazer para os docentesnovas demandas para as quais não receberam preparação e nemtampouco as condições de trabalho foram adequadas.

Constata-se que o trabalho docente já não é mais definido somen-

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te como atividade em sala de aula. Compreende, agora, a gestão daescola no que diz respeito à dedicação dos docentes às atividades deplanejamento, elaboração de projetos, discussão coletiva do currícu-lo e da avaliação. Por força da legislação e dos programas, os do-centes passam a dominar práticas e saberes antes desnecessáriosao exercício de suas funções (OLIVEIRA, 2003).

Os programas de reforma implementados nos anos 1990 e naatual década, no Brasil, tiveram como eixo principal a educação paraa eqüidade social5

. Formar os indivíduos para a empregabilidade pas-

sou a ser um imperativo dos sistemas escolares (OLIVEIRA, 2004).Nesse contexto, espera-se da escola e, principalmente dos docentes,a formação de um profissional flexível, polivalente, de acordo com osnovos padrões de qualificação. Os docentes, insatisfeitos, se con-vencem de que devem responder a essas exigências.

E os docentes adoecemPara além da enorme insatisfação dos docentes, deve-se ressal-

tar que muitos estão adoecendo. O caráter quase redentor atribuídoà educação, como se somente a partir dela fosse possível iniciar aconstrução de novos paradigmas de convivência na sociedade, estárecaindo de forma pesada sobre os ombros dos docentes.

Oliveira (2004) afirma que os docentes, de um modo geral, sãovistos como os principais responsáveis pelo desempenho dos alunos,da escola e do sistema. Atribui-se aos docentes toda a responsabili-dade do fracasso escolar, deixando de perceber que o que ocorre nasala é reflexo do conjunto de determinações a que a escola estásubmetida.

É importante ressaltar que, além do ambiente altamente competi-tivo, do aumento da sofisticação tecnológica e do processo de globa-lização da economia, a responsabilização dos docentes também seapresenta como uma fonte importante de sofrimento psíquico paraos mesmos.

Se os docentes não percebem o reconhecimento de seu trabalho,a responsabilidade exigida passa a ser percebida como uma sobre-

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carga experimentada, geralmente, como um conflito, cuja repercus-são é negativa em sua saúde.

Recordemo-nos, nesse momento, de que trabalhar pode ser fontede satisfação, mas também, em determinadas situações, pode produ-zir efeitos negativos sobre a saúde e o bem-estar. Em se tratando dadocência, Dejours (1992) afirma ser essa uma profissão de sofri-mento.

Codo (1999), através de seus estudos sobre a saúde mental dosdocentes em todo o país, revelou que 48%, praticamente a metadedeles, apresentavam algum sintoma de burnout.

Burnout foi o nome escolhido, em português, algo como “per-

der o fogo”, “perder a energia” ou “queimar (para fora)

completamente” (numa tradução mais direta). É uma sín-

drome através da qual o trabalhador perde o sentido da

sua relação com o trabalho, de forma que as coisas já não o

importam mais e qualquer esforço lhe parece ser inútil

(CODO, 1999, p. 238).

Também se constatou, no estudo de Codo (1999), que um emcada quatro docentes tinha exaustão emocional. Codo (1999) encon-trou correlação positiva entre maior exaustão emocional e o tipo degestão denominada de tradicional.

Um outro estudioso do assunto é Esteve (1999). O termo “mal-estar docente” é usado por ele para designar os efeitos permanentesde caráter negativo que afetam a personalidade dos docentes, comoresultado das condições psicológicas e sociais em que a docência éexercida. Esse termo pode ser caracterizado pela morte do prazer deeducar, que se manifesta no estado de saúde e doença dos docentes.

Na pesquisa de Esteve (1999), os problemas de saúde dos docen-tes foram estudados de forma exaustiva no período de 1982 a 1984 eas causas de licença mais importantes foram os diagnósticos de trau-matologia, geniturinários e obstétricos e os neuropsiquiátricos.

Esteve (1999) aponta como indicadores do mal-estar docente:

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fatores secundários (contextuais), tais como: a modificação no papeldos docentes e dos agentes tradicionais de socialização; a funçãodos docentes (contestação e contradições); a modificação do con-texto social; os objetivos do sistema de ensino e o avanço do conhe-cimento; a imagem dos docentes.

Ainda de acordo com Esteve (1999), dentre as principais conse-qüências do mal-estar docente, pode-se citar o absenteísmo traba-lhista, o abandono da profissão docente e o adoecimento.

A investigação de Vasconcellos (1996) também nos fornece da-dos importantes relativos à saúde dos docentes.

Vasconcellos (1996) diz que a neurose e a depressão têm afasta-do, em média, 33 docentes por dia letivo, das salas de aula no Estadode São Paulo. Através de sua investigação, verificou-se que:

[...] a nível mundial, a Organização Internacional do Tra-

balho (OIT) aponta que, em termos de doença ocupacional

– doença adquirida em decorrência do exercício da profis-

são –, [...] os docentes só perdem para os mineiros, enquan-

to categoria profissional, incluindo aí desde alergia a giz,

calos nas cordas vocais, varizes, gastrite, labirintite, reuma-

tismo e até esquizofrenia (VASCONCELLOS, 1996, p. 104).

Interessa enfatizar que, na maioria dos estudos realizados, no Brasile no exterior, sobre a saúde dos docentes, há um consenso quanto aocaráter altamente estressor desta profissão. Os estudos apontam aimportante contribuição dos aspectos relacionados ao ambiente es-colar e à organização do processo de trabalho na produção de dife-rentes formas de adoecimento.

As condições de trabalho, ou seja, as circunstâncias sob as

quais os docentes mobilizam as suas capacidades físicas,

cognitivas e afetivas para atingir os objetivos da produção

escolar podem gerar sobreesforço ou hipersolicitação de

suas funções psicofisiológicas. Se não há tempo para a re-

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cuperação, são desencadeados ou precipitados os sinto-

mas clínicos que explicariam os índices de afastamento do

trabalho por transtornos mentais (GASPARINI; BARRETO;

ASSUNÇÃO, 2005, p. 192).

Possíveis intervençõesFrente aos fatos expostos, pergunta-se: O que pode ser feito? Há

saída?Através do adoecimento, de uma forma implícita, os docentes

estão dizendo: “socorro”, “me ajude”, “estou aqui”.Torna-se salutar refletir sobre quais ações de promoção de saúde

podem ser adotadas com o objetivo de auxiliar os docentes em seutrabalho. Na visão de Machado e Porto (2003), a principal base paraa elaboração de novas práticas de promoção de saúde é a compre-ensão dos processos, no que se refere aos determinantes e condici-onantes da saúde.

Gonçalves (2003) comenta que sensibilizar os alunos, [os pais e asociedade como um todo], para os problemas relacionados à saúdedos docentes é uma ação que pode facilitar a concretização de es-tratégias de autopreservação dessa categoria profissional.

Por Gonçalves (2003) é sugerido que se discuta nas escolas ques-tões referentes à saúde no trabalho. Ele acredita que, embora a es-cola seja um local onde acontece a formação da classe trabalhadora,campanhas de prevenção às doenças no trabalho não são desenvol-vidas nela.

Devido à sua abrangência, o setor educacional revela-se como:

[...] um aliado importante para a concretização de ações de

promoção da saúde voltadas para o fortalecimento das ca-

pacidades dos indivíduos, para a tomada de decisões favo-

ráveis à sua saúde e à da comunidade, para a criação de

ambientes saudáveis e para a consolidação de uma política

intersetorial voltada para a qualidade de vida, pautada no

respeito ao indivíduo e tendo como foco a construção de

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uma nova cultura da saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE. SE-

CRETARIA DE POLÍTICAS DE SAÚDE, 2002, p. 533).

Não obstante, a escola, enquanto promotora de saúde, precisaincluir, também, o bem-estar dos docentes. Convém dizer o quanto éinteressante que os docentes:

se convertam em modelos de trabalhadores que respeitam

os limites do próprio corpo e fazem respeitar seu direito a

um ambiente de trabalho saudável, pois se constituem em

importante referência de profissional para seus alunos. O

seu oposto, [...] pode contribuir para configurar a naturali-

zação dessa situação [...] naturalização da doença ocupa-

cional de um modo geral, que poderia passar a ser tomada

pelos alunos como algo inerente à escolha de uma ocupa-

ção. Nessa perspectiva, promover a saúde docente pode

contribuir na promoção da saúde de futuros trabalhadores

e por isso tem sua importância multiplicada (GONÇALVES,

2003, p. 168-169).

Entende-se que o bem-estar dos docentes na contemporaneidadedepende de múltiplos fatores externos, mas também, e muito, delespróprios, visto que os mesmos podem dar vários passos para melhorara sua situação e caminhar no sentido do seu bem-estar profissional.

Uma alteração radical da organização do trabalho visan-

do à implementação de um trabalho mais coletivo e a que-

bra da rigidez disciplinar, tendo por fim a saúde [dos do-

centes] e a melhoria na qualidade da educação exige uma

participação autônoma e ativa do coletivo [dos docentes].

No caso da saúde, soluções individuais são limitadas em

sua eficácia, geralmente não perduram e freqüentemente

geram sobrecarga e culpa. A relação saúde e trabalho [dos

docentes] diz respeito ao coletivo [...], pois os riscos são

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comuns [...], logo as soluções para os problemas advindos

desta relação devem, igualmente, ser construídas coletiva-

mente, facilitando assim a promoção das condições para

que as mudanças necessárias se viabilizem (GONÇALVES,

2003, p. 170).

Observa-se que as estratégias de intervenção de maior eficáciasão as que partem dos docentes. Eles possuem um conhecimentomais aprofundado de suas atividades.

Avançando um pouco mais, pode-se citar a estratégia criada porMontero (2003) para privilegiar a saúde e qualidade de vida dos do-centes. Segundo ele, uma estratégia positiva que traz benefícios signi-ficativos aos docentes é propiciar o fortalecimento (empowerment)pessoal e coletivo, desenvolvendo capacidades de lidar com o estres-se, valorização pessoal e grupal, controle das situações de conflito,modificando o contexto e canalizando as necessidades e aspirações.

A sensibilização dos gestores/administradores para a questão dasituação das escolas e da produção de saúde/doença, através dereuniões com representantes das Secretarias de Educação e dasSecretarias de Saúde dos Municípios, a formação de um grupo detrabalho que vise construir propostas para uma política de saúde paraos docentes, bem como a criação de um fórum de debates sobre ainstituição das Comissões de Saúde para os docentes, seja da redemunicipal ou da rede estadual de ensino, também são estratégias quepodem ser adotadas.

Considerações finaisPartindo da concepção de Machado e Porto (2003, p. 124) de que

“vigilância é informação para ação, pressupondo que as ações per-tençam ao campo da vigilância”, esse artigo não teve a pretensão deesgotar o assunto, mas sim, de abrir um espaço para reflexões quenão devem parar por aqui, pois há muito que se fazer no campo dasaúde dos docentes.

Saúde e Qualidade de Vida são dois conceitos contemporâneos,

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presentes em todos os contextos vitais: família, escola, trabalho, mí-dia. E, especificamente no âmbito escolar, constitui-se em priorida-des almejadas frente ao quadro de mal-estar e adoecimento apre-sentado por muitos docentes.

Por último, destaca-se que a transdisciplinaridade pode contribuirpara que a relação saúde-trabalho dos docentes seja, em sua com-plexidade, entendida.

Pois,

[...] a transdisciplinaridade é complementar à aproximação

disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas da-

dos novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova

visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade

não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas,

mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as

ultrapassa (FREITAS; MORIN; NICOLESCU, 1994, p. 2).

A transdisciplinaridade pode facilitar o delineamento de novos ser-viços e a elaboração de ações eficazes em Saúde Coletiva direcio-nadas aos docentes. “A transdisciplinaridade comparece como umaabordagem alternativa para a produção de conhecimento” (ALMEI-DA FILHO, 2000, p. 13).

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NOTAS

1 O termo burocratização é usado por Sacristán (1991) no intuito de mostrarque, em sua opinião, o desenvolvimento das ações pedagógicas e adminis-trativas das escolas está cada vez mais vinculado às demandas e exigênciasinstitucionais. Há um excesso de normas e regulamentos a serem seguidospelos docentes. O conteúdo técnico dos currículos e a sua elaboração pré-via por especialistas, bem como uma maior regulamentação da atividadepedagógica seriam, segundo Gonçalves (2003), fatores de desqualificaçãodos docentes.2 A profissionalização, para Enguita (1991), não deve ser entendida comosinônimo de capacitação, qualificação, conhecimento, formação. Enguita(1991) diz que a profissionalização refere-se a uma posição social e ocupaci-onal. Refere-se à inserção em um determinado tipo de relações sociais deprodução e de processo de trabalho. Na opinião de Enguita (1991), os pro-fissionais docentes, diferentemente de outras categorias de trabalhadores,são autônomos. Não se submetem à regulação.3 No que se refere ao processo de proletarização, pode-se dizer que Enguita

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(1991) emprega essa expressão exatamente no sentido oposto ao que cor-rentemente é dado à profissionalização. A proletarização pode ser caracteri-zada pela perda de controle do processo de trabalho pelos docentes.4 Deve-se salientar que, nos Estados capitalistas modernos, as pessoasbuscavam para si os bens que julgavam necessários para a sua sobrevivên-cia. Esses bens eram alcançados, de forma única, pela compra e venda demercadorias. Neste sentido, para Marx (1975, p. 24), a mercadoria, inicial-mente, “é vista como um objeto externo, uma coisa que satisfaz uma neces-sidade qualquer”.5 Pode-se dizer que a educação geral revela-se como um requisito essencialao emprego formal e regulamentado. Para Oliveira (2004, p. 1129), “[...] eladeveria desempenhar papel preponderante na condução de políticas soci-ais de cunho compensatório, que visem à contenção da pobreza”.

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IMAGENS E SUBJETIVAÇÕESTRAÇADAS PELOS GRAFFITI NAS

CIDADES CONTEMPORÂNEAS

GESIANNI AMARAL GONÇALVESDesigner, especialista em Arte e Educação, mestre em Psicologia,

docente da FUNEDI/UEMG e da PUC MinasE-mail: [email protected]

Resumo: O presente trabalho apre-senta uma investigação acerca dascorrelações estabelecidas entre osprocessos de subjetivação e as ima-gens produzidas por determinadostipos de graffiti presentes na cidadede Belo Horizonte. O quadro teóricoque serviu de fundamentação para aanálise desenvolvida foi constituídopor conceitos oriundos da Filosofiada Diferença proposta por Gilles De-leuze em consonância com Félix Guat-tari e compartilhada por Suely Rol-nik. Como método, optamos pela car-tografia dos processos de subjetiva-ção envolvidos nos graffiti originá-rios do estudo de caso efetuado, apartir das linhas de ação que perpas-sam esse movimento e possibilitamregistrar a ação dos graffiti que con-duzem tanto a movimentos de subor-dinação quanto a movimentos de re-sistência à produção em série de sub-jetividades.

Palavras-chave: processos de sub-jetivação; imagens; graffiti; cartogra-fia; filosofia da diferença.

Abstract: The present work presentsan inquiry concerning the correla-tions established between the pro-cesses of subjectivity and the imagesproduced for determined types ofgraffiti in the city of Belo Horizonte.The theoretical picture that servedof recital for the developed analysiswas constituted by deriving con-cepts of the Philosophy of the Diffe-rence proposal for Gilles Deleuze inaccord with Félix Guattari and sha-red by Suely Rolnik. As method, weopt to the cartography of the invol-ved processes of subjectivity in gra-ffiti originary of the study of effectedcase, from the action lines that cros-sing this movement and make possi-ble to register the action of graffitithat the movements of resistance tothe production in series of subjecti-vities lead the subordination move-ments in such a way how much.

Key-words: processes of subjectivi-ty; images, graffiti; cartography;philosophy of the difference.

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“O desejo é o sistema de signos a-significantes com os quais

se produz fluxos de inconsciente no campo social [...] o

desejo é revolucionário, porque sempre quer mais conexões,

mais agenciamentos.” (DELEUZE)

Omundo contemporâneo está cada vez mais povoado de ima-gens, signos e sinais – lembremos que já no século passado,poetas e escritores viam as cidades como uma floresta de

símbolos. No entanto, de lá para cá, os signos foram se multiplicandoainda mais no espaço urbano, tais como sinais de trânsito, outdoors,luminosos, fachadas, cartazes comerciais, manifestações sociais epolíticas, monumentos históricos e uma profusão de imagens.

Tal diversidade imagética é maior nos grandes centros urbanosonde os espaços pelos quais circulamos cotidianamente se apresen-tam cada vez mais marcados por inscrições das mais variadas or-dens: imagens poéticas, pornográficas, andróginas, fluídas, efême-ras, imagens eletrônicas, comerciais, parietais, contestatórias, colori-das, cinzas, pretas ou brancas, enfim, imagens que formam uma auma as condições de representação imagética das cidades contem-porâneas. Múltiplas imagens que podem apontar para um tipo deorganização social, para uma apropriação estratégica do espaço, paraa política ou para a economia dominante de um local e principalmen-te, para os processos de subjetivação presentes nas sociedades emque essas imagens se apresentam.

Este vasto campo de atuação no qual as imagens se inserem, semultiplicam e se diversificam resulta em uma complexidade do olharno contemporâneo e nas implicações que esse ato carrega. Face aesse quadro, Barros (2006) estabelece um tríplice significado do olhar:o olhar como sensibilidade e sentido, o olhar como constituinte doindivíduo e como configurador da cultura. O autor nos diz que: “oolhar funda o ser e a cultura, o eu e o outro.” (2006, p.93)

Isto posto, este artigo pretende, partindo da lógica da sensaçãodeleuziana, refletir sobre a existência de signos a-significantes nasimagens dos graffiti e em seus movimentos maquínicos de produção

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de subjetividades; principalmente, naquelas que escapam às homo-geneizações sem que isso impeça, neste texto, o pensamento sobre aconstituição de modos de ser subordinados ao sistema de produçãodominante. Não se trata, portanto, de idealizar a capacidade de re-sistência desse fenômeno na contemporaneidade, mas de propor ta-refa mais realista, porém também complexa, em que se busca escla-recer e cartografar os movimentos e as linhas de subjetividade quecompõem essa manifestação estética.

É necessário pontuar que os graffiti, objeto de nosso estudo, refe-rem-se àqueles que estão diretamente relacionados com o campo dasartes visuais. Aquelas expressões que utilizam imagens, cores e com-posições oriundas da pintura em detrimento daquelas que somente usama escrita e os tags. Portanto, os graffiti, por nós pesquisados sãopraticados por pessoas que são consideradas autodidatas ou possuemvínculo com escolas de arte ou almejam cursar um itinerário artístico1.Por isso, optamos por manter o termo em italiano, com a finalidade deinterrogar, com mais propriedade, um estilo que também é conhecidocomo Aerosol Art, bem como, preservar a intensidade significativacom a qual se apresenta dentro de um contexto que busca aproxima-ção estética com as demais formas de manifestação artística.

Esclarecemos que, do nosso referencial teórico, utilizamos da fi-losofia da diferença o conceito de processos de subjetivação optan-do por pensá-lo em termos de linhas. Isso porque Deleuze afirmaque “indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas” (1998, p.145) eanalisa um agenciamento ou uma situação qualquer, mediante umadiferenciação do conceito de linha, oposto ao sistema de pontos eproposições. Deleuze e Guattari (1996) dizem que somos seres seg-mentados, em todos os lados e todas as direções, espacial e social-mente. Toda sociedade e todo indivíduo, são atravessados por duassegmentaridades ao mesmo tempo, uma molar e outra molecular. Aesse respeito os autores comentam:

Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo

tempo macropolítica e micropolítica. Consideremos con-

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juntos do tipo percepção ou sentimento: sua organização

molar, sua segmentaridade dura, não impede todo um mun-

do de microperceptos inconscientes, de afectos inconscien-

tes, de segmentações finas, que não captam ou não sentem

as mesmas coisas, que se distribuem de outro modo, que ope-

ram de outro modo. Uma micropolítica da percepção, da afec-

ção, da conversa, etc. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.90)

Os segmentos são diferentes e remetem a diferentes grupos ouindivíduos que passam continuamente de um segmento a outro, as-sim, as figuras de segmentaridade, binária, linear e circular, são coe-xistentes e passam umas nas outras, formando um emaranhado delinhas. Desse modo, pensamos que a filosofia de Deleuze e Guattaribusca mapear as linhas que são capazes de agir na diferença, ouseja, liberar a diferença de sua subordinação à identidade, uma vezque as linhas são fluxos em constante estado de experimentação,processos em construção contínua.

Nessa perspectiva a subjetividade pode ser pensada como a coe-xistência de três tipos de linhas que a compõe e que definem inúme-ras relações com o espaço e com o tempo. Portanto, somos feitos delinhas duras, de linhas flexíveis e de linhas de fuga que coexistem econstituem um campo de forças. As linhas duras trazem o segmentomolar que quer determinar “quem somos”, as flexíveis são desviosdas linhas duras que buscam modificar o estrato que nos identifica eas linhas de fuga são aquelas que propiciam agenciamentos, novasrelações e conexões que conduzem a processos de subjetivação in-ventivos.

Um olhar diferente às subjetividadesPensar a subjetividade a partir da atuação dessas linhas de ação é

pensar a subjetividade pelo viés da imanência e por um sistema com-plexo e heterogêneo que não designa um “quem somos” de essênciaimútavel. Ter em mente a singularização para além da individuação écompreender que a subjetividade não se caracteriza como algo que

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diz respeito apenas ao sujeito e suas formas de representação. Ex-perimentar uma subjetividade processual e transversal é estar abertotambém à conexões com o inumano, com signos a-significantes, coma capacidade de afetar e ser afetado por linhas de invenção, porlinhas de subjetivação.

O homem tem se configurado de diversas maneiras pelas históri-as, pelas geografias, pelos tempos e pelos espaços. Mutável, versátil,plástico, cambiante, aberto e inacabado, é assim que pensamos o serhumano. As formações sociais baseadas na economia capitalista,desenvolvidas nos últimos três séculos no ocidente, inventaram no-vas tecnologias que contribuíram para a moldagem de corpos e sub-jetividades. Nesse conjunto de processos contínuos instigados e ali-mentados pelo capitalismo, novas redes de relações são formadasmantendo um jogo de forças constantes em que a singularização e ahomogeneização se produzem e se reproduzem concomitantemente.Tal fenômeno aponta para a criação de novos modos de subjetiva-ção, capazes de produzir os modos das relações humanas, as suascondutas e os seus valores. Novas formas de viver, de sentir, depensar, de desejar, enfim, novos modos de ser.

A análise do modo como cada indivíduo se relaciona com os regi-mes de signos próprios à sua época, da maneira como cada vidaexperimenta o conjunto de regras que define sua sociedade nos for-necem dados para a compreensão dos processos de subjetivação.Deste modo, a subjetivação, ou seja, a produção de subjetividadepode ser considerada como um conjunto de condições que torna pos-sível que instâncias individuais ou coletivas, corporais ou incorporais,estejam aptas a emergir como território existencial. Utilizamos asidéias de Guattari (1992) quando pensamos a subjetivação como umprocesso de agrupamento, de composição, de agenciamentos hete-rogêneos de corpos, práticas, juízos e técnicas. Nesse sentido, a sub-jetividade escapa à forma tradicional de sujeito da consciência. Sen-do assim, podemos dizer que há diversas formas de existir que seinstauram fora da consciência e, ao se pensar nos processos de sub-jetivação, devemos considerar também os diversos componentes que

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não passam diretamente pelo sujeito. Tais como, a indústria da mídia,os componentes semiológicos (de produção de sentidos) significan-tes e a-significantes e as máquinas tecnológicas de informação ecomunicação.

Pensar a subjetividade como uma dobra do exterior implica emdespojar o sujeito de uma identidade essencialista e de uma interiori-dade absolutista, ampliando o caráter aberto, inacabado e múltiplo dosujeito que pode escapar criando linhas de fuga aos saberes e pode-res que o subjetivam. Deleuze (1992) a partir de idéias de Foucault,assim define os processos de subjetivação:

Um processo de subjetivação, isto é, uma produção de modo

de existência, não pode se confundir com um sujeito, a me-

nos que se destitua este de toda interioridade e mesmo de

toda identidade. A subjetivação sequer tem a ver com a pes-

soa: é uma individuação, particular ou coletiva, que carac-

teriza um acontecimento (uma hora do dia, um rio, um ven-

to, uma vida...) É um modo intensivo e não um sujeito pesso-

al. É uma dimensão específica sem a qual não se poderia

ultrapassar o saber nem resistir ao poder (DELEUZE, 1992,

pp.123-124).

É a partir dessas considerações acerca da subjetividade e doscomponentes capazes de constituí-la que analisamos o graffiti, como intuito de cartografar os processos de subjetivação que possamestar envolvidos nesse fenômeno. Pensamos o graffiti como umagenciamento de enunciação capaz de subverter a decodificação decódigos lingüísticos e culturais e promover a recodificação de cultu-ras locais e signos semióticos. Exercendo essa função, considera-mos que possam ser apresentados como componente de um proces-so de subjetivação.

Sibilia (2002) em análise à obra de Foucault, nos lembra que é napassagem para a era pós-industrial que observamos uma transiçãodo “produtor disciplinado”, ou seja, o sujeito das fábricas, para o “con-

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sumidor controlado”, o sujeito das empresas. Nessa mudança, a pro-dução econômica assumiu novas feições liberando novas forças como esvaziamento das antigas categorias de proletariado de classe e deesquerda. Pensamos que as forças liberadas com essa transição,são forças capazes de atuar nas linhas que nos constitui, o que fazcom que reflexões acerca desse momento em que vivemos, não pos-sam ser efetuadas de maneiras isoladas. O que queremos dizer éque instâncias que em outros tempos eram destinadas a outras fun-ções, como as atividades relacionadas à criação e ao entretenimen-to, adquiriram outra dimensão na atualidade. E com isso tornam-seobjetos de análise a fim de se pensar novos modos de resistência àprodução capitalista dominante.

A atualidade nos apresenta um cenário em mutação, em que aspráticas de resistência características das sociedades disciplinares,como ações sindicais, greves e passeatas, perderam efetividade. Nessanova fase da economia capitalista, novos controles regem os corpose as subjetividades, novos mecanismos de poder surgem e, por con-seguinte, novas práticas de resistência, novas modalidades de con-trapoder entram em cena. A predominância do trabalho imaterial emque a inteligência, a criatividade e a imaginação são solicitadas dotrabalhador, em detrimento de sua força física e seus músculos, nosmostra que o que antes era do domínio privado do sonho e das artesfoi solicitado a trabalhar no circuito econômico e com eles o capita-lismo passou a mobilizar a subjetividade numa dimensão jamais vista.

É nesse novo cenário sócio-econômico que analisamos em quemedida a criação cultural – entendida aqui como a invenção de sen-tido, de linguagens e valores por intermédio das expressões estéticasdo graffiti – e a criação subjetiva se conjugam e são apropriadas pordispositivos de expropriação. Ou, ao contrário, instauram processospositivos e singularizantes capazes de funcionar como resistêncianum cenário de homogeneização.

Nesse contexto apontamos o graffiti como expressão estéticacapaz de subverter certos códigos por intermédio de seu jogo designos e sentidos e observamos os traçados das linhas que perpas-

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sam não somente as ações dos graffiteiros, mas que se prolongamna relação entre as pessoas e as imagens inscritas nas ruas. Interes-sam-nos os fluxos, os encontros resultantes do poder de afetar e serafetado que conduzem essas subjetividades a processos complexosem que diversos fatores entram em jogo e produzem novas maneirasde pensar e agir na atualidade.

Criação cultural & criação subjetiva: cartografias possíveis?As relações entre política e cultura foram redesenhadas a partir

das transformações ocorridas no capitalismo pós-fordista. Rolnik etal (2002) afirmam que a dimensão cultural ganhou uma centralidadeinédita no quadro de um capitalismo dito “cultural” ou “pós-moder-no” em que a subjetividade surge no cerne de uma economia imate-rial. Segundo essa lógica, a maioria das atividades relacionadas àcultura foi esvaziada de sua função de problematização para se tor-nar alvo de interesses estritamente mercadológicos.

Uma vez que o graffiti surge como a expressão de uma culturaque visa expressar o coletivo urbano em sua diversidade e desigual-dade, destacamos nosso interesse pelo papel da cultura no quadrocontemporâneo do capitalismo. No nosso entender, a cultura veicu-lada por esse movimento é marcada por um tipo de manifestação naqual a problematização retoma seu papel no âmbito da criação. Issoocorre quando, por exemplo, as imagens do graffiti são capazes dedesestabilizar a coesão social imposta pelo status quo que oculta ereprime as diferenças em prol da homogeneização das subjetivida-des. A coesão social pode ser exemplificada, nesse contexto, peladivisão dos espaços no ambiente urbano, onde vemos um espaçooficial, projetado pelas instituições e construído sem considerar o usoque os cidadãos dariam a ele e um outro que pode ser consideradocomo o espaço da diferença, uma vez que ele é usado e inventado namedida em que o cidadão o nomeia ou o inscreve.

Ao inscrever suas imagens nos espaços urbanos, os graffiteirostransitam entre fronteiras tensas, negociando com outras imagens dacidade como a pichação, a publicidade e os escritos revolucionários.

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Por intermédio das imagens nômades que circulam pela cidade, amanifestação do graffiti traz à tona novamente a problematizaçãona dimensão cultural, uma vez que nomeia e inventa novas funçõespara os espaços oficiais da cidade. Agindo assim, percebemos quesuas imagens podem funcionar como estratégia de enunciação quearticulam elementos presentes mais nas relações afetuais e menosnos acordos sociais.

Nesse contexto, a relação entre cultura e subjetividade deve serpensada no interior da revolução tecnológica e produtiva, conside-rando seus efeitos sociais, afetivos e as linhas de força que essareconfiguração libera. Nas novas formas de produção capitalista,em que o desenvolvimento tecnológico evolui constantemente, o temarecorrente é a predominância do trabalho imaterial. Um tipo de tra-balho que solicita do trabalhador não mais seus músculos ou forçafísica, mas sua inteligência, sua força mental, sua criatividade e suaimaginação. Tudo que antes era do domínio privado, do sonho, dasartes e das imagens foi posto a trabalhar no circuito econômico.

O resultado dessa nova configuração faz com que o capitalismomobilize a subjetividade numa escala jamais vista. Com isto, a forçade invenção se tornou a principal fonte de valor e se disseminou portoda a parte, não se restringindo mais somente aos espaços consa-grados à produção. Tal centralidade da invenção no domínio da pro-dução trouxe consigo a tendência hegemônica de uma serializaçãonos mais diversos âmbitos: das formas de socialização, de entreteni-mento, de circulação cultural e de informação.

No atual contexto da relação entre capital e subjetividade, Pelbart(2003) diz que o capital mobiliza e faz trabalhar a seu favor as instân-cias mais íntimas de nossa existência. Para tanto, ele utiliza, comodispositivo de homegeneização das subjetividades, as novas tecnolo-gias da informação, nas quais consideramos a imagem o elementocentral. As imagens apropriadas por esse sistema podem agir nacaptura de forças inventivas objetivando a instauração de territóriosem que a palavra de ordem é a padronização das subjetividades.Mas, essas mesmas imagens que se encontram amplamente disponí-

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veis nas mais diversas esferas sociais, utilizando como vetor princi-pal a cultura das mídias e a cultura digital, são também capazes deoperar a força irruptora dos desejos. Agindo de forma a estimularnovas maneiras de viver e se constituir, uma vez que podem intensi-ficar as potências individuais.

Rolnik et al (2002) falam da dimensão semiótica do capitalismo,em que a velocidade da digitalização generalizada ressemiotiza todosos âmbitos da vida. Desta forma, dizemos que o excesso de imagensque vemos hoje nas mais variadas instâncias, apresenta uma face dasemiotização na qual a cultura tende em submeter-se à lógica dasociedade do espetáculo. Seguindo essa linha de raciocínio, Rolnik etal (2002) colocam a seguinte questão:

Se tomamos a capacidade da arte [...] fundamental para as

sociedades contemporâneas, de socializar as próprias sen-

sações, fazendo comunicar num comum sensível a diferença

dos indivíduos, não estaríamos na contracorrente da nar-

rativa por demais unilateral da sociedade de espetáculo,

ou mesmo da sociedade de controle, reabrindo o campo

para outras cartografias? (ROLNIK et al, 2002, p.8)

Parafraseando os autores indagamos se as imagens e as coresdos graffiti possuem a capacidade de provocar sensações capazesde agenciar novos modos de ser. Será que a manifestação de umacultura popular que nasce no seio do cotidiano urbano, que possuicomo berço as ruas que abrigam a rotina da vida citadina e que,normalmente, utilizam como suporte os espaços mal cuidados, feiose sujos da cidade, possuem condições para subverter as imagensproduzidas pelas novas tecnologias da informação, que visam à ho-mogeneização dos espaços, das cidades, dos indivíduos e, o que épior, dos desejos?

É sabido que a atualidade exibe o fim dos suportes e das esferasde atuação em vários domínios. Não se produz mais somente nasfábricas, não se cria só na arte e não se resiste só na política. Neste

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sentido, Deleuze nos propõe que “o moderno traz a revelação dafalência da superfície, assiste ao transtorno das relações tradicionaisentre a superfície e a profundidade, entre o fundo e a forma, o senti-do e o sem sentido” (1969, p.10, tradução nossa)2.

Nessa nova configuração, as artes plásticas extrapolam seussuportes tradicionais como a pintura e a escultura e se expandepara além das esferas tradicionais de sua atuação como o museu eo circuito tradicional da arte. As imagens não se apresentam maissomente nos suportes tradicionais como parede, pintura, gravura,escultura, arquitetura, fotografia, vídeo e cinema. Surge a era daLógica Paradoxal da Imagem que de acordo com Virilio3(2002)corresponde àquela iniciada com a invenção da holografia e dainfografia.

Diante de tanta alteração, Rolnik et al (2002) dizem que tambéma subjetividade passou por mudanças. Ela extrapolou seu suporteegóico e identitário para ser vista por uma perspectiva de transver-salidade, por um processo complexo e heterogêneo que não designauma “coisa em si” de caráter imutável. Diante deste panorama demudanças, transformações e misturas que a atualidade nos fornece,torna-se relevante pensar em que medida a resistência e a criaçãosão coextensivas? Em que circunstâncias as imagens, a cultura e asartes se constituem criação como potência de singularização? Seráque as imagens dos graffiti são capazes de inventar novos sentidosao produzir sensações que possam se articular à criação, à individu-ação em processo?

Vivenciamos uma época marcada pelo controle do CapitalismoMundial Integrado que perpassa a todas as atividades humanas,moldando modos de existência. Tal sistema se utiliza de fluxos comooperadores que a tudo codificam em prol de uma lógica reprodutivadominante. Nesse sentido, a sociedade é composta por códigos efluxos e as pessoas que compõe esse corpo social são capazes deprovocar ou receber fluxos vindos do campo do desejo e, por conse-guinte, são suscetíveis de escapar ao código, ou seja, às normaliza-ções institucionais e territoriais impostas por esse sistema.

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Cartografia imagética: mapeando sensações colorantes pro-dutoras de novos sentidos

Interessam-nos as realidades e sentidos que são construídos porsujeitos históricos de formações socioculturais específicas como aque estamos inseridos hoje. Nesse contexto, privilegiamos certosregistros imagéticos de graffiti inscritos na cidade de Belo Horizon-te (Minas Gerais, Brasil), que consideramos como produtores de sen-sações que concorrem para o engendramento da subjetividade. Par-timos do pressuposto de que quando alguém é afetado por uma sen-sação, por exemplo, através de uma imagem, esta sensação estádiretamente relacionado à produção de sentido e ao fluxo do desejoque ativa sua subjetividade, seja reproduzindo ou transformando-a.

Assim sendo, os sentidos que obtemos não são simplesmente pré-fabricados e transmitidos pelas formas das imagens que conteriamas intenções de seus autores, mas são produzidos por encontros en-tre forças capazes de desencadear um processo de significação queestá constantemente sujeito as novas reestruturações e a novos sen-tidos. Desta forma, justificamos a relevância de serem estudados ediscutidos os processos de subjetivação que emergem a partir daprodução de sentidos originários de dimensões semiológicas imagéti-cas presentes nos muros da cidade.

Como método, optamos pela realização de uma cartografia a fimde mapear as linhas que atravessam o fenômeno: os pontos de ho-mogeneização aí presentes, mas, sobretudo, registrando os mecanis-mos de resistência que escapam à produção em massa das subjetivi-dades. Entendemos a resistência, nesse contexto, para além de umarelação de forças contra algo visível, mas como invenção e comocriatividade capaz de inventar novos modos de ser e estar no mundo.

Analisar o fenômeno do graffiti é fruir uma paisagem na qual osafetos e os perceptos funcionam como operados de sua lógica, de-vendo ir além de uma simples contemplação que almeja descobrirsignificados transcendentes à sua existência. Considerando nossoobjeto de estudo, como elementos que compõem as paisagens urba-nas em constante formação acompanhamos as idéias de Rolnik, acerca

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da cartografia: “é um desenho que acompanha e se faz ao mesmotempo que os movimentos de transformação da paisagem” (1989,p.15). Portanto, ao se ter como meta a realização de uma cartogra-fia, não se pode desconsiderar as mudanças e os movimentos ine-rentes ao objeto e à própria essência da subjetividade que, em cons-tante processo, necessita desmanchar territórios a fim de criar ou-tros. A autora ilustra bem esse recorte quando fala que a cartografia:

[...] acompanha e se faz, ao mesmo tempo que o desmancha-

mento de certos mundos – sua perda de sentido – e a forma-

ção de outros: mundos que se criam para expressar afetos

contemporâneos, em relação aos quais os universos vigen-

tes tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 1989, p.15)

Nessa acepção, a cartografia se apresenta como um método cujaatividade busca registrar a coexistência das linhas que constituem osnossos mundos e os processos que procuram as correspondênciasentre os fenômenos, mais do que suas verdades absolutas. No nossoentender, o desafio dessa atividade é descobrir o poder de afetar eser afetado pelos universos que rodeiam os indivíduos e também, demapear sensações capazes de criar novas subjetividades. Hardt (1996)nos lembra que para Deleuze, o poder de ser afetado corresponde àpotência do ser de agir e de existir. A potência de ser afetado reveladuas ordens distintas: afecções ativas e passivas, sendo que essaúltima pode ser de dois tipos: afecções passivas alegres e afecçõespassivas tristes. Segundo o filósofo, a grande maioria de nossas afec-ções é triste e a constatação desse pessimismo, que tem sua origemna filosofia espinosista, se apresenta como o ponto de partida parauma prática da alegria.

Portanto, entendemos que a cartografia se apresenta como meiocapaz de nos possibilitar uma abordagem do desejo, que, por sua vez,é entendido no nosso trabalho, como o elemento fundamental de umamicroanálise. Analisamos o desejo como elemento desencadeadorde microprocessos revolucionários, isto é, processos de percepção e

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sensibilidade inventivos e capazes de produzir novas subjetividades.No nosso entender, os modos de expressão a-significantes (comocertas imagens de graffiti) são elementos privilegiados para o de-sencadeamento de processos de subjetivação e a cartografia a for-ma ideal para registrá-los.

Por uma micropolítica: o desejo como sistema de signos a-significante

O desejo na dimensão dos processos de subjetivação, analisadospelo olhar da filosofia da diferença de Deleuze e Guattari, não éentendido como a representação de um objeto ausente ou faltante,mas como uma atividade de produção, como um processo, comouma experimentação incessante. Desejo como algo que nasce fora,nasce de um encontro (dos indivíduos com as imagens dos graffiti,por exemplo) ou de um acoplamento e, que não é dado previamentenem é um movimento que surge de dentro para fora.

Deleuze (1993) aponta sua primeira diferença em relação à Fou-cault quando, juntamente com Guattari, fala em agenciamento dedesejo e questiona se os microdispositivos podem ser descritos emtermos de poder. Para o autor, os agenciamentos de desejo é quedisseminariam formações de poder, sendo, portanto, o desejo, o ele-mento fundamental de uma microanálise. O elemento desencadea-dor dos microprocessos revolucionários, como na micropolítica, porexemplo, que se situa um processo de percepção e sensibilidade in-teiramente novo e capaz de produzir novas subjetividades. Comodiriam Guattari e Rolnik, o investimento “desejante” é capaz de ins-taurar práticas políticas que pleiteiam a “subversão da subjetividadede modo a permitir um agenciamento de singularidades desejantes”(2000, p.30). Os autores afirmam que todos os fenômenos da atuali-dade envolvem dimensões do desejo e da subjetividade, portanto, aproblemática da micropolítica não se situa no nível da representação,mas no nível da produção de subjetividade: “ela se refere aos modosde expressão que passam não só pela linguagem, mas também porníveis semióticos heterogêneos.” (2000, p. 28).

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Nesse sentido, percebemos que o desejo se movimenta, se expan-de e é capaz de impulsionar movimentos nos quais a fantasia, a alegria,o colorido e o lúdico, possam ser um abalo ao primado do poder. Nes-ses movimentos, consideramos as imagens dos graffiti capazes de atu-arem no campo do desejo e, por conseguinte, em uma micropolítica.

Assim sendo, a filosofia da diferença de Deleuze e Guattari podeser pensada pelo viés de uma micropolítica, uma vez que a diferençanão está relacionada ao sentido identitário, ou seja, da representaçãodas características particulares de um indivíduo ou grupo. Mas ooposto disso: diferença é o que nos arranca de nós mesmos e nos fazdevir outro. É o abalo de identidades vigentes e pré-moldadas emprol da criação de novas combinações de forças, novas figuras, no-vos modos de ser e estar no mundo. Diferença como produção deum coletivo, uma vez que a própria diferença é o resultado de com-posições das forças que constituem determinado contexto sociocul-tural. A filosofia da diferença trata de uma atitude micropolítica queultrapassa o respeito e o reconhecimento com o outro, que vai alémde respeitar ao próximo e preocupar com as conseqüências que nos-sa conduta possa ter sobre ele, mas trata de assumir as conseqüên-cias de sermos permanentemente atravessados pelo outro.

Pensando assim, consideramos as imagens dos graffitis comoagenciamentos geradores de novos modos de existência, principal-mente quando são capazes de produzir regimes de signos diferentesdaqueles estabelecidos pela lingüística. Esse é, segundo Zourabichvili(2004), o interesse principal do conceito de agenciamento: “enrique-cer a concepção do desejo como uma problemática do enunciado”(2004, p.23). Surge daí a proposta da Lógica do Sentido iniciadapor Deleuze em 1969 e cuja seqüência se deu em parceria com Guat-tari na obra Mil Platôs (1995). Em linhas gerais podemos dizer queDeleuze (1969) pressupõem um nexo interno entre um enunciado e oato incorpóreo que necessariamente o envolve, o que implica um ques-tionamento dos modelos da lingüística (informação/comunicação).

O autor considera os incorpóreos como condição extrínseca, po-rém necessária da linguagem, sendo simultaneamente o expresso de

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uma proposição e o atributo de um estado de coisas. Para ele, osincorpóreos não existem fora das proposições, mas também não sereduzem, em absoluto, à sua natureza lingüística. Nessa acepção,pensamos os graffiti como agenciamentos coletivos de enunciaçãoenquanto transformações incorporais da ordem mais do sensível (sen-sação) do que da percepção (cognição). Deleuze e Guattari (1995)falam que a forma de expressão não é simplesmente linguageira, há,por exemplo, agenciamentos musicais, agenciamentos olfativos, mí-micos, colorantes, enfim, agenciamentos que agem alterando senti-dos pela via da sensação (característica que destacamos nas ex-pressões dos graffiti). Tal condição nos faz perguntar: qual a lógicaque rege o conteúdo e a expressão em sua origem?

Os autores nos responderiam que esse é o pólo “máquina abstra-ta” entre os quais estão incluídos os agenciamentos artísticos. Sabe-mos que uma relação complexa se tece entre conteúdo (o agencia-mento maquínico) e expressão (agenciamento coletivo de enuncia-ção), redefinidos, de acordo com os autores, como duas formas inde-pendentes, mas tomadas numa relação de recíprocidade e relançan-do-se uma à outra. A gênese recíproca das duas formas remete àinstância do “diagrama” ou da “máquina abstrata”.

Ao contrário da relação significante/significado, no diagrama, aexpressão refere-se ao conteúdo sem, contudo, descrevê-lo nem re-presentá-lo, simplesmente ela intervém nele. O resultado é uma con-cepção de linguagem que se opõe à linguística, assinalando-se peloprimado do enunciado sobre a proposição, nela a forma de expres-são (o regime de signos) não é necessariamente linguageira. Daíexclui-se a idéia do agenciamento poder ser explicado pelo signifi-cante, ou pelo sujeito, conforme Deleuze e Guattari nos dizem: “é asignificância ou a subjetivação que supõem um agenciamento, não oinverso” (1995, p.97).

Por conseguinte, encontramos transformações incorpóreas, comoalgumas manifestações do graffiti, procedentes de um segmento deexpressão capaz de conduzir a decodificações, em outros termos, apontos de desterritorialização. Ou seja, agenciamentos que conduzem

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a um plano em que o vir a ser do indivíduo (que só se constitui como talao se agenciar) promove disjunções (linhas de fuga) que ele cria comoalternativa contra o funcionamento reprodutor da identidade fixa (linhade segmentaridade dura). Podemos ilustrar essa transformação comdados empíricos de nossa pesquisa, quando o graffiteiro informante4

do estudo de caso que realizamos, nos narra sua entrada para o univer-so dos graffiti. Essa passagem nos permite registrar a ação de umalinha de subjetividade, dentre as muitas que registramos em nossa car-tografia que, pela natureza deste texto, não poderemos apresentar deforma completa. Contudo, apresentamos o registro de um momentoem que pudemos detectar a ação de uma linha de fuga:

Esse tanto de cor, eu fiquei louco e comecei a desenhar na

mesma hora. Deixei de ser pichador e comecei a graffitar.

(G3, 27/02/2006)

Esse relato nos mostra que as cores do graffiti provocaram agen-ciamentos no informante que o fizeram “deixar de ser” uma coisapara se tornar outra: “[...] deixei de ser pichador e comecei a graffi-tar”. Tal fala indica-nos a ação de uma linha de fuga que convergiuem um processo que o arrastou para o novo, o arrastou para umprocesso de subjetivação que resultou na configuração de uma novapráxis e um novo modo de ser. Valendo-nos das idéias de Guattari(1992) podemos dizer que essa mudança ocorrida com o informanteocorreu pelo viés da “lógica das intensidades”, na qual novos “uni-versos de referência” e novos ‘territórios existenciais” foram enun-ciados. Essa manifestação (enunciação), foi feita por (agenciada)intermédio das sensações, conforme Rolnik (2001) denomina, ou,utilizando linguagem guattariana, pela “relação pática”, que as coresprovocaram. Guattari nos diz que: “o que atravessa os diferentescomponentes semióticos não é mais uma articulação formal, masmáquinas abstratas que se manifestam ontologicamente em regis-tros heterogêneos e não-discursivos.” (1992, p.75) Ele está se refe-rindo à aglomeração de componentes heterogêneos de expressão e

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de conteúdo, ou seja, à concepção polifônica dos componentes queconcorrem para a produção de subjetividades. Ao falar da heteroge-neidade dos componentes semiológicos que compõem os processosde subjetivação, Guattari (1992) traz à tona a semiótica a-significan-te, que ele descreve da seguinte maneira:

São figuras de expressão que se concatenam diretamente

com o referente, e “tomam o poder” sobre o conjunto dos

outros componentes semióticos; ao passo que, na semiolo-

gia linguística, são, ao contrário, redundâncias de conteú-

do que vão reenquadrar o conjunto dos componentes de

expressão, quer sejam fonológicos, gestuais, prosódicos...”

(GUATTARI, 1992, p.75-76).

Destas considerações do autor, compreendemos que, nessa situ-ação específica cartografada, o que contribuiu para que as cores dograffiti desencadeassem processos de subjetivação foi a capacida-de das cores agirem como figuras de expressão (signo de ruptura ousigno sensível) que se articulam ao indivíduo atuando pela lógica dasensação e provocando a construção de novos sentidos, novas mo-dos existir. Por todas essas considerações, concluímos que as ima-gens dos graffiti podem funcionar como agenciamento coletivo deenunciação quando for capaz de proporcionar novas formas de estarno mundo, novas subjetividades. Contudo, há de se lembrar que osagenciamentos podem também funcionar como arranjos para com-portamentos pré-concebidos, como as instituições sociais, por exem-plo. Trata-se nesses casos de agenciamentos sociais, definidos porcódigos específicos que se caracterizam por uma forma relativamenteestável e por um funcionamento reprodutor que tende a reduzir ocampo da experimentação do desejo a uma visão preestabelecida.

Graffiti: imagens híbridas de fronteiras urbanasAo nos depararmos com a realidade de nossa problemática, perce-

bemos que a heterogeneidade do graffiti contemporaneamente, o co-

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loca como uma expressão híbrida, mestiça e fronteiriça em diversosmomentos e circunstâncias. Ora ele se apresenta como cultura erudi-ta, ora como expressão de uma cultura popular, ao mesmo tempo emque se configura, em certos aspectos, como expressão de uma culturade massas, de uma cultura da mídia e até de uma cibercultura.

Por sua fluidez, concluímos que o fenômeno graffiti se insere, demaneira importante, como reflexo e análise de novas formações sub-jetivas. Suas expressões, talvez sejam as que melhor apresentam astransformações que estão ocorrendo no modo de vida da culturapopular urbana, uma vez que os graffiti representam, na AméricaLatina, a mestiçagem da iconografia popular com o imaginário políti-co dos universitários. Caracterizando-se por ser uma expressão emque a denúncia política se abre à poética popular, em que diversosmodos de protestos se encontram e se misturam.

Sua manifestação participa da disputa cotidiana que estabelece aconstrução sociocultural dos espaços urbanos. Por esse aspecto, éque podemos dizer que o graffiti refere-se a uma redefinição dopúblico e do privado, alterando a noção de que a cidade é dada so-mente ao não uso, à desigualdade e à frieza. Suas cores, seus dese-nhos e sua alegria, despertam idéias (ou seriam ideais?) de que a cida-de é marcada também por uma sociabilidade e por uma positividadereveladas em expressões que visam à humanização desse espaço.

Avistamos nessas imagens, um caráter ativista que sutilmentepropõe uma nova lógica política sobre os direitos civis ao ultrapassara sensibilidade à miséria e ao sofrimento alheio, se relacionando comeles através de sua poética. Nos trabalhos que acompanhamos écontundente a busca por lugares caóticos e inesperados para inter-vir. É essa busca que confere à ação desses jovens uma posturaestética e ética que traz consigo a tomada de posição frente aosproblemas políticos, sociais e étnicos que emergem da realidade.

A partir de nossas observações, concluímos que o graffiti surgecomo uma forma de resposta cidadã, como um movimento plásticocom razões sociais, políticas e contra-ideológicas que acabam pordemonstrar uma tendência dessas expressões nos dias atuais: desli-

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gar as inscrições dos graffiti das antigas formas panfletárias e re-correr a novos subterfúgios formais: introduzir a imagem, a forma dearte, a figura e não somente a palavra. Introduzir através de umprojeto estético o afeto, introduzir a partir de suas cores e formas, aalegria e a humanização da cidade. Atuando assim, os graffiti ques-tionam as formas de organização dominante e suas formas de legiti-mação que operam por mecanismos de dominação cultural. Dessaforma, algo criativo pode acontecer quando a dimensão de uma cul-tura popular expressa pelas imagens dos graffiti, assinala a percep-ção de dimensões inéditas do conflito social, da formação de novosmodos de ser regionais, religiosos, sexuais e das formas de rebeldia eresistência. No nosso entendimento, essas manifestações propõem areconceitualização da cultura ao nos confrontar com essa outra ex-periência cultural que é a popular, em sua existência múltipla e ativaque age na conflitividade do espaço público.

Pudemos perceber que em alguns momentos suas imagens carre-gam uma espécie de mensagem cifrada, operando um jogo de senti-dos que dificulta decifrar seus códigos. Quando assim apresentado,ele se caracteriza como um signo icônico que visa embaralhar seuspossíveis significados. Nessa perspectiva, os graffiti estabelecemuma relação entre o observador e suas imagens a fim de que seefetue a ruptura do sentido que possibilita que cada imagem apre-sente um conjunto de correspondências a serem decodificadas. Essaacepção possibilita ver (ou sentir) aquilo que pertence a outros domí-nios, ou seja, a imagem nos dá a face do invisível ao provocar orearranjo de forças apreendidas pela sensação. Assim, podemos di-zer que a partir da falência de significados, a potência de criação éconvocada, deste modo, as imagens de alguns graffiti são um convi-te à crítica do instituído, à problematização de questões do cotidiano,à produção de novos modos de pensar e à liberação do desejo. Suasimagens mantêm vivo o poder de afetar e ser afetado pelos univer-sos incorporais que no rodeiam e de produzir novos mapas de sensa-ções capazes de contornar novas subjetividades.

Nossa pesquisa nos permitiu analisar os processos de subjetivação

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envolvidos em alguns graffiti da cidade de Belo Horizonte e discutiras várias linhas de ação que o percorrem. Ao propor realizar umacartografia dessas linhas, nossa intenção era destacar o caráter dinâ-mico desse movimento, registrando a hibridez de sua expressão que opossibilita transitar entre diversas fronteiras, ora reiventando e resin-gularizando modos de ser e jeitos de viver, ora reproduzindo padrõesdominantes. No entanto, para além de cartografar esses movimentosfronteiriços do graffiti, pretendíamos responder a nossa hipótese fun-damental: seriam os graffiti aptos de desencadear processos de sub-jetivação por meio das sensações que suas imagens provocam?

Chegamos à conclusão que nossa hipótese é válida, que realmen-te os graffiti são capazes de desencadear processos de subjetivaçãopor meio das sensações que suas imagens despertam. Consideramosque isso ocorre de maneiras variadas, ou seja, que em cada indivíduoessa afecção ocorre em graus diferentes, resultando em subjetivida-des também diversas. Contudo, descobrimos que as cores são oselementos dos graffiti que mais despertam sensações nos transeun-tes, seguidos da surpresa do suporte (do local) em que se encontramas imagens. Esse processo de afecção que se desencadeia a partir dasensação que as cores provocam, nomeamos, em consonância com osconceitos teóricos que utilizamos, de microprocessos revolucionários.

O resultado de nossa pesquisa nos mostra que os movimentosmoleculares do graffiti se alternam com momentos e situações emque ele se apresenta subordinado às segmentaridades molares, comopor exemplo, quando ele está nas galerias, quando participa de proje-tos patrocinados por instituições que ditam o quê e como será feito,quando assina produtos da moda e do design, quando permite sertomado por forças de hierarquização do saber e do poder.

No entanto, podemos concluir que mesmo agindo como subordi-nação em alguns momentos, o graffiti tende a ser mais a expressãode um movimento de resistência à homogeneização das subjetivida-des. Consideramos que a característica de hibridez, entre o popular,a poética e o político, marca como força motriz do graffiti a resistên-cia, operada segundo uma poética visual e uma vivência do espaço

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urbano que enfrenta a racionalização pós-industrial. É uma contra-racionalidade que se inscreve em oposição ao tempo de produçãomundializado e às tecnologias que tentam subjugar as culturas locais.Entretanto, sua resistência não é feita de oposições dramáticas ouradicais, ela é porosa, fluída, flexível e se dá em meio a um emara-nhado de linhas de força que a tudo perpassam.

Considerando a complexidade das diversas linhas que atraves-sam o graffiti, percebemos que os traços dos graffiti que delineiammovimentos de resistência são percebidos em instâncias molecula-res, cotidianas, agindo como microrevoluções não panfletárias ouagressivas. Resistindo à homogeneização do saber, do poder, aosespaços assépticos, ao não uso dos espaços públicos, resistindo àindiferença com as desigualdades sociais, à falta de liberdade deexpressão, à desumanização e frieza da cidade, à falta de sensibili-dade. Cores que resistem ao conformismo com a degradação e se-gregação do espaço público, à falta de afeto e à capacidade de serafetado. Enfim, ainda vemos certos graffiti de Belo Horizonte comoum apelo à humanização e a singularização, pela via da sensaçãoque suas cores despertam. Agindo desse modo, o graffiti trabalha ocoletivo fora dos lugares consagrados e inventa constantemente aarte na prática cotidiana, buscando promover o descanso visual, in-terrompendo a aceleração da vida cotidiana e propiciando a humani-zação do ambiente urbano. Por intermédio de seu colorido, os gra-ffiti nos convidam à experimentar uma subjetividade processual queesteja aberta também à conexões com o inumano, com o a-signifi-cante, com a capacidade de afetar e ser afetado por linhas de inven-ção, por linhas de subjetivação e por imagens que formam as paisa-gens urbanas da contemporaneidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro:Relume Dumará, 2004.

NOTAS

1 Essas especificações são características observadas nos graffiteiros queparticiparam de nosso estudo de caso: dois autodidatas, uma aluna da Es-cola de Belas Artes-EBA/UFMG e um informante que à época da pesquisaestava se preparando para o vestibular da Escola de Design da UEMG.2 Le moderne a la révélation de la faillite de la surface et l’on assiste aubouleversement des relations traditionnelles entre la surface et la profon-deur, le fond et la forme, le sens et le non-sens.3 Esse autor apresenta uma logística da imagem à luz da qual são estabeleci-dos três regimes das máquinas de visão: Era da Lógica Formal da Imagem(inscrições rupestres, pintura, gravura, escultura e arquitetura), Era da Ló-gica Dialética da Imagem (fotografia, vídeo e cinema) e Era da Lógica Para-doxal da Imagem (já citada).4 Optamos por preservar a identidade de nosso informante e por manter oregistro da fala oral objetivando ser o mais fiel possível ao conteúdo dosmesmos, sendo assim, o identificaremos apenas como GP.

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INDÚSTRIA CULTURAL, TRABALHOHIPOSTASIADO E VIDA DANIFICADA

JOSÉ GERALDO PEDROSALicenciado em Ciências Sociais (INESP), mestre em Educação (UFMG),

doutor em Educação: História, Política, Sociedade (PUC/SP) eprofessor no Mestrado em Educação Tecnológica do CEFET/MG

E-mail: [email protected]

Resumo: Esse artigo reflete sobre aheteronomia, a monotonia e o tédioque definem a (ausência de) vida nocapitalismo tardio. A análise buscauma aproximação entre os primeirostextos de Marx ou dele e Engels e osensaios nos quais Adorno refletesobre a indústria cultural, o tempolivre, a música popular e a vida dani-ficada na sociedade da produção edo consumo. Busca-se pensar na re-lação entre a hipostasia do trabalho,a indústria cultural e a vida danifica-da: isso que eqüivale a uma “involu-ção da consciência”, a uma “regres-são do homem” ou a uma decompo-sição do “cerne da individuação”.

Palavras-chave: Trabalho; Capitalis-mo; Indústria Cultural.

Abstract: This article reflects aboutthe heteronomy, the monotony andthe tedium that define the (absenceof) life in late capitalism. The analy-sis aims to approach Marx’s or Marxand Engels’ first texts to the essaysin which Adorno reflects about cul-tural industry, free time, popular mu-sic and the damaged life in the soci-ety of production and consumption.The purpose is to think about therelation between hypostasis of work,cultural industry and damaged life:what is equivalent to an “involuti-on of conscience”, to a “human bein-gs’ regression” or to a decompositi-on of “the core of the individuati-on”.

Key-words: Work; Capitalism; Cul-tural Industry.

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O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem

que não dispõe de tempo livre (...) é uma (...) máquina, fisi-

camente destroçada e espiritualmente animalizada para

produzir riqueza alheia. (Marx)

Aidéia de uma vida alienada e danificada, de uma vida que sereduz a meio de vida ou de uma vida marcada pela hetero-nomia, foi um dos motivos mais fortes da crítica marxiana

da sociedade regida pela lógica da produção e do consumo. Já nos“Manuscritos” de 1844, Marx (1918-1883) identificava o fenômenoda exteriorização como uma situação na qual o homem se reduz àcondição de trabalhador, perdendo, com isso, a sua condição de su-jeito: “O trabalhador põe sua vida no objeto; porém agora ela já nãolhe pertence, mas sim ao objeto” (Marx, 2001, p.112). Assim é queos criadores se curvam diante de suas criaturas e isso eqüivale àcoisificação:

A alienação do trabalhador no seu produto significa não

só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma exis-

tência externa, mas que existe independentemente, fora dele

e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição

a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil

e antagônica (Marx, 2001, p.112).

Isso é que danifica a vida, pois o trabalhador torna-se um “escra-vo do objeto”. Nessa condição é que a propriedade privada aparececomo aquilo que aliena o homem de sua natureza, de sua própriahumanidade: “...quanto mais o trabalhador se esgota a si mesmo,mais poderoso se torna o mundo dos objetos, que ele cria diante de si,mais pobre fica a sua vida interior, menos pertence a si próprio”(Marx, 2001, p.112). Ao definir dessa forma a alienação, Marx com-preende a lógica da sociedade burguesa e seus efeitos negativossobre o homem. Trata-se da alienação da genericidade humana e,portanto, do afastamento do homem do próprio homem. Por isso tam-

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bém é que quanto mais refinado é o produto do trabalho ou quantomais o trabalhador se apropria, pelo trabalho, do mundo exterior, tan-to mais desfigurado fica o trabalhador: “quanto mais civilizado o pro-duto, mais desumano o trabalhador; quanto mais poderoso o traba-lho, mais o trabalhador diminui em inteligência e se torna escravo danatureza” (Marx, 2001, p.113).

Nos textos de 1844, a idéia de uma vida prejudicada aparece paraMarx como o resultado do condicionamento do trabalho pela proprie-dade burguesa, portanto, por aquilo que Adorno caracterizaria, maistarde, como coerção funcional: uma circunstância em que o membroparticular da espécie humana se vê condicionado por uma rede funcio-nal ou uma circunstância de descolamento entre o progresso da culturamaterial e o progresso no campo da sua liberdade e da sua felicidade. Oque Marx afirmou ainda na primeira metade do século XIX é que:

...o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva, aparece

agora para o homem como o único meio que satisfaz uma

necessidade, a de manter a existência física. A vida produti-

va, entretanto, é a vida genérica. É a vida criando vida. No

tipo de atividade vital está todo o caráter de uma espécie, o

seu caráter genérico; e a atividade livre, consciente, consti-

tui o caráter genérico do homem. A vida revela-se simples-

mente como meio de vida (Marx, 2001, p.116).

Para Marx, o momento mais elevado desse poder da propriedadeburguesa sobre a vida do homem pode ser demonstrado pelo poderadquirido pelo dinheiro, a forma mais sublime da propriedade. O po-der do dinheiro expressa o poder que o homem não tem mais sobresua própria vida: “O dinheiro é a capacidade alienada da humanida-de” (Marx, 1987, p. 196). Desta forma é que ter, no sentido egoístade ter para si ou de ter de forma privada, torna-se mais importantedo que ser e o dinheiro, expressão da propriedade, torna-se um fimem si mesmo, torna-se o poder que substitui o poder que o homemnão mais tem sobre si: “Eu, que mediante o dinheiro posso tudo a que

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o coração humano aspira, não possuo todas as capacidades huma-nas? Não transforma meu dinheiro, então, todas as minhas incapaci-dades em seu contrário?” (Marx, 1987, p. 196). Neste sentido é queo dinheiro torna-se a “química da sociedade”, o que “me liga à vidahumana, que liga a sociedade a mim, que me liga com a natureza ecom o homem”, mas, ao mesmo tempo, é o “meio geral da separa-ção”: “É a verdadeira marca divisória, assim como o verdadeiro meiode união” (Marx, 1987, p. 196).

Pretende-se aqui avançar no entendimento dessa “vida danifica-da” a partir de outras referências que Theodor Wiesengrund Adornoacrescentaria à crítica marxiana da sociedade burguesa, tendo comoobjeto da reflexão as condições da existência social no contexto docapitalismo tardio. Pensa-se, pois, a partir da síntese que aparece notexto de Benjamin Franklin: tempo é dinheiro1. É isso que remete aoproblema adorniano do tempo livre e do tempo condicionado. O tem-po é referência fundamental de organização da vida; é com basenessa categoria que se pode, pois, entender a relação entre o tempode trabalho e a vida danificada. Mais especificamente, o que se bus-ca é pensar na relação entre a hipostasia do trabalho, a coerçãofuncional e a vida danificada: isso que é próprio do capitalismo tardioe que eqüivale a uma “involução da consciência”, a uma “regressãodo homem” ou a uma decomposição do “cerne da individuação”.Trata-se, pois, de entender o que Adorno define como “capitalismotardio”, para, em seguida, pensar sobre a relação entre a hipostasiado trabalho e a vida danificada.

O que Adorno nomeia como “capitalismo tardio” é uma situaçãona qual “as relações de produção se revelaram mais elásticas do queMarx imaginara”, desenvolvendo, assim, mecanismos que permitema permanência da ideologia da produtividade, num contexto em queas contradições sociais se tornam cada vez mais agudas. Neste en-saio publicado em 1972, Adorno faz a crítica da tese segundo a qualMarx estaria ultrapassado, isto é, crítica do entendimento de que omundo que se forma a partir dos anos 1960 se encontra de tal manei-ra determinado pela técnica – cujo desenvolvimento supera todas as

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expectativas – que, se comparado com outras épocas de sua história,pode-se ver que “a relação social que outrora definia o capitalismo, ametamorfose do trabalho vivo em mercadoria e, desse modo, a contra-dição de classes, perdeu a relevância...” (Adorno, 1994, p. 63).

Adorno refuta esta tese. Para ele, fatos como o da inexistênciade uma consciência de classe nos países capitalistas dominantes ouo avolumamento do progresso técnico e o declínio da participação dotrabalho vivo nas atividades industriais “só de um modo muito força-do e arbitrário são ainda interpretáveis sem utilizar o conceito-chave‘capitalismo’. A dominação sobre seres humanos continua a ser exer-cida através do processo econômico” (Adorno, 1994, p. 67). Para ofrankfurtiano, a ausência de uma consciência proletária nos paísesdominantes não é suficiente para refutar a existência de classes:“...a classe é definida pela posição quanto aos meios de produção enão pela consciência de seus membros” (Adorno, 1994, p. 65). Alémdisso: “A existência social não gera, de modo imediato, consciênciasocial” (Adorno, 1994, p. 66).

Este é, pois, o conteúdo do capitalismo tardio. A despeito de todoo progresso no domínio da técnica e do crescimento da produção,“...a atual sociedade revela aspectos estáticos”. Eles fazem partedas relações de produção: aqui não há progresso desde que o capi-talismo existe. Relações de produção que “...não são apenas as depropriedade, mas também as de administração, abrangendo até o pa-pel do Estado como o capitalista total” (Adorno, 1994, p. 69). O resul-tado desse triunfo da lógica da produção e do consumo é a criação deuma aparência: “de que o interesse universal seria ainda o interessepelo status quo, e o ideal seria a plena ocupação e não o interesse emlibertar-se do trabalho heterônomo” (sic) (Adorno, 1994, p. 69).

Mas em que sentido estas relações de produção se estagnaram, adespeito de todo o progresso das forças produtivas? A reflexão ador-niana sobre esse ponto remete ao descolamento entre o interesseobjetivo e a espontaneidade subjetiva. Isso seria decorrente de doisfatores. De um lado a: “organização da sociedade impede, de ummodo automático ou planejado, pela indústria cultural e da consciên-

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cia e pelos monopólios de opinião, o conhecimento e a experiênciados mais ameaçadores eventos” (Adorno, 1994, p. 70). De outrolado e “muito além disso”, a socialização radical: “paralisa a simplescapacidade de imaginar concretamente o mundo de um modo diversode como ele dominadoramente se apresenta àqueles pelos quais ele éconstruído...” (Adorno, 1994, p. 70). Nessa circunstância, escreveAdorno: “...o estado de espírito fixado e manipulado torna-se tanto umpoder real – um poder de repressão – quanto outrora o oposto darepressão, o espírito livre, quis eliminá-lo” (Adorno, 1994, p. 70).

Com o apoio de Adorno, pode-se pensar que uma vida danificadaé aquela que se define a partir de uma determinada relação entre avida e a produção, uma relação que, de fato, é de sujeição da vida aoprocesso produtivo, isso que: “impõe de maneira humilhante a cadaum algo do isolamento e da solidão que somos tentados a considerarcomo objeto de nossa superior escolha” (Adorno, 1993, p.21). Numdos aforismos de “Minima Morália”, Adorno (1993) reflete sobre aseparação burguesa entre o trabalho e a vida privada e, nesta refle-xão, dá pistas para o entendimento dessa sujeição da vida à lógica daprodução e do consumo. Antes, afirma Adorno: “...olhava-se comdesconfiança e como um intruso sem modos quem perseguisse finsna esfera privada” (Adorno, 1993, p.07). Na “sociedade unidimensi-onal” (Marcuse, 1982) o que acontece é diferente, pois quando avida torna-se um apêndice do sistema produtivo, “...parece arrogan-te, estranho e deslocado quem se entrega a algo privado sem quenele se possa notar uma orientação para algum fim. É quase suspeitoquem nada ‘quer’: ninguém acredita que ele, sem se justificar com aexigência de uma contrapartida, possa ajudar alguém a abocanharsua parte...” (Adorno, 1993, p.07). É que na sociedade regida pelalógica da produção e do consumo, “A relação (...) entre a vida e aprodução (...) rebaixa realmente aquela a uma efêmera manifesta-ção desta” (Adorno, 1993, p.07). Assim: “As ordenações práticas davida, que se apresentam como se favorecessem ao homem, concor-rem, na economia do lucro, para atrofiar o que é humano” (Adorno,1993, p.34). Assim também, desde já, pode-se pensar na relação

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entre a hipostasia do trabalho e a vida danificada. A hipostasia dotrabalho se caracteriza, primeiro, pela separação entre meios e finsda atividade e, segundo, pela aquisição de autonomia da atividade emrelação aos seus fins. Por outro lado, o que danifica a vida é que“meios e fins se vêem confundidos”, ou melhor, a vida se reduz ameio de vida: seu telos torna-se o trabalho sem telos. É por forçadeste rebaixamento da vida à produção que visa o lucro que Adornofoi enfático: “não há mais vida” à medida que essa se tornou um“apêndice” do sistema produtivo, “sem autonomia e sem substânciaprópria”. É por isso também que Adorno afirmou que no capitalismotardio “...a vida transformou-se na ideologia de sua própria ausên-cia” (Adorno, 1993, p.166).

Assim é que se pode pensar na relação entre a vida danificada ea dissolução do sujeito individual, sua cristalização na condição demônada, sem poros pelos quais possam entrar ou sair alguma coisa:“na condição do antigo sujeito, historicamente condenado, que aindaé para si, mas não é mais em si” (Adorno, 1993, p.08). É por isso quese tem cada vez mais sociocracia: “Na sociedade individualista (...)a sociedade é essencialmente a substância do indivíduo” (Adorno,1993: 09). Esse é, pois, um dos paradoxos do capitalismo tardio quedesqualifica a vida: de um lado socialização sem limites, de outroatomização: “A atomização não está em progresso apenas entre osseres humanos, mas também no interior de cada indivíduo, entre asesferas de sua vida” (Adorno, 1993: 114). Isso remete para idéiasque já se faziam presentes nos textos sobre educação que Adornoproduziu na década de 1960. Em “Educação após Auschwitz” (Ador-no, 1995) o frankfurtiano define uma outra característica dessa vidadanificada no mundo administrado, a claustrofobia: “...um sentimen-to de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais soci-alizada, como uma rede densamente interconectada” (Adorno, 1995:122). A conseqüência dessa pressão civilizatória é inevitável e isso éconfirmado pela crescente violência que marca a vida nos grandescentros urbanos da contemporaneidade: “Quanto mais densa é a rede,mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que a sua densidade

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impede a saída. Isso aumenta a raiva contra a civilização. Esta setorna alvo de uma rebelião violenta e irracional” (Adorno, 1995: 122).

Essa coerção funcional tem suas conseqüências para a vida dosindivíduos: para o tempo de vida, para o tempo de realização de ex-periências e para o pensamento: “Nenhuma realização pode estarligada ao trabalho, que perderia assim sua modéstia funcional na to-talidade dos fins; nenhuma centelha da reflexão pode invadir as ho-ras de lazer, pois ela poderia saltar daí para a esfera do trabalho eincendiá-la” (Adorno, 1993: 14). Isso significa também a antecipa-ção de uma questão que voltaria a ser abordada em “Tempo livre”(1995), qual seja, a da diferenciação entre tempo ocupado pelo tra-balho e tempo condicionado pelo trabalho:

Enquanto em sua estrutura trabalho e divertimento se tor-

nam cada vez mais semelhantes, as pessoas passam a separá-

los de um modo cada vez mais rígido com invisíveis linhas de

demarcação. De ambos foram expulsos, na mesma propor-

ção, o prazer e o espírito. Lá como cá imperam a seriedade

sem humor e a pseudo-atividade (Adorno, 1993: 14).

Em “A ideologia da Sociedade Industrial”, Marcuse (1982) refe-re-se a essa vida tendo por base a idéia de satisfação de necessida-des falsas e verdadeiras. As necessidades falsas são “aquelas supe-rimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares ao reprimi-lo”. Nesse caso, quem poderia definir quais necessidades são falsasou verdadeiras é o próprio indivíduo: “isto é, quando eles estiveremlivres para dar a sua própria resposta” (Marcuse, 1982). Essas fal-sas necessidades são aquelas que “perpetuam a labuta, a agressivi-dade, a miséria e a injustiça” (Marcuse, 1982). Isso também seriauma vida falsa, pois o que sucede, com sua satisfação, não é a felici-dade, mas a euforia: uma “euforia na infelicidade”, diria Marcuse.Nesse sentido é que a produção e o consumo “reivindicam o indiví-duo inteiro”. O resultado disso não é: “o ajustamento, mas a mimese:uma identificação imediata do indivíduo com a sua sociedade...”

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(Marcuse, 1982: 31). Isso caracteriza uma pseudoindividuação: “...oenvolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livre-escolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização”(Adorno e Sinpson, 1994: 123).

Em “Tempo livre” e em “Sobre música popular” Adorno faz re-flexões que permitem uma crítica às teses do sociólogo do lazer Jo-ffre Dumazedier2 (1994), que identificam tempo de lazer com tempolivre. As questões postas por Adorno remetem para o conceito detempo livre, não no sentido formal, mas do telos do tempo livre etambém de seu conteúdo. O ponto de partida é o entendimento da-quilo que é o oposto de tempo livre, isto é, tempo não-livre, o que,para Adorno, é o tempo preenchido pelo trabalho, é o tempo da hete-ronomia. Tempo preenchido pelo trabalho tem dois sentidos: podeser tempo ocupado pelo trabalho ou tempo condicionado pelo traba-lho. Para Dumazedier (1994) – que não faz essa separação porquelhe falta o entendimento da indústria cultural – o fato social maisrelevante, já observado em 1962, era o crescimento do tempo nãoocupado pelo trabalho e seu conseqüente preenchimento por ativida-des de lazer voluntárias. O que Adorno pensa é que na sociedaderegida pela lógica da produção e do consumo o tempo livre é “acor-rentado ao seu oposto”, é condicionado pelo trabalho: “O tempo livrecontinua a ser o reflexo de um ritmo de produção imposto de modoheterônomo (sic) ao sujeito, ritmo que é mantido forçosamente mes-mo nas pausas cansadas” (Adorno, 1993: 154).

Essa é também a crítica que Horkheimer e Adorno (1985) fazemaos sociólogos que se preocupavam com as conseqüências que a per-da de apoio da religião, a dissolução da comunidade, a “diferenciaçãotécnica e social e a extrema especialização” provocavam, no sentidoda generalização de um “caos cultural”. Para os frankfurtianos essapreocupação dos sociólogos é refutada constantemente já que a indús-tria cultural “confere a tudo um ar de semelhança”. Isso é decisivopara se pensar na possibilidade de tempo livre na sociedade capitalista:“Numa época de integração social sem precedentes, fica difícil esta-belecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado

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pelas funções” (Adorno, 1995: 71). Isso significa que nas férias, nosfins de semana, nos feriados ou nas horas diárias não ocupadas dire-tamente pelo trabalho, “prolongam-se as formas de vida social orga-nizada segundo o regime do lucro”. É por isso também que, no temponão ocupado diretamente pelo trabalho, “se prolonga a não-liberdade,tão conhecida da maioria das pessoas não-livres como sua não-liber-dade em si mesma” (Adorno, 1995: 71). É isso também que permitepensar na idéia de um tempo livre danificado, que contribui na caracte-rização de uma vida danificada ou de uma falsa felicidade, de umafalsa sensação de liberdade: isso que se identifica com a euforia.

Em “Sobre música popular”, Adorno faz uma abordagem sobre otempo de lazer na vida das pessoas, especificamente sobre o tipo demúsica que se ouve nesse tempo em que o trabalho aparentementese ausenta. Essa reflexão é exemplar sobre a relação entre o traba-lho e a desqualificação da vida; sobre a coerção funcional e suasconseqüências para a não-liberdade do indivíduo. Nela, Adorno re-flete sobre o tipo de diversão que as pessoas praticam em seu temponão diretamente ocupado pelo trabalho: elas reforçam “simultanea-mente uma estrutura de distração e desatenção”. Esse, segundoAdorno, é o esquema de conduta do “caráter burguês”: “Por umlado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não co-meter disparates; (...) Por outro lado, deve o tempo livre, provavel-mente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar emnada o trabalho” (Adorno, 1995: 73).

É nesse sentido que o trabalho condiciona o que poderia restar detempo livre na vida das pessoas. A hipostasia do trabalho: “...é arazão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre. Por baixodo pano, porém são introduzidas, de contrabando, formas de com-portamento próprias do trabalho, o qual não dá folgas às pessoas”(Adorno, 1995: 73). Sobre essa vida danificada, Marx, ainda no sé-culo XIX, já havia escrito:

O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem

que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida afora as

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interrupções puramente físicas do sono, das refeições, etc.,

está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalis-

ta, é menos que uma besta de carga. É uma simples máqui-

na, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada,

para produzir riqueza alheia (Marx, 1988: 121).

Na era da indústria cultural, pelos veículos de comunicação demassa, “Os ouvintes são distraídos das exigências da realidade por‘distrações’ que tampouco exigem atenção” (Adorno e Sinpson, 1994:136). Mas que relação pode existir entre essa distração própria dolazer e a atenção necessária ao trabalho? Segundo Adorno, a distra-ção, na situação social em que ela se encontra, “está ligada ao atualmodo de produção, ao racionalizado e mecanizado processo de traba-lho a que as massas estão direta ou indiretamente sujeitas” (Adorno eSinpson, 1994: 136). Na origem desse condicionamento do lazer está apermanência extemporânea de um modo de produção que “engendratemores e ansiedades”: quanto ao desemprego e à perda de salário,medo da instabilidade, da banalização da violência ou da guerra. Comocontraponto, é importante que as pessoas disponham de um tempopara o relaxamento, para “aquilo que não envolva nenhum esforço deconcentração” (Adorno e Sinpson, 1994: 136). Isso também define oconteúdo de uma vida danificada: o tédio e a monotonia que já sefaziam presentes no tempo diretamente ocupado pelo trabalho agorainvadem também o pseudo tempo livre: “O tédio existe em função davida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho.Não teria que existir” (Adorno, 1995: 76). Isso também denuncia anão realização de uma promessa da sociedade burguesa, a individua-ção: “Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suasvidas, se não estivessem encerradas no sempre-igual, então não seentediariam” (Adorno, 1995: 76). O que determina o tédio é a falta deliberdade que impera no pseudo tempo livre: “Sempre que a condutano tempo livre é (...) determinada pelas próprias pessoas enquantoseres livres, é difícil que se instale o tédio; tampouco ali onde elasperseguem seu anseio de felicidade, ou onde a sua atividade no tempo

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livre é racional em si mesma, como algo em si pleno de sentido” (Adorno,1995: 76). Isso significa que o tédio tanto pressupõe quanto reforça aheteronomia, uma vez que ele emana de um outro sentimento, a impo-tência, justificada ou neurótica: “...tédio é o desespero objetivo. Mas,ao mesmo tempo, também a expressão de deformações que a consti-tuição global da sociedade produz nas pessoas” (Adorno, 1995: 76).

Assim, a ausência de conteúdo de uma vida danificada é definidapela falta de liberdade e de criatividade, pela realização de pseudo-atividades, pelo medo, pelo tédio e também pela monotonia. O quedefine uma vida monótona é a predisposição de se evitar esforço notempo não ocupado diretamente pelo trabalho e onde não há esforçoé que se instala a monotonia. O trabalho é uma atividade que sempredemandou dispêndio de energias físicas e mentais e, agora, em ambi-entes cada vez mais flexíveis e integrados e pressionados pelo enxu-gamento do número de postos, é também cada vez mais marcadopela tensão e pelo medo. É por isso que as pessoas buscam novida-des em seu tempo não ocupado diretamente pelo trabalho: “Comoum substitutivo, elas imploram por um estimulante. A música popularvem oferecê-lo. Os seus estímulos são respondidos com a inabilida-de de se investir esforços no sempre-idêntico. Isso significa maismonotonia” (Adorno e Sinpson, 1994: 137).

O que as pessoas querem nesse tempo é diversão: é por isso quenele torna-se impossível a realização de atividades ou de experiênci-as formativas. Isso caracteriza outro contraponto entre Dumazediere Adorno e também define outra característica da vida danificada nocapitalismo tardio, isto é, a ausência de experiências formativas notempo que na vida das pessoas seria o tempo livre e a preponderân-cia das pseudo-atividades, isso que resulta da falta de espontaneida-de e compromete a criatividade. Para o frankfurtiano:

Pseudo-atividades são ficções e paródias daquela produti-

vidade que a sociedade, por um lado, reclama incessante-

mente e, por outro lado, refreia e não quer muito dos indiví-

duos. Tempo livre produtivo só seria possível para pessoas

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emancipadas, não para aquelas que, sob a heteronomia,

tornaram-se heterônomas (sic) também para si próprias

(Adorno, 1995: 78).

É por isso que nesse tempo a arte é impossível: “Uma experiênciaplenamente concentrada e consciente de arte só é possível para aque-les cujas vidas não colocam um tal stress, não impõem tanta solicita-ção, a ponto de, em seu esforço livre, eles só quererem alívio simul-taneamente do tédio e do esforço” (Adorno e Sinpson, 1994: 136).No mundo administrado, onde as melhores energias são absorvidaspelo trabalho, é: “...inoportuno e insensato esperar ou exigir das pes-soas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que sedestruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa”(Adorno, 1995: 77).

Esse é o condicionamento que o trabalho exerce sobre o tempoque seria livre. No capitalismo tardio,

O tempo de lazer (...) serve apenas para repor a sua capaci-

dade de trabalho. É um meio ao invés de ser um fim. Nesse

sentido é que o lazer é uma fuga do trabalho e é isso que o

prejudica: ao mesmo tempo, é moldado segundo aquelas

atitudes psicológicas que o seu dia-a-dia no trabalho os

habitua de modo exclusivo. Música popular é, para as mas-

sas, como Domingo que se tem que trabalhar (Adorno e

Sinpson, 1994: 137).

É isso também que fornece pistas para o entendimento do queseria o trabalho numa sociedade emancipada ou numa sociedadeverdadeira, como diria Adorno:

Talvez a verdadeira sociedade se farte do desenvolvimento e

deixe, por pura liberdade, possibilidades sem utilizar, ao in-

vés de se precipitar, com uma louca compulsão, rumo a estrelas

distantes. Uma humanidade que não conheça mais a necessi-

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dade começará a compreender um pouco o caráter ilusório e

vão de todos os empreendimentos realizados até então para se

escapar da necessidade e que, com a riqueza, reproduziram a

necessidade numa escala ampliada (Adorno, 1993: 138).

Sobre isso, tanto Marx, nos “Manuscritos” de 1844, quanto ele eEngels na “Ideologia Alemã”, de 1845/46, fizeram diferentes reflexõese todas elas apontam a superação da propriedade privada e a aboliçãodo trabalho como condições do reencontro do homem consigo próprio,com a natureza e com a sociedade. Somente numa sociedade emanci-pada é possível uma vida emancipada, pois um “...ser só se consideraautônomo, quando é senhor de si mesmo, e só é senhor de si quandodeve a si mesmo seu modo de existência. Um homem que vive graçasa outro, se considera a si mesmo um ser dependente” (Marx, 1987:175). Na sociedade regida pela lógica da produção e do consumo, adivisão do trabalho orientada pelo mercado e a caracterização da tota-lidade social como algo exterior ao indivíduo faz com que cada umtenha uma “...esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe éimposta e da qual ele não pode fugir; ele é caçador, pescador, pastorou crítico, e deverá permanecer assim se não quiser perder seus meiosde sobrevivência...” (Marx e Engels, 2001: 28).

Na associação de indivíduos livres é a sociedade emancipada enão o mercado que regulamenta a produção geral. Com isso, emboracada indivíduo possa se “aperfeiçoar no ramo que lhe agradar” nãohaverá coerção no sentido de que cada um tenha uma esfera deatividade exclusiva. É isso que cria condições para que cada qualpossa organizar sua vida livremente, de forma a “...hoje fazer umacoisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cui-dar do gado ao anoitecer, fazer crítica após as refeições, a (...) bel-prazer, sem nunca (...) tornar caçador, pescador ou crítico” (Marx eEngels, 2001: 28). É somente neste estágio:

...que a manifestação da atividade individual livre coincide

com a vida material, o que corresponde à transformação

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dos indivíduos em indivíduos completos e ao despojamento

de todo o caráter imposto originariamente pela natureza; a

esse estágio correspondem a transformação do trabalho em

atividade livre e a transformação dos intercâmbios condi-

cionados existentes num intercâmbio dos indivíduos como

tais. Com a apropriação da totalidade das forças produti-

vas pelos indivíduos associados, a propriedade privada é

abolida (Marx e Engels, 2001: 84).

É isso também que permite tocar no problema da relação entre oindivíduo, a sociedade e a natureza. É a superação da propriedadeprivada e a abolição do trabalho que criam condições para umarelação de comunicação e de paz entre esses três sujeitos:

A essência humana da natureza não existe senão para o

homem social, pois apenas assim existe para ele como vín-

culo com o homem, como modo de existência sua para o

outro e modo de existência do outro para ele, como elemen-

to vital da efetividade humana; só assim existe como funda-

mento de seu próprio modo de existência humano. Só então

se converte para ele seu modo de existência natural em seu

modo de existência humano, e a natureza torna-se para ele

o homem. A sociedade é pois a plena unidade essencial do

homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natu-

reza, o naturalismo acabado do homem e o humanismo aca-

bado da natureza (Marx, 1987: 175).

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W.. 1993. Mínima Moralia – Reflexões a partir da vidadanificada. Tradutor: Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática._________. 1994. Capitalismo tardio ou sociedade industrial? In: COHN,Gabriel (Org.) Theodor Adorno. São Paulo: Editora Ática, 2ª ed., nº 54. Cole-ção Grandes Cientistas Sociais. p. 62-75

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_________. 1995. Tempo livre. In: ADORNO, Theodor W.. Palavras e Sinais

– modelos críticos 2. Tradutora: Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes._________. 1995. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, Theodor W..Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e terra. Tradutor: Wolfgang LeoMaar.ADORNO, Theodor W.. SINPSON G.. 1994. Sobre a música popular. In:Cohn, Gabriel (Org.) Theodor Adorno. São Paulo: Editora Ática, 2ª ed., nº 54.Coleção Grandes Cientistas Sociais. p. 115-146.DUMAZEDIER, Jofre. 1994. A revolução cultural do tempo livre. Traduto-res: Luiz Octávio de Lima Camargo & Marília Ansarah. São Paulo: SESC/Studio Nobel.HORKEIMER, Max. ADORNO, Theodor. 1985. A Indústria Cultural: O Escla-recimento como Mistificação das Massa. In: HORKHEIMER, Max, ADOR-NO, Theodor W.. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tra-dução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 19-52.MARCUSE, Herbert. 1982. A ideologia da sociedade industrial: o homem

unidimensional. Tradutor: Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar. 6ª edição.MARX, Karl. 1987. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de JoséCarlos Bruni et al. Lisboa: Edições 70.MARX, Karl. 2001. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de AlexMarins. São Paulo: Martin Claret.MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. 2001. A Ideologia Alemã. Tradutor: LuizCláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes.WEBER, Max. 1992. A ética protestante e o espirito do capitalismo. Tradu-tores: M Irene Q. F. Szmrecsányi & Tomás J. M. K. szmrecsányi. 7ª edição.São Paulo: Livraria Pioneira Editora.

NOTAS

1 Trata-se do texto de Benjamin Franklin, analisado por Max Weber no capítulodois de sua “Ética Protestante” e que caracteriza um retrato da cultura norte-americana, o espírito do capitalismo: “uma (...) confissão de fé do yankee”.2 Jofre Dumazedier é o sociólogo contemporâneo francês que estuda a pro-blemática do lazer na sociedade contemporânea.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE MITO EGLOBALIZAÇÃO

BATISTINA MARIA DE SOUSA CORGOZINHODoutora em Educação, membro do NRD do Mestrado em Educação,Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI e coordenadora do Centro

de Memória da FUNEDI/UEMGe-mail: [email protected]

Resumo: Definições de mito, conhe-cimento científico e mítico, mitosmodernos e análise sobre aspectosdos impactos do processo de globa-lização cultural sobre mitos tradicio-nais, que fazem parte da cultura bra-sileira. A situação de alguns mitostradicionais na atualidade e o proces-so de mitificação de determinadosobjetos ou situações significativasexistentes no cenário contemporâneobrasileiro.

Palavras-chaves: cultura; mito; glo-balização; ciência; atualidade.

Abstract: Myth definitions, scienti-fic and mythical knowledge, modernmyths and analysis on aspects of thecultural globalization process im-pacts on traditional myths, whichare part of the Brazilian culture. Thesituation of some traditional mythsin the present time and the transfor-ming process of determined existingobjects or significant situations inthe Brazilian contemporary scene,in myths.

Key-words: culture; myth; globali-zation process; science; the presenttime.

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Neste texto serão analisados alguns aspectos dos impactos doprocesso de globalização cultural sobre mitos tradicionais,que fazem parte da cultura brasileira. Inicialmente serão apre-

sentadas algumas definições de mito e a seguir alguns mitos serãosituados na atualidade, mas o cerne dessa reflexão é a mitificação dedeterminados objetos ou situações significativas existentes no cená-rio contemporâneo brasileiro. As leituras realizadas e a observaçãoda realidade estimularam os questionamentos que orientam a argu-mentação a seguir.

Ian Watt escreveu que o Oxford English Dictionary define mitocomo “uma narrativa puramente fictícia, envolvendo geralmente per-sonagens, ações ou acontecimentos sobrenaturais, e encarnando al-guma idéia popular relacionada com um fenômeno natural ou históri-co”. (WATT, 1997, p. 228).

GILES (1993, p. 104) explicou a expressão mito dizendo que eleapresenta uma história não científica do pensamento de um povo. Osmitos explicam, de forma antropomórfica e animista, fenômenos comoa criação do universo ou cosmogonia e sua estrutura ou cosmologia.Expressam a fonte e natureza dos fenômenos humanos e naturaiscomo o orgulho, a inveja, os eventos sociais significantes de um povo,sua consciência social e todas as coisas. Giles considera, ainda, queos mitos não são verdadeiros ou falsos e reforçam por ritos os costu-mes de um povo e suas relações sociais.

No dicionário mito é explicado como uma “narrativa fantasista deorigem popular, exposição doutrinária sob forma de relato alegórico(...) representação ideal do futuro” (MACHADO FILHO, 1977, p.727), ou ainda, “tradição que, sob forma alegórica, deixa entrever umfato natural, histórico ou filosófico. Exposição simbólica de um fato”.(DICIONÁRIO BRASILEIRO, 1989, p. 1.153). Os mitos são apre-sentados também como uma história de cunho sagrado, relatandoacontecimentos num tempo inicial e primordial, narrando como ascoisas começaram a existir. Todos os povos têm seus mitos de cria-ção do mundo e da humanidade, procurando explicar a vida passadae presente como os índios do Brasil, assim como o Gênesis, no Anti-

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go Testamento, com o mito da criação do Universo. As lendas, aocontrário, são definidas como estórias de conteúdo moral e muitasvezes se baseiam em fatos históricos. A expressão lenda vem dolatim legenda. Mitificar é transformar coisas ou acontecimentos emmitos por meio de uma narrativa simbólica.

Para o bacharel em matemática, Cláudio W. Abramo, a históriada humanidade, pode ser contada na forma da guerra entre o misti-cismo e a racionalidade. Para ele:

Todo o contingente de crenças mistificadoras constituem o

sucedâneo ao exercício da racionalidade, considerada o

único instrumento de que o ser humano dispõe para avaliar

os dados da realidade, montar estratégias para enfrentá-

los e exercer as ações correspondentes. Renunciar à racio-

nalidade equivale a desistir de pensar sobre o mundo e agir

de acordo (...) O misticismo é o mais clássico dos inimigos

da consciência. (ABRAMO, 2.001, p. 3)

A perspectiva comtiana opõe radicalmente o mito à razão, alémde inferiorizá-lo enquanto forma de explicação da realidade. O filó-sofo francês Comte, no séc. XIX, explicou a evolução da humanida-de a partir do que considerou a lei dos três estados:

... todas as ciências e o espírito humano como um todo desen-

volvem-se através de três fases distintas: a teológica, a meta-

física e a positiva”. (...) No estado teológico (...) a imagina-

ção desempenha papel de primeiro plano. Diante da diversi-

dade da natureza, o homem só consegue explicá-la mediante

a crença na intervenção de seres pessoais e sobrenaturais. O

mundo torna-se compreensível somente através das idéias

dos deuses e espíritos. (GIANNOTTI, 1978, p. IX, X)

Comte considerou que o espírito humano torna-se maduro à medi-da que supera as formas míticas e religiosas de compreensão do mun-

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do. (...) “O estado positivo caracteriza-se pela subordinação da imagina-ção e da argumentação à observação”. (GIANNOTTI, 1978, p. IX, X)

Entretanto, o procedimento científico não é o único existente e muitasvezes nem é capaz de explicar determinados acontecimentos. O cien-tificismo que exalta a ciência como a forma verdadeira e única deexplicar a realidade transformou-se em dos mais nocivos mitos na so-ciedade moderna, estimulando também a crença em seus desdobra-mentos: mitos do progresso, da objetividade e da neutralidade.

O significado dos mitos e sua relação com a explicação científicasão questões que estão presentes na sociedade contemporânea. Exis-tem outras formas de pensar a relação entre ciência e mito. “Exis-tem pontos de contato entre os objetivos míticos e os científicos. Oestudo da cosmologia quer saber sobre a origem do universo do mes-mo modo que os povos criam mitos para explicar-lhes a origem. Adiferença está no modo de obter essas informações. O mito, ao con-trário da ciência, utiliza seres sobrenaturais a quem atribui a funçãocriadora. O discurso científico não possui deuses ou heróis. Os mitose a verdade científica não são imutáveis, pois há uma busca constan-te de conhecimentos e descobertas”. (CÂMARA, 1987, p. 63-64)

O físico Marcelo Gleiser disse que a cosmologia atende a curiosi-dade humana de saber de onde viemos e para onde vamos. Sãoindagações permanentes que aparecem em todas as sociedades hu-manas. A cosmologia responde hoje às necessidades que os mitosatendiam anteriormente. Ele considera Albert Einstein como mem-bro do grupo moderno de criadores de mitos pela discussão que elelançou sobre o tempo e o espaço, tocando fundo nos anseios místicosdas pessoas. Daí considerar Einstein como um fenômeno semi-reli-gioso, de quase profeta. Os modelos científicos têm sempre equiva-lência entre os mitos da criação do universo. O modelo da grandeexplosão, o big bang, tem seu equivalente aos mitos religiosos. Paraele, a religião tem importância no processo criativo da cosmologia.Com outras metáforas, é como se estivéssemos “passeando com aciência em áreas já visitadas pela religião”. (GLEISER, 1994, p. 7-8).

Em relação ao Brasil, CHAUÍ (2000, p. 7-9) considera, que ex-

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perimentamos no cotidiano a presença de uma representação homo-gênea e mítica que os brasileiros possuem do país e si mesmos e nosfala da crença generalizada que o brasileiro possui de que o Brasil: 1.É “um dom de Deus e da Natureza”. 2. Tem um povo pacífico, or-deiro, generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor. 3. É umpaís sem preconceitos e que pratica a mestiçagem como padrão for-tificador da raça. 4. É um país acolhedor para todos os que neledesejam trabalhar. 5. É um país dos contrastes regionais destinadopor isso à pluralidade econômica e cultural. A força persuasiva des-sa representação aparece ao tentar resolver imaginariamente umatensão real e produz ao mesmo tempo uma contradição que é a detolerar milhões de crianças sem infância, a prática do apartheid soci-al e ter de si mesma a imagem positiva de uma sociedade fraterna.Para essa autora, essas representações têm a ver com o mito funda-dor do Brasil. Chauí está empregando a expressão “mito” no sentidoantropológico, significa “a solução imaginária para tensões, conflitose contradições que não encontram caminhos para serem resolvidosno nível da realidade”. A partir de meados do séc. XX , com a vitóriana copa do mundo, o tripé da imagem da excelência brasileira era ocafé, carnaval e futebol. A bandeira brasileira foi incorporada hege-monicamente às comemorações e as vitórias na copa do mundo sãoidentificadas com a ação do Estado, transformando-se numa festacívica. O verdeamarelismo foi elaborado ao longo do tempo pelaclasse dominante brasileira e sua construção coincide com a idéiade nação que foi ao mesmo tempo construída e que é cuidadosamen-te analisada por essa autora.

Por outro lado, a literatura também construiu seus mitos. Fausto éum personagem literário, inspirado em acontecimentos históricos; éum dos símbolos do individualismo moderno. Significa “afortunado”em latim e “punho” em alemão (WATT, 1997, p. 21,26).

Individualista impenitente, capaz de abrir seu próprio cami-

nho ...encarnação das forças novas que impulsionavam a mu-

dança ...” O mito do Fausto desponta no momento em que o

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cristianismo, no seu desenvolvimento, pensa ter polarizado

os mundos do humano e do sobrenatural em um conflito entre

o mal e o bem, conferindo à luta entre as duas partes uma

nova intensidade e um novo rigor. Isso inevitavelmente pro-

porcionou ao Diabo e sua hierarquia uma importância teo-

lógica e psicológica sem precedentes”. (WATT, 1997, p. 27)

O personagem Dom Quixote, em seu permanente conflito com omundo externo, fixou-se com uma:

Forma que reflete importantes valores e conflitos da nossa

moderna civilização ocidental ... Estamos assim em um mun-

do que perpetua suas próprias ilusões., tornando-as indes-

trutíveis por qualquer espécie de realidade... “investir con-

tra moinhos de vento” ... um empreendimento cuja total im-

praticabilidade deriva da disparidade ridícula entre certo

propósito criado pela imaginação de um indivíduo e a po-

derosa insensibilidade do seu objeto... o indivíduo não está

buscando qualquer vantagem; é inspirado por uma nobre

mas ilusória idéia de ajudar a humanidade. A distância entre

os desejos do indivíduo, de um lado, e a realidade, de outro,

não é decerto, uma exclusividade do Quixote; a confusão

dos desejos românticos com a verdade histórica é uma ten-

dência universal. Se o mundo atual vive em uma situação de

degenerescência, então é claro que temos de recuperar to-

dos os valores do passado. (WATT, 1997, p. 60, 75, 76, 77).

Dom Juan é um homem que quer tornar-se uma lenda em vida:

Ser amado é uma idéia tão distante dos pensamentos de

Dom Juan quanto a de amar... quando fala de morrer de

amor, isso significa apenas que a excitação de sua carne

exige alívio imediato. Nesse ponto, seu desejo difere pouco

do apetite sexual mais ou menos constante que se pode ob-

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servar como característico de um certo tipo de jovem de

classe alta, sem outra coisa para fazer... Dom Juan habita

um mundo no qual, como em quase todos os outros, a aceita-

ção dos códigos morais, sociais e religiosos é puro fingi-

mento... ambígua atitude do mundo secular, que publica-

mente condena, mas secretamente admira ... as vitórias do

fornicador amoral. (WATT , 1997, p. 107/110)

Robinson Crusoe é um personagem que vive um longo temposozinho em uma ilha deserta.

A história de Crusoe mostra como um homem comum, ao

ver-se completamente só, revela-se capaz de submeter a na-

tureza aos seus próprios objetivos materiais, triunfando as-

sim sobre o meio físico... racionalidade ecológica e traba-

lho econômico podem ser vistos como as bases morais que

sublinham o seu caráter... Assim como a razão é substância

e matéria-prima da matemática, assim também é possível a

todo homem, mediante a razão e o mais radical estabeleci-

mento dos fatos, dominar, com o correr do tempo, qualquer

arte mecânica...” embora não seja cem por cento o homo

economicus, Crusoe vive em função de um motivo econômi-

co, ou talvez seja mesmo governando por ele. Sua sensibili-

dade está conectada às coisas materiais; ele é metódico,

trabalhador, e sabe como fazer uma acurada avaliação dos

resultados... Robison Crusoe planta em nossa vida imagi-

nativa a noção de que o trabalho infatigável é algo capaz

de nos redimir... a idéia da dignidade do trabalho... é uma

obra em que não há lugar para a expressão do coletivo...

dedicada ao egocentrismo imune à crítica; uma obra sobre

alguém capaz de florescer magnificamente em uma ilha de-

serta. (WATT , 1997, p. 157, 158, 162, 171, 176)

WATT (1997, p. 228-240) distingue sete aspectos de interpreta-

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ção do mito: 1. O mito procura dar respostas às questões mais oumenos factuais ou racionais. 2. São projeções da realidade humana.Não podem ser interpretados de modo literal. Cassirer escreveu, “éum modo de estruturar simbolicamente o mundo”. 3. Significadossimbólicos do mito transferindo-os para processos análogos da vidainconsciente do ser humano, como visto por Freud e Jung. 4. Ênfasedada à sociedade: a função do mito seria manter e reforçar a solida-riedade social, como visto por Durkheim e Malinowski. 5. O mitotem função social e relaciona-se com o ritual como defendido porLord Raglan. 6. Mito e ritual são igualmente simbólicos e de seusconteúdos fazem parte declarações enigmáticas sobre as estruturassociais como defendido por Edmundo Leach. 7. Claude Lévi-Straussencontrou regularidades estruturais nas representações coletivas dassociedades primitivas. Para Schorer o mito é uma imagem capaz dedar rumo e sentido filosófico aos fatos da vida comum. Para IanWatt os quatro personagens analisados podem ser interpretados comorepresentações das origens e das transformações da atitude indivi-dualista moderna. Eles refletem a nova ênfase de sua época na pri-mazia social e política do indivíduo.

A ciência, mesmo com todo o poder de persuasão que possui,convive com outras formas de explicação da realidade, onde se pro-liferam constantemente novas crenças e mitos. Ela própria é perme-ada por novos ou antigos mitos e crenças que ao longo do tempoforam sendo re-fundados ou incorporados. Portanto, as nuances daexpressão “mito” permitem que seja abordado sem referir-se neces-sariamente às explicações sobre a criação do mundo, de forma me-nos abrangente.

(...) precisamos recuperar o mito, hoje, (...) Ele é a primeira

leitura do mundo, e o advento de outras abordagens do real

não retira do homem aquilo que constitui a raiz da sua

inteligibilidade. (...) Tudo o que pensamos e queremos se

situa inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressu-

postos míticos. (...) a função fabuladora persiste não só nos

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contos populares, no folclore, como também na vida diária

do homem ao proferir certas palavras ricas de ressonâncias

míticas: casa, lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade, morte, cuja

definição objetiva não esgota os significados subjacentes”.

(...) (ARANHA e MARTINS, 1993, p. 59)

Os meios de comunicação transformam pessoas e atividades emimagens exemplares, que no imaginário representam todos os tiposde anseios: sucesso, poder, liderança, sexualidade etc.

É a partir dessa perspectiva que está sendo situado o processo demitificação, que está ocorrendo na atualidade em relação a determina-das coisas ou situações criadas ou importadas por influência dos pro-cessos de globalização cultural: a televisão que atua, também, comouma fábrica de criação e morte de novos mitos para satisfazerem avoracidade da sociedade de consumo, os mitos culturais presentes naalimentação moderna como o “fast food e o hambúrguer”, que podemser também designados como a macdonização da alimentação.

Nesse mesmo sentido, podemos considerar como situações míti-cas o ideário construído coletivamente em torno de uma peça dovestuário contemporâneo representado pela “calça jeans” e a expor-tação da figura do “cowboy” norte americano. A calça jeans, ori-ginariamente uma vestimenta grosseira capaz de suportar os impac-tos do trabalho dos vaqueiros estado-unidenses, foi transformada emum verdadeiro “uniforme” da juventude roqueira, desde os anos ses-senta do séc. XX, se espalhando pelo mundo ocidental, numa veloci-dade compatível com o desenvolvimento dos meios de comunicaçãode massa. Transformou-se numa peça mítica rodeada por um imagi-nário atraente pela cor anil e detalhes modernos e criativos. Associ-ada sistematicamente à juventude tornou-se sinônimo de liberdade,como divulgado pelos meios de comunicação nos anos oitenta noBrasil; moldou comportamentos e hábitos culturais e atingiu um gla-mour que permite ser coroada como um dos principais ícones doprocesso de globalização cultural. A cada dia ela se transforma e aomesmo tempo permanece e hoje ganhou espaço até mesmo na alta

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costura, apesar de seu uso já ter sido denunciado como gerador deproblemas de saúde nos órgãos genitais, especialmente na mulher.

A mitificação também está presente na alimentação, que “estámais vinculada a fatores espirituais e tradicionais do que às necessi-dades fisiológicas” (FREITAS, 2006, p. 6) do ser humano. A Bíbliarelata que Adão e Eva foram condenados a sair do paraíso e ter queproduzir seus alimentos através do trabalho, por terem comido daárvore do conhecimento, representado pela maçã. Jesus Cristo disse“aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vidaeterna”. Todos os povos possuem mitos diversos em relação à ali-mentação, que os levam a preferir determinados alimentos e abomi-nar outros.

Entretanto, o que vamos enfatizar em relação à alimentação con-temporânea, difundida pelo processo de globalização cultural é a pre-sença dos enlatados, fast food, delivery etc. que cada vez mais pene-tram em nossos hábitos alimentares, atrelados ao modo de vida atualsedentário e estressante nos centros urbanos, menores, maiores ougigantescos. Com isso as receitas tradicionais, típicas de cada povovão se transformando, aos poucos, em modismos e hábitos excêntri-cos próprios para serem vendidos para turistas. É a espetaculariza-ção da comida, mas o comemorar continua. O sanduíche, ou maisespecificamente, o “Mac Donalds” transformou-se em outro mitoassociado à vida moderna marcada pela correria, falta de tempo eindividualismo.

A exportação para o Brasil da figura do “cowboy” norte america-no é um outro fenômeno que ganhou maior visibilidade a partir dosanos oitenta associado às influências da globalização cultural. A figu-ra do “jeca-tatu” com seu chapéu de caipira, cigarro de palha e botinafoi sendo esquecida, ao mesmo tempo em que foi disseminado pelamúsica e pelas exposições agro-pecuárias nos ambientes urbano/ru-rais do interior do Brasil o imaginário do “cowboy”: calça jeans aperta-da, botas, cinto extravagante, uma camisa de abotoar axadrezada comfranjas e o chapéu. É a moda country oferecendo produtos de altospreços, mas que, no entanto, não deixam de ser consumidos. Os

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espetáculos agro-pecuários atraem um significativo público, com umagrande presença de pessoas fantasiadas, para participarem como ex-pectadores da grande festa. O design atrativo do chapéu do “cow-boy” é bastante diferente do chapéu do caipira do interior brasileiro,figura existente hoje muito mais no imaginário do que na realidade. Ocostume dos homens urbanos usarem chapéu foi sendo esquecido noBrasil desde os anos sessenta e a juventude incorporou o uso do boné.

Sem maiores preocupações conceituais, vamos pensar como es-tão vivendo, hoje, sob o impacto dos processos de globalização cultu-ral, alguns seres imaginários, que ainda povoam os ambientes tradici-onais, mas que são ressuscitados pela mídia, de forma ressignificadana moderna vida urbana como produtos de consumo: o lobisomem, a“mula sem cabeça”, o “saci Pererê”, o “bicho papão”, a “luz dachapada”. Este último ainda não foi descoberto pela mídia.

Criaturas aterrorizantes como “a luz da chapada”: a bola de fogoque vagueia pelos caminhos e matos de nossa região centro-oestemineira e que pode, de repente, acompanhar ou surgir à frente de umtranseunte. Esse é um mito muito disseminado na área rural, semprelembrado nos “causos” contados pelos adultos que juram ter passa-do por essa experiência ou dela ter ficado sabendo com segurança.A noite, com suas sombras, oferece perigos para quem está sozinhoe a possibilidade da presença da bola de fogo e queimaduras funcio-nam como um antídoto, estimulando reações imaginárias prontas paraserem executadas no momento necessário.

O lobisomem, metade homem metade lobo, é um ser imaginárioque veio de países europeus. Esse imaginário se espalhou pelo inte-rior do Brasil e considera que ele aparece em noites de lua cheia,procurando sangue e matando tudo que encontra pelo caminho, cri-anças, mulheres, homens. Não tem o charme e sedução do vampiro,mas é o mais aterrorizante de todos os seres imaginários da culturapopular brasileira.

Esse é o lobisomem, um ser metade homem, metade lobo,

capaz de assustar homens, mulheres, e crianças e campeão

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de uma eleição realizada pelo Instituto Cultural Aletria,

especializado na arte de contar histórias. Os votos dos in-

ternautas não deixaram dúvidas: (site WWW.aletria.com.br)

ele é a criatura mais assustadora das histórias infantis e da

cultura popular em 2007. (Hoje em Dia, 25/02/2007, Ca-

derno Programinha, p. 4-7)

O lobo mau também aparece em nosso imaginário seduzindo vo-vós e crianças, salvas pela valentia do “homem caçador”, protetor eprovedor da família. Ele só não devora a “mamãe”, talvez porque elajá esteja sob seu controle. O “bicho Papão”, o “homem do saco” e opoliticamente incorreto “boi-da-cara-preta” também enriquecem nossouniverso de seres imaginários, alguns deles utilizados pela mídia eoutros caindo no esquecimento.

A “mula-sem-cabeça” é uma mulher que foi amaldiçoada por terse envolvido amorosamente com um padre, aparecendo em noitesde lua cheia, nas quintas ou sextas-feiras em alguma encruzilhada,onde ataca sua vítima, chupa seus olhos, dentes e unhas. Sua cabeçaé uma tocha de fogo, seus cascos são ferros, seu coice é violento,além de relinchar chorosamente. É essa mulher endoidecida pelopecado, que resultaria do relacionamento amoroso com um padre,impedido pelo voto de castidade, ou por comodidade, de se envolvercom alguém e constituir família. Esse mito quis controlar, nem sem-pre de modo eficaz, o comportamento de mulheres e padres no am-biente religioso. Considerando os fortes estímulos ao individualismoe ao sexo na sociedade contemporânea, talvez estejamos precisan-do, hoje, de um mito mais persuasivo, capaz de inibir ações libidino-sas de religiosos com crianças e adolescentes, como tem sido denun-ciado pelos meios de comunicação ou a revogação da exigência dacastidade, pela Igreja católica.

Já o Saci Pererê foi contemplado com um aumento de seu statusao receber, na atualidade, a responsabilidade de ser o duende-guar-dião-protetor da cultura popular, frente ao avanço das bruxas esta-do-unidenses.

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Com o objetivo de diminuir a influência da comemoração

do Halloween (...) e, ao mesmo tempo, valorizar o folclore

nacional, foi criado no Brasil, desde 2005, o Dia do Saci

comemorado, também em 31 de outubro.(...) duende prote-

tor de nossas matas. Criado pelos indígenas, a princípio

era um curumim perneta, de cabelos avermelhados, encan-

tador de crianças e adultos. Em contato com o elemento

africano e a superstição dos brancos, recebeu o cognome

de Taperê, estendendo-se para Pererê Sá Pereira e tornou-

se negro. Depois disso, ganhou um gorro vermelho e um

cachimbo na boca”. (Hoje em Dia, 25/02/2007, Caderno

Programinha, p. 7)

A comemoração do dia das bruxas ou Halloween, importada emdecorrência do processo de globalização cultural, ocorre no dia 31 deoutubro. Na última década, essa festa passou a ser realizada, cadavez mais, em clubes e escolas brasileiras. Os adultos se fantasiam,as crianças se transformam em bruxinhas-boas e graciosas e aindapersiste em nosso imaginário a dona-de-casa, feiticeira-Samantha,veiculada pela televisão nos anos setenta do séc. XX, com seus po-deres extraordinários e divertidos.

Não será uma tarefa fácil para o Saci-Pererê, pois o mercadofinanceiro já transformou o “dia das bruxas” em uma mercadoriasedutora e fácil de ser comercializada. O “dia do Saci” foi criadopara valorizar a cultura popular brasileira, entretanto, sua permanên-cia nesse posto vai depender, infelizmente, da capacidade e desejodo mercado em transformá-lo em uma mercadoria rentável. Umimpedimento é o fato de sua figura ser associada ao uso do cachim-bo. Em alguns lugares o saci se apresenta como um demônio rural,com personalidade de um menino travesso, que não faz grandesmaldades, mas é matreiro, gosta de enganar e atormentar as pessoase animais com procedimentos ingênuos. Quem for esperto pode cap-turá-lo e assim realizar algum desejo.

Não resta dúvida que é necessário dar ênfase à cultura brasileira,

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frente à importação de mitos desvinculados de nossas raízes, mas asestratégias para isso terão que ser muito criativas para garantir; aoSaci-Pererê, a posição de guardião da cultura popular. As bruxasamedrontam, mas foram transformadas pela mídia em mercadoriasfacilmente vendidas mostrando seu poder de transformação em boase más e sua alquimia.

Apesar de sua diversidade, todas essas criaturas simbolizam peri-gos reais que ao longo da vida todos nós estamos sujeitos a enfren-tar. Estimulam nossa criatividade e, ao mesmo tempo, o instinto desobrevivência ao produzir um medo saudável em nossa mente. Des-sa forma, nos protegem contra os perigos, na medida em que funci-onam como vacinas. São “estórias” que fazem parte de tradiçõesliterárias e artísticas locais e preservar essa memória coletiva, popu-lar oral e estudá-la é um caminho que permite conhecer melhor aprópria sociedade.

As novelas veiculadas pela televisão têm um grande poder depersuasão e de aglutinação dos mais diferentes segmentos sociaisem torno de suas histórias. No entanto, elas têm geralmente umamesma estrutura que é o arquétipo da luta entre o bem e o mal, comodois pólos bem distintos e puros, senão não conseguem a audiêncianecessária do ponto de vista do mercado. Caracterizar o lado dobem e o lado do mal como separados e absolutos em si mesmos étambém uma forma mitificadora de expressar a dinâmica das rela-ções interpessoais, pois o bem e o mal estão juntos e interelaciona-dos e não separados nos indivíduos reais.

Podemos também encarar como situações mitificadoras os rituaisdos encontros para comemoração de datas ou acontecimentos, bemcomo a adesão a partidos políticos ou ideologias. “(...) o homem semove em direção a um valor que o apaixona e que só posteriormentebusca explicitar pela razão. Mito e razão se complementam mutua-mente”. (ARANHA & MARTINS, 1993, p. 59)

Na atualidade, o mito da felicidade contaminou toda a sociedade.Como analisou CERTEAU: “Uma sociedade inteira aprende que afelicidade não se identifica com o desenvolvimento. Ela o confessa,

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ao atribuir um lugar cada vez maior aos lazeres (...) cultivando osonho das férias ou das aposentadorias. (...)” (CERTEAU, 1995, p.42). Por outro lado, a indústria do turismo, com muita eficiência sabeexplorar esse mito da busca da felicidade, transformando o turista noherói contemporâneo, desenraizado e transnacional. Isso é bastantediferente da busca pela felicidade, que orientou a procura pelo santograal no medievalismo.

CERTEAU critica a ficção que é oferecida ao olhar mostrando oser humano como participante de uma história ausente, daquilo que“não se faz”.

O imaginário está no “ver”. (...) O tédio do trabalho ou a

impossibilidade de fazer tem como compensação o acrésci-

mo daquilo que se vê fazer. (...) As mitologias revelam aqui-

lo que não se ousa mais acreditar e que por isso se busca

“em imagem, e muitas vezes aquilo que somente a ficção

oferece. (CERTEAU, 1995, p. 42-44).

Os mitos não desapareceram perante a racionalização:

Exibem em catálogos de imagens os sonhos e a repressão de

uma sociedade” e invadem a publicidade. Colocados no jar-

dim fechado do cartaz, os frutos da felicidade estão ao alcan-

ce das mãos. O discurso imaginário do comércio ocupa os

muros e “a cidade contemporânea torna-se um labirinto de

imagens (...) com o repertório das suas felicidades próximas.

(...) uma festa dos sentidos. (CERTEAU,1995, p. 45-47)

Esse é o texto da felicidade escrito pelas mídias e dado ao serhumano contemporâneo pelo olhar. Contraditoriamente, ao mesmotempo em que os usos e costumes da vida moderna prometem pra-zeres, também desencadeiam enfermidades e o ser humano não quero sofrimento e, na atualidade, tem a crença de que a ciência vaiconseguir remediar tudo garantindo o estado de felicidade.

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Esta reflexão não contém propriamente uma conclusão a respeitodo que foi abordado. Apenas a constatação de que analisar elemen-tos da realidade sócio-cultural e individual, através de uma perspec-tiva mítica, pode nos ajudar a entender melhor as estruturas da soci-edade contemporânea e as influências dos processos de globalizaçãocultural. O mito possui mão dupla, ao mesmo tempo em que simboli-za a realidade humana, esta por sua vez, pode ser melhor entendidase for compreendida através de categorias míticas.

REFERÊNCIAS

ABRAMO, Cláudio Weber. In: Caderno Mais. Folha de São Paulo. SãoPaulo, 7 jan.2001ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Filo-sofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.CÂMARA, Airton Lima. HUMANIDADES. n.14, ano IV, Brasília, Edit. daUnB, 1987.CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas/SP : Papirus, 1995.CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo:Ed. Fundação Perseu Abramo, 2000.DICIONÁRIO BRASILEIRO da Língua Portuguesa. Encyclopaedia Britan-nica do Brasil. 11ª ed. São Paulo: Cia. Melhoramentos, 1989.FREITAS, Jonas Lopes. Mitos culturais e aspectos contemporâneos naalimentação da família. In: Jornal Agora, 03/09/2006, Caderno Cultura e Cia.GIANNOTTI, José Arthur. (Consultoria) Comte (1798-1857) Vida e obra.. In:Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.GILES, Thomas Ransom. Dicionário de Filosofia: termos e filósofos. SãoPaulo: EPU, 1993.GLEISER, Marcelo. In: VEJA, São Paulo, 14 dez. 1994.HOJE EM DIA, Belo Horizonte, domingo, 25/02/2007. Caderno Programinha.MACHADO FILHO, Aires da Mata. Novíssimo dicionário ilustrado uru-pês. São Paulo: Ed. AGE, 1977.WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno. Jorge Zahar Editor: Rio deJaneiro, 1997.

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HOJE, AGORA E...TRANSDISCIPLINARIDADE

E MODERNIDADE?

CRISTINA SILVA GONTIJOProfessora do curso de Psicologia da FUNEDI/UEMG, mestre em

Educação pela UNISAL e integrante do Ponto de Cultura de DivinópolisE-mail: [email protected]

Resumo: As temáticas da transdisci-plinaridade e a globalização podemser consideradas ponto de pauta. Otexto traz em questão a condição hu-mana, processos de subjetivação erelações sociais. A perspectiva daPsicologia Social e Sociohistórica sãoreferências que orientam as afirma-ções declaradas e trazem um pulsaremergente que poderá ser socializa-do e buscado como uma forma pos-sível da práxis.

Palavras-chave: construção; dialéti-ca; cenário.

Abstract: The themes of Transdisci-pline and Globalization may be con-sidered the point of view. The textquestions the human condition, theprocesses of subjectivities and soci-al relations. The perspectives of So-cial and Social-Historic Psycholo-gy are the references which supportthe statements and bring an emer-gent topic that may be socializedand researched as possible form ofpraxis.

Key-words: construction; dialetics;scenary.

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Introdução

Aabertura do texto não é inusitada. Talvez você, leitor, possaestar cansado de escutar a publicidade de venda de carros.Vamos a uma delas. Trata-se de uma conversa entre dois

homens que estão na rua e um deles comenta que, à frente, a políciaestá fazendo blitz e que ele está sem carteira de motorista. O outrodiz para ele se acalmar, pois nem de carro eles estão. O primeiro,então, faz um comentário de alívio. Isso dá o que pensar.

Será que nos encontramos assim?A proposta de discussão neste texto constitui-se a partir de funda-

mentos em afirmativas de vários autores, de diversas áreas do conhe-cimento, que podemos resumir em um consenso; o de que sem ruptu-ras nas relações sociais sob o controle do sistema capitalista não hápossibilidade de mudança profunda nos segmentos da sociedade.

Um aspecto necessário para tal situação a ser vivida por nósexige a superação da lógica desumanizadora do capital. Além dasidéias, comecemos a ser governados por realizações, pela concretu-de das relações, nos laços sociais.

Modernidade e pós-modernidadeProponho a reflexão da temática a partir do livro de Pereira (2001).

O termo globalização refere-se ao processo pelo qual a vida, emsociedade e cultural, nos diversos países, é cada vez mais afetadapor influências internacionais nas questões políticas e econômicas.Desenvolve-se uma espécie de mercado financeiro mundial e cons-tatam-se empresas transnacionais.

A perspectiva é cosmopolita, seres humanos que habitam grandescentros urbanos. Serão considerados aspectos da cidade, condiçõesde vidas das populações, bem como aspectos psicossociais, cultu-rais, educacionais, políticos, econômicos, do espaço e do tempo. As-sim, temos contemplados os campos socioeconômico, político, religi-oso, estético, a arquitetura e urbanismo, comunicação, organizaçãodo trabalho e políticas públicas.

A Modernidade (século XVI – XVIII) tem influências do Ilumi-

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nismo (século XVII), quando o homem passa a se reconhecer, pre-dominantemente, como um ser autônomo, auto-suficiente e universale a se mover pela crença de que, por meio da razão, pode-se atuarsobre a natureza e a sociedade.

Por esse prisma, algumas referências são: mercadorias, razão,concepção dinâmica da realidade, ciência, liberdade, progresso e or-ganização social.

Partiu-se de um abandono do eixo centralizador das idéias religi-osas, dos costumes para a lei, da tradição para a norma. Rompe-secom a irracionalidade do mito, da religião e da superstição.

A partir de agora, regem os princípios da Revolução Francesa(1789): Fraternidade, considerada como Estado; Igualdade, conside-rada como Socialismo; Liberdade, considerada como Utopia.

Pereira (2001) afirma que a Fraternidade irrompeu-se na criaçãode países e guerras entre eles. A utopia da felicidade carrega o lema:livrai-nos do desconforto do existir. Isso aproxima-se da ideologia, ouseja, algo que possa encobrir a realidade, o que facilita a dominaçãode uma visão da realidade sobre outra.

O sentido da Modernidade é a universalidade, a liberdade, a abun-dância, a individualidade e a autonomia. E a sua base é a sociedadeurbana industrial.

A sensação geral, conforme Pereira explicita, pode ser assimmanifestada: “Abriram-se as portas do mundo para que este fosseconhecido e modificado” (2001, p. 23).

Em seguida, Pereira inclui o que ele denomina de xeques-matesna razão Iluminista. Comentarei o xeque-mate ocorrido no séculoXIX, quando temos situações que denunciam falhas no projeto daModernidade. São exemplos das situações a desigualdade social eeconômica, chegando-se à miséria. A economia do mercado apre-senta longa jornada de trabalho por baixos salários. Há tensão sociale concorrência entre estados capitalistas. A ciência está voltada pararesultados materiais e parece subjugar o ser humano.

A partir daí, instala-se a crise, e acompanhamos a chegada deuma nova nomenclatura: a Pós-Modernidade. O pós-moderno pro-

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põe ruptura com todos os problemas da Modernidade, mas sem aban-donar totalmente os seus princípios.

Como subitem, o breve século XX entra em cena, quando o capi-talismo revela sua natureza cruel, da exclusão social, concentraçãode renda e coisificação das relações humanas. Por sua vez, temos acrise do capitalismo e do socialismo, o desemprego em massa, den-tre outros fatos.

O capitalismo, nos anos 1960, mostra-se sob a forma de insatisfa-ção constante, soberania do consumidor, mistura de publicidade earte, persistência da elite como guia dos desejos da massa.

Nos anos 1970, o neoliberalismo é a marca da centralidade totalno mercado, privatização, da empresa estrangeira, do capital estran-geiro, enfim, da economia global. O neoliberalismo defende a absolu-ta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobrea economia.

No campo do saber, Pereira escreve que: “O moderno conseguetransformar os especialistas em seres sem inteligência e os hedonis-tas em apaixonados sem coração” (2001, p. 34). Adiante, ele cita olivro A estrutura das revoluções científicas, de Kuhn, que critica opositivismo, o evolucionismo e o determinismo na ciência e no co-nhecimento. Segundo o autor,

A crise pode ser ainda mais profunda. Assumindo o conceito

de paradigma em sentido mais amplo, como um determina-

do modo de pensar, de agir, capaz de explicar os dados

fundamentais desse momento e de permitir prospecções de

futuro, percebe-se que o paradigma criado no Ocidente a

partir da Modernidade entrou em crise (2001, p. 55).

Com a ciência moderna, decaiu o senso comum. O homem não émais ativo e participativo do cotidiano, deixa isso para os experts.Aqui, Pereira cita o sociólogo Boaventura de S. Santos, dizendo deum novo saber científico. Agora, podemos dizer de um novo campode forças.

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Um campo de forças é a educação popular, o trabalho comunitá-rio, que não pertence a uma única disciplina ou campo de saber. Éregido pelo desejo de resistir ao domínio do status quo. Movimentospopulares prezam pela mobilização de segmentos da sociedade, vi-sando à transformação social, a novas e originais formas de subjeti-vação. Predomina o trabalho com classes sociais menos favoreci-das. De acordo com Pereira, a educação popular

é toda ação coletiva – que visa à passagem da imobilidade

ou passividade à mobilidade organizativa e participativa.

Implica em defender os direitos ameaçados, em conseguir

os objetivos do coletivo, reeducar a sociedade com novos

valores, desfazendo os padrões hegemônicos, preconceitu-

osos e dominadores de uma determinada classe sobre outra

(2001, p. 61).

Alguns pontos desse paradigma podem ser ressaltados. São elesa alteridade, movimentos contra a opressão, diálogo, ética e demo-cracia no processo de construção de relações sociais, politização narelação educador e educando, estímulo à participação e mobilizaçãosocial, a história vista como construção do cotidiano, pelas pessoas,valorização da vida e produção conjunta do conhecimento. Nessestermos, “a cultura nesse contexto é entendida como trabalho produ-tivo do homem na transformação de um saber. É a natureza trans-formada e ressignificada” (PEREIRA, 2001, p. 65).

“É com essa pluralidade que cada um de nós é chamado a convi-ver” (PEREIRA, 201, p. 72). Por outro lado, “há vários tipos deopressão: gênero, étnica, ecológica, religiosa, política, habitacional,comunicacional, psíquica” (PEREIRA, 2001, p. 54).

A maior parte dos movimentos populares significativos estão vol-tados para a introdução da diferença. Na FUNEDI, via Departa-mento de Extensão, temos o Ponto de Cultura de Divinópolis, atual-mente vinculado ao Ministério da Cultura (MINC), pelo ProgramaCultura Viva, cujo objetivo geral é a formação de agentes culturais

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juvenis, acolhendo várias manifestações culturais a que eles estãoligados. Há uma crescente intenção nacional de reconhecer os mo-vimentos populares, o protagonismo de seus agentes e instigar a cons-trução de uma rede entre os vários pontos, com expansão a outrospaíses. Nesse aspecto, o transdisciplinar é o movimento vivo daspessoas com seus saberes e fazeres, expressos e coabitados com aalteridade.

Ainda com Pereira (2001), vemos os fundamentos do trabalhotransdisciplinar com movimentos populares. Ele questiona se os mo-vimentos populares tiveram baixa ao longo da Modernidade e comoestão eles hoje. A resposta é que estamos na era considerada dovazio. Se cairmos nessa falácia, nos perderemos. Se mirarmos como olhar transdisciplinar, podemos transformar o ser humano e suasrelações. Segundo Pereira, “a Educação Popular nunca poderá fun-cionar sem grandes esperanças e paixões, mesmo quando esses ide-ais são parcialmente derrotados e exatamente por isso, é possívelcontinuar lutando” (2001, p. 76).

Podemos conduzir o pensamento a algo que habita no subterfúgiodo discurso, que mesmo assim se explicita na voz julgadora de quenão temos mais futuro. Para que, então, criar a realidade? Deixe queassim se faça, ou seja, que se cumpra o destino. Esse é o pensamen-to do lugar comum.

Ao longo do texto, somos convidados ao incômodo e acrescente-se a isso uma importante pergunta que nos toca: como o expert serelaciona com a comunidade, em colaboração com o coletivo?

Por fim, muitos pensamentos pairam em nosso imaginário. O ime-diatismo não suporta a lentidão dos resultados.

A perspectiva sociohistóricaA perspectiva sociohistórica na Psicologia entende a experiência

humana como atividade realizada socialmente pelos homens, produ-zindo a sua existência. A atividade dos homens implica na produçãode idéias e representações sobre elas, as quais refletem sobre a vida,ou seja, nas ações e relações (GONÇALVES, 2001).

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As idéias, portanto, modificam as ações dos homens e as açõesdos homens, por sua vez, modificam as idéias. Trata-se da formadialética de visão da realidade.

A noção de sujeito na Modernidade afirma que o homem é um serindividual, racional e natural, bem como é um ser social, ativo e histó-rico. O fundamento metodológico dessa perspectiva aponta para abase da contradição e a concepção materialista de sujeito e objeto. Asuperação da dicotomia entre subjetividade e objetividade está pre-sente nesse método.

Com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, o indi-víduo é mais focado como um ser capaz de decidir ou escolher. Suaforma prioritária de apresentar-se na sociedade é como produtor e/ou consumidor de mercadorias. O liberalismo, com o ponto de vistaburguês, enfatiza a liberdade e igualdade do homem, tal como situa-da na Revolução Francesa, e ainda afirma que, apesar de ser igual, ohomem é um ser individual. E mais, que tal adversidade pode serresolvida pelo caminho da fraternidade.

Através da visão sociohistórica, podemos observar que as constru-ções sociais estão em um contexto historicamente demarcado, sãoproduções humanas. Na Psicologia, Vigotski inaugura essa visão.

A Psicologia Sociohistórica vai propor, então, a partir de

Vigotski, que se estudem os fenômenos psicológicos como

resultado de um processo de constituição social do indiví-

duo, em que o plano intersubjetivo, das relações, é contro-

vertido, no processo de desenvolvimento, em um plano in-

tra-subjetivo. Assim, a subjetividade é constituída através

de mediações sociais (GONÇALVES, 2001, p. 50).

Por sua vez, e ao nosso alcance, a linguagem faz esse papel demediação social. Também é ela que melhor representa a relaçãoentre objetividade e subjetividade. Na linguagem, está presente tantoo signo quanto a atribuição de significados e o próprio processo deapropriação do significado social.

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Algumas características do pós-moderno podem ser expostas. Opós-moderno declara a falência da Modernidade, em especial asversões liberal e marxista, cujas metanarrativas buscam explicaçõesúnicas para a diversidade. Pós constitui-se como a possibilidade deum novo tempo histórico, que somente nega o Moderno, não dialeti-camente (GONÇALVES, 2001). O Pós afirma que as idéias de pro-gresso e transformação da sociedade não cabem mais, assim comoprojetos coletivos totalizantes. Nem mesmo a consolidação da socie-dade tecnológica e a análise de caráter das especificidades. O Pósdeclara que existe um porém; que a racionalidade e a ciência nãosão as únicas referências, e que a linguagem vem predominando,mas de forma arbitrária, sem ligação com as situações reais. Com talpoder da linguagem, até o sujeito desaparece, especificamente como capital multinacional, cuja identidade das diferenças são naturaliza-das, e há uma declaração da invisibilidade de resistências coletivas.Fortalecem-se noções de imediato, efêmero e local, com uma obedi-ência máxima ao lucro e à acumulação e ao descompromisso comqualquer coisa que não seja a produção de mercadorias.

Há um novo tempo-espaço e nova consciência por se construírem.

Cenas, no cenárioNesse momento, evoco dois atos. O ato um consiste em uma

criança que conta um fato que escutou de seu pai. O pai e seu cole-ga, ambos fazendo serviço de ajudante de pedreiro em uma casa,viram a comida do cachorro, que continha bacon, e comentam amarca da ração e o preço da mesma, bem como o tamanho do paco-te. Estando com fome, comeram a tal comida do cachorro. Nessemomento, questiono à criança se ela comeria a ração, e a resposta éafirmativa, e acrescenta que deve ser muito gostosa e com bacon (...).

O ato dois apresenta dois fatos correlacionados. São duas cenaspróximas no tempo e no espaço. A primeira é a de um cachorro deraça cambaleando e machucado de tanto cair. Ele estava envenena-do por alguém que lhe deu o veneno. A segunda cena é a de umhomem de bicicleta que caiu e machucou o seu rosto. Ele levantou-

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se rapidamente e caiu novamente. Estava bêbado; embriaguez cau-sada pela bebida que ele próprio se deu.

Como nos posicionamos perante esses atos? Nos encontramospassivos, como quando assistimos à televisão? E, mesmo passivosquando assistimos à televisão, depois vamos repetir alguns atos que,muitas vezes, não correlacionamos como sistemas, ou seja, como umcontinuum.

A fim de conclusãoTantas coisas estão acontecendo, em várias partes do mundo, os

seres humanos revelando suas histórias, temos várias cenas e atos,cada vez mais disponibilizados pelos meios de comunicação. A partirda idéia de globalização pode-se argüir sobre a intenção de que hajauma globalização para os sentimentos, pensamentos, enfim, para ocotidiano. Por sua vez, temos o referencial teórico abordado comofoco para a práxis, cuja tarefa é nossa.

Nós somos seres transdisciplinares. Se o conhecimento não é,justifica-se ser ele um dos aspectos de nossa expressividade-repre-sentatividade.

Quanto à subjetividade, aprendi com a Psicologia que podemosnos surpreender, estranhando-nos, mais do que aos outros, que pode-mos nos re(encontrar), mesmo perguntando: sou eu?

Conforme relata uma mãe sobre o medo de um filho de seis anos,em que ele pergunta a ela: “Mamãe, é você mesmo?”

Escrever, ou melhor, ter o desejo de escrever, mas encontrar-seem dificuldade pode ser mais um dos sinais da Modernidade: avisibilidade.

Escrever, tornar-se visível, dar visibilidade a... Se passar pela co-missão que seleciona os textos, ótimo! No lançamento da Revista,melhor ainda. E depois? A escrita – e seu conteúdo, no contexto aquiabordado, consome-se, ou melhor, utilizando-se de um ditado popu-lar: não liga não, bom ou mal, logo passa! Quantas vezes esse logopassa, adia-se! Do século XVI até hoje, na História que logo passa,podem ser feitos alguns apontamentos.

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REFERÊNCIAS

ANTÔNIO, Severino. Educação e Transdisciplinaridade: crise e reencan-

tamento da aprendizagem. Rio de Janeiro: Ed. Lucerna, 2002.BOCK, Ana M. Bahia; GONÇALVES, M. Graça M.; FURTADO, Odair (orgs.)Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. SãoPaulo: Ed. Cortez, 2001.Cadernos da Pós-Graduação. CONTEMPORANEUM. Ano 10. Nº 05 – outu-bro de 2006.Caderno de Estudos Acadêmicos. III Simpósio de Psicologia da UEMG. Osdesafios da Psicologia no século XXI. Nº 3 – agosto de 1998.GONTIJO, Cristina Silva. Vozes de autoria: o corpo e o nascimento da

escrita. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 2005.MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitem-po, 2005.PEREIRA, William César Castilho. Nas trilhas do trabalho comunitário e

social: teoria, método e prática. Belo Horizonte: Vozes – PUC Minas, 2001.

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OCIDENTE VERSUS ORIENTE, DEMOCRACIAVERSUS DESPOTISMO: HERÓDOTO NO

CINEMA CONTEMPORÂNEO

FLÁVIA LEMOS MOTA DE AZEVEDOProfessora do curso de História da FUNEDI/UEMG

E-mail: [email protected]

THIAGO EUSTÁQUIO DE ARAÚJOAluno do curso de Licenciatura em História da FUNEDI/UEMG

E-mail: [email protected]

Resumo: Podemos dizer que o filme“300,” um dos últimos sucessos debilheteria, foi mais um produto da“febre épica” que assola Hollywooddesde “Gladiador”. Este recuo a te-mas da Antiguidade, agora realiza-do pela industria cinematográfica,talvez se explique por uma necessi-dade da Ocidente contemporâneo dereencontrar suas bases formadoras,mesmo que isto se faça por meio da“fabrica de sonhos”. Uma incursãosobre o relato de Heródoto nos con-duz a “febre épica” de Hollywood,especialmente ao filme “300”, e ospossíveis sentidos desse grandio-so investimento em momentos fun-dadores da cultura ocidental. Passadespercebido aos olhos do públicoque por detrás do filme encontra-

mos o relato histórico de Heródoto.A ambição, a loucura e a incompre-ensão do déspota oriental, Xerxes,assim, como a bravura e a obstina-ção grega na defesa de sua liberda-de, do seu regime democrático, fo-ram descritas pelo ‘pai dahistória’.Tais pares são facilmentepercebidos na cena política interna-cional, principalmente nas guerrascontemporâneas em nome da liber-dade e democracia, contra ‘bárba-ros’ fundamentalistas e insanos, as-sim como na tentativa de levar a li-berdade aos povos e nações que adesconhecem por viverem sob ojugo de tais déspotas.

Palavras-chave: Heródoto; demo-cracia; cinema; representação.

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Abstract: We can say that “300”, thelast sensation in screens of world,was a production of “epical fever”who seized Hollywood since “Gla-diator”. This pull back to Antiquity,now consumate by movies, maybe beexplain by an ocidental coavel needto find again formation bases, eventhis happen in cinema´s dream. Apromenade by Herodotus conduceourselves to “epical fever” of Ho-llywood, especially to “300”, andthe possibles reasons of this loftyinvestiment on moments who cope-rated to western culture foundati-on. The crowd can´t see that behindthe movie hides Herodotu´s ac-

count. The ambition, the madnessand the incomprehension of orien-tal despot, Xerxes, as well as, theprowess and greek obstinacy in de-fense of liberty, of democracy wasdescribe by the “History Father´s”.These couples are clear note in po-litical modern scene, especially incoeval wars in name of democracyan liberty against insanes and radi-cals ‘barbarians’, just as, the try tocarry on to all people an nationsthe idea of liberty, for all who diso-wn it living under despot´s yoke.

Key-words: Herodotus; democracy;movies; representation.

Podemos dizer que o filme “300,” um dos últimos sucessos debilheteria, foi mais um produto da “febre épica” que assolaHollywood desde “Gladiador” e que gerou frutos como “Tróia”

e “Alexandre” para não citar os filmes de menor alcance. Este re-cuo a temas da Antiguidade, agora realizado pela industria cinemato-gráfica, talvez se explique pela própria carência de sentido que afligenossa sociedade pós-moderna e globalizada; uma necessidade doOcidente reencontrar suas bases formadoras, mesmo que isto sefaça por meio da “fabrica de sonhos”.

Esse reencontro do Ocidente com as suas bases se faz num con-texto político contemporâneo extremamente interessante, pois atual-mente a maior parte dos discursos políticos ocidentais evidenciam aproeminência da organização democrática, e a partir desta constata-ção posiciona-se como o grande arauto e defensor da civilidade mo-delar: a democracia deve ser implementada e garantida numa pers-pectiva global. Este paradigma ocidental, tão proclamado, naturaliza-se aos olhos dos seus cidadãos de forma que pouco se reflete sobrea sua historicidade, assim como sobre a sua real implementação,

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mesmo que nos circunscrevamos ao mundo ocidental. Afinal, nosperguntamos o que é isso que atualmente chamamos de democra-cia? Quando e como é auferida a esta idéia a solenidade de paradig-ma de civilidade global?

Primeiramente podemos destacar o significado da palavra de ori-gem grega onde demos denota povo e krátos, poder, isto é poder dopovo. No contexto cotidiano político dos cidadãos atuais assistimos atendência na ênfase no conteúdo de um ‘poder’ de decisão dos mes-mos sobre os destinos do seu país, e esse ‘poder’ efetiva-se no mo-mento das eleições, assim como salienta-se a igualdade de direitos eliberdade de expressão. Podemos dizer que são sobre esses três ele-mentos que se assentam as bases para a compreensão dos discursosdestinados ao grande público sobre a noção de democracia contem-porânea.

Christian Meier inicia seu livro La naissance du politique discu-tindo exatamente a diferença existente entre a atual aplicação dessetermo e seu significado para os gregos. O termo política designavaali tudo que dizia respeito aos negócios da pólis, o que segundo Chris-tian Meier “era idêntico à comunidade cívica, fundada e constituídapor todo o corpo político” (MEIER, 1995, p. 13). Ou seja, referia-seao que era comum, ao que concernia a todos os cidadãos. Assimsendo, o político pode ser, primeiramente, visto pela oposição entre opúblico e o privado. As reflexões de Hannah Arendt esclarecem essadistinção. Para entender a distância entre as duas esferas, para osgregos, deve-se considerar que, de acordo com a filósofa, o ambien-te familiar era o da necessidade, ligada ao suprimento das demandasbiológicas, ao passo que a vida pública era o espaço da liberdade.Isso era tão claro que “os filósofos gregos tinham como certo, pormais que se opusessem à vida na pólis, que a liberdade situa-seexclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordial-mente um fenômeno pré-político, característico da organização dolar privado”.(ARENDT, 2000, p.40).

A política ocupava, assim, na Grécia uma posição central, poisestabelecia entre os cidadãos um vínculo superior aos laços familia-

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res. Nesse tipo de vínculo, os membros da comunidade cívica entra-vam como pares, pois na cidade inexistiam, em princípio, governan-tes e governados. Nas palavras de Christian Meier “nesta ordemartificialmente criada, relações totalmente diferentes são obtidas pe-los seus membros: todos têm direitos iguais, e a maioria dos cidadãospossui a autoridade suprema” (MEIER, 1995, p.40). Mas, um cida-dão só era verdadeiramente digno de ser chamado assim na medidaem que participava ativamente da vida da pólis, e é nesse homempolítico que se concretizam as mais elevadas qualidades morais.

Assim, o termo democracia designava uma realidade completa-mente diferente das até então experimentadas por outros povos, eaté mesmo pelos gregos. A radical inovação grega da democraciaresidia no fato de que, na sua organização, “a política é, por outrolado, o único lugar em que se decide o poder: o que define a pólis éque, contrariamente à tribo ou às grandes monarquias, contrariamenteà comunidade familiar, ali ninguém possui a priori o poder” (MEIER,1995, p.20). A palavra política – tà politiká – além de se referir aessa experiência radicalmente diferente, designava uma constituiçãojusta. Quer dizer que, além de indicar um tipo de experiência de vidaem comunidade, também a identificava com um modelo eqüitativo.

A partir dessas considerações sobre a democracia na Grécia po-demos ver como a nossa experiência atual é radicalmente diferente,mesmo que sob o mesmo nome. Primeiramente devemos destacarque para os gregos a dignidade residia na participação ativa nas de-cisões sobre o destino da comunidade, e que só assim poderiam serverdadeiramente cidadãos. Hoje, cada vez mais assistimos a um de-sencantamento da política, isto é a política é uma esfera cada vezmais distante e desinteressante aos olhos do cidadão comum. Este,na maior parte do tempo, só sofre a ação política, não participa dosdebates e das decisões das medidas, estas estão sempre fora do seuâmbito de ação, principalmente pelo hiato estabelecido entre aquelesque elegem e os que são eleitos, isto é entre os governados e osgovernantes. Em segundo lugar devemos destacar que a ‘sensação’de liberdade hoje faz, cada vez mais, parte do mundo privado e não

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do público. Este último é percebido pelos cidadãos como o reino daimposição, e conseqüentemente pela esfera da necessidade.

A democracia, enquanto paradigma de civilidade, é uma experi-ência recente, característica da segunda metade do século XX, istoconsiderando que estamos lidando com a noção de democracia aqual enfatiza a universalidade de cidadania, igualdade de direitos e aliberdade de expressão. Já quanto a sua difusão no imaginário oci-dental faz parte do contexto da Guerra Fria, isto é uma divulgação dasuperioridade da experiência ocidental, capitalista e liberal em oposi-ção ao mundo oriental, socialista e autoritário. No entanto, após aqueda do Muro de Berlim esse binômio perde seu sentido.

No final do século XX e início do XXI novos atores entram emcena. Podemos dizer que a Guerra do Golfo de 1991 e, dez anosmais tarde, os ataques terroristas de setembro de 2001 estabelecemos novos inimigos da democracia global: os fundamentalistas e terro-ristas que agem sob a bandeira islâmica, são estes os novos ‘bárba-ros’ do século XXI. Inaugura-se, então, a representação e o imagi-nário contemporâneo desses novos personagens hostis à democra-cia, incapazes de compreender a experiência admirável da liberdadee do bem comum. Novamente o ‘mundo’ se vê envolvido numa cru-zada contras os bárbaros, contudo é importante frisar que essa expe-riência não é nova, mesmo em relação aos muçulmanos, podemosdestacar as Guerras empreendidas contra esses infiéis durante a IdadeMédia.

Na verdade podemos novamente recorrer à Grécia antiga ondeencontramos o mais antigo relato histórico ocidental, pelo menos co-nhecido, sobre essa velha oposição entre Ocidente e Oriente. Aque-le elaborado no século V a.C. pelo historiador grego, Heródoto deHalicarnassos. As investigações que resultaram na composição desua História foram motivadas pelo principal evento histórico do sé-culo V a.C.: as Guerras Médicas. Estamos falando da primeira pele-ja histórica, registrada, entre Ocidente e Oriente, fundamental tantopara a formação de uma identidade cultural grega quanto ocidental.Este conflito que indispôs gregos e persas imprimiu profundas mar-

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cas na memória helênica, sendo a origem de posteriores e significa-tivas transformações no mundo grego. Foi, por exemplo, a partir dasGuerras Médicas que Atenas firmou sua soberania, tornando-se areferência artística, cultural e intelectual do Mediterrâneo.

Para além de um simples enredo bélico, de um embate entre lan-ças e flechas, a História de Heródoto põe em evidência as diferen-ças que marcam a cultura grega em oposição ao universo oriental.Na medida em que Heródoto criou para seus compatriotas uma re-presentação do “outro” do “bárbaro”, não deixa de confrontar duasculturas e ao mesmo tempo duas concepções políticas divergentes, ea questão do poder é o elemento que estrutura e perpassa toda anarrativa de Heródoto. A problemática do poder político atravessatoda a narrativa herodotiana e fornece a conexão entre as suas di-versas partes. Como o centro do interesse da investigação foi a gran-diosa guerra travada entre o império persa e as cidades da Hélade, orelato do historiador opõe duas formas de poder: o despotismo mo-nárquico, característico do mundo bárbaro, e o regime isonômico dapólis, baseado na justiça e na lei. A descrição dessas formas, efetu-ada ao longo da narrativa, assenta na concepção grega de ordemuniversal (kósmos) e da condição humana. Os princípios que gover-nam essas duas ordens, assim como as relações entre ambas, cons-tituem ou fornecem os elementos da causalidade pela qual Heródotobuscou compreender os eventos da guerra. Como se trata de cate-gorias e princípios de uma visão global de mundo, compartilhada pe-los gregos da época, podemos reconhecê-los em outras criações cultu-rais helênicas contemporâneas, especialmente na poesia trágica.

Todas as modificações pelas quais o mundo grego passava não serestringiam às formas de pensar. Estas correlacionavam-se às trans-formações estruturais pelas quais passava a pólis grega. Foi na pri-meira metade do século V que Atenas se tornou hegemônica naHélade e a democracia ateniense atingiu seu apogeu. Saiu do confli-to com a Pérsia engrandecida, pois partiu dela a iniciativa da uniãodos gregos em prol da defesa contra os bárbaros. Com o fim daguerra, a pólis dos atenienses emergiu como a grande vitoriosa. A

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política ateniense, então, mostrou, mais do que em qualquer outromomento, a vocação dessa cidade para liderar o mundo grego.

Heródoto estabelece como objetivo do seu relato o registro dosgrandes e maravilhosos feitos dos gregos e bárbaros, para que essesnão se perdessem na memória. Contudo, deve-se ressaltar que entreessas ‘maravilhosas empresas’ a que ele se refere, acham-se inclu-ídos não só os costumes dos vários povos envolvidos na expansãopersa, como também os grandes feitos durante o conflito. Seria, maisespecialmente o sistema político helênico, e em particular a demo-cracia ateniense, passível de se incluir nessa categoria das ‘empre-sas maravilhosas’? Seria a forma grega de organização também umafonte de espanto e admiração do autor? Nesse caso, o exótico, omaravilhoso e admirável residiriam no fato de os gregos terem seorganizado de uma forma completamente singular, estranha a todosos outros povos conhecidos. Assim, a descrição dos nómoi, que con-some tanto espaço na narrativa herodotiana, teria a função de real-çar essa singularidade helênica.

Por se apresentarem de uma forma completamente incomum éque os gregos confundiriam os persas com o seu comportamentonada usual. Xerxes, levando em conta apenas o seu conhecimentoda conduta do seu povo e dos outros que havia submetido, não pôdeacreditar que eles ousassem enfrentar seu invencível exército (He-ródoto, VII, 101). Não é de se admirar que o rei, advertido pelogrego Demárato, não conseguiu alcançar o significado de suas pala-vras: “não me perguntes quantos são para atreverem-se a agir as-sim; mesmo que sejam apenas mil eles lutarão contra ti” (Heródoto,VII, 102).

Essa incompreensão do comportamento alheio é dada como umdos motivos que levaram à derrota persa. Mas, também é possíveldizer que a vitória dos helenos, principalmente em Salamina, deveu-se à astúcia grega. Estando em enorme desvantagem numérica, oque os fez ter sucesso foi a estratégia ardilosa. Esta condiz muitobem com a capacidade grega de surpreender, de causar espanto e,até mesmo, de maravilhar os persas. A astúcia empregada na bata-

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lha de Salamina, e a dificuldade persa de compreender sua conduta,são tanto mais marcantes pelo fato de que os gregos, segundo infor-ma o próprio Heródoto, na verdade encontravam-se alarmados coma situação, sentindo-se mesmo à beira de um desastre. As coisas sóse inverteram devido ao ardil arquitetado por Temístocles, que enviouaos comandantes persas uma mensagem com o seguinte recado:

O comandante dos atenienses, movido por seus bons senti-

mentos para com a causa do Rei, e desejoso de ver triunfar

vossas armas em vez das armas dos helenos, mandou-me sem

ser visto pelos outros helenos para dizer-vos que os helenos,

amedrontados, pretendem pôr-se em fuga, e que tendes ago-

ra a oportunidade de realizar o mais belo feito de todos se

não os deixardes escapar. Eles não estão de acordo entre si

e não vos resistirão mais. (Heródoto, VIII, 75).

A credulidade persa diante dessa mensagem é espantosa, masconfirmada por Heródoto na continuação da narrativa e nos fatosque se seguiram. Os bárbaros mostram nesse episódio que realmen-te não tinham compreendido nada a respeito da conduta helênica.Nem sequer por um momento desconfiaram da falsidade da mensa-gem enviada, apesar de já estarem bem cientes da obstinação, daresistência dos adversários. Antes, mudaram toda a estratégia, deacordo com o que estes esperavam, ficando completamente vulne-ráveis em pleno mar Egeu. Sua incrível ingenuidade diante do estra-tagema helênico sugere que o relato de Heródoto deliberadamentedramatizou a confusão do soberano persa, a fim de realçar a singula-ridade dos gregos e os contrastes de comportamento entre os doispovos.

A mesma estranheza é notada com relação aos valores políticos.Xerxes afirma, de acordo com Heródoto, que não esperava valentiade um exército de homens livres, não comandados e conduzidos pelochicote de um senhor. Acostumado a lidar com súditos, julgava que oesforço guerreiro decorria menos da bravura dos soldados que do

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temor destes ao chefe. Foi incapaz de perceber que as razões dosgregos eram opostas. Eram bravos e valentes, justamente, por se-rem livres. E esse ponto fica claro no diálogo entre os Lacedemôniose Hidarnes, no qual os primeiros dizem ao comandante persa: “Co-nheces a sujeição, mas ainda não experimentastes a liberdade, e nãosabes se ela é doce ou não. Se a tivesses experimentado não nosaconselharias a lutar por ela apenas com lanças, mas até com ma-chado” (Heródoto, VII, 135).

É esse o espanto, o deslumbramento que causa a constituiçãopolítica grega. Os persas e os bárbaros em geral, para Heródoto, nãosabiam o significado da palavra liberdade, pois mesmo que seu terri-tório não se achasse sob o domínio de outro povo, estavam sempreem sujeição a seu monarca. Ao longo de toda a narrativa herodotia-na, a descrição dos nómoi dos vários povos bárbaros mostra quenenhum deles conhecia a liberdade desfrutada pelos gregos, pois to-dos possuíam uma constituição política monárquica ou tirânica, e,portanto, despótica. Em contraste, os helenos só se sentiam sujeitosà lei: “de fato, sendo livres, eles não são livres em tudo; eles têm umdéspota – a lei – mais respeitada pelos lacedemônios que tu por teussúditos” (Heódoto, VII, 104). Embora entre os gregos se encontras-sem casos de tirania ou de monarquia, a tirania sempre acabavaabolida e as realezas helênicas – por exemplo a espartana – possuíaum caráter diverso da monarquia bárbara, por serem os poderes dosreis limitados tanto pelas assembléias existentes quanto pelas leis.Quase todas estas, entretanto, foram abandonadas e substituídas porregimes mais livres e justos. Enfim, sendo os gregos o único caso depovo livre em toda a História, não é descabido pensar que a narra-tiva os apresenta como motivo de espanto, de admiração. Em vezdos bárbaros, seriam eles os exóticos.

Na perspectiva grega do século V a.c, o poder bárbaro conheceusua expressão na realeza, considerada, em conjunto com a tirania,uma forma despótica e irracional de poder. Segundo François Har-tog, o discurso sobre o despotismo desenvolveu paralelamente ao dademocracia na Grécia e Heródoto, por sua vez, contribuiu para a

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construção desta imagem carregada do despotes (soberano) enquantotransgressor das normas e tradições sociais. A ambição imperialistados monarcas e tiranos de Heródoto é representada na forma deuma loucura arrebatadora que compromete a capacidade de discer-nimento. Quando acometidos pela insanidade não conseguem maisprever as conseqüências de seus atos, muito menos reconhecer oslimites de sua condição humana. O que para o pensamento grego daépoca implicava em punição.

O despotes (soberano) se impõe pelo uso arbitrário da força;representado como um senhor de escravos, não hesita em fazer usodo açoite para inspirar a obediência. Seus exércitos são conduzidos àguerra sob o “estalar do chicote”, as tropas persas são comparadasaos bandos de animais gregários que seguem passivamente o condu-tor. Aquele se lança numa busca insensata e gratuita pelo poder quequase sempre termina num fim trágico. Uma vez afogado na próprialoucura, que por sua vez é conseqüência da cobiça pelo poder, nãoconsegue mais sair e por fim acaba arrastado a hybries (desmedida)e daí ao infortúnio.

O par monarquia-tirania encontra seu inverso na democracia,considerada o símbolo da justiça e do comedimento (sophrosyne);os gregos antigos reconheciam nas leis (nomoi) e somente nestas oúnico soberano inconteste. Hartog questiona se no lugar do rei osgregos não estariam colocando o nómos. “De modo algum” respon-de ele, pois “instaurar o nómos é expulsar o tirano. A lei não mutila,sendo mesmo a negação da transgressão, é sim aquilo que substitui ahybries pela medida” (HARTOG, 1999, p.336).

Na História assim como no filme “300”, o que move os gregos éo desejo irrestrito de liberdade, o que os faz entrar nas tirremes (na-vios) ou conduzi-los aos campos de batalha não é o constrangimentopor parte de um senhor, mas a ânsia de livrar a Hélade do jugo inde-coroso. Xerxes não compreende isto e subestima a coragem dosgregos; acredita não estarem à altura justamente por não possuíremum soberano capaz de conduzi-los, ou coagi-los, à vitória. Para He-ródoto a incompreensão dos persas foi, justamente, o motivo de sua

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perdição deixando-se enredar numa armadilha; a fragorosa derrotainfligida ao rei Xérxes por uma força numericamente inferior, adqui-re assim valor simbólico, punitivo.

Essa incursão sobre o relato Heródotiano nos conduz a “febreépica” de Hollywood, especialmente ao filme “300”, e os possíveissentidos desse grandioso investimento em momentos fundadores dacultura ocidental. Passa despercebido aos olhos do público, atordoa-do com a sobrecarga de efeitos especiais e com a transformação“bárbara” do ator Rodrigo Santoro, que por detrás do filme encon-tramos o relato histórico de Heródoto. A ambição, a loucura e a in-compreensão do déspota oriental, Xerxes, assim, como a bravura e aobstinação grega na defesa de sua liberdade, do seu regime demo-crático, foram descritas pelo ‘pai da história’. Tais pares são facil-mente percebidos na cena política internacional, principalmente nasguerras contemporâneas em nome da liberdade e democracia, con-tra ‘bárbaros’ fundamentalistas e insanos, assim como na tentativade levar a liberdade aos povos e nações que a desconhecem porviverem sob o jugo de tais déspotas.

A oposição estabelecida entre gregos e bárbaros por Heródotodiz respeito primeiramente às diferenças culturais entre esses doispovos, assim como as diferenças contemporâneas, que culminamcom as diferentes organizações políticas. Esse tipo de interferênciaé comum ao pensamento grego. Encontramo-la tanto em Heródotocomo em Aristóteles, que assim a exprime:

Cada povo recebeu da natureza certas disposições e a dife-

rença dos caracteres é facilmente reconhecível se observar-

mos os mais famosos estados da Grécia e as diversas partes

do mundo.

(...) Os asiáticos são mais inteligentes e mais próprios para

as artes, mas nem um pouco corajosos, e por isso mesmo são

sujeitados por todos e estão sempre sob o domínio de algum

senhor.

Situados entre duas regiões, os gregos também participam

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de ambas. Em sua maioria, têm espírito e coragem; conse-

qüentemente, conservam a sua liberdade, e são muito civili-

zados. Poderiam mandar no mundo inteiro se formassem um

só povo e tivessem um só governo. (Aristóteles, III, 1288a).

Para além das diferenças culturais, Aristóteles reconhece a influ-ência da natureza na determinação do caráter de cada povo. Essaascendência dos fatores naturais sobre as instituições é essencialpara entendermos a conduta dos povos, segundo o filósofo. Em fun-ção dela, os asiáticos tendiam para a adoção de regimes em que opoder se concentrava nas mãos de um senhor, enquanto os gregoseram mais propensos a adotar formas de governo onde reinava aliberdade. Mas, em Aristóteles, essa natureza, ou talvez suas carac-terísticas peculiares, diziam respeito tanto a fatores naturais quantoàs determinações culturais e de costumes: talvez se possa exprimirmelhor essa diferença a partir da definição de Darbo-Peschanski(1998, p. 60), que indica que a organização mental e psicológica dospovos, como determinante para a sua particularização, que ditava ainclinação dos povos para um ou outro regime, não era entendidasomente em termos físicos. Abrangia também a sua característicaconstituição psíquica, como se vê na seguinte apreciação: “Como osbárbaros são naturalmente mais submissos que os helenos, e os asi-áticos em geral mais que os europeus, eles suportam o poder despó-tico sem qualquer queixa. Estes governos monárquicos, portanto, sãode natureza tirânica pelas razões apontadas.” (Aristóteles, III, 1285b).Se, para o filósofo, a forma de governo adotada pelos bárbaros de-corria da própria natureza destes, o que a caracterizava era a injus-tiça. E a injustiça, por sua vez, resultava da ausência de leis. Nova-mente em relação à cena contemporânea o que percebemos é próxi-mo desta descrição, pois os orientais, na verdade os fundamentalismosislâmicos, também são representados como povos que desconhecemas leis para o bem comum, principalmente as democráticas.

Sob o comando de Xerxes e sob o seu reinado o império persa selança ao seu mais impetuoso desafio. No relato herodotiano, esse

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desafio, personificado pela Hélade, denota a possibilidade de trans-por geograficamente o território da Ásia, o Oriente, e estabelecerpela primeira vez um império oriental na Europa, ou seja, na porçãoocidental do mundo. Além disso, o consentimento de Xerxes signifi-ca o confronto entre os povos com costumes, com pressupostos cul-turais radicalmente diferentes, o que implica uma distinção essencialentre o conflito greco-pérsico e as guerras de conquista antes em-preendidas pelos bárbaros. Pela primeira vez enfrentaram-se duasformas inconciliáveis de poder político, a soberania isonômica dascidades helênicas e a dominação irrestrita da monarquia meda.

A figura de Xerxes, assim, tem um peso especial, que o destacafrente aos outros personagens que, tal como ele, encarnam o destinofunesto dos homens que almejaram um poder exorbitante. Nele semanifesta, mais plenamente que em todos os outros a inconsistênciaintrínseca ao despotismo monárquico, decorrente do caráter aber-rante dos regimes injustos e desregrados. É esse o sentido do espan-toso revés sofrido por sua investida contra a Hélade. A impecávelvitória dos gregos expõe, como nenhum dos insucessos experimenta-dos pelos antecessores de Xerxes, a fragilidade verdadeira dos im-périos orientais.

Na verdade, a narrativa herodotiana muitas vezes nos dá a im-pressão de que existe um anátema, uma maldição, ou seja, que aloucura e os crimes de seus personagens despóticos provêm de umamaldição dos déspotas. Esse efeito produzido pela trama herodotia-na aproxima-a do enredo trágico, pois a própria idéia de puniçãonecessária e da ruína fatal dos que almejaram e exerceram um po-der excessivo indica um parentesco do relato herodotiano com a tra-gédia. É oportuno lembrar, em apoio à suposição desse vínculo, que aprimeira peça de Ésquilo, Os Persas, tematizou justamente o malo-gro da expedição de Xerxes. Isso, porém, não quer dizer que a histó-ria se originou na tragédia; significa, antes, como assinalou Hartog,que “tragédias desse tipo criam um campo de aceitação no qual setorna possível, para qualquer um, contar para seus contemporâneosas guerras” (HARTOG, 1999, p.337).

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Tomando como referência a contemporaneidade, soa irônico omodo como as coisas são colocadas por Heródoto: a “frágil” Grécia,apegada aos ideais de liberdade e justiça, faz frente às hostes impe-rialistas de Xérxes. O jogo na modernidade, entre o ocidente demo-crático e os déspotas orientais, ainda parece bem próximo daqueledescrito por Heródoto. E, não é fortuito o fato de os “300” ser umasuper produção estadosunidense, assim como o desfecho desta “nova”e ao mesmo tempo “velha” luta pode ainda nos surpreender com omesmo teor catártico de uma tragédia grega. Assim, como a estra-nheza e o espanto diante do comportamento do ‘outro’ e do ‘diferen-te’, fundamentais para o efeito produzido pelo relato, são partes inte-grantes dos desencontros contemporâneos.

BIBLIOGRAFIA

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universi-tária, 2000.ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mario da Gama Kury, Brasília: Edito-ra da Universidade de Brasília, 1997.DARBO-PESCHANSKI, Catherine. O discurso do particular: ensaio sobre

a investigação de Heródoto. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,1998.HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação

do outro. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.HERÓDOTO. História. Tradução portuguesa de Mário da Gama Kury, 2ªed., Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1988.MEIER, Christian. La naissance du politique. Paris: Gallimard, 1995.

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EM BUSCA DE UM MÉTODO PARALIDAR COM O ACONTECIMENTO

CONTEMPORÂNEO GLOBALIZADO

ALEXANDRE SIMÕES RIBEIROPsicanalista, doutor em Filosofia pela UFMG e coordenador do Mestrado

em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMGE-mail: [email protected]

Resumo: O artigo aborda as relaçõesda contemporaneidade com a moder-nidade através de uma lógica espaci-al. Para tal, são apresentadas as pro-priedades e as problematizações dosprocessos chamados esféricos faceaos processos moebianos. Daí, pro-põe-se elementos para um métodocondizente com as problematizaçõescontemporâneas.

Palavras-chave: esfera; dobra; pro-blematização; método.

Abstract: The article approachesthe relations of the contemporaryage with modernity through a spacelogic. For such, the properties andthe problematizations of the spheri-cal called processes are presentedface to the Moebius’s processes. Fromthere, one considers elements for ajoust method with the contempora-ries problematizations.

Key-words: sphere; fold; problema-tizations; method.

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E como eu palmilhasse vagamenteuma estrada de Minas, pedregosa,e no fecho da tarde um sino roucose misturasse ao som de meus sapatosque era pausado e seco; e aves pairassemno céu de chumbo, e suas formas pretaslentamente se fossem diluindona escuridão maior, vinda dos montese de meu próprio ser desenganado,a máquina do mundo se entreabriupara quem de a romper já se esquivavae só de o ter pensado se carpia.Abriu-se majestosa e circunspecta,sem emitir um som que fosse impuronem um clarão maior que o tolerávelpelas pupilas gastas na inspeçãocontínua e dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentartoda uma realidade que transcendea própria imagem sua debuxadano rosto do mistério, nos abismos.

[...]Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,a esperança mais mínima – esse anelode ver desvanecida a treva espessaque entre os raios do sol inda se filtra;como defuntas crenças convocadaspresto e fremente não se produzissema de novo tingir a neutra faceque vou pelos caminhos demonstrando,e como se outro ser, não mais aquelehabitante de mim há tantos anos,passasse a comandar minha vontadeque, já de si volúvel, se cerravasemelhante a essas flores reticentesem si mesmas abertas e fechadas;como se um dom tardio já não foraapetecível, antes despiciendo,baixei os olhos, incurioso, lasso,desdenhando colher a coisa ofertaque se abria gratuita a meu engenho.A treva mais estrita já pousarasobre a estrada de Minas, pedregosa,e a máquina do mundo, repelida,se foi miudamente recompondo,enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mãos pensas.

Sob uma forma que apenas almeja salientar algumas vias a se-rem percorridas e sensibilidades a serem promovidas, intenta-remos realizar reflexões que se mostrem atentas à demarca-

ção de elementos imprescindíveis à edificação de um método paralidar com o acontecimento contemporâneo em um mundo, de certaforma, globalizado.

Uma espacialidade contemporânea para a máquina do mundo?As performáticas discussões acerca de uma era pós-moderna

que usualmente pretendem nos convencer acerca de sua genuína

A Máquina do Mundo1

Carlos Drummond de Andrade

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legitimidade, de sua certeira existência, suas nítidas demarcações,bem como suas curiosas relações com o anterior e as possibilidadesde seus devires mostram-se, a maior parte do tempo, infrutíferas.Aliás, quase sempre se instalam (na Universidade e também fora damesma) como debates condenados a um hermetismo que mais pare-ce interessar aos acadêmicos desvinculados das questões urgentesde seu tempo do que aos seus supostos agentes, envolvidos por de-mais que estão em sua poiesis cotidiana, sem muita preocupaçãocom datações, estilos, filiações, escolas, etc.

Todavia, são numerosas e consistentes as evidências que sinali-zam e materializam – sob a forma de processos certamente comple-xos – um corte entre as formas de vida de nosso tempo (entenda-se:as vivências que reorganizam nosso tempo e nosso espaço) e umacerta figuração de um passado não muito distante. Caso pensemos,a título somente de demarcação sem querer aí localizar todos osmencionados processos complexos, em certos instrumentais tecno-lógicos largamente difundidos em e para um mundo globalizado (emespecial, o triunvirato composto pela informática, telecomunicaçõese biotecnologias), a mencionada descontinuidade se nos impõe demaneira inexorável.

Certamente, muitos de nós, a cada instante, a experienciam sobuma forma dupla, quando não declaradamente ambivalente. Ora sur-gem lamentos saudosistas que nos oferecem a imagem – certamen-te, alicerçada em um engodo – da existência de um passado maisestável, tradicional, certeiro, orientador e correto que se encontracada vez mais desalojado pelas mudanças avassaladoras inevitáveis,portadoras que são de um indesejável índice moral: a degeneração.Esta é a base argumentativa recorrente de um essencialista, de umtimoneiro-purista que deseja fundamentar, ou melhor, naturalizar suaperspectiva na imagem da estabilidade.

O engodo mais acima indicado, nesta circunstância, não haveráde ter outra designação senão esta: o anseio pela origem. E comtoda a emblemática polissemia que a origem comporta: biológica,religiosa, metafísica, histórica, cultural, étnica. Por outro lado, como

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sugerimos, um distinto pathos, isto é, uma outra afetação é igual-mente proposta aos nossos imaginários: aquela que aclama os grandesvalores e facilitações, bem como as promessas sociais e individuaisdos novos tempos. Geralmente, os admiradores de um novo mundoque, segundo eles mesmos, está ocorrendo diante de nós e em nósmesmos, podem aí ser reconhecidos. Trata-se aqui da base argumen-tativa dos artífices do upgrade (de tudo e de todos). O frenético, oinstantâneo, o líquido que se conformam a continentes polivalentes paradaí a pouco inundá-los e extravasá-los são usuais nesta paisagem.

Assim, desde as vertigens causadas pelo caráter agora gelatinosode um mundo outrora estável, ao maravilhamento de um universo ines-gotável de possibilidades dadas suas aceleradas mutações, é sempre aunidade que se nos propõe: a imagem de um mundo e o mundo atravésde uma imagem. Esta aglutinação com vistas à síntese entre o côncavoe o convexo (que tomaremos a liberdade de designá-la e detalhá-la, embreve, como processo esférico) nos ofusca quanto à coexistência decontrários e obliqüidades que, enquanto tais, sempre resistem à unida-de. Elementos oblíquos: são os esburacadores da unidade.

Ao que tudo dá a entrever, a crítica (no sentido de crise que cla-ma por exame e inteligibilidade de seus critérios) só se fará quandoconsiderarmos seriamente a lógica dos processos de resistência.Preferencialmente, as resistências locais, difusas, incomensuráveisao logocentrismo. Ou seja, a arquitetura e a dinâmica daqueles acon-tecimentos que diante da máquina do mundo2 insistem por não se-guir as rotas e metabolismos que proporcionam homogeneidades,previsibilidades, seriações. Neste sentido, há de ser edificada umacrítica que considere os processos-fora-da-série.

Voltemos ao corte, no caso, o corte da máquina do mundo. Éplausível, quando não, prudente, insistir que um corte há. Para apre-endermos tal cesura, discorramos um pouco sobre aquilo que pare-cia orientar as perspectivas e os fazeres em um período largo denossa Modernidade. Caso a datação seja aqui relevante – mas nãose trata, a nosso ver, de circunstâncias ligadas fixamente ao tempoque ficou para trás – delimitemos, como uma extremidade do espec-

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tro, a Revolução Científica (século XVII/XVIII) até os instantes emque, na outra extremidade, a Revolução Industrial começou a gerarseus paradoxos mais agudos, a saber, o final do século XIX .

É justo compreender que os eventos que ali se deram, eventosestes das mais diversas ordens (sociais, políticas, estéticas, culturais,etc.) arranjavam-se desde uma lógica muito peculiar que podería-mos designar de processos esféricos:

Os processos ali seguiam um fluxo esférico. Eram abordados,interpelados, dados a ver e a compreender sob a lógica esférica.Eram produzidos esfericamente. Lembremo-nos que processos es-féricos tendem a proporcionar tão-somente problematizações esfé-ricas. Era assim aquela máquina, a máquina do mundo moderno.

A esfera porta propriedades impressionantes que, entretanto, po-dem nos parecer muito banais e, até mesmo, eternas e naturais, dadaa nossa familiaridade com as mesmas. Na intenção de produzir umaimagética, pensemos na esfera acima ilustrada como detentora deum diâmetro bastante generoso e, assim, vejamos ao menos três pro-priedades complementares que lhe são marcantes. Daí decorrem,por sua vez, as problematizações.

Antes, um esclarecimento quanto à noção de problemática/pro-blematização. À primeira vista, pode parecer que estamos nos refe-rindo, por intermédio desta noção, àquilo que já é devidamente con-templado seja pela História das Idéias, seja pela História das Menta-lidades. Contudo, gostaríamos de ressaltar que, desde uma perspec-tiva foucaultiana (que consideramos bem adequada em se tratandodesta questão), a problemática não se reduz à análise dos sistemas

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de representação (âmbito maior da História das Idéias) nem mesmoà análise das atitudes e esquemas de comportamento (campo daHistória das Mentalidades). Para Foucault (2006: 231)

O pensamento não é o que se presentifica em uma conduta e

lhe dá um sentido; é, sobretudo, aquilo que permite tomar

uma distância em relação a esta maneira de fazer ou de

reagir, e tomá-la como objeto de pensamento e interrogá-la

sobre seu sentido, suas condições e seus fins. O pensamento

é a liberdade em relação àquilo que se faz, o movimento

pelo qual dele nos separamos, constituímo-lo como objeto e

pensamo-lo como problema.

Então, vejamos as propriedades triádicas e as problematizaçõesdecorrentes dos processos esféricos. Primeiramente, os processosesféricos dividem o espaço em duas porções. Cada uma destas por-ções se comporta como superfícies, planos infinitos que podem serincomunicáveis. Seria tentador, na medida em que o espaço já está,por definição e experiência, repartido em dois, engendrar um mape-amento do dentro e do fora, do perto e do longe, do familiar e doestranho, do centro e da periferia. Aliás, esta foi uma problematiza-ção proporcionada pelo espaço bilátero; uma problematização que,em todas as suas possibilidades e manifestações, seguia um fluxo,digamos, colonizador. A indagação marcante desta paisagem: comoadequar o fora ao dentro?

Em segundo lugar, os processos esféricos e esferóides cruzamfronteiras tidas como simples linhas tênues e demarcatórias que, aoserem ultrapassadas, fazem o contraste do dentro com o fora, docentro com o periférico. Em suma, as fronteiras são linhas-mortas,que servem apenas para delimitar espaços (e processos) naturaliza-dos e naturalizantes. A problematização que atravessou diversos discur-sos e saberes aí engendrados: a problematização da conversibilidade.Sua forma usual: como converter, transformar os contrários?

Terceira propriedade: só se pode passar para o dentro, estando no

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fora (ou vice-versa) por meio de cisão, perfuração, invasão; enfim,um ato interventor. E isto nos lança para uma decorrência, talvez, amais importante até agora discernida: os processos esféricos sãoorientáveis. Há um antes e um depois, a direita e a esquerda, o acimae o abaixo. Logo, teleologias, desenvolvimentos, progressos e hierar-quias aí se conjugam bem. Trata-se da pedagogia do interventor.

Em outros termos: a máquina esférica do mundo nos permiteperceber para onde os processos estão se dirigindo, em que darão e,por conseguinte, como detê-los, reorientá-los, etc. Isto, pelo fato de-les serem reversíveis e invertíveis pelas mudanças de posição na-quele mesmo espaço bilátero. Daí decorre uma problematização pro-gressista: como acelerar a marcha dos processos (uma vez quepartem de x e chegam em y)?

Para verificar melhor esta atraente propriedade – de ampla re-percussão política – podemos fazer um experimento. Lancemos so-bre a máquina esférica pequenos dispositivos que girariam sobre assuas duas superfícies em sentidos bem nítidos. No sentido horário,em uma superfície e, na outra, no sentido anti-horário:

Corte interno: a orientação “dentro”:

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Corte externo: a orientação “fora”:

Estes dispositivos continuariam sempre a percorrer toda a super-fície em um único sentido. Isto faz desta figura, desta espacialidadealgo orientável. Um hipotético ser que caminhasse na superfície (tantoa de dentro, quanto a de fora, já que a esfera dicotomiza o espaço)sempre acreditaria se está indo para o leste ou o oeste, para cima oupara baixo. Por outro lado, ele teria a possibilidade de, através de umcorte, inverter o sentido do giro. Isto implica na conjugação das trêsproblemáticas: a da colonização, da conversibilidade, da orientabili-dade. Isto basta para prosseguirmos.

Se o Moderno (em todas as suas perspectivas não-coincidentes,a saber: modernismo, modernização e modernidade) é largamenteesferóide, bem como as problematizações que ele engendra, a Con-temporaneidade, diferentemente, não parece sê-lo.

Nada mais estranho do que ainda desejar intervir naquilo que seguee materializa a lógica do Contemporâneo (em todas as suas perspecti-vas heterogêneas: pós-modernismo, pós-modernização e pós-moder-nidade) desde a espacialidade esférica. A máquina do mundo con-temporâneo, não se nos impõe como dicotômica, todavia, moebiana:

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Esta figura, conhecida dos matemáticos que se dedicam mais es-pecialmente à Topologia mas, igualmente, de muitos artistas, apre-senta propriedades curiosas que também vão lhe proporcionar no-meações diversas: Banda de Moebius, Faixa de Moebius, Contra-banda, etc. A sua notoriedade deve-se a August Ferdinand Möbiusque, em 1858, tendo em vista a obtenção de um prêmio ofertado pelaAcademia de Paris sobre a teoria geométrica dos poliedros, a estu-dou detidamente.

A Contrabanda – a nomeação que consideramos mais perspicaze positivamente irônica para a figura exibida – porta, por sua vez,propriedades e abre possibilidades para processos bem distintos aosda esfera. Primeiramente, ela não divide o espaço em duas porçõesbem discerníveis. Se há uma separação, esta é apenas momentânea,devida a um instante de escala reduzida em seu circuito. Imagine-mos um percurso pela Contrabanda, exploremos este espaço. Inicia-remos nossa caminhada, nossa prospecção em um ponto e retorna-remos ao mesmo, tendo passado por aquilo que seria um dentro e umfora. Ora, se isto foi possível, logo significa que não estávamos emoutra coisa a não ser em uma única e só superfície que, por efeitosde dobras e torções, permitiu um certo percurso. Um percurso que,ao modus operandi da máquina esférica do mundo, seria mágico,pois ele permitiria entrar e sair sem cisão, furo, invasão.

Em segundo lugar, percebemos que as fronteiras não são somentelinhas demarcatórias, todavia, campos de passagem, fluxos de traves-sias. Logo, zonas nas quais processos ocorrem e não só espaços vazi-os que deixam certas identidades intocadas na sua travessia. Não setrata, pois, de processos mortos e bem adestrados mas aquilo que estáem todos os lugares, vivamente permitindo contornos inusitados (comoaquele da aparente transição entre o espaço de dentro e o de fora ...).

A terceira propriedade, bem incômoda aos dicotomizadores dacolonização, da conversibilidade e da orientabilidade. Voltemos aosnossos pequenos dispositivos giratórios, desta vez, sobre a superfíciemoebiana. Detenhamo-nos, a título de exemplo, ao dispositivo (quepode ser uma obra de arte, um movimento literário, um discurso, uma

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ação, uma comunidade) que gira no sentido horário. Caso ele transi-te pelo espaço proporcionado pela Contrabanda, em um certo mo-mento torna-se possível que ele, sobre a mesma superfície (sem aperfuração do espaço, portanto), gire em sentidos diversos! Isto sedá concomitantemente à travessia de uma fronteira. Em suma, aContrabanda não é, diferentemente da esfera, orientável. Isto trazimplicações sérias sobre o tempo, a causalidade e o devir.

Em outras palavras, o dentro e o fora são impressões enganosas,prematuramente instantâneas de um olhar que ainda insiste em re-partir o espaço em duas categorias primeiras. Por conseguinte, estri-tamente falando, não se entra nem mesmo se sai deste espaço –desta máquina do mundo – demarcando assim ontologias irredutí-veis, ao menos tal como a esfera e suas problematizações davam aentender. As passagens, os trânsitos constantes são a regra.

O percurso-processo-moebiano, que nos leva a verificar pro-cessos rígidos (hegemônicos) e desarticulados (resistentes) em umamesma e só superfície, nos conduz também a constatar relaçõesbem mais complexas com aquilo que, entre nós todos, parece nosdiferenciar e, por outro lado, nos articular.

Não uma era, mas uma problemática pós-modernaDesde 1989, encontra-se entre nós uma perspicaz apreensão

moebiana da contemporaneidade. Esta apreensão foi levada a efeitopor um argentino que pensa as dobras do espaço latino-americano:Néstor García Canclini.

Suas reflexões encontram uma interessante localização em seulivro Culturas híbridas (lançado pela primeira vez no Brasil em 1997).Tal obra torna-se instigante pelo deslocamento que seu subtítulo jáimplica sobre a problemática pós-moderna. Ei-lo: estratégias paraentrar e sair da modernidade. Trata-se, pois, de uma reflexão quese situa no campo foucaultiano da problemática.

A argumentação de Canclini acerca de nosso tempo, nossas rup-turas e continuidades – e tudo sito sob o prisma das especificidadeslatino-americanas face às metanarrativas européias – é construído

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com zelo e rigor. Os capítulos do livro são polarizados por duas argu-mentações que o autor nomeia de entrada e saída. Talvez, um jogoirônico com a esfera que, ao longo da narrativa, finda por sofrer umprocesso de torção moebiana. Há, ainda, a partir das edições lança-das em 2001, uma introdução-maior intitulada da seguinte maneira:as culturas híbridas em tempos de globalização. Esta introduçãoporta um caráter autônomo face ao restante do livro. Elaborada soba forma de artigo, se faz acompanhar por uma bibliografia destinadaespecialmente ao seu argumento. É assim que Canclini vai nos fami-liarizando com o que localizamos aqui a título de problemática pós-moderna: nossa relação com as etapas da Modernidade não é uní-voca nem unilateral. Não se trata de se pensar em uma relação naqual a Modernidade nos foi apresentada como um ideal a ser seguidode forma modelar ou um métron a ser constantemente proposto comoo referente seguro para as nossas diferenças com o de fora, o outro.

A proposta da hibridação (termo que vem de contrabando – ou nacontrabanda? – da biologia, passando por transformações, certamen-te, nas travessias das fronteiras com as Ciências Sociais) é, nestecenário, uma tática que nos conduz ao plano maior da estratégia.Todavia, trata-se de uma tática que, em sua irrupção, promove areformulação de uma cena em um ponto preciso mas de larga reper-cussão: nos pares organizadores de conflitos: tradição-modernidade,norte-sul, local-global.

Sobre a hibridação, Canclini nos propõe, dentre outras perspecti-vas, a que se segue: “... entendo por hibridação processos sociocul-turais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de for-ma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos epráticas.” (2006: XIX)

E ainda ressalta: “... a hibridação não é sinônimo de fusão semcontradições” (2006: XVIII)

Em suma, são as próprias idéias de pureza, de essência ou, parausar um termo importante para Canclini, de “coleção” que são postasem ponto de fusão. Tudo aquilo, em suma, que patrocina as problemá-ticas esféricas.

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MétodoO percurso de Canclini pode nos indicar os elementos imprescin-

díveis para se estabelecer um método (via, caminho, rota) para aabordagem dos acontecimentos contemporâneos. Não se trata aí desubstituição de cenários ou deslocamentos de entidades conceituaismas, sim, de processos que articulam heterogeneidades sem camu-flar o conflito: “por essas razões, sustento que o objeto de estudo nãoé a hibridez, mas, sim, os processos de hibridação.” (CANCLINI,2006: XXII)

É nesta circunstância que ganha um relevo considerável o fio e atrama que compõem o tecido da Modernidade e nossa relação com omesmo. Entradas e saídas, uma relação jânica3 com a Modernidade:“... resisti a considerar a pós-modernidade como uma etapa que subs-tituiria a época moderna. Preferi concebê-la como um modo de pro-blematizar as articulações que a modernidade estabeleceu com astradições que tentou excluir ou superar.” (CANCLINI, 2006: XXX)

E aí complementa, com um jargão híbrido, entre Foucault e Deleu-ze: “A descoleção dos patrimônios étnicos e nacionais, assim como adesterritorialização e a reconversão dos saberes e costumes foramexaminados como recursos para hibridar-se.” (CANCLINI, 2006: XXX)

Tal corte se situa, certamente, entre aquilo que ainda podemoscompreender tenuamente como nós e as problematizações até en-tão esféricas do mundo:

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Problematizações esféricas do mundo: aquilo que, apesar de teratingido seu auge no século XIX, ainda vigora, mesmo que fracassado:a apreensão do problema (seja ele qual for) a partir da divisão doespaço e das categorias em dois níveis. Estes níveis, sempre tidoscomo naturais e essenciais, avalisadores, pois, de todas as espécies dedualismos. O dentro que se opõe ao fora, o perto que se opõe ao longe,a causa que se opõe ao efeito. Nota-se que esta oposição é tambémuma dependência estabelecida entre os antagonistas em questão.

Uma figura de alcance considerável, no que tange ao nosso mo-mento jânico encontra-se, por exemplo, na imagem do “pós-intra-moderno” provocativamente engendrada por Canclini, em um de seusmomentos4.

Já estamos à altura de pensar acerca disto que cotidianamentenos impacta sem aguardar pelos significados estáveis que possamoslhe atribuir?

Da Contrabanda ao ContrabandoAs problematizações pós-modernas, que parecem extrair a lógica

de seus processos da espacialidade moebiana, não haverão de ser en-frentadas circunscrevendo-se em espaços disciplinares. Estes, pode-mos dizer que ainda são excessivamente debitários da lógica esférica.

Compreendemos que é na confluência e na tensão (ou seja: naarticulação daquilo que se mostra inicialmente na cena global bemcomo na resistência à articulação) que algo desta ordem, próximo aoque tendemos a compreender como metodologia poderia ser edifi-cado. Para lidar com as problemáticas contemporâneas, precisamosde espaços estriados ao invés de lisos. E isto não se edificará sem aprática constante de processos fronteiriços. A abordagem oblíqua detemas e objetos é salutar, pois, para a constituição de metodologiashíbridas e oblíquas.

Encontramos uma imagem amparadora do que intentamos trans-mitir em uma situação dupla vivida por um mesmo personagem, to-davia, um personagem que não permanece o mesmo. O filósofo fran-cês Gilles Deleuze, na ocasião de participar de uma experiência uni-

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versitária que, a princípio, colheria os efeitos revolucionários do maiode 68 na França, assim descreve a situação que era a de conduçãode um ensino de filosofia na recém inaugurada Universidade de Pa-ris VIII – Vincennes:

Em Vincennes, a situação é diferente. Um professor, diga-

mos, de filosofia, fala de um público que inclui, com diferen-

tes níveis de conhecimento, matemáticos, músicos (de for-

mação clássica ou da pop music), psicólogos, historiado-

res, etc.[...] É, pois, por conta própria que os ouvintes vêm

buscar alguma coisa num curso. O ensino da filosofia orien-

ta-se, assim, diretamente, pela questão de saber em quê a

filosofia pode servir a matemáticos, ou a músicos, etc. –

mesmo, e sobretudo, quando ela não fala de música ou de

matemática. (DELEUZE, citado por GALLO, 2003, p. 16)

O grande desafio, para tal, parece ser a demarcação de interces-sores em meio à cena global. São os intercessores, muitas vezes,que possibilitam a dobra e o próprio contrabando da Contrabanda:

O essencial são os intercessores. A criação são os interces-

sores. Sem, eles não há obra. Podem ser pessoa – para um

filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos

os artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como

em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados,

é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série.

Se não formamos uma série, mesmo que completamente ima-

ginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercesso-

res para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim:

sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê.

(DELEUZE, 1992, p.156)

Desta forma, podemos propor que a Contemporaneidade não ésem intercessores, quando o que está em questão é, em alguns ins-

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tantes e circunstâncias, a primazia dos processos moebianos sobreos processos esféricos. A metodologia consiste, por conseguinte, emabrir as problematizações a estes intercessores.

BIBLIOGRAFIA

CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas; estratégias para entrar e sairda modernidade. 4.ed. São Paulo: EDUSP, 2006.CLIFFORD, James. Culturas viajantes. In: ARANTES, Antonio A. (org.) Oespaço da diferença. São Paulo: Papirus, 2000.DARMON, Marc. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Ar-tes Médicas, 1994.DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: 1992, Editora 34, 1992.FOUCAULT, Michel. Polêmica, política e problematizações. In: Idem. Ditos

e escritos, vol V; ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense, 2006.GALLO, Sílvio. Deleuze & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.GUPTA, Akhil, FERGUNSON, James. Mais além da “cultura”: espaço, iden-tidade e política da diferença. In: ARANTES, Antonio A. (org.) O espaço da

diferença. São Paulo: Papirus, 2000.

NOTAS

1 Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos ostempos por um grupo considerável de escritores e críticos, a pedido docaderno “Mais!” do jornal Folha de São Paulo (edição de 02-01-2000). Drum-mond o publicou originalmente no livro Claro enigma (de 1951). Para esteartigo, o extraímos parcialmente de seu outro livro Nova reunião, publicadopela José Olympio, Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.2 Máquina, aqui, sem nenhum voto a uma reacionária reedição dos mecani-cismos ou determinismos oitocentistas que tinham nos instrumentos artifi-ciais (o relógio, o autômato) a chave para o mundo (ou uma boa parte domesmo). Intentamos conceber a máquina como aquilo que é composto porelementos heterogêneos, por processos sem centro, daí, a possível e inte-ressante desmontagem de uma máquina.

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3 Referimo-nos aqui ao deus romano Jano (Janus), o porteiro celestial deduas faces, indicando os términos e os começos, o passado e o futuro. Janonos faz lembrar que uma porta é, sempre, aquilo que se volta para dois ladosaparentemente diferentes. Daí, a origem do nome janeiro e, por extensão,janela.4 Cf. CANCLINI, 2006: 356.

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BIOÉTICA PARA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:UM PARADIGMA NECESSÁRIO

SÉRVIO TÚLIO PORTELAAluno do curso de Mestrado em Educação, Cultura

e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMGE-mail: [email protected]

Resumo: O pensar e o fazer em edu-cação ambiental não podem prescin-dir de um referencial bioético que aressignifique e que assegure a pre-servação das dimensões biopsicos-sociais que lhe são intrínsecas, sobpena de se esvaziar de seu sentidocrítico-reflexivo e de seu potencialtransformador. Sem um paradigmabioético claro e presente nas suasmúltiplas abordagens, a educaçãoambiental pode se reduzir ao ensinosobre o meio ambiente, numa pers-pectiva transmissiva e conteudistaque em nada se compromete com avida social. Dessa forma, afastar-se-ia da cena contemporânea, descon-textualizando-se e comprometendosobremaneira a possibilidade de suacondução sob a ótica transdiscipli-nar, indispensável para a desejávelcomplexificação desse objeto.

Palavras-chave: educação ambiental;bioética; contemporaneidade; trans-disciplinaridade.

Abstract: The thought and actionin environmental education cannotdispense a bioethic reference as res-signification that assure it to the pre-servation of the biopsicossocial di-mensions that are inherent to it, un-der penalty of deflation of it’s critic-reflexive sense and transforming po-tential. Without a bioethic paradigmthat is clear and present in it’s mul-tiple approaches, the environmen-tal education is able to itself reduceto the teaching about the environ-ment, in a transmisive and contentperspective that in nothing compro-mises the social life. That way itwould move away from the contem-porary scene, descontextualizingand compromising excessively thepossibility of it’s conduction underthe transdisciplinar point of view,indispensable for the desirable com-plexification of that object.

Key-words: environmental educati-on; bioethics; contemporary natu-re; transdisciplinarity.

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Introdução

Este artigo, revisitando o tema bioética, busca articular tal obje-to com o mister de se empreender a educação ambiental nasociedade hodierna, sob o entendimento de que o meio ambi-

ente implica dimensões que extrapolam a circunscrição própria dabiologia, para incorporar componentes antropológicos, de forma alhe preservar o caráter biopsicossocial.

Por ser a educação ambiental um processo que redunda em(inter)ações comprometidas com a (re)construção conceitual e axio-lógica da parte do sujeito social, esta não se pode dar de forma me-ramente intuitiva e assistemática. Há de se processar, antes, comoum movimento eivado de intencionalidade, portanto norteado por re-ferenciais históricos, filosóficos e temáticos que a bioética suscitapor sua própria natureza conceitual.

Assim, para levar a efeito a articulação pretendida entre bioéticae educação ambiental, será oportuno situar ambos os objetos temáti-cos quanto aos seus contornos históricos e conceituais, preservandoa perspectiva contemporânea e recorrendo à concepção transdisci-plinar que possibilite a complexificação e conseqüente abrangênciaque tais objetos suscitam.

Para tanto, serão apropriados subsídios de textos temáticos emdiálogo permanente com as contribuições conceituais e as teses deALBAGLI (1998), FERNANDES (1992), FLOR (2004), dentre ou-tros, de forma a consubstanciar o presente estudo.

Em síntese, esse exercício adota como objetivo evidenciar a im-prescindibilidade da adoção de um paradigma bioético como nortea-dor do pensar e do fazer em Educação Ambiental; paradigma esteque, espera-se, não seja definitivo e imutável, já que não o é a própriavida social; mas consonante com a cena contemporânea que o atoeducativo ajuda a compor.

1. Educação ambiental e (bio)éticaA educação ambiental enquanto possibilidade de construção axi-

ológica e de potencialização dos ideais e das ações transformadoras

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é historicamente antecedida da preocupação com o meio ambiente,sobretudo em virtude do reconhecimento de que há uma gama derecursos naturais vitais para a existência humana que não têm cará-ter renovável. Essa preocupação suscita por si mesma a preocupa-ção com os atores que integram a cena social e que se relacionam noe com o meio ambiente natural e social que compõem. Sendo assim,a preocupação em tela perpassa valores e responsabilidades indivi-duais e coletivas, imbricadas inevitavelmente com referenciais(bio)éticos explícitos ou subjacentes às ações (e omissões) na vidasocial.

1.1. Educação ambiental – Dimensões históricas e conceituaisNão seria razoável falar em educação ambiental sem a articular

com a consciência ambiental, ainda que em grau de incipiência. As-sim é que a adoção da perspectiva histórica da educação ambientalnos remete ao século XIX, quando, em 1863, Thomas Huxley já pro-cede à abordagem das relações entre o homem e os demais seresvivos em seu ensaio “Evidências sobre o lugar do homem na nature-za”, ao qual sucede o livro “O homem e a natureza: ou geografiamodificada pela ação do homem”, cuja abordagem se identifica coma preocupação com a possibilidade de esgotamento dos recursos doplaneta face a ação do homem.

Num movimento crescente, a temática ambiental extrapola entãoseus contornos tradicionais para ganhar novas dimensões. Comoobserva ALBAGLI (1998, p.44) “a questão ambiental deixou de servista como problema restrito ao meio técnico-científico, abrindo es-paço na agenda política dos países, tanto internamente, quanto nasnegociações por eles travadas na arena internacional”.

O curso da história revela-nos, então, o mundo com crescentepreocupação (e iniciativas) na esfera da preservação ambiental, queganham relevo em fóruns como a Conferência das Nações Unidassobre Meio Ambiente em Estocolmo (1972); Conferência de Belgra-do (1975); a Primeira Conferência Intergovernamental sobre Edu-cação Ambiental (Tibilisi, 1977); o Seminário sobre Educação Ambi-

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ental (Costa Rica, 1979); o Congresso Internacional sobre Educaçãoe Formação Ambientais (Moscou, 1987); o Seminário Latino-Ameri-cano de Educação Ambiental (Argentina, 1988) e a Conferência dasNações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Brasil,1992). No Brasil, no entanto, o movimento não se dá historicamentena mesma direção; aliás, o que se tem, em particular no período daDitadura Militar, é a expressão do ufanismo traduzido na edificaçãode grandes obras (usinas, ferrovias, rodovias etc.), levadas a efeitofreqüentemente em detrimento da preservação do meio ambiente.

Os eventos de caráter internacional, aos quais o Brasil efetiva-mente se incorporou somente nas últimas décadas, sintetizam, valedizer, o grande debate multinacional sobre os temas meio ambiente eeducação ambiental, que suscitam a necessidade de uma visão me-nos fragmentária e mais integradora desses objetos. Nas palavras deDIAS (2004, p.254), “a interdisciplinaridade e a transdisciplinarida-de, longe de uma utopia, surgem como uma grande meta, uma exi-gência natural para a sobrevivência da espécie humana, se ela quisercontinuar sua escalada”.

1.2. Educação ambiental e (re)construção axiológicaEnquanto atividade humana socialmente construída, a Educação

Ambiental se compromete com diferentes ambientes históricos, polí-ticos, sociais e econômicos, que tratam o binômio natureza X cultura,a partir de diferentes referenciais éticos, filosóficos, conceituais edidático-pedagógicos.

Tais ambientes possibilitam reconhecer, no mínimo, três contor-nos do pensar e do fazer em educação ambiental: formal, informal enão-formal. Há de se ressaltar, no entanto, que os contornos de cadainstância do pensar e do fazer pedagógico em educação ambientalnão configuram ambientes estanques, mas circunscrições com re-correntes interfaces e alto grau de interlocução e complementarida-de. Em qualquer instância, todavia, vale a percepção de BRANCO(2003, p.3), para quem “a Educação Ambiental deve preocupar-se,inicialmente, com a ação do homem e suas causas, reflexo de seu

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conhecimento de mundo; portanto, trata de mudança de valores, decostumes”.

Nessa perspectiva, a despeito de envolver diferentes atores, mé-todos e processos, em tempos e espaços também diversos mas dota-dos de nexos articuladores; a educação ambiental há de ter presenteorientação ética clara, visão holística e compromisso com a constru-ção de sujeitos sociais autônomos e responsáveis. Ademais, há deconsiderar que sua efetividade só se verifica se se comprometercom a revisão de conceitos, representações, costumes e condutaindividual e coletiva, caracterizados por visão conseqüente e coeren-te, traduzindo-se, em última análise, como possibilidade de(re)construção axiológica e conceitual.

2. Ética e bioéticaO pressuposto de que a Educação Ambiental implica a

(re)construção conceitual e axiológica da parte do educando enquantosujeito-aprendente, remete à necessidade de proceder a algumasconsiderações acerca dos componentes (bio)éticos que lhe são in-trínsecos e que se explicitam em seu âmbito ou lhe são subjacentes.Dessa forma, proceder a considerações sobre (bio)ética e responsa-bilidade individual e coletiva historicamente consubstanciadas e pre-sentes na cena contemporânea faz-se eludicativo no sentido de com-preender sua importância para o pensar o e fazer em educação am-biental.

2.1. Ética e vida socialPerpassando o universo da inquietude humana, a ética sempre se

fez presente na vida social e, como observa FERNANDES (1992,p.67), “o homem sempre se interrogou sobre os princípios do seu agirmoral e de suas conseqüência”. Assim é que a expressão, ora subli-minar, ora explícita de um padrão ético, é uma constante na ação (eomissão) do homem, consonante (ou em conflito) com os referenci-ais de seu tempo-espaço.

A compreensão das dimensões éticas da (con)vivência humana

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impõe a necessidade de visão transdisciplinar, que incorpore percep-ções da história, da geografia, da antropologia, da psicologia e, emparticular, da sociologia, de modo que possamos imprimir potencialcrítico-reflexivo ao conhecimento individual e coletivo da dimensãohumana. Nessa perspectiva, aliás, ressalta GIDDENS (2005, p.24)que “a maioria de nós vê o mundo a partir de características famili-ares a nossas próprias vidas. A sociologia mostra a necessidade deassumir uma visão mais ampla sobre por que somos como somos epor que agimos como agimos”.

Afinal, procedendo a indagações e respondendo-as pelo viés com-plexificador da construção do conhecimento é que nos permitiremosidentificar e explicitar os referenciais éticos (e bioéticos) que orien-tam o nosso pensar e fazer na cena social.

2.2. Bioética: recortes históricos, filosóficos e temáticosSe a ética é tão antiga quanto à existência humana, perpassando

a vida social e se fazendo presente como forma de expressão dainquietude humana, a bioética por sua vez assume contorno maisespecífico, que ganha relevo a partir de 1971 com a publicação daobra Bioética: “uma Ponte para o Futuro, de Van Rensselaer Potter,a qual constitui marco histórico relativamente ao tema, a despeito dealgumas controvérsias sobre a paternidade do termo”, conforme ob-serva DINIZ E GUILHEM (2005, p.10).

A dimensão semântica que ganha o termo torna-se flagrante naspalavras de Potter, consignadas por FLOR (2004, p.166). O biólogoe oncologista diz adotar o termo com o intuito de “representar o conhe-cimento dos sistemas viventes”, assim como “representar o conheci-mento dos sistemas dos valores humanos”.

Essa acepção de bioética descola o termo de sua conotação inici-al identificada com a ética em medicina, que invocava recorrente-mente as questões da conduta médica, como transplantar órgãos ounão, praticar a eutanásia ou não, proceder a pesquisas em corposvivos ou não etc.; para lhe conferir abrangência mais ampla.

Dada a complexidade que o tema assume, no entanto, não se

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pode reduzi-lo ao contorno monodisciplinar, sobretudo por envolver,em diálogo com os “sistemas viventes”, os valores humanos. Essaperspectiva encontra eco em FERNANDES, que observa:

Na área da Bioética, a comunicação não pode ser vista

como um dado natural, mas se apresenta como uma tarefa

de toda a comunidade científica, pois o diálogo interdisci-

plinar da Bioética comporta a participação de diferentes

disciplinas com seus diferentes estatutos epistemológicos.

(FERNANDES, 1992, p.71),

Assim é que soa pertinente a assertiva de FLOR, para quem

A Bioética, inicialmente um movimento social que lutava

pela ética nas ciências biológicas e áreas correlatas, hoje é

também uma disciplina norteadora de teorias para o Biodi-

reito e para a legislação, com a finalidade de assegurar

mais humanismo nas ações do cotidiano das práticas médi-

cas e nas experimentações científicas que utilizam seres

humanos. (FLOR, 2004, p.166).

3. Bioética e educação ambiental: uma articulação necessária3.1– Paradigma bioético para uma educação ambiental re-

significadaTendo em vista o conceito de educação e de educação ambiental

que refuta o paradigma transmissivo do ato educativo ou, nas pala-vras de FREIRE (1987), a “educação bancária”, há de se ter pre-sente a concepção sócio-construtivista de VYGOTSKY (1998), quetem por foco o sujeito-aprendente como autor de seu processo deconstrução cognitiva. Afinal, se a educação ambiental implica, pornatureza de existência, a (re)construção axiológica e a (re)orientaçãoatitudinal, há de implicar a incorporação, da parte do sujeito, de valo-res capazes de nortear o seu pensar e o seu fazer enquanto cidadão.Assim é que adoção de paradigmas (bio)éticos se faz relevante e

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inevitável, e mais: sua adoção deliberada ou a ignorância de sua exis-tência irão redundar inevitavelmente na expressão de valores, querexplícitos, quer subliminares. Afinal, como advertem PONTES eSCHRAMM

a bioética não é apenas uma reflexão de segunda ordem,

como qualquer outra ética prática, ou aplicada, visto que

pretende dirimir concretamente os conflitos morais, ou seja,

ela é ao mesmo tempo descritiva dos fatos consistentes em

conflitos e dilemas morais existentes, e normativa, pois pre-

tende prescrever e proscrever comportamentos, a partir de

processos de crítica e justificação. (PONTES E SCHRAMM,

2004, p.1321).

Dessa forma, para que o pensar e o fazer em educação ambientalnão cumpram vias fortuitas, resultantes da ausência de intencionali-dade e de visão conseqüente relativamente ao ato educativo, há dese estabelecer a necessária articulação, de forma a ressignificar omister educativo, em lugar de o comprometer com a transmissãoreducionista de conceitos ou com o indesejado laissez-faire. Em úl-tima análise, a adoção deliberada e inequívoca de um paradigma bi-oético apontará para a ressignificação do pensar e do fazer em edu-cação ambiental sócio-construtivista, portanto capaz de se compro-meter com a construção de sujeitos crítico-reflexivos e dotados depotencial transformador no contexto do meio ambiente de que sãopartes integrantes.

3.2 – Bioética, contemporaneidade e transdisciplinarida-de: pressupostos e desafios da educação ambiental

Se, de um lado, é imprescindível a adoção de um paradigma bioé-tico norteador do pensar e do fazer em educação ambiental, de ou-tro, há de se ter presente que, por sua própria natureza conceitual, oparadigma não pode ser único nem imutável. Há de se adotar a pers-pectiva macro em diálogo com o referencial micro de percepção da

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realidade, sob pena de esvaziar de sua identidade os atores da cenasocial. Nessa perspectiva, faz-se pertinente a observação de GRÜN(1996, p.112) que, discorrendo sobre o “horizonte epistemológico”atinente à educação ambiental, registra que “a dimensão ética daeducação ambiental deveria ser buscada na história recalcada denosso relacionamento com o ambiente”.

O cenário das múltiplas interações nos remete à consideração domeio ambiente como

um lugar determinado e/ou percebido onde estão em rela-

ções dinâmicas e em constante interação os aspectos natu-

rais e sociais. Essas relações acarretam processos de cria-

ção cultural e tecnológica e processos históricos e políti-

cos de transformação da natureza e da sociedade. (REIGO-

TA, 2001, p.21).

Essa percepção impõe a necessidade do estabelecimento de ne-xos articuladores entre a bioética e a contemporaneidade, sobretudopor ser o ambiente – social e natural – dinâmico e mutável, portantopropulsor de mudanças de paradigmas, como forma de respondercoerentemente aos apelos e possibilidades emergentes na cena soci-al. Afinal, não podemos olvidar que, conforme explicita FLOR (2004,p.166), “Ética diz respeito a consensos possíveis e temporários entrediferentes, e mesmo divergindo na compreensão de mundo e nasperspectivas de futuro, às vezes, conseguem estabelecer normas deconvivência social relativamente harmoniosas em algumas questões”.

Por fim, a complexidade inerente ao objeto epistemológico daeducação ambiental, bem como a necessidade de complexificar opensar e o fazer nessa seara haverão de encontrar na transdiscipli-naridade o catalisador das potencialidades e possibilidades manifestas,de forma a ensejar à educação ambiental ressignificar-se, redimensio-nando os atores e suas relações no ambiente natural e social, a fim depotencializá-los para assumir de forma crítico-reflexiva, autônoma,cooperativa as suas responsabilidades individuais e coletivas.

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Considerações finaisÀ guisa de conclusão, vale ressaltar que o presente estudo não

guarda a pretensão de fixar um paradigma bioético para a educaçãoambiental, mas tão somente de reconhecer sua imprescindibilidadepara o pensar e o fazer nessa seara. Afinal a bioética deve corres-ponder à expressão de um tempo e de um espaço histórico-socialdinâmico por natureza de existência e não se pode olvidar que osvalores são próprios de sujeitos sociais, que os devem construir dia-logicamente e se fazerem seus apologistas por meio de seu pensar ede seu fazer na cena social.

Assim, levar a efeito a pretensão de os fixar a priori seria ir deencontro às suas dimensões subjetivas e contextuais, subestimandoo papel dos sujeitos sociais e as condicionantes e determinantes dacena contemporânea.

Todavia, a construção, apropriação e instauração de referenciaisbioéticos implicará preservar-lhes o caráter complexificador, do qualnão se pode prescindir sob pena de se incorrer em reducionismos.Essa concepção impõe a necessidade de incorporação do foco trans-disciplinar de abordagem, que redunda nas múltiplas freqüentaçõesentre as disciplinas, como ensina DOMINGUES (2001).

Em suma, a Educação ambiental que supere o caráter transmissi-vo de conteúdos para o pensar e o fazer nessa seara, haverá de secomprometer com referenciais bioéticos que tenham presentes ossujeitos, seu contexto biopsicosssocial contemporâneo e a abordagemtransdisciplinar que assegure a complexidade que lhe é intrínseca.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rio de Janeiro: Dunya, 2003.DIAS, Genebaldo Freire. Educação Ambiental: princípios e práticas. SãoPaulo: Gaia, 2004.

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DINIZ, Débora e GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense,2005.DOMINGUES, Ivan. Conhecimento e transdisciplinaridade. Belo Horizon-te: Editora UFMG; IEAT, 2001.FERNANDES, Pe. José de Souza. Elementos para uma teoria crítica da

Bioética. In: Cad. Bioética. Belo Horizonte, nº 1, v. 1, abr., 1992.FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.FLOR, Paula Elisa Avelar. Transplantes: uma leitura constitucional. In: SPA-REMBERGER, Raquel Fabiana Lopes e AUGUSTIN, Sérgio: Direito Ambi-

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técnico-científicas. Belo Horizonte: UFMG, 2001.GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.GRÜN, Mauro. Ética e Educação Ambiental: A conexão necessária. Campi-nas, SP: Papirus, 1998.PONTES, Carlos Antônio Alves e SCHRAMM, Fermin Roland. Bioética da

proteção e papel do Estado: problemas morais no acesso desigual à águapotável. In: Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, set-out, 2004.REIGOTA, Marcos. O que é Educação Ambiental. São Paulo: Brasiliense,2001.VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dosprocessos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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PACTO PELA VIDA: A INCLUSÃO DO IDOSONAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE

ELIETE ALBANO DE AZEVEDO GUIMARÃESEnfermeira, mestre em Enfermagem pela UFMG e docente do Mestrado

em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG

LINDA MAIRA DOS SANTOS NUNESAluna do curso de Mestrado em Educação, Cultura

e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG

Resumo: Este artigo consiste numasistematização da evolução das polí-ticas públicas de saúde, mostrando ainexistência das mesmas quanto àatenção à saúde do idoso, enfatizan-do o pacto de gestão, que é a maisrecente política do governo Federal,que, pela primeira vez, inclui a assis-tência à pessoa idosa. O artigo per-passa pela integralidade como cons-trução e prática social, contribuindopara o controle social na efetivaçãodo que preconiza a política nacionalde saúde da pessoa idosa.

Palavras-chave: Saúde do Idoso; pac-to pela vida; história das políticas pú-blicas de saúde; integralidade.

Abstract: This article consists of asystematization of the evolution ofthe public politics of health, showingthe inexistence of the same ones asto the attention to the health of theelderly emphasizing the manage-ment pact, that is the most recentpolitics of federal government, whi-ch includes the assistance to the el-derly for the first time.The article elapses for the complete-ness as social practical constructi-on, contributing for the social con-trol in efetivation of what it praisesthe national politics of health of theelderly.

Key-words: Health of the Elderly;pact of the life; history public poli-tics of health; for the completeness.

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Introdução

OBrasil é um país que envelhece, devido ao decréscimo dastaxas de fecundidade e mortalidade que se observa duranteas últimas décadas. No inicio do século XX, um brasileiro

vivia em média 33 anos; ao passo que hoje, a expectativa de vida dosbrasileiros atinge os 68 anos. O grupo etário de 60 anos ou mais é oque mais cresce proporcionalmente.

Em 1991, o país tinha cerca de 11 milhões de idosos, o que repre-sentava 7,3% da população geral. As estimativas indicam que no anode 2025 o Brasil deverá ter mais de 32 milhões de pessoas com 60anos ou mais, o que representará 15% da sua população.

Em paralelo às modificações observadas pelo crescimento popu-lacional, modifica-se o perfil de saúde da população. Ao invés deprocessos agudos que “se resolvem” rapidamente através da curaou do óbito, tornam-se predominantes as doenças crônicas e suascomplicações, que implicam em décadas de utilização dos serviçosde saúde.

Um dos resultados desta dinâmica apresentada é uma demandacrescente por serviços de saúde mais complexos, especializados ede maior custo, sejam eles públicos ou privados.

Segundo dados apresentados por pesquisa realizada pela OMSem doze países da América Latina, a situação econômica e a falta deacesso aos serviços de saúde são os principais problemas enfrenta-dos pelos idosos. (Chaimowitz, 1998)

Este estudo busca realizar um esboço histórico e uma análisecrítica das políticas públicas de saúde, desde a promulgação da Cons-tituição/88 até a recente política do governo federal, através da Por-taria nº 399/ GM de 22/02/06, que estabelece as diretrizes do pactopela saúde, que contempla o pacto pela vida, onde a saúde do idosoaparece como uma das seis prioridades pactuadas entre as três es-feras do governo.

Revisão de LiteraturaNo Brasil, o direito universal e integral de assistência à saúde

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tornou-se direito social na Constituição de 1988 e reafirmado com acriação do Sistema Único de Saúde (SUS), legitimado com a LeiOrgânica da Saúde 8080/90. Por esse direito, entende-se o acessouniversal e equânime a serviços e ações de promoção, proteção erecuperação da saúde, garantindo a integralidade da atenção, nasdiferentes realidades e necessidades de saúde da população e dosindivíduos. Esses preceitos constitucionais encontram-se reafirma-dos pela Lei nº 8142/90, que dispõe sobre a participação da comuni-dade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferênciasintergovernamentais de recursos financeiros na área de saúde. AsNormas Operacionais Básicas (NOB), editadas em 1991, 1993, 1996,por sua vez, regulamentam e definem estratégias e movimentos táti-cos que orientam a operacionalização do sistema.

Concomitante à regulamentação do SUS, o Brasil organiza-separa responder às crescentes demandas de sua população que enve-lhece. A Política Nacional do Idoso, assegura direitos sociais à pes-soa idosa, criando condições para promover sua autonomia, integra-ção e participação efetiva na sociedade, reafirmando o direito à saú-de nos diversos atendimentos do SUS (lei nº 8842/94 e decreto nº1946/96).

Em 1999, a Portaria Ministerial nº 1395 anuncia a Política Nacio-nal de Saúde do Idoso, a qual determina que os órgãos e entidades doMinistério da Saúde relacionadas ao tema promovam a elaboraçãoou readequação de planos, projetos e atividades na conformidadedas práticas e responsabilidades nela estabelecidas (Brasil 1999).

Em 2002, propõe-se a organização e a implantação de RedesEstaduais de Assistência ao idoso (Portaria nº 702/SAS/MS de 2002),tendo como base as condições de gestão e a divisão de responsabili-dades definidas pela Norma Operacional de Assistência à Saúde(NOAS). Como parte de operacionalização das redes, criam-se asnormas para cadastramento de centros de referência em atenção àsaúde do idoso (Portaria nº 249/SAS/MG de 2002).

O Estatuto do Idoso foi elaborado em 2003, com intensa partici-pação de entidades de defesa dos interesses dos idosos. O Estatuto

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amplia a resposta do Estado e da sociedade às necessidades da po-pulação idosa, mas não traz consigo meios para financiar as açõespropostas. O capítulo IV do Estatuto reza, especificamente, sobre opapel do SUS na garantia de atenção à saúde da pessoa idosa, deforma integral, em todos os níveis de atenção.

Em fevereiro de 2006, a Portaria nº 399/GM, estabelece as dire-trizes do pacto pela saúde que contempla o pacto pela vida. Nessedocumento, a Saúde do idoso aparece como uma das seis prioridadespactuadas entre as três esferas de governo, sendo apresentada umasérie de ações que visam, em última instância, à implementação dealgumas das diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde doIdoso.

Percebe-se, nesse delineamento histórico sucinto, um avanço te-órico/jurídico acerca das políticas públicas de saúde. Entretanto, naprática, convivemos com uma precariedade e uma defasagem dealternativas concretas frente às necessidades de instalações físicasadequadas, recursos humanos em quantidade e qualidade insuficien-tes e protagonismo inexistente da população idosa.

A seguir, analisaremos a assistência da Saúde do Idoso, a criseque vive o sistema de saúde totalmente fragmentado, as recentespolíticas do governo com o Estatuto do Idoso e o Pacto pela Vidapara minimizar a situação crítica apresentada.

A saúde do idoso e a crise do sistemaA sociedade contemporânea valoriza as pessoas, criando certos

“padrões de normalidade”. E a pessoa idosa foge a estes padrões eisto faz que os mesmos sejam estigmatizados, excluídos e discrimi-nados, até mesmo na forma em que são atendidos nos serviços desaúde.

A própria pessoa idosa se percebe em seu imaginário como umapessoa doente, incapaz, fragilizada e dependente e isso são reforça-das pelo olhar dos familiares e da sociedade em geral.

Sabe-se que os idosos utilizam mais os serviços de saúde e sãoafetados mais freqüentemente por problemas de longa duração (do-

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enças crônicas), inclusive com aumento de casos com o vírus HIV,exigindo onerosas intervenções, que envolvem tecnologia complexa,internações com um maior tempo de ocupação de leitos.

São necessárias ações efetivas, com pessoal qualificado, com tra-balho integrado de equipes multidisciplinares, equipamentos, examescomplementares e, principalmente, o envolvimento da sociedade nessacausa. Tudo isto faz com que os custos do setor saúde aumentem.Há que se considerar que os recursos financeiros são precários para,pelo menos, minimizar esta situação.

Paralela a esta situação, está a posição da família que, muitasvezes, sem condições financeiras para assistir o idoso, vê como solu-ção institucionalizar o mesmo, colocando-o em casas de repouso,clínicas de recuperação ou asilos. Estas por sua vez, não ofertamcuidados qualificados aos idosos, se preocupando em satisfazer seusinteresses financeiros, abandonando os mesmos.

Intervenções são necessárias para melhor supervisionar essasinstituições a fazer cumprir o Estatuto do Idoso no seu artigo 3º, quereza “que é obrigação da família da comunidade da sociedade e dopoder público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, efetiva-ção do direito “...à dignidade, ao respeito e à convivência familiar ecomunitária; destacando, no inciso 4, a viabilização de formas alter-nativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demaisgerações”.

Cabe observar também que a oferta de cuidados secundários ofe-recidos pela rede ambulatorial também está em franco desacordocom as propostas contemporâneas em saúde, onde se buscam, ou setêm basicamente consultas realizadas por especialistas, com baixaresolubilidade dos serviços. O não monitoramento das doenças pre-valentes e os escassos serviços domiciliares fazem que o primeiroatendimento ocorra em estágio avançado. Infelizmente, o sistema desaúde, hoje vivenciado, é fragmentado, e a preocupação prioritária éa cura de doenças. O conhecimento é centrado nos médicos especi-alistas, perdendo-se a noção do corpo como um todo. A rede é hie-rarquizada e a tecnologia complexa. O modelo é hospitalocêntrico ou

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agudocêntrico, ou seja, incentiva-se a hospitalização ao invés da aten-ção primária de saúde que deveria ser focalizada no sentido de otimi-zar a saúde do idoso, tornando-o sujeito centrado.

Pacto pela vidaO preconceito contra a velhice e a negação da sociedade quanto

a esse fenômeno colaboram para a dificuldade de se pensar políticasespecíficas para esse grupo.

Ainda há os que pensam que se investe na infância e se gasta navelhice. Deve ser um compromisso de todo gestor em saúde colocarem prática os princípios e diretrizes do SUS e compreender que,ainda que os custos de hospitalizações e cuidados prolongados sejamelevados nos idosos, também aí está se investindo na velhice. “Quandoo envelhecimento é aceito como um êxito, o aproveitamento de com-petência, experiência e dos recursos humanos dos grupos mais ve-lhos é assumido com naturalidade, como uma vantagem para o cres-cimento de sociedades humanas maduras e plenamente integradas”(Plano de Madri, Artigo 6º).

A fim de responder às demandas da população idosa diante dacomplexidade que é corresponder a sua assistência, apresentamosabaixo as diretrizes da política nacional de saúde da pessoa idosa:

Promoção do envelhecimento ativo e saudável, atenção integral,estímulo às ações intersetoriais, provimento de recursos capazes deassegurar qualidade da atenção, estímulo à participação e fortaleci-mento do controle social. E ainda, formação e educação permanentedos profissionais de saúde, divulgação e informação sobre a políticanacional de saúde da pessoa idosa para profissionais de saúde, ges-tores e usuários do SUS, promoção de cooperação nacional e inter-nacional das experiências na atenção à saúde, apoio ao desenvolvi-mento de estudos e pesquisas.

Em conformidade com as diretrizes básicas desta política nacio-nal, o Pacto pela Vida, instituído em fevereiro de 2006, é um grandeavanço. Prioriza o controle do câncer do colo do útero e da mama; aredução da mortalidade infantil e materna, o fortalecimento da capa-

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cidade de respostas às doenças emergentes e endemias, com ênfasena dengue, hanseníase, tuberculose, malária e influenza; promoçãoda saúde; fortalecimento da atenção e regulação assistencial e inclui,pela primeira vez, a saúde do idoso nas três esferas de governo,como ação prioritária.

Os objetivos prioritários à saúde do idoso no pacto pela vida, anível estadual são: estimular a implementação da caderneta e domanual de atenção básica da saúde da pessoa idosa, apoiar os muni-cípios para a reorganização do processo de acolhimento à pessoaidosa; implementar programa de educação permanente na área doenvelhecimento e saúde do idoso voltado para profissionais da redede atenção básica à saúde. Qualificar a dispensação e o acesso dapopulação idosa à assistência farmacêutica; instituir avaliação geriá-trica global a toda pessoa idosa internada em hospital integrante doprograma de atenção domiciliar; apoiar os municípios na instituiçãoda atenção domiciliar ao idoso.

Diante destes objetivos prioritários à saúde do idoso na esferaestadual, percebe-se o mesmo, Pacto pela Vida ainda simplista in-completo, por não abarcar todas as diretrizes da política nacional,principalmente nos aspectos da integralidade, participação e fortale-cimento do controle social que são fundamentais para o êxito domesmo.

Atenção integral e integrada à saúde da pessoa idosa deverá serestruturada nos moldes de uma linha de cuidados com foco no usuário,baseado nos seus direitos, necessidades, preferências e habilidades.

Tornam-se necessárias: a incorporação na atenção básica demecanismos que promovam a melhoria da qualidade de vida e o au-mento da resolubilidade da atenção à pessoa idosa, com envolvimen-to dos profissionais da atenção básica e das equipes da saúde dafamília. Deve-se incluir, ainda, a atenção domiciliar e ambulatorial,com incentivo à utilização de instrumentos técnicos validados, comode avaliação funcional e psico-social. Além disso, é importante aincorporação na atenção especializada, de mecanismos que fortale-çam a atenção à pessoa idosa, reestruturação e implementação das

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redes estaduais de atenção à saúde da pessoa idosa, visando à inte-gração efetiva com a atenção básica e os demais níveis de atenção.

Tudo isso garante a integralidade da atenção, por meio de estabe-lecimento, de fluxos de referência e contra-referencias e implemen-tando, de forma efetiva, modalidades de atendimento que correspon-dem às necessidades da população idosa. (Galdani, 2006).

A política medicamentosa é imprescindível em todos os níveis deatenção, prioritariamente na atenção domiciliar, bem como a aloca-ção de recursos tanto para adequação de estruturas físicas, quantopara ações de qualificação e de capacitação de recursos humanos.

Também é importante a produção de material informativo sobre apolítica nacional de saúde da pessoa idosa, sobre normas e técnicasoperacionais de saúde, para gestores e usuários do SUS.

Para viabilizar a política nacional de saúde da pessoa idosa, cabe-rá aos gestores do SUS, em todos os níveis, prover os meios paraalcançar os propósitos da mesma.

Na esfera estadual deverá o gestor: elaborar normas técnicasreferentes à atenção à saúde da pessoa idosa no Sus; definir recur-sos orçamentários e financeiros discutir e pactuar, na comissão in-tergestores bipartite (CIB), as estratégias e metas a serem alcança-das por esta política a cada ano. implementar as diretrizes da educa-ção permanente e qualificação em consonância com a realidade locoregional; estabelecer instrumentos e indicadores para o acompanha-mento e a avaliação do impacto da implantação e implementaçãodessa política; manter articulação com municípios para o apoio àimplantação e supervisão das ações;etc.

Diante de inúmeros deveres fundamentais do Estado em provercondições para viabilização dessa política, urge a necessidade de umefetivo trabalho de fiscalização, supervisão e controle social atravésdos conselhos municipais e estaduais de saúde, órgãos de defesa dosdireitos da pessoa idosa, entidades e toda sociedade civil na garantiado que preconiza a política nacional de saúde da pessoa idosa.

Deve-se estimular a inclusão nas conferências municipais e esta-duais de saúde de temas relacionados à atenção à população idosa:

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de apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas que avaliem aqualidade e aprimorem a atenção à saúde da pessoa idosa, atravésde redes de apoio às instituições formadoras, associativas e repre-sentativas, universidades e órgãos públicos.

A construção social da demanda: uma saída para a criseDiante da complexidade que é envelhecer saudavelmente, a polí-

tica nacional de saúde da pessoa idosa, contempla as ações, progra-mas, projetos e atividades a serem desenvolvidos de forma descen-tralizada, com assistência humanizada, integral. Com qualidade.

Pinheiros e Mattos, 2005, pág. 5, afirmam que:

(...) a integralidade é um termo polissêmico e polifônico,

pois reúne diferentes significados, sentidos e vozes resul-

tantes da interação dos sujeitos no cotidiano de suas práti-

cas em saúde. Sua definição legal aponta para a integra-

ção de atos preventivos, curativos, individuais e coletivos,

em cada caso dos níveis de complexidade. Já pela perspec-

tiva dos usuários, a ação integral tem sido freqüentemente

associada ao tratamento digno e respeitoso com qualida-

de, acolhimento e vínculo.

Como construção e prática social, a integralidade ganha riqueza eexpressão porque reúne os valores que as pessoas defendem e nosquais, ao mesmo tempo, elas imprimem sua experiência de vida.Demanda que se constrói na luta pela garantia do direito à saúdecomo questão de cidadania, na conformação de um trabalho em equi-pe com profissionais qualificados, capazes de reconhecer a alterida-de dos usuários e a participação dos sujeitos com suas diferentesvozes ecoadas em distintos espaços públicos. Envolver a pessoa ido-sa na construção social da demanda é uma tarefa complexa, consi-derando que os próprios idosos não se vêem neste papel, na medidaem que são percebidos e tratados pelos próprios profissionais de saúdecom impaciência e descaso.Imagina-se que os velhos são desinte-

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ressantes, exigentes, queixosos, dependentes e intrometidos. Todasas iniciativas pertinentes à promoção da saúde do idoso perpassampor mudanças culturais acerca da visão que se tem da pessoa idosa.

Pickles, (2002) afirma que para que haja êxito nos programas depromoção de saúde é indispensável envolver o indivíduo ou a comu-nidade nos fatores que os levam a ter disposição para participar,habilitando-os a modificar seu comportamento em conseqüência dessaparticipação.

Pinheiro e Mattos, (2005) afirmam que as necessidades em saú-de ou demanda de cuidados médicos fazem parte do imaginário soci-al e, portanto, estão permeadas de conteúdos simbólicos. Traduzir asnecessidades e demandas, dar voz aos sujeitos, pode ser uma dasestratégias para se organizar as práticas de integralidade em saúdenos serviços públicos. Isso significa que a ação dos sujeitos na buscade melhorias e enfrentamento dos problemas individuais e coletivos,merece atenção especial por parte dos profissionais de saúde e ges-tores. E quando isto não acontece ou seja, decidem implementar pro-jetos de saúde sem um contato prévio com a população.Esses proje-tos tendem ao fracasso, pois se organizam a partir de representa-ções e visões de mundo diferentes, não atendendo a real demandado público-alvo.

Para isso, é necessário haver sensibilização das equipes que atu-am nos serviços de referência às unidades básicas de saúde, ou nosmódulos de saúde da família, quanto ao acolhimento, o estabeleci-mento de vínculos e a responsabilidade para com os usuários, nosentido de possibilitar a escuta e estimular a autonomia dos usuários,seu auto-cuidado e empoderamento, contribuindo para um controlesocial eficaz.

Algumas propostas devem ser avaliadas como importantes paraum trabalho de equipe resolutivo: reuniões de equipe com discussãode casos numa perspectiva transdiciplinar, atividades de educaçãopermanente, discussão conjunta de processos de trabalho pactuadoscom a equipe a clientela atendida. Não pode ser esquecida a buscade parcerias fora da esfera pública e de formação de redes.

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Para Pinheiro e Mattos (2005) “rede cuidadosa” não é restritaaos serviços de saúde. Mais do que isto, pressupõe a articulaçãocom outros recursos da sociedade, como apoio familiar, religioso,alternativas de sustentação econômica, moradias, redes de solidarie-dade e outros que compõem as redes sociais de apoio.

Considerações finaisPercorrendo a trajetória histórica das políticas públicas de saúde,

desde a promulgação da Constituição de 1988 que já assegurava oampara às pessoas idosas pela família, pela sociedade e pelo Estado,defendendo sua dignidade e bem-estar, garantindo o direito à vida esua participação na comunidade, percebe-se uma morosa caminha-da na efetivação das políticas públicas de assistência ao idoso. Elacontempla basicamente todos os aspectos fundamentais à melhoriana assistência à saúde da pessoa idosa, mas muito há de se fazerentender, principalmente no tocante ao incentivo à participação dapessoa idosa na elaboração das políticas públicas de saúde e no con-trole social das mesmas.

Torna-se necessário também a formação de equipes especializa-das para criarem um movimento de desospitalização, com práticasde assistência focalizadas na atenção primária, incentivando o auto-cuidado do idoso e o protagonismo, no sentido dos mesmos assumi-rem seu papel de cidadãos e cobrarem do sistema, resolutividade dosserviços de saúde em todos os níveis, otimizando a saúde necessáriae de direito.

Pinheiros e Mattos, 2005, chamam de integralidade, como cons-trução e prática social da demanda, que se constrói na luta pela ga-rantia do direito à saúde como questão de cidadania, na conforma-ção de um trabalho em equipe com profissionais qualificados, capa-zes de reconhecer a alteridade dos usuários e a participação dossujeitos com suas diferentes vozes ecoadas em distintos espaçospúblicos.

Enfim, o envelhecimento é um grande desafio ao mundo contem-porâneo, considerando sua complexa realidade, que perpassa por

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questões sócio-econômicas e culturais, sendo, talvez necessário, umarevitalização da sociedade quanto à valorização acerca do papel doidoso enquanto cidadão de direito.

REFERÊNCIAS

ALCÂNTARA, ZABAGLIA (Org.). A arte de envelhecer – Saúde, traba-

lho, afetividade e estatuto. Idéias e letras, UERJ. Rio de Janeiro, 2004.CHAIMOWITZ, Flávio. Os idosos brasileiros no século XXI – Demogra-

fia, saúde e sociedade. Postgraduate, Belo Horizonte, 1998.PICKLES, Barrie; COMPTON, Ann; COTT, Cheryl; et. al. Fisioterapia na 3ª

idade. Livraria Editora. Santos, 2ª edição, 2000 1ª reimpressão, 2002.PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Org.); A Construção social da demanda-

direito à saúde – trabalho em equipe- participação e espaços públicos.

IMS/UERJ – CEPESC – Abrasco – Rio de Janeiro 2005.Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para apromoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funciona-mento dos serviços correspondentes e dá outras providências. CRESS/7ªRegião. “Assistente social: ética e direitos. Coletânea de Leis e Ações”. Ed.Lidador. Rio de Janeiro, 2000. Brasília, 1990.Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação dacomunidade na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS – e sobre astransferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saú-de e dá outras providências. CRESS/7ª Região. “Assistente social: ética edireitos. Coletânea de Leis e Ações” Ed. Lidador. Rio de Janeiro, 2000. Bra-sília, 1990.GALVANI, Milton, [2006]. Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Dis-ponível em: <http://www.abraz.com.br/default.aspx?pagid=DKICRLTL>,acessado em Janeiro de 2007.ESTATUTO DO IDOSO, Lei nº 10.741 de 1º de Outubro de 2003. Cartilha doCentro de Convivência do Idoso Maria Cândida da Silva.

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Dando cumprimento à sua vocação de historiador da filosofia,José Maurício de Carvalho vem de publicar um livro dedica-do ao filósofo alemão Karl Jaspers (1883/1969). A edição

esteve a cargo da Imprensa Nacional de Portugal, sendo esta a refe-rência: Filosofia e psicologia. O pensamento filosófico-existen-cial de Karl Jaspers (Lisboa, Imprensa Nacional, 2006, 265 p.).Precedentemente, estudara os principais filósofos brasileiros e por-tugueses, bem como autores de outras nacionalidades com marcadapresença na filosofia luso-brasileira, a exemplo de Ortega y Gasset(1883/1955).

Na época em que Jaspers forma seu espírito – nas primeirasdécadas do século XX – já o neokantismo de Hermann Cohen (1842/1918) alcançara uma posição de destaque na filosofia alemã. O pro-cesso de formação da química e da biologia, segundo o modelo dafísica-matemática, na segunda metade do século XIX, dera um gran-de alento ao positivismo, corrente filosófica que supunha viria a ciên-cia a ocupar todo o campo do saber, dispensando a necessidade demeditação de índole filosófica. A reação contra essa suposição sim-plificadora começa, na Alemanha, nos anos oitenta, sob o lema de“volta a Kant”. Caberia a Hermann Cohen dar-lhe consistência, res-taurando o prestígio da filosofia nos meios acadêmicos germânicos.Contudo, a primazia do kantismo incomodava aos pensadores queentendiam devesse a filosofia ultrapassar os limites da experiênciahumana, a fim de ocupar-se da divindade. Não se tratava de abordar

RESENHA

CARVALHO, José Mauricio de. Filosofia ePsicologia, o pensamento fenomenológicoexistencial de Karl Jaspers. Lisboa: Imprensa

Nacional – Casa da Moeda, 2006, 265 p.

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a experiência religiosa – tema que viria a florescer, entre outras coi-sas pela busca da especificidade da cultura, emergente como desdo-bramento do neokantismo. Mas de restaurar os direitos da teologia,isto é, de uma abordagem puramente conceitual acerca de Deus. Oponto do kantismo a ser enfrentado dizia respeito à interdição daintuição intelectual (para Kant a intuição é exclusivamente sensível,imediata, esporádica) e esta seria a tarefa a que se lançou Edmund(Husserl1859/1938), dando origem a uma outra corrente filosófica, adenominada fenomenologia.

Como evidencia José Maurício de Carvalho, o interesse de KarlJaspers pela fenomenologia advém de sua condição de médico psi-quiatra. Muitos filósofos entenderam que o método criado por Hus-serl permitia estruturar uma base conceitual sólida, capaz de servircomo fundamento para as ciências humanas. Os psiquiatras ressen-tiam-se de um tal fundamento. Alguns cuidaram de explorar a hipó-tese fenomenológica. Este não seria apenas o caso de Jaspers. NoBrasil, Nilton Campos, que era diretor do Instituto de Psicologia daantiga Universidade do Brasil (atual UFRJ), popularizou em livro aidéia do método fenomenológico na psicologia. Aquiles Cortes Gui-marães estudou o movimento por ele desencadeado (no livro Mo-mentos do pensamento luso-brasileiro, Tempo Brasileiro, 1981),integrado por médicos e psicólogos de renome, destacando AntonioGomes Pena, Eustáquio Portela, Élson Arruda, Nelson Pires e IsaiasPaim. Entretanto, segundo Aquiles Cortes Guimarães, essa linhaencontrava-se cada vez mais distanciada de preocupações filosófi-cas. Caberia a Creusa Capalbo retomar o tema do fundamento, abor-dado com a devida amplitude, inclusive comprovando a eficácia dométodo fenomenológico na adequada estruturação das ciências hu-manas. Sua obra iria situar o movimento fenomenológico como umadas vertentes expressivas da filosofia brasileira contemporânea. As-sim, o “caso Jaspers”, independentemente do valor de sua contribui-ção à filosofia, reveste-se de particular interesse para a nossa cir-cunstância.

Convencido da relevância da meditação de Jaspers para a filoso-

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fia contemporânea, José Maurício de Carvalho não seguiu a trajetó-ria existencial do filósofo, por entender que “toda a reflexão filosófi-ca que elaborou é necessária para clarear as posições que assumiucomo terapeuta. Por isso, optamos por apresentá-las depois de pro-por suas teses filosóficas. Seguimos na exposição, o caminho inver-so à história da vida do filósofo, mas clareamos como ele vê a rela-ção entre a ciência e a filosofia”.

Filosofia e psicologia subdivide-se em três capítulos. Os doisprimeiros estão dedicados à posição do autor, respectivamente, nosmovimentos existencialista e fenomenológico. Para José Mauríciode Carvalho, Jaspers entende que o existencialismo deita raízes nopróprio nascedouro da filosofia, não se limitando, portanto, ao queemergia no seu tempo. A seu ver, na obra de Jaspers “a existênciahumana passa a ser a perspectiva pela qual toda a filosofia do Oci-dente é revista, revisada, examinada”. Repousa “na existência indi-vidual, na vida concreta de cada homem”. Contudo, o método por eleadotado provém da fenomenologia, que lhe permite estabelecer oseguinte princípio: “A reflexão sobre o real revela que, além da lin-guagem e do que pode ser objetivamente conhecido, isto é, a verda-de científica, há uma realidade inexprimível, impensável e irredutívelà experiência, que o filósofo denomina de transcendência”. Jaspersavança o conceito de englobante, que permitiria ter acesso ao trans-cendente e, ao mesmo tempo, assegurar a integração dos diversosplanos do saber. Eis o que ele escreve o autor: “A hierarquia existen-te entre os englobantes aponta modos distintos de verdade. Jaspersconsidera que existe uma verdade imediata e pragmática. Segue-sea verdade científica, que é alcançável por todos os homens pela cons-trução coletiva e rigorosa da evidência. Em seguida, nos deparamoscom as verdades que não nascem da evidência, mas da convicção.Passamos então ao espaço da ética e da exigência absoluta que Jas-pers recupera da razão prática formulada por Kant. Agimos peloconvencimento nesses casos. Finalmente, existe uma verdade maisampla, a verdade da transcendência, que é abarcada na fé filosófica.As questões examinadas pela ciência, ética e religião se encadeiam

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na formação do que é a realidade para o existente” (pág. 157).O título que deu ao livro está plenamente justificado pelo que

contém o terceiro capítulo. Trata-se de uma análise exaustiva daobra relacionada à sua especialidade, bem como a meditação quededicou à psicologia em obras filosóficas. Jaspers é autor de Psico-patologia geral, considerada como texto essencial à formação mé-dica. José Maurício de Carvalho adianta que as considerações noque respeita à disciplina, em obras filosóficas, encontrar-se-iam so-bretudo na Introdução ao Pensamento Filosófico e no livro Ra-zão e Contra-Razão de nosso tempo. Transcrevo as indicaçõesdo autor, no que se refere ao seu significado, por me parecer que sãosuficientemente elucidativas: “Nessas obras, descobrem-se as linhasgerais que orientam o pensamento de Karl Jaspers sobre a Psicolo-gia e a relação terapeuta paciente. De um lado, ele procura fazer, apartir da fenomenologia, a mais exata descrição possível dos fatospsicológicos e assegura o caráter de cientificidade dessa investiga-ção; de outro, constata que a dimensão existencial afeta o comporta-mento tanto do terapeuta como de quem o procura para pensar o seumundo. Se ela não é impedimento para que se construa uma ciênciapsicológica, é preciso assegurar que a ciência daí emergente nãotenha a pretensão de ser uma ciência total, isto é, como uma palavrade explicação sobre todos os fatos da vida humana” (pág. 161).

Suponho que as breves indicações precedentes servem para des-tacar a oportunidade da publicação.

Antonio PaimInstituto Brasileiro de Filosofia

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1 – Informações geraisA revista Cadernos da Pós-Graduação – Contemporaneum –,

editada pela FUNEDI (unidade associada à UEMG/Universidadedo Estado de Minas Gerais) propõe-se a publicar artigos que dialo-guem com as linhas de pesquisa (Cultura e Linguagem, Espaço eSociedade, Saúde Coletiva) de seu mestrado em Educação, Cultu-ra e Organizações Sociais (área de concentração: Estudos Con-temporâneos). Trata-se, pois, de artigos que remetam a reflexõessobre a contemporaneidade, sejam centrados na pesquisa e nas prá-ticas profissionais ou sejam voltados para a reflexão crítica sobre aprodução do conhecimento nos cruzamentos daquelas três grandesáreas (Educação, Cultura e Organizações Sociais), desde uma pers-pectiva sensível à transdisciplinaridade.

2 – Orientação editoriaisOs artigos devem ser inéditos e seus originais serão submetidos a

exame pelo Comitê Editorial, que, para tal, poderá fazer uso de con-sultores “ad hoc”, a seu critério, omitida a identidade dos autores.Estes, serão notificados da aceitação ou não dos artigos. Os originaisnão serão devolvidos. Pequenas modificações no texto poderão serfeitas pelo Comitê Editorial, mas as modificações substanciais serãosolicitadas, a tempo, aos autores. Os artigos assinados expressarãoexclusivamente o pensamento de seu autores. É permitida a repro-dução parcial dos artigos desde que citada a fonte. O Comitê Edito-rial se encontra encarregado de delinear as estratégias e temáticasque possam aprimorar os objetivos maiores da revista, a saber, aintegração entre os distintos níveis da Universidade (graduação, pós-graduação e atuações extensionistas), o cruzamento de suas possibi-lidades de ação (ensino e pesquisa) e participação nas complexida-des cotidianas da sociedade.

ORIENTAÇÕES PARA A APRESENTAÇÃODE TEXTOS PARA A PUBLICAÇÃO

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O itinerário dos textos que chegam ao Comitê Editorial é o se-guinte: 1) encaminhamento para parecer; 2) encaminhamento doresultado do parecer para a reunião do Comitê Editorial, para deci-são final; 3) informação para o autor: se recusado, se aprovado ouse necessita de reformulações (neste caso, é definido um prazo de30 dias, findo o qual o artigo é desconsiderado, caso o autor não oreformule); 4) encaminhamento do texto diagramado para o autorrevisar (o prazo é de uma semana para retornar ao Comitê Editori-al); 6) publicação.

3 – Apresentação dos trabalhosOs artigos devem ser direcionados ao coordenador do Mestrado

em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMGque, na condição de presidente do Comitê Editorial, dará seqüência àtramitação do mesmo. Os artigos devem ser enviados em três viasimpressas, fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 e todas asmargens de 2cm. Devem ser enviados resumo, em Português e abs-tract em Inglês contendo até 100 palavras, além de três ou quatropalavras chaves com as respectivas key-words. A primeira lauda dotexto original deve conter o título do trabalho, nome completo doautor, vínculo institucional, e-mail e seu respectivo endereço. As de-mais páginas devem ser numeradas consecutivamente, a partir de 2.Também se deve apresentar uma gravação do texto em disquete, noformato “word for windows 2000” (doc.).

No corpo do artigo não devem ser incluídos elementos que possi-bilitem identificar o(s) autor(es) do texto (ex.: papel timbrado, rodapécom o nome do autor, etc.). O material deve ser enviado à coordena-ção do mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais daFUNEDI/UEMG com uma carta de encaminhamento assinada peloautor (no caso de único) ou por todos os autores (no caso de co-autoria) e autorizando a publicação do mesmo.

A revista Cadernos da Pós-Graduação – Contemporaneum ésemestral, sendo que os períodos ordinários de recebimento de tra-balhos para a publicação são os seguintes: de 01 de janeiro a 30 de

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março (para o número do primeiro semestre), de 01 de julho a 30 desetembro (para o número do segundo semestre).

4 – Tipos de Texto1. Artigos – reflexões sobre os modos de pensar e atuar vigen-

tes na cena contemporânea e as novas elaborações nos campos daEducação, Cultura e Organizações Sociais, privilegiando-se propos-tas e/ou metodologias inter e transdisciplinares (de 8 a 10 laudas);

2. Relatos de pesquisa – investigações concluídas ou em fasede adiantado desenvolvimento baseadas em dados de campo, recor-rendo a metodologia quantitativa e/ou qualitativa. Nesse caso, é ne-cessário conter introdução, metodologia, resultados e discussão (de8 a 10 laudas);

3. Relatos de experiência – relatos de experiência profissionalou intervenções de caráter extensionista de interesse para as dife-rentes ações inter ou transdisciplinares (até 5 laudas);

4. Comunicações – relatos breves de pesquisas ou trabalhosapresentados em reuniões científicas/eventos culturais (até 5 laudaslaudas);

5. Debates – comentários completos e réplicas a textos publica-dos em números anteriores da revista (até 5 laudas)

6. Resenhas – apresentações e comentários de livros e/ou pro-dutos culturais que dialoguem com a cena contemporânea desde umaperspectiva que possibilite prospecções transdisciplinares, essencial-mente aquelas que debatam com a Educação, Cultura e Organiza-ções Sociais.

5 – Normatização acadêmico-científica1. As formas de entrada e a realização das citações, bem como

a indicação, ao final do artigo, das referências bibliográficas (con-vencionais ou eletrônicas), devem se basear nas normalizações indi-cadas por FRANÇA, Júnia Lessa & DE VASCONCELOS, AnaCristina. Manual para normalização de publicações técnico-ci-entíficas. 9.ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.

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2. Para as situações mais recorrentes, nos casos de citações,devem ser seguidas as seguintes diretrizes

2.1. Citações curtas (de até três linhas): são inseridas no corpo dotexto, sempre entre aspas, tal como o exemplo a seguir:

A globalização implica em um “rearranjo das interrelações entreespaço e tempo de amplas repercussões para a relação que, dora-vante, se mantém com o passado e o futuro” (GIDDENS, 1997, p.132). Verifica-se, por conseguinte, uma outra forma de se vincular ese romper com a tradição.

2.2. Citações longas (acima de três linhas): devem constituir umparágrafo independente, recuado (4 cm da margem esquerda), comtamanho de letra menor que o utilizado no texto e com espaçamento1 entre linhas, dispensando as aspas.

3. No caso de utilização das notas de rodapé, as mesmas devemser convertidas em notas de fim do texto.

4. Em especial, para os demais casos e possibilidades de norma-tização acadêmico-científica, deve-se observar as partes relativasàs citações (capítulo 13), notas de rodapé (capítulo 14) e referências(capítulo 15) do manual indicado.

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Esta revista foi composta na tipologia Times New Roman e emcorpo 11/13,9. O miolo foi impresso em papel apergaminha-do 75g e a capa, em papel supremo 250g. Impresso na Impren-sa Oficial do Estado de Minas Gerais em outubro de 2007.